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Artigos

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D ireito A r t i g o

D ireito E x p e d i e n t eRevista IMES Direito – Uma publicação do Centro Universitário Municipal de São Caetano do Sul

Ano IV – n. 7Ano IV – n. 7Ano IV – n. 7Ano IV – n. 7Ano IV – n. 7

julho/dezembro 2003julho/dezembro 2003julho/dezembro 2003julho/dezembro 2003julho/dezembro 2003

Fechamento desta edição:

Maio/2004

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R E S U M O

OS TREZE ANOS DO CÓDIGO DE DEFESADO CONSUMIDOR

Glauber Moreno TalaveraMestre e Doutorando em Direito Civil pela PUC/SP.

Especialista em Direito Imobiliário pela Universidade de Sourbonne – Paris.Especialista em Direito das Relações de Consumo pela PUC/SP.

Professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da FMU.Professor da Escola Superior de Advocacia.

Membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP.Advogado em São Paulo.

O presente artigo traz a lume alguns aspectos doCódigo de Defesa do Consumidor e analisa-o soba égide dos reclamos da sociedade contemporânea,avaliando, ainda, a incidência das políticas econô-micas governamentais nesse período e sua assimi-lação pelo consumerismo pátrio.

A Lei n. 8.078, de 1990, nominada como Có-

digo de Defesa do Consumidor, desde o seu ad-

vento tem por principal escopo a harmonização

das relações coletivas mediante regulamentação

de seus lineamentos no âmbito de uma socie-

dade permeada por uma exacerbada massificação

e conseqüente abstração e impessoalidade no

processo de interação entre os atores sociais.

Forjada a partir de uma economia de merca-

do que se quer notadamente capitalista, mas que

vem, pouco a pouco, vislumbrando a necessidade

de atenuação do seu rigor a partir do exsurgi-

mento de uma terceira via, até então sedimentada

por um solidarismo social ainda tímido e cam-

biante, a lei de regulação do consumerismo pátrio

anseia a possibilidade de amalgamar a normati-

zação legalista a um fator de inclusão social, que

constitua permissivo para que atores sociais, até

então economicamente marginalizados, possam

palmilhar as veredas do consumo, consagrando,

assim, efetivamente, o princípio da igualdade –

não apenas formal – como corolário lógico da

dignidade da pessoa humana.

Em uma palavra, é importante que se diga

que, mesmo diante da problematização da apli-

cabilidade da Lei n. 8.078/90, instigada por al-

guns advogados – alguns até notáveis por seus

malabarismos retóricos e passes literários, que

invocam disposições dos Códigos Civil e do Pro-

cesso Civil a fim de, conscientemente, dissipar a

natureza coletiva dos conflitos e inferir certa le-

targia ao andamento dos processos, por vezes

tentando confundir e dissuadir a interpretação

dos Tribunais acerca da legislação aplicável, o que

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reverte em benefício de seus patrocinados –, se

promovermos um exame meramente perfunc-

tório da jurisprudência, o panorama geral nos

mostra que os magistrados têm, em sua maio-

ria, absorvido a inteligibilidade desse diploma

normativo, bem como a dimensão social e os

derredores de sua incidência, conforme enten-

dimento compartilhado, também, pelo afama-

do mestre Rodolfo Machado.

No entanto, na sociedade, muitos ainda re-

sistem ao diploma consumerista, pois há de se

notar que os que lucraram com a política do caos

e enriqueceram em meio às mazelas seculares são

os mesmos que tornam mais íngreme e tortuoso

o percurso do proletariado brasileiro rumo à

justiça social. As leis que o país levou a efeito nesta

década são o espectro de um povo que não mais

referenda as benesses para alguns poucos, nem a

resistência passional a medidas que garantem

maior qualidade de vida a gerações futuras.

Alguns degraus dessa escada de Jacó ainda têm

que ser galgados, como o das lacunas históricas

que inseriram o país em um processo patológico,

o da inércia do Estado que exilou cidadãos em

sua própria terra, e o do descaso que privou de

assistência aqueles distantes do poder.

Na gênese da elaboração desta lei, natural-

mente houve pressões de empresas, por um

lado, e de consumidores, por outro, o que indi-

cava as dificuldades, os dilemas e as dúvidas de

uma sociedade que tentava colocar um pé na

civilidade, mas que se surpreendia com o outro

teimando em se firmar no atraso.

Ainda que os óbices não tenham sido por

completo eliminados, esse abismo que separava

os dois tempos do mesmo país começou a ser

transposto, como uma espécie de juízo final das

práticas inescrupulosas, do comércio de pro-

postas falsas e dos engodos que capturavam

clientes incautos.

Entretanto, longa caminhada e um esforço

hercúleo nos separam de um paradigma relati-

vamente significativo de aplicação dessa lei que,

dentro de um tímido padrão de razoabilidade,

tem lançado suas sementes, compatibilizando

os interesses de uma sociedade fragmentária de

lindes tão segmentados.

Sob a esperança inspiradora de que um mo-

delo econômico menos lastimoso e mais frater-

no possa aqui deitar raízes e entre nós fazer mo-

rada, concebemos, humildemente, esses poucos

traços e auguramos, ainda que de forma modesta,

possa esse trabalho contribuir para a humani-

zação das relações econômicas e sociais.

Com a transfiguração de uma sociedade

eminentemente subjetivista para uma que apre-

senta um tráfico mercantil massificado e pro-

gressivamente pujante, na qual os atores sociais

perdem o seu individualismo jurídico em face

do advento da era da coletivização, o Código de

Defesa do Consumidor vem em resposta aos

apelos da sociedade civil, que era refém de pro-

cedimentos hostis acobertados pela estrutura

abstrata e generalizante do Código Civil de 1916.

Pois este, incapaz de dar uma resposta célere e

condigna com as modernas expectativas sociais,

invariavelmente fomentava a geométrica pro-

gressão dos conflitos e o conseqüente esgarça-

mento das células do tecido social, promoven-

do, assim, a autodelação de sua operacionali-

dade perdida.

Nesses termos, e sob essa pretensão, a Lei

n. 8.078/90 consubstancia a proteção da digni-

dade da pessoa humana, bem como de seus va-

lores fundamentais correlatos, enaltecendo a

necessidade de redução das desigualdades ma-

teriais e culturais, que, no limiar do terceiro

milênio, ainda constituem temática vexatória

e, sob um prisma cristão, pecaminosa para a

maioria dos países latinos.

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A temática sobre a qual versa o Código de

Defesa do Consumidor, e da qual mais especifi-

camente tratamos, consagra aparatos processuais

próprios para a tutela de interesses e direitos

básicos imanentes ao conceito de cidadania que,

sob interpretação sistêmica, permeiam todos os

expedientes normativos por ela elencados,

formando, assim, ainda que não tenha por

pretensão a plenitude do Direito escrito, um

microssistema legislativo próprio da sociedade

pluralista contemporânea, que congrega em si

toda uma principiologia haurida no poder

normativo da Constituição Federal de 1988,

sobretudo dos artigos 5º, XXXII, 170, V e do

artigo 48 dos Atos das Disposições Constitu-

cionais Transitórias.

Ademais, havemos que consignar palavra

preliminar nessa singela abordagem acerca da

Lei de Consumo, pois, em verdade, nossa ma-

neira de tratar os problemas tem sido de todo

analítica, ou seja, continuamos a extrapolar de

modo linear os dados obtidos no passado, se bem

que as evoluções a que estamos assistindo e que

nos envolvem não são lineares, são expo-

nenciais, em constante mutação e aceleração.

Contemporaneamente, uma visão inédita

do cosmo está surgindo dos trabalhos baseados

na teoria do caos e da complexidade, de manei-

ra a estabelecer permissivo para a aproximação

entre os dois modos complementares de análise

e ação: o método analítico e o método sistêmico.

Concebido sob a inspiração de René Des-

cartes, em seu clássico Discurso sobre o método,

o método analítico estabelece as bases da aqui-

sição de nossos conhecimentos por meio de um

raciocínio rigoroso, demonstrando a importân-

cia do acesso à experimentação para verificação

ou confirmação de hipóteses. O saber se frag-

menta em multissaberes, um efetivo mosaico

inserido em um contexto desunido, fazendo

explodir a complexidade do universo em uma

sucessão de disciplinas. Como enseja Edgar

Morin, “A inteligência parcelada, compartimen-

tada, mecanicista, dissociativa, fraciona os pro-

blemas, separando o que está associado, o uni-

dimensional em multidimensional” ou, como

diziam os escolásticos, Unum versus alea.

O método sistêmico ou sistemático, sob cu-

jos auspícios trabalhamos, em contraponto ao

analítico, recombina o todo a partir desses ele-

mentos dissociados, ou seja, considera o con-

junto de suas interdependências e de sua evo-

lução histórica e temporal.

Sob a inspiração deste método, a junção de

um aspecto coletivo-protetivo na Lei n. 8.078/90,

de per se lhe outorga notória proeminência, pois

colaciona em um mesmo dispositivo aspectos

de suprema notoriedade no tocante à dignidade

da pessoa humana.

Em que pesem as célebres palavras de Que-

vedo, em Vida de Marco Bruto, “Poucos sabem

reconhecer entre as dádivas de Deus a brevidade

da vida”, ou as palavras do Marquês de Maricá,

em suas Máximas, “A vida humana é uma in-

triga perene e os homens são recíproca e simul-

taneamente intrigados e intrigantes”, a assertiva

incontrastável dos tempos novos é o processo

intermitente de banalização do valor que deve-

ria ser tributado à vida, o que leva a uma pseu-

do-degradação da espiritualidade contida em

cada ser humano, da qual deveriam transbordar

as relações litúrgicas e eucarísticas, fontes de

luz que irradiam a energia que deve conduzir o

pensar de cada criatura em busca da Consciên-

cia Cósmica Dinâmica, o Ômega Teilhardiano,

a Origem de Tudo.

A temática da proteção coletiva envolve um

sem-número de decomposições analíticas, se-

jam elas históricas, metodológicas, psicológicas,

naturais, metafísicas, transcendentais ou outras

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tantas quanto a motivação da inteligência e a

persecução humana em busca do inexplicado

possam ensejar.

O condão preventivo e o repressivo-protetivo

do Código de Defesa do Consumidor emanam de

uma flagrante necessidade de adequação das

práticas mercantis amplificadas, em compasso com

a demanda de necessidades próprias de uma

sociedade de consumo, instada a este consumo

pelo assoberbamento da informação, que traz a

lume necessidades inimaginadas, mas que de

agora ao porvir se tornam terminantemente

imprescindíveis ao bem-estar da coletividade, pois,

como dizia Érico Veríssimo, “O objetivo do

consumidor não é o de possuir coisas, mas de

consumir cada vez mais e mais, a fim de com isso

compensar seu vácuo interior, sua passividade, sua

solidão, seu tédio e sua ansiedade”.

A sociedade, outrora permeada por conflitos

inter-subjetivos passíveis de uma resposta sa-

tisfatoriamente eficaz pelo Código de Processo

Civil, modernamente não mais se convalesce,

nem se compadece, diante de um sistema juris-

dicional infausto, incapaz de dissipar os embates

coletivos e difusos oriundos do exercício natu-

ralmente conflitivo da cidadania em um con-

texto democrático, como outrora o emérito ju-

rista José Maria Trepat Cases já apregoava.

A proteção coletiva trazida pela lei consu-

merista expressa uma preocupação de efetiva-

mente encampar um aparato coletivo de cunho

defensivo, que de há muito é tratado pela dou-

trina, embora, para a efetivação desta proteção,

não existissem instrumentos materiais e pro-

cessuais adequados, afora algumas disposições

– como a Lei n. 4.717/65, da Ação Popular; a

Lei n. 6.938/81, de proteção ao meio ambiente;

posteriormente, surgindo a Lei n. 7.347/85, da

Ação Civil Pública, que constitui verdadeiro

marco para defesa de direitos transindividuais;

a Lei n. 7.853/89, de proteção aos deficientes

físicos; a Lei n. 7.913/89, de proteção aos in-

vestidores e, ainda, anterior ao Código de Defesa

do Consumidor, a Lei n. 8.069/90, Estatuto da

Criança e do Adolescente – afeitas a essa proble-

mática do assoberbamento da complexidade das

demandas diante do arcaísmo das estruturas

normativas, que institucionalizavam os conflitos

os quais, assim, se arrastavam por tempos e

tempos na parafernália judicial, caracterizada

ora pela morosidade operacional do excesso deexpedientes recursais, ora pelo ostracismo

pessoal de alguns que seguem incensando aprópria imagem, o que, funestamente, ainda é

uma chaga da qual padecem alguns setores doJudiciário.

O tríplice aspecto protetivo contido na dis-posição normativa do artigo 6º, I, do CDC, por

exemplo, que ampara os consumidores em facede eventuais riscos provocados por práticas no

fornecimento de produtos e serviços conside-rados perigosos ou nocivos à vida, saúde e se-

gurança, corrobora uma eficácia que estabeleceum invólucro imponderável em torno da inco-

lumidade física e psíquica do consumidor oudo circunstante inserido no contexto da cadeia

de consumo diante de procedimentos irregula-res de fornecedores moralmente depauperados,

aqueles que ainda tentam angariar a legitimação

da qualidade de seus produtos e serviços muito

mais por seu pretenso toque de Midas do que

pela excelência e altivez de sua mercancia.

O Código de Defesa do Consumidor revela

patente preocupação com os referidos valores

ao preconizar, nos artigos 8º a 10, a vivificante

exigência de que as informações sobre produtos

e serviços tragam consigo dados precisos, ade-

quados e ostensivos sobre sua nocividade e seus

riscos inerentes, que são nominados pela me-

lhor doutrina de periculosidade imanente, em

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contrapartida à periculosidade adquirida. Visa-se,

assim, operar um efeito preventivo que assegure

a inatingibilidade da vida, da saúde e da segu-

rança do consumidor e as ponha a salvo, fo-

mentando a transcendência da eficácia dos efei-

tos da legislação consumerista que estabelece,

nos artigos 17 e 29, a figura ficcional do con-

sumidor por equiparação, que também é en-

campado por essa sensatez acautelatória.

Outro ponto importante de atenção é o refe-

rente à educação do consumidor, pois o governo,

em setembro de 1995, iniciou uma campanha de

conscientização da população com a exibição de sete

anúncios para TV e rádio, com duração de 30

segundos cada, além de propaganda impressa em

jornais e revistas. A proposta era mostrar que se

pode comprar pelo melhor preço e com maior

qualidade o mesmo produto ou serviço.

Um dos filmes mostrava o que é possível

comprar com apenas R$ 1,00, a fim de valorizar

a moeda. Os outros seis deram ênfase aos

serviços, comparando preços de serviços de den-

tistas, mecânicos e encanadores. Um orça-

mento era apresentado por vários profissionais,

cujos preços variavam em até 300%. O filme

sempre provocava o consumidor questionando:

o preço é real ou é falso?

Segundo o então secretário de Comunica-

ção da Presidência, Sérgio Amaral, a campanha

ensejava mostrar a importância da pesquisa de

preços e visava colocar o consumidor dentro

da nova cultura de estabilização econômica.

Uma das contribuições pedagógicas mais

notáveis do Plano Real foi ensinar à população,

desde os tempos da URV, que um bom progra-

ma de estabilização é incompatível com a repug-

nante enganação histórica do controle de pre-

ços. Ao invés de assumir a utópica função de

controlar os milhares de preços da economia

brasileira, era proposta da nova moeda fomentar

a competição entre empresários, destituir oscartéis e abrir a economia à produção e aos pro-dutores estrangeiros.

O governo reconhecia que só um empresárioconcorrente consegue fazer outro empresário tri-lhar um caminho de certo respeito pelo consu-midor, não abusando deste, seja pela elevaçãoimotivada de preços, seja pela deterioração econseqüente degradação da qualidade dosprodutos.

O Plano escasseou-se e começou a bancar-rotear quando as estatais começaram a exigirreajustes tarifários. Recomendava o bom alvitreque os mentores do Plano Real dessem-lhes umabanana, sobretudo porque nada deviam amonopólios públicos, cujos preços haviam sidoconvencionados em URV.

Como o setor vinha sendo preservado daconcorrência externa, nadava a braçadas na am-pliação de seus percentuais de lucro. O governo,demagogicamente, fingia interferir nos reajus-tes, desregrando os compromissos anterior-mente assumidos e ressuscitando o simulacrodo controle de preços.

Ao implantar o Plano Real, o Presidente pro-clamou que se tratava de uma transição cul-tural profunda. Isso foi verdade, até certo ponto.Cinco foram os avanços culturais:

1) o reconhecimento da estabilidade depreços como valor fundamental daeconomia;

2) o abandono de artimanhas de combateà inflação (monitoramento de preços eseqüestro de ativos);

3) a identificação do déficit global do setorpúblico como efetivo agente causador dainflação, ao invés do tradicional escapis-mo de angariar causas externas como acrise do petróleo, as custas internacionaisou o vampirismo das transnacionais;

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4) o reconhecimento de que a dívida inter-

na passou a ser muito mais opressiva que

a externa;

5) a urgência da reformulação do Estado,

que deveria tornar-se samaritano e regu-

lador ao invés de empresário e interventor.

Conquanto a ideologia do Plano Real não

tenha sido claramente explicitada, por falta de

comunicadores na equipe econômica, pode-se

inferir que ela se baseava na premissa da mu-

dança no modelo desde há muito sedimentado.

Estava esgotado o antigo modelo de industriali-

zação substitutiva de importações, com feição

autárquica e intenso dirigismo. Haveria de se

criar um novo modelo de economia aberta,

orientada para o mercado e inserida em um

contexto de natureza globalizante.

Em linguagem pitoresca, poder-se-ia dizer

que o antigo modelo se baseava na maligna tría-

de inflação, proteção e desvalorização. Este ha-

veria de ser substituído por uma tríade benig-

na, consubstanciada pela estabilização, abertura

e reformas estruturais. Em suma, o modelo

antigo era acomodatício, o novo seria reformista.

Como dizia Paul Valéry, “Si l’Etat est fort, il nous

écrase. S’il est faible, nous périssons”.

A estabilização de preços foi conseguida

antes do esperado e sem o trauma recessivo

inicial, habitual nos programas desta espécie.

Para tanto, foram usados cinco instrumentos:

1) âncora cambial;

2) desindexação;

3) política monetária de juros altos;

4) abertura para importações e;

5) um microajuste fiscal, que foi o nomi-

nado Fundo Social de Emergência.

A abertura para importações foi feita de

maneira atabalhoada e, em virtude da sobreva-

lorização do Real, tornou-se punitiva para a in-

dústria nacional. Mas, não obstante, surtiu os

efeitos desejados em termos de criar uma cul-

tura de respeito ao consumidor, enquanto a

concorrência externa forçou aumentos de

produtividade.

A ruptura definitiva do compromisso com

a competitividade como forma suprema de de-

fesa do interesse do consumidor veio com a vol-

ta do protecionismo. De repente, já não era tão

mau que o brasileiro voltasse a pagar o triplo

do que pagava o resto do mundo para possuir

um carro alemão, comprar um brinquedo de

Taiwan ou mesmo consumir um bom vinho

italiano.

Desde então, naquele contexto, a volta à

idade das trevas foi um fato.

A lei tabelando multas por atraso de paga-

mento era imoderada, para não dizer mente-

capta. O Banco Central praticava os juros mais

destrutivos da história, debilitando o Tesouro,

os bancos e os varejistas.

Pode-se dizer que a inadimplência foi uma

das maiores ameaças ao Real, pois a cada Proer

consumia-se mais um pouco da capacidade de

investimento do setor público.

Ninguém é obrigado a pagar multa por

inadimplência, basta administrar seu orçamen-

to com cautela. Neste sentido, a multa elevada

é um alerta correto ao consumidor. Ao reduzir

a multa no tapa, o governo barateou o calote,

induzindo o consumidor à insolvência e agra-

vando uma suposta crise bancária.

Mas, mesmo diante de todos os óbices ha-

vidos, um balanço mostra que o Código de De-

fesa do Consumidor impôs-se e provou a vitória

da cidadania, referendando a assertiva de Una-

muno, em O sentimento trágico da vida, que

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preconizava: “A fé não é crer no que não vimos,mas é criar o que não vemos”, denotando queo sonho tem de ser possível.

Com o Código de Defesa do Consumidor,o sonho ao menos tornou-se menos abstrato,pois muitas boas coisas vieram. Nos supermer-cados, feiras e padarias, ouve-se constantementeque isto e aquilo são abusivos; que há direitoassegurado de arrependimento e conseqüentedevolução do produto; que a oferta vincula e,desta forma, legitima a exigibilidade de seu cum-primento, ou seja, os direitos previstos pelo Có-digo contagiaram a todos, indistintamente. Égratificante a constatação empíririca dessa to-

mada de consciência coletiva em que donas-de-

casa, profissionais autônomos e liberais em geral

e, enfim, até os advogados mais céticos apreen-

deram as prerrogativas imediatas que esta le-

gislação trouxe para a salvaguarda dos direitos

da cidadania. Para elucidar o exaltamento que

perpassa a situação, recordo trecho de Eça de

Queirós, em A correspondência de FradiqueMendes: “A nação inteira se doutorou. Do norte

ao sul, no Brasil, não há, não encontrei, senão

doutores!” – Esta é a miríade de noções positivas

trazidas pelo Código nesses 13 anos de sua vi-

gência que, de alguma forma, juridicizaram o

pensamento do povo brasileiro...

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R E S U M O

A INTUIÇÃO À LUZ DE BERGSONE A INTUIÇÃO JURÍDICA

Carla Cristina VecchiMestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Professora do IMES.

O escopo deste texto é fazer uma pequena incursãopela filosofia, passando por Bergson a fim de discutira intuição.Para tanto, tomamos alguns fragmentos da obra deBergson sobre a intuição.O assunto revela-se fascinante, mas ao mesmotempo extremamente complexo e urgindo a cadadia por uma atitude reflexiva. Poderemos constatar,em nossa conclusão, a necessidade de homens emulheres que façam do mundo a representação dasua vontade, instrumentalizada pela intuição.Em síntese, temos a pretensão de lançar os olhospara a intuição guiados por alguns traços reflexivosde Bergson. Desse modo, lançamo-nos na buscaconstante do saber, na convicção de que isso émotivo de uma investigação infindada. Comosalientamos, no entanto, tal busca não será esgotada,pois é necessário dar sempre novos passos, fazendoda pesquisa uma descoberta de cada dia.Também abordamos brevemente a questão daintuição jurídica, que, como um fator de descobertaou de criação (científica ou artística), pode atuar naexperiência sociojurídica, a fim de facilitar e ante-cipar, ao operador do Direito, a solução dos pro-blemas cotidianos.

A B S T R A C T

The goal of this text is to get into philosophy, passingthrough Bergson in order to discuss the intuition.This way, we took some parts from Bergson’s workabout intuition.The subject presents itself fascinating, but in thesame time, it is extremely complex and asking for areflexive attitude. It will be possible to realize, inour conclusion, the necessity of men and womenwho make the world a representation of their willthrough intuition.Briefly, we have the intention of looking the intuitionguided by reflexive ideas from Bergson. This justifyitself as a motive of continuous research and seekfor knowledge.As we have said, the issue is not worn out, justbecause new steps into research and newdiscoveries might be done every day.Also, we have done an approach about the legalintuition question, as a factor of discover or creation(scientific or artistic), can figure as a socio-legalexperience, in order to make easier and anticipatethe solution of daily problems.

“Requer-se muita filosofia para observar o que se vê todos os dias...”

Rousseau

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1 INTRODUÇÃO

Esse pequeno texto, originalmente, foi con-

cebido como uma monografia de conclusão de

créditos no curso de mestrado. Na disciplina

Filosofia do Direito, exigia-se que entregásse-

mos, ao final do semestre, um trabalho que pu-

desse exprimir o que fora discutido no curso.

Inicialmente, portanto, fomos motivados pelo

cumprimento do requisito de avaliação da dis-

ciplina, e também, é óbvio, pelo exercício da

produção científica, tarefa imprescindível a qual-

quer mestrando. Mas, felizmente, à medida que

as leituras sugeridas foram sendo realizadas; os

seminários, apresentados, e os fichamentos, efe-

tivados, chegado o momento da escrita do tra-

balho, passamos a entender sua real importân-

cia, finalidade e aplicação.

Conseqüentemente, a constatação da rele-

vância dessa investigação chegou até mesmo a

assustar-nos, afinal, intuitivamente percebemos

que não mais seríamos os mesmos. Afinal,

pensar a filosofia... Desvelar questões ocultas...

Investigar a “mãe de todas as ciências”... O que

isso tudo envolveria? Um certo clima de des-

conforto e complexidade invadiu esses questio-

namentos... Deveríamos descobrir o porquê.

Partimos da premissa de que qualquer pré-

conceito acerca desse trabalho deveria ser eli-

minado, certos de que discutir a filosofia se

tornaria tarefa extremamente difícil à medida

que verificássemos o quão nossa realidade pode

ser confrontada e caracteriza-se multifacetada.

O ângulo de observação pode nos levar a inú-

meras considerações, mas também nos condu-

zir à traição, já que toda avaliação, por mais que

queiramos evitar, vem repleta de ideologias,

reflexo de particulares cargas culturais, sociais

e até emocionais. Além de que o profissional de

nossa área, algumas vezes, tem resistido ao alar-

gamento das idéias. Há um problema com rela-

ção a isso. Muitas vezes nos acomodamos, rela-

xamos... E, apegados ao tecnicismo, estagnamos

nosso pensamento.

Mas é a filosofia que vem nos acordar. Quer

que pensemos. Afinal, o “sono da razão produz

monstros”. Quer que alarguemos as nossas cons-

ciências e enxerguemos mais. Para ela, é nosso

dever avançar no (des)conhecido, já que é o

conhecimento absolutizado que nos impede de

pensar. O fato de o possuirmos unilateralmen-

te/dogmaticamente pode, ao invés de elucidar,

impedir o avanço.

É preciso abrir uma fissura no conhecimento.

Sabemos que o nosso contexto histórico pode

explicar essa lacuna. O regime militar, o golpe

de 1964, vieram proibir o ensino da filosofia, pois

faz-se necessário, para a sobrevivência e manu-

tenção de um regime imposto, haver seres pas-

sivos e acomodados na ignorância do não saber

pensar.

A supressão da filosofia vem impedir o pen-

samento, anestesiar a consciência. A filosofia e

o pensar mostram-se, de um jeito ou de outro,

ligados à liberdade. Se pensamos, somos livres.

E é preciso resgatar a filosofia para o resgate da

liberdade – não a dogmática da filosofia, mas o

pensamento. Pensar é a chave para todas as por-

tas. Tem poder quem sabe seu limite e possui

ampla/plena consciência da ação do outro. Tem

poder aquele que pensa.

Portanto, a filosofia vem contrariar o pro-

fissional que não se dedica ao humano, que não

trabalha a ética, que se corrompe. De tão atual,

reflete até mesmo sobre os mais inquietantes

aspectos da genética contemporânea. Duvida,

indaga, responde.

