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Passo FundoEditora IMED

2016

IMPACTO CIENTÍFICO E SOCIAL NA PESQUISA

IX Mostra de Iniciação Científica e Extensão Comunitária e VIII Mostra de Pesquisa de Pós-Graduação da IMED

Faculdade Meridional IMED

Artigos convidados

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Diretor GeralEduardo Capellari

Diretora AcadêmicaDaiane Folle

Diretora AdministrativaMarilú Benincá de David

Diretor de Relações com o MercadoWilliam Zanella

Diretor de Pesquisa e Pós-Graduação Stricto SensuJoão Alberto Rubim Sarate

Coordenador da Escola de AdministraçãoAdriano José da Silva

Coordenadora da Escola de Arquitetura e UrbanismoRenata Barbosa Ferrari Curval

Coordenador da Escola de DireitoLuciano de Araújo Migliavacca

Coordenador da Escola de Engenharia CivilRodrigo de Almeida Silva

Coordenador da Escola de Engenharia MecânicaRichard Thomas Lermen

Coordenadora da Escola de MedicinaRaquel Scherer de Fraga

Coordenador da Escola de Medicina VeterináriaDeniz Anziero

Coordenador da Escola de OdontologiaLeodinei Lodi

Coordenador da Escola de PsicologiaLuiz Ronaldo Freitas de Oliveira

Coordenador da Escola de Sistemas de Informação e Ciência da ComputaçãoAmilton Rodrigo de Quadros Martins

Coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em AdministraçãoKenny Basso

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Arquitetura e UrbanismoCaliane Christie Oliveira de Almeida

Coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em DireitoMárcio Ricardo Staffen

Conselho EditorialDaiane FolleDaniel Knebel BaggioEduardo CapellariFahad KalilFausto Santos de MoraisMarcele Salles MartinsVanessa SebbenVinícius Renato Thomé Ferreira

Responsável Editora IMEDWanduir Rudinei Sausen

© 2016 Autores

Filiada a

Editora IMEDR. Senador Pinheiro, 304 - Rodrigues99070-220 - Passo Fundo/RS, BrasilFone: (54)3045-9081E-mail: [email protected]/editora

CIP – Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ___________________________________________________________

M915i Mostra de Iniciação Científica e Extensão Comunitária (9.:2015: Passo Fundo, RS)Impacto científico e social na pesquisa : artigos

convidados / [coordenação editorial] Faculdade Meridional. – Passo Fundo : IMED, 2016.

1, 18 Mb ; e-BOOK.

Inclui bibliografia.ISBN 978-85-99924-83-9

1. Pesquisa – Congressos. 2. Abordagem interdisciplinar do conhecimento. 3. Ciência. I. Mostra de Pesquisa de Pós-Graduação da IMED (8.: 2015: Passo Fundo, RS). II. Faculdade Meridional – IMED.

CDU: 001.8: 061.4___________________________________________________________

Bibliotecária responsável Angela Saadi Machado - CRB 10/1857

Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/.

DOI: 10.18256/978-85-99924-83-9

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SUMÁRIO

Apresentação .............................................................................................. 5

Sociologia da sociedade líquida autopoiética .......................................... 7Gabriel Zanatta Tocchetto, Salete Oro Boff

Projeção e estratificação quantitativa de circulação de unidades veiculares na cidade de Passo Fundo (RS), Brasil: proporção e análise.................................................................................... 12Maurício Kunz, Tales Gonçalves Visentin, Tauana Bertoldi, Alcindo Neckel

Relações entre Psicologia Social, Ideologia e Humanismo .................... 20Sandra Mara Fim Chies, Edemilson Meazza, Mariuá Ferreira Frozza, Israel Kujawa

As contribuições da Política Jurídica e a importância do Cuidado para a efetivação dos direitos da criança e do adolescente ..................... 28Rafaela Rovani de Linhares, Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino

Diferenciando a realização dos direitos fundamentais .......................... 37José Paulo Schneider dos Santos, Fausto Santos de Morais

Um novo olhar sob os aspectos históricos da justiça restaurativa ......... 44Camila Bianchi da Silva, Raquel Tomé Soveral

Evolução histórica da psicologia organizacional e do trabalho ............. 52Thayla Dalbosco, Amanda Martinello da Rosa, Kelly Zanon De Bortoli Pisoni

A criminologia crítica e seus limites epistemológicos no debate sobre os danos causados pela indústria da carne no Brasil .................... 59Jenifer Patrícia Fragoso Bonatto, Karine Agatha França, Marília De Nardin Budó

Os benefícios da religiosidade na velhice ................................................ 67Luana Cristina Zick Queiroz, Monalisa Col Debella

A atuação instrutória do juiz no processo penal brasileiro ................... 74Ana Claudia de Lima, Muriele de Conto Boscatto

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S U M Á R I O

APRESENTAÇÃO

Não me considero especialista nem em ciência nem em filosofia. Tenho, contudo, tentado com afinco, durante toda a minha vida, compreender

alguma coisa acerca do mundo em que vivemos. O conhecimento científico e a racionalidade humana que o produz são, em meu entender, sempre falíveis ou sujeitos a erro. Mas são também, creio, o orgulho da humanidade. Pois o homem é, tanto quanto sei, a única coisa no universo que tenta entendê-lo.

Espero que continuemos a fazê-lo e que estejamos também cientes das severas limitações de todas as nossas intervenções.

Karl Popper*

Prezado leitor,

É com imensa satisfação que apresento a obra Impacto científico e social na pes-quisa, fruto da IX Mostra de Iniciação Científica e Extensão Comunitária e VIII Mostra de Pesquisa de Pós-Graduação da IMED. O cotidiano da pesquisa e iniciação científica da IMED, nas suas diversas áreas do conhecimento, saúde, politécnica, direito e administração, materializa-se neste trabalho.

A atividade de pesquisa científica no Brasil tem sofrido críticas quanto a seus resultados no tocante a aplicação prática de seus resultados, bem como ao posicio-namento de nossas pesquisas no âmbito internacional. A comunidade científica brasileira vem debatendo constantemente, em seus diversos fóruns, alternativas de melhor posicionar nossa investigação científica. Os indicadores mostram que nos últimos anos o Brasil avança em termos de quantidade de publicações científicas, o que não se reflete na qualidade dos estudos, ou seja, o impacto gerado pelo conheci-mento publicado. Isso nos leva a refletir sobre o papel da pesquisa no Brasil e a bus-car novas formas de executar essa nobre atividade. Além disso, é possível salientar a dificuldade crescente na busca de fomento para pesquisa, atividade que por natu-reza é dispendiosa em termos de recurso. O contexto atual de exaustão do sistema público de fomento direciona instituições de ensino superior com foco em pesquisa a encontrarem soluções de financiamento junto a iniciativa privada. Historicamente o Brasil não tem tradição desse tipo de parceria, pois academia e empresa andaram por caminhos diferentes. Contudo, é consenso entre as próprias agências de fomento público à pesquisa que essa aproximação é natural e necessária para subsidiar pesquisas com impacto social e econômico que contribuam para o desenvolvimento do nosso país. Como disse bem o Sr. Hernan Chaimovich (Presidente do CNPq) no Fórum de Pró-Reitores de Pós-Graduação e Pesquisa – FOPROP 2015, realizado em Goiânia, o sistema nacional de pesquisa não se sustenta pelos resultados individuais dos estudos a serviço apenas da promoção de poucos, no seu estrito grupo de cientistas, mas sim, pelos impactos práticos desses resultados à sociedade.

* POPPER, Karl. O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Lisboa: Edições 70, 1999.

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Apresentação

Fundamentada nessa crença, a IMED investe recursos próprios e busca fomento público e privado para desenvolver pesquisas com foco no desenvolvimento social e econômico. Projetos que incluam iniciação científica e tecnológica desempenham papel fundamental neste sistema, pois oportunizam o nascimento do interesse e da vivência da atividade de pesquisa. O esforço do corpo de docentes pesquisadores tem sido reconhecido pelas agências de fomento públicas que têm financiado programas de iniciação científica júnior (PICMEL – FAPERGS) que permite a realização de atividades de pesquisa com jovens estudantes do ensino médio de escolas públicas de Passo Fundo, projeto esse cujos resultados foram reconhecidos e premiados pela FAPERGS. Contamos também com bolsas de iniciação científica e tecnoló-gica FAPERGS, CNPq e IMED que estimulam a participação de nossos alunos de graduação em projetos de pesquisa liderados por nosso qualificado corpo docente formado por mestres e doutores, salientando, é claro, a importante contribuição nesse processo de nossos Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu recomendados pela CAPES, em Direito, Administração e Arquitetura e Urbanismo.

Finalmente, agradeço imensamente a todos que contribuíram para a realização da IX Mostra de Iniciação Científica e Extensão Comunitária e VIII Mostra de Pesquisa de Pós-Graduação da IMED, corpo docente, discente e técnico administrativo, pois sem eles essa obra não seria possível.

Grande abraço e ótima leitura.

Dr. João Alberto Rubim SarateDiretor de Pesquisa e Pós-Graduação Stricto Sensu da IMED

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S U M Á R I O

http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-83-9-1

SOCIOLOGIA DA SOCIEDADE LÍQUIDA AUTOPOIÉTICA

Sociology of the liquid autopoietic society

Gabriel Zanatta TocchettoEstudante do curso Direito da IMED, participante do grupo

de pesquisa Modelos Constitucionais Sistêmicos Autopoiéticos, bolsista do Núcleo de Inovações Tecnológicas IMED.

E-mail: <[email protected]>.

Salete Oro BoffOrientadora. Pós-Doutora em Direito – UFSC. Professora do PPG Direito IMED.

Grupo de Estudos em Desenvolvimento, Inovação e Propriedade Intelectual – GEDIPI. Coordenadora do projeto de extensão NIT – Núcleo de Inovação Tecnológica IMED.

E-mail: <[email protected]>.

Resumo

A sociedade apresenta-se como hipercomplexa no século XXI. Nesse meio, o artigo ora proposto traz o elemento da subjetividade, presente na liquidez de Bauman, e analisa-o com a objetividade e pontualidade apresentadas pela autopoiese. Ao mes-mo tempo, critica a objetividade apontando que ela, na Teoria Sistêmica Autopoié-tica, causou uma periferização de certas discussões que são necessárias a uma so-ciologia crítica na pós-modernidade, momento em que equipara a autopoiese com a sociologia crítica da liquidez em Bauman.Palavras-chave: Autopoiese. Liquidez. Economia. Comunicação.

Abstract

Society in itself is presented as hipercomplex in the 21st century, what this article makes is bringing the element of subjectivity brought by Bauman’s liquidity and analyses it with the objectivity and punctuality presented by autopoiesis; while at the same time bringing a critic to the objectivity , pointing that it, in Systemic Autopoiesis, has caused a peripheralization of certain discussions which are neces-sary to a critic sociology in post-modernity, moment in which this article matches autopoiesis with liquidity in Bauman.Keywords: Autopoiesis. Liquidity. Economy. Communication.

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G. Z. Tocchetto, S. O. Boff

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1 Introdução

A sociedade líquida, nos seus mais diversos âmbitos, representa um evento ob-servado por Zygmunt Bauman, em diversas publicações1, que influenciou tanto a sociologia quanto a filosofia no século XXI. Ele remete o leitor para uma visão crí-tica da sociedade consumista na qual estamos inseridos no contexto pós-moderno2. A observação praticada pelo autor mostra-se tão profunda e atual que mesmo as teorias sociológicas mais complexas podem ser utilizadas em cúmulo com parte de sua obra, elemento que será aqui melhor desenvolvido e estudado.

A Teoria Sistêmica Autopoiética é uma teoria trazida para a sociologia pelo autor e sociólogo Niklas Luhmann (2012). Um dos grandes destaques da teoria, em âmbi-to científico, acontece pelo fato de não se objetivar mais a produção de conhecimen-to voltado para quaisquer objetivos tidos pelo observador/estudioso; e, sim, permitir única e objetivamente a colocação e explicação do Sistema Social como um todo de uma forma metodologicamente coesa, apesar de ocorrerem certas “periferizações” teóricas ao longo do caminho.

Um estudo de ambas as teorias aponta para uma situação na qual é possível estruturá-las de forma interdependente. Esse contexto contempla certos elementos metodológicos e bases pontuais; a teoria sistêmica, em uma observação atual do Sis-tema Social (em que o aspecto econômico aparece exaltado em relação aos outros), pode ser complementada e associada em muitos sentidos ao que é construído por Bauman em Modernidade Líquida (2000) e nos aprofundamentos da referida obra, publicados posteriormente pelo autor.

2 Desenvolvimento

O estudo em tela será dividido em duas partes que, com o objetivo de simplificar sua estruturação, focarão as explicações na comunhão teórica que o artigo constrói.

A economização social é um elemento latente na pós-modernidade e que muitas vezes pode, por si só, descrever todo o contexto social no qual o século XXI se am-bienta. Importante salientar que, nesse primeiro momento, se fala de economização social não como simplesmente “capitalismo” ou no domínio de mercados, mas con-siderando que a comunicação social como um todo tem dado uma ênfase extrema-mente exacerbada a tudo o que envolve a comunicação econômica.

O grande problema de uma comunicação econômica exacerbadamente praticada ocorre no momento em que ela deixa em segundo plano, “periferiza”, outros ele-mentos sociais – seja pelo fato de que para comunicar passa a ser necessário consu-mir (contexto da digitalização social3), seja pelo fato de que a própria comunicação, nos meios de comunicação em massa mesmo, passa a ignorar elementos que não são de preocupação da economia.

