Imigrantes Haitianos e Africanos No Brasil

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Imigrantes haitianos e africanos são explorados em carvoarias e frigoríficos Estudo recém-divulgado estima que, até o fim deste ano, haverá cerca de 50 mil de cidadãos do Haiti no Brasil POR MARIANA SANCHES 17/08/2014 7:00 / ATUALIZADO 17/08/2014 14:45 O Haitiano Ivon Belisarie na carvoaria: trabalho degradante e quilos a menos - Fernando Donasci / O Globo PUBLICIDADE PUBLICIDADE

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Imigrantes haitianos e africanos são explorados em carvoarias e frigoríficos

Estudo recém-divulgado estima que, até o fim deste ano, haverá cerca de 50 mil de cidadãos do Haiti no

BrasilPOR MARIANA SANCHES

17/08/2014 7:00 / ATUALIZADO 17/08/2014 14:45

O Haitiano Ivon Belisarie na carvoaria: trabalho degradante e quilos a menos - Fernando Donasci / O Globo

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CASCAVEL e MARINGÁ (PR) - O suor que escorre pelo rosto se junta à poeira negra do carvão e

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tinge a face e os braços de Ivon Belisarie. A fuligem avermelha seus olhos. Desde que chegou ao Brasil, há dois anos e meio, de segunda a sábado, das 8h às 17h, o imigrante haitiano corta madeira, abastece fornos que produzem carvão vegetal e ensaca o produto que será enviado a centros urbanos do país, numa carvoaria em Maringá (PR). Ele não se senta um minuto. Emagreceu tanto que está abaixo do peso.

No terremoto de 2010, além de nove parentes, Ivon perdeu o patrão, um empresário haitiano do ramo de arroz para quem trabalhava como motorista havia 15 anos. Percebeu então que a permanência no Haiti ficara inviável. Trocou o conforto do ar-condicionado de veículos esportivos pelo calor, a poeira negra e a insalubridade da carvoaria. E a companhia ruidosa dos filhos pela solidão de sequer ter dinheiro para telefonar para casa.

Dos dez haitianos que vieram com Ivon de Manaus para o Paraná, atraídos pela possibilidade de reconstruir a vida, ele é o único que continua na carvoaria. Em troca, recebe cerca de R$ 950.

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VEJA TAMBÉM Em São Paulo, imigrantes têm ofertas de emprego,

mas seleção lembra mercado de escravos No Paraná, com música e culinária haitianas,

imigrantes lembram-se de casa

VÍDEO Vídeo mostra rotina de imigrantes no país

— Deixei a mulher chorando, com um bebê no colo e mais duas crianças pelas mãos, e vim buscar dinheiro no Brasil. Tenho responsabilidade com a minha família, não podia ficar sem trabalho — conta o haitiano, que chegou a racionar comida para enviar cerca de US$ 300 aos parentes no Haiti.

Desrespeito a normas do trabalho

A 230 quilômetros da carvoaria, num frigorífico em Cascavel (PR), 380 migrantes haitianos fazem, cada um, cerca de 90 movimentos por minuto para desossar frangos e pendurar galinhas. Por um salário mensal de cerca de R$ 1 mil, suportam a rotina de oito horas e 48 minutos diários sob um frio de nove graus, temperatura abaixo do limite de 12 graus estabelecido pelo Ministério do Trabalho.

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Trabalho degradante, insalubre e de baixa remuneração em empresas de setores que, frenquentemente, figuram na lista suja do trabalho escravo têm sido o destino final de haitianos e africanos que enfrentam uma travessia dispendiosa e arriscada, muitas vezes patrocinadas por coiotes, para chegar ao Brasil. E não são poucos. Um estudo recém-divulgado pelo demógrafo Duval Fernandes, da PUC-MG, estima que, até o fim deste ano, haverá cerca de 50 mil haitianos no país. Junto a senegaleses, nigerianos e bengaleses, eles têm se engajado em funções que não requerem qualquer nível educacional, e recusadas por brasileiros.