Conscientes do objetivo primeiro do curso

de mestrado – ser um imenso laboratório de

idéias –, não se quer, aqui, esgotar o assunto,

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mas abordar algumas questões mais gritantes

no que diz respeito ao papel do profissional do

Direito no mundo de hoje, em face da filosofia,

especificamente alguns fragmentos da obra de

Bergson sobre a intuição.

Quisemos com o texto fazer um pequeno

estudo sobre a intuição – puro, sem o uso de

conceitos, mas penetrando na sua essência, na

sua existência concreta. Pudemos constatar, em

aula do curso de mestrado supracitado, que para

o termo intuição há cerca de 72 sinônimos, e

que ela faz parte do cotidiano de todas as pes-

soas, embora o cientista, algumas vezes precon-

ceituoso, freqüentemente se afaste desse tema.

Bergson, nosso referencial teórico, não defi-

niu intuição, mas explicou-a, provando-a.

O assunto revela-se fascinante, mas ao mes-

mo tempo extremamente complexo e urgindo

a cada dia por uma atitude reflexiva. A reflexão,

tão-somente, nos equiparará ao ermitão. E

melhor do que isso, poderemos constatar, em

nossa conclusão, a necessidade de homens e

mulheres que façam do mundo a representação

da sua vontade, instrumentalizada pela intuição.

Em síntese, temos a pretensão de lançar os

olhos para a intuição guiados por alguns traços

reflexivos de Bergson. Desse modo, lançamo-nos

na busca constante do saber, na convicção de

que a filosofia e seus pensadores são motivo de

uma investigação infindada. Como salientamos,

no entanto, tal busca não será esgotada, pois é

necessário dar sempre novos passos, fazendo da

pesquisa uma descoberta de cada dia.

Por fim, assinalamos que, dada a comple-

xidade do tema, baseamo-nos em uma biblio-

grafia de apoio que será citada no decorrer do

texto e ao final do trabalho.

2 O FILÓSOFO HENRI BERGSON

A história da filosofia do século XX é, se-gundo vários autores, difícil de caracterizar eresumir em suas grandes linhas, pelo fato deestar o pensamento dos seus maiores represen-tantes ainda em fase de elaboração. Entretanto,os historiadores não deixam de concordar queo pensamento da primeira metade do século XXrepresenta uma viva reação à filosofia do séculoXIX, idealista e positivista, bem como à filosofiamoderna em geral. Nesse contexto é que pode-mos situar Henry Bergson, fundador do intui-cionismo, corrente caracteristicamente fran-cesa, que tem em Bergson, conforme UmbertoPadovani e Luís Castagnola,

“o expoente máximo, sendo ele uma das mais

atraentes figuras da filosofia contemporânea

pela originalidade das idéias, pelo calor de espi-

ritualidade e esplendor de forma cintilante”.1

É exatamente um fragmento de sua imensatrajetória no campo dos homens que fizeramda vida uma arte do pensar que temos a pre-tensão de percorrer. Descobrimos com Bergsono pensamento que se desvela como intuição.

2.1 Traços Biográficos

Battista Mondim assinala que:

“Henri Bergson nasceu em Paris, aos 18 de

outubro de 1859. Laureou-se com a tese Ensaio

sobre os dados imediatos da consciência, uma

1 Umberto Padovani e Luís Castagnola, História da filosofia, p. 458.

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pesquisa orientada para a intuição fundamen-

tal do seu pensamento, para o qual o tempo do

qual se ocupa a filosofia positivista não tem

duração e, por isso, não tem nada a ver com o

tempo real, aquele que nos é atestado pela nossa

consciência e que tem como característica es-

sencial justamente a duração. Em 1886 Bergson

publicou Matéria e memória; nesta obra ele

aplicava a sua noção de tempo às faculdades

humanas, especialmente à memória, para pro-

var a sua espiritualidade.

Em 1900 obteve a cátedra de filosofia no Colé-

gio de França, onde as suas aulas tiveram um

sucesso sem precedentes. Em 1907 terminou a

sua obra principal, Evolução criadora, na qual,

aplicando o princípio da duração, explica a vi-

da como uma corrente de consciência (élan

vital, ‘impulso vital’) que se insinua na matéria,

submetendo-a a si, mas sendo também limitada

e condicionada por ela.

Em 1927 recebeu o prêmio Nobel de literatura.

Em 1932 publicou sua última obra importante,

As duas fontes da moral e da religião, na qual

distingue entre moral conformista e moral inte-

gral e entre religião organizada e religião mís-

tica. Morreu aos 4 de janeiro de 1941.”2

2.2 O Intuicionismo

A filosofia de Bergson toma o nome de in-

tuicionismo, por partir da premissa de que o

verdadeiro conhecimento consiste na apreensão

imediata, na intuição, como é claro pela expe-

riência interior e pela análise de nós mesmos,não nos conceitos abstratos do intelecto racio-

cinante. Para Bergson, o conhecimento inte-

lectualista, abstrato, da ciência e da matemática,

é justificado praticamente, economicamente,

como meio para dominar a realidade, a nature-

za, ou seja, para finalidades práticas, econômi-

cas ou sociais.

Segundo ele, há dois caminhos para co-

nhecer o objeto, duas formas de conhecimento,

profundamente diversos e cujo valor é desigual.

Podemos conhecer o objeto mediante o con-

ceito (primeira forma de conhecimento) – em

que há o caminho dos conceitos, dos juízos, dos

silogismos, da análise e da síntese, dedução e

indução; esse é o método utilizado até o mo-

mento pelos cientistas e filósofos. E o segundo

caminho, que é o da intuição (segunda forma

do conhecimento): o da intuição imediata, que

nos proporciona o conhecimento intrínseco,

concreto, absoluto. Nas palavras de Mondin, o

método segundo Bergson:

“... não pode ser positivista. Ele é bom para a

ciência, a qual, para estudar as coisas, as es-

miuça, esquematiza e reduz a meros aspectos

quantitativos. Mas não serve para as tarefas da

filosofia, porque esta quer colher a realidade

como ela é efetivamente, em todo o seu dina-

mismo, em toda a sua vitalidade. E isto é im-

possível quando a realidade é secionada, frag-

mentada, esquematizada.

É necessário outro método, um método que

possa aproximar-se da realidade sem submetê-la

a nenhuma pressão, a nenhuma distorção, a

nenhuma abstração. O método que, segundo

Bergson, tem estas qualidades é a intuição.”3

Ampliando a exposição do comentador de

Bergson, podemos dizer também que o filósofo

aponta para a fragmentação e deformação da

realidade apreendida por meio dos conceitos,

2 Battista Mondim, Curso de filosofia, p. 131.3 Idem, p. 132.

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escapando-lhe a realidade profunda, concreta,

verdadeira. Ao contrário, o conhecimento por

intuição, como vimos várias vezes durante o cur-

so de Filosofia do Direito, chega até a interiori-

dade profunda das coisas, poderíamos dizer à sua

essência, ou, ainda, conhecer por intuição significa

transportarmo-nos ao interior da realidade, no que

ela tem de único e inefável. Noutras palavras, a

intuição, conforme Leonel França,

“é um modo de conhecimento superintelectual,

que nos manifesta a realidade por dentro, de

modo absoluto e simples”.4

Sem o risco de perder a cientificidade do

presente trabalho, ousamos expor uma história

contada por Leonardo Boff que ilustra o bri-

lhante método de Bergson:

“Era uma vez um boneco de sal. Após peregri-

nar por terras candentes e áridas, chegou a de-

parar-se com o mar que jamais vira e por isso

não podia compreender. Perguntou então o

boneco de sal: ‘Quem és tu?’ Ao que respondeu

o mar: ‘Eu sou o mar!’ Tornou o boneco de sal:

‘O que é o mar?’ E o mar respondeu: ‘Sou eu!’

‘Não entendo’ – disse o boneco de sal. ‘Como

poderia compreender-te? Gostaria muito!’ O

mar respondeu: ‘Toca-me!’ Então, o boneco

de sal, timidamente, tocou o mar com as pontas

dos dedos do pé. Percebeu que começara a

compreender. Mas logo deu-se conta: ‘Vê só,

desapareceram as pontas de meus pés?! Que me

fizeste, ó mar?’ O mar responde: ‘Tu, deste algu-

ma coisa para que pudesses me compreender...’

E o boneco de sal começou a entrar lentamente

no mar, solene e devagar, como quem pratica

o ato mais importante de sua vida. Na medida

em que entrava, ia-se diluindo. E nesta mesma

medida tinha a impressão de conhecer mais e

mais o que é o mar. O boneco ia repetindo de si

para consigo mesmo a pergunta: ‘Que é o mar’?

Até que uma onda tragou totalmente o boneco

de sal. E ele pôde ainda dizer, no último ins-

tante: ‘Sou eu’!”5

O boneco de sal começou a compreender o

mar na medida em que dava alguma coisa de si,

despojava-se do seu eu. Da mesma forma, pode-

mos dizer que a intuição é um ato que exige

violência, esforço, pelo qual o filósofo, deixando

de lado todos os meios intelectuais, tenta pene-

trar dentro da essência das coisas e chegar ao

verdadeiro conhecimento.

Podemos, a partir de alguns fragmentos do

texto A evolução criadora, reforçar a natureza e a

necessidade da intuição como método da filosofia:

“Tracemos uma linha divisória entre a nature-

za inerte e a viva. Veremos que a natureza inerte

se enquadra naturalmente dentro dos esquemas

da razão, e que a natureza viva só pode ser co-

locada dentro deles artificialmente, de modo

que, com a natureza viva, devemos adotar um

comportamento diferente e examiná-la por

um ponto de vista diverso daquele sob o qual a

examinam as ciências positivas (...) A ciência

não se pode gabar do valor uniforme atribuído

às suas afirmações no domínio da experiência.

Mas justamente porque foram colocadas no

mesmo plano, têm todas o tom de certa relati-

vidade. Isto não acontece se se começa a fazer

aquela distinção que, em nosso parecer, é ine-

vitável. A razão se sente à vontade no domínio

4 Leonel França, Noções de história da filosofia, p. 229.5 Leonardo Boff, Vida segundo o espírito, p. 103.

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da matéria inorgânica (...) Mas é só acidental-

mente – por acaso ou convenção, à escolha –

que a ciência se aplica ao vivente de modo aná-

logo ao da matéria bruta. Aqui o uso dos esque-

mas da razão não é mais natural.

Não quero dizer que o uso seja ilegítimo, no

sentido científico da palavra. Se a ciência quer

estender a nossa atividade às coisas (e se só po-

demos agir usando a matéria inerte como ins-

trumento), deve continuar a tratar a natureza

viva como natureza inerte.

Mas, é necessário deixar claro que, agindo assim,

quanto mais ela penetrar nas profundezas da

vida, tanto mais simbólico e relativo às contin-

gências da ação se tornará o conhecimento que

ela nos oferecer. A filosofia seguirá, portanto, a

ciência neste novo terreno para sobrepor à

verdade científica outro gênero de conhecimento

que poderá chamar-se metafísico.

Esse gênero de conhecimento é obtido por

intuição.”6

Como o boneco de sal, com a intuição mer-

gulha-se dentro das águas do rio da vida e da

realidade, compreendendo-se, assim, a realidade

fluente mediante a experiência imediata. No

entanto, nenhuma palavra pode exprimir essa

realidade apanhada pela intuição, pois a palavra

é o termo, o sinal do conceito, que nada mais é

do que uma expressão simbólica, mecânica, das

coisas. Somente a intuição é o tipo do conheci-

mento concreto e absoluto, isto é, para Bergson,

metafísico. Em poucas palavras conseguimos

abstrair que, para Bergson, podemos pela intuição

conhecer, imediata e perfeitamente, a realidade

do nosso eu. Através do mergulho, ou parafra-

seando o boneco de sal: “...o mar sou eu!”.

Como explicitamos no início, a nossa preten-são foi trilhar um fragmento do pensamento deBergson, e com certeza, ao penetrarmos nestefragmento, fomos envolvidos pelo desejo de nosaprofundarmos cada vez mais. No entanto,deparamos com a dificuldade do tempo e anecessidade de muito mais estudo, para não sermoscontraditórios, beirando a medíocre superficialidadedos conceitos. É certo que ainda poderíamosdiscorrerem inúmeras páginas sobre a intuição àluz de Bergson, no entanto, fizemos a opção de,após esboçar algumas idéias, abordar a contribuiçãode Bergson para a ciência na qual temos um poucomais de clareza e trânsito: o Direito.

2.3 A Intuição Jurídica

Há um considerável número de filósofosque, como Bergson, defendem a intuição comouma forma de conhecimento original, profun-da, concreta, em contraposição ao raciocínio,seja dedutivo, indutivo ou analógico, que ca-minha na direção do abstrato. É o caso de Hus-serl, Nicolai Hartmann e Max Scheler.

O professor Silvio de Macedo cita comoexemplos, em sua obra, a fim de traçar essa dis-tinção, o conhecimento de uma cidade por meiode mapas ou de fotografias (conceitual, discur-sivo, raciocínio) e o conhecimento direto (in-tuição) de quem vive na cidade, e que dela temexperiência direta. O mapa é sempre a certezade que existe o lugar... Entretanto, que prédios,monumentos, há no caminho de casa? É possí-vel identificá-los no mapa?

Também assim poderíamos dizer do Direi-to, da realidade jurídica. Alguns operadores co-nhecem os textos, como o diz Silvio de Macedo,“sendo capazes de exegeses até exaustivas”.7

6 Battista Mondim, op. cit., p. 133.7 Silvio de Macedo, Noções preliminares do direito, p. 70.

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Isso tudo se caracteriza importante. Mas outros,

como os habitantes da cidade, conhecem dire-

tamente, por contato com os fatos, com os con-

flitos sociais e com o sujeito. Isso se revela fun-

damental, essencial.

Os verdadeiros juristas, parafraseando Scho-

penhauer, “os gênios” do Direito, tiveram suas

intuições jurídicas. E como a intuição é um fator

de descoberta ou de criação (científica ou ar-

tística), atuando na experiência sociojurídica,

eles captam, indicam e aplicam a solução ao pro-

blema social/humano com mais adequação e

facilidade.

Muitas lides, problemas, conflitos, têm suas

soluções jurídicas baseadas na superficialidade,

na análise das ficções e são soluções mantidas à

margem da realidade humana. Mas o professor

Silvio de Macedo assinala que:

“A intuição jurídica, rara, é que é capaz de pe-

netrar mais a fundo e tirar uma solução efetiva

de um problema não apenas pensado mas

vivido na inter-relação social.

O Direito não é só norma, mas fato e valor. Este

último só é captável por intuição. Esta se dis-

tingue em intuição sensível (captação de uma

cor, de um som) e intuição intelectual

(compreensão).

A verdade jurídica – objeto da intuição jurídica

– só é compreendida por intuição intelectual.

Mas, para ser explicada, precisa do conceito.

Eis uma atitude correta bergsoniana, que ado-

tamos também em relação ao Direito.”8

O professor Silvio cita Joaquín Dualde (Una

revolución en la lógica del derecho), que já afir-

mava: “A Lógica não cobre tudo” e que “Em

cada problema jurídico concreto, nos conflitos,

a intuição tem seu lugar”.

Bergson busca a verdade, o conhecimento

que “se instale na realidade”, que vá além da “re-

presentação”. Nas vias da percepção, “no alar-

gamento da percepção”, quer fugir do universo

fechado do conceito.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na angústia do não-saber é que nos lança-

mos na busca constante e permanente do co-

nhecimento, certos de que este nunca será

pleno e absoluto. Mesmo que de forma limitada,

continuamos a procura, nos conflitos, do saber

que ajuda a superar parte da nossa ignorância.

Foi com este espírito que, como o boneco de

sal, mergulhamos no grande mar, visando

conhecer parte do que somos, ratificando a

filosofia que tem a sua gênese na angústia que

nos impele a sair do mundo como vontade cega

e representação para, com a força da intuição,

penetrar a essência das coisas.

Já tivemos a oportunidade de, em nossa in-

trodução, traçar nossa pretensão e o escopo des-

se trabalho: pensar, alargar as nossas consciên-

cias. Enxergar mais. Para a filosofia, avançar no

(des)conhecido, totalmente desprovidos de pre-

conceitos. É o que fizemos utilizando-nos de

um referencial teórico riquíssimo: Bergson.

Desse modo, pudemos extrair algumas con-

clusões que, sem dúvida, nos farão diferentes

em relação ao nosso status quo. Para os mate-

rialistas, a consciência é coisa, logo, tem limites.

Para Bergson (e para nós), é possível ampliá-la.

8 Silvio de Macedo, op. cit., p. 71.

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Bergson chega a declarar que a intuição é o

espírito, e até mesmo a própria vida – a mudança

pura. Para ele, a tarefa do pensamento é fácil eexpande-se ou não. Já a intuição revela-se exer-

cício penoso, mas supremo. Conhecer, mesmosem as palavras... Um outro método de aqui-

sição de conhecimento: a intuição!

Para Bergson, a intuição é consciência, mas

diversa do corpo. Diversa do fundamento físico.Mas ele estuda o corpo para chegar à mente.

Talvez devêssemos compreender nosso própriocorpo para entender a teoria de Bergson.

Bergson passa, então, a falar das formas dememória – a motora e a pura, sendo a primeira

registrada no corpo, como, por exemplo, arepetição de movimentos no espaço. O filósofo

demonstra a relação corpo e alma, mas através

do estudo da memória, que urge a análise do

corpo. O autor abarca os dois sistemas: matéria

e razão.

A matéria é coisa, física, mundo, conjunto

de imagens. O que ocorre quando eu uso meus

sentidos? Olhamos uma flor: o mundo se colore.

Percebemos que existe apenas um interior: o

do meu corpo. O resto é exterior. Mas este meu

corpo também é matéria, logo, conjunto de

imagens. Se perguntarmos à consciência a que

ela assiste quando o corpo relaciona-se com o

mundo, sequer percebemos – o que é automá-

tico, não percebemos. Se o corpo não sabe, aí,

sim, prestamos atenção. O corpo pode ser defi-

nido como o centro de ação e reação, e os objetosque o cercam refletem a ação possível.

Toda e qualquer percepção está impregnadade lembranças... Perceber é agir. Perceber é

lembrar! Esta virtude da memória é maravilhosa,mas gera um custo: a ilusão.

Como medir a distância entre presença erepresentação? Para representar um objeto, é

preciso obscurecer os lados. As imagens devem

abandonar algo. O obstáculo é preciso porque

o mundo material se liga a tudo. Para Bergson,

o mundo é o que é. Perceber é ter percebido

antes. Não há imagens sem objeto.

Toda percepção é memória. Tenho que ter

percebido antes. Verifico o objeto a partir de

minha memória, e aí reside o problema: a nossa

história coloca algo no objeto – pré-conceito!

Do ponto de vista da temporalidade, o corpo

é a última imagem entre passado e futuro. O

corpo é possibilidade de corte do devir, do

futuro. O corpo é o centro.

O fenômeno do reconhecimento envolve

imagens e ação: gera atitudes. Isso vai variar se-

gundo a experiência de cada um. Reconhecer

um objeto é sobretudo saber servir-se dele.

Exercemos o reconhecimento antes de pensá-lo.

O sujeito de bom senso pensa antes de agir.

Por isso reiteramos nosso propósito de am-

pliação dos horizontes mentais, chamar atenção

às possibilidades... A atitude é de ação frente à

busca do sentido. O exercício da percepção tem

como função precípua manter-nos ativos, nos

“inconformar” com os conceitos, nos angustiar.

Fazer com que a angústia nos faça produzir,

nos faça progredir.

Para nossa formação “coisificante”, a forma

prevalece ante o conteúdo e talvez o caminho

do pensar em um sistema de intuição seja com-

plicado, mas uma das esperanças. Para o

profissional do Direito, principalmente os pro-

fessores, deve-se buscar um afastamento da

repetição de conceitos historicamente conso-

lidados. Bergson se insurgiu contra isso, contra

conceitos congelados, plásticos.

Quanto à interpretação jurídica, o operador

do Direito comumente porta-se como repetidor,

ou “operador” realmente. Mas apenas conseguirá

compreender e solucionar questões jurídicas de

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forma profunda, específica, valorativa, ao valer-seda intuição jurídica. Desta forma, repele a “coisi-ficação” do ser humano. Do contrário, pode-ríamos substituir juízes, promotores e advogadospor programas de computador que analisassemo caso concreto em face da lei e gerassem oresultado.

O problema de algumas escolas jurídicas éa acomodação. O professor de Direito precisaser o instrumento para o alargamento das cons-

ciências, para a transmissão do conhecimento,

da essência, da qualidade.

Somos mais que lógica, não podemos ex-

plicar o mundo apenas por conceitos.

Intuição é movimento concreto, um pro-

cesso que se confunde com a consciência. Eu e

a intuição somos a mesma coisa! Geramos, assim,

experiências inéditas... Intuição é um ato de

espírito para surgir no mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensino sobre a relaçãodo corpo com o espírito. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

BOFF, Leonardo. Vida segundo o espírito. 4. ed. Petró-polis: Vozes, 1987.

FRANÇA, Leonel. Noções de história da filosofia. Petró-polis: Vozes, 1949.

MACEDO, Silvio de. Noções preliminares do direito. Riode Janeiro: Forense, 1988.

MONDIM, Battista. Curso de filosofia. 2 ed. São Paulo:Paulinas, 1983, v. III.

NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. A intuição e o direito: umnovo caminho. Belo horizonte: Inédita, 1997.

PADOVANI, Umberto; CASTAGNOLA, Luís. Históriada filosofia. 16. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1994.

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A r t i g o

R E S U M O

PENAS ALTERNATIVAS:UMA DAS SOLUÇÕES PARA A GRAVECRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO

BRASILEIRO

Vander Ferreira de AndradeProfessor de Direito Penal e de Introdução ao Estudo do Direito do IMES.

Especialista em Direito Penal.Professor de Direito Administrativo da FIG.

Mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC/SP.Oficial de Polícia Militar.

O presente estudo busca fazer uma análise sucintada grave crise que se projeta no sistemapenitenciário brasileiro, apresentando, como umadas hipóteses cabíveis para solução do problema, aaplicação da Lei n. 9.714/98, que instituiu novaspenas alternativas à prisão.

A B S T R A C T

1 O MODELO DE PENAS ALTERNATIVAS

NO ORDENAMENTO JURÍDICO

PÁTRIO

A grave crise atravessada pelo sistema peni-

tenciário brasileiro alcançou recentemente con-

tornos de ampla notoriedade, em especial pelo

fato de ter havido, especialmente em São Paulo,

dezenas de rebeliões coordenadas por coman-

dos e grupos formados de presidiários, arqui-

tetadas e organizadas dentro mesmo do cárcere.

De fato, a problemática que decorre da imple-

mentação das penas privativas de liberdade em

nosso país denota com clarificadora transparên-

cia o caráter falimentar deste tipo de sanção, em

especial no que tange aos aspectos pedagógico,

intimidativo e ressocializador da pena, restando

incólume, única e exclusivamente, o caráter

retributivo da reprimenda, nos moldes do vetusto

e obsoleto modelo sancionatório medieval.

Neste diapasão, torna-se necessário nos de-

bruçarmos sobre as diversas formas de aplicação

de pena, mesmo substitutivos penais para a pena

privativa de liberdade, especialmente quanto aos

delitos de menor ou média gravidade, quando

o encarceramento não se apresente como a

The present article has the purpose to demonstrateone analysis about the great crise that the brazilianprison system, inviting as solution to the problem,the aplication of the Law n. 9.714/98, that institutesone alternative to prison.

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única medida a ser imposta, dado que, na visão

de João Benedicto de Azevedo Marques,

“o movimento em favor das penas alternativas

representa a maior inovação do direito penal,

desde Cesare Beccaria e por isso, merece ser

aplaudido e estudado”.

Da análise perfunctória de nosso ordena-

mento jurídico-penal resulta a constatação de

que o tratamento diferenciado para presos res-

ponsáveis por crimes de média gravidade parece

ter encontrado espaço em nossa legislação por

iniciativa da Lei n. 7.209/84, à qual coube inse-

rir, no bojo da reforma do Código Penal, o siste-

ma de penas alternativas, denominadas penas res-

tritivas de direitos e elencadas no artigo 43 como

prestação de serviços à comunidade, interdições

temporárias de direitos e limitação de fim de

semana.

Já em 1998, com o advento da Lei n. 9.714,

surge o aprimoramento, por demais benfazejo,

do dito sistema de penas alternativas, aumen-

tando o espectro e a abrangência da prestação

de serviços que passou a ser possível de ser in-

fligida ao condenado com vistas à prestação de

serviços à comunidade ou a entidades públicas,

bem como aumentando o número de hipóteses

penais, acrescentando a pena de prestação pe-

cuniária, a perda de bens e valores, a proibição

de freqüentar determinados lugares, bem como

prestações de outra natureza.

Houve por bem o Executivo, por ocasião

da elaboração do referido diploma legal, vetar as

penas alternativas de advertência, bem como a

de recolhimento domiciliar, haja vista o enten-

dimento de que tais penas resultariam imper-

feitas, mesmo por força da inocuidade do con-

teúdo sancionador.

2 O AUMENTO DOS ÍNDICES

DE ENCARCERAMENTO PENAL

E A RESISTÊNCIA NA APLICAÇÃO

DAS PENAS ALTERNATIVAS

Dados estatísticos comprovam a opção do Po-

der Judiciário pela imposição das penas privativas

de liberdade, o que não soaria estranho se verifi-

cássemos na população carcerária apenas crimi-

nosos de grande periculosidade ou responsáveis

por crimes graves ou hediondos. No entanto, não

é o que constatamos. Tem, sim, havido um re-

crudescimento considerável do número de presos,

sem que corresponda, na exata proporção, o au-

mento de vagas nos presídios. Esta situação insus-

tentável tem sido uma das causas aptas a gerar

todo o desconforto das prisões, o estado latente

de revolta que culmina nos motins e nas rebeliões,

e, conseqüentemente, no próprio aumento dos

índices de criminalidade, dado que este eixo de

fomento delituoso acaba interferindo e incidindo

como resultante vetorial na própria sociedade,

vítima permanente deste processo criminógeno,

refém incondicional da conduta delituosa dos

infratores, egressos de um sistema falido, cruel e

desumanizador.

De outro lado, verifica-se igualmente, por

meio das estatísticas, uma perceptível resistênciado Poder Judiciário em aplicar penas alternati-

vas, mesmo se cotejarmos com o aumento das

vagas criadas para o seu exato cumprimento;

em entrevista sobre o assunto, afirmou o emi-

nente jurista e ministro do Superior Tribunal

de Justiça – STJ, Vicente Cernicchiaro:

“existe uma desconfiança de que essas punições

poderiam enfraquecer o sistema jurídico.

Outra dúvida é sobre o controle da aplicação

da pena. O Juiz não tem como determinar e

fiscalizar ao mesmo tempo”.

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Fala-se, assim, que o temor em aplicar umsubstitutivo penal resulta da justificada preocu-pação de que este não terá a fiscalização neces-sária, tornando-se inócuo sob o prisma da re-tribuição penal e da tutela social, desmoralizandoa natureza preventiva e punitiva da pena,tornando-se, paradoxalmente, causa ensejadora

de agravada impunidade. Opta-se, assim, peloentendimento do in dubio pro carcere, olvidan-do-se o caráter de direito público subjetivo quetais medidas assumem a partir do momento emque o condenado passa a preencher por inteiroos requisitos objetivos e subjetivos para suaconcessão.