1 A título exemplificativo: Modernidade Líquida (2000), Amor Líquido (2003), Vida Líquida (2005), Medo Líquido (2006), Tempos Líquidos (2006), Vida a Crédito (2010).

2 O presente artigo não busca a discussão do termo “pós-moderno” e sequer ousa qualificá-lo como termo correto. A expressão é simplesmente utilizada por comodidade de entendimento, por remeter ao período pós-2ª Guerra Mundial, podendo ser substituído em qualquer contexto por “hipermodernidade” ou mesmo outro termo análogo.

3 Sobre o tema da digitalização do Sistema Social, vide: TOCCHETTO, Gabriel Zanatta; TONET, Fernando. Limites Constitucionais. Revista do Curso de Direito da Faculdade da Serra Gaúcha, n. 17, 2015. Disponível em: <http://ojs.fsg.br/index.php/direito/article/view/1384>.

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Sociologia da sociedade líquida autopoiética

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Ao juntar os referidos elementos, chega-se ao aspecto do qual o artigo buscará tratar: a sociedade passa, gradativamente, por um processo que (independentemen-te da digitalização ou da comunicação dos meios de comunicação em massa, mas instrumentalizando-os, no dado momento histórico) infla o sistema econômico em detrimento de todos os outros sistemas sociais, e relativizando mesmo o elemento que constitui a própria sociedade, a “comunicação”.

2.1 Tempos de liquidez

Desde a modernidade (segunda metade do século XV), o dinheiro, como objeto em si, adquire uma característica peculiar que tende a se acentuar vertiginosamente com o passar do tempo: a característica de comunicação universal. O maior, mais dinâmico e mesmo mais objetivo modo de praticar a comunicação no mundo é pela via financeira.

A acentuação vertiginosa desse elemento é passível de análise sob dois pontos de vista (o primeiro muito mais limitado que o outro): em um momento inicial, essa comunicação dinâmica e objetiva possibilita avanços tecnológicos que a humanida-de “jamais pensou possível”; em um segundo momento, percebe-se que a dinâmica do sistema do capital faz muito mais do que proporcionar avanços para a humani-dade, ela nos apresenta um contexto em que a irracionalidade do capital subverte a sociedade a uma batalha de seres sociais contra seres sociais em busca de dinheiro.

O elemento da sobreposição da comunicação econômica é o que trará cientificidade ao argumento da “fluidez” social (BAUMAN, 2000, p. 9) e também o elemento com o qual a Teoria Sistêmica Autopoiética trabalhará no contexto da sociedade líquida.

Esse elemento é tão presente na sociedade que, mesmo em um contexto de desu-manização da produção (a criação de máquinas que façam o trabalho de pessoas, na indústria ou em qualquer setor da sociedade), não houve uma melhora na qualidade de vida da população mundial. Em vez de um contexto em que as pessoas trabalhem menos e possuam uma qualidade de vida maior em escala global, pelo fato de a produção ser mais eficiente e praticada por máquinas e não pessoas, o que a reali-dade nos mostra é uma situação em que a produção continua pagando pouco para o trabalhador, que agora tem um medo crescente de ser substituído por máquinas.

Estar sem emprego implica ser descartável, talvez até ser descartado de uma vez por todas, destinado ao lixo do “progresso econômico” – essa mudança que se reduz, em última instância, a fazer o mesmo trabalho e obter os mesmos resultados econômicos, porém como uma força de trabalho mais reduzida e com “custos de mão-de-obra” me-nores que antes. (BAUMAN, 2007, p. 75).

A liquidez da sociedade é exatamente o que permite que o sistema econômico trabalhe a escassez na fartura; ao mesmo tempo que a facilidade, quantidade e qua-lidade da produção aumentam, a qualidade de vida diminui e as riquezas se concen-tram cada vez mais nas mãos dos que já as possuem.

2.2 O sistema econômico

Na teoria sistêmica autopoiética, o sistema econômico se caracteriza por traba-lhar com o paradoxo da escassez. Esse elemento proporciona ao referido sistema a maior “quantidade” de independência observada hoje em todo o Sistema Social4.4 Tem-se ciência de que a discussão acerca do elemento da independência do sistema econômico

fica em aberto, por não caber no desenvolvimento do presente trabalho; porém, sem dúvida, será um elemento futuramente explorado.

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G. Z. Tocchetto, S. O. Boff

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A escassez em si apresenta ao sistema econômico uma espécie muito peculiar e célere de hiperciclo em que a escassez só ocorre de um ponto a outro (quando um tem e outro não tem) e se reproduz pela própria operação do sistema econô-mico (onde se transporta a escassez de um ponto a outro). Sendo assim, “O efeito é observado como motivo e o motivo é também efeito” (CORREIA, 2014, p. 69). A economia é capaz de gerar o seu próprio paradoxo antes mesmo de operacionalizar comunicação ou observação.

Isso significa que o sistema econômico, além de possuir a referida espécie peculiar de hiperciclo, se encontra em um contexto em que é capaz de praticar uma seleção (segunda fase da autopoiese) que rechace absurdamente qualquer variação interna que não sirva diretamente ao paradoxo da escassez. Assim, é capaz mesmo de sub-meter outros sistemas a esse paradoxo, por meio de acoplamentos estruturais que acabam reforçando a autonomia autista do sistema econômico em detrimento de todo o seu entorno – de todo o Sistema Social.

A exigência de simultaneidade “garante que os horizontes de passado e futuro do sis-tema e do ambiente se integrem, isto é permitir sua combinação com horizontes mun-diais”. Entretanto, não há garantia de que os eventos no ambiente do sistema se or-denarão de acordo com a noção de tempo do sistema, a “simultaneidade de todos os eventos”, como sublinha Luhmann, “significa a incontrolabilidade de todos os eventos”. (KING, 2009, p. 70-71).

O elemento principal da tese levantada acontece exatamente na evidência da simul-taneidade do Sistema Social, que acaba não acontecendo em detrimento do sistema econômico que operacionaliza da forma que o faz sob o paradoxo que o constitui.

3 Considerações finais

O sistema econômico dentro do Sistema Social é atualmente estudado, por parte dos doutrinadores, de forma muito condescendente, contexto que revela uma possí-vel limitação que a sociologia autopoiética apresenta em relação à sociologia crítica da era digital. A apresentação de certas diferenças do sistema econômico em relação a outros subsistemas sociais serve de fato ao estudo objetivo do subsistema em ques-tão, porém a teoria não pode fazer de parte da sociedade periférica da própria teoria.

O contexto apresentado monta quase que um cenário no qual a teoria vestiu roupas de gala e deixou de tratar do que é periferia da própria teoria (ou ao menos do que se fez dela em alguns textos pontuais), não por exaltar o sistema econômico em si, mas por deixar de lado, muitas vezes, análises objetivas do sistema da saúde ou mesmo elementos como a preservação ambiental.

Esse é o motivo pelo qual a liquidez social foi escolhida como teoria a ser colocada lado a lado com a autopoiese, situação em que se pode trazer mais da sociologia crítica, e também muitos elementos de realidade, para dentro dos es-critos de Luhmann e dos que hoje sobrevêm e constroem constantemente a Teoria Sistêmica Autopoiética.

Enquanto o elemento de periferização de elementos faz da liquidez extremamente útil à autopoiese, são a objetividade e pontualidade desta que servem como ‘uma luva’ ao estudo daquela, sendo que a Teoria Sistêmica torna possível muito mais do que um estudo da liquidez da modernidade: um estudo de toda a estrutura social que compõe a modernidade.

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Sociologia da sociedade líquida autopoiética

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Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.______. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.CORREIA, José Gladiston Viana. Sociologia dos Direitos Sociais. São Paulo: Saraiva, 2014.LUHMANN, Niklas. The Reality of the Mass Media. Stanford: Stanford University Press, 2000.______. Theory of Society. Stanford: Stanford University Press, 2012. (Volume 1).______. Theory of Society. Stanford: Stanford University Press, 2012. (Volume 2).KING, Michael; SCHWARTZ, Germano; ROCHA, Leonel Severo. A verdade sobre a autopoiese no direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

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S U M Á R I O

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PROJEÇÃO E ESTRATIFICAÇÃO QUANTITATIVA DE CIRCULAÇÃO DE UNIDADES VEICULARES NA

CIDADE DE PASSO FUNDO (RS), BRASIL: PROPORÇÃO E ANÁLISE

Projection and units movement quantitative stratification in vehi-cular step city Passo Fundo/RS - Brazil: e ratio analysis

Maurício KunzGraduando em Arquitetura e Urbanismo IMED.

E-mail: <[email protected]>.

Tales Gonçalves VisentinGraduando em Arquitetura e Urbanismo IMED.

E-mail: <[email protected]>.

Tauana BertoldiGraduando em Arquitetura e Urbanismo IMED.

E-mail: <[email protected]>.

Alcindo NeckelProfessor doutor da IMED.

E-mail: <[email protected]>.

Resumo

As pesquisas voltadas à mobilidade urbana são de grande importância no contexto atual das cidades, uma vez que possibilitam melhorias nos deslocamentos de pe-destres e veículos no espaço urbano, seus modos e formas, e, consequentemente, na qualidade de vida para a população. Transitar em algumas cidades no Brasil, a exemplo de Passo Fundo (RS), em horários de pico está, cada vez mais, se tornando insustentável. Isso se deve à grande quantidade de veículos transitando em vias que não foram adequadamente projetadas em se tratando do material, configuração e/ou dimensão, ou até mesmo pensadas em diferentes formas dentro do espaço geo-gráfico. Nesse contexto, o diagnóstico e planejamento da mobilidade urbana com bases sustentáveis para a Cidade de Passo Fundo (RS) é de extrema importância; é objetivo principal deste trabalho avaliar a mobilidade urbana do município pas-so-fundense, propondo possíveis soluções quanto ao intenso fluxo veicular em de-terminadas artérias da cidade. Passo Fundo, atualmente, sofre com diversificados problemas de mobilidade urbana devido ao grande volume e intensidade do fluxo

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Projeção e estratificação quantitativa...

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de veículos e ao exíguo número de vias alternativas de acesso e circulação na cidade. Por meio da identificação dos variados tipos de mobilidade urbana na cidade de Passo Fundo (RS) será possível desenhar as formas de mobilidade urbana ligadas à morfologia, com bases representativas em mapas de fluxos. Portanto, este trabalho visa quantificar e estratificar a circulação de veículos e pedestres em cinco das mais importantes vias da cidade de Passo Fundo (RS) para identificar os comportamen-tos relacionados à mobilidade urbana e, assim, propor melhorias a serem feitas em relação a infraestrutura e modos de utilização das vias. Palavras-chave: Mobilidade urbana. Transporte público. Diagnóstico de fluxo.

Abstract

The research focused on urban mobility are of great importance in the current context of the cities, as possible improvements in pedestrian and vehicle movements in urban areas, their ways and forms, and consequently the quality of life for the population. Transit in some cities in Brazil, like Passo Fundo (RS), at peak times are, increasin-gly becoming unsustainable. This is due to the large number of vehicles transiting in ways that were not properly designed, in the case of material, configuration and / or size, or even thought of in different ways within the geographical space. In this context, diagnosis and urban mobility planning with a sustainable basis for the city of Passo Fundo (RS) is of utmost importance, being the main objective of this work was to evaluate the urban mobility of the mentioned passo-fundense municipality, proposing possible solutions regarding the heavy vehicle flow in certain arteries of the city. Passo Fundo currently suffer from diverse problems of urban mobility due to the sheer volume and intensity of the flow of vehicles and the small number of alternative forms of access and circulation in the city. By identifying the various types of urban mobility in the city of Passo Fundo (RS) you can draw the shapes of urban mobility related to morphology, with representative bases in flow maps. Therefore, this study aims to quantify and stratify the movement of vehicles and pedestrians in five of the most important roads in the city of Passo Fundo (RS) to identify behaviors related to urban mobility and thus propose improvements to be made in relation to infrastructure and usage modes of the roads.Keywords: Urban mobility. Public transport. Diagnostics flow.

1 Introdução

O acelerado processo de urbanização das cidades brasileiras resulta no crescimento do tráfego de veículos automotores, causando congestionamentos, poluição atmos-férica e sonora, além de dificultar a mobilidade urbana por meio da saturação dos sistemas viários existentes. A preferência pela utilização de transportes individuais motorizados em detrimento do transporte público contribui consideravelmente para o excessivo número de veículos nas ruas, principalmente nos horários de pico. Assim, os sistemas viários, que não foram devidamente projetados para escoar tais quantidades de veículos, encontram-se saturados, ocasionando problemas como congestionamentos, poluição sonora e atmosférica e redução da qualidade de vida.

Esse espaço urbano encontra-se em constante (re)produção, segundo Silva Junior e Rutkovski (2011, p. 18); isso torna as cidades um ambiente de intensas mu-

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M. Kunz, T. G. Visentin, T. Bertoldi, A. Neckel

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danças, “implicando, assim, o avanço das técnicas que, ao se inserirem no espaço produzido pelo homem, desenvolvem as estruturas e infraestruturas que possibilitam a produção do capital e da sociedade”. Essa maneira de materializar, pensar ou (re)pensar o que foi urbanizado requer o avanço de técnicas que reproduzam melhorias na mobilidade urbana.

Para melhor avaliar a mobilidade urbana, deve-se entender o motivo dos deslo-camentos dos habitantes dentro da cidade. Esses diferentes fatores também influenciam a escolha do transporte a ser usado, motivado principalmente pelo senso comum, por exemplo, as pessoas tendem a escolher um meio de transporte visto pelos demais como “normal” ou desejável. O uso de carros privados é o que melhor se encaixa nisso, já que se considera que o uso de um carro gera mais status que o uso do transporte co-letivo (WANG; FENG; LIANG, 2008; DONDI et al., 2011; GARCÍA-PALOMARES; GUTIÉRREZ; LATORRE, 2012; OGILVIE; GOODMAN, 2012; HANKEY et al., 2012).