— O trabalho em frigorífico é extremamente penoso. Em três meses, o trabalhador já começa a adoecer porque não há ser humano que suporte tanto movimento repetitivo em temperatura tão baixa. Esse trabalho não interessa mais aos brasileiros. Há uma analogia entre a situação desses migrantes aqui e a dos hispânicos que lotam frigoríficos nos Estados Unidos. Só que aqui a exploração é maior — afirma o procurador do

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trabalho Heiler Natali, responsável pela vistoria dos frigoríficos.

Estrangeiros trabalhando no corte de frango na Coopavel, frigorifico da região que contratou 380 haitianos para auxiliar de produção. - Fernando Donasci

A história que os imigrantes contam é de promessas não cumpridas sobre salários e alojamentos.

— A coisa mais usual é que ele achem que vão ganhar US$ 2 mil por mês. São enganados e também não entendem a lógica dos impostos sobre o salário — afirma Fernandes.

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O haitiano Marcelin Geffrard diz ter sido enganado por um

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supermercado que o levou do Acre a Cascavel:

— Me prometeram quase R$ 900. Quando cheguei ao Paraná, o salário era menor. Com os descontos, dava só R$ 600. Isso não dava para comida e aluguel, e ainda tinha que mandar dinheiro para a minha filha, no Haiti. O alojamento era sujo, camas quebraram, e a gente tinha que dormir no chão.

Em dois meses, dez quilos mais magro

Em dois anos, Geffrard, pedagogo, com curso de arquiteto inacabado e domínio de cinco idiomas, mudou de emprego cinco vezes. Hoje, trabalha como cobrador de ônibus. Aos fins de semana, faz bicos em uma pizzaria para complementar a renda. Afirma que, apesar da longa jornada de trabalho, está muito melhor hoje do que em outras ocupações:

— O pior lugar em que trabalhei foi o frigorífico. Ali aguentei só 45 dias. Fazia horas extras, mas nunca recebi por elas. Em menos de dois meses, perdi dez quilos. Muitos colegas ficaram doentes, mas os

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frigoríficos não aceitam atestado e descontam o dia, se você vai ao médico. Então, os haitianos preferem cair no chão doentes no meio da fábrica a ir a um hospital.

A reclamação não é isolada. No começo do ano, haitianos participaram de uma greve em um frigorífico de Maringá. Exigiam aumento, pagamento de horas extras e fim da jornada aos sábados. Suas reivindicações acabaram atendidas pelo empresário, diante da ameaça de pedidos de demissão em massa. Haitianos e africanos se tornaram hoje peças fundamentais para a produção avícola do país.

— Sem eles, eu estaria com 20% da indústria parada — afirma Aguinel Marcondes, gerente de recursos humanos da Coopavel, indústria que produz 195 mil frangos por dia e cujo faturamento em 2013 foi de R$ 1,6 bilhão.

Marcondes prossegue:

— Hoje a oferta de trabalho está grande, e não há mão de obra para suprir as necessidades dos empresários. O próprio governo sentiu isso e abriu as portas para

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esses imigrantes. Sem eles, o país não cresceria o que deveria.

Haitiano custa menos do que chinês

A dificuldade para preencher vagas nessas indústrias com brasileiros não é a única vantagem na contratação de quem chega de fora. Os empresários têm enxergado neles, sobretudo nos haitianos, uma oportunidade para reduzir seu custo de produção. Uma pesquisa feita pelo economista britânico Paul Collier, para a Organização das Nações Unidas (ONU), mostrou que, em 2009, o Haiti tinha um grande excedente de mão de obra qualificada. Segundo o estudo, o trabalhador haitiano custava mais barato do que o chinês. Após o terremoto que atingiu o país, em 2010, o excedente de mão de obra aumentou. E esses trabalhadores começaram a desembarcar no Brasil.

Além de frigoríficos e carvoarias, eles começaram a ser empregados em massa na construção civil. A situação chamou a atenção do Ministério Público do Trabalho do Paraná, que investiga denúncias

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dos sindicatos locais de que empreiteiras têm sido constituídas apenas para contratar esses imigrantes. Elas preenchem as folhas da carteira de trabalho, mas jamais registram o trabalhador efetivamente.

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Haitianos e africanos descobrem a fraude meses depois, quando o contrato termina, e eles não têm direito à rescisão e ao seguro-desemprego, ou quando sofrem acidentes e não contam com cobertura do INSS. Eles também receberiam menos do que o piso da categoria e cumpririam jornadas de trabalho superiores ao limite estabelecido pela legislação.

