IMITAI A DEUS: A MÍMESIS CRIATIVA NO HINO AO AMOR (1...

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TIAGO DOS SANTOS CADEDO IMITAI A DEUS: A MÍMESIS CRIATIVA NO HINO AO AMOR (1 COR 13) Faculdade de São Bento de São Paulo São Paulo, 2017

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TIAGO DOS SANTOS CADEDO

IMITAI A DEUS: A MÍMESIS CRIATIVA NO HINO AO AMOR (1 COR 13)

Faculdade de São Bento de São Paulo

São Paulo, 2017

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TIAGO DOS SANTOS CADEDO

IMITAI A DEUS: A MÍMESIS CRIATIVA NO HINO AO AMOR (1 COR 13)

Trabalho de Conclusão de Curso do Curso de Teologia da Faculdade de São Bento de São Paulo. Sob a orientação do Prof. Domingos Zamagna

Faculdade de São Bento de São Paulo

São Paulo, 2017

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Imitai a Deus, visto que sois filhos que ele ama; vivei no amor, como Cristo nos amou e se entregou a si mesmo a Deus por nós em oblação e vítima, como perfume de agradável odor (Ef 5,1-2)

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RESUMO A pesquisa da dimensão antropológica das Sagradas Escrituras é uma questão de compromisso com o Querigma: Deus se fez homem. René Girard, antropólogo que faz da Escritura a pedra angular de sua teoria do comportamento humano, ecoa, com seu trabalho, a afirmação fundamental da Gaudium et Spes, segundo a qual “só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente o mistério do homem” (GS 22). Este trabalho objetiva demonstrar a fecundidade da Teoria Mimética para a interpretação bíblica através da exegese do décimo terceiro capítulo da Primeira Carta aos Coríntios. Como o objeto de estudo é conhecido como Hino ao Amor, trata-se, também, de demonstrar que a teoria mimética é capaz de elaborar um discurso antropológico e teológico sobre amor. Com efeito, o mimetismo mostra-se, em Paulo, dissociado da rivalidade que lhe parece inerente. Mais do que isso, ao exortar os Coríntios à imitação de Cristo, o apóstolo reconhece a dimensão positiva da mímesis na formação da comunidade de Corinto. O estudo mostra, ainda, que a hermenêutica mimética contribui para uma compreensão antropológico-teológica do amor ao interpretá-lo como um fenômeno eminentemente cristológico. Palavras-chave: Teoria Mimética, René Girard, Hino ao Amor, Primeira Carta aos Coríntios, Antropologia Teológica. ABSTRACT The research for the Sacred Scripture’s anthropological dimension is a matter of com-mitment with the Kerygma: God became man. René Girard, anthropologist who uses Scripture as the cornerstone of his theory about human behavior, echoes, with his work, the fundamental assertion of Gaudium et Spes, according to which “only in the mystery of the incarnate Word does the mystery of man take on light” (GS 22). This work intends to demonstrate the fertility of mimetic theory to biblical interpretation through the exege-sis of the thirteenth chapter of the First Letter to the Corinthians. Our object of study is also known as the “Hymn of Love”, so that our work is also set to demonstrate that mimetic theory is able to develop an anthropological and theological discourse about love. As a matter of fact, mimesis shows itself, in Paul, disassociated with the rivalry which usually comes with it. So much so that in exhorting the corinthians to imitate Christ, the apostle recognizes the positive dimension of mimesis in community formation. The present work also shows that mimetic hermeneutics is meaningful to an anthropological and theological understanding of love because it is able to interpret it as a particularly christological phenomenon. Keywords: Mimetic Theory, René Girard, Hymn of Love, First Letter to the Corinthians, Theological Anthropology.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................05

1. A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD............................................07

2. A DIFERENÇA BÍBLICA........................................................................13

3. A MÍMESIS CRIATIVA NO HINO AO AMOR.........................................17

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................37

5. BIBLIOGRAFIA.......................................................................................40

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Introdução

“Na realidade, só no mistério do Verbo encarnado se esclarece

verdadeiramente o mistério do homem” (GS 22). Assim o Concílio Vaticano II

proclama a dimensão antropológica da fé cristã.

A busca da dimensão antropológica das Sagradas Escrituras é, portanto, uma

questão de compromisso com o Querigma: Deus se fez homem. A antropologia, como

ciência moderna que desde o tempo de seu advento foi um campo de estudo

relativamente hostil ao cristianismo, encontra em René Girard1, no que diz respeito à

fé cristã, um intérprete apologista, isto é, mais do que alguém que defende uma certa

coisa, alguém que extrai desta realidade o seu sentido e o demonstra.

Com efeito, desde o período dos Padres a Igreja busca o diálogo com as

ciências humanas para expressar o mistério de Deus e o mistério do homem. É o que

vemos com o estoicismo, o platonismo e o aristotelismo, por exemplo, para citar

apenas algumas das mais importantes escolas. Houve, é claro, tentativas de

aproximação entre as ciências humanas e a teologia na modernidade, mas tais

aproximações foram quase sempre bastante tímidas ou, pior ainda, reducionistas.

Acreditamos, no entanto, que aplicar a teoria girardiana à teologia não é como

submeter a fé a um exame psicanalítico ou sociológico porque estas ciências, como

as demais ciências humanas, possuem seus próprios textos fundadores, que balizam

uma epistemologia independente do objeto analisado. Para Girard, no entanto, o texto

fundador é a própria Sagrada Escritura. Ele não apela para uma epistemologia

independente, mas encontra no Antigo, e, especialmente, no Novo Testamento, a

chave de leitura para entender a cultura humana.

Acreditamos que a teoria mimética de René Girard seja, portanto, uma rica

oportunidade de redescobrirmos que o verdadeiro conhecimento humano é fruto do

conhecimento de Deus. Nosso empreendimento também busca tornar clara a doutrina

social que está no cerne da antropologia bíblica, como a compreende René Girard. A

teoria social do Evangelho aparece não como um apêndice ao Querigma, mas como

sua própria essência.

1Nascido em 1923, René Girard é internacionalmente conhecido por sua teoria do comportamento e da cultura humana. Em 2005 ele foi recebido na Academia Francesa por sua contribuição às ciências humanas. Lecionou de 1981 até 1995 na Universidade de Stanford, onde permaneceu até sua morte em 2015.

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Este trabalho, mais especificamente, objetiva mostrar que, no décimo terceiro

capítulo da Primeira Carta aos Coríntios, Paulo demonstra compreender, a partir de

Cristo, o caráter mimético do comportamento humano e a consequência desta

imitação para a vida em comunidade. No chamado Hino ao amor, Paulo demonstra a

prioridade da imitação criativa em relação ao desejo mimético rivalístico que

normalmente pauta as relações humanas.

Servir-nos-emos para este trabalho da teoria mimética desenvolvida pelo

antropólogo René Girard e aplicada na teologia por alguns de seus discípulos, tais

como Robert Hamerton-Kelly 2 e James Alison 3 . Além disso, buscaremos nos

comentadores de Paulo e da Primeira Carta aos Coríntios o suporte para a análise

textual necessária. Por fim, não perderemos de vista o conselho dos Padres da Igreja,

dos Doutores e do Magistério.

Com a análise textual deste pequeno trecho do Novo Testamento esperamos

verificar, como que por amostragem, a relevância da leitura girardiana para a

antropologia teológica.

2 Robert Hamerton-Kelly (1938-2013) foi um teólogo girardiano e conferencista em estudos clássicos e relações internacionais do Centro de Segurança Internacional e de Controle de Armas da Universi-dade de Stanford. Foi também co-fundador da Imitatio, organização que promove o pensamento de René Girard pelo mundo. 3 James Alison é teólogo católico e responsável por educação na Imitatio. Estudou em Oxford e é doutor pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte. É considerado um dos principais expositores da vertente teológica inspirada pelo pensamento de René Girard.

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1. A Teoria Mimética de René Girard

Qual é a causa dos conflitos que dilaceram uma comunidade? Eis a pergunta

do antropólogo São Tiago em sua carta.

De onde vêm as guerras? De onde vêm as lutas entre vós? Não vêm daqui: dos prazeres que guerreiam nos vossos membros? Cobiçais e não tendes? Então matais. Buscais com avidez, mas nada conseguis obter? Então vos entregais à luta e à guerra. Não possuís porque não pedis. Pedis, mas não recebeis, porque pedis mal, com o fim de gastardes em vossos prazeres. (Tg 4, 1-3)

Tiago parece não hesitar: a causa dos conflitos é a cobiça, e a cobiça leva à

morte.

Por mais elementar que pareça esta resposta, assim traduzida ela não é

elementar o suficiente, pois a palavra cobiça facilmente nos engana ao sugerir uma

espécie de desejo especificamente invejoso e ruim. Mas a palavra grega ἐπιθυμία,

embora assuma em muitos contextos uma conotação negativa, é, em si mesma,

neutra, e significa pura e simplesmente: desejo. Em vários contextos, ela adquire

mesmo uma conotação positiva, como na ocasião em que Jesus deseja comer a

Páscoa com seus discípulos (Lc 22,15).

"Desejais e não tendes? Então matais”, eis uma tradução digna da simplicidade

e da abrangência do diagnóstico de São Tiago.

Há um importante precedente para o discurso do apóstolo de Jerusalém no

decálogo. Também lá o que geralmente se traduz como cobiça no décimo

mandamento, significa simplesmente desejo: “Não desejarás a casa do teu próximo.

Não desejarás a mulher de teu próximo, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem

o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a seu próximo” (Ex

20,17).

Assim como o rápido diagnóstico de São Tiago, o decálogo identifica de

maneira sumária o problema do desejo: Tendemos a desejar aquilo que não podemos

ter; aquilo que é do outro. O fato desta proibição figurar entre os dez mandamentos

confirma o que já dissemos a respeito da natureza deste desejo: ele não é um desejo

marginal e específico que afeta os homens mais perversos, pelo contrário, ele é

frequente, recorrente e estável nos seres humanos, e o fato de estarmos todos

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vulneráveis a ele, garante-lhe uma proibição entre os dez mandamentos, as leis mais

abrangentes e importantes de Israel.

Não estariam estes textos nos oferecendo uma preciosa intuição a respeito do

comportamento humano de maneira geral? René Girard pensa que sim. O pensador

francês, que em seu livro Mentira Romântica, Verdade romanesca propõe uma

compreensão essencialmente triangular do desejo humano4, vai além e afirma que a

Bíblia e os Evangelhos constituem os textos definitivos para compreender o desejo e

a cultura humana.