Crescimento da População Prisional Brasileira

Evolução de Vagas para Penas Alternativas em São Paulo

Presos por 100.000

Habitantes110

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0Fev/98 Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Jan/99 Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago

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882

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1037 1061 1063 1054

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1765 1760 17441791 1775 1781

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Legalmente, as penas alternativas não po-

dem ser concedidas livremente, ao contrário,

encontram elas pressupostos e critérios indis-

pensáveis para sua imposição, sendo, de outro

lado, munus público do magistrado a eleição

da pena alternativa mais adequada ao conde-

nado, pelo que assim se manifestou julgado do

Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo:

“O juiz não pode delegar seu poder jurisdicional

ao condenado deixando que ele escolha a pena

que lhe seja mais conveniente entre a restritiva de

liberdade e a de direitos, pois a obediência aos

preceitos deve prevalecer sobre o interesse do réu

e a sentença é que tem que impor a sanção a ser

cumprida” (JUTACrim 93/47).

Também não são todos os delitos que per-

mitem a concessão do benefício. Excluem-se os

crimes perpetrados com violência ou grave

ameaça à pessoa, bem como aqueles cuja pena

for superior a 4 anos. Já no que diz respeito a

sua admissibilidade nos crimes hediondos, per-

sistem duas posições: a primeira delas dispõe que,

em se tratando de crimes hediondos ou asseme-

lhados, é inadmissível a aplicação do sistema vi-

cariante previsto na Lei n. 9.714/98, sendo proibi-

da a substituição das penas detentivas pelas res-

tritivas de direitos (Bitencourt, 1999); a segunda

assevera que há possibilidade de sua concessão

(Delmanto, 2000); no STJ prevalece com larga

maioria a posição proibitiva (REsp n. 60.733, 5a

Turma, DJU 12.6.1995); igualmente o TJ tem

entendido não ser admissível o substitutivo penal

(ACrim 269.115, 3ª Câm. Crim., 25.5.1999, RT,

768:561); o STF também tem se manifestado porsua inadmissibilidade, contudo já houve votosfavoráveis pela aplicação de penas alternativas noscrimes hediondos ou equiparados, desde que nãocometidos mediante violência ou ameaça à pessoa,como é o caso do tráfico de entorpecentes (nessesentido, a 1ª Turma no HC n. 80.010, rel. o Mi-nistro Octávio Gallotti, j. 25.4.2000. Na doutrina,pela admissibilidade, Damásio de Jesus e LuísFlávio Gomes, entre outros (Gomes, 2000). Fácilassim observar, tomando-se como parâmetro ocenso penitenciário realizado pela Secretaria deAdministração Pernitenciária de São Paulo, aconcentração de delitos de natureza patrimonialdentre aqueles que receberam o substitutivo, nãoolvidando encontrarem-se elencados ainda deli-tos outros como os que atentam contra a fé pú-blica (crimes de falsidade material e ideológica),contra a vida (homicídio culposo), contra a saúdepública (porte de entorpecente para consumopróprio), ou contra a integridade física (lesão cor-poral). De verificar-se que pode haver injustiçadecorrente da fixação de tais critérios, consoanteo magistério de Luiz Flávio Gomes:

“crimes como constrangimento ilegal e ameaça,

v. g., que pela pena cominada admitem as

soluções consensuais da lei não são suscetíveis

de substituição (...) a contradição só pode ser

desfeita com uma interpretação contextualiza-

da, que concluiria: de fato, crimes cometidos

com grave ameaça não admitem a substituição,

exceto quando já admitem a aplicação de outras

formas alternativas de sanção, porque nesse caso

o legislador já fez alhures uma valoração menos

severa dessa infração” (Gomes, 2000).

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3 PRESSUPOSTOS OBJETIVOS

E SUBJETIVOS PARA A CONCESSÃO

DAS PENAS ALTERNATIVAS

Além de ampliar o rol de penas alternativas,

a Lei n. 9.714/98 também inovou no que diz

respeito à previsão dos requisitos objetivos e subje-

tivos necessários a sua concessão; assim, e em

que pesem entendimentos em sentido contrário,

somos da vertente que compreende serem as

medidas substitutivas, desde que o condenado

satisfaça integralmente os seus requisitos e pres-

supostos legais, direito público subjetivo do ape-nado, de modo a obrigar o Poder Judiciário a con-

ceder o benefício, não ficando portanto ao arbí-

trio do magistrado a possibilidade do seu reco-

nhecimento e de sua declinação em hipóteses

concretas. Esse o magistério de Luiz Flávio Go-

mes, bem acompanhado do posicionamento de

César Roberto Bitencourt:

“Toda sentença que condena alguém por crime

doloso à pena privativa de liberdade não superior

a quatro anos deve decidir fundamentadamente

sobre ser ou não o caso de sua substituição por

outra pena alternativa, à vista da presença ou não

dos pressupostos legais que, quando concorrerem,

a tornam imperativa” (Gomes, 2000).

Temos, assim, que o primeiro presuposto

objetivo apresenta-se por meio da análise do

tempo de pena do condenado; destarte, o ma-

gistrado só poderá proceder à substituição se a

pena privativa de liberdade aplicada em decor-

rência do cometimento de crime doloso não for

superior a quatro anos; de igual modo poder-se-á

falar em substituição por pena pecuniária (multa)

quando a condenação por pena privativa de

liberdade for igual ou inferior a um ano (não

olvidando a sua inacumulabilidade, já sufragada

por entendimento do STF: “É nula a sentença

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DELITOS PRATICADOS PELOS BENEFICIADOS

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que condena a penas cumuladas de detenção e

multa quando o legislador comina penas

alternativas” (RT 601/446)); em face da

ocorrência de crimes culposos, admitir-se-á a

substituição independentemente do quantumda pena abstrata ou in concreto. No caso de

concurso de crimes, a substituição será aplicável

quando o total das penas não ultrapassar os li-

mites estabelecidos na legislação em comento.

“Um segundo requisito objetivo foi inserido

pela nova lei ao proibir a substituição da pena

quando se tratar de crime praticado com vio-

lência ou grave ameaça à pessoa, qualquer que

seja a quantidade da pena privativa de liber-

dade imposta. Não é possível portanto, em

princípio, a aplicação do disposto no art. 44

aos crimes de roubo, extorsão, rapto, etc. Em

tese, porém, alguns desses crimes podem ser

cometidos sem grave ameaça ou violência à

pessoa, como o roubo executado tendo como

meio outro recurso (narcótico, por exemplo),

o rapto com fraude, etc., admitindo-se, em tese,

o benefício. Também se deve considerar que a

expresão crime que não for cometido com

violência ou grave ameaça à pessoa não exclui

os delitos em que essas modalidades são cons-

titutivas do próprio ilícito, como os de lesão

corporal e ameaça, para os quais deve ser per-

mitida a substituição, como ocorria no dispo-

sitivo susbtituído” (Mirabete, 2000).

A respeito dos requisitos subjetivos, de veri-

ficar-se o disposto nos incisos II e III do Código

Penal (com a nova redação resultante do ad-

vento da Lei n. 9.714/98): se o réu não for rein-

cidente em crime doloso – ou ainda, se a culpa-

bilidade, a conduta social e a personalidade do

condenado, bem como os motivos e as circuns-

tâncias, indicarem que essa substituição seja su-

ficiente; na primeira hipótese (inc. II), cabível

a substituição, portanto, e a contrario sensu do

dispositivo em análise, quando condenada a

pessoa por crime culposo, ainda que reincidente

nesse sentido, posterior ou anteriormente ao

cometimento de um crime doloso, na situação

de primariedade técnica etc.

“O nosso Código Penal estabelece que a rein-

cidência se configura quando o réu comete

novo crime depois de transitar em julgado

anterior condenação” (TACRSP: RT 447/415).

Já quanto ao inciso III, observa-se cristalina-

mente a preocupação do legislador em prestigiar

o princípio da proporcionalidade, impondo-se ao

juiz a verificação, o sopesamento e a dosimetria

da pena de concorde a maior ou menor gravidade

do ilícito perpetrado, bem ainda deva a pena ser

aplicada de acordo com as características pessoais

e individuais do condenado (individualização

penal), no que aparenta haver seguido a esteira

das consagradas circunstâncias judiciais tais como

dispostas no artigo 59 do CP; temos assim que

“a eficácia da pena aplicada está diretamente

ligada ao princípio da proporcionalidade, a fim

de assegurar a individualização, pois quanto

mais o juiz se aproximar das condições que

envolvem o fato, da pessoa do acusado, possi-

bilitando aplicação da sanção mais adequada,

tanto mais terá contribuído para a eficácia da

punição” (RJDTACRIM 29/152)

4 A PRISÃO E AS PENAS ALTERNATIVASEM OUTROS PAÍSES

A constatação da necessidade de serem im-

plementadas alternativas penais para a sanção

privativa de liberdade fez com que diversos Estados

adotassem a sistemática indicada pelas Regras de

Tóquio, ou como foram denominadas, as Regras

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A r t i g o

Mínimas das Nações Unidas para a Elaboraçãode Medidas Não-Privativas de Liberdade, cuja na-

tureza jurídica apresenta-se como a de um con-

junto de princípios, bem assim uma Carta de De-

clarações, desprovida, portanto, da impositividade

inerente a um Tratado Internacional. Contudo o

seu ideário, por acompanhar as diretrizes forma-

tadas pelos Direitos Humanos, tem sido objeto de

juridiscização no plano do Direito público interno

de vários povos e nações.

Sensibilizados ou impelidos a criar alterna-

tivas para a medida cerceadora da liberdade,

foram sugeridas e aplicadas diversas hipóteses,

cabendo a Damásio de Jesus o mérito de enun-

ciá-las em um rol que chegou a somar cerca de

53 modelos de penas alternativas, algumas delas

já incorporadas ao nosso ordenamento jurídico-

penal, outras de certa forma já aplicadas por

nossa legislação “como efeitos da condenação,

condições do sursis e do livramento condicional

ou ‘alternativas penais’”, (Jesus, 1999), outras

são absolutamente inviáveis porquanto absolu-

tamente desconformes a nossa diretriz consti-

tucional, refratária a penalidades de caráter cruel,

infamante, humilhantes ou desumanas (seria o

caso do exílio rural, da proibição de residência,

do açoite em público, da publicação em jornal

da fotografia do criminoso com a enumeração

de seus delitos, de levar o roubador, em via pú-

blica, cartaz com a confissão do delito, etc.).

Os Estados Unidos são freqüentemente ci-tados como modelo típico de Estado optante damedida privativa de liberdade, mas os dados doInstituto Latino Americano para prevenção dodelito e tratamento do Deliqüente – Ilanud de1994 revelam que, do total de pessoas con-denadas (perfazendo 5,1 milhões), 30% (1,5 mi-lhão) receberam pena de reclusão e 70% (3,6milhões) foram objeto da aplicação de medidasalternativas ou condicionais. Mesmo assim, con-

tinuam sendo um dos países que mais fazem

uso da prisão, posto que sua taxa de encarcera-mento é uma das mais elavadas do mundo, daordem de 600 pessoas presas por grupo de 100.000habitantes, índice este que perde para poucospaíses, como a Rússia (o de 800 presos por100.000 habitantes).

De acordo com dados coletados pela soció-loga, pesquisadora e ex-Superintendente dosEstabelecimentos Prisionais do Estado do Riode Janeiro, Julita Lemgruber, a elevada taxa deencarceramento dos Estados Unidos e da In-glaterra não tem contribuído para a redução dosíndices de criminalidade naqueles países.

“... com pena de morte e tudo, os Estados Uni-

dos possuem o mais alto índice de crimina-

lidade do mundo. Isso prova que a prisão não

resolve para controlar a criminalidade. O Mi-

nistério da Justiça inglês divulgou dados defi-

nitivos sobre a questão: em 1996, encarcerou

25% a mais de criminosos e a queda da crimi-

nalidade foi de apenas 1%” (Lemgruber, 1999).

Sobre os Estados Unidos, vale ainda lembrarque, atualmente, gasta-se mais com prisões doque com escolas, universidades ou bem-estarsocial, o que tem levado alguns estudiosos aconcluir pela existência de uma espécie deindústria das prisões, codenominada por NilsChristie como sendo “a indústria do controledo crime”, aquela que lucra com a instituição emanutenção da estrutura do cárcere como mo-dalidade punitiva.

“Esse complexo industrial prisional nascido do

medo exacerbado do crime entre a população,

disputa as verbas bilionárias, constrói e opera

prisões, além de fabricar os mais diferentes pro-

dutos consumidos no sistema penitenciário

americano. A título de exemplo, só uma fábrica

de sabonetes vendeu em 1994 o equivalente a

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100.000 dólares para as prisões de Nova York.

O catálogo anual da feira anual de produtos

para prisões tem mais de 3.000 páginas de ofertas.

É por tudo isso que se diz hoje, naquele país, que

o crime compensa” (Lemgruber, 2001).

Os ganhos dessa poderosa indústria chegam

até mesmo às bolsas de valores, especialmente

pelo vulto das transações envolvidas em tais

negócios:

“... estão ganhando as companhias que cons-

troem e operam prisões. A Corrections Corpo-

ration of America tem a maior fatia desse mer-

cado e está entre as cinco empresas com melhor

desempenho na Bolsa de Valores de Nova York

nos últimos três anos. O valor total de suas ações

passou de 50 milhões de dólares em 1986 para

3,5 bilhões de dólares em outubro de 1997, o

que significa um incremento de 6.900% em 11

anos. A Wackenhut, segunda maior do gênero,

viu suas ações aumentarem 32%, apenas no ano

de 1997. Não é de admirar que os executivos

dessas companhias andam trombeteando que o

crime compensa e que têm nas mãos um negócio

hoteleiro fantástico, com garantias de 100% de

ocupação permanente” (Lemgruber, 2001).

No Brasil, a taxa de encarceramento se

apresenta atualmente como sendo de 118 presos

por 100 mil habitantes. Dados do Departamento

Penitenciário registram uma população carce-

rária da ordem de quase 200.000 pessoas, o que

parece pouco se comparado ao número de en-

carcerados nos Estados Unidos (cerca de 2

milhões de presos), onde e segundo Eric John

Lotke, Professor da Universidade de Chicago,

de cada 5 habitantes (incluindo-se aí os pró-

prios norte-americanos e os estrangeiros), um

pelo menos possui algum tipo de antecedente

criminal. Nossos números também são tímidos

no que diz respeito à aplicação de penas

alternativas: giramos em torno de 2 a 5% das

condenações, o que nos desabona se compara-

dos com outros países: na Inglaterra, as penas

alternativas são aplicadas em 80% dos casos;

na Alemanha, que tem optado pela pena pecu-

niária (de qualquer modo alternativa à privação

de liberdade), as condenações alternativas

absorvem cerca de 80% dos feitos.

5 CONCLUSÃO

Em tempos de crise do sistema penitenciá-

rio, nada mais útil do que discutirmos novas

propostas frente à situação caótica que acomete

o aparelhamento prisional do Estado. Urge,

assim, da parte do Poder Executivo, a implemen-

tação de políticas públicas concretas que viabi-

lizem o cumprimento das penas alternativas, tais

como a criação de vagas em entidades públicas

ou a elaboração de projetos comunitários, de

modo a não permitir a sensação de impunidadeque pode acompanhar a sua declinação pura e

simples, sem fiscalização ou medidas efetivas que

as tornem, concomitantemente, retributivas,

pedagógicas, intimidativas e ressocializadoras.

De outro lado, impõe-se ao Poder Judiciário

a ingente tarefa de vencer suas próprias e con-

servadoras resistências, especialmente diante de

uma moderna forma de substituição de penas

restritivas de liberdade, cujo resultado descor-

tina-se em um cenário, senão plenamente pro-

missor, pelo menos um tanto alvissareiro: é que

estudos realizados a respeito da reincidência dos

criminosos submetidos a penas alternativas, co-

tejados com os que cumpriram pena reclusiva

ou detentiva, demonstram que, enquanto os pri-

meiros voltam a cometer crime em 15% dos

casos, os condenados que cumprem suas penas

em regime de privação de liberdade tem esse

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número percentual triplicado (45% de reinci-

dência). Não bastasse este sólido argumento,

poderíamos lembrar o caráter econômico e mó-

dico da medida em estudo: enquanto um preso

custa ao Estado (leia-se à sociedade) cerca de

R$ 600,00 por mês, as despesas com as penas

alternativas giram em torno de R$ 250,00 men-

sais, sem olvidar, para aquela, os maciços inves-

timentos em construções de unidades prisionais

(algumas delas absoluta e indiscutivelmente im-

prescindíveis, sobretudo diante da necessidade

de se retirar o absurdo contingente de presos

dos Distritos Policiais), o que em um país de

necessidades sociais emergentes e onde 30% da

massa carcerária está privada de liberdade por

haver cometido crimes sem violência ou grave

ameaça à pessoa, representa, na melhor das hi-

póteses, uma distorção no direcionamento de

nossas reais prioridades, por demais notórias e

cediças nos campos da saúde, segurança e educa-ção, apenas para citarmos estas áreas tão defi-citárias, o que nos remete para uma asserção sim-ples, porém significativa, de Julita Lemgruber: “se-gurança não tem preço, cadeia tem custo”.

Ancorados assim em uma mudança de pro-ceder, vendo e compreendendo a pena não co-mo um objetivo em si mesmo, como a resul-tante inevitável do delito, mas como método,pelo qual se “deve ter o cuidado de punir pararecompor a paz social violada, ressarcir a vítimae reeducar o criminoso” (Batochio, 2001), torna-seimperativo reconhecer, nas medidas alternativas,um vetor evolutivo da ciência penal, aptas quese colocam à disposição do Poder Judiciário a re-volucionar positiva e salutarmente o caótico mo-delo prisional que tem vitimado não somente apessoa dos reclusos e detentos, mas, igualmente,a sociedade brasileira como um todo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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OLIVEIRA, Edmundo. Política criminal e alternativas àprisão. Rio de Janeiro: Forense, 1996.

RICO, José M. Medidas substitutivas de la pena de prisón.Anuario del Instituto de Ciencias Penales y Criminologicas,Caracas, 1968.

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ZVEKIC, Ugljesa. Alternativas à prisão em perspectivacomparativa. Chicago: Nelson Hasll Publishers/Unicri, 1996.

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D ireito A r t i g o

R E S U M O

PODER JUDICIÁRIO, MINISTÉRIO PÚBLICOE A QUESTÃO DA EFETIVIDADE DOS

DIREITOS FUNDAMENTAIS

Antonio Celso Baeta MinhotoMestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Professor do IMES de Teoria Geral do Direito Público.Advogado atuante em São Paulo.

Os direitos fundamentais conseguiram, ao longodo tempo, um reconhecimento e uma sistemati-zação legal de fato admiráveis. Todavia, a práticaou a tentativa de aplicação desses mesmos prin-cípios na vida das pessoas mostra que mudançasprofundas de caráter social, político e psicológicodevem ocorrer a fim de que a sua aplicação eficazpossa ser constatada de fato.

A B S T R A C T

1 INTRODUÇÃO

O campo de estudo delineado pelo tema

contempla vários aspectos da tutela dos cha-

mados direitos fundamentais, vez que abarca

tanto a parte ativa, de intervenções efetiva na

esfera do Direito pelo Ministério Público, bem

como a receptividade e interpretação do que seja

de fato amparar os direitos fundamentais.

Cumpre notar, ademais, que o presente tra-

balho teve e tem o escopo assumido de trazer

alguma contribuição prática para a temática em

questão, tratando de não se ater a questões

menores que, conquanto possam ser impor-

tantes, podem levar a um afastamento de pontos

relevantes e conduzir o tema para uma certa

aridez. Ademais, veremos com maior detimento

as implicações relevantes que o exercício dos

direitos fundamentais enfrenta no mundo atual,

e nesse campo poderemos, aí sim, analisar

aspectos mais detalhados da questão em pauta.

2 DIREITOS FUNDAMENTAIS:HISTÓRICO E CONSOLIDAÇÃO

Mostra-se como procedimento inviável, ou

pelo menos temerário, proceder a uma análise

dos direitos fundamentais, seja ela em que

sentido ou aspecto for, sem que se insiram no-

ções básicas no que toca à contextualização do

tema na história humana moderna.

The fundamental rights achieves, all long the history,a remarkable recognizing and legal sistematizationon the globe. However, the praxis or the aplicationattempt of this very principles on the peoples lives,shows that deepply changes in social, political andpsicological areas are demands, in order to trulynotice that this principeles could be aplicated in aeffective form.

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O termo moderno é apropriado porque se

poderia aqui até introduzir noções do mundoantigo ligadas à temática dos direitos fundamen-tais mas, naquela época, não havia sistematiza-ção de tais previsões e muito menos de sua tu-tela, seja junto ao Poder Judiciário como hojeconhecemos, seja de qualquer outra forma deamparo prestado pelo Estado.

Muito embora se possa, academicamente,apontar-se o Código de Hamurabi como umponto de partida para a sistematização de diversosdireitos, o fato é que este rol de normas não pos-suía a sutileza necessária para prever e tutelar oque podemos entender, mesmo que em umaacepção extensa, como direitos fundamentais.

O mais certo seria dizer que os gregos, cer-tamente sem perceber ou pelo menos sem tertal consciência, lançaram as bases do futuro Esta-do liberal e, filosoficamente, acabaram por tam-bém lançar importantes conceitos hoje encon-tráveis nos direitos fundamentais, tais comoigualdade e liberdade em uma abordagem cívica.

Mais à frente, uma vez dominados por Ro-ma, os gregos findaram por emprestar ou mes-mo entregar aos romanos o sistema de conhe-cimento que já haviam criado, incluindo aí todasua sistemática de tutela e proteção dos direitosdo ser humano, notadamente frente ao Estado,a cujo estudo se dedicaram, ainda que se utili-zando de outros nomes e conceitos.

Como todos sabemos, na Roma Antiga, se-não por toda a duração do império romano, aomenos por um bom período de sua existência,praticamente não se falava em direitos funda-mentais – mesmo com a recepção de todo o arca-bouço grego de conhecimento nesse campo –,existindo meramente uma divisão que, didati-

camente, poderíamos dispor entre dois grupos:

os que têm direitos (patrícios) e os que têm mui-

to poucos direitos (plebeus), sejam esses direitosfundamentais ou não.

Nesse sentido, frise-se que somente os pa-trícios formavam o populus romanus, capazesde editar textos que ou tinham a forma e con-teúdo do que hoje entendemos por lei, ou ti-nham ao menos a força de lei. Aos plebeusrestava apenas a plebiscita, considerada, porém,como forma anômala de fonte do Direito.1

A queda do império romano deixou umlargo período de vácuo no campo do Direito edas garantias cívicas fundamentais, especial-mente pela natureza dessa queda, provocadapor povos bárbaros, politicamente dispersos ecom um sentido de organização estatal rigoro-samente fugidio ou mesmo inexistente. Eramos primórdios da Idade Média.

Nesse passo tem-se, com poucas possibili-dades de divergência, como marco inicial detexto legal que efetivamente se prestou a serreceptáculo e albergue das garantias individuaise direitos fundamentais, a Magna Carta inglesade 1215, promulgada sob o império de João, reida Inglaterra, duque da Normandia, senhor daIrlanda ou, como restou conhecido, simples-mente João Sem-Terra. Trata-se, assim, do pri-meiro documento oficial que, muito emboraerigido em plena Idade Média, contém os ele-mentos formadores de todos os outros textoslegais mais modernos que lhe foram seguidores,dentro ou fora da Inglaterra.

Em apreço a um dos direitos fundamentaismais conhecidos, o artigo 40 da Carta Magnadiz que “to no one will we sell, to no one willrefuse or delay right or justice”, lançando aí aidéia fundamental de que todos devem ter

acesso à Justiça e ao Poder Judiciário, um dos

1 MARKY, Thomas. Curso elementar de direito romano. São Paulo: Saraiva, p. 18.

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aspectos mais relevantes da chamada igualdade

de condições. Mas, outro fato histórico mar-

cante, a Revolução Francesa, constitui-se ver-

dadeira pedra-de-toque dos direitos funda-

mentais, movimento em que Robespierre, advo-

gado francês e um dos mais destacados líderes

do movimento revolucionário, declarava:

“Lutemos pela liberdade e se por isso não lu-

tarmos, de nada valerá nossa luta, sendo

melhor que voltemos à escravidão”.

Nesse mesmo sentido, importante lembrar

a lição mais antiga de John Locke, que em uma

de suas mais conhecidas obras dizia que “a li-

berdade natural do homem consiste em estar

livre de qualquer poder superior na Terra, e não

sob a vontade ou autoridade legislativa do ho-

mem, tendo somente a lei da natureza como

regra”,2 pensamento que, muito embora expri-

ma uma certa ingenuidade própria de sua época,

esta sob o império do Direito natural em suas

diversas formas e modos de expressão, é impor-

tante marco no ideário da doutrina sobre o tema

das garantias e dos direitos fundamentais.

Como a liberdade é considerada o direito

fundamental do homem por excelência, as de-

clarações citadas merecem atenção especial. To-

davia, não se pode igualmente negar reconhe-

cimento à evidência de que, ao falarmos em

direitos fundamentais, estamos nos referindo a

estes de maneira sistematizada, uma vez que o

homem, claro, sempre almejou de um modo

ou outro a liberdade ou a igualdade porém, so-

mente em tempos mais modernos, mais especi-

ficamente ao romper do movimento popular

que desaguou na Revolução Francesa, é que os

direitos fundamentais tomaram a importância

de valor intrínseco de uma nação, imortalizados,

no caso francês, em um dos lemas mais conhe-

cidos do mundo moderno: liberdade, igualdade

e fraternidade.

3 NOÇÃO MODERNA DE DIREITOS

FUNDAMENTAIS

Antes de iniciarmos análise do Ministério

Público como instituição promotora e defen-

sora dos direitos fundamentais, ou dos moder-

namente chamados direitos fundamentais, con-

vém que tracemos ao menos uma noção breve

de como se dá a visão humana contemporânea

dos direitos que lhe parecem essenciais. É que

necessário se faz entender os direitos funda-

mentais em si, para que depois possamos analisar

com um mínimo de informações sua aplicação

e, mais especificamente, a problemática de sua

aplicação – portanto, de sua efetividade.

Como vimos, com o advento da Magna

Carta e outros textos de cunho constitucional

que a secundaram, pouca dúvida restou quanto

à importância vital da Constituição de um dado

país ou, em certos casos, de uma nação ou povo

que, mesmo sem uma base geográfica definida –

como os judeus até 1948 e os palestinos até hoje –

possuía um documento fundamental, um corpode diretrizes a serem seguidas ou pelos menosobservadas. Nesse ponto, uma indagação bifur-cada toma espaço: o que é um direito funda-mental e como se dá seu exercício e proteção nosEstados de direito?