Foi o que aconteceu em Conceição do Mato Dentro (MG), onde cem haitianos trabalhavam na construção de um mineroduto da empresa Anglo American. O fiscal do trabalho que atuou no caso relatou que o alojamento deles lembrava uma senzala. A comida fornecida era de baixa qualidade, o que teria provocado hemorragias estomacais.

Para tentar se defender, em Cascavel, onde há pelo menos 1,5

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mil haitianos, eles criaram há dois meses a Associação de Defesa dos Direitos dos Imigrantes Haitianos. A entidade já ganhou uma ação contra um frigorífico que demitiu uma haitiana grávida e obteve acordo com uma empreiteira que não havia pago verbas rescisórias.

Leia mais sobre esse assunto

em http://oglobo.globo.com/brasil/imigrantes-haitianos-africanos-sao-

explorados-em-carvoarias-frigorificos-13633084#ixzz3lwBP5QQ7 

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Imigrantes sim, mas de que

cor?

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Alex CastroMundo

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COMENTÁRIOS

Nossos atuais Mecenas:

O Brasil gosta de se imaginar uma nação aberta, hospitaleira, sem preconceitos. Sua ficha corrida, entretanto, conta outra história.

Hoje, mais rico e mais importante, assumindo um lugar de maior peso no mundo, ainda há tempo para o Brasil mudar suas atitudes.

Nossas atitudes.

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Imigrantes de ontem e de hoje.

Nem todos as pessoas que imigram são iguais

No começo do século XX, em uma tentativa de embranquecer a população, de dinamizar a economia e de ocupar regiões até então quase desabitadas, o governo brasileiro estimulou fortemente a imigração estrangeira. Com limites, claro.

Já de cara, em 1891, se proibiu a imigração de pessoas nativas da África e da Ásia. Depois de ferozes debates, a lei foi revogada em 1907, abrindo passagem para a imigração japonesa, mas outros grupos "indesejáveis", como árabes do norte da África ou chineses, encontraram forte resistência.

Em 1921, em resposta a um anúncio veiculado em diversos jornais, prometendo passagens, acomodacões e crédito de longo prazo para agricultores dos Estados Unidos que desejassem se estabelecer no Brasil, formou-se uma companhia de colonização chamada "Brazilian American Colonization Sindicate" (BACS). O governo do Mato Grosso já tinha até lhes concedido enormes concessões de terras, que foram

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prontamente canceladas quando se descobriu um detalhe desagradável:

As pessoas do grupo, pasmem, eram negras!

Sufocadas pela atmosfera racista segregacionista dos EUA, essas pobres pessoas estavam convencidas de que o Brasil era a verdadeira democracia racial que dizia ser, onde não havia linha de cor e onde pessoas brancas e negras eram iguais perante a lei.

Obviamente, nunca tinham estado no Brasil – e jamais estariam: o Itamaraty negou visto a todas as pessoas integrantes da companhia.

Como Brasil e EUA tinham um tratado de imigração que dava às pessoas norte-americanas, independente de raça, etnia ou religião, o direito de entrar e se estabelecer no Brasil, a BACS exigiu que o nosso governo justificasse a proibição.

Em público, o Itamaraty se refugiou na afirmação de que a política imigratória brasileira era soberana e não podia ser questionada por governos ou pessoas estrangeiras.

Em privado, entretanto, o Itamaraty enviou memorandos confidenciais a todos os consulados brasileiros nos EUA deixando bem claro qual tipo de imigrante proveniente dos Estados Unidos era desejável e qual não era.

Chega a ser antibrasileiro que o governo tenha tido que ser assim tão explícito em seu racismo!

Charge do sempre brilhante Carlos Latuff. O Brasil lidera a missão da ONU no Haiti.

Aquele raro momento quando se fala o que realmente se pensa

Nossos representantes eleitos, entretanto, não foram tão diplomáticos.