Ao comentar os textos que ora citamos, Girard nos ajuda a perceber que os

textos bíblicos não apenas revelam o desejo triangular, mas procuram alertar para a

rivalidade latente que o acompanha:

Ao lermos o décimo mandamento, temos a impressão de assistir ao processo intelectual de sua elaboração. Para impedir que os homens lutem entre si, o legislador busca, em primeiro lugar, proibir-lhe todos os objetos que eles incessantemente disputam, e decide elaborar sua lista. No entanto, logo percebe que esses objetos são excessivamente numerosos e que sua enumeração é impossível. Assim, interrompe o procedimento, renuncia a colocar a ênfase nos objetos, sempre mutantes, e volta-se para aquilo, ou melhor, para aquele que está sempre presente: o próximo, o vizinho, aquele cujos bens é claro que todos nós desejamos. Se os objetos que desejamos sempre pertencem ao próximo, é o próximo, evidentemente, que os torna desejáveis. Em consequência, na formulação da proibição, o próximo deve suplantar os objetos, e efetivamente ele os suplanta, na última parte da frase, que proíbe não mais objetos enumerados um a um, mas tudo que pertence ao próximo. O que o décimo mandamento esboça, sem definir explicitamente, é uma ‘revolução copernicana’ na compreensão do desejo. Acreditamos que o desejo seja objetivo ou subjetivo, mas na realidade ele repousa sobre um outro que valoriza os objetos, o terceiro mais próximo, o próximo. Para manter a paz entre os homens, é preciso definir a proibição em função dessa temível constatação: o próximo é o modelo de nossos desejos. É isso que chamo de desejo mimético (GIRARD, 2012, p. 29)

O décimo mandamento, portanto, constitui uma espécie de vacina preventiva

para a rivalidade latente no desejo mimético dos indivíduos. Mais do que se propagar

4 “O homem é a criatura que não sabe o que desejar, então ele se dirige aos outros para decidir. Nós desejamos o que os outros desejam porque imitamos seus desejos”. Assim Girard sintetiza a depen-dência de um terceiro para que o sujeito se dirija ao objeto. Cf. GIRARD, René. Generative Scape-goating. In HAMERTON-KELLY, Robert (org). Violent Origins. Stanford: Stanford University Press, 1988, p.122

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entre os indivíduos, no entanto, a rivalidade aumenta exponencialmente em

intensidade, pois quando o meu próximo percebe que eu desejo o que ele possui, seu

desejo pelo bem possuído é reforçado pela minha atestação de que o objeto é

desejável. Este fenômeno transforma o modelo do meu desejo em sujeito desejante

para quem agora eu mesmo me transformo em modelo. Ora, neste caso, o rival que

detém o objeto interditará o acesso a ele com um empenho cada vez maior, o que por

sua vez atestará ao outro que o objeto é realmente desejável, digno de ser protegido

com muito cuidado.

Esta transformação de sujeito em modelo e de modelo em sujeito não para de

aumentar a intensidade do desejo rivalístico, e não se restringe a apenas dois

indivíduos — o decálogo se dirige a uma comunidade — mas afeta os grupos

humanos em sua coletividade. Com efeito, um terceiro, inicialmente alheio ao conflito,

facilmente sucumbe à contaminação mimética ao perceber a enorme importância que

os mediadores atribuem ao objeto em disputa. O objeto aparece, assim, dotado de um

valor imenso, totalmente transfigurado pelo desejo mimético. Por mais insignificante

que a princípio seja, o objeto agora se torna, pelo mimetismo, o bem cuja posse

promete felicidade a todo e qualquer homem. É por isso que o décimo mandamento

do decálogo nos indica as posses do próximo — sua casa, sua mulher, seu escravo,

seu boi — como os objetos comuns de nossos desejos.

É preciso fazer como Girard e ler a última oração do décimo mandamento com

especial atenção. Ela diz que não devemos desejar coisa alguma que pertença ao

nosso próximo. Os objetos listados na oração anterior agora desaparecem para dar

espaço àquele que, desde o princípio, torna os objetos desejáveis: o próximo; o

mediador do meu desejo.

Segundo o pensador francês, a escalada da rivalidade leva o sujeito e o modelo

a tal estado de fascínio mútuo que eles acabam por esquecer completamente dos

objetos em disputa. Estes podem ser muitos e variados, mas pouco importam para o

desejo do sujeito que descobriu no rival a fonte de sua existência. É o rival que passa

para o primeiro plano como aquele que guarda as chaves do paraíso. Neste estágio

não se pretende mais disputar um objeto qualquer que o adversário dispõe, pois não

se trata mais de ter o que o outro tem, mas de ser o que o outro é. O objeto

desaparece, permanece apenas a rivalidade.

Se pensarmos nesta fase aguda do desejo, tomando em consideração sua

capacidade de contaminar os indivíduos ao redor e suscitar, ao mesmo tempo, a

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exasperação da rivalidade entre eles, teremos uma comunidade em crise, formada

por indivíduos cujos ânimos estão à flor da pele, prontos para a violência física e para

a desintegração completa do grupo.

Girard pensa que esta situação, fruto catastrófico do desejo mimético, se

repetiu incansavelmente na história da humanização e da humanidade. Como, então,

teriam os grupos humanos — principalmente os primeiros — resistido à

autodestruição prenunciada?

Segundo René Girard, estes grupos sobreviveram porque suscitaram um "bode

expiatório”. Isto é, reuniram-se contra uma única vítima em um processo de

substituição capaz de catalisar a rivalidade dispersa para um único indivíduo. Explica-

nos ele:

Quanto mais as rivalidades se exasperam, mais os rivais tendem a se esquecer dos objetos que inicialmente as causaram, e mais eles ficam fascinados uns com os outros. A rivalidade purifica-se de tudo que está em jogo exteriormente tornando-se, em suma, rivalidade pura ou de prestígio. Cada rival torna-se para o outro o modelo-obstáculo adorável e odioso, aquele que é preciso ao mesmo tempo abater e absorver. A mímesis está mais forte do que nunca, mas daí em diante, ela não pode mais ser exercida no nível do objeto, pois não há mais objeto. Só há protagonistas que designamos como duplos, pois, sob a relação do antagonismo, nada mais os separa. Se não há mais objeto, não há mais mímesis de apropriação […] Não há mais terreno de aplicação possível para a mímesis além dos próprios protagonistas. O que vai então se produzir, no seio da crise, são substituições miméticas de antagonistas. Se a mímesis de apropriação divide fazendo convergir dois ou vários indivíduos para um único e mesmo objeto de que todos querem se apropriar, a mímesis de antagonista, necessariamente, reúne fazendo convergir dois ou vários indivíduos para um mesmo adversário que todos querem abater. A mímesis de apropriação é contagiosa, e quanto mais numerosos forem os indivíduos polarizados por um mesmo objeto, mais os membros ainda não envolvidos da comunidade tendem a seguir seu exemplo; o mesmo ocorre, forçosamente, com a mímesis do antagonista, pois é da mesma força que se trata. É portanto esperado que essa mímesis cresça como uma bola de neve desde que a loucura mimética atinge um alto grau de intensidade. Como a potência da atração mimética multiplica-se com o número de polarizados, necessariamente vai chegar o momento em que a comunidade por inteiro estará reunida contra um indivíduo único. A mímesis do antagonista suscita portanto uma aliança de fato contra um inimigo comum, e a conclusão da crise, a reconciliação da comunidade, não é nada além disso.(GIRARD,1978, p. 47)

Mais adiante, Girard nos explica os efeitos do mecanismo do bode expiatório:

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A comunidade sacia sua raiva contra essa vítima arbitrária, na convicção absoluta de ter encontrado a causa única de seu mal. A seguir, ela se encontra privada de adversários, purificada de qualquer hostilidade contra quem, um instante antes, ela demonstrava uma raiva extrema. O retorno à calma parece confirmar a responsabilidade dessa vítima nos distúrbios miméticos que agitaram a comunidade. A comunidade percebe-se como passiva diante de sua própria vítima, que aparece, ao contrário, como o único agente responsável pelos acontecimentos. (GIRARD, 1978, p. 49).

Os primeiros grupos humanos sobreviveram à auto-extinção, portanto, ao

inventar o mecanismo do bode expiatório. O grande milagre de pacificação operado

pela vítima confere a ela o status de divindade. Com efeito, para Girard, os deuses

das diversas mitologias são vítimas sacralizadas pelas comunidades responsáveis

pelo seu linchamento.

Resolvida a primeira crise, não é necessário esperar muito tempo para que

novas crises miméticas voltem a ocorrer. Agora, porém, a comunidade já sabe que

precisa de uma vítima para se salvar; que precisa de uma reencenação do milagroso

ato salvífico da divindade. O que antes ocorria de maneira espontânea, ocorrerá, a

partir de agora, de maneira ritual: eis a gênese do sacrifício humano, para Girard.

Com o mecanismo do bode expiatório transformado em rito, a comunidade

pode se perpetuar com a ajuda de um antídoto para sua própria violência. Este

mecanismo, portanto, tem efeito civilizatório e possibilita aos grupos humanos criarem

interditos para, junto com o rito, reduzir e interromper a contaminação mimética da

violência.

Segundo Girard, o mecanismo vitimário não é somente a origem dos ritos, mas

também dos mitos. Os mitos são responsáveis por contar a história da comunidade

do ponto de vista dos linchadores. Nestes relatos míticos as crises se resolvem pela

expulsão ou morte de algum ser que precisava desaparecer para conferir estabilidade

ao grupo. A vítima, portanto, é ambivalente: Por um lado é culpada pelo distúrbio que

ameaça destruir a comunidade e, por isso mesmo, merece a morte que lhe é

imputada. Por outro lado, sua capacidade de salvar e reintegrar a comunidade

mediante a sua própria morte é reconhecida pela comunidade.

Estes relatos podem variar muito em seus detalhes, a depender da intensidade

da dupla transfiguração operada pelo desejo mimético — a transfiguração da vítima

aleatória em agente causadora do conflito e sua posterior transfiguração em divindade

salvadora da comunidade — e por isso poderíamos ilustrar esta narrativa mítica com

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centenas de exemplos, mas basta-nos um para o momento. Pensemos no mito da

fundação de Roma, a estória dos irmãos Rômulo e Remo. O primeiro mata o segundo,

um ato sem dúvida lamentável, mas que de qualquer forma se torna necessário, afinal

Remo não respeitou a divisão territorial traçada por Rômulo, e, para existir, Roma

necessita que seus interditos sejam respeitados. A morte da vítima está, pois,

justificada e é ela que confere estabilidade à cidade que viria a ser fundada sobre os

esboços desenhados por Rômulo.

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2. A diferença bíblica

Tomemos agora o exemplo bíblico de Caim e Abel. O assassinato ocorre de

maneira análoga, e a primeira cidade humana é fundada pelo irmão assassino.