A alternativa seria o uso de transportes não motorizados; haveria menor con-gestionamento, menos acidentes, além da contribuição para o meio ambiente (não provocando poluição), favorecendo uma melhor qualidade de vida para a população usuária (KLEIN; BIESENTHAL; DEHLIN, 2015).

Outra solução, segundo Fuji e Kitamura (2006), seria a escolha de modais de transporte, que também é influenciada pelo nível de qualidade do sistema de trans-porte, juntamente com os fatores psicológicos – percepções, atitudes e hábitos. Ora, para uma mudança de padrão de uso dos modais de transporte, é latente a necessidade de mudança desses fatores psicológicos.

Dentre os problemas relacionados à mobilidade urbana, destaca-se a utilização massiva do automóvel, que causa problemas na qualidade de vida urbana e na aces-sibilidade a diversos destinos, além de poluição ambiental (STEG, 2005). Os estudos de Steg (2005) demonstram que a utilização do carro, frequentemente relacionada a fatores instrumentais como velocidade, conveniência e flexibilidade, não é motivada somente por suas funções como instrumento, mas também por fatores simbólicos e afetivos, como sensação de poder, status social e realização pessoal.

Para Klein, Biesenthal e Dehlin (2015), com vistas à melhoria da mobilidade urbana, considerando os problemas citados, uma das atitudes a ser tomada é atrair o maior número de pessoas para o transporte público ou meios alternativos de des-locamento, como caminhadas ou uso de bicicletas. Para atingir esse objetivo, é im-portante conhecer os fatores psicológicos que influenciam na escolha do tipo de transporte, a qualidade dos serviços oferecidos pelo transporte público e as medidas necessárias para diminuir a dependência de carros (BEIRÃO; CABRAL, 2007).

Ao considerar a importância de analisar e repensar o planejamento das vias ur-banas, este artigo se contextualiza pelo seguinte objetivo geral: avaliar a mobilidade urbana da cidade de Passo Fundo (RS), propondo possíveis soluções quanto ao in-tenso fluxo veicular em determinadas artérias.

Esta pesquisa torna-se de fundamental importância ao destacar os variados ti-pos de deslocamentos realizados nos trechos analisados na área urbana, para assim identificar padrões instrumentais e psicológicos determinantes da escolha entre os diversos meios de transporte e, a partir disso, repensar os modos de mobilidade urbana, no intuito de promover propostas de melhorias no transporte público, com meios alternativos de transporte.

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Projeção e estratificação quantitativa...

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2 Metodologia

O município de Passo Fundo, situado no norte do estado do Rio Grande do Sul, entre as coordenadas geográficas 28º07´ e 28º25 de latitude Sul e 52º17´ e 52º41’ de longitude Oeste, perfaz atualmente uma área territorial de 754,40 km² (IBGE, 2015).

Os pontos de análise correspondem a locais de maior fluxo das duas avenidas principais (Brasil e Presidente Vargas) e três ruas coletoras paralelas à Avenida Principal (Moron, Paissandú e Uruguai) (Figura 1). Para a escolha dos locais, consi-derou-se a importância dessas vias na mobilidade dentro da área central da cidade.

Figura 1 – Localização dos pontos de amostragem no mapa urbano de Passo Fundo (RS)

Fonte: Adaptado de Prefeitura Municipal de Passo Fundo.

O levantamento de dados foi feito por contagem in loco de veículos, divididos nas categorias carros, camionetes, motocicletas, caminhões, ônibus, além de pedestres e ciclistas. As coletas ocorreram em dias úteis, em três intervalos de uma hora, nos períodos das 08:00/09:00h, 13:00/14:00h e 17:00/18:00h. Foram realizadas três repetições por horário e local de amostragem, gerando um con-tingente de 9 contagens por ponto de coleta, 3 em cada intervalo de uma hora mencionado anteriormente.

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M. Kunz, T. G. Visentin, T. Bertoldi, A. Neckel

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3 Resultados e discussões

Pelos quantitativos obtidos com as análises, fica evidente a relação entre a tipo-logia da vias (Figura 2) e a forma como são usadas. Além da tipologia, a ambiência e os usos predominantes da via também influenciam em sua utilização.

Figura 2 – Perfis das vias analisadas

Fonte: Elaboração própria.

A Rua Moron, de vocação comercial e com arborização em ambos os passeios, cria uma ambiência favorável à circulação de pedestres, de modo que o maior fluxo de pedestres entre os pontos analisados foi observado ali, chegando a cerca de 1750 pessoas no intervalo de uma hora no horário de pico (13:00/14:00).

Por outro lado, o ponto de coleta na Avenida Presidente Vargas, localizado a cerca de dois quilômetros do centro da cidade, mostra um outro comportamento em relação ao fluxo. Tendo essa avenida uma ligação com a RS-324, acaba servindo como acesso à cidade para as pessoas vindas de Marau, Vila Maria, Casca e outros municípios. Assim, a tipologia da via (arterial), juntamente com os aspectos men-cionados, além do pequeno número de comércios no entorno, explica o baixo fluxo de pedestres verificado nos levantamentos, assim como o alto fluxo de veículos de passeio e de carga.

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Figura 3 – Quantitativos obtidos no levantamento de fluxo

Fonte: Elaboração própria.

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A comparação entre os dados do levantamento apresentados na Figura 3, que relata as diferentes quantidades de fluxos, com a eficiência dos diversos meios de transportes, representada pela Figura 4 (necessidade de determinado sistema de transporte conforme o tamanho da população usuária), nos mostra uma evidente preferência pelo transporte com menor eficiência para a mobilidade urbana: o uso do carro privado. Além disso, pode-se considerar a Rua Moron como exemplo de eficiência em mobilidade peatonal, já que conta com um fluxo de aproximadamente 1750 pedestres por hora nos horários de pico, distribuídos em seus dois passeios com largura de 3,50 metros.

Figura 4 – Capacidade de corredor: número de pessoas/hora em via urbana com largura de 3,50 metros

Fonte: adaptado de Botma e Papendrecht (1991).

A Avenida Brasil contempla a totalidade de fluxo de 1781 veículos identificados por hora. Conforme a estimativa de Botma e Papendrecht (1991), pela quantidade de habitantes que se somou aos 184.826 habitantes do censo de 2010 (IBGE, 2015), seria importante pensar sistemas metroviários de transporte para a cidade de Passo Fundo (RS), juntamente com outros transportes alternativos (bicicletas).

Atualmente, a Avenida Brasil continua sendo importante acesso a outras re-giões, pois é via de tráfego intenso de veículos que interligam duas importantes rodovias: uma federal, a BR-285, e uma estadual, a BR-153, que faz conexão espe-cialmente de São Paulo com o todo o estado do Rio Grande do Sul, além de fazer ligação direta com os países do MERCOSUL – muitas vezes, esses veículos com-prometem toda a mobilidade urbana da cidade de Passo Fundo (RS), pois passam pela área central da cidade.

3 Considerações finais

Considerando os dados do levantamento do fluxo nas vias mencionadas e sua infraestrutura, percebe-se que a configuração atual visa à circulação de carros, não

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Projeção e estratificação quantitativa...

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de pessoas, dificultando a introdução de meios de transporte alternativos. Fica evi-dente a necessidade de estimular as pessoas a usarem meios de deslocamentos alter-nativos, como caminhadas e bicicletas, ou até mesmo priorizarem o uso do trans-porte público em detrimento do individual. Um dos procedimentos recomendados é a definição de uma prioridade de meio de deslocamento para cada tipo de rua, possibilitando que existam ruas dedicadas a pedestres e ciclistas.

Nesse aspecto, fica evidente a pré-disposição da Rua Moron, principalmente no trecho analisado (entre a Rua Bento Gonçalves e a Rua Capitão Eleutério), ao trânsito exclusivo de pedestres e ciclistas. O baixo fluxo de veículos seria facilmente desviado, permitindo a criação de um espaço de convivência no local da atual faixa. A criação desse espaço público seria tão boa para os pedestres quanto para os comerciantes locais, visto que o número de pedestres aumentaria e, consequentemente, o número de clientes, já que são os pedestres que frequentam as lojas para fazer suas compras.

Referências

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S U M Á R I O

http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-83-9-3

RELAÇÕES ENTRE PSICOLOGIA SOCIAL, IDEOLOGIA E HUMANISMO

The Relation among Social Psychology, Ideology and Humanism

Sandra Mara Fim ChiesGraduada em Pedagogia pela Universidade Norte do Paraná. Pós-Graduada

em Psicopedagogia pela Universidade Educar Brasil; Pós-Graduada em Educação Especial pela Universidade Anglo-Americano.

Graduanda em Psicologia pela IMED (Passo Fundo, RS). E-mail: <[email protected]>.

Edemilson MeazzaGraduado em Psicologia pela IMED (Passo Fundo, RS).

Professor Didata de Biodanza titulado pela International Biocentric Foundation IBF. E-mail: <[email protected]>.

Mariuá Ferreira FrozzaGraduanda em Psicologia pela IMED (Passo Fundo, RS).

E-mail: <[email protected]>.

Israel KujawaOrientador. Professor da Escola de Psicologia, IMED, Brasil. Doutor em Psicologia

no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – PPGPSI, UFRGS.

E-mail: <[email protected]>.

Resumo

O objetivo central do presente artigo é analisar as relações entre a psicologia social, a ideologia e concepções de ser humano. Autores como Robert Farr, Silva Lane, Pedrinho Guareschi, entre outros, propõem uma psicologia social focada em uma concepção de ser humano. Esses autores tematizam princípios individuais, sociais e políticos para uma conduta ética; a partir da explicitação desses princípios e da capacidade humana de elevar o bem-estar e as responsabilidades individuais e co-letivas, é possível pensar o papel da psicologia social na construção do humanismo.Palavras-chave: Psicologia social. Construção do humano. Ideologia. Alteridade.

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Relações entre psicologia social, ideologia e humanismo

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Abstract

The main objective of this paper is to analyze the relationship between social psychology, ideology and conceptions of human being. Authors like Robert Farr, Silva Lane, Pedrinho Guareschi, among others, propose a Social Psychology focu-sed on a conception of the human being. These authors thematize individual, social and political principles of ethical conduct. From the explanation of these principles and the human capacity to raise the well-being and individual and collective res-ponsibilities is possible to think of the role of social psychology in the construction of humanism.Keyword: Social Psychology. Construction Human. Ideology. Otherness.

1 Introdução

Consideramos relevante entender a história da psicologia social para explicitar as concepções de “humanismo”. Tratar de princípios como alteridade, construção da subjetividade, identidade psíquica e identidade cultural parece um exercício de ficção quando nos deparamos com as condições da vida contemporânea. No en-tanto, necessitamos saber o que temos a ver com o mundo que nos cerca, ajustan-do-nos, conduzindo-nos, localizando-nos física e intelectualmente, identificando e resolvendo problemas que ele apresenta. O objetivo central deste artigo trata das relações entre a psicologia social, ideologia e a concepção de ser humano. No pro-blema, estão incluídos questionamentos sobre as bases teóricas que justificam uma concepção de ser humano individual e social. Entre os objetivos específicos, está a tematização de duas formas de fazer psicologia: a sociológica e a psicológica. Para tratar deste objetivo, o primeiro ponto do artigo trata da psicologia social como ciência que procura compreender o comportamento social. Seu campo de ação é, portanto, o comportamento analisado em todos os contextos e se relacionando com o objeto principal da psicologia social, o indivíduo em sociedade. O segundo objeti-vo específico identifica a construção do ser humano a partir da produção dos meios de vida. Para tratar deste objetivo, abordam-se concepções de humanismo identifi-cado com uma psicologia sócio-histórica. Para finalizar, o terceiro ponto tem como objetivo evidenciar as relações entre alteridade ou capacidade de se colocar no lugar do outro, a ideologia que as fundamenta e as contribuições da psicologia social. A me-todologia empregada na elaboração deste artigo se concentrou na leitura de teóricos, humanistas e pensadores sociais para a compreensão e análise do tema.

2 A Psicologia e o comportamento social

A psicologia social tem como foco o estudo do comportamento do indivíduo em sociedade. Segundo Lane (1995), o ambiente social incide no comportamento do indivíduo antes do seu nascimento, pois o contexto familiar e as condições em que a gestação acontece determinam a forma como esse momento será significado e vivenciado. A psicologia estuda o convívio social, como ele se processa, quais as leis que regem e quais as consequências do processo de interação social. O objeto prin-cipal da psicologia social é o indivíduo em sociedade, pois não vivermos isolados, estamos em constante interação com outras pessoas.

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I. Kujawa, S. M. F. Chies, E. Meazza, M. F. Frozza

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As principais teorias da psicologia social são as que se debruçam sobre a apren-dizagem social, com base no behaviorismo, na perspectiva cognitivista, na perspec-tiva sociocultural e na perspectiva evolutiva baseada na influência biopsicossocial. As principais áreas da psicologia social são a percepção no que se refere à compre-ensão do outro, as atitudes na tomada de decisão em relação às mudanças, agres-são e conflito como fenômenos sociais na interação com o outro e as dinâmicas de grupos que visam compreender e conhecer a própria identidade. Segundo pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Psicologia em 1988, publicada no livro Quem é o psicólogo brasileiro, os motivos apontados quando da escolha da profissão podem ser de três ordens:

Dos motivos voltados para si emerge a busca de mudanças; daqueles motivos voltados para o outro se evidencia a orientação de ajuda e, finalmente, dos motivos voltados para a profissão fica patente a atração e fascínio que o psíquico exerce sobre as pessoas. (CARVALHO et al., 1988, p. 56).