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Fidélis Reis, deputado por Minas Gerais, propôs um projeto de lei vetando a imigração de pessoas negras, limitando a de asiáticas e estimulando a de brancas. Eis o que ele disse, na plenária, em 1923:

“Quando então pensamos ... na possibilidade próxima ou remota da

imigração do preto americano para o Brasil é que chegamos a

admitir a eventualidade da perturbação da paz no continente. ... O

nosso preto africano, para aqui veio em condições muito diferentes,

conosco pelejou os combates mais ásperos da formação da

nacionalidade, trabalhou, sofreu e com sua dedicação ajudou-nos a

criar o Brasil. ... O caso agora é iminentemente outro. E deve

constituir para nós motivo de sérias apreensões, como um perigo

iminente a pesar sobre nossos destinos.”

(grifos meus)

Pela fala do deputado, dá até a impressão de que o "nosso preto africano" veio por vontade própria ao Brasil, voluntariamente trabalhar e sofrer por nossa pátria; e que o tal "perigo iminente" que causava "apreensão" era justamente o fato de as pessoas negras norte-americanas, essas canalhas, estarem vindo em busca de democracia racial, onde já se viu?!

Sobre o projeto do deputado Fidélis, opinou também o ilustre romancista e presidente da Associação Brasileira de Letras Afrânio Peixoto, no mesmo ano:

“É neste momento que a América pretende desembaraçar-se do seu

núcleo de 15 milhões de negros no Brasil? Quantos séculos serão

precisos para depurar-se todo esse mascavo humano? Teremos

albumina suficiente para refinar toda essa escória? Não bastou a

Libéria, descobriram o Brasil?”

(grifos meus)

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Para o grande e generoso acadêmico, basta ser uma pessoa ser negra para ser escória, mas, tudo bem, nada que albumina não resolva. Afirma um agricultor, Antonio Americano do Brasil:

“Já não teríamos para a lavoura as gentes simples, que foram os

primitivos africanos da escravatura, facilmente identificando-se com

a terra. Os negros de hoje viriam dos Estados Unidos, ... elementos

cheios de defeitos, carregando o ódio ao branco que os tem

perseguido, possuindo apurados vícios que não tiveram os antigos

escravos.”

(grifos meus)

Deixando de lado a patente nostalgia da escravidão, quais serão esses "defeitos" e "vícios" que traz essa "escória mascava" norte-americana? Quem responde é o grande historiador Oliveira Lima, também promotor da imigração europeia como forma de branquear o Brasil:

“... estes, que nos ameaçam vir da América, se acham modelados por

uma civilização superior, falando uma língua própria e tendo um

sentimento de altivez e agressividade, natural no meio em que vivem

e que não possuíam os africanos que para cá vieram, em outros

tempos da costa da África. Esses, pela inferioridade de sua

civilização, fundiram-se com os brancos superiores; quem nos dirá

que farão o mesmo os negros americanos? Mas se se conservarem

“infusíveis”, nesse caso teremos mais um perigo político a nos

ensombrar os destinos. Se se fundirem, nesse caso teremos

aumentado a massa informe de mestiçagem inferior que tanto

retarda nosso progresso.”

(grifos meus)

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Ou seja, segundo o sensível e digníssimo intelectual, os "defeitos" e "vícios" que trazem as pessoas negras norte-americanas é justamente serem pessoas cidadãs, orgulhosas e altivas, conscientes de seus direitos.

Cruzes, o Brasil quer distância dessa gente!

(A fonte da história acima é o artigo “Dos Males que Vêm com o Sangue: as Representações Raciais e a Categoria do Imigrante Indesejável nas Concepções sobre Imigração da Década de 20”, de Jair Souza Ramos, no livro Raça, Ciência e Sociedade. (Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996), organizado por Marco Chor Maio.)

Alojamento de imigrantes haitianos na fronteira do Brasil.

Nunca tivemos leis racistas. E daí?