Também aqui a cultura humana é fruto do assassinato fundador. Mas há uma pequena

sutileza no texto bíblico que o separa radicalmente das narrativas míticas: o

assassinato não é justificado. Diz Girard:

No mito de Caim, […] Caim é apresentado como um vulgar assassino. O fato de que o primeiro assassinato desencadeie o primeiro desenvolvimento cultural da humanidade não absolve de forma alguma os assassinos aos olhos do texto bíblico. O caráter fundador do mito tem significado tão claro e até mais claro que nos mitos não-bíblicos, mas há algo de diferente, ou seja, o julgamento moral. A condenação do assassinato prevalece sobre qualquer outra consideração. ‘Onde está o teu irmão Abel? (GIRARD, 1978, p. 189)

Para René Girard, existe uma grande semelhança entre a Bíblia e os mitos,

uma vez que tanto a mitologia quanto as Escrituras descrevem fenômenos de

violência coletiva. Há para ele, no entanto, uma diferença essencial, que embora

apareça inicialmente como um pormenor, cresce como uma rachadura capaz de

fragmentar toda e qualquer unidade entre a mitologia e as Sagradas Escrituras: A

Bíblia inocenta a vítima que a mitologia a condena.

A denúncia de Caim (Gn 4), o não-sacrifício de Abraão e o Cântico do servo

sofredor são episódios de uma longa história que começa com a dessacralização da

vítima, que progressivamente passa a ser vista como a fabricação de um mecanismo

injusto, profundamente desajustado com a vontade de um Deus transcendente, até a

total revelação e destruição do mecanismo do bode expiatório nos relatos da Paixão

contidos nos evangelhos.

Nos evangelhos, pela primeira vez na história da humanidade, um grupo de

pessoas fragmenta a unidade construída pela significação produzida pela

culpabilização e condenação da vítima. Os apóstolos testemunham a inocência da

vítima e afirmam que Deus a ressuscitou dos mortos, vindicando-a, como Ele havia

prometido aos antepassados. Os apóstolos afirmam ainda que a vítima vindicada que

proclamam não é como as demais, mas aquela que Deus escolheu para revelar a

verdade a respeito de Si e do mundo, de modo que é através deste conhecimento que

o homem pode se salvar, construíndo uma ordem não mais baseada na vitimização

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dos outros, mas antes, e se necessário em um mundo que está sempre a reclamar

vítimas para produzir significado, através da auto-entrega da própria vida, na imitação

de Jesus Cristo.

Esta significação foi tornada possível pelo próprio Cristo quando este conferiu

à refeição que realizou com seus discípulos um sentido específico e subversivo. Para

dizer as palavras que efetivariam esta subversão de significado, Jesus utilizou não

apenas expressões da linguagem sacrificial de Israel (“Isto é o meu corpo”, “Isto é o

meu sangue”), mas também algumas frases da linguagem profética (“Que é dado por

vós”, “Que é derramado por vós e por muitos”). Isto significa que Jesus, naquela altura,

fizera uma interpretação salvífica da morte que estava por alcançá-lo. Jesus aceita

livremente a morte que está por alcançá-lo, mas antes quebra o pão da ceia pascal e

o identifica com seu corpo, oferece também o vinho e diz “Isto é meu sangue”, por fim,

ordena a seus discípulos que repitam a ceia em sua memória. Se retomarmos o que

dizíamos no início a respeito do mecanismo vitimário, perceberemos a importância

que o memorial adquire aqui. É que a comunidade, após saciar sua raiva contra a

vítima recém executada, experimenta os efeitos pacificadores de reintegração social.

A vítima, para todos os efeitos, parece mesmo ter sido responsável pelos distúrbios

que haviam abalado a comunidade. “Fazei isto em memória de mim”: Lembrai-vos da

vítima inocente.

A identificação dos objetos de culto, pão e vinho, com o corpo e o sangue da

vítima é a revelação do que está na origem de todos os rituais: uma vítima humana.

O que os ritos fazem é legitimar, ou seja, sacralizar o papel da vítima afim de que ela

se torne um bode expiatório sancionado coletivamente, capaz de catalisar a

exasperação do conflito mimético na comunidade. Este paralelismo entre assassinato

coletivo e rito sacrificial é o fundamento da composição da Paixão em João: Jesus é

crucificado no mesmo momento em que os sacerdotes sacrificavam os cordeiros no

Templo.

A Eucaristia associa o culto não a um sacrifício sancionado e necessário, mas

a uma vítima inocente cuja morte é testemunhada como desnecessária por um

pequeno grupo de pessoas. Ao revelar a inocência da vítima, a Eucaristia dessacraliza

sua morte e mostra o que ela de fato é: mero assassinato.

Mas a eucaristia não é simplesmente uma revelação “secular” sobre a

tendência humana de sacralizar vítimas, pois nesta revelação está implícito o amor

daquele que deu a sua vida livremente – e assim fez o único e verdadeiro sacrifício –

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afim de que suas testemunhas pudessem ter acesso a um modo de viver não

comprometido com a lógica sacrificial deste mundo. É claro que esta compreensão só

nos é possível através da fé na ressureição, pois se Jesus permanecesse no túmulo,

suas palavras teriam caído no vazio e, então, o impacto de sua morte sobre os

discípulos, e a reintegração da comunidade sobre seu cadáver teriam confirmado a

necessidade de sua eliminação. Em outras palavras: Jesus seria transformado em

uma vítima ambivalente como todas as outras. É no túmulo vazio e nas aparições do

Ressuscitado que a inocência de Jesus é confirmada por Deus: A vítima necessária

para que o mundo sacrificial dos homens continue a existir simplesmente não está lá.

O mecanismo vitimário está desmontado.

Dizer que o mecanismo vitimário está desmontado é dizer que toda a cultura

humana está desestruturada. O mundo fundado por Caim está comprometido. A

presença do Ressuscitado é, portanto, desestabilizadora. Ao ressuscitar Jesus dentre

os mortos, Deus se mostra em favor dele, e se Deus se mostra em favor daquele que

foi condenado pelas autoridades civis e religiosas (Roma e Jerusalém), então os

interditos também perdem sua legitimidade. A Ressureição é não apenas a

confirmação da dessacralização do rito operado pela Eucaristia, mas também a

dessacralização dos interditos operada pela reabilitação do condenado. A

Ressureição de Jesus põe fim ao mecanismo vitimário que sustenta a cultura humana

e assim desestabiliza a própria identidade do homem. Como dissemos, no

entanto, a Ressureição não opera apenas uma desestruturação, mas também uma

reestruturação, pois torna possível ao homem uma unidade que não é construída

contra a vítima, mas em favor da vítima — É este o dom que o cristão recebe em

Pentecostes.

São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios, deixa-nos antever que a

comunidade de Corinto é um experimento desta reestruturação. Ela demonstra uma

enorme dificuldade na construção desse novo edifício em comunhão com a vítima,

que é a Igreja, e frequentemente cai na tentação de marginalizar e produzir suas

próprias vítimas, o que a afasta ainda mais da sua pedra angular, a vítima fundadora

e inocente, com quem a comunhão precisa se transformar em acolhimento e amor ao

próximo para se tornar efetiva e coerente, pois é a própria vítima fundadora da igreja

que se identifica com as vítimas deste mundo (Mt 25, 40).

Para Paulo, a solução para os conflitos que abalam a comunidade está em

direcionar o desejo para o único mediador que não coloca os indivíduos em conflito

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uns com os outros. “Sede meus imitadores, como eu sou de Cristo” (1Cor 11,1) diz

ele, alertando para a natureza essencialmente mimética do desejo.

Em nossa análise do décimo terceiro capítulo da Primeira Carta aos Coríntios,

veremos como Paulo descobriu, pela fé na ressureição de Cristo, um desenvolvimento

alternativo, não-violento, receptivo e criativo do desejo mimético; um desejo que a

Bíblia grega chama de agápe, e que nós chamamos de amor.

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3. A mímesis criativa no Hino ao Amor

3.1 “Mesmo que eu fale em línguas, a dos homens e a dos anjos, se me falta o

amor, sou um metal que ressoa, um címbalo retumbante" (1Cor 13, 1).

Falar em línguas é um fenômeno de difícil compreensão. Paulo o reconhece

como um dom do Espírito, mas dedica os capítulos 12, 13 e 14 de sua carta ao

discernimento do papel adequado deste dom na hierarquia dos dons divinos.

Na carta aos Romanos, Paulo recorre a um jogo de palavras intraduzível para

enfatizar a relação entre dom e graça ao dizer que “temos dons (χαρίσματα) que

diferem segundo a graça (χάρις) que nos foi concedida” (Rom 12,6). O argumento

implícito do trocadilho é que, sejam quais forem os dons, devem ser exercidos de

acordo com a graça; de maneira gratuita.

Alguns da Igreja de Corinto parecem não ter compreendido isso e apropriaram-

se do dom de línguas como se ele fosse um objeto de prestígio5. Ora, o prestígio que

enxergam no dom que receberam é resultado da velha rivalidade mimética que faz os

indivíduos desejarem aquilo que lhes confere distinção aos olhos do próximo, afinal

tal desejo só se mantém mediante o desejo do outro.

Este prestígio também é sinal de que estes cristãos de Corinto deixaram de ter

o seu desejo mediado por Jesus Cristo para desejarem de acordo uns com os outros.

A Escritura chama esse desvio da mediação transcendente para a mediação imanente

de idolatria6. Não é surpreendente, portanto, que a unidade textual a conter o hino ao

amor7 comece a abordar a questão com o problema dos ídolos:

5. "Apparently, some Corinthian Christians have been maintaining that certain gifts of the Spirit were better than others, were striving for so-called higher gifts”. Cf FITZMYER, Joseph A. First Corinthians: A New Translation with Introduction and Commentary. New Haven; London, 2008, p.454 6 “O ser humano é constituído em dinâmica relacional, ou seja, em dinâmica transcendente, e o es-tado de rivalidade mimética é apenas a expressão patológica de uma “transcendência desviada”; de um desejo que deveria se orientar para uma fonte espiritual verdadeiramente transcendente, mas que, em vez disso, é desperto pelo vizinho imanente”. Cf. HAMERTON-KELLY, Robert. Violência Sa-grada: Paulo e a Hermenêutica da Cruz [tradução: Maurício G. Righi]. São Paulo: É Realizações, 2012, p.59. 7 Alguns exegetas supõem que o capítulo 13 seja completamente independente. Nós, com Fitzmyer, acreditamos que ele seja o ápice da unidade textual que compreende os capítulos 12, 13 e 14. "As I see it, it is the climax to what Paul has been teaching in chap. 12 about the pneumatika and the di-verse kinds of them, whether charismata, diakoniai, or energēmata, even though there is no longer any mention of the Spirit in the verses of this chapter” Cf. FITZMYER, Joseph A. First Corinthians: A New Translation with Introduction and Commentary. New Haven; London, 2008, p.488

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A respeito das manifestações do Espírito, eu não quero, irmãos, que fiqueis na ignorância. Vós sabeis que, quando pagãos, éreis arrastados, como que ao acaso, para os ídolos mudos. Por isso eu vos declaro: ninguém falando sob a inspiração do Espírito de Deus, pode dizer: “Maldito seja Jesus” e ninguém pode dizer, “Jesus é o Senhor”, a não ser pelo Espírito Santo (1Cor 12, 1-3).