A primeira parte da indagação parece sermais simples. Direito fundamental é aquele con-siderado por um determinado povo, por uma na-ção, por um grupamento humano qualquer,como essencial ao desenvolvimento e manuten-

2 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Os pensadores. São Paulo: Abril, 1978, p. 43.

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A r t i g o

ção da vida civilizada tal como a conhecemos. Se

quisermos ser mais léxicos na definição do tema,

poderíamos dizer que é “o direito inerente à

pessoa humana, válido em qualquer regime jurí-

dico”;3 mas se quisermos introduzir definição ou,

em melhor português, conceituação mais técnica

em termos jurídicos, diríamos que “direitos fun-

damentais são os direitos do homem, jurídico-

institucionalmente garantidos e limitados

espácio-temporalmente”.4 Assim, uma base

comum é adotada como essencial para qualquer

ser humano em qualquer situação, como o

próprio direito à vida, talvez o mais evidente e

incontroverso dos direitos fundamentais.

Claro que se poderia invocar como exceção

a essa regra tida por incontestável o enfermo

em estado terminal que busca deliberadamente

pôr um fim em sua própria vida e, ao menos

em alguns países, é amparado. Ocorre que esta-

mos aqui falando de direitos fundamentais no

âmbito da sociedade civil e em um caráter ge-

neralizante. Algo como se disséssemos que o

ser humano em condições normais, ou regu-

larmente, exige o respeito e a promoção destes

determinados direitos ou garantias.

Desse modo, o que constatamos, em um

primeiro aspecto, é que os direitos fundamentais

insculpidos nos textos constitucionais muitas ve-

zes refogem da estrutura legislativa ordinária, em

que se cria um comando e a respectiva sanção por

seu descumprimento, estando tal sanção disposta

na mesma norma ou em norma diversa. Daí por

que se afirmar que os direitos fundamentais vêm

dispostos como um conjunto de pretensões de um

dado povo ou grupamento humano.

Se pensarmos no caso brasileiro, vemos em

nossa Constituição Federal, logo no preâmbulo

do texto constitucional, a veiculação desse cha-

mado rol de pretensões, de desejos de uma nação

para si própria:

“Nós, representantes do povo brasileiro (...)

destinados a assegurar o exercício dos direitos

sociais e individuais, a liberdade, a segurança,

o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e

a justiça como valores supremos de uma socie-

dade fraterna, pluralista e sem preconceitos,

fundada na harmonia social e comprometida,

na ordem interna e internacional, com a solução

pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a

proteção de Deus (...).”

Convém, agora, analisar essas disposições

e outras que lhe fazem eco no mesmo texto

constitucional. Com efeito, por mais otimistas

que possamos ser, não parece mesmo ser pru-

dente que acreditemos que o preâmbulo do

texto constitucional teve ou tem o condão de

transformar a sociedade brasileira, fazendo su-

mir os preconceitos e, por outro lado, trazendo

a harmonia e a paz. Menos ainda faria sentido

se, ao final desse texto, encontrássemos os

dizeres, “sob pena de...”, uma vez que, como já

dito, trata-se de inserção tópica, pretensional,

até mesmo conceitual, mas acima de tudo algo

que funciona como um princípio de desen-

volvimento político-social, indicador de quais

são as linhas mestras que determinam o modo

de um dado povo se autogovernar em face de

dados princípios.

O que na verdade se observa é que não é

exigido, como se exige em um comando legis-

lativo ordinário, que se cumpra essa ou aquela

tarefa ou que se tome essa ou aquela atitude

3 Grande dicionário larousse cultural.4 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1993, p. 517.

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sob as penas ou os rigores da lei, mas, e aí temos

um elemento importante, que se tolerem as

diferenças já existentes e que ainda possam vir

a existir, a fim de que o bem maior e coletivo

possa ser alcançado.

No caso brasileiro, a sociedade escolheu

dados princípios – dentre estes direitos funda-

mentais – que entende devam ser observados,

mas não impõe esta ou aquela sanção (arts. 3º

e 4º da Constituição Federal), muito embora

tenha o mesmo texto constitucional promovido

um deliberado casuísmo no caso do preconceito

racial, nominando-o expressamente de crime,

e ainda inafiançável e imprescritível (art. 5º,

XLII), situação que, todavia, não é regra e visou

muito mais dar uma resposta normativa às

minorias raciais do que oferecer uma solução

ao problema em si mesmo.

A tolerância, porém, é mesmo a idéia-tema

quando se trata de analisar, comentar e principal-

mente aplicar os direitos fundamentais na prática

diária de uma sociedade que tenha pelo menos a

intenção de ser democrática. Na verdade, podemosmesmo dizer que tal comentário vale não só parao caso brasileiro mas para a sociedade humanamoderna de um modo geral, que, excepcionandoas teocracias fundamentalistas islâmicas maisradicais (como, por exemplo, a guerrilha Talebane os radicais do Hamas Palestino), interessa-se pelatolerância como forma de coexistência pacíficaentre os povos.

Adotando um exemplo, não se exige, na

verdade, que um brasileiro seja livre de precon-

ceito. Qualquer um do povo pode, portanto, vir

a público e dizer solenemente “sou preconcei-

tuoso”, sem sofrer qualquer sanção, muito em-

bora vá enfrentar problemas se completar sua

frase e dizer que não suporta negros ou asiá-

ticos, ainda que – por uma questão do tipo penal

envolvido (Leis ns. 7.716/89; 8.081/90 e 9.459/97)

que precisa estar presente de maneira explícita

– tal manifestação tenha que forçosa e obriga-

toriamente envolver discriminação.5

Mas, a idéia central dos direitos fundamen-

tais é mesmo a tolerância, entendendo-se essa

como uma atividade ou, melhor, uma postura

que visa compreender e não simplesmente

suportar . Tolerar, destarte, é aceitar que nenhu-

ma razão é boa o bastante para justificar uma

lesão a direitos tidos por fundamentais, além

de se postar frontalmente contra qualquer for-

ma de violência, física ou psicológica. Adotar a

tolerância, pois,

“não é suportar passiva e resignadamente o

erro, mas aplicar uma atitude ativa de confian-

ça na razão ou na razoabilidade do outro, uma

concepção do homem como capaz de seguir

não só seus próprios interesses, mas também

de considerar seu próprio interesse à luz do in-

teresse dos outros, bem como a recusa cons-

ciente da violência como meio para obter o

triunfo das próprias idéias”.6

Por outro lado, evidentemente que a tole-

rância não explica tudo e nem pode ser vista

como um bálsamo ou, pior, uma panacéia que

solve e resolve todos os entraves e obstáculos

5 Para se caracterizar a discriminação efetivamente, portanto, e tomando-se o exemplo destacado no texto, se teria queadotar uma máxima do tipo “não gosto de asiáticos e não lhes dou emprego em minha empresa por isso”. É preciso,pois, haver preconceito e discriminação na mesma conduta, sem o que, nenhuma sanção formal receberá o autor dasuposta conduta preconceituosa. De todo modo, ser preconceituoso não é crime em si, não é tipo penal, mas é social emoralmente indesejável pela sociedade brasileira e isso vem disposto na Constituição Federal.

6 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1987, p. 207.

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ligados à aplicação dos direitos fundamentais,

como se, havendo tolerância em uma determi-

nada nação, haveria forçosamente respeito e

apologia formal dos direitos fundamentais. A

questão é bem mais complexa, integrando outros

elementos e, principalmente, outros interesses.

Prosseguindo com alguns ilustrativos exem-

plos, podemos destacar a acanhada ajuda in-

ternacional ao Timor Leste, cuja reconstrução

– não só física, mas também e principalmente

política, já que o país se encontra literalmente

em pleno desgoverno, com várias facções de ca-

ráter guerrilheiro e ideologia niilista, agindo como

salteadores, notadamente no interior – vem a

passos lentos e com injeções de recursos econô-

micos igualmente tímida, pelo fato de que este

país, em oposição ao Kwait e sua Guerra do Golfo

de 1990 (reeditada em 2003 com razões pouco

dessemelhantes de 12 ou 13 anos atrás), não exibe

qualquer atrativo mercadológico financeiro à co-

munidade mundial, especialmente EUA e União

Européia.

A mantença ou promoção dos direitos fun-

damentais pode enfrentar barreiras até mesmo

naturais, como a disponibilidades de água ou

terras agricultáveis a povos limítrofes que ocu-

pam um espaço geográfico comum ou próximo.

Isso é particularmente preocupante quando

pensamos na Ásia, uma vez que lá está mais de

1/3 da população mundial (só Índia e China,

somadas, ultrapassam 2 bilhões de habitantes).7

Portanto, em condições de disputa por neces-

sidades básicas de sobrevivência, a satisfação de

direitos fundamentais e toda a sua nobreza

certamente ocupam espaço mínimo e secundário,

mesmo em sociedades bastante desenvolvidas.

Todavia, e sem embargo desses comentá-

rios, é de se ver que a natureza desse trabalho

não permite uma análise sociológica ampla o

bastante para abarcar todos os aspectos ati-

nentes ao tema dos direitos fundamentais, daí

por que a escolha deliberada da tolerância como

base de discussão possível e importante no que

toca à efetividade desses mesmos direitos. A

tolerância serve aqui quase que como um palco

em que os atores componentes do universo

social em sua conotação mais abrangente se

inter-relacionarão.

Não se presta este estudo, ante o que já se

afirmou, todavia, à tentação de romantismos ou

ingenuidades, forçando-nos a ver, inclusive, quea aplicação da tolerância certamente “podeabrigar a afirmação e o reconhecimento dooutro, desde que ele permaneça em condiçãosubalterna e não colida com o núcleo centraldas identidades sociopolíticas, como prega aperversidade relativista e diferencialista” mas,

por outro lado, essa mesma tolerância pode

“significar abertura para novas conexões, estilos

societários e processos de transformação cultu-

ral”8 e é nesse último aspecto que ela aqui toma

espaço analítico.

A presente digressão sobre os caracteres in-

trínsecos dos direitos fundamentais e principal-

mente a idéia ora em exposição, a da tolerân-

cia, são fundamentais para que se entenda oque vem a seguir ou no passo seguinte desse

trabalho, ou seja, a efetividade dos direitos fun-

7 A esse respeito, ver KAPLAN, Robert D. À beira da anarquia: destruindo os sonhos da era pós-guerra fria. São Paulo:Futura, 2000, que à p. 71 faz o seguinte comentário: “Á medida que a irrigação se intensifica na bacia do rio Indo paraservir a duas populações em crescimento, o conflito hindu-muçulmano sobre os decrescentes lençóis freáticos poderáser inevitável”.

8 Ambos os trechos mencionados são de CARVALHO, Edgard de Assis. Mal-estar civilizatório e ética da compreensão,em Violência e mal-estar na sociedade, Revista Perspectiva, São Paulo: Fundação Seade, n. 3, v. 13, jul./set. 1999.

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damentais, e isso por que, sem a análise pre-

sente, não se entenderá de modo algum as ra-

zões que levam os direitos fundamentais a se-

rem ou não respeitados e/ou aplicados. Sem esse

estudo preambular, haveria algo com tons de

equação sem solução, algo como: os direitos

fundamentais são reconhecidos por todos – ao

menos todos de uma dada nação – e, parado-

xalmente, sua efetividade é bastante frágil e de

difícil aplicação.

A utilidade justifica-se também para que se

analise, com um mínimo de isenção, o verda-

deiro papel dos mecanismos de defesa e promo-

ção dos direitos fundamentais, dentre eles o

Ministério Público e o Poder Judiciário, evitan-

do-se juízos de valor apressado e críticas des-

providas de maior profundidade.

No próximo tópico, veremos alguns deli-

neamentos do Ministério Público enquanto ins-

tituição, seu surgimento e desenvolvimento ao

longo da história e seu papel nos Estados demo-

cráticos modernos.

4 SURGIMENTO, CONSOLIDAÇÃO

E ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO

PÚBLICO

Se o trato do surgimento do Direito siste-

matizado, tal como conhecemos hoje, ou mesmo

do Estado ou, ainda, do Poder Judiciário, mos-

tra-se como razoavelmente tranqüilo e cauda-

loso em termos de trabalhos que versem sobre

tais temas, situação diversa é a referente ao sur-

gimento e consolidação do Ministério Público

como instituição de Direito, como hoje o conhe-

cemos. Na verdade, não é o escopo desse traba-

lho esmiuçar a natureza política, sociológica,

filosófica e até psicológica9 do Ministério Pú-

blico de forma exaustiva, mas tão-somente deli-

near alguns pontos importantes e característicos

para que possamos enfrentar o capítulo seguinte

e ali vislumbrarmos as dificuldades de existência

e aplicação dos direitos fundamentais.

Assim, há doutrinadores que defendem

uma vetusta aparição do Ministério Público

como instituição, indicando que já no Egito

antigo, há mais de 4.000 anos, “teria existido a

figura do ‘magiai’ – procurador-do-rei – que

agia na esfera da repressão penal, tendo ainda

por funções castigar os rebeldes, reprimir os

violentos, proteger os cidadãos pacíficos, forma-

lizar acusações e participar das instruções pro-

batórias”.10 Outros, ainda, afirmam que só se

pode falar em Ministério Público a partir da

Grécia e Roma antigas, esta última na figura

dos præfectus urbis e dos procuratores cæsaris,

estando aí os precursores no que toca às funções

que hoje temos como modernas do Ministério

Público.

Mas, a corrente doutrinária majoritária se

inclina por uma postura mais técnica, mais li-

gada à positivação efetiva, fixando, assim, como

embrião da idéia moderna do que seja o Minis-

9 A respeito do caráter afetivo e emocional da nação e do Ministério Público, este último como item componente dessanação – anterior ao surgimento do próprio Estado – ver as obras de MOREIRA, Diogo de Figueiredo. Curso de direitoadministrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1974; SIMAS, Henrique de Carvalho. Manual de direito administrativo. Rio deJaneiro: Freitas Bastos, 1974, especialmente p. 16 e MACHADO, Nilton José. O interesse público como determinante daintervenção do Ministério Público na ação, em Teses do V Congresso do Ministério Público. Recife: Mousinho, 1977;sendo que o primeiro declara, à p. 2, que “uma nação é uma alma, um princípio espiritual” e o último, especificamenteem relação ao Ministério Público, à p. 620, diz não ter dúvida que “o Ministério Público antecede à instituição jurídicada Nação, ou seja, o Estado”.

10 GOULART, Marcelo Pedroso. Ministério Público e democracia. São Paulo: De Direito, 1998, p. 70.

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tério Público, o século XIII, mais especificamen-

te em 1269, com a consolidação dos Estatutosde São Luís e, como sacramentação definitiva doinstituto, a própria Revolução Francesa, cujaassembléia Nacional Constituinte procedeu a umaampla reforma política, definindo o MinistérioPúblico como agente do Poder Executivo.11

Trazendo a parte histórica para o caso brasi-leiro e, ao mesmo tempo, dando-lhe um fechoinicial, vemos que no Brasil imperaram por longoperíodo as Ordenações Afonsinas (1456), Ma-nuelinas (1521) e Filipinas (1603), as últimasservindo como norte jurídico-legal, inclusive,após a Independência de 1822, especialmenteante o silêncio da Constituição Federal de 1824sobre o Ministério Público.12 A partir da Pro-clamação da República em 1889, o MinistérioPúblico alternou participações democráticas enão democráticas nas sucessivas cartas consti-tucionais, já desde a primeira do período repu-blicano em 1891.

Pouco antes da Constituição de 1891, em1890, o Decreto n. 1.030, de 14 de novembrode 1890, é tido como o primeiro documentolegislativo moderno – especialmente da épocarepublicana – que expressamente consagrou“(...) o Ministério Público como instituição au-tônoma, atribuindo-lhe as funções de fisca-lização da execução das leis, interesses gerais,assistência aos mendigos, alienados e asilados,assistência dos sentenciados e” – ponto impor-

tante nos tempos atuais – “a promoção da ação

pública contra todas as violações de direito”.13

Mas, paradoxalmente, a Constituição Fe-

deral de 1891 silenciou sobre a instituição,14

limitando-se a prever a figura do procurador-

geral da República, que, nada obstante, era es-

colhido dentre os membros do Supremo Tri-

bunal Federal. Já a Constituição de 1934, na

qual a instituição em análise ganhou destaque

especial, com previsões normativas distintas em

face dos poderes do Estado (Legislativo, Judi-

ciário e Executivo), conferiu estabilidade na car-

reira e regulamentou o ingresso na carreira por

concurso público e, de um modo geral, contem-

plou amplo espírito de independência e auto-

nomia aos seus membros.15

Como todos sabemos, a Constituição Fede-

ral de 1934 teve vida curta e a sua substituta, a

Carta de 1937, erigida com o propósito expresso

de subsidiar os desideratos do Estado Novo de

Vargas, não podia outra coisa fazer a não ser

apresentar um forte retrocesso no que toca ao

Ministério Público, prevendo, inclusive, que “o

procurador-geral funcionará junto ao Supremo

Tribunal Federal, e será de livre nomeação e

demissão do Presidente da República”, o que

mostra bem o intuito limitador do texto, o que,

convenha-se, não podia mesmo de outra forma

ser se rememorarmos os objetivos de Vargas.

A carta de 1946, criada no clima eufórico

da queda de Vargas, retomou as disposições

auspiciosas do texto maior de 1934 e, inclusive,

11 Cf. GOULART, op. cit, p. 73-75.12 Neste mesmo sentido, mas com o tema sendo tratado com mais extensão, CAMPOS, Benedicto de. O Ministério

Público e o novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 1976, p. 12-14.13 MARQUES, Tratado de direito processual penal, v. II, p. 257-259, apud GOULART, op. cit, p. 78.14 O silêncio citado é particularmente paradoxal, uma vez que o próprio Ministro da Justiça de então, futuro Presidente

da República, Campos Salles, disse expressamente, ainda em 1890, na exposição de motivos do Decreto n. 848, que “oMinistério Público é instituição necessária em toda organização democrática, e imposta pelas boas normas de Justiça”,apud AYRES, Venâncio. O MP e a extensão de sua fiscalização no processo civil, op. cit., p. 610.

15 Cf. GOULART, op. cit, p. 79-80.

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D ireito A r t i g o

elevou alguns princípios institucionais à cate-

goria de princípios constitucionais, como:

a) ingresso na carreira mediante concurso

público;

b) estabilidade após 2 anos de exercício no

cargo;

c) inamovibilidade; e

d) criação do sistema de promoção e entrância.16

A Constituição Federal de 1967, promul-

gada em pleno Regime Militar e, claro, criada

com o nítido escopo de legitimar as ações dos

militares então no poder, seguiu como em uma

cartilha os passos da Carta Magna de 1937, co-

locando, assim, o Ministério Público ao lado do

Poder Judiciário (capítulo VIII, seção IX), rom-

pendo com a idéia de independência até então

vigente. Ainda que se possa lamentar, não se

pode negar a coerência dos militares que, por

volta de 1969, já governando o país na base de

atos institucionais (em 1969 já estávamos no

de n. 16), só podiam mesmo restringir a atuação

do Ministério Público e isso por motivos bas-

tante semelhantes aos de Vargas em 1937, coma diferença de que Vargas era sozinho, portanto,

um tirano, ou caudilho como preferem alguns,e os militares criaram um sistema de opressão

e ausência de democracia, ou seja, uma ditadura.

Chegamos, enfim, à Carta Constitucional de

1988 que, muito embora sofra críticas em diversosaspectos, no que tange ao Ministério Público não

exibe maiores lacunas ou pontos a seremmodificados. A instituição em tela foi ali ampla-

mente legislada, contemplando-se sua indepen-dência, sua autonomia, suas funções e sua essen-

cialidade à manutenção do estado de direito e à

promoção da Justiça (art. 127 e §§ c/c 129). Foi

extinta a possibilidade de demissão sumária do

procurador-geral pelo Presidente da República

(art. 128, § 2º) e criada a proposta orçamentária

do Ministério Público a partir de sua exclusiva

manifestação (art. 127, § 3º).

Finalizando este ponto, tem-se ainda a Lei

Orgânica do Ministério Público (Lei n. 8.625,de 12 de fevereiro de 1993), que organiza a car-

reira do promotor e estabelece algumas outrasatribuições de forma elencada (art. 3º).17

16 Todo esse avanço, porém, não evitou a preservação de situações que comprometiam a independência do MinistérioPúblico, especialmente a possibilidade de demissão ad nutum do procurador-geral pelo Presidente da República, cf.GOULART, op. cit, p. 82.

17 Para nos colocarmos de forma mais didática, antes de enfrentarmos as questões ligadas à atuação do MinistérioPúblico à frente de sua tarefa na defesa dos direitos fundamentais, abordemos de forma arrolada as atribuições dochamado Parquet, notadamente à luz da Constituição Federal. Tal atuação se dará no seguinte âmbito, cf. MAZZILLI,Hugo Nigro. Funções institucionais do Ministério Público. São Paulo: APMP – Série Cadernos Informativos, 1995,p. 9-15: a) Ação Penal Pública: é, talvez, a atividade mais conhecida do Ministério Público ou, pelo menos, a que maisse coloca em evidência; b) Defensor do povo: aqui assenta um dos pontos de maior destaque da atuação da instituiçãoem foco, quando se pensa em direitos humanos e direitos fundamentais, como, p. ex., fiscalização de vagas em escolaspúblicas e condições humanas de presidiários, dentre outras; c) Promoção do inquérito civil e ação civil pública;d) Ação de inconstitucionalidade e representação interventiva: a primeira (AI), só pode ser proposta pelo procurador-geral da República ou, nos Estados-membros, pelo procurador-geral de Justiça, diretamente nos tribunais (arts. 129, IVe 103, VI da Constituição Federal). A representação interventiva pode se dar por solicitação do poder coacto ou apósrequisição de tribunal (arts. 35, IV; 36, I/IV e 84, todos da Constituição Federal); e) Defesa das populações indígenas;f) Controle externo da atividade policial; g) Representação da Fazenda Pública: tal possibilidade vem prevista no artigo29, § 5º, das ADCT, e muito embora tenha sido a representação da Fazenda Pública a causa mesmo do surgimento doMinistério Público como instituição (Opinião de Antonio Araldo Ferraz del Pozzo, apud MAZZILLI, op. cit., p. 13), ofato é que essa mesma instituição é um órgão de defesa do cidadão e, portanto, apresenta-se incompatível o exercíciopelo Ministério Público da advocacia da Fazenda.

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Como acima se viu, na parte formal, legal ejurídica, a atuação do Ministério Público nãoexibe maiores dificuldades mas, da aplicaçãodessas previsões – e de algumas outras, como ve-remos – não se pode dizer o mesmo. Isso é quetrataremos a seguir, abrindo espaço também paraas questões que circundam o Poder Judiciário.

5 A EFETIVIDADE DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS

Antes de analisarmos o Poder Judiciário eo Ministério Público no exercício de suas fun-ções em defesa dos direitos fundamentais, con-vém deitar olhos sobre a situação mundial atualno que se refere, especialmente, à democraciacomo expressão da doutrina liberal e suas im-plicações no que concerne à efetividade de taisdireitos. Isso também se justifica porque nãohá como falar em direitos fundamentais semfalarmos em democracia, sendo esta o verdadeiroalicerce daqueles, ao menos na visão prepon-derante de mundo com a qual deparamos hoje.

Falar em democracia moderna significafalar em Estado liberal e liberalismo, e, também,ver-se obrigado a fazer uma ligadura forçadaentre estes elementos e o progresso civilizatório.A democracia é, ao menos no receituário liberal,irmã do progresso, ou vice-versa. Justamentepor isso, ações interventivas externas como asrealizadas no Haiti, na Somália ou na Bósnia,

todas pelos EUA, foram – ainda são e certamen-

te ainda o serão por algum tempo – escoradasna idéia de promoção da civilização através dapreservação da democracia e, nessa esteira,como meio de defesa dos direitos fundamentaisdo homem e, por fim, como componente fun-damental, espécie de sine qua non, algo queredundaria forçosamente no progresso. Comose pudéssemos confeccionar um adágio: semdemocracia não há progresso.

Contudo, e tendo-se em vista que, como diziaHeródoto, a história ensina com dureza, o fatoé que a perspectiva histórica mostra que a defesados direitos fundamentais do homem, comopináculos da democracia moderna, sempreapresentou resultados discutíveis, ao menos pelaforma como se deu. Em outras palavras, a de-mocracia não é tão simples como parecia serou como supõe o ideário liberal.

A democracia sempre foi vista, moderna-mente, como o jogo de composição dos conflitos,residindo aí, como muitos doutrinadoresasseveram, a energia de sua própria existência eaté mesmo sua razão de ser, muito embora tragatambém o germe potencial de sua destruição.18

E o que garante o jogo democrático na so-ciedade? A certeza de cada um de seus compo-nentes manifestos ou manifestados de que suavontade, de que suas idéias, de que seus anseiose de que suas pretensões serão ouvidos e, ha-vendo razoabilidade, serão acatados, muitoembora isso possa se dar muito mais em tornode interesses do que de idéias.19

18 FARIAS, José Eduardo Campos de Oliveira. Retórica política e ideologia democrática: a legitimação do discursojurídico liberal, Tese de livre-docência apresentada no Depto. de Filosofia e Teoria Geral do Direito da USP, São Paulo,1982. Nesta obra, na p. 325, diz o autor em tela acerca do conflito social em uma sociedade democrática: “o conflito setransforma numa inesgotável fonte de energia do sistema social, provocando sua destruição, quando não controlado,ou sua transformação, quando canalizado pela efetividade de determinadas regras formais de procedimento”.

19 Cf. SCHMITT, Carl. Sobre el parlamentarismo. Madri: Tecnos, 1996, p. 5-6: “o que qualifica a democracia não é apluralidade de forças, obtendo-se na diversidade o consenso, mas sim a homogeneidade de interesses” e, prosseguindo,o autor alinhava de forma até mesmo surpreendente que “poderia haver democracia sem liberdade e representaçãosem eleição”, para logo depois arrematar dizendo “haver pouca utilidade na discussão pública”, o que pode ser umtanto quanto árido, mas, ao menos, denota uma visão bastante peculiar e lúcida do tema.

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“A democracia, pois, só será um argumento

legitimador da vida pública se a própria forma-

ção, desempenho e manifestação ideológica de

cada ator político for garantida.”20

Ocorre que essa garantia seria, segundopugnado pelo Estado liberal moderno, dada pelopróprio jogo do liberalismo, pelo próprio laissezfaire social que, ao revés do que muitos crêem,não está sepultado e nem moribundo, masapenas com roupagem nova no século XXI –vide o new labour inglês versão 2001 (com TonyBlair arrebanhando mais um mandato de formainapelável) e os regimes neoliberais do TerceiroMundo (“tigres” asiáticos e América Latina).