O Brasil sempre precisou de braços estrangeiros, mas existem

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braços e braços. Quem até ontem era importada e comprada por muito dinheiro hoje não é desejada nem de graça.Já em 1890, meros dois anos após a Abolição e no primeiro ano da nova e democrática e cidadã república, o Brasil proibia explicitamente a imigração de pessoas africanas. A lei seria complementada e reforçada em 1920 e 1930, para proibir não apenas as pessoas africanas, mas também qualquer pessoa que se parecesse com elas.No Brasil, como diz o ditado racista, nunca precisamos de leis de segregação racial porque "os negros sabem o seu lugar". De fato, nosso país sempre foi tão racista que as leis nunca precisaram ser: basta colocar as coisas de forma vaga e confiar no nosso racismo histórico. (Como no caso dos memorandos confidenciais do Itamaraty, só em último caso é necessário ser explícito e, mesmo nesses, discretamente.)Texto de um decreto-lei de 1945, só revogado na década de 1980:

Art. 1o – todo estrangeiro poderá, entrar no Brasil desde que satisfaça as condições estabelecidas por essa lei.Art. 2o – atender-se-á, na admissão de imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia, assim como a defesa do trabalhador nacional.(grifos meus)

(As informações do trecho acima vieram do artigo "A Caixa Econômica Federal, a política do branqueamento e a poupança dos escravos", de Ana Maria Gonçalves, autora do magistral romance Um defeito de Cor. Recomendo a leitura do romance, do artigo, de tudo mais que a Ana escrever.)

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O Haiti pede socorro. Charge de Latuff.

Haiti no Brasil hoje

Se você está respirando aliviada, pensando, "ufa, ainda bem que o Brasil não é mais assim", pense duas vezes, amiga leitora.Em 2010, o Haiti foi destruído por um terremoto e, posteriormente, ocupado por tropas da ONU lideradas pelo Brasil. As dificuldades do pós-terremoto, um contato mais próximo com as forças armadas brasileiras e a boa fase da nossa economia causaram a maior onda migratória ao país em mais de um século.O Haiti, vale lembrar, foi a segunda nação independente das Américas, quando as pessoas negras escravizadas conduziram a primeira e única rebelião escrava em larga escala bem-sucedida da História, queimaram os engenhos de açúcar, mataram todas as pessoas brancas e derrotaram os exércitos da Grã-Bretanha, França e Espanha. (Textinho sobre isso aqui.)Nos últimos anos, o número de pessoas imigrando para o Brasil só faz crescer: as principais nacionalidades incluem bolivianas, chinesas, peruanas, paraguaias e coreanas, a maioria trabalhadoras não-qualificadas.

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Enquanto isso, milhares de pessoas haitianas, muitas delas qualificadas, são barradas em nossas fronteiras, gerando manchetes claramente sensacionalistas, repletas de palavras negativas como "ilegais", "crise", "sofre", "invasão", etc: "Ilegais provocam crise humanitária no Acre" e "Acre sofre com invasão de imigrantes do Haiti".Nosso entranhadíssimo racismo anti-negro consegue ganhar até mesmo da nossa constitutiva ojeriza anti-hispânica.(Para saber mais, recomendo a monografia de graduação de Jenny Télémaque para o curso de comunicação da UFRJ, "Imigração haitiana na mídia brasileira:   entre fatos e representações".  A autora, que já foi tema de matéria do jornal Extra, é haitiana e estudou no Brasil graças a um convênio da UFRJ com a embaixada brasileira no Haiti.)

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Todas as pessoas deveriam poder ser brasileiras

Somos ou não somos o país do futuro, hospitaleiro e desejável, onde as aves não gorjeiam como lá, uma democracia racial onde se plantando tudo dá? Temos ou não temos uma densidade populacional baixa e gigantescas áreas vazias e inexploradas?Temos a mesma área que os Estados Unidos continental, e cem milhões de pessoas a menos.Mais pessoas no Brasil não quer dizer "mais gente mamando no bolsa família", e sim mais gente gerando riqueza para todos.Somos um país de imigrantes. Qualquer pessoa que queira ser brasileira deveria poder ser.Hora de abrir as porteiras.* * *Esse texto foi reescrito e republicado em janeiro de 2014, para melhorar a argumentação, excluir trechos fracos e

tornar a linguagem menos sexista. Confira aqui minhas dicas pessoais sobre como escrever de forma menos sexista.

Imigrantes haitianos com suas recém-obtidas carteiras de trabalho brasileiras.