Há milênios os intérpretes da Escritura se perguntam pelos indivíduos que

ousavam amaldiçoar Jesus nesta passagem. Nos séculos recentes, alguns exegetas

sugeriram que fossem os adversários judeus da comunidade cristã, outros, que

fossem os gnósticos; outros ainda, que não fossem senão uma projeção do próprio

Paulo, o antigo perseguidor da Igreja. Todas estas hipóteses, no entanto, tomam estes

versículos isoladamente e não oferecem uma explicação convincente do propósito

desta perícope em seu contexto literário.

Parece-nos que Santo Agostinho oferece uma pista interessante de

interpretação. Em seu comentário ao Sermão da Montanha, ele confronta as palavras

de Paulo com as de Jesus no Evangelho de Mateus: “Nem todo o que me diz: Senhor,

Senhor, entrará no reino dos céus, mas o que faz a vontade de meu Pai, que está nos

céus, esse entrará no reino dos céus” (Mt 7, 21).

O Doutor de Hipona resolve a aparente contradição com a afirmação de Paulo,

segundo a qual “ninguém pode dizer ‘Jesus é o Senhor’ a não ser no Espírito Santo”,

na proposição de que há dois modos de dizer, “o dos que expressam o que aprendem

com a inteligência e querem com a vontade, e o dos que somente dizem com a voz

(AGOSTINHO, 2016, p. 244).

Se aplicarmos o critério de Agostinho ao texto de Paulo, podemos supor que

tanto a maldição quanto a confissão de fé referidas sejam, de fato, manifestações da

práxis, antes que meramente do discurso8. Para considerar esta hipótese seriamente

precisamos esclarecer que a palavra geralmente traduzida por maldição é ἀνάθεμα e

significa, mais propriamente, excomunhão.

A intenção de Paulo nos primeiros versículos do capítulo 12 seria, então,

oferecer aos coríntios um critério para discernir as manifestações do Espírito, assunto

8 ”In this passage, Paul is instructing Corinthian Christians. He wants them to realize what they have been ignoring or failing to recognize: what comes from the inspiration of God’s Spirit and what attrac-tion to dumb idols should mean in their lives. To acknowledge that “Jesus is Lord” is not only to repeat the basic Christian affirmation but to recognize what that has to mean in one’s life and conduct, when one lives under such inspiration and for the good of the whole body, of which they are merely mem-bers. In order to achieve his purpose, Paul cites an ancient cursing practice to illustrate how one should learn to discern the spirits behind certain customs. Is one being led by God’s Spirit or by dumb idols?”. Ibidem, p. 456

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que se estenderá ainda pelos capítulos 13 e 14, e sobre o qual Paulo sente a

necessidade de comentar porque, tudo indica, alguns membros da comunidade estão

a clamar que os dons que receberam são superiores aos daqueles conferidos aos

demais irmãos.

Ora, ao clamar que seus dons são melhores, tais coríntios são arrastados pelos

ídolos — seus mediadores humanos — e manifestam o abandono de Jesus Cristo

como o mediador de seus desejos. Jesus, para eles, deixa de ser Senhor para ser

ἀνάθεμα, afinal, ao colocarem-se como superiores, criam, por consequência, uma

divisão na comunidade. Como, pois, Cristo identifica-se com as vítimas (Mt 25, 40), o

que estão a fazer é excomungar o Senhor de seu meio, e quem assim age, poderia

falar na língua dos homens e até mesmo na dos anjos, mas não pode falar "sob a

inspiração do Espírito de Deus”.

3.2 “Mesmo que tenha o dom da profecia, o saber de todos os mistérios e de

todo o conhecimento, mesmo que tenha a fé mais total, a que transporta

montanhas, se me falta o amor, nada sou” (1Cor 13, 2).

Não é só o dom de línguas que Paulo relativiza, pois o problema não está

relacionado a um dom do Espírito específico, mas à atitude de apropriação com

relação a qualquer dom. Todos os dons citados neste versículo foram anteriormente

catalogados por Paulo como dons espirituais distribuídos por Deus (1Cor 12, 28 - 29),

portanto não se trata de desvalorizar um dom com relação aos demais, pois se assim

fosse, os coríntios que se gabam de falar em línguas poderiam simplesmente desistir

do objeto desprestigiado por Paulo e investir no dom da profecia ou da sabedoria,

continuando a procura por prestígio aos olhos do próximo.

Paulo cita os vários dons para indicar que se o desejo for alimentado pela

rivalidade mimética pouco importam os objetos: o problema está na mediação. Os

coríntios caíram em idolatria ao deixarem seus desejos se modelarem em rivalidade

uns com os outros e só podem, com isto, suscitar aquilo que Girard chama de “desejo

metafísico”9, isto é, aquela fase do desejo em que o sujeito já não busca nenhum

9 “Uma vez que a mímesis leva a uma convergência de desejos sobre o mesmo objeto – como crian-ças disputando um objeto – o resultado será com frequência a rivalidade e possivelmente um conflito aberto. O desejo de posse de objetos é designado mímesis de apropriação. Quando o desejo é diri-gido a algo menos específico, que vai além dos objetos, a um estado quase transcendente de bem-

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objeto concreto, mas apenas a satisfação que ele espera encontrar na posse do outro.

Esta satisfação, no entanto, constitui sempre uma falsa promessa, pois ainda que o

sujeito, de uma forma ou de outra, derrote o seu oponente, está fadado à frustração

causada pelo desaparecimento do rival. É que o fim da rivalidade é também o fim do

desejo.

A vaidade, em seu sentido primeiro10, é o fruto do desejo rivalístico, pois como

nos ensina o Qohélet, tudo isto é perseguir o vento (Ecl 2,11), e “mesmo que tenha o

dom da profecia, o saber de todos os mistérios e de todo o conhecimento, mesmo que

tenha a fé mais total, a que transporta montanhas, se me falta o amor, nada sou”

3.3 “Mesmo que distribua todos os meus bens aos famintos, mesmo que

entregue o meu corpo às chamas, se me falta o amor, nada lucro com isso”

(1Cor 12,3).

Paulo vai além dos dons do Espírito e relativiza mesmo as ações mais

prestigiadas pela comunidade cristã: o cuidado dos mais pobres, que constitui

segundo São Tiago a religião verdadeira e sem mácula (Tg 1, 27), e o martírio, forma

suprema de testemunhar Jesus Cristo na imitação de sua autoentrega.

Até mesmo essas ações, porém, podem ser realizadas “segundo a carne”, isto

é, de maneira rivalística. A doação dos bens aos pobres pode ser apenas uma

maneira de “praticar a religião diante dos homens para atrair os seus olhares” (Mt 6,1).

Por mais nobre que pareça, tal ação pode não ser outra coisa senão a manifestação

da idolatria que faz os homens devorarem uns aos outros (Gl 5, 15)

Por outro lado, que a própria autoentrega de Cristo possa ser imitada numa

espécie de paródia com relação ao seu significado autêntico não surpreende os

ouvintes do Evangelho. Mateus e Lucas nos contam que o demônio tentou Jesus

dizendo: “Se és o Filho de Deus, atira-te para baixo, pois está escrito: Ele dará a teu

respeito ordem a seus anjos e eles te carregarão nas mãos, para evitar que contundas

o pé em alguma pedra” (Sl 91,12). O demônio, querendo mostrar-se exímio exegeta,

estar ou satisfação, é denominado desejo ‘metafísico”. KIRWAN, Michael. Teoria mimética: Conceitos fundamentais [tradução: Ana Lúcia Correia da Costa]. São Paulo: É Realizações, 2015. 10 "Vaidade: Qualidade do que é vão, vazio, firmado sobre aparência ilusória. Coisa insignificante, futilidade; vanidade”. Cf. HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Ja-neiro: Ed. Objetiva, 2001.

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transforma a exortação à fé do Salmo 91 em tentação a apropriar-se do desígnio

divino.

Ora, a tentação do demônio não tem nada de original e ressoa a tentação da

serpente em Gn 3. É a antiga sedução de assenhorar-se de algo próprio de Deus, no

caso, a imortalidade, para, paradoxalmente, trazer a morte ao mundo. ”Ora, Deus

criou o homem para ser incorruptível e o fez imagem daquilo que lhe é próprio. Mas

pela inveja do diabo a morte entrou no mundo” (Sb 2, 23 - 24). Jesus recusa a

mediação rivalística do demônio e reafirma que seu mediador é o Pai — “Não porás

à prova o Senhor teu Deus” (Mt 4,7) — e que seu desejo não é resultado da mímesis

de apropriação.

Se o próprio Jesus, portanto, sofreu a tentação de transformar a vitória sobre a

morte em uma manifestação espetacular do desejo rivalístico, não seriam tentados

também seus discípulos?

O novelista japonês e católico Shusako Endo ilustra de maneira poética que

sim. Em seu livro O Silêncio, Endo narra a história do jesuíta Sebastião Rodrigues que

viaja ao Japão para visitar e confortar os cristãos japoneses que praticavam a religião

católica clandestinamente, vítimas da perseguição do Xogunato. Rodrigues viaja com

um espírito determinado e ao ser capturado pelo governo local resiste a apostatar,

deixando claro que prefere a tortura e a morte. Acontece, porém, que as autoridades

japonesas não ousam machucá-lo, e ao invés disso, torturam os cristãos japoneses

que conseguiram capturar. Rodrigues percebe que a sua disposição ao martírio é a

causa dos sofrimentos dos cristãos que ele veio socorrer, pois tais cristãos sofrem na

medida de sua resistência. Nesta difícil situação ele percebe que sua postura de

resistência não é manifestação do Espírito, mas do desejo rivalístico que queria,

antes, provar-se para a Igreja e para os homens. Na situação em que se encontrava

“Cristo, com certeza, apostataria para ajudar os homens” (ENDO, 1996, p. 248).

Assim Endo nos ajuda a discernir o espírito que conduz ao martírio. O espírito

impuro da rivalidade mimética quer, no fundo, a auto-glorificação que vem da

aprovação dos homens, enquanto que o Espírito de Deus só conduz o martírio para a

salvação dos homens e, consequentemente, para a glorificação de Deus.

3.4 ”O amor tem paciência, o amor é serviçal, não é ciumento, não se pavoneia,

não se incha de orgulho” (1Cor 13, 4).

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Até este versículo, Paulo permanecera numa linguagem estritamente negativa.

Não procurara descrever o amor, mas a vaidade de todas as coisas sem ele. Daqui

em diante ele começará a descrever em termos também positivos aquilo que ele

mesmo indica como “um caminho infinitamente superior” (1Cor 12,31).

Ao propor o caminho do amor nestes termos não estaria Paulo, no entanto,

cedendo à rivalidade mimética que faz os coríntios almejarem o melhor dom afim de

se oferecerem como modelos uns para os outros?