Surge, pois, uma questão: a democracia émesmo o sistema ideal para todos os povos? Li-ções recentes e outras nem tanto parecem lan-çar dúvidas consideráveis a tal indagação. Os

exemplos são bastante variados.21

Na verdade, os regimes de Lee em Cinga-pura e Qureshi no Paquistão, para citar apenasalguns, dão sentido a um pensamento que podeaté ser criticado, mas mostra-se realista o bas-tante para merecer atenção, traduzível em o queé bom para os homens de negócio freqüente-mente é bom para o cidadão médio. E isso causamaior espécie quando se insere outro dado: paragozar as benesses trazidas pelo progresso mate-rial, freqüente e regularmente se observa que aspessoas comuns estão dispostas a sacrificar certasliberdades cívicas e individuais, fato que demonstraser o ser humano mais obediente e menoscombativo do que ele próprio deseja admitir.22

Mas, exatamente por que, em um trabalhoque visa tratar da efetividade dos direitos funda-mentais, se introduz noções como a validadeda democracia e o servilismo inato no homem?Justamente para que a questão não permaneçana superfície do tema, dando azo para que se

20 FARIAS, op. cit., p. 326;21 O Paquistão, que em 1993 experimentou sensível progresso e tranquilidade sob o comando do primeiro-ministro

Moin Qureshi – este nomeado pelo presidente e apoiado por militares, portanto sem qualquer participação popular –,viu esse mesmo progresso quase virar pó nas mãos de Benazir Bhutto, uma mulher tida por moderna e progressista,eleita democraticamente pelo povo que, nada obstante, levou a situação ao extremo de ensejar sua própria deposiçãopelo mesmo presidente; Cingapura, país que é adotado como modelo e citado como exemplo de progresso e superaçãoda crise cambial mundial de 1999, prosperou em um regime neoliberal agressivo implantado por Lee Kuan Yew, comtotal desrespeito aos direitos trabalhistas (turnos de 14 a 16 horas de trabalho e 3 dias de férias por ano) bem comoausência total de eleições democráticas há alguns anos; a África, cujo continente foi devidamente esquadrinhado pelaEuropa nos séculos XIX e XX seguindo os interesses dos europeus, como, aliás, parece ser óbvio, nos exibe demonstraçõescabais de que a democracia não é para todos e isso não é e nem pode ser motivo de lamento. Para situarmos doisexemplos recentes, podemos citar a África do Sul, conhecida e até afamada democracia, destacada sempre comoexemplo e a ser seguido pelo continente africano que, nada obstante tal situação, vem se tornando um dos lugares maisviolentos do mundo (6 vezes mais assassinatos que a Rússia) com 10 seguranças particulares para cada policial. ARússia se cindiu no início dos anos 90 do século passado e assim o fez em nome da democracia que lhe batia às portas.Dizia-se que os ventos da liberdade ali haviam soprado. Pois bem, a Rússia, como maior república soviética, enfrentatensões sociais grandiosas na atualidade, com grupos mafiosos ocupando os espaços que antes pertenciam ao colossalEstado russo, dificuldades para equacionar suas finanças e, de um modo geral, se vê como que aturdida com aimposição, que alguns dizem ser histórica, de inserção no mundo capitalista. A Perestroika de Gorbachov e umaseqüência de governos democráticos parecem não ter conseguido debelar as dificuldades mencionadas. Todos osexemplos foram retirados de KAPLAN, Robert D. op. cit., p. 43-150.

22 CARVALHO, op. cit., p. 26, afirma, sobre o tema em análise, “ser o homem mais galinha (...), ciscando aqui e ali suaração cotidiana, do que águia, que voa para o infinito indeterminado até confundir-se com o azul do firmamento”;KAPLAN, op. cit., p. 111, vai no mesmo sentido, dizendo que “bens materiais não apenas direcionam o foco daspessoas para vida privada e o afastam da vida em sociedade, mas também encorajam a docilidade. Quanto mais bensse tem, mais acordos se fará para protegê-los”.

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adote colocações panfletárias ou “estimulantes”

que, sem embargo sejam recorrentes na litera-

tura técnica, nada respondem quanto ao cerne

da problemática dos direitos fundamentais,

infinitamente mais complexa que o inegável

esforço para se acomodar interesses e erigir tex-

tos legais ou que façam as vezes de leis, visando

garantir esses mesmos direitos.

Portanto, quando se pensa em efetividade

dos direitos fundamentais, Ministério Público

e Poder Judiciário, logo se imagina que meca-

nismos serão criados ou o que será defendido e

de que modo, mas pouco se questiona sobre o

substrato que dá suporte à própria existência

desses mesmos direitos, ou seja, a vontade do

homem no sentido de ser sujeito de direitos.

Como dificilmente pode-se imaginar uma

atuação livre e autônoma do Ministério Público

e do Poder Judiciário em regimes não demo-

cráticos, tem-se o dilema acerca da própria fun-

damentalidade dos direitos fundamentais, já que

são postos de lado por interesses outros que,

como vimos, podem ser perfeitamente defen-

sáveis, como conforto e bem-estar material.

O que se colocou é especialmente impor-

tante para o Ministério Público, e isto porque

grassa entre os membros dessa instituição a idéia

de que o Ministério Público não possui uma

natureza jurídica, mas é anterior ou mesmo su-

perior a ela, ou mesmo anterior ao Estado, como

algo nascido junto com a nação, com o povo

em si mesmo. Adotar uma idéia de Ministério

Público inerente ao homem pode ser, sem em-

bargo de outros potenciais incômodos, posturaaté mesmo perigosa, uma vez que se tem comonatural e, portanto, auto-executável, uma de-fesa dos valores fundamentais do homem civi-lizado, depositando-se excessivas expectativasna instituição que, por fim, também é meroinstrumental e não um fim em si mesmo.

Portanto, ao lado das discordâncias técnicasque fortemente se impõem a tal visão,23 temosainda todo o bojo crítico até aqui argüido, infor-mando que o próprio homem está disposto, epor vezes bastante disposto, a abrir mão do queé dito e visto como fundamental mas que, naprática, não se mostra com tal fundamentali-dade, como se viu. Parece que, por mais quequeiramos nos distanciar, o fato é que ThomasHobbes continua atual e, com sua visão crua,nos diz que “antes que o justo e o injusto pos-sam acontecer, deverá existir algum poder coer-citivo”,24 como nos alertando para nossa próprianatureza volúvel, esta uma defensora dedicadade nossos interesses pessoais e quase semprepequenos, em detrimento de outros, ao menossupostamente coletivos ou sociais.

É preciso, pois, admitir que a criação de sis-temas, de procedimentos e de leis não é su-ficiente para o exercício dos direitos fundamen-tais, sendo que estes já existem em perfeita con-sagração em nosso sistema jurídico. Não vive-mos, no Brasil, em um regime de exceção ouautoritário. Muito ao contrário, pode-se atécriticar alguns excessos democráticos, como aleniência com a invasão de prédios públicos oupropriedades rurais produtivas.

23 O artigo 1º da Lei n. 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público), diz, de forma expressa: “OMinistério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado (...)”. Jurisdição, por seu turno,significa, em estreita acepção, poder de dizer o direito, o que levanta sérias dúvidas sobre o nascimento simultâneo,como irmãos gêmeos, de Ministério Público e da nação que, como sabemos, prescinde do Estado para existir. A tese emfoco, todavia, é defendida por doutrinadores de peso como Hugo Nigro Mazzilli, Antonio Araldo del Pozzo, Diogo deFigueiredo Moreira, Henrique de Carvalho Simas e Nilton José Machado, para citar alguns.

24 HOBBES, Thomas. Leviathan. São Paulo: Abril, 1978, p. 283.

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D ireito A r t i g o

Não obstante, a ofensa aos direitos funda-

mentais é diuturna, inegável, regular e permanente.

Por questão de didática, convém eleger

alguns direitos fundamentais para que se co-

mente sobre sua aplicação, problemática e efe-

tividade no caso brasileiro, até porque os direitos

fundamentais possuem linhas comuns em que

a análise de um deles alcança a dos outros.

5.1 Direito à Prestação Jurisdicionalou Direito ao Devido ProcessoLegal

Um dos direitos fundamentais do homem

é ser julgado por um tribunal regular e legal-

mente constituído, com direito à ampla defesa

e ao contraditório. Isso, na verdade, inspirou a

Constituição Federal de 1988 e não dela se origi-

nou, sendo garantia já prevista na Declaração

de Direitos do Homem:25

Art. 10. Art. 10. Art. 10. Art. 10. Art. 10. Toda pessoa tem direito, em condições

de plena igualdade, de ser ouvida publicamente

e com equidade por um tribunal independente

e imparcial, para determinação de seus direitos

e obrigações, ou para a defesa de qualquer

acusação contra ela dirigida, em matéria penal.

Ocorre que esse direito está garantido, pos-

sui status constitucional, mas sua aplicação é

tormentosa e isso por questões variadas, dentre

as quais a mais comum a ser nominada é a falta

de estrutura do Poder Judiciário. Claro está,

porém, que tal falha, por si só, não explica a

deficiência da prestação jurisdicional. Na ver-

dade, tornou-se lugar-comum criticar o Judi-

ciário,26 seja pela pré-citada estrutura deficiente,

seja por sua lentidão, mas itens como formação

dos juízes, cultura popular (visão do Judiciário

pela população) e estrutura normativa são

deixados de lado.

Assim, a lentidão, por exemplo, por si

mesma nada responde de efetivo. A questão é o

que ela traz consigo e esse butim é, inegavel-

mente, caótico.

Há não muito tempo, em 1987, o VIII Con-

gresso Mundial de Direito Processual emitiu,

por ocasião da finalização dos debates, uma carta

de intenções e nesta fez constar, resumidamen-

te, três itens: assegurar direito pleno de ação;

mantença e promoção de medidas que possi-

bilitem a tutela efetiva dos direitos; e por fim e

textualmente, “solução razoavelmente rápida do

litígio por órgão independente e mediante

correta aplicação do direito”.27

De fato, a situação já alcança um tal grau

de atravancamento da prestação jurisdicional,

que já se inicia a colher os reais frutos malignos

da lentidão judicial e um desses frutos é certa-

mente a perda da efetividade do processo, a um

tal ponto que o Estado determina um certo co-

mando através do Magistrado mas, dada a exis-

tência de recursos processuais, aliada à menta-

lidade enciclopédica do próprio Poder Judiciário

e de seus membros e, ainda, a inegável falta de

25 Também a Magna Carta, em seu artigo 39, já trazia disposição assemelhada.26 Neste sentido, respeitado mestre constitucionalista afirma que “dos orgãos de soberania que compõem o poder do

Estado, o mais vulnerável, o mais exposto às vicissitudes e fraquezas da organização política, o mais sujeito a reparos,nem sempre justos, é, por sem dúvida, o Poder Judiciário”. BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao paísneocolonial. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 73.

27 Cf. TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. O aprimoramento do processo civil como garantia de cidadania, em As garantiasdo cidadão na Justiça. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 72-79.

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A r t i g o

estrutura e recursos destinados a esse poder, oque se vê é que o comando estatal cai no vazio,torna-se letra morta que não alcança o fimcolimado, qual seja, solucionar a lide.28

Evidentemente, a lentidão alcança tambémo Ministério Público, que é obrigado a suportar,tal qual o cidadão comum, as mesmas vicissitu-des indicadas, além das suas próprias, peculiares.

Há que se destacar, também, a questão dacultura jurídica brasileira, que foi toda erigidasobre pilares como o amplo direito a recurso(muito mais que o “simples” direito de defesaou respeito ao devido processo legal) e na própriaidéia popular de que processo rápido é processomal julgado, como já comentou Moreira Alves,Ministro do Supremo Tribunal Federal.

A parte estrutural é outro ponto de estran-gulamento nesse processo. No Brasil tem-se 1magistrado para cada 25.000 habitantes, emoposição, para efeitos comparativos, à Alemanha,que possui uma relação de 1 magistrado para cada3.000 habitantes. Há mais nesse campo, porém.Muito embora se tenha, de fato, conseguidomodernizar o Poder Judiciário, com possibilidadede envio de petições por e-mail ou fax e adquirir

andamento de ações judiciais via Internet ou

mesmo computadores instalados nos saguões dos

fóruns, o fato é que não só essa estrutura ainda

permanece aquém do necessário, mas a própria

estrutura de nosso Direito, notoriamente

formalista, colabora com esse estado de coisas.

Outro ponto que freqüentemente é deixado

de lado é a linguagem. A linguagem culta e

formal não só é desejável como se mostra ver-

dadeira necessidade de valorização do idioma,

articulado de forma clara e escorreita. Contudo,

a adoção de maneirismos e de um linguajar

rebarbativo por juízes, advogados e promotores

torna a Justiça algo distante do povo, formando

uma espécie de elite que se diferencia por uma

linguagem que os “normais” não dominam. A

terminologia técnica, frise-se, é necessária, mas

o excesso quanto ao que circunda essa termi-

nologia merece ao menos uma reflexão. Na

esteira da linguagem rebuscada mencionada, a

própria postura de autoridades, sejam elas juí-

zes, promotores ou delegados, que, ao lado de

uma linguagem diferenciada, francamente

elitista, postam-se de forma igualmente distante

e freqüentemente autoritária.29

28 Muitos são os que tratam dessa problemática da lentidão judicial no Brasil. Fritz Baur é citado na Revista Brasileira deDireito Processual (7:57), como autor da frase: “só um procedimento célere pode dar efetividade ao processo”. Outraautora diz, de forma mais completa: “Com efeito, a demasiada duração do processo compromete a sua própria efetividade,ao ensejar durante o seu decorrer o acontecimento de certos eventos que impeçam seu resultado útil, bem como asubmissão do titular do direito invocado a um prolongado estado de insatisfação, do qual resultem prejuízos irreversíveiscapazes de tornar inócua a tutela jurisdicional ao final prestada (...) a morosidade na entrega da prestação jurisdicionalacaba por suprimir o direito fundamental da proteção judiciária, posto que tutela ineficaz equivale a tutela denegada”.SILVA, Clarissa Sampaio. A efetividade do processo como um direito fundamental: o papel das tutelas cautelares eantecipatórias, em Dos direitos humanos aos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 180.

29 O Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, visando ao menos diminuir a grandequantidade de queixas dirigidas aos magistrados de primeira instância, no sentido de postarem-se de forma distante eautoritária do público, vem determinando que os concursos para provimento de vagas na magistratura paulista levemais em conta a vocação do candidato e a capacidade de interagir com o público do que aspectos técnicos somente. Umdos mais influentes juízes da magistratura paulista, com importante obra na área da ética profissional, em um de seustextos diz que “o julgador deve ser homem de equilíbrio e sensatez. Inadmite-se o juiz de irascibilidade acentuada,vulnerável às oscilações de humor, a confundir com seriedade e temperança a sua escassa reserva de paciência. Nemsempre o destempero verbal caracteriza o Magistrado destemido, assim como as feições sombrias acompanham o juizimpoluto. A lucidez de caráter não é xipófaga da amargura”. Cf. NALINI, José Renato. O juiz e suas atribuições, emDeontologia da magistratura. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 2.

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D ireito A r t i g o

Portanto, Justiça célere se obtém não ape-

nas com extinção de leis tidas por inócuas, sim-

plificação de procedimentos ou injeção de re-

cursos no Poder Judiciário, mas com a soma-

tória destes elementos a uma ampla e árdua

mudança cultural, que atinge inclusive e prin-

cipalmente os próprios membros e partícipes

do Poder Judiciário.

5.2 Direitos das Minorias

Defender os direitos das minorias é mais

conturbado e complexo do que normalmente se

acredita. Uma primeira dificuldade é a dose de

paixão com que o tema é tratado, inclusive por

profissionais especializados na temática. Assim,

grupos de defesa dos interesses dos negros ou

dos índios, para situarmos dois exemplos

clássicos, freqüentemente são tratados com uma

espécie de pseudoconcordância total com relação

aos seus pleitos, e isso muito mais por um com-

plexo de culpa ou busca de sintonia com o que

se crê seja a modernidade social, do que por con-

vencimento real quanto à razoabilidade ou perti-

nência das pretensões desses grupos.

Desse modo, índios são freqüentemente tra-

tados como se tivessem sido descobertos há

pouco, tal é a luta para se preservá-los em seu

estado natural. Ocorre que o contato entre a di-

ta civilização e os grupamentos indígenas, salvo

raríssimas exceções, há muito já se concretizou,

havendo, inclusive, o registro histórico de um

parlamentar indígena (deputado federal), o

cacique xavante Mário Juruna, bastante atuante

em sua legislatura, diga-se de passagem.

Mais não bastasse, vêem-se em diversas

regiões, como a de Carapicuíba em São Paulo e

a da Praia da Coroa, em Porto Seguro, Bahia,

exemplos de índios que nem querem mais voltar

a viver exatamente como viviam seus antepas-

sados, mas querem, e isso merece sincera e pro-

funda reflexão além de atitude da sociedade “civi-

lizada” e a intervenção do Ministério Público e

do Poder Judiciário, o direito a uma vida digna.

Os índios atuais, chamados remanescentes, não

têm mais condições de viver como seus ante-

passados, uma vez que estes eram, em sua imensa

maioria, nômades que exploravam uma área para

sua subsistência e, após os primeiros sinais de

desgaste, se mudavam para outro local. Não há

mais espaço disponível para esse procedimento

hoje.30

Cada vez mais, nota-se que o argumento

índio quer terra, na verdade mais chavão que

argumento de fato, perde sentido. O índio, e isso

é extremamente difícil de aceitar nos meios

especializados, é brasileiro e pertence ao povo

brasileiro. A preservação de sua cultura não pode

levar a um embalsamamento, a um engessamen-

to de sua vivência em moldes folclóricos. Por-

tanto, o índio não quer terra somente. Os povos

indígenas encontram-se, em sua imensa maioria,

já estabilizados fisicamente. O que os índios

precisam é de recursos e condições de desenvolvi-

30 No caso dos índios se tem ao menos um outro caso de distorção quando se trata de tutelar seus direitos. No Estado deRoraima, foi criada uma reserva indígena imensa que acabou por abranger, também, uma área de garimpo já estabilizada,com exploração em curso e comunidades instaladas. O que se viu foi que essa reserva criou problemas para todos osenvolvidos. O governo do Estado sentiu-se manietado fisicamente uma vez que viu boa parte de seu territóriotransformar-se em área intocável. Os garimpeiros, por razões óbvias, sentiram-se lesados, entraram em conflito comos índios em um momento inicial e, já ao final, migraram para a capital do Estado, Boa Vista, criando ali um problemasocial imenso, ao se alojarem em favelas por eles mesmos criadas. O povo indígena em questão é o Ianomâmi, cujareserva foi aprovada em nível ministerial em 15.11.1991 (Portaria n. 580/359) e sancionada pelo Presidente da Repúblicaem 25.5.1992. Informações colhidas no site da FUNAI: www.funai.gov.br.

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mento, desenvolvimento que eles próprios

desejam e que será feito e dosado à sua maneira.

A situação dos negros, mutatis mutandis,

guarda algumas similaridades com a indígena.

Muito embora o Brasil seja notoriamente uma

nação constituída por um povo mestiço, e que

a participação da raça negra – na verdade grupo

étnico, já que raça só há uma: a humana – na

formação desse povo seja bastante significativa, os

negros ainda são vistos e tratados como minoria.

Todavia, a similaridade entre índios e negros

pára por aqui.

Uma primeira diferenciação entre os dois

grupos é que os índios, como se viu, têm todo

um tratamento jurídico diferenciado, com umatutela específica alçada a nível constitucional e

proteção legal ampla (Lei n. 6.001/73, estatutodo índio e condição de relativamente incapaz –art. 6º, Código Civil). Com os negros isso já nãose verifica. O negro, legal e juridicamente falan-

do, está em pé de igualdade com o branco (e comos demais grupamentos étnicos). Ao menos em

tese, ou seja, formalmente.

Essa igualdade, porém, não é real. Em re-

cente estudo, ainda não publicado, pesquisa-dores da Universidade da Bahia apuraram que,

para cada R$ 100,00 ganhos por um homem

adulto branco, a mulher adulta branca rece-

be R$ 76,00, o homem negro adulto recebeR$ 58,00 e a mulher adulta negra recebe R$ 38,00,para desempenho de funções semelhantes ouanálogas.

Portanto, há uma efetiva disparidade. Seessa desigualdade é inegável, os métodos paracombatê-la merecem uma boa dose de atençãocrítica. Não apenas no Brasil, mas ao longo do

globo terrestre e mais especialmente nos EUA,

tem-se tentado a adoção do regime de cotas para

ocupação de vagas em universidades e postos

de trabalho, tendo por critério o grupamento

étnico. É a chamada política das cotas, que já

chegou ao Brasil também. Essa forma de com-bate à desigualdade, porém, enfrenta já algunsproblemas.

Em nações como Dinamarca ou Japão, emque a formação do povo ao menos tende a sermais homogênea, com um ramo étnico tendonotória e prevalente ascensão sobre os demaisde forma natural e não forçada, estabelecer cotastorna-se tarefa relativamente fácil. Inclusive emtermos numéricos, uma vez que um censo po-pulacional comum poderá indicar com facili-dade que grupos étnicos minoritários foramidentificados.

Já em nações como EUA e Brasil, a situaçãoé rigorosamente distinta. Os norte-americanostêm uma formação populacional bastante se-melhante à do Brasil, com grupamentos euro-peus vindo em um primeiro momento (no caso,ingleses), escravos africanos (negros) e nova imi-gração européia heterogênea tempos depois. OBrasil se distingue dessa formação por apresen-tar um contingente de participação indígena nasua formação mais significativo do que a socie-dade norte-americana. Pois bem, em todo caso,em sociedades com essa formação, como fixarcotas étnicas?

No caso brasileiro, os negros teriam direitoa dadas cotas por serem notoriamente tratadoscom desigualdade. Isso não se discute, é esta-

tístico. Ocorre que mulatos, cafusos, mamelu-cos, pardos, asiáticos e até alguns grupos latinos,

como os bolivianos, e mesmo grupos internosregionais, como os nordestinos instalados no

sul do país, também sofrem notórias restriçõesmesmo em uma nação multiétnica como o Bra-

sil. Isso sem contar as diferenciações precon-ceituosas que sofrem indeterminadas pessoas,brancas ou negras, por serem pobres, por exem-plo. Criar cotas para todas as possíveis diferen-ças, além de tarefa trabalhosa, exigiria justifica-

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tivas do tipo caso-a-caso que inviabilizariam suaaplicação.

Além do que, a democracia exige igualdadede tratamento e a cota fere essa exigência.31 Defato, em uma sociedade multifacetada, mostra-sebastante discutível que um dado grupo, por dife-renciação étnica somente, pretenda determina-das benesses. Claro que não se olvida aqui que aigualdade se dá pelo tratamento desigual dos de-siguais, mas o critério de aferição dessa desigual-dade e especialmente a forma como será equa-cionada não se mostram tão singelos a ponto dese verem resolvidos pela distribuição de cotas.

No Brasil vem tomando força, por outrolado, uma aplicação peculiar de um movimentosurgido nos EUA dos anos 90 do século XX,movimento esse que busca a igualdade dosnegros justamente pela adoção de um critérioúnico, algo como ignoremos que se tratam denegros e tratemo-los como se brancos fossem.O curioso é que há até negros apoiando essetipo de postura.

Nos Estados Unidos, os prosélitos dessacorrente acreditam que há muito “queixume”por parte dos negros, tendo um doutrinadoramericano indagado, com indisfarçável veemên-cia e até alguma parcialidade:

“até quando o fracasso dos americanos negros

da atualidade pode ser desculpado e explicado

em razão dos erros do passado?”.32

Contudo, esse raciocínio não pode ser apli-cado em terras brasileiras de forma cabal. No

Brasil esse movimento se mostra bem evidentena juventude negra que busca acessar os bensde consumo e conforto geral da sociedadebranca, sem se importar com a defesa políticados direitos dos negros. Os grupos de pagode,revistas especializadas (Raça, por exemplo),jogadores de futebol negros, todos são exemplosde uma nova postura que visa a igualdade pelaascensão social e ignora os sofrimentospassados.

Mas, os dados, como os citados, não permi-tem a adoção simplista de que os negros podemvencer exatamente como os brancos. Mais umavez os fatos mostram que não podem, não. Mui-to embora as cotas tenham se mostrado inviá-veis em outras partes do mundo, o fato é quenão se pode fechar os olhos para a situação deflagrante desigualdade experimentada pelosnegros. Estamos aqui falando de desigualdadenas oportunidades, de desigualdade no acessoao estudo, ao trabalho digno, ao crédito, enfim,acesso a tudo o que a sociedade oferece paratodos os grupos étnicos indistintamente.

Em todo caso, a mera positivação de restriçõesaos preconceitos (Leis ns. 7.716/89; 8.081/90 e9.459/97) não fará a igualdade tomar assento emnosso dia-a-dia de forma imediata. Bem antes detais leis, mais exatamente em 1823, o chamado“Projeto de Proteção aos Escravos”, de autoria deJosé Bonifácio de Andrada e Silva e apresentado àAssembléia Constituinte, já tutelava a questão. Oprojeto,33 em seu artigo 10, dizia:

“Todos os homens de cor, que não tiverem

ofício, ou modo certo de vida, receberão do

31 “A democracia implica igualdade, mas quando ela é superimposta numa sociedade desigual, permite que algumaspessoas contem mais do que outras.” PHILIPS, Anne. Democracy and difference: some problems for feminist theory.The rights of minoriy cultures, Oxford University Press, 1997, p. 289-299 (tradução livre do autor).

32 LOURY, Glenn C. Questões de cor: os negros e a ordem constitucional. A constituição e a diversidade americana. Riode Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 185.

33 CARNEIRO, Edison. Antologia do negro brasileiro. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 22-25.

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Estado uma pequena sesmaria de terra para

cultivarem e receberão, outrossim, dele, os

socorros necessários para se estabelecerem, cujo

valor irão pagando com o andar do tempo.”

Tivesse tal projeto sido aprovado e hoje

teríamos, com grandes possibilidades, um outro

quadro socioeconômico e político, no Brasil,

porque a história da população afro-brasileira

teria uma outra conformação. Infelizmente, isto

não aconteceu, firmando-se, em verdade, uma

outra opção pela imigração européia, a despeito

da mão-de-obra negra recém-liberta.

Como no caso da Justiça e do acesso a ela,

aqui também é preciso adotar-se um amplo

programa educacional, cultural, para que o povo

brasileiro se olhe e se aceite como é, com todos

os seus componentes e respectivas nuances, o

que é sempre difícil, pois nenhuma lei ou

programa pode modificar uma convicção tão

pessoal como o preconceito racial, já que esta

se enraíza no coração das pessoas, mas pode

ser modificada pelo trabalho contínuo e paciente

ao longo do tempo.

5.3 Direitos Políticos ou ParticipaçãoPolítica do Cidadão

O Brasil em política, como em diversos

outros segmentos, prima pela instabilidade e

pela irregularidade em seus diversos momentos

políticos. Ao longo da história republicana, ora

tivemos um pluripartidarismo, ora nada

tivemos, ora tivemos apenas dois partidos. Essa

situação decorre da – ou exibe a – irregularidade

apontada, claro, também nos textos constitu-

cionais que ora contemplam garantias demo-

cráticas até bastante modernas (Constituição

Federal de 1934), ora alternam momentos de

absoluta exceção, com supressão de garantias

políticas já consagradas (Constituições Federais

de 1937 e 1967).

Alguns críticos alegam que o que falta ao

Brasil é mesmo um sistema partidário forte.