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* * *

Outrofobia: Textos Militantes

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Esse texto faz parte do meu livro Outrofobia: Textos Militantes, publicado pela editora Publisher Brasil em 2015. São textos políticos, sobre feminismo e racismo, transfobia e privilégio, feitos pra cutucar, incomodar, acordar.

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Se você gostou do que eu escrevo, então, dá uma olhada no livro: custa só trinta reais e deve ter mais coisa que você vai gostar também.

Racismo contra imigrantes no Brasil é constante, diz pesquisadorJefferson Puff - @_jeffersonpuffDa BBC Brasil no Rio de Janeiro

26 agosto 2015Compartilhar

Image copyrightConectas.orgImage captionHaitianos em São Paulo; 'A noção de que o Brasil é um país hospitaleiro, onde todos os imigrantes são bem-vindos, não passa de um mito', disse pesquisador

"A noção de que o Brasil é um país hospitaleiro, onde todos os estrangeiros e imigrantes são bem-vindos, não passa de um mito", diz o pesquisador Gustavo Barreto, após analisar mais de 11 mil edições de jornais e revistas entre 1808 e 2015.

Em tese de doutorado defendida recentemente na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), ele concluiu que o racismo na imprensa brasileira contra o imigrante se manteve constante, apesar dos avanços, e que a aceitação é seletiva, com diferenças entre europeus e africanos, por exemplo.Na tese Dois Séculos de Imigração no Brasil: A Construção da Identidade e do Papel dos Estrangeiros pela Imprensa entre 1808 e 2015, Barreto analisou a cobertura do tema em jornais como O Globo, O Estado de S. Paulo, Folha da Manhã (hoje Folha de S. Paulo), Correio da Manhã, O País e Gazeta do Rio de Janeiro ao longo de 207 anos.

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Leia mais: Sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki lutam contra energia nuclear no BrasilLeia mais: Imigrantes brasileiros fogem de crise e voltam ao Reino UnidoLeia mais: Polícia caça grupos que pregam intolerância no Facebook

Image copyrightBBC BrasilImage captionGustavo Barreto: discriminação e racismo na imprensa brasileira vêm de séculos

Em entrevista à BBC Brasil, ele explica como os termos são usados de forma diferente na imprensa. "O refugiado é sempre negativo, um problema grave a ser discutido. O imigrante é uma questão a ser avaliada, pode ser algo positivo ou negativo, mas em geral a visão é de algo problemático. Já o estrangeiro é sempre positivo, inclusive melhor do que o brasileiro. É alguém com quem podemos aprender", diz.

Barreto incluiu em seus estudos as hostilidades sofridas em junho por haitianos em um posto de gasolina na região metropolitana de Porto Alegre. E, recentemente, houve em São Paulo uma suspeita de ataque xenófobo contra haitianos, que foram baleados com chumbinho na escadaria de uma igreja.

Barreto também relembrou a estigmatização sofrida por africanos e haitianos no ano passado, quando uma pessoa da Guiné foi identificada como suspeita de estar contaminada pelo vírus ebola, e afirma que o Brasil ainda está longe de promover uma discussão real sobre a imigração.

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Image copyrightAgencia BrasilImage captionImigrantes haitianos no Acre

"Em geral, os novos imigrantes estão sempre sendo vistos como problemáticos na sociedade. As notícias não estão discutindo imigração, problematizando o assunto, e não se vê discussões de política imigratória ou da legislação. O foco não é a solução ou discutir o tema, mas a noção de crise", avalia.Leia mais: Do abrigo lotado à faculdade de direito, a saga de uma haitiana cega no Brasil

Veja os principais trechos da entrevista:BBC Brasil – De acordo com sua pesquisa nos relatos da imprensa brasileira, como o país "pensou" e "problematizou" seus imigrantes ao longo dos últimos 207 anos?Gustavo Barreto - Houve diferentes momentos, mas o que se manteve por muitas décadas foi a intenção de trazer mão de obra, sempre com uma clara preferência por cristãos, brancos, europeus e trabalhadores.

Até 1870 ocorrem pequenos experimentos isolados, com uma média de chegada de 2 mil a 3 mil imigrantes por ano, e a partir de 1870 começam as grandes levas de imigrantes, com mais de 10 mil por ano, o que ocorre até 1930.