Pensamos que não. Pelo contrário, demonstra-nos este texto que Paulo não

apenas resiste à rivalidade mimética, mas a conhece tão bem que é capaz de parodiá-

la. Como em tantas outras ocasiões11, Paulo condescende com a linguagem da

rivalidade mimética através da ironia afim de subvertê-la. O mesmo Paulo que fala

sem ironia sobre os dons que recebemos pela graça (Rom 12,6), diz agora aos

coríntios, de maneira irônica: “ambicionai os dons melhores”12. Ora, se são dons as

manifestações do Espíritos não podem ser ambicionadas (mímesis de apropriação),

mas apenas recebidas. Se Paulo indica o caminho do amor como o melhor, o faz, nas

suas próprias palavras, como um louco (2Cor 11,23); como quem oferece leite a uma

criancinha (1Cor 3,1), pois sabe que os coríntios não suportariam o alimento sólido,

isto é, uma exortação numa linguagem direta e não-irônica que fosse capaz de

estimular a prática do amor sem recorrer à linguagem da rivalidade com todas as

dicotomias que lhe são próprias: melhor/pior, dentro/fora etc.

O amor não é um dom entre os demais, por isso ele não é sequer comparável

com os dons que Paulo relativiza nos primeiros versículos do capítulo 13. Ele é “o

caminho infinitamente superior" se fizermos questão da linguagem rivalística, mas se

estivermos prontos para uma linguagem mais madura (1Cor 3,1), diríamos apenas

que o amor é O dom do Espírito; que sua unicidade é análoga à do próprio Deus, que

11 Conferir, por exemplo, 2 Cor 11, 22 - 30, que termina em: “se é preciso orgulhar-se, farei consistir meu orgulho na minha fraqueza”. 12 "So Paul with irony queries Corinthian Christians as he realizes that some of them covet important spiritual roles in the community. Although he does not specify, he may be referring to the three num-bered in v. 28 or at least to prophecy, with which he will compare speaking in tongues in chap. 14, but only after he has finished saying what has to be said about all the listed pneumatika in their relation to agapē in chap. 13. The irony is seen in that they are striving for what is in reality a gift of the Spirit." Cf. FITZMYER, Joseph A. First Corinthians: A New Translation with Introduction and Commentary. New Haven: London, 2008, p.484.

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não é um entre os deuses, mas O Deus único. O amor é único como Deus, porque,

como diz João, Deus é amor (1Jo 4,8)13.

Com efeito, assim como João expressa a identidade de Deus positivamente,

Paulo, depois de uma série de sentenças apofáticas, inaugura o discurso catafático

ao afirmar que o amor tem paciência. Ao falar do amor como sujeito, Paulo nos indica

mais uma vez que o amor não é um dom entre os outros, mas o próprio Espírito em

pessoa14.

Diríamos na linguagem da teoria mimética que o Espírito Santo, enquanto amor

entre o Pai e o Filho, pode ser caracterizado antropologicamente como mímesis

criativa. Ele é a própria imitação pacífica à qual se refere Jesus no evangelho de João:

“Em verdade, em verdade, eu vos digo, o Filho não pode fazer nada por si mesmo,

mas somente o que vê o Pai fazer, pois o que o Pai faz, o Filho faz igualmente” (Jo

5,19)15. O Filho imita o Pai e nós, ao recebermos o batismo, tornamo-nos capazes de

imitar o Filho. Esta imitação é amor, o dom do Espírito.

A paciência não é uma virtude que alcançamos exclusivamente pelos nossos

esforços, mas uma qualidade que resulta da imitação de Jesus Cristo (Sl 103,8). Em

grego, a palavra paciência (μακροθυμία) traduz a ação de “permanecer tranquilo

enquanto espera”16, “suportar provocação sem reclamar” e “ser lento”, no sentido em

que o Senhor é lento para a cólera (Sl 109). Sem muita dificuldade reconhecemos que

os evangelhos descrevem estas dimensões da paciência na atividade de Cristo. O

Espírito nos concede o dom de imitá-lo nesta atitude diametralmente oposta à típica

imitação movida pela provocação do outro. A paciência, em outras palavras, é uma

recusa à mímesis movida pela rivalidade.

13 O Catecismo expressa a totalidade do amor nos seguintes termos: “Deus é Amor (1 Jo 4, 8.16) e o Amor é o primeiro dom, que contém todos os outros. Este amor ‘derramou-o Deus nos nossos corações, pelo Espírito Santo que nos foi dado’ (Rm 5, 5)”. Cf. Catecismo da Igreja Católica (CIC). 9ª. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Loyola: Paulinas, Ave-Maria: Paulus: 1998 14 "Mais do que um ente capaz de relação, no entanto, o Espírito é verdadeiramente o ‘entre’ no qual o Pai e o Filho são um como o Deus único”. Cf. RATZINGER, Joseph. Dogma e Anúncio [tradução: Pe. Antônio Steffen, SJ]. São Paulo: Loyola, 2007, p.199. 15 Estas palavras fazem parte da resposta de Jesus aos judeus que procuravam hostilizá-lo. Segundo eles, Jesus se fazia igual a Deus (Jo 5,18). Para tais judeus, o mimetismo está intrinsecamente relaci-onado à rivalidade e, portanto, qualquer tentativa de tornar-se íntimo de Deus — “ele chamava Deus de seu próprio Pai” (Jo 5,18) — implicaria em blasfêmia. Jesus inaugura a mímesis criativa neste mundo, mas seus adversários não conseguem destreinar seus olhos de enxergar rivalidade onde quer que haja proximidade. 16 DANKER, Frederick William & BAUER, Walter. A Greek-English lexicon of the New Testament and other early Christian literature. Chicago: University of Chicago Press, 2000, p. 612.

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Em seguida, Paulo diz que o amor “é serviçal” e complementa a atitude passiva

da paciência com uma postura ativa que consiste na benevolência para com o

próximo, pois o amor não é constituído apenas de uma recusa da imitação rivalística,

mas da proposição de uma imitação criativa. Após exortar os coríntios a abandonarem

qualquer espécie de mímesis rivalística em 1Cor 10, 32, ele diz: “Sede meus

imitadores, como eu o sou de Cristo” (1Cor 11,1). Paulo, portanto, não propõe o

abandono da imitação em si, mas a adesão a uma nova forma de mímesis trazida ao

mundo pelo mediador universal, Jesus Cristo.

Este “novo” desejo, ao contrário do “antigo”, não é ciumento, não se pavoneia,

não se incha de orgulho. A palavra grega para ciúme é ζῆλος e significa também

inveja. Tanto o ciúme quanto a inveja são manifestações patentes da triangularidade

do desejo rivalístico, pois em ambos os casos o sujeito entra em conflito com o

mediador por causa de um objeto. O amor, pelo contrário, não é movido pelo desejo

de possuir o outro ou qualquer coisa que ele possua. O amor tampouco se pavoneia,

isto é, anseia de tal modo pela aprovação alheia que se oferece insistentemente à

visão dos outros, como um pavão que conquista os olhares de todos ao erguer sua

cauda. Por último, o amor não se incha de orgulho. Esta última metáfora é usada

várias vezes por Paulo e até mesmo por Jesus (Mt 16,6) e ilustra o efeito da

arrogância. Esta, como o fermento, faz crescer aquilo que naturalmente seria menor.

O sujeito que ama não precisa oferecer-se como espetáculo ao olhar do outro porque

não carece de sua aprovação. Sabe-se amado primeiro (1Jo 4,19) e não vai em busca

de seu próximo afim de buscar o seu amor, mas de transmitir a ele o amor que

recebeu. “Há mais felicidade em dar do que em receber” (At 20,35).

3.5 “Nada faz de inconveniente, não procura o próprio interesse. Não se irrita,

não guarda rancor” (1Cor 13,5).

Este versículo alude ao famoso adágio de Paulo no início do capítulo décimo

desta carta: "Tudo é permitido, mas nem tudo convém; tudo é permitido, mas nem

tudo edifica. Ninguém procure o próprio interesse, mas o de outrem" (1Cor 10, 23-24).

Deste modo, fica claro que a inconveniência referida no capítulo décimo terceiro

refere-se à atitude de impor a si mesmo como o critério de outrem.

No próprio contexto do capítulo décimo, Paulo ensina que recusar a

inconveniência equivale a recusar o escândalo. Em seu livro Eu via Satanás cair como

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um Raio, Girard nos ensina que a palavra σκάνδαλον significa mais do que

ordinariamente extraímos de seu sentido popular contemporâneo:

A palavra grega skandalizein vem de um verbo que significa mancar. Ao que se assemelha um manco? A um indivíduo que seguiria, com sua própria sombra, um obstáculo invisível no qual incessantemente ele vem a tropeçar (GIRARD, 1999, p.39).

O sujeito que propõe um objeto ao próximo apenas para impedi-lo de o obter é

“aquele por quem o escândalo vem” (Mt 18,7), a temerosa figura sobre a qual Jesus

procurou alertar seus discípulos. Mas por que o sujeito que propõe a imitação de si

mesmo ao próximo é tão ameaçador? Porque, em primeiro lugar, ele desvia a

mediação transcendente de Jesus Cristo para a mediação imanente de si mesmo,

tornando seu imitador um idólatra. Tal como um ídolo, o mediador que se impõe como

tal, alimenta o seu desejo com a rivalidade suscitada pela imitação do próximo. Ora,

se por um lado ele convida o próximo a imitá-lo, por outro, ele mesmo se torna o

obstáculo que impede seu próximo de realizar o desejo suscitado. É desta

insuficiência do outro que ele próprio alimenta o seu desejo, exatamente como os

ídolos que em troca de adoração prometem todas as coisas, mas não podem dar coisa

alguma: “Têm boca, não falam; têm olhos, não veem; têm ouvidos, não ouvem; têm

nariz, não cheiram; mãos, não apalpam; pés, não andam” (Sl 115, 5-7)

No contexto da carta, Paulo ensina os coríntios a não julgarem uns aos outros

segundo seus próprios critérios (1Cor 4,3), proibindo-os de se oferecerem como

modelos de imitação mútua. Como dissemos anteriormente, porém, Paulo não

censura a imitação em si, mas desloca sua mediação para Cristo, pois só

cristologicamente podemos compreender sua petição para que os membros da

comunidade de Corinto relativizem seus costumes sagrados para alcançarem a

unidade (1Cor 10,33).

Cristo, para reconciliar todas as coisas (Cl 1,20), “esvaziou-se" até à cruz,

desapegando-se de sua condição divina (Fl 2,6). Seus discípulos o imitam ao se

despojarem de qualquer que seja sua condição (judeu ou grego) para buscarem uma

unidade formada sem qualquer obstáculo entre uns e outros; uma unidade que se

expande e se reforma eucaristicamente, isto é, a partir da autoentrega fundadora de

Jesus na última ceia, repetida por seus discípulos onde quer que se encontrem17.