Parece que a própria história lhes dá razão. De

fato, sem um norte definido em termos parti-

dários, o que se verifica é que o eleitor tende a

personificar demais seu voto, dirigindo-o a um

dado candidato de sua preferência, pouco lhe

importando questões como plataforma ideoló-

gica do partido, coerência entre a vida pública

pregressa do candidato e sua atual agremiação

política e nem quem são os companheiros de

partido do candidato escolhido. Ao eleitor

brasileiro, também, tampouco interessa em que

bases ou termos o partido político foi criado e

que tipo de objetivos pretende alcançar enquan-

to grupamento político organizado. Isto afeta

profundamente qualquer democracia que se

pretenda séria. Como diz um estudioso do tema,

“em suma, os partidos políticos têm sido fracos

por causa da fragilidade da democracia e vice-

versa. A democracia teria tido mais chances de

consolidação se poderosos partidos políticos

lhe servissem de sustentação”.34

Esse desinteresse gera quadros políticos

notórios como Jânio Quadros e Fernando Collor

de Mello, que, sem entrarmos em qualquer tipo

de avaliação pessoal sobre as qualidades boas

ou más de um e outro, chegaram ao poder

através de partidos fracos ou inexpressivos,

sendo o exemplo de Collor mais evidente ainda,

34 Cf. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Introdução à história dos partidos políticos brasileiros. Belo Horizonte: UFMG, 1999,p. 141.

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35 No mesmo sentido, ver DINIZ, Eli. Governabilidade, democracia e reforma do Estado: os desafios da construção deuma nova ordem no Brasil dos anos 90. Reforma do Estado e Democracia no Brasil. Brasília. UNB-ENAP, 1997, p. 37-53.Carlos Novais, comentarista político da TV Cultura de São Paulo, declarou em 2002, por ocasião da eleição do Dr.Enéias a deputado federal por São Paulo com 1.500.000 de votos, que os eleitores de Enéias são muito mais alienadosem relação à política, do que propriamente descontentes (voto de protesto) e que, perigosamente, Enéias pode ter sidoeleito por suas idéias mesmo, o que lhe conferiria alta representatividade no parlamento.

36 A esse respeito, temos o exemplo das medidas provisórias, editadas às catadupas pelo Poder Executivo federal, que, emseu plano de governo bienal (2001/2002), tenta justificar tal postura, dizendo que: “(...) As reformas da década de 1990mudaram irreversivelmente o padrão de relacionamento do Estado e da sociedade no Brasil. A intervenção direta doEstado na economia foi drasticamente reduzida pelas privatizações e, na mesma proporção, ganhou importância acapacidade do Estado de estabelecer e aplicar normas adequadas para a atividade privada. Mais que nunca, ‘governaré legislar’, na expressão antiga de Vitor Nunes Leal. Ou seja, a governabilidade pressupõe a capacidade de adotarmedidas legais com presteza, sob pena do perecimento de situações que se devem preservar ou promover”.

se pensarmos que o partido que o elegeu hápouco mais de 12 anos para a Presidência daRepública hoje sequer existe como partido po-lítico com representação no Congresso Nacio-nal, muito embora tenha mudado de PRN paraPRTB e ainda lance candidatos regulares emeleições. Coincidência ou não, o fato é que am-bos os exemplos tiveram saídas conturbadas dapresidência e, especialmente Jânio, apresen-tando uma rigorosa ausência de formaçãoideológica que lhes seguissem mesmo após asaída do poder, ou seja, não formaram uma basepartidária forte que lhes fosse fiel e que, tam-bém, permanecesse ativa mesmo após suasrespectivas retiradas.

Uma conseqüência natural dessa situaçãoé a formação de eleitores que, queiram ou não,sempre acabam criando uma dada expectativaem termos de uma resposta prática, freqüente-mente particularizada e até pessoal, sobre seucandidato tão-somente, pouco lhe importandoque tipo de alianças este irá fazer ou que tipode concessões fará – ou mesmo já fez em cam-panha – para alcançar o cargo pleiteado. Atocontínuo a esse estado de coisas, como pareceser óbvio, é a sensação de frustração sentida peloeleitor, que não consegue ver implementadotudo o que ouviu de seu candidato quando emcampanha, e este último, por seu turno, lança-se

em retóricas discursivas que nada respondem

de efetivo e, basicamente, visam passar à opinião

pública dois tipos de resposta: tudo o que é

possível está sendo feito (e às vezes está mesmo)

e/ou a responsabilidade é de outrem, seja ele

governante passado ou presente de outra esfera.

Como resultado do amálgama descrito,

gera-se um eleitor imediatista e pouco partici-

pativo no que concerne à consecução pelo seu

candidato, se vitorioso, do programa de governo

estabelecido. O eleitor, em resumo, perde a

credibilidade no jogo político e crê que tudo não

passa de um colossal engodo.35 Também o

desprestígio entre os poderes da República vai

desgastando não só o cidadão-eleitor, mas todo

o sistema.36

Um ponto final importante é a questão do

voto. O discurso político atual, definitivamente,

adotou o voto como uma legítima panacéia que

seria capaz de resolver todos os problemas

políticos existentes. Especialmente quando con-

frontados com um caso de político flagrante-

mente corrupto, os demais políticos, escorados

de forma deliberada pela mídia, respondem com

extrema simplicidade ao voltarem-se para a po-

pulação trazendo idéias de cunho finalista e pe-

remptório em relação ao voto, lançando verda-

deiros slogans como “não votem mais nesse su-

jeito”, “o voto é sua maior arma”, “político cor-

rupto se elimina pelo voto” e por aí vai.

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Ocorre que tal simplicidade escamoteia

aspectos bastante importantes, que não podem

ser postos de lado sob a alegação pouco con-

vincente que o voto tudo resolve, pelo simples

fato de que isso não espelha a realidade.

Por primeiro se veja que uma democracia

não pode ser feita de 4 em 4 anos, se adotarmos

um cargo regular como deputado, vereador ou

prefeito, pelo simples fato de que o candidato

vitorioso recebe um mandato e não um salvo-

conduto para agir como quiser e sofrer as

“conseqüências” dali a quatro anos. Em segun-

do, o voto, em si mesmo, recebeu duras críticas

desde sempre. Jean Jacques Rousseau, demo-

crata por excelência, relativizava bastante o voto,

dizendo que “a representação popular era a

negação da soberania popular” e que os “manda-

tários tornam-se, fatalmente, prevaricadores e

passam a atuar contra o interesse do mandan-

te”.37 Quer parecer óbvio que em um país de

160 milhões de pessoas, não se pode pretender

o exercício direto do poder pelo povo, nos mol-

des da antiga Grécia, mas um mais do que auto-

rizado doutrinador na área política sugere um

meio-termo para a questão em tela:

“É inegável que a democracia hodierna, qual-

quer que seja o tamanho da sociedade política,

exige a instituição de um sistema de decisões

populares diretas, que resolvam as questões

coletivas fundamentais e estabeleçam diretrizes

vinculantes para os órgãos de governo.”38

A modificação desse quadro é, como se pode

prever, custosa e envolve, além de profundas

mudanças culturais, criação de instâncias alter-

nativas de interação Estado/cidadão, papel que

vem sendo desempenhado, não se pode negar,

pelas organizações não governamentais (ONG’s),

mas que não podem ser vistas como único

veículo para tanto. Por outro lado, mecanismos

de controle e acompanhamento merecem uma

atenção especial, como vimos nas palavras do

professor Fábio Konder Comparato, sem o que

democracia alguma poderá ser construída aqui,

a não ser a que já temos, cujos resultados não

podem ser vistos como exatamente animadores.

6 CONCLUSÃO

O trabalho apresentado, por si só e em seus

entremeios, já apresenta as conclusões desejadas

pelo autor. Apenas como fecho conclusivo, se

poderia comentar que os direitos fundamentais

estão na agenda de qualquer país que seja ou

pretenda ser civilizado e principalmente demo-

crático, porém sua aplicação, seu respeito e for-

talecimento mostram-se difícies e bastante tor-

mentosos pelas razões que aqui se buscou trazer.

O Ministério Público e o Poder Judiciário,

mesmo que não se queira adotar a lição marxista

ipsis literis, nominando-os de super-estrutura

social, não podem ser vistos como estuários de

liberdade, conservação da ordem e promoção

da justiça por si, para si e em si ou mesmo para

a sociedade. Na verdade, são instrumentos e

instâncias instrumentais que podem até amoldar

e indicar caminhos à população que os acolhe

e integra, mas são e estão afetos às vicissitudes

estruturais, políticas ou culturais, como se viu

aqui, como qualquer outro organismo, e sentem

37 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 34.38 COMPARATO, Fábio Konder. Sentido e alcance do processo eleitoral democrático. USP Estudos Avançados: liberalismo

e escravidão, n. 38, v. 14, jan./abr. 2000.

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as modificações no tecido social – boas ou não

boas – tanto quanto qualquer outro ator compo-

nente da sociedade. A população pode e deve

remeter suas esperanças ao Ministério Público

e ao Poder Judiciário; deve, porém, e com igual

empenho, tomar as rédeas de seu direcio-

namento e saber que a cidadania moderna, mais

do que nunca, é construída por todos.

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A r t i g o

1 Filosofia do Direitoe Jurisprudência

Sendo a mente humana una, todos os conhe-cimentos obtidos para ali convergem, de sorteque não podem deixar de entre si estabeleceremíntimas conexões. O saber humano constitui,pois, uma unidade: tem caráter orgânico e sis-temático. No entanto, é útil definir os confinsdas várias ciências, porque, se o fizermos, con-tribuiremos para o esclarecimento dos seus res-pectivos temas e conceitos, para a determinaçãodas fontes diversas que poderemos usar paraintegrar cada matéria.

Entre a filosofia do Direito e a jurisprudên-cia (ciência do Direito positivo) há, como logo

uma primeira inspeção o denuncia, estreitíssima

afinidade. Não deixamos de o notar quando

tratamos do conceito de Filosofia do Direito.

Podemos acrescentar agora: aí, onde a ciência

do Direito atinge o limite da sua jurisprudência,

inicia a Filosofia do Direito a sua, pois, enca-

rando ela o Direito pelo aspecto universal, com-

pete-lhe fornecer à jurisprudência as razões e

as noções fundamentais. É a tarefa que tem de

cumprir, iniciando-a logo com a elaboração do

próprio conceito de Direito, pressuposto ineli-

minável que está na base de todos os conceitos

com que a jurisprudência trabalha. Ela sintetiza,

unifica logicamente todos os dados particulares

da jurisprudência; traça o quadro universal da

R E S U M O

RELAÇÕES DA FILOSOFIA DO DIREITOCOM DISCIPLINAS AFINS E OUTRAS

DISCIPLINAS

André Rubens DidoneProfessor Ms.

Coordenador do Curso de Comércio Exterior do Imes.

Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA – Bueno Aires, Argentina.

A B S T R A C T

Este artigo se refere ao conhecimento filosófico doDireito.A filosofia do Direito e a Filosofia Teorética,Psicologia, Moral, Sociologia e outras relações doDireito são analisadas neste escrito.Nós comparamos, também, a metodologia geralcom a Filosofia do Direito e seu método.A conclusão simples diz a importante via que oDireito apresenta em sua aplicação.

This article remains to the philosophique knowledgefrom the right.The right philosophy and Teoretic Philosophy,psychology, moral, sociology and other relationsfrom the right are analised in this paper.We compare too the general methodology withthe right Philosophy and his method.The simple conclusion said the important way thatthe right presents in his application.

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vida histórica do Direito – a qual, pela história

particular de cada sistema jurídico positivo, é

apenas estudada em relação a cada uma delas –,

intentando explicá-la pelas suas razões gerais e,

ainda, avaliar o Direito positivo de um ponto de

vista mais elevado. A Filosofia do Direito revela

ter, deste modo, frente à ciência do mesmo,

autonomia e missão próprias, mantendo, todavia,

com ela conexões e relações inevitáveis.

Verifica-se uma necessidade de recíproca

integração: a jurisprudência carece da Filosofia

do Direito, que lhe oferece os supremos crité-

rios diretivos; a Filosofia do Direito não pode

furtar-se a considerar a realidade histórica – que

é aquela que a jurisprudência investiga – a fim

de poder descobrir e de formular os tais critérios.

Assim, a noção lógica e universal do Direito deve

ser confrontada com os fenômenos jurídicos

particulares: pois estes não só terão de ser re-

constituídos no quadro da evolução jurídica

geral, mas também deverão ainda ser avaliados

consoante se aproximam mais ou menos do

ideal da Justiça.

Todas estas operações próprias da Filosofia

do Direito pressupõem, como evidente, o

conhecimento dos fenômenos de que se trata –

ou seja: do Direito positivo, objeto da jurispru-

dência. Ciência e Filosofia do Direito, por con-

seguinte, podem e devem coexistir – embora

não seja lícito à primeira ignorar a transcen-

dência da segunda, nem a esta a importância

daquela.

2 FILOSOFIA DO DIREITO

E FILOSOFIA TEORÉTICA

São importantíssimas as relações entre a

Filosofia do Direito e a Filosofia Teorétra, queestuda os primeiros princípios do ser e do conhecer.

Se a Filosofia do Direito pretende conceber

o Direito na sua universalidade, tem de har-

monizar a concepção do Direito com a concep-

ção do mundo do ser em geral.

Por outro lado, ao estudar os primeiros

princípios do conhecer (gnoseologia), a Filosofia

Teorética procura responder às seguintes

questões: é possível o conhecimento? Como é

possível? Que valor lhe deve ser atribuído? Ora,

a Filosofia do Direito, quando empreende a

definição do conceito de Direito, encontra-se a

braços com o problema do conhecimento, pois

tem de inquirir, antes de mais nada, qual o valor

do conceito universal do Direito, se é realidade

ou simples palavra etc...

Nota-se agora: qualquer resposta dada a

estes problemas implica a necessidade de uma

prévia investigação especulativa nos domínios

da Filosofia Teorética. Por outras palavras: de

uma prévia teoria filosófica. Não se pode sequer

negar a Filosofia sem filosofar.

Surgem assim, nitidamente, as relações da

nossa disciplina com a Filosofia Teorética,

sobretudo com a gnoseologia ou teoria do

conhecimento.

3 FILOSOFIA DO DIREITO

E PSICOLOGIA

Como parte da Filosofia Teorética, podemos

ainda considerar a Psicologia, que é a “ciência que

estuda os fatos do espírito humano e suas leis”.

A Filosofia do Direito tem relações com a

Psicologia, porque o Direito é, sem dúvida, fato do

espírito humano: resulta das persuasões (e estas

constituem um fato psíquico) e das apreciações

dos homens conviventes. Recordemos, a este

propósito, a bela sentença de Vico:

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“este mundo civil foi certamente pelo homem

criado e, por isso, os seus princípios devem-se

encontrar na própria mente humana”.

É ainda preciso conhecer a natureza dos

processos psíquicos, da atividade do espírito,

para compreender a origem do Direito. Demais,

uma vez estabelecido o Direito positivo, as nor-

mas imperativas, que o constituem, dirigem-se

à consciência de cada homem e requerem de

cada um obediência – ou seja: um conteúdo

determinado da referida consciência. Desta

sorte, regressam ao mesmo espírito que as

originara. O Direito desenvolve-se inteiramente

na ordem dos fatos psíquicos; e à mesma per-

tencem ainda, por certo aspecto, os ideais que

nos servem de critério estimativo das normas

jurídicas positivas.

Já Platão deu base psicológica à sua análise

da Justiça. Sempre, contudo, através da sucessão

das várias fases do pensamento, se registrou

paralelismo entre as doutrinas psicológicas e as

jurídicas. Parte-se da tese de que a atividade

humana é essencialmente determinada, nos

seus motivos, por fatores econômicos? Logo se

segue, como conseqüência, a tese segundo a

qual o Direito se baseia inteiramente sobre a

Economia. Mas se criticarmos esta premissa psi-

cológica, demonstrando como a alma humana

se abandona também a tendências diferentes

das econômicas e a estas irredutíveis (por exem-

plo, o sentimento do justo e do injusto), impli-

citamente estaremos a criticar aquela doutrina

do Direito.

A adoção de uma Psicologia imperfeita

acarreta sempre erros e imperfeições semelhan-

tes à Filosofia do Direito. Para darmos outro

exemplo, lembraremos a teoria de Hobbes, o

qual partia, como se sabe, do conceito de que o

homem é naturalmente egoísta (homo homini

lupus) e de que o estado natural entre os ho-

mens é o estado de guerra de todos contra todos.

Desta verificação inicial, deduz ele a necessidade

de uma força material ilimitada, capaz de su-

primir o egoísmo; e esta força é o Estado, que

ele concebe à maneira de uma máquina que anu-

la o poder dos indivíduos. Ante o Estado onipo-

tente ficam estes sem direitos individuais ou li-

berdades. Pois, de contrário, desapareceria o

Estado e o homem regressaria ao estado natural.

Hobbes chegou mesmo ao extremo de negar a

legitimidade de qualquer juízo individual sobre

o justo e o injusto; semelhante apreciação, no

seu entender, pertencia apenas ao Estado.

Nós, contudo, podemos observar que proi-

bir o ato de ajuizar é manifesto absurdo psico-

lógico: não se pode amputar à consciência uma

das suas faculdades naturais. Por outro lado,

igualmente se deve notar que o homem, de um

modo geral e ao contrário do que pensava Hobbes,

não é, por natureza, exclusivamente egoísta. Sem

dúvida, o instinto de autoconservação manifes-

ta-se nele; mas vai de par com o instinto da con-

servação da espécie. As tendências sociais, a sim-

patia, a compaixão, a participação nas dores alheias

correspondem a faculdades originárias e a mo-

tivos constantes do espírito humano. Ora, tudo

isso nega o egoísmo. Mais correto será dizer que

a natureza humana se desenvolve sobre uma

base constituída simultaneamente pelo egoísmo

e pelo altruísmo. O Direito, em especial, implica

sempre o reconhecimento expresso da pessoa

do “outro”; é, por essência, metaegoísta. Por

outras palavras: representa superação ou alar-

gamento do egoísmo individual.

Vê-se, pois, com estes exemplos, como as

instituições políticas não são máquinas, ou

instrumentos exclusivamente mecânicos das

coações impostas aos homens, mas produto

espontâneo do seu espírito. Mais não é preciso

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para sublinhar a importância da Psicologia nas

suas relações com a nossa disciplina.

4 FILOSOFIA DO DIREITO E ÉTICA

Também existem relações íntimas entre a

Filosofia do Direito e a Filosofia prática ou Ética,que estuda os princípios do agir, tais como aidéia de liberdade, de dever, do bem. Bastarálembrar que o Direito é uma idéia prática, umprincípio regulador da conduta. Eis por que aFilosofia prática, ou Ética em sentido lato,admite, como já indicamos, a divisão em Filo-sofia da Moral (ou Ética em sentido restrito) eFilosofia do Direito. Entre ambas as disciplinase suas respectivas matérias verifica-se parale-lismo constante. Ao estudar o Direito estamossempre em contato com a Moral. Exemplo: paradefinir logicamente o Direito, teremos de odistinguir da Moral, pois são noções contíguas,muitas vezes confundidas uma com a outra. Poroutro lado, ao contemplarmos a evolução his-tórica do Direito, teremos ocasião de repararcomo as idéias morais e os institutos jurídicosse desenvolvem simultaneamente, de sorte quea cada sistema de Direito positivo dá réplica aná-logo sistema de Moral positiva.

Meditando sobre o ideal do Direito, achare-mos isto: corresponde apenas a aspecto do idealdo Bem.

5 FILOSOFIA DO DIREITO

E SOCIOLOGIA

Chegamos à altura de tratar o problema das

relações entre a Filosofia do Direito e a Socio-

logia. A este respeito, reina ainda a incerteza, o

que dificulta a tarefa. Tanto mais que se discute

muito a admissibilidade da Sociologia como

disciplina científica, fato que não ocorre com

as restantes ciências.

Até o século XIX, muito embora os fenô-menos sociais já tivessem sido objeto de estudo,este, porém, não se fazia com o nome de Socio-logia. Augusto Comte, no seu Cours de philo-sophie positive (1830-1842), arvorou-se em pio-neiro da nova ciência, que batizou com aquelenome híbrido da sua invenção – a nova palavrafoi formada à custa de uma raiz latina e de umaraiz grega – logo aceito por Stuart Mill como“barbarismo cômodo”. Comte e os seus sequa-zes procuraram justificar assim a nova ciência:conhecem-se diversos fenômenos – os jurídicos,os morais, os demográficos, os religiosos, oslingüísticos etc. – os quais, a par de característicasespecíficas, apresentam uma nota comum: só épossível a sua verificação aí onde existe con-vivência humana, uma sociedade. São, por con-seguinte, fenômenos essencialmente sociais.Todos eles possuem – como mais tarde melhorse esclareceu – raiz psicológica e forma histó-rica, pois, se se manifestam na convivência,resultam do jogo espontâneo de elementospsíquicos individuais e modificam-se no decursotemporal, acompanhando as mudanças dasociedade humana. Ora, se tais fenômenos têma mesma origem e apresentam a mesma formade aparecimento, convém estudar as suas rela-ções recíprocas. Observando a concatenação, ainterinfluência, o consensus (como se expri-miria Comte) de todos os fenômenos sociais,chegar-se-á a uma concepção e explicação uni-tárias da sociedade, a qual, na idéia do seu fun-dador, devia abarcar e sintetizar todas as ciên-cias que estudam qualquer aspecto particulardo fenômeno social, como a economia política,a ciência das religiões, dos costumes, da moral.Todas estas matérias e disciplinas particulares,incluindo a Filosofia do Direito, deveriam, noseu entender, cair no âmbito da Sociologia ouciência geral dos fenômenos sociais.

Existe já, no entanto, ciência complexa, que

colige e estuda todos os dados sobre a vida social:

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a História. A esta observação, respondem os

partidários da Sociologia, esclarecendo que estanão é apenas expositiva, como a História, mas,além disso, explicativa, pois, em vez de se con-tentar com os fatos, procura enunciar-lhes asleis. Seria fácil retorquir: a Filosofia da História(parte da Filosofia Teorética), disciplina já consti-tuída, tem precisamente por fim descobrir eformular as leis da História. Vico, consideradopor tantos o precursor da sociologia, tentou-o jáem 1725, com a sua obra Principii di una scienzanuova intorno allá comune natura delle nazione.Estudos de Filosofia da História foram, aliás,escritos por muitos outros, assim nos temposantigos como nos modernos. Haverá, nãoobstante, diversidade entre a Filosofia da Históriae a Sociologia?

Há uma diferença, pelo menos, se atender-mos à intenção dos sociólogos: a respeitante aométodo. Comte deseja entregar-se à Filosofiada História imprimindo-lhe orientação positi-vista. A Filosofia da História fora, até então, tri-butária de um procedimento dedutivo, o qualconsistia em tentar obter da História a provaconfirmatória das idéias gerais inspiradoras dainvestigação. Antes de Comte, os escritores deFilosofia da História eram aprioristas. Vico, porexemplo, empenhou-se em provar o curso e orecurso da História; Bossuet, o desígnio da Pro-vidência divina etc. Eles partiam de um esquemaprévio, que recheavam, depois, não sem esforço,de fatos históricos.

Comte, em vez deste procedimento, adotaoutro, o objetivo e naturalista. Embora não fosse

isento de muitos preconceitos, diligenciou man-ter-se fiel ao método, partindo do critério da na-

tural determinação, segundo o qual cada fato re-sulta de outro, por força de concatenação inevitável.

Este critério pode, contudo, ser adotado eseguido por qualquer ciência particular, semque a adoção a transmude em ciência nova. Ao

estudar um determinado fenômeno, não deve-

mos perder de vista as suas relações com outrosfenômenos, os nexos que entre si os ligam. Paraestudar o Direito, urge estudar, por exemplo, assuas afinidades com a religião, a economia etc.

Malgrados os esforços de Comte e de seusepígonos, a assim chamada Sociologia é, por en-quanto, coleção e estudo de fatos que consti-tuem já o patrimônio de outras ciências. Seapenas respeitarmos o intuito sistemático quepreside, em geral, às suas investigações, a brevetrecho descobriremos que pertence ao conceitoda Filosofia da História.

O movimento sociológico registrado noséculo XIX contribuiu para abrir caminho aoestudo mais amplo da fenomenologia social; masnão substituiu as ciências sociais particulares, jáconstituídas, tampouco a História ou a Filosofiada História segundo o método positivista.

Mas, mesmo que se admita o conceito deSociologia, concebida como ciência geral dos fe-nômenos sociais, nem assim a Filosofia doDireito seria por ela absorvida. Na verdade, aSociologia será sempre ciência fenomênica, aopasso que a Filosofia do Direito se propõe, alémdo estudo do fenômeno jurídico, ainda, esobretudo, obter a definição lógica do Direito ea investigação deontológica – ou seja: a deter-minação do conceito e o ideal do Direito. A

ambas as preocupações se mantém estranha aSociologia. O seu trabalho pressupõe, como

estando já estabelecidos, os conceitos e critérioslógicos, e ambiciona tão-só observar os fatos,

aquilo que é e não aquilo que deverá ser. A Fi-losofia do Direito, como dissemos já e veremos,

é, por natureza, ministra do progresso jurídico,reivindicadora do ideal. Não assim a Sociologia:esta não implica um ideal, nenhum reclama, econtenta-se com os fatos verificados. Em casoalgum, pois, a Sociologia pode substituir outornar supérflua a Filosofia do Direito.

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Contudo, a investigação fenomênica,

própria da Filosofia do Direito, tem algo de co-

mum com o programa da Sociologia. Tal inves-

tigação, tendendo a compreender a origem e a

evolução histórica do Direito, tem um carac-

terístico “sociológico” e não seria muito inexato

dizer que, por este aspecto, a Sociologia é novo

nome dado à Filosofia do Direito. Como se disse,

neste seu capítulo deve a Filosofia do Direito

observar os contatos e afinidades entre o fenômeno

jurídico e os fenômenos religiosos, econômicos

etc.; ou seja: integrar a realidade jurídica no

complexo das suas mais vastas conexões.

No tocante às outras investigações, já a So-

ciologia é vassala da Filosofia do Direito ou es-

tranha a ela: vassala, pelo que se refere à inves-

tigação lógica (definição do Direito), pois seu

trabalho tem-na como pressuposto; estranha,

no que se refere à investigação deontológica

(ideal do Direito, porque só procura conhecer

fatos e não ideais.

6 RELAÇÕES COM OUTRAS

DISCIPLINAS

A Filosofia do Direito mantém relações com

todas as restantes ciências que se ocupam dos

fenômenos sociais. Por exemplo, com a Demo-grafia, ou ciência da população, do seu agrupa-

mento em classes e dos seus movimentos. Am-

bos os fenômenos, e a possibilidade de sobre

eles exercer ação modificadora, fornecem dados

indicativos ao Direito sobre a necessidade ou

conveniência de normas determinadas.