Isso significa que boa parte dos estudantes e profissionais da psicologia no Brasil tem a sua atuação voltada para a chamada psicologia tradicional na área clínica, que tem, historicamente, caráter privativo e individualizado. A psicologia social se diferencia em muitos aspectos da proposta de consultório, focando no indivíduo que está inserido na sociedade, que faz parte de um grupo social. Segundo Lane (2006), nosso modo de agir é determinado pelo grupo social ao qual pertencemos. Como, nesta convivência, definimos nossa identidade? A Psicologia Social estuda o comportamento dos indivíduos como seres influenciados pela linguagem e por valores assimilados. Tratando do desenvolvimento da consciência social, na escola e no trabalho, a autora nos faz compreender a transformação do indivíduo em agente da história de sua sociedade.

Estudando o processo de interação entre as pessoas, a psicologia social permite que se tenha uma melhor compreensão do comportamento social. Segundo Neves (2013), essa concepção de “ser humano” recoloca a relação indivíduo e sociedade, rompendo com a perspectiva dualista e dicotômica, na qual indivíduo e contexto social influenciando-se mutuamente. Propõe em seu lugar a construção de um es-paço de intersecção com novos temas, entre os quais, as representações sociais são os exemplos mais representativos. Nesses temas, está incluído o estudo das causas e efeitos do comportamento individual e da sua interação com o grupo ou sociedade; além disso, uma compreensão dos pensamentos, atitudes e comportamentos indivi-duais que repercutem no campo social e no campo individual.

No Brasil, a psicologia social se construiu no final dos anos de 1970, e a partir dos anos de 1980 deparou-se com uma literatura disponível que não respondia as inquietações e reproduzia o modelo tradicional da psicologia social. Em 1980, sur-giu a ABRAPSO (Associação Brasileira de Psicologia Social), através das mãos de alguns pesquisadores, que organizaram a ruptura da psicologia social brasileira. O rompimento com a psicologia social norte-americana está claramente colocado, na discussão do materialismo histórico-dialético. Também conhecida como psicologia marxista, esta perspectiva rompe com a psicologia social cientificista. Na época, o País estava mergulhado na ditadura militar, e a psicologia social se apresentou como uma alternativa aos métodos cientificistas. Refere Farr:

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Relações entre psicologia social, ideologia e humanismo

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No inicio da Era Moderna, a Psicologia Social nas universidades da América Latina foi fortemente influenciada pela forma psicológica dominante da psicologia social da América do Norte. A psicologia social na Era Moderna foi um fenômeno caracte-risticamente americano. Muitos dos proeminentes professores de Psicologia Social nas universidades latino-americanas receberam sua formação de pós-graduação nos Estados Unidos da América. Essa é uma situação que agora está começando a reverter, na medida em que a psicologia social está se fortificando mais na Europa e a hegemonia da língua inglesa como veículo de publicação em psicologia social está sendo desafiada pela literatura f lorescente, em psicologia social, nos idiomas latino-americanos. (1996, p. 11-12).

Segundo Farr (1994), existem duas formas diferentes de psicologia social: formas psicológicas e formas sociológicas. As formas psicológicas de psicologia social redu-zem as explicações do coletivo e do social a leis individuais. O indivíduo é entendido como uma entidade liberal, autônoma, independente das relações com o contexto social que o cerca e consciente de si. Segundo Figueiredo (1991), a história da psi-cologia emerge quando reconhece a instância individual do homem na sociedade, que, por motivos sociais, políticos e econômicos, necessita ser normatizada e padro-nizada. Desta forma, a psicologia só ganha espaço quando se tem o reconhecimento da experiência privatizada, bem como o reconhecimento da experiência da crise desta subjetividade. Ainda, é quando a doutrina liberal afirma a individualidade, liberdade e igualdade dos homens que se dá o reconhecimento daquela subjetivi-dade. Entretanto, o próprio indivíduo percebe que esses princípios são mera ilusão, ocasionando assim a crise da subjetividade, que requer solução.

Quando os homens passam pelas experiências de uma subjetividade privatizada e ao mesmo tempo percebem que não são tão livres e tão diferentes quanto imaginavam, fi-cam perplexos. Põem-se a pensar acerca das causas e do significado de tudo que fazem, sentem e pensam sobre eles mesmos. Os tempos estão maduros para uma psicologia científica (FIGUEIREDO, 1991, p. 30).

Temos afirmado que esse é um bom motivo para estudar a história da psicologia (CAMBAÚVA; SILVA; FERREIRA, 1997). Estudar a história da psicologia é apreen-dê-la na sua totalidade como criação humana, isto é, compreender como, por que e quando foi criada. Isso pode significar a compreensão do predomínio de linhas teóricas, a eleição dominante de uma determinada área de atuação, o aparecimento de novas áreas de atuação.

Mas estudar a história da psicologia vai além disso: inclui o homem como produtor de conhecimento. Dessa forma, situa-o ante o mundo em que vive e no qual atua. A forma de compreender a psicologia tem a pretensão de estudar a sociedade, no entanto não pode ignorar a existência de fatores psicológicos ou individuais que influem no comportamento social. Neste caso, o estudo da mente humana e da sua interação na sociedade, ou de grupos específicos dentro desta, se apresenta como um misto de psicologia e de sociologia. Em outras palavras, o estudo da psicologia na forma sociológica se apresenta em três vertentes: conhecer o outro, as influên-cias recíprocas entre ambos e as interações sociais. A psicologia social passa a es-tudar comportamento social, apoiando-se na compreensão das interações sociais, processo cognitivo, variáveis ambientais, contexto cultural e fatores biológicos dos

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I. Kujawa, S. M. F. Chies, E. Meazza, M. F. Frozza

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indivíduos. Desta forma, estamos considerando que o homem produz sua história e compreendendo como se desenvolvem ideias na sua relação com o mundo.

2.1 Concepções de Humanismo e as contingências sociais

Segundo Marx (1984), o primeiro pressuposto de toda história humana é a exis-tência de indivíduos humanos vivos, que se distinguem dos animais não pelo fato de pensar, mas de produzir seus meios de vida. A organização corporal desses in-divíduos e sua relação com a natureza constituem a história da humanidade. Esta relação implica transformação dos homens e da natureza, registrando pensamentos, que apoiam o conhecimento do mundo. Dessa maneira, o conhecimento humano se apresenta de diferentes formas: como conhecimento histórico, filosófico, teológico, senso comum, científico e tantos outros.

Para Chaui (2002), dadas as características que trazem a humanidade ao homem, como a liberdade, racionalidade, comunicabilidade e possibilidade de interação com a natureza e o tempo, a sociedade e a cultura definem o homem como sujeito do conhecimento e da ação, não podendo a violência reduzi-lo a coisa ou objeto. No entanto, tal cultura e sociedade, ao delinearem o que têm por crime, vício e o mal em geral, acabam por circunscrever aquilo que entendem por violência contra o próximo e, assim, erguer os valores positivos do bem e da virtude como barreiras éticas contra a violência. Mais uma vez, sem que se perceba, os homens são educados e cultivados por criação histórico-cultural na busca da sociedade por uma manutenção de seus padrões morais que, com o tempo e as gerações, são naturalizados.

Para as ideias psicológicas acerca de processos individuais e subjetivos se con-verterem em ciência requer-se um pensar sobre a história da humanidade, sobre o desenvolvimento do seu pensamento como manifestação da sua condição de vida material. Assim, apesar do fundo comum que possa haver entre sociedades com relação a certos valores éticos, é ainda primordial que seja respeitado aquilo que pode ser considerado como atitude ética pelas mais variadas culturas, ainda que tais valores agridam o que se tem por valor ético em sua própria sociedade, como, por exemplo, a manutenção da condição humana de sujeito sem que este se transforme em coisa a ser manipulada por outros.

O humanismo é uma postura de vida democrática e ética que afirma que os seres humanos têm o direito e a responsabilidade de dar sentido e forma às suas próprias vidas. Defende a construção de uma sociedade mais humana através de uma ética baseada em valores humanos e outros valores naturais, dentro do espírito da razão e do livre-pensamento, com base nas capacidades humanas.

Desta forma, o humanismo constitui uma postura de vida que entra na esfera da compreensão do outro. A psicologia humanista é uma reação ao determinismo nas práticas psicoterapêuticas, compreendendo o homem como autor de sua própria história e, ao mesmo tempo, preso a ela. Até o problema mais simples deve ser objeto de investigação psicológica para entender o indivíduo como ser humano, incluído em um mundo social constituído por ações e interações, subordinadas a usos, costumes e regras e que dizem respeito a meios, fins e resultados. Resumidamente, humanis-mo, nesta forma de compreensão, significa, entre outras coisas, reconhecer que es-tamos em relação uns com os outros, que precisamos exercitar a compreensão para atingir o mundo vivido do outro, aceitando sua racionalidade e intencionalidade.

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Relações entre psicologia social, ideologia e humanismo

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2.2 As contribuições da psicologia social para uma concepção de humanismo

Passamos a tratar, agora, das relações que podem ser estabelecidas entre a psi-cologia social, ideologia e humanismo. A psicologia social deve estudar as formas de alteridade, pensando nos modos pelos quais se estabelecem as trocas entre os seres humanos. Ao fazê-la, identifica a construção da subjetividade de um sujeito, constituída na relação com o outro. Implica, também, pensar a diferença, para acei-tação mútua, o reconhecimento da singularidade e da identidade. Para que as ideias psicológicas acerca de processos individuais e subjetivos se convertam em ciência, faz-se necessário pensar sobre a história da humanidade, sobre o desenvolvimento do seu pensamento, como manifestação da sua condição de vida material. Faz-se necessário perguntar sobre as relações que podem ser estabelecidas entre a psicolo-gia social, o entendimento da história e a ideologia que fundamenta as concepções de ser humano. Na discussão sobre o homem como objeto da ciência, inclui-se a inter-disciplinaridade entre as subdivisões para investigar as condições que possibilitam a consolidação do olhar da psicologia.

As condições econômicas e sociais advindas do modelo político-econômico vigente da globalização da economia promovem o aumento da recessão, dos pri-vilégios e do desemprego, degradando as relações humanas. A competição pelas ofertas cada vez menores de emprego e a consequente ameaça de perda daquilo que garante as condições básicas para a sobrevivência, o apelo ao consumo que não pode ser concretizado e, pior, os contingentes de excluídos e o decorrente aumento da violência e do ódio social tornam a convivência entre as pessoas cada vez mais problemática. Neste contexto, falar em alteridade, construção da subjetividade, identidade psíquica e identidade cultural é um exercício árduo. Entretanto, quando constatamos o aumento ininterrupto de pessoas que o sistema excluiu e transformou em moradores de rua, sem-teto, sem privacidade, sem sequer um espaço que separe o público do privado, totalmente expostos e invadidos pelos olhares curiosos ou indiferentes dos passantes, fica difícil pensar em preservação da identidade e na sobrevivência do sujeito. O que temos, então, são trocas marcadas pela rejeição, pelo ódio, pela indiferença. Os investimentos afetivos são, em grande parte, da mesma ordem, ou seja, falta amor, fundamento para a bondade e o caráter. As pessoas são coisificadas, e as coisas, personalizadas.

Tratar do comportamento social como uma questão psicológica isolada é fa-cilmente questionável, pois, sem situar a análise em um campo social, que leva em consideração uma gama muito maior de fatores interdependentes, interagindo en-tre si, inviabiliza uma completa análise sócio-histórica (CRESPO; FREIRE, 2014). Atualmente instala-se uma nova forma de individualismo como uma radical mu-dança de contrato social, o que tem produzido uma troca ideológica neoliberal, que põe em questão o modelo antes vigente de repartimento de riquezas e a legitimidade desse repartimento. As responsabilidades da atual constituição da sociedade e do sujeito se constroem mutuamente num processo social, histórico, político e ético.

Portanto, segundo Guareschi (2012), a psicologia social faz a junção entre o ser humano, sua consciência e a realidade exterior: sua consciência é resultante das res-postas que conseguimos dar às seguintes perguntas: Por que sou o que sou? Por que o mundo que me rodeia é assim? A verdadeira consciência, isto é, o fundamental, profundo e insubstituível, o essencial do ser humano, é o que ele consegue construir

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a partir de seu entorno existencial e do que fizeram dele, ou seja, o ser humano começa a se subjetivar, a construir, a ter consciência no momento em que descobre res-postas às perguntas. É neste sentido que precisamos ter como ponto de partida o entendimento das interações tais como elas se apresentam neste dado momento histórico, como as personalidades se expressam historicamente através da vida institucional e social mais ampla que norteiam tais relações. Esta é uma das tarefas da psicologia social; bem desempenhada, pode nos oferecer elementos necessários para a transformação da realidade.

3 Considerações finais

A grande contribuição poderá ser vista na ênfase da experiência consciente, na crença na integralidade entre natureza e a conduta do ser humano, no livre-arbítrio, na espontaneidade e poder de criação do indivíduo, no estudo de tudo que tenha relevância para a condição humana. Somente mediante a perspectiva da totalidade que a consciência é entendida. Esta, por sua vez, deve ser submetida à temporali-dade, não permanecendo estática e desmistificando a existência de uma realidade pura. Seu valor reside na relação que estabelece entre as realidades. Segundo Gua-reschi (2102), a psicologia social faz a junção entre o ser humano, sua consciência e a realidade exterior: sua consciência é resultante das respostas que conseguimos dar a estas perguntas: Por que sou o que sou? Por que o mundo que me rodeia é assim?