Havia um consenso de que não se podia contar só com os portugueses para popular o país, e o governo implementou políticas de subsídios para estrangeiros. Do governo Vargas em diante, o país passa a selecionar muito mais quem entra, e, décadas depois, passa a prover mais imigrantes brasileiros para o mundo do que os receber.

Mais recentemente, nos últimos dez anos, o Brasil voltou a receber muitos imigrantes, sobretudo bolivianos, haitianos, angolanos, senegaleses, ganenses, portugueses e espanhóis, entre outros.

Duas coisas foram cruciais ao longo do tempo: as questões do trabalho e da raça. Em 1891, o governo decretou que amarelos e negros não poderiam entrar

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subsidiados pelo Estado. Se entrassem, o dono da embarcação poderia perder o alvará de funcionamento.

Além disso, na imprensa fica claro que os "bons" europeus eram os alemães e italianos, enquanto os provenientes das ilhas dos Açores e Canárias eram "ruins". Durante uma época as elites e formuladores de políticas públicas promoveram ideias eugenistas, segundo as quais uma raça era cientificamente superior à outra, estimulando um embranquecimento da população brasileira.Leia mais: Brasileiras denunciam exploração em casas de famílias na Irlanda

Image copyrightAcervo do pesquisadorImage captionGazeta do Rio de Janeiro - de dezembro de 1819BBC Brasil – Quanto ao racismo, é possível identificar avanços? Como tem sido a cobertura da chegada de imigrantes haitianos e bolivianos ao Brasil, mais recentemente?Barreto - O racismo era algo natural e aceitável no século 19, incluindo o destaque às ideias de supremacia de raças, entre 1870 até o governo Vargas. A partir da Segunda Guerra, os grupos começam a ser valorizados. Judeus, alemães e italianos no Brasil começam a recontar sua história, assim como os japoneses, depois de um momento muito difícil. Após as cartas de direitos

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humanos, os valores eugenistas já não são mais declarados, o que é um avanço.

Mais recentemente, o país passou a receber um número considerável de bolivianos e haitianos. Mas também chegam portugueses e espanhóis. A imprensa, no entanto, costuma destacar muito os problemas que os haitianos trazem, e rapidamente começa a ser construída uma visão de que eles são um problema. Enquanto isso, os imigrantes europeus recentes são valorizados por sua cultura e contribuição ao Brasil.

Contribuições culturais ou produtivas dos haitianos e bolivianos, que têm uma riqueza cultural enorme, dificilmente viram notícia. O racismo atual se dá pelo não dito, pelo que a imprensa omite. Quando aparecem na mídia estão atrelados a problemas, crises, marginalizações, ou ligados à ideia de uma invasão.BBC Brasil - Apesar dos nítidos avanços no tratamento aos imigrantes na imprensa brasileira, a pesquisa identificou algum retrocesso na cobertura atual? Algo que chame a atenção?Barreto - Há reportagens que promovem um retrocesso inacreditável, sobretudo no que diz respeito à construção da ideia de que há nacionalidades mais propensas à submissão, e não ao empreendedorismo.

No passado, após 1850, durante muitos anos a mídia rejeitou a entrada de chineses no Brasil por meio de um discurso que os comparava com escravos, sem iniciativa empreendedora como os europeus. A imprensa dizia que eles não se classificavam para os programas de imigração subsidiada pelo governo porque isso acarretaria em "escravidão amarela".

Hoje, guardadas as diferenças, a imprensa faz algo parecido com os haitianos. De acordo com algumas das reportagens analisadas, há a ideia de que eles vão ser explorados, abusados. Pede-se direitos humanos, e divulga-se uma ideia de que eles vão virar novos escravos. Você vê jornais de São Paulo relacionando diretamente os haitianos à escravidão. Numa matéria de 2014, diz-se que os brasileiros estavam escolhendo os imigrantes haitianos pela canela.Leia mais: Saga dos decasséguis, 'tapa-buracos' da indústria japonesa, faz 25 anos

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Image copyrightAcervo do PesquisadorImage captionDiário de Minas: Outubro de 1867BBC Brasil - Na sua visão, a imprensa brasileira consegue dar conta do tema da imigração, incluindo a discussão de soluções e políticas imigratórias, ou acaba tratando o assunto de forma alarmista, valendo-se de estereótipos?Barreto - A imprensa parece não se preocupar com a figura do imigrante ou em discutir o tema imigração em toda sua complexidade. Sobretudo dos anos 2000 em diante, o imigrante aparece nas páginas dos jornais brasileiros como explorado, submisso ou relacionado a denúncias de violações de direitos humanos.