17 Podemos vislumbrar a dimensão da Missa enquanto atualização do mistério pascal.

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O evangelho de Lucas relata que o próprio Jesus ilustrou de maneira didática

o fenômeno do escândalo ao contar a parábola do fariseu e do coletor de impostos

(Lc 18, 9-14). Nela, o fariseu representa “aquele por quem o escândalo vem”, o sujeito

que se coloca como modelo ao próximo para gozar de uma condição que depende da

insuficiência do outro: “Ó Deus, graças te dou por não ser como os outros homens,

que são ladrões malfeitores, adúlteros, ou ainda como esse coletor de impostos. Eu

jejuo duas vezes por semana, pago o dízimo de tudo que adquiro” (Lc 18,11-12).

Os coríntios podem até não se expressar da maneira caricata do fariseu, mas

se não estão em plena comunhão com os irmãos por apego aos costumes que lhes

garantem prestígio, estão reproduzindo o mesmo desejo rivalístico que Jesus

reprovara no fariseu. Para Paulo, portanto, a conveniência é uma qualidade radical

que pressupõe a capacidade de renunciar a todo tipo de prestígio para formar uma

comunhão sem obstáculos com o próximo.

O versículo diz ainda que o amor "não se irrita” (1Cor 13,5b). Em sua exortação

apostólica Amoris Laetitia, o papa Francisco relaciona esta qualidade à “paciência”,

do versículo anterior.

Se a primeira expressão do hino nos convidava à paciência, que evita reagir bruscamente perante as fraquezas e os erros dos outros, agora aparece outra palavra - paroxínetai - que diz respeito a uma reação interior de indignação provocada por algo exterior. Trata-se de uma violência interna, uma irritação recôndita que nos põe à defesa perante os outros, como se fossem inimigos nocivos a evitar. (AL 103)

Dissemos anteriormente, em termos da teoria mimética, que a paciência

caracteriza uma recusa à mímesis rivalística. As palavras do Papa Francisco reforçam

esta ideia. Mais do que isso, ao discorrer sobre a palavra grega que se traduz por

"irritação", o pontífice oferece uma dica valiosa para uma interpretação mimética do

fenômeno: irritar-se, no contexto da carta, é, sobretudo, colocar o outro no lugar do

bode expiatório (inimigos nocivos), pois uma vez que o sujeito se põe à defesa, acusa

automaticamente o outro de se pôr no ataque.

A última característica do amor mencionada neste versículo é sua incapacidade

de guardar rancor, que responde ao pedido de Deus de não alimentar nos “corações

nenhum propósito de fazer o mal uns aos outros” (Zc 8,17). Se a paciência é o antídoto

para uma provocação imediata que tenta o sujeito à irritação, o não-rancor é um

remédio contra a deliberação de fazer o mal em resposta a um mal sofrido. Em termos

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miméticos: a paciência é um remédio contra o escândalo, enquanto que o não-rancor

se caracteriza como a recusa do indivíduo de participar de quaisquer fenômenos de

bode expiatório. A maneira um tanto irônica das Escrituras expressarem essa recusa

está na noção de que a vingança pertence a Deus (Dt 32,35). Noção irônica porque

não pretende perscrutar o comportamento de Deus, mas proibir ao homem a

retribuição18.

3.6 “Não se regozija com a injustiça, mas encontra a sua alegria na verdade”

(1Cor 13,6).

Aqui a injustiça encontra-se em oposição à verdade. De fato, a ordem social

está fundada em uma mentira indispensável para o funcionamento do mecanismo do

bode expiatório.

A verdade é extremamente rara nesta terra. Cabe mesmo pensar se ela não seria totalmente ausente. De fato, os arrebatamentos miméticos são, por definição, unânimes. Cada vez que um deles acontece, convence todas as testemunhas, sem exceção. Transforma todos os membros da comunidade em falsas testemunhas inabaláveis, já que incapazes de perceber a realidade. Dadas as propriedades do mimetismo, o segredo de Satanás deveria estar protegido de qualquer revelação. Das duas uma: ou o mecanismo vitimário é disparado e sua unanimidade elimina todas as testemunhas lúcidas, ou então ele não dispara, as testemunhas permanecem lúcidas, mas nada têm a revelar. Nas condições normais, o mecanismo vitimário não é passível de ser conhecido. O segredo de Satanás é inviolável. (GIRARD, 1999, p. 264)

A Ressureição é verdadeira Revelação do que acontece “nos bastidores” do

mecanismo vitimário. Os discípulos são passíveis de serem justificados porque, em

primeiro lugar, tornam-se capazes de identificar a injustiça à qual eles próprios

sucumbiram (Mc 14,50).

Esta percepção é já a própria graça do Espírito Santo que “tem o poder de nos

justificar, isto é, purificar-nos de nossos pecados e comunicar-nos ‘a justiça de Deus

pela fé em Jesus Cristo’, para usar a linguagem do Catecismo (CIC 1987). Ora, o

18 Cf. ALISON, James. Raising Abel: The Recovery of the Escathological Imagination. New York: Crossroad Herder, 1996. No capítulo 4 Alison mostra como Jesus subverte a noção de vingança; ao adiar o julgamento para o final dos tempos, Jesus pode dizer agora: “Não julgarás” (Mt 7,1). Também pode-se conferir GESCHÉ, Adolphe. O Mal: Deus para pensar [tradução: Euclides Martins Balancin]. São Paulo: Paulinas, 2003, p.50: “É minha a vingança’, diz o Senhor (Dt32,35). Isso não quer dizer que Deus seja justiceiro, mas certamente ele prefere não ver confiada a nós essa tarefa!”

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próprio Catecismo nos diz que a primeira obra da graça do Espírito Santo é a

conversão (CIC 1989), processo que nos torna capazes de acusarmos a nós mesmos

ao invés de acusarmos o outro.

A Verdade que nos liberta (Jo 8,32) está, portanto, necessariamente

relacionada a uma transformação social que começa com a confissão dos pecados e

que busca transformar não apenas o indivíduo, mas toda a comunidade humana,

através do perdão que nos é dado pela Vítima definitiva, Jesus Cristo, e pelo antídoto

ao veneno do mimetismo rivalístico que consiste na imitação de sua vida terrestre.

O anúncio do Evangelho nunca é, portanto, meramente informativo. É também

performativo, pois a Verdade está intrinsecamente relacionada à justiça, e esta à

verdade. O amor, que compreende toda a justiça e a supera (CV 6), encontra sua

alegria na verdade porque não existe sem ela (CV 6).

No microcosmo da comunidade de Corinto, o amor se alegra naquele que não

compactua, ou até regozija, com a injustiça feita a outro. Dada a natureza coletiva do

mimetismo, tal dissensão torna-se sempre árdua, uma vez que a forma mais comum

de garantir a própria segurança numa comunidade parida pelo mecanismo do bode

expiatório consiste em compactuar com a maioria, seja na verdade ou na mentira.

Curiosamente, portanto, Cristo nos deu o exemplo da suprema alegria ao

morrer na cruz. Ele, em sua vida terrestre, mais do que ninguém, recusou qualquer

pacto com os poderes em defesa dos marginalizados, e, por isso mesmo, acabou

ocupando o lugar da vítima.

Nota-se a estranheza desse paradoxo no esforço de certas traduções

modernas da Bíblia em traduzir Hebreus 12,2 como “Jesus, o qual, renunciando à

alegria que lhe era devida” (TEB) ou “Jesus, que em vez da alegria que lhe foi

proposta, sofreu a cruz”. (Bíblia de Jerusalém). Ora, a frase não é adversativa no texto

original em grego e seria mais correto traduzi-la como faz a Bíblia do Peregrino:

“Jesus, o qual, pela alegria que lhe foi proposta, sofreu a cruz”. Alegria e cruz não

estão em oposição na Carta aos Hebreus. Tampouco há qualquer identificação entre

elas. Com efeito, Jesus não desejou os sofrimentos pelo quais passou, mas os

assumiu para revelar que não eram necessários em primeiro lugar. Em vista deste

objetivo, e por amor aos homens, Cristo sofreu para que pudesse compartilhar

conosco a verdade e sua alegria (Jo 15,11).

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3.7 “Ele tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1Cor 13,7).

“Tudo desculpa” é uma tradução inexata do texto grego, pois στέγει traduz-se

melhor como acoberta, guarda ou protege. Mais especificamente, este guardar está

relacionado ao uso da língua. Em outras palavras: o amor tudo guarda em seu coração

(Lc 2,19) e não expressa uma palavra de acusação. Diz-nos o Papa Francisco a

respeito deste termo:

Implica limitar o juízo, conter a inclinação para se emitir uma condenação dura e implacável: ‘Não julgueis e não sereis julgados’ (Lc 6,37). Embora isto vá contra o uso que habitualmente fazemos da língua, a Palavra de Deus pede-nos: ‘Não faleis mal dos outros, irmãos’ (Tg 4,11). Deter-se a danificar a imagem do outro é uma maneira de reforçar a própria, de descarregar ressentimentos e invejas, sem se importar com o dano causado. (AL 112)

O próprio Papa Francisco assim nos indica a maneira como a fofoca está

relacionada ao mecanismo do bode expiatório. Ao danificar a imagem de alguém, o

sujeito alcança um objetivo duplo: Induz os olhares da multidão para o outro e afasta-

os de si; ao acusar o outro ele salva a si mesmo. Tal dinâmica nos ajuda a entender

a dificuldade em resistir à tentação da fofoca e a velocidade com que a rivalidade

mimética é propagada entre os membros de uma comunidade, desesperados pela

garantia de sua própria segurança. O mimetismo rivalístico suscitado pela fofoca nos

mostra que Tiago não recorre à hipérbole quando diz:

A língua também é um fogo, o mundo do mal, a língua está instalada entre nossos membros e mancha o corpo inteiro, abrasa o ciclo da natureza, sendo ela mesma abrasada pela geena. Não há espécie, tanto de animais ferozes como de pássaros, como de répteis, como de peixes, que a espécie humana não chegue a domar. Mas a língua, nenhum homem consegue domá-la; flagelo que não para, cheio de veneno mortal (Tg 3, 6 - 8).

O amor “tudo crê”. Paulo, por contraste, agora menciona uma atitude positiva

com relação às palavras. O amor não apenas silencia ao invés de retrucar, mas

oferece a quem fala o benefício da dúvida. O dom de domar a língua complementa-

se, assim, com o dom da boa fé.

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Esperança e perseverança constituem as duas últimas atribuições ao amor

neste versículo. A Carta aos Hebreus irá expor em detalhes a dinâmica entre a virtude

teologal e a atitude de persistência que lhe acompanha.

Com efeito, esperança significa mais do que simplesmente aguardar, e não se

deve supor que o cristão deva preocupar-se apenas com a realização das promessas

“no além” enquanto se mantém firme na indiferença ao mundo. Na sua encíclica Spe

Salvi, o Papa Bento XVI diz, comentando a Carta aos Hebreus:

A fé não é só uma inclinação da pessoa para realidades que devem vir, mas que ainda estão totalmente ausentes; ela nos dá algo. Dá-nos já agora algo da realidade esperada, e esta realidade presente constitui para nós uma ‘prova' das coisas que ainda não se vêem. Ela atrai o futuro para dentro do presente, de modo que ele já não é o puro “ainda não”. O fato de este futuro existir muda o presente; o presente é tocado pela realidade futura, e assim as coisas futuras derramam-se nas presentes e as presentes nas futuras (SS 7).