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S U M Á R I O

http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-83-9-4

AS CONTRIBUIÇÕES DA POLÍTICA JURÍDICA E A IMPORTÂNCIA DO CUIDADO PARA A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

The contributions of legal policy and the importance of care for effective rights of child and adolescent

Rafaela Rovani de LinharesAcadêmica de Direito na IMED. Bolsista do Programa de Iniciação

Científica – PIC IMED. Membro do Grupo de Pesquisa Ética, Cidadania e Sustentabilidade. E-mail: <[email protected]>.

Sérgio Ricardo Fernandes de AquinoOrientador. Doutor e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí

– UNIVALI. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mes-trado – em Direito do Complexo de Ensino Superior Meridional – IMED. Professor do Curso de Direito da IMED. Pesquisador da IMED. Coordenador do Grupo de Pesquisa Ética, Cidadania e Sustentabilidade. Membro dos Grupos de Pesquisa: “Modernidade,

Pós-Modernidade e Pensamento Complexo”, “Multiculturalismo e Pluralismo Jurídico” e “Transnacionalismo e circulação de modelos jurídicos”. Líder do Centro Brasileiro de Pes-quisa “Amartya Sen: interfaces com direito, políticas de desenvolvimento e democracia”.

Membro associado do Conselho Nacional de Pós-Graduação em Direito – CONPEDI e da Associação Brasileira do Ensino de Direito – ABEDI.

E-mail: <[email protected]>.

Resumo

Este artigo científico tem como objetivos analisar o contexto da legislação acerca da criança e do adolescente; perceber de que forma o Cuidado, como valor jurídico, desvela-se como condição das ações humanas; e demonstrar como a Política Jurí-dica pode servir de instrumento para a concretização dos anseios da criança e do adolescente, sujeitos vulneráveis. A pesquisa desenvolve-se por meio do método in-dutivo e da técnica de pesquisa bibliográfica, da categoria e do conceito operacional. Pode-se verificar que, muitas vezes, a falta de solidariedade, do sentimento de ser com o outro no mundo e de atuação do poder público correspondem a um óbice a ser enfrentado pelo operador do Direito, como forma de garantia à proteção integral dos direitos da criança e do adolescente.Palavras-chave: Criança. Adolescente. Cuidado. Política Jurídica.

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Abstract

This paper analyzes the legislation of child and adolescent; to understand how care such as legal status, is revealed as a condition of human actions and to prove how le-gal policy can serve as an instrument for achieving the child and adolescent desires, while vulnerable subjects. The research is developed through the inductive method and technique bibliographic search, category and operational concept. It can be seen that, often, the lack of solidarity, the feeling of being with the other in the world and action of the government represent an obstacle to be faced by the law of the operator, in order to guarantee the full protection of the rights child and adolescent.Keywords: Child. Teenager. Care. Legal Policy.

1 Considerações Iniciais

O presente trabalho analisa de que maneira os direitos da criança e do adoles-cente foram introduzidos no ordenamento jurídico brasileiro, bem como de que forma se organizou e estabeleceu a questão da doutrina da proteção integral. Neste estudo, mostra-se relevante a análise a respeito da previsão desses direitos por meio da Constituição, assim como pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. De mesmo modo, fazem-se importantes a análise a respeito das atitudes humanas no sentido da consciência e a necessidade da solidariedade em suas ações.

O Direito não é um fenômeno estático; muito pelo contrário, conforme a realidade, sofre mudanças – faz-se necessária a sua adaptação. O advento da Constituição Federal de 1988 inaugurou no Brasil um novo tempo, em que o Estado Democrático de Direito se revela pela necessidade de garantias e direitos inerentes à pessoa humana.

A dignidade da pessoa humana foi fundamentada no ordenamento jurídico bra-sileiro através dos ideários da Revolução Francesa e, por isso, representa um grande marco histórico. De mesmo modo, a positivação dos direitos da criança e do adoles-cente verificou pertinência à luz da Constituição, pois passou-se a garantir tais di-reitos, principalmente os que dizem respeito à convivência familiar, à solidariedade e ao Cuidado, princípios jurídicos a serem alcançados.

Num primeiro momento do trabalho, analisa-se de que forma os direitos da criança e do adolescente foram introduzidos no Brasil, bem como o contexto histó-rico de tal evolução e de que forma o ordenamento recepcionou tal premissa. Pos-teriormente, a pesquisa se destina ao estudo do Cuidado como valor jurídico e à forma como esse princípio veio implícito na positivação dos direitos das crianças e dos adolescentes. Por fim, a pesquisa volta-se a alguns problemas de inefetividade dos direitos e sugere soluções por meio da Política Jurídica, a qual tem por caracte-rística analisar a norma desde seu nascimento.

A pesquisa realiza-se por meio do método indutivo1 e da técnica de pesquisa bibliográfica2, da categoria3 e do conceito operacional4. O problema a ser enfrenta-1 “[...] base lógica da dinâmica da Pesquisa Científica que consiste em pesquisar e identificar as

partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral.” (PA-SOLD, 2011, p. 205).

2 “[...] Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais.” (PASOLD, 2011, p. 207).

3 Nas palavras de Pasold: “[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou expressão de uma ideia” (PASOLD, 2011, p. 25, grifos do autor).

4 Reitera-se conforme Pasold: “[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das ideias que expomos [...]” (PASOLD, 2011, p. 37, grifos do autor).

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do pela pesquisa é este: Como o Cuidado pode desvelar o significado da doutrina da proteção integral pelas contribuições da Política Jurídica? Como hipótese para a pesquisa, entende-se que o Cuidado aliado à Política Jurídica e às ações humanas solidárias pode representar uma importante expressão de realização dos direitos das crianças e dos adolescentes, seres de solicitude.

O objetivo geral deste estudo é verificar se, da forma como foi estruturado, o ordenamento jurídico está sendo capaz de suprir as necessidades da criança e do ado-lescente. Como objetivos específicos, apresentam-se os seguintes: analisar o contexto da legislação acerca da criança e do adolescente; perceber de que forma o Cuidado, como valor jurídico, desvela-se como condição das ações humanas; e demonstrar como a Política Jurídica pode servir de instrumento para a concretização dos an-seios da criança e do adolescente, sujeitos vulneráveis.

2 O ordenamento jurídico brasileiro e a doutrina da proteção integral

Pode-se afirmar que, com o advento da Constituição Federal de 1988 e a poste-rior criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ocorreu uma mudan-ça paradigmática, a qual veio acompanhada pela transformação de valores sociais observada com o aparecimento dos direitos humanos. Criança e Adolescente foram afastados da condição de bem jurídico, ou menor delinquente, para assumir um lugar de sujeito de direitos.

Conforme a estrutura do caput do artigo 227 da Constituição Federal5 de 1988, estabeleceu-se que tanto o Estado quanto a família e a sociedade devem assegurar às crianças e aos adolescentes direitos fundamentais, dentre os quais o direito à convi-vência familiar e comunitária.

A doutrina da proteção integral foi inaugurada pelo ordenamento jurídico bra-sileiro a partir da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança da ONU. Por meio do decreto 99.710/99, ocorreu a ratificação do Brasil a esse Tratado Inter-nacional, e, por conseguinte, a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual previu, concretamente, que as inovações trazidas deveriam assegurar às crian-ças e aos adolescentes direitos fundamentais.

O que de fato se observa aqui é a inovação do ordenamento brasileiro, que se mostrou preocupado com a proteção integral e prioritária à criança e ao adolescen-te. Sobre o termo “proteção”, define-se:

Pressupõe um ser humano protegido e um ou mais seres humanos que o protegem, isto é, um ser humano que tem necessidade de outro ser humano. Obviamente, este segundo ser humano deve ser mais forte do que o primeiro, pois deve ter capacidade para protegê-lo. Como corolário lógico, a proteção pressupõe uma desigualdade (um é mais forte que o outro) e uma redução real da liberdade do ser humano protegido: ele deve ater-se às instruções que o protetor lhe dá e é defendido contra terceiros (outros adultos e autoridade pública) pelo protetor. Trata-se de uma situação ineliminável, o filhote humano – e eu falo, aqui, essencialmente, da criança – é incapaz de crescer por si; durante um tempo muito mais longo do que aquele de outras espécies não humanas,

5 “Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e co-munitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).

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ele precisa de adultos que o alimentem, o criem, o eduquem, e estes adultos, inevita-velmente, têm o instrumento de poder, de autoridade, em relação aos pequenos. Isto não vale apenas no que tange à relação entre filhos menores e pais, os primeiros e mais diretos protetores, como, também na relação entre criança e outros adultos a qualquer título encarregados da proteção. (VERCELONE, 2002, p. 19).

O Estatuto da Criança e do Adolescente, por meio da doutrina da proteção integral, fundamentou-se na necessidade de amparo infantojuvenil, público hipossuficiente e dependente de adultos, assim como pela dignidade humana e solidariedade, buscando melhor assegurar o Cuidado à criança e ao adolescente.

Os direitos da criança e do adolescente, oriundos da doutrina da proteção integral, encontram previsão expressa no artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente6, o qual informa que a família, a comunidade, a sociedade e o Estado têm o dever de as-segurar tais direitos, como forma de oferecer à criança e ao adolescente uma prote-ção especial. Tal previsão reporta ao valor constitucional de solidariedade, advindo formalmente da Revolução Francesa. Nesse sentido, tem-se que

A solidariedade humana é uma necessidade natural e um dever moral de todos os seres humanos. No quarto século antes de Cristo o filósofo grego Aristóteles escreveu que o homem é um “animal político”, querendo dizer, com isso, que o ser humano, por sua natureza não vive sozinho, tendo sempre a necessidade da companhia dos semelhantes. Através dos séculos isso foi reafirmado por muitos pensadores, tendo sido ressaltado que, além das necessidades materiais, existem outras que são comuns a todos os seres humanos e que impedem as pessoas de se realizarem sozinhas, vivendo em completo isolamento. Atualmente, com base na observação dos fatos e utilizando conhecimentos científicos, pode-se afirmar que a vida em sociedade é uma exigência da natureza humana. Com efeito, o ser humano é um animal que após o seu nasci-mento, por muitos anos não consegue obter sozinho os alimentos que necessita para sobreviver. (DALLARI, 2002, p. 24).

A perspectiva da solidariedade tem como destinatária a pessoa humana no sen-tido de plenitude do ser, não apenas o indivíduo em si. Volta-se, desta maneira, ao ser humano e sua dignidade como pessoa. A criança e o adolescente apresentam-se como seres vulneráveis e necessitados de cuidados da família, da comunidade, da sociedade e do Estado. Todos se tornam responsáveis pelo seu desenvolvimento, a fim de que se tornem, mais e mais, pessoas sensíveis às mazelas que impedem o re-conhecimento de nosso vínculo antropológico comum.

Sendo os direitos da criança e do adolescente de natureza fundamental e, portanto, intrínsecos à condição de dignidade da pessoa humana, ganham um espaço especial, demandando ações solidárias. A solidariedade é considerada um dos principais eixos do mencionado estatuto, uma vez que existe uma dependência mútua, de responsabi-lização social e individual, a qual não se exaure tão somente em obrigações legais, mas se estende àquelas que estimulam a proximidade e o afeto. Essa condição é delineada tanto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente quanto pela Constituição Federal.

Ao se atender a ideia solidarista da doutrina da proteção integral, percebe--se a preocupação com o Cuidado necessário à criança e ao adolescente, seres em

6 Art. 4º ECA: “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público asse-gurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.” (BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente, 1991).

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condição de vulnerabilidade e dependência. Como seres de solicitude7, crianças e adolescentes demandam o Cuidado das gerações que os precedem. Conforme trata Maria da Graça (2009, p. 54), “o sentimento de consideração e esperança é fruto do Cuidado, da solicitude”.

Como valor implícito do ordenamento jurídico, o Cuidado vincula as relações de solidariedade, responsabilidade e afeto. A convenção Internacional sobre os Di-reitos da Criança confere bases constitucionais ao Cuidado como valor, de modo a se inscrever nas responsabilidades da pessoa humana.

3 A dimensão do Cuidado como valor jurídico

O Brasil, por ser um Estado Democrático de Direito que se funda em valores e princípios relevantes para uma sociedade livre, tem por objetivo a busca por jus-tiça social. No que concerne ao princípio da dignidade humana, “como qualidade intrínseca e indissociável de todo e qualquer ser humano” (SARLET, 2009, p. 29), o respeito e a proteção da dignidade da pessoa se estendem a uma dimensão ética e de Cuidado, como meta permanente das pessoas, do Estado e, também, do Direito.

A previsão constitucional da dignidade da pessoa humana revela que o Cuida-do8 é uma dimensão essencial do ser humano, ser com os outros no mundo. Nesse sentido, o Cuidado, compreendido como expressão da dignidade, serve como im-portante fator de proteção à criança e do adolescente, pois estimula relações huma-nas e familiares mais tolerantes, fundamentadas, inclusive, pela compaixão, pelo perdão, pelo amor, pela solicitude.

Diante desse cenário, analisa-se o Cuidado como um valor jurídico que surge como modo de complemento ao afeto, para, de forma concreta, efetivar o princípio da dignidade humana, atrelado ao direito fundamental da criança e do adolescente, seres vulneráveis. Conforme Boff (2008, p. 07), “[...] o Cuidado é uma atitude (não um ato isolado) de desvelo, solicitude, afeição e amor. Trata-se de um gesto amoro-so para com o outro. É a mão estendida buscando outra mão ou a mão que se abre para a carícia essencial.” Sob igual argumento, Dias (2009, p. 54) ressalta que “[...] o processo de humanização do homem tem como referência o desenvolvimento de sua capacidade de cuidar: de si, do outro, do mundo.”