Em geral os novos imigrantes estão sempre sendo vistos como problemáticos na sociedade. As notícias não estão discutindo imigração, problematizando o assunto, e não se vê discussões de política imigratória ou da legislação em nenhum momento.

Quando os haitianos chegaram a São Paulo, há algo nítido na cobertura da imprensa. Vê-se um esforço homérico para jogar a Prefeitura, os governos dos Estados de São Paulo e do Acre e o governo federal uns contra os outros. O foco não é a solução ou discussão do tema, mas a noção de crise.

Quando as quatro instâncias decidiram se sentar e organizar os problemas que estavam acontecendo, num encontro nacional sobre refúgio e imigração, a imprensa praticamente ignora, com pequenas notinhas e um dos grandes jornais nem registra.

Outra coisa que chamou a atenção foi o episódio do ebola, no ano passado. Quando ocorre a suspeita de uma pessoa da Guiné contaminada, todos os africanos e haitianos – que são do Caribe, em outro continente – passam a ser suspeitos e gera-se um grande debate nacional sobre a proibição da entrada dessas pessoas no país.

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Image copyrightBBC World ServiceImage captionFolha da Manã, fevereiro de 1926: "Fechem-se as fronteiras"BBC Brasil - Suas observações não contrastam com a ideia tão difundida do Brasil como um país hospitaleiro, e do brasileiro como um povo acolhedor, famoso no mundo todo pela simpatia e boa recepção aos estrangeiros?Barreto - Na verdade entre os pesquisadores do assunto há a noção do "mito da hospitalidade". Há uma diferença entre a maneira como nos vendemos para o mundo e a verdadeira hospitalidade a qualquer estrangeiro ou a democracia racial.

O estudo de como a imigração é retratada no país entre 1808 e 2015 mostra que a hospitalidade é seletiva, mas que essa noção sempre foi difundida, em benefício do Brasil. Esta é uma das minhas principais conclusões na tese, a de que a nossa famosa hospitalidade é um mito.

A partir de 1870, você vê nos jornais a palavra "hospitaleiro" sendo usada para algumas situações, e ao lado os discursos racistas e eugenistas claramente em posição contrária contra outros grupos de imigrantes. O brasileiro também

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emigra para diversos países, e nossa presença tem aumentado lá fora, mas ainda recebemos um número muito baixo de refugiados, por exemplo. Contribuímos pouco neste sentido.BBC Brasil - Você citou um editorial do jornal Folha da Manhã, de 1926, entitulado "Fechem-se as fronteiras". Esta seria um pouco a noção de que o Brasil enxergou durante muito tempo a imigração de forma unilateral e seletiva? Ainda vemos este discurso?Barreto - Sim, o tema do editorial de 1926 é justamente a noção de que o país já teria recebido todos os imigrantes necessários. Já chegaram todos que nós queremos, após a vinda em massa de alemães e italianos, foi cumprida a função da imigração no Brasil. Já ocupamos e populamos o país, e agora as fronteiras devem ser fechadas e quem entrar deverá ser muito bem selecionado.

Hoje em dia a posição continua, mas travestida por outro argumento. A imprensa trabalha com o mito de que somos um país pobre, em desenvolvimento, e não temos condições de receber mais ninguém. Vamos receber somente os melhores e mais úteis. São evidências no discurso da imprensa e na visão da sociedade brasileira que contrastam diretamente com a ideia do "Brasil hospitaleiro, onde todos são bem-vindos".

No contexto atual, de crise econômica e política, há que se observar atentamente a maneira como o imigrante será retratado na imprensa, por ele ser um excelente bode expiatório para os problemas. Não tem grande chance de defesa, não está integrado ao país, é o outro, o diferente, que traz dificuldades.

Desemprego, inflação e crise tendem a tornar a visão dos imigrantes ainda mais negativa.