O que a fé na Ressureição de Cristo nos permite esperar é um mundo no qual

a morte não é. Esta esperança, possibilitada pela “prova” da fé, modifica o sentido de

nossa existência e transforma nossa prontidão para a destruição em prontidão para a

glória (Rm 9, 22-23). Em termos miméticos, isso significa que nossa existência deixa

de ser fundada sobre a morte produzida pelo mecanismo do bode expiatório para ser

“refundada" (recriada, em termos neotestamentários) a partir da vida eterna.

Ora, para nós, a vida eterna recebida do crucificado é plena precisamente

porque emerge além dos limites impostos pela cultura humana para aquilo que deve

viver e desfaz os lugares “sagrados" da morte. Cristo, que ocupou o lugar da

vergonha, da humilhação e da morte, e que ao ressuscitar não buscou a retaliação,

mas a paz, permite-nos vislumbrar um mundo sem separações, reformado pelo

perdão a partir das margens, onde vivem os famintos, os estrangeiros, os doentes, os

nus, os cativos (Mt 25, 34-37).

Este vislumbre da fé, que é a esperança, produz a perseverança em nós na

medida em que somos encorajados a viver de maneira não-reativa, como o próprio

Cristo, que não precisou apropriar-se de sua vida porque sabia que a tinha junto do

Pai. Se esta perseverança significa uma recusa da mímesis de apropriação, significa,

por outro lado, a aceitação de uma mímesis orientada para a autoentrega, vivida na

imitação de Cristo, que se entregou pela humanidade e assim revelou a realidade

última do desejo, que permanece mimético, mas não rivalístico. Com efeito, como o

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próprio Cristo imita o Pai, a imitação do desejo de Cristo é a imitação do desejo não

rivalístico de Deus, um desejo que a Bíblia ilustra como criativo (Gn 1).

Perseverança, então, é mais do que resistir à tentação do desejo rivalístico, é

viver desde já a mímesis criativa, revelada em plenitude na vida e na ressureição de

Cristo, e em via de revelação na nossa própria vida.

3.8 “O amor nunca desaparece. As profecias? Serão abolidas. As línguas

acabar-se-ão. O conhecimento será abolido” (1Cor 13,8).

Aqui Paulo retoma a discussão que iniciou o capítulo sobre o amor e os dons

do Espírito afirmando que apenas o amor nunca falha. Se a princípio os dons da

profecia, das línguas e do conhecimento haviam sido relativizados em relação ao

amor, agora eles são colocados em oposição direta sob o prisma da vida eterna.

Já estava dito que a profecia, o dom de línguas e o conhecimento são

realidades provisórias, úteis, neste mundo, para a salvação dos homens, mas sem

valor intrínseco se desassociadas do amor. Agora, mesmo sua utilidade a serviço do

evangelho é delimitada neste mundo pela sua natureza transitória.

Ao falar no futuro, Paulo não pretende, neste versículo, referir-se meramente a

um tempo cronológico posterior19, mas a um tempo em que os coríntios abandonarão

a busca pelo prestígio dos dons espirituais para viverem o amor-agápe de maneira

desprendida e desinteressada. Se Paulo menciona o "tempo" escatológico no qual

cessarão todos os dons, ele o faz de maneira retórica para reforçar que a busca pela

apropriação destes dons, em troca de prestígio, é vã e está fadada ao nada. Somente

o amor-agápe, que é resultado da imitação do desejo não-apropriativo de Cristo, pode

subsistir, pois é, ele próprio, o desejo criador de Deus que faz subsistir todas as coisas.

3.9 “Pois o nosso conhecimento é limitado e limitada a nossa profecia” (1Cor

13,9).

19 “Paulo contrapõe o presente (‘agora’) em que os coríntios supervalorizam os dons espirituais, com um futuro (‘então’) em que eles darão suprema importância às virtudes essenciais da fé, da espe-rança e do amor. Cf. MIGUENS. Emanuel. 1Cor 13: 8-13 reconsidered. CBQ - The Catholic Biblical Quarterly, Washington, v. 37, p.76, Jan. 1975.

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Porque somos criaturas gestadas pelo mecanismo do bode expiatório (Sl 51,5)

nosso modo de conhecer é, ele próprio, resultado da deformação mimética do desejo.

Dissemos algumas vezes no decorrer desta análise que os coríntios se mostravam

incapazes de compreender qualquer coisa que não fosse ilustrada por meio de uma

linguagem moldada pela rivalidade. Como dissemos, Paulo recorre à ironia para se

comunicar com eles.

De fato, os evangelhos estão repletos de ironia20. Isto acontece porque esta

forma de expressão possibilita uma subversão do sentido literal (rivalístico) da

linguagem: É através da ironia de Caifás que aprendemos soteriologia (Jo 11,50); da

placa posta sobre a cruz, colocada por Pilatos, que contemplamos Jesus ser

declarado Rei dos judeus (Jo 19,19). Para se fazer entender, Deus precisa

desconstruir o sentido elaborado por nossa mentalidade rivalística, mas só pode se

comunicar positivamente quando, através da ironia, nós mesmos negamos o sentido

de nossas palavras.

Estamos tão impossibilitados de conhecer diretamente as coisas como o cego

de nascença de enxergar (Jo 9). Jesus, ao revelar o fenômeno do bode expiatório,

permite-nos ter acesso a um outro modo de conhecer, um que não é deformado pela

rivalidade. "Nosso limitado conhecimento” acabará, não porque a vida eterna é

ininteligível, mas, pelo contrário, porque nela conheceremos plenamente.

Enquanto vivemos no mundo formado pela rivalidade mimética, porém, não

apenas o nosso conhecimento é “limitado”, mas também a profecia e todos os outros

dons, ainda que omitidos aqui. O que Paulo quer dizer, mais uma vez, é que os dons

não justificam-se por si mesmos, mas apenas em vista do amor, que é a consumação

de todos os dons.

3.10 “Mas quando vier a perfeição, o que é limitado será abolido. Quando eu era

criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança.

Quando me tornei homem, pus cobro ao que era próprio da criança” (1Cor 13,

10-11).

20 Conferir, por exemplo, BERG, Inhee. C. Irony in the Matthean Passion Narrative. Minneapolis: For-tress Pres, 2014; CAMMERY-HOGGATT, Jerry. Irony in Mark’s Gospel. Cambridge: Cambridge Uni-versity Press, 1992.

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Estes dois versículos estão reunidos aqui porque apesar das diferentes

nuances, compartilham o tema já introduzido do contraste entre o provisório e o

definitivo. O versículo décimo é a expressão literal deste tema que domina os últimos

versículos do hino, que parece interessar a Paulo sobremaneira porque está

diretamente relacionado ao seu argumento de que o amor transcende todos os dons.

O contraste entre a criança e o adulto já fora explorado por Paulo no início do

capítulo terceiro desta mesma carta: “Quanto a mim, irmãos, não pude falar-vos como

a homens espirituais, mas somente como a homens carnais, como a criancinhas em

Cristo. É leite o que vos dei a beber, não alimento sólido; não o teríeis suportado”

(1Cor 3,1-2). A criança é a imagem do “velho Adão”, capaz de falar, pensar e

raciocinar através da rivalidade com a qual foi ele próprio formado socialmente. O

“novo homem”, por contraste, está representado na imagem do adulto, cuja

descontinuidade com a infância nos lembra as palavras de Jesus no evangelho de

João: “O que nasceu da carne é carne e o que nasceu do Espírito é espírito” (Jo 3, 6).

A maturidade à qual Paulo se refere não é alcançada por uma progressão natural da

capacidade intelectual ou de comunicação do homem velho, mas pela Graça que

concede ao novo Adão um novo nascimento; uma recriação, que, fundada na vitória

da vida sobre a morte, possibilita ao ser humano pôr fim à teimosia infantil que o

mantinha cativo no eterno retorno da rivalidade mimética.

3.11 “Agora, vemos em espelho e de modo confuso; mas então, será face a face.

Agora, o meu conhecimento é limitado; então, conhecerei como sou conhecido”

(1Cor 13, 12).

Ao conhecimento indireto que mencionamos anteriormente Paulo alude com a

imagem do espelho. Já a visão direta é ilustrada com uma imagem do livro dos

Números (Nm 12,8) em que Deus diz que conversa face a face com Moisés. Isto

parece indicar que o objeto do conhecimento em questão é Deus, mas acreditamos

que a segunda parte do versículo qualifica a primeira de maneira a explicitar que o

que se conhece é, sobretudo, uma maneira de ser conhecido.

Dissemos que o escândalo se alimenta da insuficiência do desejo do outro.

Este, atraído pela armadilha do desejo mimético rivalístico por seu modelo/obstáculo,

constitui-se essencialmente como um sujeito carente (Gn 3,7). Esta carência, fruto da

rivalidade, não pode jamais ser superada pela posse do modelo/obstáculo, uma vez

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que o próprio mediador não pode oferecer o que não tem, afinal, ele próprio só é o

que priva o outro de ser. Deseja-se, portanto, a partir da privação do outro. Este é o

desejo que, em última instância, pela morte do bode expiatório, alimenta o homem

velho a partir da morte.

Ora, além de anular a eficácia do mecanismo do bode expiatório, a Ressureição

subverte a constituição do sujeito através de um desejo não mais originado na morte

da vítima, mas na superação da morte da vítima. Na Ressureição, funda-se um novo

ponto de partida para o desejo, não mais originado na privação, mas no dom; no

reconhecimento e não mais na negação. Impossibilitados de receber este desejo do

outro social, tão comprometido como nós mesmos com a morte, só podemos recebê-

lo através de um Outro, não comprometido com a ordem social deste mundo, que, ao

adentrá-la, é capaz de subvertê-la no seu fundamento.

O sujeito que recebe a si mesmo não mais a partir da privação do outro, mas

da doação do outro não sofre da carência do homem velho, pois reconhece na

dependência do outro a condição do seu ser. O desejo rivalístico convertido em desejo

criativo não levará o sujeito a possuir o outro, mas a doar-se ao outro, de modo que,

finalmente, o dilema do desejo é resolvido de maneira não violenta, capaz de edificar

uma comunidade sem a necessidade de excluídos. A chave dessa resolução, então,

está em conhecer como se é conhecido: É porque descobre-se amado por um Outro

que o sujeito torna-se capaz de amar os outros. Conhecer como se é amado, eis o

conhecimento imperecível ao qual Paulo opõe o "conhecimento limitado".