A Demografia liga-se à Estatística, que ob-

serva e nota os fenômenos atípicos (não típicos),

especialmente os sociais, agrupando-os, com o

fim de descobrir as circunstâncias regulares da

sua produção ou leis em sentido lato. Demo-

grafia e Estatística representam cientificamente

as condições do fato cujo conhecimento é útil

ter para compreender o desenvolvimento his-

tórico do Direito, as suas conexões com os res-

tantes fenômenos sociais e a possibilidade de

reformar ou de criar inovações legislativas.

A Filosofia do Direito não é também alheia

à Economia (ciência do ordenamento social da

riqueza). Os fatos apresentam, muitas vezes,

um aspecto jurídico junto ao aspecto econômico

(ex.: a troca, a propriedade). A forma jurídica,

portanto, recebe por conteúdo, nestes casos,

um evento econômico, a que se deve igualmen-

te atender. Mas não a ponto de se dizer, como

tantas vezes se fez por errado exagero, que a

Economia determina o Direito. Entre ambos há

apenas um paralelismo, que a natureza humana

fundamenta e justifica.

Por último, convém não esquecer as rela-

ções entre a Filosofia do Direito e a Ciência Po-lítica ou ciência da atividade do Estado. Esta se

manifesta de vários modos e pode classificar-se

de legislativa, administrativa e judiciária (que

entra, aliás, na administrativa latu sensu con-

siderada). A Ciência da Política reparte-se, pois,

em dois grandes capítulos: Ciência da Legislação

e Ciência da Administração. Mas a sua atividade

pressupões e requer a da Filosofia do Direito,

pois não se pode exercer sem os princípios, os

conceitos gerais e os ideais que esta tem por

missão descobrir e formular.

A política limita-se a aplicá-los a dadas si-

tuações de fato. Ela ocupa uma posição inter-

média entre a Filosofia do Direito e a Ciência do

Direito positivo. Por isso, se ignora a Filosofia

do Direito, cai no empirismo cego, por carência

de princípios diretores. Mas a Filosofia do Di-

reito, se quiser evitar o perigo de cair na utopia,

não poderá ignorar, por sua vez, a Ciência da

Política, a freqüentação da qual a conserva na

linha de referência à realidade de fato.

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7 METODOLOGIA GERAL E MÉTODO

DA FILOSOFIA DO DIREITO

7.1 Indução e Dedução

Método, na sua noção geral, significa o mes-

mo que caminho ou via (ó δ ó ç) trilhado pelo

pensamento humano na descoberta da Ver-

dade, a qual, segundo a definição tomista, con-

siste em uma adequatio intellectus et rei. Mas

também se dá ainda este nome ao conjunto de

regras a que o pensamento se deve sujeitar no

seu procedimento cognoscitivo. Fórmula antiga

caracterizava-o como habitu intellectualis ins-

trumentalis, nobis inserviens ad rerum cogni-

tionem adipiscendam.

Admitem-se dois tipos de métodos, con-

soante se parte de fatos particulares para se che-

gar aos princípios gerais (indução), ou destes

para aqueles (dedução).

O método indutivo usa-se quando nos basea-

mos na experiência, a qual, só por si, apenas nos

faculta o conhecimento de fatos particulares,

para dela extrairmos uma verdade geral. Assim,

observando que o planeta Marte, por exemplo,

descreve órbita elíptica em torno do Sol, mas

que Júpiter executa algo semelhante, e assim

sucessivamente, chegamos ao momento em

que, por via de generalização conclusiva, pode-

remos afirmar: os planetas descrevem órbita

elíptica em torno do Sol.

Diz-se completa a indução quando se funda

na totalidade dos fatos observados; incompleta,

quando vai mais longe que os casos observados

e afirma, como provável ou certa, uma verdade

que também abarca os casos não observados da

mesma espécie.

O método dedutivo, cuja forma típica é o

silogismo, corresponde a procedimento inverso

do descrito: chega ao conhecimento do parti-

cular baseando-se no conhecimento do geral.

Exemplo: todos os homens são sujeitos de

Direito; os negros são homens; logo: os negros

são sujeitos de Direito. Outro: todos os planetas

apresentam forma redonda; a Terra é um pla-

neta; logo: a Terra é redonda. A argumentação

silogística é, pois, formada de duas premissas,

das quais uma é genérica – premissa maior –, e

a outra, particular – premissa menor ; às pre-

missas segue-se uma conclusão ou ilação, obtida

mediante a aplicação da primeira premissa à

segunda.

É costume distinguir as ciências em dedu-

tivas e indutivas consoante o método por elas

adotado. A distinção possui valor relativo, pois,

em geral, as ciências usam de ambos os méto-

dos; as próprias ciências indutivas, com o de-

correr do tempo e ao se desenvolverem, tendem

a transformar-se em dedutivas. Assim acontece

sempre quando, uma vez atingidos certos resul-

tados por via indutiva, deles se passa a servir-se

à maneira de premissas, de princípios, de que

se parte a fim de se chegar dedutivamente ao

conhecimento de outros fatores particulares.

Foi o que aconteceu à Astronomia, por exemplo,

a qual, depois de numerosas experiências, fixou

e enunciou o princípio da gravitação universal,

assumindo daí em diante comportamento

dedutivo.

Ademais, se os dois métodos se distinguem

um do outro, não se contradizem. Não se ex-

cluem reciprocamente, antes se completam, de

certo modo, combinando-se entre si e integran-

do-se mutuamente. Dão um ao outro ajuda e

existência. De fato, uma vez efetuado certo nú-

mero de observações, podemos atingir a gene-

ralidade – que, neste caso, tem origem indutiva

– e, daí em diante, proceder por via dedutiva.

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7.2 Conhecimento Empírico(a posteriori) e Racional (a priori)

Importa agora advertir que possuímos duas

espécies de conhecimento: o empírico, fundado

na observação externa (a posteriori); o racional,diretamente obtido do nosso intelecto (a priori).

O conhecimento empírico assenta na veri-

ficação de que alguns fatos acontecem de certo

modo; todavia, nada implica que não possam

acontecer de modo diverso. Assim, o fato de os

cisnes serem brancos no nosso país não impede

que, em outros lugares, tenham outras cores.

Em outras paragens há, na realidade, cisnes

pretos. Desta sorte, uma verdade empírica vale

tão-só enquanto se refere ao estado em que as

coisas se mostram a nós no momento da sua

verificação experimental.

Mas o conhecimento racional, esse, não

pode jamais ser desmentido pela experiência. A

soma dos ângulos de um triângulo é igual a dois

retos: esta afirmação, se a fizermos, é e será

constantemente verdadeira, qualquer que seja

o triângulo, pois nela enunciamos verdade obe-

diente às leis necessárias e eternas do pensa-

mento humano, cuja validez é permanente e se

impõe aos fatos – ou, melhor: se encontra ne-

cessariamente em correspondência com eles.

Resulta do exposto que, por meio de racio-

cínios dedutivos, podemo-nos seguramente

fundar em verdades racionais; mas já não sucede

o mesmo quanto às verdades empíricas. No

segundo caso, impõe-se procedimento caute-

loso: pois a verdade genérica se assenta em base

empírica, não pode ser convertida em axioma,

ou, sequer, dogmatizada, sob pena de se trans-

formar em obstáculo para as futuras observa-

ções e experiências. Foi este o erro característico

da Escolástica, que tomou por eternos e neces-

sários certos princípios, mais tarde desmentidos

por experiências ulteriores. Por exemplo, a

proposição de que a “natureza tem horror do

vácuo”. Bacon, reagindo contra a Escolástica na

sua Instauratio magna, reivindicou os direitos da

indução contra os abusos do método dedutivo.

Sumo representante deste método foi Aris-

tóteles, o qual, no entanto, não foi entendido

pelos Escolásticos. Ele não era inimigo da in-

dução e tem de ser absolvido do fato de outros

haverem dogmatizado impropriamente as suas

doutrina. Por causa desta interpretação errônea,

tece caráter antiaristotélico e antiescolástico a

Filosofia do Renascimento. Telésio, Bruno,

Campanella, Bacon, querendo defender os di-

reitos da observação experimental, volveram-se

contra Aristóteles, quando pretendiam, na rea-

lidade, combater a deformação do método aris-

totélico.

Se a dedução, usada com as cautelas assi-

naladas, pode tirar partido da indução, também

esta pode, e deve, tirar partido da primeira. As

observações empíricas, as experiências, im-

plicam determinados princípios racionais. Por

exemplo: as ciências naturais, que se propõem

descobrir as causas dos fenômenos por meio

da observação e da experiência (a qual consiste

em uma reprodução artificial de fenômeno).

Semelhante procedimento, de que nos servimos

para interrogar os fatos, é perfeitamente in-

dutivo. Contudo, ele envolve um pressupostodedutivo: o de que todos os fatos devem ter umacausa. Tal princípio é uma verdade de que es-tamos certos antes mesmo de termos experi-mentado. Nós sabemos a priori que qualquerfenômeno, ainda que futuro, deve ter uma

causa – e sabemo-lo com absoluta certeza, sem

necessidade de o comprovar com todos os casos

particulares possíveis, sem mesmo conhecer as

causas de todos os fenômenos. Em tal noção

encontramos um princípio que ultrapassa o

testemunho fornecido pela experiência.

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Com efeito, esta é sempre particular e,

quando muito, apenas nos pode indicar que um

fenômeno determinado tem uma causa deter-

minada. Mas já não pode dizer-nos que qual-

quer fenômeno deve necessariamente ter uma

causa – pois isso já é verdade a priori que não

pode dimanar da experiência.

7.3 Método da Filosofia do Direito

Regressando agora, mais especialmente, àFilosofia do Direito, advertiremos, desde já, queela usa de ambos os métodos indicados.

Com efeito, ao levar por diante a sua pri-meira investigação – a lógica –, a dedução tema primazia. Neste caso, efetua-se uma análiseracional, pois trata-se de indagar das condiçõesda possibilidade e da cognoscibilidade do Direito.Com a análise lógica define-se um critério ínsitona nossa mente; por isso, ela pode receber umaajuda da experiência, mas não a base da inda-gação. Antes do mais, importa possuir um cri-tério acerca do que o Direito seja, para poder-mos distingui-lo de outras manifestações histó-ricas – a religião, a moral, por exemplo. A expe-riência serve tão-só de confronto.

O mesmo método prevalece na terceirainvestigação, a do ideal supremo do Direito. Seindagarmos este ideal, temos de considerar umprincípio de avaliação que, por sua natureza, é

diferente dos fatos e superior a eles – e, como

tal, apenas cognoscível mediante a razão pura.

A observação empírica – isto é, a experiência –

só nos pode fornecer exemplos de fatos confor-

mes ou contrários ao ideal referido. Por isso,

umas vezes, nos surgirá o Direito positivo como

uma violação do Direito ideal; outras vezes,

pode-nos afirmar que o que é, não devia ser. Afim de obter um critério distintivo do dever ser(critério ontológico), convém proceder por viadedutiva, partir de um princípio a priori, o qual,

como veremos, se obtém da consideração trans-

cendental da natureza humana. Com este prin-

cípio, já depois é possível avaliar os fatos e o

próprio Direito positivo: pois o Direito, enquan-

to positivo, é um puro fato.

Já com a segunda investigação, uma vez que

se trata de observar a evolução histórica, os fe-

nômenos jurídicos, tem de prevalecer a indução.

Coligindo fatos, examinando as instituições

jurídicas positivas dos vários povos, realiza-se

uma indagação empírica. Esta, contudo, pres-

supõe e envolve certos princípios racionais, co-

mo, por exemplo, a própria noção de Direito

(para distinguir dos restantes os fenômenos jurí-

dicos) e a noção de causa (para assinalar as co-

nexões históricas do Direito, patentes no pro-

cesso do seu desenvolvimento).

Ao efetuar esta investigação convém assu-

mir atitude quase naturalista; isto é: urge man-

termo-nos livres de preconceitos a favor ou con-

tra as instituições positivas examinadas, os fatos

observados. Temos de admitir, sem reserva, que

o Direito positivo de qualquer povo ou época

pertence à ordem fenomênica, é, pois, fato na-tural, ou seja: determinado por causas eficientes

e conexo com os demais aspectos da realidade

experimental.

Isto quer dizer que nenhuma instituição ju-

rídica positiva deve ser considerada protótipodas outras, mas todas deverão ser igualmente,

e sem exceção, observadas e analisadas aten-

dendo aos coeficientes históricos que as pro-

duziram. Por isso, nenhum instituto pode ser

posto de lado como indigno de atenção cientí-

fica: neste capítulo, não se admite o desprezo

ou a preferência exclusiva.

Mas cumpre-nos estar em alerta contra o

perigo das ilusões freqüentes entre os juristas,

os quais, levados por elas, exageram o relevo a

dar a alguns dados particulares atuais – por

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exemplo, as normas vigentes – indo até o ponto

de lhes dar valor quase absoluto.

7.4 Método Genético eMétodo Comparativo

A base histórica da cultura jurídica vulgar

restringe-se aos precedentes imediatos e ao Di-

reito romano. Sem dúvida, este é, como já foi

dito por Leibniz, um dos máximos monumentos

do gênio humano. Mas isso não deve levar a

esquecer que o Direito romano representa uma

parte comparativamente pequena do pensamen-

to jurídico em relação a uma fase relativamente

muito adiantada.

O Direito romano, estudado pela nossa

ciência como sendo o mais antigo, ostenta ca-

racterísticas que não deixam dúvidas de que deve

ter sido antecedido por elaboração histórica

muito longa, embora de nós desconhecida

(lembremo-nos da organização da família pa-

triarcal, das formas processuais já tão bem defi-

nidas). Tal elaboração é muito melhor notada

quando estudada em comparação com outros

povos, antigos ou modernos, tendo uma cultura

muito inferior à dos romanos. Por esse motivo,

importa alargar as investigações a outros povos

anteriores ou menos progredidos.

O método dedutivo apresenta, como subes-

pécies, duas modalidades: o método genético(que observa as fases originais) e o comparativo(que permite confrontar os diversos sistemas

jurídicos). O primeiro serve para se obter conhe-

cimento integral da evolução do Direito; o

segundo é útil, visto que o Direito de um só

povo apresenta-se sempre com características

unilaterais e não pode ainda fornecer um qua-

dro exaustivo da realidade humana.

Se confrontarmos o Direito dos diversos

povos, observaremos que ele, em cada um deles,

se encontra em fases diversas da sua evolução.A humanidade não possui único sistema re-gulador, mas divide-se em grupos, dos quais odesenvolvimento histórico é assincrônico (nãosimultâneo). Esta circunstância dá-nos ensejode poder reconstruir as fases originárias dos sis-temas mais evoluídos. Desconhecemos, porexemplo, a fase primitiva do Direito romano,mas temos meio indireto de a conhecermos, pelomenos em parte: o exame da vida jurídica deoutros povos que, atualmente ou em passadode nós conhecido, tiveram sistema parecidocom aquele que inicialmente devia ter sido odos romanos.

Não é esta uma hipótese inventada. O Di-reito de um povo nunca passa inteiramente,nunca é totalmente consumido: no direito Po-sitivo vigente existem sempre resíduos, sobre-vivências das fases anteriores, ininteligíveis porsi, mas que se iluminam mediante a compara-ção. Aquilo que, no passado, foi norma e per-suasão jurídica, sobrevive de qualquer modo nopresente, e não pode ter-se perdido por com-pleto, muito embora apareça ao observador en-volto em outras aparências, por ter sido incor-porado em elementos surgidos mais tarde erefundido debaixo de novas formas.

Mas um exame atento permite discernir,pelo menos ao fim de certo tempo, os diversosestratos que, em certo sistema jurídico positivo,correspondem aos sucessivos momentos da suaevolução histórica; isto é: permite ler nele a pró-pria história da sua formação. Uma relíquia,insignificante na aparência, pode lançar luz so-bre todo um mundo desaparecido; uma fórmulaisolada, que a tradição conserva, embora estanem sempre se faça acompanhar da perfeitaconsciência do traditado, ou um costume quese radicou, muito embora esteja em desarmoniacom o direito escrito, podem permitir a recons-tituição do ordenamento de certas relaçõescaracterísticas de uma época já decorrida.

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Tal processo de reconstituição é, porém,tornado possível pelo fato de que aquele frag-mento, que, em certa fase da evolução cultural,parece uma anomalia, mostra-se como parte vivae integrante de um sistema complexo e orgânicoem outros povos de menor altura. Para citar umexemplo, nos referiremos à famosa questão sobrea origem da distinção entre res mancipi e necmancipi, a qual só recebeu esclarecimentoquando se dedicou alguma atenção às formasprimordiais da propriedade coletiva; só então secompreendeu plenamente a exigência do

requisito da representação do grupo para a

alienação de certos bens.

Com os subsídios que, mediante o método

genético e comparativo, nos subministra a in-

vestigação histórica, podemos tentar a narrativa

de uma história universal, ou traçar, como Vico

diria, “a história ideal eterna, sobre a qual de-

correm no tempo as histórias de todas as na-

ções”. A possibilidade de semelhante tarefa é

assegurada pela semelhança no desenvolvimen-

to do Direito de vários povos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANCAROLA, Gerardo. Dilemas de uma década. BuenosAires: Fundación Editorial de Belgramo, 1999.

ARRUDA, João. Filosofia do direito. São Paulo: Edusp,1942.

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CRETELLA, José Jr. Filosofia do direito. 16. ed. Rio deJaneiro: Forense, 1999.

DEL VECCHIO, Giorgio. Lezioni di filosofia del diritto.11. ed. Roma: Doot. Giuffrè, 1962.

KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho. 4. ed. – 1.reimpresión: 8/2000. Buenos Aires: Editorial Universitariade Buenos Aires, 2000.

PRADO, Juan José. Manual de introducción al conoci-miento del derecho. 3. ed. ampliada y actualizada – reim-presión. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2000.

REALE, Miguel. Filosofia do direito. 9. ed. São Paulo:Saraiva, 1982.

SAMPAIO JR., Tércio Ferraz. Direito, retórica e comuni-cação. São Paulo: Faculdade de Direito da USP, 1973(Tesede Livre Docência).

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D ireito A r t i g o

R E S U M O

O CONTRATO DE TRABALHOE SUA ALTERAÇÃO

José Ribeiro de CamposAdvogado.

Professor de Direito Material e Processual do Trabalho naUniversidade Municipal de São Caetano do Sul – IMES.

Mestre e Doutor em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC.

Este artigo trata da alteração do contrato de trabalhoe suas conseqüências, com enfoque na proibiçãode alteração que prejudique o empregado e nashipóteses legais em que a alteração é possível.

PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chaveDireito do trabalho, contrato de trabalho, alteraçãocontratual, transferência, alteração de função, alte-ração salarial, negociação coletiva.

A B S T R A C T

1 CONSIDERAÇÕES SOBRE

A ALTERAÇÃO CONTRATUAL

Um dos princípios basilares do Direito do

Trabalho é o da inalterabilidade do contrato de

trabalho, também denominado de princípio da

condição mais benéfica, sendo que

“este princípio importa na garantia de preser-

vação, ao longo do contrato, da cláusula con-

This article deals with the modofication of theemployment contract and its consequences, withapproach in the prohibition of alteration that harmsthe employee and in the hypotheses where thealteration is possible.

KeywordsKeywordsKeywordsKeywordsKeywordsRight of the work, employment contract, amend-ment to contract, transference, alteration of func-tion, wage alteration, collective bargaining.

tratual mais vantajosa ao trabalhador, que se

reveste de direito adquirido”.1

No entanto, o contrato de trabalho, por ser

de trato sucessivo, tende a sofrer várias altera-

ções durante sua vigência que podem levar à

alteração de funções na empresa, alterações sa-

lariais, alteração do horário etc. Assim, o con-

trato de trabalho tende a ser maleável para que

possa ir se adaptando às novas circunstâncias.

1 Mauricio Godinho Delgado, Curso de direito do trabalho, p. 201.2 Art. 468. Art. 468. Art. 468. Art. 468. Art. 468. Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições, por mútuo consentimento,

e, ainda assim, desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade dacláusula infringente desta garantia.

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O princípio da condição mais benéfica foi

incorporado pelo artigo 468 da CLT,2 no sentidode que, conforme Mozart Victor Russomano, da“natureza bilateral do contrato decorre uma con-seqüência lógica: qualquer alteração no contratosó poderá ser feita desde que coincidam, nesseparticular, as deliberações das duas partes” e quemesmo havendo “expressa manifestação das duasvontades na alteração do contrato em vigor;mesmo que o empregador não esteja agindo commá-fé, mesmo que o empregado, no primeiromomento, não sofra nenhum ônus com a retifi-cação do contrato a alteração será nula, de plenodireito, uma vez que, direta ou indiretamente,dela resultem prejuízos para o trabalhador”.3

A lei resguarda a situação de desvantagemdo empregado, pois em muitas situações eleprefere uma alteração contratual prejudicial aperder o emprego.

O princípio da condição mais benéfica não éabsoluto, ele pode sofrer limitações quando houverconcordância entre as partes, desde que nãocausem prejuízos para o empregado; quando a leiautorizar o empregador a alterar o contrato sem aconcordância do empregado e, ainda, quandoocorrer alteração mediante negociação coletiva.

As alterações contratuais podem ser obri-gatórias, quando impostas por lei, como, porexemplo, reajuste do salário mínimo, políticasalarial do Governo Federal, leis que aumentamo desconto previdenciário ou do imposto de ren-

da, ou as alterações advindas de acordo ou con-

venção coletiva, bem como as decisões consti-

tutivas proferidas em ações trabalhistas indi-viduais, tais como a decretação de equiparaçãosalarial, condenação ao pagamento de adicionaisde insalubridade ou periculosidade, dentre outras.4

Amauri Mascaro Nascimento classifica asalterações contratuais em subjetivas e objetivas:as primeiras seriam aquelas advindas da su-cessão e alteração da estrutura jurídica do em-pregador, e as segundas, aquelas oriundas detransferência de empregados, suspensão dotrabalho e o exercício do jus variandi.5

2 O PODER DIRETIVO, O JUS VARIANDI

E O PODER REGULAMENTAR

DO EMPREGADOR

O poder hierárquico do empresário, que re-sulta do contrato de trabalho, tem sua causaprimeira no direito de propriedade, é a proprie-dade da empresa que justifica a imposição dosfins desta em detrimento dos fins particularesde cada empregado.6

A assunção dos riscos de atividade econômicapelo empregador, conforme dispõe o artigo 2º, daCLT,7 é que justifica o exercício do poder de direção.

Acentua Hugo Gueiros Bernardes que

“parece difícil, se não impossível, subtrair do

poder hierárquico esse fundamento privatista da

propriedade dos bens de produção, enquanto seja

peculiar e exclusivo do proprietário o risco da

mesma atividade produtiva”.8

3 Comentários à CLT, v. I, p. 482-483.4 Wagner Giglio, Alteração do contrato de trabalho, Revista LTr, v. 47, p. 1295.5 Curso de direito do trabalho, p. 370 e 375.6 Hugo Gueiros Bernardes, Direito do trabalho, v. I, p. 319-320.7 Art. 2ºArt. 2ºArt. 2ºArt. 2ºArt. 2º Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica,

admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços.8 Direito do trabalho, p. 320.

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O poder de direção do empregador tem

como fundamentos a propriedade individual dos

meios de produção e a tutela legal da iniciativa

privada, por isso é um direito contratual que

está assentado sobre a própria causa jurídica do

contrato de trabalho.

Há, no entanto, limites do poder de direção

do empregador, porque este poder somente se

pode referir ao trabalho e às suas circunstâncias,

ou seja, não pode contrariar as disposições

legais, v. g., estipular jornada de trabalho além

do limite legal de oito horas diárias.

O jus variandi, segundo Amauri Mascaro

Nascimento,

“pode ser enunciado como o direito do empre-

gador, em casos excepcionais, de alterar por

imposição e unilateralmente as condições de

trabalho dos empregados”.9

Eduardo Gabriel Saad escreveu que o

“jus variandi é direito de o empregador alterar,

unilateralmente, as condições sob as quais é

prestado o serviço, desde que não sejam atingidos

os elementos básicos do ajuste com o empregado.

Essa potestade do empregador tem como

fundamento o poder de direção, sem o qual não

será possível administrar uma empresa”.10

O jus variandi se caracteriza por ser o com-

plexo de modificações naturalmente supostas

no poder diretivo patronal, necessárias ao

desenvolvimento regular do trabalho na em-

presa, sem que haja a necessidade de autorização

legal ou acordo de vontades, e deve ser com-

preendido como parte do poder diretivo do em-

pregador, que pode ser exercido dentro dos

limites legais, não devendo acarretar prejuízo

para o empregado.

Também em virtude do poder de direção

do empregador emergem o poder de comando,

o poder regulamentar e o poder disciplinar.

O poder de comando está intimamente ligado

ao jus variandi, sendo que a imediata direção da

prestação de serviços é exercida discriciona-

riamente pelo empregador, como já abordado.

Já o poder regulamentar se manifesta basi-

camente na existência do chamado regula-

mento de empresa, que são normas criadas e

aplicadas pelo empregador dentro do estabele-

cimento ou da empresa.

E o poder disciplinar é o direito de o em-

pregador aplicar penas disciplinares ao empre-

gado, em decorrência do cometimento de falta

grave, como a advertência, a suspensão do

contrato de trabalho e até a demissão por justa

causa, desde que ocorra a tipificação expressa

no artigo 482 da CLT.11

9 Curso de direito do trabalho, p. 376.10 Consolidação das Leis do Trabalho comentada, p. 304.11 Art. 482. Art. 482. Art. 482. Art. 482. Art. 482. Constituem justa causa para a rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: a) ato de improbidade;

b) incontinência de conduta ou mau procedimento; c) negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissãodo empregador e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicialao serviço; d) condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execuçãoda pena; e) desídia no desempenho das respectivas funções; f) embriaguez habitual ou em serviço; g) violação desegredo da empresa; h) ato de indisciplina ou insubordinação; abandono de emprego; j) ato lesivo da honra ou da boafama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítimadefesa, própria ou de outrem; k) ato lesivo da honra e boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador esuperiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem.

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A r t i g o

3 DAS ESPÉCIES DE ALTERAÇÃO

CONTRATUAL

A alteração do contrato de trabalho pode

se dar de diversas formas; dentre as principais

estão a alteração do local de trabalho, a alteração

da função, a alteração da jornada de trabalho e

alteração salarial.

3.1 Alteração do Local de Trabalho

No artigo 469 e parágrafos da CLT12 estão

consignadas as hipóteses em que o local da

prestação de serviços pode ser alterada, carac-

terizando como exceção ao princípio da inalte-

rabilidade do contrato de trabalho.

Destaca-se que, segundo a regra expressa

no caput do artigo 469, da CLT, não se considera

transferência a que não acarretar a mudança

de domicílio do empregado.

Escreveu Délio Maranhão que a

“palavra domicílio, usada pelo legislador, não

deve ser entendida no sentido técnico-jurídico,

e sim no de residência, que melhor corresponde

à finalidade da norma”.13

É permitida a transferência dos empregados

que exerçam cargo de confiança, quando os

contratos autorizem explícita ou implicitamente

a transferência e quando ocorrer a extinção do

estabelecimento em que o empregado trabalha.