O Cuidado, como pressuposto jurídico da doutrina da proteção integral, apre-senta-se como expressão da dignidade da pessoa humana e implica diretamente o respeito a todas as crianças e adolescentes, pessoas humanas – reitera-se, seres de solicitude – que não podem ser deixadas à margem de afeto e esquecidas sob as mais variáveis condições de mazelas humanas. O Cuidado implica atitude, e não pode encontrar-se ao descaso.

7 Nesse sentido, Heidegger chama de “solicitude” o relacionar-se com o outro de maneira envol-vente e significante, o que implica ter consideração para com o outro e ter paciência com o outro (HEIDEGGER, 1981. p. 19).

8 Exatamente como afirma Leonardo Boff (2013, p. 13), “cuidar é mais que um ato; é uma atitude de ocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro”. Trata-se o Cuidado de “princípio inspirador de um novo paradigma de convivialidade”.

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O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvi-mento afetivo com o outro. (BOFF, 2013, p. 37).

Deve-se salientar que Cuidado e afeto são dois valores complementares; exigem tanto vínculo quanto desenvolvimento, no sentido de que o ser humano, vulnerável em seu nascimento, depende do outro para sobreviver. Nenhum projeto civilizató-rio que envolve a convivência deve desprezar, nem esquecer, a importância desses valores como pressupostos de garantia à paz. Nesse sentido, o Cuidado

[...] deve ser entendido em seu sentido mais amplo. Significa garantir às crianças e aos adolescentes condições de desenvolvimento físico e emocional adequado, que lhes per-mita, inclusive, o sentimento de fazer parte de uma família, em cujo seio possam viven-ciar o afeto, a confiança, a cumplicidade, proporcionando-lhes condições de estabilida-de emocional. (HAPNER, 2008, p. 138).

O Estatuto da Criança e do Adolescente teve como escopo a materialização do Cuidado com crianças e adolescentes, diante de uma necessidade, sentida na vivên-cia social, de que a proteção infantojuvenil fosse garantida de forma integral. Re-velou-se, deste modo, que o Cuidado deve ser entendido como próprio da essência humana e como atitude de responsabilidade, respeito e envolvimento com o outro.

4 A expressão da Política Jurídica como crítica à legislação da criança e do adolescente, no que tange a sua eficácia

O Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como a Constituição Federal de 1988, determinou quais são as responsabilidades da sociedade, da família, da comunidade e do poder público. O citado estatuto, em especial, incorporou à legis-lação brasileira o fato de que as crianças, dada a sua vulnerabilidade, devem receber proteção e assistência necessária, já que precisam de Cuidado e proteção especiais.

No tocante à efetividade do ECA e ao papel do poder público, observa-se certa desatenção com a concretização da solidariedade, visto que

Administram desigualmente os bens públicos, terceirizam serviços, privatizam, pla-nejam políticas públicas e sociais pobres para os pobres e ricas para os ricos e podero-sos, sejam indivíduos, empresas ou classes; atendem primeiramente a seus interesses, garantem seu tipo de consumo e são atentos às suas expectativas. Não os incentivam a olhar para os lados onde estão os outros e, assim, fazer e refazer continuamente a soli-dariedade social. (BOFF, 2011, p. 01).

Sob o prisma dos direitos da infância e da juventude, o que se observa é certo “faz de conta” institucional, que não se preocupa com a implementação dessa lei, tornan-do-a ineficiente e ineficaz, especialmente no território brasileiro, no qual crianças e adolescentes não são sujeitos, não são sequer humanos, pois devem sofrer punições extremas por aquilo que, sob igual medida, lhes foi negado ou retirado: a dignidade.

Não é novidade que o estatuto é incapaz de resolver as carências afetivas das re-lações humanas9. Necessária se faz a resolução desse problema de ineficácia advindo 9 “Uma análise mais profunda desta questão, no entanto, nos mostra que as coisas não são as-

sim tão simples. Há casos que ficam descobertos dessas ações difusas do socorrismo estatal.

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da grave omissão encontrada tanto na sociedade quanto na administração pública. Em que pese a inefetividade dos direitos da criança e do adolescente seja um óbice, ainda assim não pode ser considerada uma barreira instransponível à concretização de seus direitos.

É nesse sentido que surge a categoria Política Jurídica10, chegando como uma expectativa segura de realização, para que a norma não seja apenas objeto de abs-tração do legislador. A Política Jurídica mostra-se, então, como uma forma possível e importante de se estudar o direito da criança e do adolescente, especialmente os fenômenos decorrentes do seu processo de responsabilização.

Nesse sentido, tem-se que a Política Jurídica é

Utopia concreta porque torna viável, no momento presente, condições para que o de-sespero de tempos mais difíceis, de sobrevivência utilitária, de fome, seja no seu sen-tido material ou espiritual, de miséria profunda, de intolerância, não retire de todos a chance de que o momento presente, muitas vezes insustentável e insuportável, se torne, mais ainda, uma obra de arte capaz de sinalizar o que se pode insistir e apostar numa autêntica Estética da Convivência. (AQUINO, 2015, p. 01).

É sobre um olhar crítico ao Direito vigente que se funda o compromisso da Política Jurídica com o agir e a responsabilidade à proteção da criança e do adoles-cente, ao visar à eficácia e eficiência de suas garantias legais. A proposição do devir jurídico pela política do direito11, a partir das necessidades infantojuvenis, assegura, no tempo, o seu aperfeiçoamento justo, ético e socialmente útil.

Nesse contexto, conforme ensina Osvaldo Ferreira de Melo (1998, p. 40) é que se encontra a importância do político do direito para se promover, especialmente aos direitos da Criança e Adolescente, o seu desvelo e importância a partir do hu-manismo jurídico a fim de que todo cidadão “[...] treinado na crítica social, movido pela utopia de conduzir o Direito para os lugares de novas possibilidades, seja capaz de ousar, sem pretender, no entanto, desconstruir o que não possa reconstruir.” A sociedade, o Estado, os seres humanos em si, como responsáveis uns pelos outros, precisam se preocupar em

Construir o futuro com vontade política considerando a violação de direitos impregna-da na nossa cultura. Precisamos construir o futuro olhando com olhos de indignação para o presente e, com uma “solidariedade operante”, implantar uma rede de proteção e prevenção para que o paradigma da proteção integral incorporado pelo ECA possa se tornar realidade. E, para que isso se viabilize, é necessária uma mobilização de todos os segmentos da sociedade, das organizações governamentais e não governamentais para

Pensamos nas necessidades pessoais de ordem afetiva que o ser humano manifesta em certos momentos e as reclama como imprescindíveis à sua saúde mental e aos apelos que jorram dos recônditos de seu psiquismo. Esse tipo de necessidade afetiva, essa fome de fraternidade não encontra resposta nem no socorrismo nem no assistencialismo praticados pelo Estado. [...] Este, se vier, o será por uma iniciativa humanitária e não como garantia de um direito. Isso nos leva a verificar a existência do fenômeno da fome espiritual, da doença psíquica desassistida, do mor-rer só, da afetividade perdida, enfim, da dignidade desconsiderada.” (MELO, 2009, p. 98-99).

10 “Trata-se da produção e aplicação do Direito a partir das proposições éticas e culturais de um determinado Povo sob o ângulo de sua época. Não se trata de uma preocupação exclusiva com o Direito que pode vir a ser (devir), mas, também, com o vigente (o Direito que é). Essa manifestação aparece por meio da lege ferenda e sententia ferenda, pois, a partir da escolha dos valores de uma Sociedade, cria-se, a partir da Utopia, a Norma Jurídica justa e socialmente útil. Para fins desta pesquisa, os esforços serão concentrados apenas na expressão lege ferenda.” (MELO, 1998, p. 80).

11 “Política Jurídica” e “política do direito” serão utilizadas neste artigo como expressões sinônimas.

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que todos também possam mobilizar seu potencial de solidariedade e atuar de forma propositiva. Uma mobilização que tenha como componentes a paixão e a razão. Sem paixão não há envolvimento, não há luta, não há calor, e sem razão não há objetivos, não há propósitos e não há ações que busquem a garantia de direitos. (SCHMICKLER, 2011, p. 1).

Pensar a temática da criança e do adolescente e envolver-se com suas questões existenciais é uma tarefa do político do direito, operador de utopias carregadas de esperança, as quais ensejam qualidade de realização, de concretude de direitos. É tempo de construção da humanização da criança e do adolescente, os quais necessi-tam, sem dúvida alguma, do Cuidado das gerações que os precedem.

4 Considerações finais

O ordenamento jurídico brasileiro, com a instituição da Constituição Federal de 1988 e a posterior criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, demonstrou profunda evolução no sentido de tornar fundamentais os direitos que garantissem a dignidade da pessoa humana. A criança e o adolescente, em sentido estrito, passa-ram a ser considerados, assim como todo o ser humano, sujeitos de direitos perante as garantias constitucionais.

Na verdade, para uma norma ser aceita socialmente, é necessário que seja baseada no sentimento de justo presente na própria sociedade. O Estatuto da Criança e do Adolescente ainda é uma ferramenta recente do ordenamento brasileiro, por isso exige que as pessoas ajam solidariamente em busca de concretização dos direitos infantoju-venis. A adesão à norma não depende da validade formal, ou seja, não é preciso que ela siga os padrões legais e as observâncias técnicas para que seja aceita, mas é necessário que se baseie no que é desejável pela população e que satisfaça suas necessidades.

Diante do estudo, então, a hipótese de pesquisa se confirma. Não apenas o sen-timento de solidariedade como também o Cuidado em sentido de valor jurídico e a Política Jurídica, como utopia carregada de esperança, se mostram como impor-tantes nortes para que se possam suprir as necessidades das lacunas ainda não so-lucionadas advindas da não realização dos direitos das crianças e dos adolescentes.

O Estatuto da Criança e do Adolescente veio para responsabilizar toda a socie-dade pela efetivação dos direitos referentes à dignidade da criança e do adolescente. Cabe ao político jurídico, mas não somente a ele, e sim à sociedade em geral, a res-ponsabilidade de construir um novo Direito, que seja considerado eficaz e responda às necessidades tanto das crianças quanto dos adolescentes. É necessário que todos se sintam cuidadores dessa parcela da população fragilizada, por isso é que o Cui-dado se torna um grande valor jurídico.

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S U M Á R I O

http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-83-9-5

DIFERENCIANDO A REALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Different types of achievements among constitutional rights

José Paulo Schneider dos SantosPós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade IDC de Porto Alegre/RS. Graduado em Direito pela IMED - de Passo Fundo/RS.

Pesquisador com apoio FAPERGS (2012-2015). Advogado. E-mail: <[email protected]>.

Fausto Santos de MoraisOrientador. Doutor em Direito Público (UNISINOS), docente do PPGD da IMED.

Pesquisador com apoio da Fundação Meridional. Advogado.

Resumo

Concentrado no âmago da teoria dos direitos fundamentais, o presente estudo foi desenvolvido a partir do método fenomenológico hermenêutico, cujos aportes teóri-cos sustentam a revisão bibliográfica procedida. Tem-se como escopo refletir acerca da realização dos direitos fundamentais. Portanto, a indagação que se coloca é a de saber qual a diferença entre a realização negativa e a realização positiva dos direitos fundamentais. A justificativa do presente trabalho vem interiorizada na proposta de reflexão teórica sobre os direitos fundamentais, o que se mostra como pano de fundo para discussões relativas à tutela e à concretude dos direitos fundamentais, especialmente em um país de democracia tardia como o Brasil.Palavras-chave: Direito fundamentais negativos. Direitos fundamentais positivos. Teoria dos direitos fundamentais.

Abstract

Looking just at the dimension of constitutional rights, this work was developed by phenomenological and hermeneutical method, paying attention on bibliographical research. The main goal is to think about Constitutional Rights Achievements. For that, it is necessary to ask what the difference about achievements in negative and positive constitutional rights is. This article is justified because it shows a theoretical approach to constitutional rights, which is required for pay attention on jurisdiction in late democracies.Keywords: Negative Constitutional Rights. Positive Constitutional Rights. Theory of Constitutional Rights.

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J. P. S. Santos, F. S. Morais

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1 Introdução

Este trabalho propõe reflexões estritamente teórico-doutrinárias a respeito da realização dos direitos fundamentais. Na verdade, o que se sugere é uma diferencia-ção dos níveis de realização negativa e positiva desses direitos.

Num primeiro momento, o objetivo é o de apresentar os direitos fundamentais como direitos de defesa do cidadão. Pretende-se, na sequência, analisar os aspectos positivos desses direitos, envolvendo a sua realização pelo ente estatal.

Portanto, reconhecer os direitos fundamentais num duplo sentido, por assim dizer, é consequência da mutação das funções estatais perante os sujeitos de direitos. Quando se olha para a complexidade da sociedade tecnológica, por exemplo, veri-fica-se certa defasagem no conceito de direito fundamental de cariz liberal (direitos negativos). Eis que a teoria dos direitos fundamentais oferece a distinção conceitual e de dimensões desses direitos.

Para fins metodológicos, adotou-se o método fenomenológico-hermenêutico, cujos aportes contribuem para a sistematização de conceitos, a partir de revisão bibliográfica de natureza jurídico-filosófica, referente ao estudo dos direitos funda-mentais.