Estas considerações aplicam-se ao desejo como tal, mas mais particularmente

aos coríntios, já que a eles Paulo endereça sua carta. De fato, ainda que as palavras-

chave da carta não apareçam explicitamente neste versículo, elas estão articuladas

implicitamente: A solução para a desesperada busca pelo prestígio dos dons não deve

ser buscada no outro, mas no Outro que "doou" sua vida por “amor”. É a descoberta

de ser amado primeiro que permite ao homem doar-se de maneira desinteressada,

pois ele já não precisa preencher carência alguma, uma vez que sua vida está

assegurada por um Outro para quem a morte não está em oposição à vida. Ora, a

condição para o desejo criativo não é a privação, mas a abundância, é o desejo de

doar-se ao outro, de compartilhar com ele o amor recebido, que constitui a fonte da

mímesis benigna.

Este desejo é possibilitado, suscitado e estabilizado através das chamadas

virtudes teologais, às quais nos dirigimos no comentário ao último versículo da carta.

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3.12 “Agora, portanto, permanecem estas três coisas, a fé, a esperança e o amor,

mas o amor é o maior” (1Cor 13, 13).

Em português a palavra fé — πίστις em grego — pode ser melhor entendida

como sinônimo da palavra acreditar, desde que entendida em sentido literal de “dar

crédito a”. Como “as virtudes teologais se referem diretamente a Deus” (CIC 1812),

trata-se de dar crédito; de dizer sim a Ele. A disposição de crer é suscitada em nós

pela persuasão divina de que a vida e morte de Cristo nos foram entregues para

revelar que o amor é mais forte que a morte. Ter fé, então, é ser persuadido de que

se é amado; é conhecer como se é conhecido.

Por possuir “desde agora o que se espera” (Hb 11,1) o sujeito é libertado da

necessidade de alcançar qualquer coisa para ser. No reconhecimento de que para ser

ele depende de um Outro que o ama, e para quem a morte não é, ele está livre das

amarras miméticas desse mundo. Como dissemos anteriormente, ele está

possibilitado a agir de maneira não-reativa, de suportar provocações com paciência e

perseverança, pois sabe que sua vida não precisa ser conquistada de modo rivalístico,

através da posse do outro, mas no recebimento da herança que lhe foi prometida.

Esta é a relação entre fé e esperança, que, por ser tão simbiótica, é quase tratada

como sinônimo na carta aos Hebreus21.

Como também aludimos anteriormente, a fé e a esperança não são meras

condições para a recusa do desejo mimético rivalístico, mas as virtudes necessárias

para o aparecimento de um desejo mimético positivo: o amor. Este amor só é possível

para aquele que se sabe amado primeiro; só arde no coração daquele que pode

compartilhar porque recebeu. Seu movimento não é centrípeto, mas centrífugo,

praticado por alguém que pode doar sua própria vida ao outro, pois vive ele próprio

da doação do Outro (Mc 8,35). Só pode, enfim, amar desinteressadamente o próximo

aquele que vive na imitação de Jesus Cristo.

Este amor desinteressado é indissociável de seu objeto privilegiado: os

marginalizados e excluídos deste mundo, pois Cristo, ele próprio, morreu na suprema

21 “No décimo primeiro capítulo da Carta aos Hebreus, encontra-se, por assim dizer, uma certa defini-ção de fé que entrelaça estritamente esta virtude com a esperança”. BENTO XVI. Spe Salvi: Sobre a Esperança Cristã (SS). São Paulo: Loyola, 2007.

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marginalização e na extrema vergonha. Ressuscitado, Ele nos concede a vida eterna

na condição da vítima inocente, de modo que não podemos receber a nós mesmos22

sem reconhecer a injustiça deste mundo para aqueles que se encontram além das

margens. (Mt 11, 5). Em outras palavras: O amor de Cristo que abre nossos olhos

para enxergar a ordem social fundada na mentira e na violência, é o amor que objetiva

a construção de uma sociedade sem bodes expiatórios através da fé e da esperança.

São Tiago, que no começo do nosso trabalho inquiria sobre a causa dos

conflitos que dilaceram uma comunidade, ajudar-nos-á também neste desfecho. Ao

dizer que a fé sem obras está morta (Tg 2,17) ele dramatiza as palavras de Paulo,

para quem agora permanecem estas três coisas, a fé, a esperança e o amor, mas o

amor é o maior”.

22 Falamos em “receber a nós mesmos” porque a mímesis criativa possibilita a formação do Self de maneira receptiva, em oposição à formação rivalística do Self por apropriação. Freud, por exemplo, refere-se à rivalidade necessária para formação do Self ao postular um complexo de Édipo, pois, para a psicanálise freudiana, o homem apropria-se do Self ao entrar em conflito com o pai. A teoria mimé-tica também enxerga esta rivalidade na formação da identidade (ainda que não se limite a um modelo filial de conflito), mas permite-nos vislumbrar, através da revelação cristã, uma identidade formada sem a necessidade de conflitos (bodes expiatórios); uma identidade conferida pela Graça.

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Considerações finais

Perguntávamos no início do presente trabalho se os textos bíblicos oferecem

uma intuição fundamental a respeito do comportamento humano. Muitas respostas

foram dadas para esta pergunta, mas estas nem sempre se mostraram compatíveis

com a doutrina da Igreja. Psicologismo, materialismo dialético, sociologismo e muitos

outros “ismos" pecaram ao reduzir o vocabulário bíblico e teológico a uma semântica

alheia que se apropriava das Escrituras para torná-la mera manifestação de princípios

externos supostamente científicos.

Portanto, no que diz respeito à interpretação bíblica, a grande virtude da teoria

mimética encontra-se no respeito ao vocabulário propriamente teológico. Ela não

apenas se recusa a tomar o vocabulário bíblico de maneira reducionista, mas parte

dele para explicar o comportamento humano. A ideia de um bode expiatório, o perigo

do escândalo, o envio do Espírito defensor, a crítica profética da ordem social e a

onipresença implícita da Ressureição compõem o vocabulário eminentemente

teológico da teoria mimética.

Girard nunca negou que a descoberta do desejo mimético e a intuição do

mecanismo do bode expiatório fossem consequências de sua leitura da Bíblia

Hebraica e dos Evangelhos. Mais do que isso, Girard confessa que os Evangelhos só

são concebíveis como textos elaborados por testemunhas de um evento

humanamente impossível:

Para romper a unanimidade mimética é preciso postular uma força superior ao contágio violento, e se aprendemos algo neste ensaio, é que essa força não existe na Terra. É justamente porque o contágio violento sempre foi todo-poderoso entre os homens, antes do dia da Ressureição, que a religião arcaica divinizou-o. As sociedades arcaicas não são tão idiotas quanto pensam os modernos. Elas têm boas razões para considerar divina a unanimidade violenta. A Ressureição não é apenas milagre, prodígio, transgressão das leis naturais; ela é o sinal espetacular da entrada em cena, no mundo, de um poder superior aos arrebatamentos miméticos. Diferentemente destes, esse poder nada tem de alucinatório ou mentiroso. Longe de enganar os discípulos, ele os torna capazes de identificar o que não identificavam antes, e lamentar sua lastimável debandada dos dias precedentes, reconhecendo-se culpados de participação no arrebatamento mimético contra Jesus. (GIRARD, 2012, p. 266)

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Em suma, Girard, além de interpretar a cultura através das Escrituras — não o

contrário — estabelece um diálogo entre teologia e antropologia sem reduzir a

primeira à segunda, mas respeitando seu lugar e as categorias que lhe são próprias:

sobrenatural, revelação etc.

Esta inversão epistemológica o liberta, ao menos em princípio, da idolatria que

permeou muitas das tentativas modernas de elaborar uma síntese entre teologia e

antropologia. A teoria mimética, além do mais, mostra-se apta a expandir o alcance

da teologia subordinando-se a ela como uma ciência social informada pela revelação

cristã, como pretende, por exemplo, John Milbank em Teologia e teoria social23.

Neste sentido, uma leitura mimética do décimo terceiro capítulo da Primeira

Carta aos Coríntios, objeto escolhido neste trabalho para analisar o diálogo entre a

teoria de Girard e as Sagradas Escrituras, permite-nos vislumbrar, por amostragem,

os possíveis resultados desta empreitada para os estudos bíblicos.

Nota-se a fecundidade do método na sua capacidade de referenciar o Hino ao

amor a outros textos do Antigo e do Novo Testamento, iluminando-os mutuamente.

Tal método também nos permite uma leitura do capítulo treze em continuidade

temática com os capítulos que o seguem e antecedem. Este resultado surpreende-

nos sobretudo pela dificuldade dos exegetas modernos em relacionar este texto —

frequentemente lido como uma inserção — aos demais capítulos da Primeira Carta

aos Coríntios.

Ora, a leitura mimética do Hino permite relacioná-lo a outros textos da Escritura

porque o remete àquele que é o argumento primário da teoria mimética e dos

Evangelhos: A Paixão e Ressureição de Cristo é um evento apocalíptico, isto é,

revelador. Mais importante, porém, nossa análise mostra como o amor — uma forma

alternativa, não-violenta, receptiva e criativa do desejo mimético — tem primazia entre

o que é revelado.

Como nos diz Jesus “Era preciso que o Cristo sofresse isso para entrar na sua

glória” (Lc 24, 26). Sua paixão se fez necessária em vista da Ressureição, evento que

não ocorre em lugar comum, mas no espaço sagrado da morte vergonhosa e maldita.

Ao ressuscitar, Cristo anula a eficácia do mecanismo que o matou e o expõe

publicamente em espetáculo (Cl 2, 15) , afim de que possamos "saber o que fazemos”

(Lc 23, 34). Mas tomamos consciência destes fatos, assegurados de que tudo nos foi

23 MILBANK, John. Teologia e Teoria Social: Para além da razão secular [tradução: Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves]. São Paulo: Editora Loyola, 1995

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revelador por amor. Paradoxalmente — e esta é a Boa Nova — a Paixão de Cristo foi

necessária para nos explicar que a violência e o desejo rivalístico não o são: Existe,

enfim, um desejo anterior24 à queda; um desejo não deformado pela rivalidade; que

não é movido pela carência, mas pela abundância; formado não na apropriação do

outro, mas na autoentrega ao outro.

Esta autoentrega é imitação de Cristo. Dinâmica em que aprendemos a perdoar

na medida em que somos perdoados, a amar na medida em que somos amados, a

se entregar na medida em que somos recebidos.

O amor, portanto, não se traduz em nossa análise por um sentimento vago e

genérico, mas pela dinâmica própria da imitação de Cristo. O amor ao qual nos

referimos é marcado pela sua capacidade de ultrapassar as barreiras familiares,

étnicas, culturais e nacionais porque é sempre reformado a partir da vítima que se

oferece livremente como ponto de partida de uma nova unidade sempre expandida

eucaristicamente.

Com esta sugestão de que a teoria mimética pode contribuir também para o

desenvolvimento da eclesiologia, concluímos nosso trabalho satisfeitos não somente

com a capacidade da antropologia mimética para iluminar os textos bíblicos, mas,

sobretudo, com a capacidade do texto bíblico de iluminar a antropologia.

24 “Anterior" aqui não tem sentido cronológico, mas ontológico.

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