Os empregados que exercem cargos de con-

fiança podem ser transferidos. O legislador en-

tendeu que, em sendo o empregado homem de

confiança do empregador, é natural que este lhe

ordene prestar serviços em local diverso do con-

trato, não sendo razoável manter um empregado

de confiança preso em um mesmo local.

A outra exceção prevista na lei é a que per-

mite a transferência do empregado quando o

contrato tenha explícita ou implicitamente a

cláusula de transferência. Para se caracterizar

a cláusula implícita, deve-se aliar a natureza da

empresa com a função desempenhada pelo

empregado.

Tanto a cláusula implícita como a explícita

só valem se o empregador demonstrar que há

necessidade do serviço em outro local, como já

pacificado por meio do Enunciado n. 43 do

Tribunal Superior do Trabalho.14

A norma ainda autoriza a transferência no

caso de extinção do estabelecimento no qual o

empregado presta serviços, neste caso, sendo

transferido para outro estabelecimento, procu-

rando, o legislador, preservar a manutenção do

contrato de trabalho.

Além de preenchidos os pressupostos legais

para a efetivação da transferência, o empregado

tem de receber uma majoração salarial de 25%,

12 Art. 469. Art. 469. Art. 469. Art. 469. Art. 469. Ao empregador é vedado transferir o empregado, sem a sua anuência, para localidade diversa da queresultar do contrato, não se considerando transferência a que não acarretar necessariamente a mudança de seudomicílio. § 1o Não estão compreendidos na proibição deste artigo os empregados que exerçam cargos de confiançae aqueles cujos contratos tenham como condição, implícita ou explícita, a transferência quando esta decorra de realnecessidade de serviço. § 2o É lícita a transferência quando ocorrer extinção de estabelecimento em que trabalhar oempregado.

13 Arnaldo Sussekind e outros, Instituições de direito do trabalho, v. I, p. 512.14 Enunciado 43. Presume-se abusiva a transferência de que trata o parágrafo 1º, art. 469 da CLT, sem comprovação da

necessidade do serviço.

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no mínimo, no caso de transferência provisória,

conforme prescreve o § 3º do artigo 469 da CLT.15

3.2 Alteração da Função

A função desempenhada pelo empregado se

insere, também, no princípio geral da inalterabili-

dade unilateral do contrato de trabalho, conformeregra do artigo 468 da CLT, em que a alteração sóé permitida com o mútuo consentimento e ainexistência de prejuízo para o empregado.

O poder de direção do empregador é bastan-te exercido em termos da função do empregado,já que ele pode qualificar o empregado por meiode denominações genéricas, tais como ajudante,auxiliar, e outras, que ampliam o âmbito das tarefasque podem ser exigidas do empregado.

A alteração de função pelo decurso do tem-po, ou seja, empregado que exerce, por vários anos,função diferente daquela ajustada originariamente,é considerada alteração por ajuste tácito. Orebaixamento, entendido como alteração verticalpara baixo, quando o empregado é colocado emfunção inferior à qualificação do contrato, évedado, não importando o motivo que lhe deucausa, pois não está previsto na consolidação.

Quando o empregado é promovido mediantevantagens e melhoria das condições, esta alteraçãoé lícita, na medida em que é vantajosa para oempregado, no entanto, se houver prejuízo napromoção, o empregado poderá recusá-la.

Se houver extinção do cargo, ou supressãoda função na empresa, por necessidade doempreendimento econômico, o empregado queexercia a função que foi extinta poderá sertransferido para outra função compatível; se nãofor compatível ele poderá recusar a nova função.

Em sendo respeitados os direitos da quali-ficação profissional, o empregador pode exercero jus variandi, que é a faculdade patronal demodificar, por necessidade, as atividades do

trabalhador.

3.3 Da Alteração da Jornadade Trabalho

A mobilidade da prestação de serviços podeimplicar alteração da jornada de trabalho. Ajornada de trabalho pode estar prevista na lei,nos acordos e convenções coletivas de trabalhoou no contrato de trabalho, aplicando-se a regrageral no sentido de que qualquer modificaçãonão pode gerar, direta ou indiretamente, pre-juízo para o empregado.

A jornada de trabalho pode ser reduzida e alte-rada, na medida em que a Constituição Federal fa-culta a redução da jornada de trabalho e a com-pensação de horários no inciso XIII do artigo 7°.16

Na mesma linha a CLT dispõe sobre a possi-bilidade de compensação de horas de trabalho

(o denominado de “banco de horas”) no § 2°

do artigo 59.17

15 § 3o Em caso de necessidade de serviço o empregador poderá transferir o empregado para localidade diversa da queresultar do contrato, não obstante as restrições do artigo anterior, mas, nesse caso, ficará obrigado a um pagamentosuplementar, nunca inferior a 25% (vinte e cindo por cento), dos salários que o empregado percebia naquela localidade,enquanto durar esta situação.

16 XIII. Duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada acompensação de horário e a redução de jornada mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.

17 § 2o Poderá ser dispensado, sem acréscimo, de salário se, por força de acordo ou convenção coletiva de trabalho, oexcesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que nãoexceda, no período máximo de um ano, à soma das jornadas semanais de trabalho previstas, nem seja ultrapassado olimite máximo de 10 horas diárias.

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A r t i g o

O horário de trabalho sempre está sujeito a

alterações mais constantes, e nestes casos se faz

aparecer o jus variandi do empregador, pois ele

pode distribuir as horas de trabalho de acordo

com as necessidades do serviço, desde que o

empregado continue prestando a mesma quan-

tidade de trabalho, e não haja transposição do

trabalho diurno para o noturno ou vice-versa.

3.4 Alteração do Salário

Arnado Sussekind ensina que

“sendo o salário o principal, senão o único meio

de sustento do trabalhador e de sua família,

procurou a lei brasileira cercá-lo de proteção

especial de caráter imperativo, a fim de assegurar

o seu pagamento ao empregado, de forma

inalterável, irredutível, integral e intangível, no

modo, na época, no prazo e no lugar devido.

Outrossim, estabeleceu regras favoráveis ao

trabalhador no que tange à prova do pagamento

do salário e à ação para sua cobrança”.18

O salário não pode ser alterado de modo a

representar redução do valor pago ao empregado

– inclusive, o princípio da irredutibilidade

salarial está consagrado no artigo 7º, inciso VI,

da Constituição Federal.19

Questão importante é saber se a irredutibi-

lidade referida na Constituição Federal seria a

do salário nominal e jurídica ou do salário real

e econômica.

Amauri Mascaro Nascimento diz que

“a irredutibilidade do salário na dimensão econô-

mica é a regra que tem como destinatário o governo

e diz respeito à política salarial posta em prática.

Essa política não deve ser de molde a trazer para os

salários a sua desvalorização, a diminuição do seu

poder aquisitivo diante da elevação dos preços”.20

José Alberto Couto Maciel entende que

“quando o inciso VI do texto constitucional ga-

rante a irredutibilidade do salário, parte do prin-

cípio de que não é cabível ao empregador, du-

rante a relação de emprego, reduzir o valor no-

minal do salário de seu empregado, a não ser

nos casos de convenção ou acordo”,21 e ainda “que

a Constituição garante ao trabalhador a irredu-

tibilidade do salário nominal ou jurídico”.

Arnado Sussekind opina no sentido de que

“o preceito constitucional em foco não é auto-

aplicável no atinente à irredutibilidade real e

econômica do salário”.22

É proibida a redução direta ou indireta do salário,sendo que a primeira ocorre quando se diminui a

quantia paga ao empregado, e a segunda ocorre

quando são diminuídos os serviços do empregado,

principalmente quando o salário é por produção.

Quando é diminuído o salário sob condição,

não há que se falar em ilicitude, pois pode cessar

18 Instituições do direito do trabalho, p. 426.19 VI – Irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo.20 Direito do trabalho na Constituição de 1988, p. 123.21 A irredutibilidade do salário assegurada pela Constituição Federal, art. 7º, inciso VI, é a nominal ou jurídica e não a real,

ou econômica, Revista LTr, São Paulo, 1989, v. 55, p. 33.22 Irredutibilidade do salário, Revista LTr, São Paulo, 1989, v. 55, p. 137.

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D ireito A r t i g o

o pagamento do salário quando desaparecida a

condição. É o que ocorre, v. g., quando o em-

pregado exerce cargo de confiança, recebendo

gratificações da função, sendo que não é ilícito

deixar de ser paga a gratificação quando cessar

o exercício do cargo.

O mesmo acontece com as seguintes verbas:

com o prêmio que é pago se o empregado atingir a

condição imposta pela empresa – se não atingida,

ele não é devido; com o adicional de transferência

provisória, que pode ser retirado quando for cessada

a transferência; e com o adicional de insalubridade

e periculosidade, pois, cessando a causa nociva, o

adicional não precisa mais ser pago.

O salário pode sofrer redução, em face de

descontos previstos em lei ou acordo ou con-

venção coletiva, no sentido de se atingir três

finalidades: cumprimento de obrigação legal do

empregado, necessidade ou interesse do

empregado e interesse do empregador, enten-

dendo-se este como aquele destinado a cobrir

danos intencionais causados pelo empregado,

na forma consignada no artigo 462 da CLT.23

Importante destacar que o salário pode ser

reduzido por acordo ou convenção coletiva,

conforme dispõe o artigo 7º, inciso VI, da

Constituição Federal.24

4 ALTERAÇÃO DO CONTRATODE TRABALHO E A FLEXIBILIZAÇÃODO DIREITO DO TRABALHO

Como foi mencionado alhures, o artigo 468

da CLT consagra o princípio da condição mais

23 Art. 462. Art. 462. Art. 462. Art. 462. Art. 462. Ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo quando este resultarde adiantamentos, de disposição de lei ou de contrato coletivo. § 1o Em caso de dano causado pelo empregado, odesconto será lícito, desde que esta possibilidade tenha sido acordada ou na ocorrência de dolo do empregado.

24 VI – Irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo.25 Flexibilização no direito do trabalho, Revista Trabalho e Processo, n. 2, p. 45.

benéfica ou da inalterabilidade contratual que

cause prejuízo para o trabalhador, no entanto,

o rigor da norma consolidada tende a sofrer os

efeitos da teoria da flexibilização do Direito do

Trabalho.

Cássio Mesquita Barros Junior ensina que a

“flexibilidade do Direito do Trabalho consiste

nas medidas ou procedimentos de natureza

jurídica que têm a finalidade social e econômica

de conferir às empresas a possibilidade de ajustar

a sua produção, emprego e condições de

trabalho a contingências rápidas ou contínuas

do sistema econômico.”25

A Constituição Federal adotou a flexibiliza-

ção negociada do Direito do Trabalho, na me-dida em que permite, no artigo 7º, incisos VI,XIII e XIV a flexibilização de direitos através denegociação coletiva, ou seja, a modificação ouredução de direitos mediante a participação, nanegociação coletiva, do sindicato profissional,formalizada em convenção ou acordo coletivode trabalho.

Podemos destacar, também, a flexibilizaçãolegal, aquela que partiu do legislador, como, porexemplo, a que se refere a contratação de mão-de-

obra por empresas interpostas, nas hipótesesprevistas na Lei n. 6.019/74, e a possibilidade de sefirmar contrato de trabalho por prazo determinado,nas condições previstas na Lei n. 9.601/98.

Depreende-se que o artigo 468 da CLT éaplicável nas relações individuais de trabalho,

para o empregado e empregador, no entanto,

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BERNARDES, Hugo Gueiros. Direito do trabalho. SãoPaulo: LTr, 1989, v. I.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito dotrabalho. São Paulo: LTr, 2003.

GIGLIO, Wagner. Alteração do contrato de trabalho.Revista LTr, São Paulo, v. 47, 1983.

MACIEL, José Alberto Couto. A irredutibilidade do salárioassegurada pela Constituição Federal, art. 7o, inciso VI, éa nominal ou jurídica e não a real, ou econômica. RevistaLTr, São Paulo, v. 55, 1989.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito do trabalho

na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989.

———. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Saraiva,

1989.

RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à CLT. Rio

de Janeiro: Forense, 1990, v. I.

SAAD, Eduardo Gabriel. Consolidação da Leis do Traba-

lho comentada. 23. ed. São Paulo: LTr, 1993.

SUSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de direito do

trabalho. São Paulo: LTr, 2002, v. I.

———. Irredutibilidade do salário. Revista LTr, São Paulo,v. 55, 1989.

nas relações coletivas de trabalho, através de

negociação coletiva (flexibilização negociada),

mesmo sendo modificação prejudicial ao empre-

gado, não se aplica a regra consolidada.

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A GARANTÍA DEL DEBIDO PROCESOY EL PLAZO RAZONABLEDE SU SUSTANCIACIÓN

Eduardo M. Martínez AlvarezVice, rrector Académico de la Universidad del Museo Social Argentino.Profesor Titular de Derecho Procesal-Parte General y Civil-Comercial y

Seminario I del Doctorado en Derecho y Ciencias Sociales (UMSA).Juez de la Cámara Nacional de Apelaciones en lo Civil (Buenos Aires, Argentina).

1 OBJETIVOS

Sólo puede ser garantizada la efectiva tutela

de los derechos si media la posibilidad de acceder

a un proceso judicial que sea susceptible de ser

finalizado en un plazo razonable.

Por lo demás, el justiciable tiene derecho a

obtener una rápida solución definitiva, que se

compadezca con la complejidad de la causa y el

objeto de proceso.

El maestro Morello viene bregando desde

hace tiempo para encontrar soluciones apli-

cables en nuestro procedimiento a estos fines.

En desbordante producción doctrinaria, el

incansable jurista propugna también un cambio

de mentalidad para arribar a un modelo de

justicia funcional a tono con los cambios sociales

operado.1

Compartimos sus lamentos acerca de las

interminables cuestiones de competencia, del

abuso del proceso, del vetusto régimen de notifi-

caciones, de los pliegues y repliegues de las ca-

ducidades de instancia, de la perniciosa habi-

tualidad de recurrir sin cumplir con los requisitos

rituales simultáneos o posteriores y sólo para

dilatar el procedimiento, de la cada vez más

lubricada “máquina de impedir” que sólo sirve para

“burlar el mandato constitucional de afianzar la

justicia”, en uso de una celebrada frase del Dr Fayt

(C.S.J.N., Fallos: 300-1102). Es, lamentablemente,

la realidad acuciante y nada de lo que espera el

afligido justiciable: un Poder Judicial moderno,

bien dotado, tanto en sus recursos humanos como

en los técnicos, ágil y efectivo.

Como remate de estas cavilaciones de quien

ya transita la cuarta década en los tribunales de

la Nación y que recorrió casi todos los escalones

de la carrera judicial, otra amarga queja del

acusadillo de la escuela procesal platense: “todo

esto huele a rancio, a anacrónico y disfuncional”.

Otro obstáculo para arribar a una más rápi-

da decisión de mérito es el principio dispositivo

tal como hoy se concibe. El interés general re-

clama la atenuación del sistema dispositivo,

1 Morello, M. A., “El derecho en el inicio del siglo XXI”, en J.A. 2001-III-921. “Avances procesales” Rubinzal-Culzonieditores, 2003. “El derecho a una rápida y eficaz decisión judicial”, E.D. 80-743.

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permitiendo un protagonismo del juez para

llegar a una justa composición del conflicto. No

se concibe actualmente el proceso civil como

una cuestión de las partes frente a un juez

neutral que se limita a dejar-las hacer.2

A tono con lo expuesto y porque justicia

tardía no es justicia si no injusticia manifiesta ycalificada, el nuevo articulo 15 de la Consti-

tución de la Provincia de Buenos Aires garantizauna tutela judicial efectiva a la vez que exige

que las causas se decidan en tiempo razonable,constituyendo falta grave el retardo en el dictado

de las sentencias y las dilaciones indebidas. Eneste orden de razonamiento, nuestro ordena-

miento adjetivo civil y comercial nacional

impone a los jueces de todas las instancias los

deberes de “vigilar para que en la tramitación

de la causa se procure la mayor economía

procesal” (art. 34, inc. 5°, apart. E) y de “tomar

medidas tendientes a evitar la paralización del

proceso”. A tal efecto,”se haya ejercido o no la

facultad que corresponda, se pasará a la etapa si-

guiente en el desarrollo procesal. disponiendo las

medidas necesarias” (art. 36, inc. 1° del Cód. cit.).

La celeridad y seguridad jurídica fueron

también fundamento de las reformas introdu-

cidas por la Ley n. 22.434, que supeditaba para

ello la nunca conseguida (ni tampoco procu-

rada) proporcionada relación entre la cantidad

de las causas en trámite y el número de jueces

que deben sustanciarlas y decidirlas (cf. Mensaje

de Elevación de diciembre de 1979).

Infelizmente y por iguales motivos no supera-

dos, las reformas recientemente incorporadas

por la Ley n. 25.488 (B.O 22/11/01) correrán

malhadada suene y el justiciable seguirá penan-

do en procura de una siempre lejana decisión

de fondo definitiva.

Pero como nos encontramos en un mundo

en el cual todo está globalizado, la ineficiencia

en los procesos judiciales también lo está y lo

comprobaremos a continuación.

2 DERECHO COMPARADO

En doctrina3 se trae a colación del delicado

tema del “plazo razonable” las consideraciones

que realiza el Tribunal Europeo de Derechos

Humanos (TEDH), el Tribunal Constitucional

Español (TCE) y la Corte Interamericana de

Derechos Humanos (CIDH).

2.1 Tribunal Europeo de DerechosHumanos (TEDH)

A) Caso König (sentencia del 28 de junio de

1978). Trató el tema de un profesional de la

medicina que había sido inhabilitado para ejercer

por los tribunales alemanes. Apeló en 1967 y en

1971. Recurrió con posterioridad ante los

árganos del Convenio por excesiva demora de la

justicia alemana y violación del art. 6.1 del Con-

venio Europeo para la protección de los Dere-

chos Humanos y las Libertades Fundamentales

(Roma: 4-1-1950), que contempla el derecho de

toda persona a que su causa sea oída equitativa y

públicamente y que la sentencia sea pronunciada

dentro de un plazo establecido por la ley.

El TEDH hizo lugar al reclamo considerando

que los tribunales alemanes suspendieron la

causa sin justificativo atendible durante 21 meses.

2 Martinez, Oscar José, “Las nuevas herramientas procesales y tecnológicas...”, en Revista del Colegio de Abogados de LaPlata, año XL-61, p. 237 y sigs., enero-diciembre de 2000.

3 Morello, M.A., “El proceso justo. Del garantismo formal a la tutela efectiva de los derechos”. Librería Editora Platense,Abeledo Perrot, 1994.

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B) Caso “Zimerman y Steiner” (sentencia del

13 de julio de 1983). Se trató la causa de dos

ciudadanos suizos que alquilaron sendos depar-

tamentos en las inmediaciones del aeropuerto

de Zürich y que reclamaron una indemnización

por polución auditiva y respiratoria. El reclamo

se inició en agosto de 1975 y la Comisión

Federal de Valoración lo rechazó en octubre de

1976. En abril de 1977 recurrieron ante el Tri-

bunal Suizo. Pidieron pronto despacho en sep-

tiembre de 1978, marzo de 1979 y junio de

1980. La sala I del referido tribunal con las per-

tinentes disculpas por la tardanza al 15 de octu-

bre de 1980 desestimó el recurso. Los peti-

cionarios reclamaron ante la Comisión que los

tres anos largos transcurridos en la justicia suiza

no podían ser considerados como “plazo razo-

nable”. Aquélla resolvió por unanimidad que

se había violado el art. 6.1. el 9 de marzo de

1982. El TEDH, en julio de 1983, estableció la

responsabilidad del Estado Suizo por considerar

que: 1) no había “complejidad del litigio”; 2)

quo no existió retardo en la “conducta de los

demandantes” y si en el de las autoridades judi-

ciales suizas y 3) lo que “arriesgaban y ponían

en juego las accionantes”.

2.2 Tribunal Constitucional Espanol

“Recurso de amparo interpuesto contra la

Universidad Complutense”. Esta no remitió en

tiempo un expediente. La Sala II Cont. Adm.

de la Audiencia territorial de Madrid demoró

más de un año en despacharlo, lesionando al

pretendiente (ABC) en su derecho constitucio-

nal de obtener una tutela efectiva de los jueces

(art. 24.1 de la C.E. que preceptúa que la juris-

dicción debe prestarse en plazo razonable, y el

art. 24.2 de la C.E. la reafirma al consagrar un

proceso público sin dilaciones indebidas y con-

sideró que no existía complejidad justificadora

del retraso judicial ni demora de la parte (art. 6.1.

del Convenio Europeo).4

2.3 Corte Interamericana deDerechos Humanos (CIDH)

Constituyen normas rectoras en el tema del

“plazo razonable” los arts. 8.1 y 25.1 de la Con-

vención Americana sobre Derechos Humanos

(Pacto de San José de Costa Rica de julio de 1978)

que afirman “el derecho de las personas a ser

oídas, con las garantías y dentro de un plazo

razonable, por un juez o tribunal competente...”

y el de acceder “a un recurso sencillo y rápido o

a cualquier otro recurso efectivo ante los jueces

o tribunales competentes que la amparen contra

actos de la autoridad que violen, en perjuicio

suyo, algunos de los derechos fundamentales

consagrados constitucionalmente”.

2.3.1 Caso Cantos, José Maria, Del 28de Noviembre de 2002

En 1972, el actor planteó diversas acciones,

denuncias penales y reclamos administrativos,

en virtud de que Rentas de la Provincia de San-

tiago del Estero secuestró por presunta infrac-

ción a la ley de sellos – la totalidad de la docu-

mentación contable y numerosa cantidad de

títulos valores, sin practicar inventario, lo que

provocó serias perjuicios al actor. Éste, en 1982,

llegó a un acuerdo con esa provincia, quien re-

conoció una indemnización pero incumplió su

pago. Demandada la provincia y el Estado Na-

4 Aut. Y ob. cit..: “La terminación del proceso en un plazo razonable (el factor tiempo en la eficacia del servicio dejusticia)”, p. 367 y sigs.).

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cional en 1986, la Procuración del Tesoro auto-

rizó un acuerdo transaccional con el Ministeriodel Interior ante la Corte en 1993, éste la intimóa pagar una tasa judicial de 83 millones de pesos,bajo pena de multa. En 1996, la CSJN rechazó lademanda y le impuso las costas a Sr. Cantos por145 millones. En 1997, la Corte lo inhabilitó paraejercer el comercio después de 24 años de procesoy le trabó embargo por los honorarios reguladosen el proceso. En mayo de 1996, Cantos denun-ció ante la CIDH la violación de sus derechos depropiedad y de acceso a la justicia. EI 28 deseptiembre de 2002, la CIDH condenó a la Re-pública Argentina por violación del derecho deacceso a la justicia, decidiendo que el Estadoargentino debe abstenerse de cobrar la tasa dejusticia y la multa por falta de pago; fijar un montorazonable por los honorarios: asumir el pago delos honorarios y las costas de los peritos yabogados del Estado y de la Provincia de Santiagodel Estero; levantar los embargos, inhibición einhabilitación sobre Cantos y pagar los gastos delproceso internacional ante la CIDH a los repre-sentantes de la victima por U$S 15.000. Sin em-bargo, consideró que la conducta procesal deCantos, desde diciembre de 1989 hasta febrerode 1995, contribuyó por su inactividad a prolon-gar indebidamente la duración del pleito, por locual no existió violación del derecho a obtener

justicia en un plazo razonable.

El 21 de agosto de 2003, por Resolución

n. 1.404/2003 (cf. LL. ejemplar del día 16.09.03)tras las presentación efectuada por el Procura-

dor del Tesoro de la Nación, a fin de que la CSJN

instrumente el cumplimiento de la sentencia

de la CIDH, el Tribunal cimero, por mayoría,

declina la intervención requerida por conside-

rar, entre otros argumentos, la posible infrac-ción de cláusulas de raigambre constitucional

cuya titularidad corresponde a los profesionalesintervinientes, quienes no fueron parte en elproceso desarrollado en instancia internacionallo que llevaría a la inicua y paradójica situaciónde hacer incurrir al Estado Argentino en respon-sabilidad internacional por afectar garantías yderechos reconocidos, precisamente, en elinstrumento cuyo acatamiento se invoca.

2.4 Corte Suprema de Justiciade la Nación Argentina

Por normas rectoras en nuestro derecho elpropósito preambular constitucional de “afianzarla justicia” y el art. 18 de la Ley Fundamental, 8ºdel Pacto de San José de Costa Rica y 6º delTratado de Roma, además de los ya referidosartículos 34, inc. 5o, ap. e) v 36, inc. 1o del CPCCN.

EI Alto Tribunal reconoció el peso de ladimensión temporal en las causas sometidas asu conocimiento (FALLOS: 300-1102). Consi-deró asimismo, que la buena marcha de lasinstituciones compromete el sentido de unacorrecta administración de justicia, por lo quedebe procurarse una rápida y eficaz decisiónjudicial (FALLOS: 256-941).

Reafirmó, también, que la garantía de la de-fensa en juicio no se compadece con la posibi-lidad de que las sentencias dilaten sin más tér-mino la decisión de las cuestiones sometidas alos jueces y se restringen con igual latitud la libre

disposición del patrimonio (FALLOS: 269-131).5

3 TEST DE EFICACIA JUJDICIAL

DE LA CIDH

Siguiendo en la ponderación del plazo

razonable a la Corte Europea de Derechos Hu-

5 Más sobre el tema, en el trabajo de la cita n. 4, p. 376 y sigs.

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manos, la Corte de Costa Rica adaptó el si-

guiente test para examinar las irregularidades

temporales en el trámite de los recursos:

a) la “complejidad Del asunto”. Resulta

obvio, que debe tenerse en cuenta además

el número de rojas, cuerpos, anexos,

circunstancias de la causa. La ClDH exige,

por otra parte, que el Estado explique y

pruebe los extremos que lo llevaron a

demorar más tiempo del razonable para

arribar a la decisión de fondo.

b) la “actividad procesal del interesado”.

Ésta debe ser diligente, activa, carente

de maniobras dilatorias, instrumentan-

do sólo los actos procesales necesarios y

en actitud solidaria con el Tribunal.

c) la “conducta de las autoridades compe-

tentes”. Ésta debe ajustarse a los tiempos

contemplados en las normas adjetivas y

6 Berizonce, R.D.: “El activismo de los jucces”, LL 1990-E-941.

sustantivas, en su caso, para determinar sihubo o no transgresión del plazo razona-ble, sin considerar como atenuante la so-brecarga de trabajo de los tribunales o lashabituales falencias humanas o técnicas.

4 CONCLUSIÓN

De lo expuesto, se extrae que el procesocivil debe finalizar en un plazo razonable, sindesmedro que el pronunciamiento que en defi-nitiva recaiga, se ajuste a derecho, sea debida-mente fundado y equitativo.

Es que, como lo recuerda Berizonce, remi-tiendo a inveterada doctrina de la Corte Federal“hacer justicia, misión específica de los magis-trados, no importa otra cosa que la recta deter-minación de lo justo en concreto”,6 agregandode mi cuño, y que la decisión jurisdiccionalarribe cuando verdaderamente importe.