2 A realização negativa dos direitos fundamentais

No âmago da caminhada positivista1, como já abordado, o Estado recebe do homem autonomia e exclusividade na produção do direito e organização da vida humana. Diz-se, dessa maneira, ser o Estado o ente com capacidade para impor obrigações e fazê-las cumprir. Os direitos subjetivos públicos vêm, necessariamente, inverter essa lógica. Tais direitos demandam a limitação desse arbítrio estatal, isto é, apresentam-se “como direitos de defesa do cidadão contra o Estado” (DUQUE, 2014, p. 121). Em suma, o Estado, que antes somente obrigava, necessita agora aten-tar e respeitar as obrigações jurídicas criadas por esses direitos.

Traço característico do liberalismo é o anseio social pela defesa dos direitos e liberdades conquistados em face do Estado. Quer dizer, recusam-se os tempos de outrora, em que predominavam o autoritarismo e os abusos pelo ente estatal (no mais das vezes representado pelo soberano).1 A fim de evitar os reflexos negativos do não dito, faz-se oportuno reiterar algumas conside-

rações a respeito da filosofia positivista. Como já denunciado em outro momento (MORAIS; SANTOS, 2014, p. 113-114), o positivismo jurídico, não raramente, é concebido de forma equi-vocada e desconectada da tradição histórico-institucional do direito. São várias as correntes com influência do direito positivo, dentre elas, por exemplo, estão o positivismo exegético e o positivismo normativista. Por isso é que se diz não ser possível resumir o positivismo jurídico a uma única matriz do pensamento jusfilosófico. Todavia, existem alguns cuidados primários ao se tratar sobre essa temática. Em primeiro lugar, e num sentido geral, deve-se reconhecer a soberania do Estado na produção do direito. Depois, é necessário atentar para o fato de que os ideais positivistas (em sentido lato) foram constituídos perante uma rigorosa cisão entre ele-mentos jurídicos e morais (MORAIS, 2013, p. 23). Insta referir, por fim, as diferentes teorias da interpretação verificadas nos distintos momentos do positivismo: inicialmente, ela está adstrita ao uso da subsunção (MORAIS, 2013, p. 23); posteriormente, autoriza a materialização de di-reitos mediante o ato de vontade do juiz (MORAIS; SANTOS, 2014, p. 119), isso no que refere às escolas positivistas antes individualizadas (positivismo exegético e normativismo). Reconhe-ce-se, assim, a existência de outras passagens e vertentes do pensamento positivista, tais como: jurisprudência dos conceitos (DANTAS, 2006, p. 483-484) (HESPANHA, 2005, p. 391-398); ju-risprudência dos interesses; escola do direito livre (MAXIMILIANO, 2001, p. 55-68) (PAULA DE OLIVEIRA, 2006, p. 272-274).

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Postular direitos, nessa linha, pressuporia guerrear contra a tirania estatal. Logo, na passagem liberal, o reconhecimento de direitos fundamentais contribuiu à derrocada da soberania2 e, por conseguinte, à edificação dos direitos de defesa (abwehrrechte) (DUQUE, 2014, p. 37).

Em linhas gerais, os direitos fundamentais de cariz liberal se preocupam, ainda que de maneira incipiente, com a relação “Estado e indivíduo”. É por essa razão que esses direitos (do século XIX) são denominados como direitos negativos ou de defe-sa, “entendidos exclusivamente como limites à ação estatal” (GRIMM, 2007, p. 150).

Na verdade, os particulares eram vistos sob a ótica da igualdade e da liberda-de, “[...] razão pela qual não havia, ao menos em princípio, motivo para estender direitos fundamentais à esfera eminentemente privada. Tratava-se, assim, de uma concepção unidirecional dos direitos fundamentais.” (DUQUE, 2014, p. 38).

Percebe-se que a concepção histórica dos direitos fundamentais está enraizada nos paradigmas jusnaturalistas (séculos XVII e XVIII). A propósito, com a Declara-ção Universal da ONU, os direitos fundamentais deixam de ser notados sob o aspecto de mera “abstratividade” universal, no sentido de que eram reconhecidos a todos os homens mas dependiam de uma positivação pelo ordenamento jurídico interno de cada Estado, isto é, seu significado e alcance foram ampliados (SARLET, 2006, p. 66).

No seu início, as constituições, principalmente aquelas de vertente liberal-bur-guesa, foram concebidas diante dos seguintes aspectos rudimentares: (i) necessida-de de limitação do poder estatal; (ii) garantia de certos direitos fundamentais em face desse poder; (iii) e o princípio da separação dos poderes (SARLET, 2006, p. 69).2 É oportuno contextualizar que uma das principais dificuldades verificadas no direito natural

é o fato de que o estado de natureza era constituído em um estado de anarquia permanente (BOBBIO, 1995, p. 35). Nele, prevalecia a lei do mais forte, e todos tinham o arbítrio de utilizar da força necessária na defesa de seus interesses particulares. Inexistia, até então, o direito escrito e a figura do poder centralizado, capaz de fazê-lo cumprir. Era necessário, desta maneira, acabar com a anarquia social. Como se sabe, isso somente foi possível a partir do surgimento do Esta-do, ente dotado de força indiscutível e irresistível, capaz de constranger os homens a respeitar as leis, o que ocorreu após a dissolução da sociedade medieval (de cunho extremamente pluralista, dividida em grupos de múltiplas unidades territoriais ou sociais, com ordenamentos próprios e distintos, com o direito sendo produzido pela sociedade civil) (BOBBIO, 1995, p. 27). Para Hobbes, a constituição do Estado advém do anseio humano pela proteção, organização e valo-rização da própria existência. Nesse sentido, o Estado poderia ser legitimado voluntariamente pela aceitação dos homens ou a eles ser imposto (1983, p. 105-106). Por certo, as leis civis, gerais e abstratas, representariam a vontade do soberano, sendo obrigação dos homens conhecê-las e respeitá-las. Assim, as qualidades e virtudes morais, quando ditas pelo soberano, assumiriam o valor de ordem escriturada e, dessa forma, deveriam obrigatoriamente ser seguidas. Atenta-se ainda para o fato de que, na falta da lei escrita, os mandamentos naturais poderiam ser aplica-dos desde que não estivessem em contraposição à vontade do soberano. Em Hobbes, todavia, a subordinação à lei não é uma via de mão dupla. Para ele, a lei é a expressão do intentar do soberano e, como tal, não poderia ser contrária à razão (esta, insiste-se, produto do saber so-berano), estando a legitimidade da decisão judicial condicionada a este elemento (1983, p.165). Dessa forma, a passagem do direito natural ao direito positivado se deve, dentre outros fatores, ao surgimento do Estado. A produção legislativa, que antes era esparsa (uma vez que a norma a ser aplicada poderia ser deduzida das regras do costume, das regras elaboradas pelos juris-tas, ou de critérios equitativos do próprio caso), concentrou-se nas mãos do órgão com força para fazê-la cumprir, o leviatã hobbesiano. Assiste-se, assim, ao processo de monopolização da produção jurídica por parte do Estado (BOBBIO, 1995, p. 27). Ou seja, o surgimento do Estado simboliza a derrocada da anarquia (comum à condição natural do homem), evidenciando-se como um meio eficaz de intervenção na vida social (BOBBIO, 1995, p. 119). Enfim, aqui certa-mente reside o porquê de o poder (de autogovernar-se) do povo ter sido transferido ao Estado. Acontece que, com o passar do tempo, o poder estatal, antes necessário à existência humana, passou a interferir demasiadamente – em nítido autoritarismo – na liberdade do homem, dando ensejo à guinada do conceito e do modelo jurídico-político, o que corroborou o surgimento do liberalismo e, por consequência, a institucionalização do abwehrrechte (direitos fundamentais de defesa) (DUQUE, 2014, p. 37-38).

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Logo, sem garantias asseguradas, bem como na falta da separação dos poderes, não se institucionaliza uma constituição – razão pela qual é correto afirmar que os direitos fundamentais alcançaram sua plenitude institucional no interior do Estado constitucional, uma vez que integram um sistema axiológico e atuam como funda-mento material de todo ordenamento jurídico (SARLET, 2006, p. 70-72).

3 A realização positiva dos direitos fundamentais

Conforme já se expôs, os direitos fundamentais, em sua essência (GRIMM, 2007, p. 150), encontram melhor expressão na máxima de que eles exigem um Estado mínimo no tocante à intervenção na liberdade individual do sujeito (GRIMM, 2007, p. 156). Contudo, essa é uma idealização inicial apenas. Embora se apresentem até os dias atuais como direitos de defesa, os direitos fundamentais denotam também a obrigação do Estado de ter uma atuação objetiva ante o particular.

Na verdade, não se pode divorciar o conceito de direito fundamental da relação entre o particular e o Estado. Há de se admitir que através das nuances dessa relação é que as funções dos direitos fundamentais vão ganhando novos contornos3. Não foi à toa, pois, que Georg Jelliek (1919) teorizou a respeito de três diferentes status dos direitos fundamentais: status negativus; status positivus e status activus (PIEROTH; SCHLINK, 2012, p. 62)4.

Queiroz, sobre o mesmo tema, ensina que os direitos fundamentais devem ser percebidos em seus status: passivo (submissão do sujeito ao Estado); negativo (liber-dade do homem face ao Estado, ações negativas por parte deste); positivo (dever de realização e proteção estatal); activo (pelo qual o cidadão exerce sua liberdade no e pelo Estado) (2010, p. 55).

3 Fala-se da dinamicidade conceitual comum aos direitos fundamentais. Pensar numa definição de direito fundamental pressupõe reconhecê-lo em diferentes níveis de extensão. Com o segundo pós--guerra e, portanto, num Estado de direito, surgiu o entendimento de que os direitos fundamentais extrapolam o conceito de direitos subjetivos e devem ser percebidos, também, como valores objeti-vos que norteiam e dão força à ordem constitucional de determinado Estado. Esse direito, segundo Novais, irradia a todos os ramos do direito (enquanto disciplina) e vincula, ou deve vincular, sobre a atuação de todos os poderes estatais. Quer dizer, direitos fundamentais subjetivos fazem referência à relação “Estado e indivíduo”. Direito fundamental objetivo, por seu turno, é aquele que condiz com a universalidade dos direitos, deve ser tido num caráter geral e universal, irradiando-se em todo o ordenamento de um Estado democrático de direito (2010, p. 58).

4 Explicando: i) o status negativo faz referência aos direitos de defesa ou, melhor, direitos que ga-rantem ao cidadão autonomia e liberdade ante o ente estatal, protegendo-o das “ingerências na liberdade e propriedade” (PIEROTH; SCHLINK, 2012, p. 62) – à Lei Fundamental alemã, por exemplo, foram escriturados diversos direitos (negativos) com o fito de proteger o homem do arbítrio e violação estatal (PIEROTH; SCHLINK, 2012, p. 62). ii) A extensão positiva dos direitos fundamentais, por seu turno, reclama a intervenção e a participação do Estado. O Estado, que anteriormente deveria deixar o cidadão em paz, é chamado a proteger e materializar as neces-sidades do povo. Não se quer dizer que o Estado tudo pode; do contrário, está-se a afirmar que a noção objetiva dos direitos fundamentais obriga o ente estatal a executar uma série de ações prestacionais e de segurança ao indivíduo (PIEROTH; SCHLINK, 2012, p. 63). A Lei Funda-mental, neste passo, prevê alguns direitos positivos: direito à proteção, direito à assistência da comunidade, direito à proteção jurídica (PIEROTH; SCHLINK, 2012, p. 63). iii) Já o status ativo dos direitos fundamentais tem significado quando “o particular exerce a sua liberdade no e para o Estado, o ajuda a construir e nele participa” (PIEROTH; SCHLINK, 2012, p. 65). Dizendo de outro modo, o homem não só tem o direito de reclamar autonomia ante o Estado e serviços pres-tacionais como também lhe é assegurado o papel de ator social. Isto é, confere-se ao homem um poder-dever, cuja responsabilidade política implica – ao menos deveria implicar – o aprimora-mento da instituição estatal.

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Nota-se que a autossuficiência e a autonomia do particular em relação ao Esta-do são características fortes no liberalismo, século XIX e início do XX (PIEROTH; SCHLINK, 2012, p. 68). Em outras palavras, o homem era livre para organizar seus interesses; o Estado, por sua vez, atuaria minimamente na intenção de defendê-lo dos “perigos externos e internos” (PIEROTH; SCHLINK, 2012, p. 68).

A diferença entre o aspecto negativo e o positivo dos direitos fundamentais con-siste em saber que, em vista da contemporaneidade e dos reflexos do primeiro e segundo pós-guerra, a perspectiva estatal atinge sua definição social, pela qual o Estado deveria “criar e assegurar as condições de liberdade” (PIEROTH; SCHLINK, 2012, p. 68).

Importa, por ora, sublinhar que a idealização liberal, de igualdade e liberdade, não se mostrou suficiente. Não se tinha, naquele momento, um gozo prático desses idealismos. Daí o porquê de, no decorrer do século XIX, surgirem grandes exigên-cias5 pela realização da justiça social, cujo objetivo era a ação positiva do Estado. Isto é, a sociedade, que antes reivindicava maior autonomia e liberdade individual, passa a exigir que o Estado garanta e propicie o bem-estar social (SARLET, 2006, p. 56-57). Quer dizer, o sujeito de direitos deixa de ser mero espectador e passa a atuar ativamente na organização social, naquilo que pode se classificar como a “democra-tização do poder” (DUQUE, 2014, p. 38).

O resultado disso é o retorno da competição entre os pares. A segurança dos direitos fundamentais, com isso, dependeria não somente da abstenção do Estado (na liberdade individual) mas, essencialmente, da sua participação (como interme-diador) na relação privada, donde adviriam as contemporâneas ameaças e ofensas às garantias fundamentais (DUQUE, 2014, p. 38-39).

Diferentemente do ocorrido nos modelos americano e francês, o constituciona-lismo alemão foi idealizado como “limitação voluntária dos soberanos” 6. Assim, é na Alemanha que nasce a idealização dos direitos fundamentais “como obrigações positivas do Estado” (GRIMM, 2007, p. 153). A saber, após a assembleia constituinte da República de Weimar (1918), os direitos fundamentais ganham nova roupagem e passam a ser notados como sendo “mais do que direitos puramente negativos” (GRIMM, 2007, p. 154).

Entretanto, em que pese tal avanço, o legislador continuava com ampla liberda-de de conformação. Manteve-se, inicialmente, a ideia de “não vinculação do legis-lador”, pela qual os direitos fundamentais representariam “mera expressão de um propósito político e não [...] norma jurídica obrigatória” (GRIMM, 2007, p. 154).

Porém, momentos de absoluta negação aos direitos fundamentais, como os veri-ficados no regime nazista, contribuíram para um conceito amplo e verdadeiramen-te abrangente dos direitos fundamentais (GRIMM, 2007, p. 154-155). Verifica-se, a esse respeito, na história da jurisprudência da Corte Constitucional alemã, a para-digmática decisão do caso Lüth (1958)7. A referida decisão bem traduz a amplitude

5 Duque, por exemplo, atribui essas exigências, bem como a superação do liberalismo, à “crescen-te demanda da sociedade tecnológica de massas” (2014, p. 38).

6 Convém esclarecer que o contexto histórico alemão é de tímida superação em relação ao regime monárquico (GRIMM, 2007, p. 153). A adoção do constitucionalismo, no decorrer do século XIX, pela monarquia alemã tinha o objetivo uno de autopreservação da dinastia que se encon-trava em “crescente deslegitimação da antiga ordem” (GRIMM, 2007, p. 153).

7 Em 1958, o Tribunal Constitucional Federal alemão proferiu emblemática decisão sobre direitos fundamentais. É com ela que se inaugura a discussão sobre a restrição de direitos fundamentais na esfera privada, bem como o reconhecimento da força objetiva desses direitos. Explicando

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da extensão dos diretos fundamentais reconhecidos pela Lei Fundamental (Grund-gesetz)8. Aliás, “reconhece(u)-se (com ela) que o Estado está obrigado a agir, na me-dida do possível, para a realização dos direitos” (DUQUE, 2014, p. 123). Embora a decisão de Lüth tenha mantido o Estado como sendo o destinatário dos direitos fundamentais, é de se frisar que ela representa a efetivação desses direitos nas “rela-ções de direito privado” (GRIMM, 2007, p. 155).

Pode-se concluir, nessa linha, que os direitos fundamentais, em caráter originá-rio, negam e combatem toda forma de autoritarismo estatal. Em um segundo mo-mento, esses direitos se mostram como vedação a omissões e a desprezos do Estado na efetivação dos direitos mínimos, algo imprescindível à consolidação do órgão estatal (SARLET, 2006, p. 72).

Para Novais, o segundo pós-guerra – portanto, num Estado de características sociais e democráticas de direito – corroborou a ampliação do conceito de direito fundamental, isto é, constatou-se que os direitos fundamentais são valores objeti-vos capazes de conduzir e fortalecer o ordenamento constitucional de cada Estado. Segundo o autor, os direitos fundamentais irradiam a todos os ramos do direito e vinculam-se à atuação de todos os poderes estatais (2010, p. 57-58).

Em suma, os direitos fundamentais negativos fazem referência à relação “Estado x indivíduo”, ao passo que a extensão positiva deve ser tida num caráter geral e uni-versal, irradiando-se em todo o ordenamento de um Estado democrático de direito (NOVAIS, 2010, p. 58).

o caso: Erich Lüth, crítico de cinema e “líder do clube de imprensa de Hamburgo” (GRIMM, 2007, p. 155), cujo objetivo maior era estabelecer um clima harmônico entre judeus e alemães, foi o responsável pelo boicote ao filme Amante Imortal (Unsterbliche Geliebte), de Veit Harlan, diretor cinematográfico conhecido por dirigir filmes antissemitas e de forte estímulo à violên-cia contra o povo judeu (GRIMM, 2007, p. 155). Representantes da indústria cinematográfica, com a intenção de proibir que Lüth prosseguisse com sua campanha de boicote, levaram o caso à justiça. A corte civil alemã (tribunal estadual), com fundamento no § 826 BGB (SCHWABE, 2005, p. 381), entendeu ser o caso de responsabilização dos danos causados por Lüth, em vista de que seus atos afrontavam “os bons costumes” (GRIMM, 2007, p. 155). Inconformado com a procedência da ação, Lüth apresentou reclamação à Corte Constitucional alemã, por entender que a decisão violava diretamente seu direito de liberdade de expressão, disposto no artigo 5 da Lei Fundamental (GRIMM, 2007, p. 155). As companhias de cinema alegaram a impossi-bilidade da oposição dos direitos fundamentais entre particulares. A reclamação, no entanto, foi julgada procedente, restando revogada a decisão do tribunal estadual (SCHWABE, 2005, p. 381). Notam-se nos argumentos utilizados pelo Tribunal Constitucional Federal elementos que transcendem o conceito inaugural dos direitos fundamentais; quer dizer, os direitos fundamen-tais receberam leitura inicial como direitos públicos subjetivos contra o Estado “mas também como expressões de valores objetivos” (GRIMM, 2007, p. 155). Além disso, a referida decisão confirmou a necessidade de o direito privado encontrar compatibilidade com as disposições estabelecidas na “Declaração de Direitos” (GRIMM, 2007, p. 155). Definiu-se, de uma vez por todas, a possibilidade de se opor ou invocar os direitos fundamentais contra terceiros. Ou seja, o caso Lüth representa significativa mudança no modo de conceber os direitos fundamentais. A partir dele, tais direitos foram reconhecidos também como dotados de uma extensão objetiva, pela qual não poderiam mais ser resumidos a uma materialização apenas vertical, devendo-se reconhecer sua aplicabilidade horizontal (GRIMM, 2007, p. 156).

8 Embora a Lei Fundamental não tenha sido concebida com a expressão “constituição” em sua nomenclatura, não se pode negar sua extrema relevância. Afinal, ela contribuiu “para a conso-lidação da ordem jurídica fundamental de um Estado alemão parcial, em vias de reconstrução após o fim da Segunda Guerra Mundial” (DUQUE, 2014, p. 41). Tem-se assim que a expressão Lei Fundamental melhor traduz a “transitoriedade” do modelo político-jurídico da Alemanha do segundo pós-guerra. Além disso, a Lei Fundamental foi um instrumento “incontestável” de forte valor e vinculação jurídica, tendo suprido as necessidades de uma República Federal em (re)construção (DUQUE, 2014, p. 41). Com efeito, “a Lei Fundamental concentra-se na carac-terização da República Federal da Alemanha como um Estado federal social” (art. 20º, n. 1), ou seja, um Estado de direito social (art. 28º, n. 1, frase 1). (PIEROTH; SCHLINK, 2012, p. 69).

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Diferenciando a realização dos direitos fundamentais

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4 Considerações finais

Embora o trabalho possua objetivos estritamente teóricos, cuidou-se de deixar nítido desde o início que o propósito era o de, tão somente, (re)visitar as extensões negativas e positivas dos direitos fundamentais.

Acredita-se que as finalidades propostas foram atendidas, o que corroborou as seguintes conclusões:

1. Direitos fundamentais negativos são aqueles direitos de defesa do indivíduo em relação ao Estado, isto é, expressam garantias de proteção contra a intervenção do Estado na esfera da liberdade (e propriedade) individual. Os direitos fundamentais positivos, por sua vez, implicam a imposição de reconhecimento, validade e concretização universal das primazias fundamentais.

2. Percebe-se que essa dupla dimensão implica o amplo compromisso do Estado para com os direitos fundamentais. Num primeiro olhar, esses direitos reclamam um Esta-do limitado, cuja tarefa principal deve ser a abstenção da interferência na liberdade do indivíduo. Em um segundo momento, eles aparecem como meios positivos de realiza-ção e gozo das garantias inerentes à pessoa humana.

Referências

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UM NOVO OLHAR SOB OS ASPECTOS HISTÓRICOS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

A new look under the historical aspects of restorative justice

Camila Bianchi da SilvaGraduanda do VIII nível da Escola de Direito da IMED. Realiza pesquisa científica

sobre Justiça Restaurativa. E-mail: <[email protected]>.

Raquel Tomé SoveralOrientadora. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC.

Docente da IMED.

Resumo

As práticas restaurativas, alternativamente ao sistema prisional brasileiro tradicio-nal, caracterizado pela prevenção e retribuição, têm-se mostrado meios mais efica-zes para a resolução de situações conflitantes decorrentes de atos delitivos, devido ao fato de serem um modelo mais humano, igualitário e que devolve às partes, vítima e agressor, o poder de decisão sobre suas próprias vidas, considerando as suas ne-cessidades, sem deixar de lado o papel imprescindível desempenhado pela família e sociedade, bem como a responsabilização e o reconhecimento dos danos causados e suas consequências. Entretanto, apesar de os princípios restaurativos apresentarem maior importância no mundo contemporâneo, alguns de seus elementos podem ser notados conforme o desenvolvimento dos paradigmas de justiça na cultura dos povos mais antigos, mesmo que de forma mais inibida, haja vista que seu entendi-mento de justiça já abarcava a importância do relacionamento interpessoal entre infrator, vítima, família e sociedade, pela perspectiva comunitária ou até mesmo bí-blica. O presente trabalho, por meio do método de abordagem hipotético-dedutivo e procedimental histórico – pois utilizaram-se doutrinas realizando um aparato da história sobre o tema – busca realizar um estudo para uma melhor e mais abrangen-te compreensão acerca do que é justiça restaurativa. Palavras-chave: Paradigmas de justiça. Práticas restaurativas. Prevenção. Retribuição.

Abstract

The restorative practices, alternatively to the traditional Brazilian prison system characterized by prevention and retribution, have been shown as most effective ways to resolve conflict situations arising from criminal acts, to being a more humane model, egalitarian and returns the parts, victim and aggressor, the power of decision in their own lives, considering their needs, without forgetting the essential role of the

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Um novo olhar sob os aspectos históricos da justiça restaurativa

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family and society as well as accountability and recognition of the damage and its consequences. However, despite the restorative principles they have greater impor-tance in the contemporary world, some of its elements can be noticed as the develop-ment of the paradigms of justice in the culture of older people, even more inhibited way. Considering that his understanding of justice have embraced the importance of interpersonal relationships between the offender, victim, family and society, be on the community perspective or even biblical. This paper, through the method of approach the hypothetical-deductive and procedural history, it was used doctrines of performing an apparatus of the story on this topic, search conduct a study to better and greater understanding of what is restorative justice.Keywords: Paradigms of justice. Restorative practices. Prevention. Retribution.

1 Introdução

O cenário atual de retribuição punitiva constitui-se num ideal defasado, haja vista estar envolto por um silogismo unicamente de repressão, que por vezes des-considera a titularidade do ser humano como detentor de direitos. Logo, por tal fa-lha, surge a necessidade de se buscar novos meios que vão além do encarceramento reclamado pelo senso comum.

Assim, justiça restaurativa é um dos modelos alternativos ao sistema prisional brasileiro atual, pois, em contrapartida a esse último, amparado pelos ideais de pu-nição e culpa em busca da não reincidência e da titularidade do Estado para a reso-lução de conflitos, traz como base o reconhecimento da relação interpessoal, assim como dos direitos fundamentais dos envolvidos, e, acima de tudo, trabalha com questões de arrependimento e perdão.

Contudo, o paradigma que hoje possui maior notabilidade nas discussões de como melhor se aplicar as legislações criminalistas foi sendo construído no decorrer da história da humanidade. Isso quer dizer que os povos primitivos, pré-estatais e europeus já utilizavam, mesmo que de forma menos clara, os princípios restaurati-vos na resolução de situações geradas por condutas delitivas em suas comunidades.

Portanto, o modelo contemporâneo, que surgiu de modo mais expressivo por volta da década de 1970 e vem sendo trabalhado até os dias de hoje, possui resquícios dos paradigmas mais antigos de justiça, como o bíblico e o privado, que demonstra-vam preocupação com as necessidades da vítima e do agressor e, por conseguinte, com a paz da comunidade e o convívio futuro dessas pessoas.

Diferentemente do caráter público fundamentado pelo descumprimento das normas, tais concepções dirigiam-se à importância da relação entre todos, inclusive família e sociedade, pois estas também eram afetadas, assim como infligiam respon-sabilidade e ressarcimento do ofensor à vítima, algo que foi herdado pelas práticas restaurativas.

2 Contexto histórico e a evolução dos paradigmas de justiça

As práticas restaurativas que hoje ganham espaço no âmbito do direito penal pela busca de medidas mais eficazes a fim de que seja preservado o relacionamento pessoal entre agressor, vítima, família e comunidade, não se deixando de lado a ideia de responsabilidade pelo ato cometido, possuem vestígios históricos na evolu-ção do pensamento de justiça.

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Assim, pode-se dizer que os ordenamentos jurídicos regulamentadores das ações dos cidadãos sofreram as mais diversas influências, advindas dos costumes, religiões, política e economia. Passaram de uma concepção de justiça mais comu-nitária para a resolução de conflitos, que considerava o relacionamento pessoal dos habitantes daquela comunidade, para uma ideia de sistema retributivo e preventivo, que centraliza o poder nas mãos do Estado. Por conseguinte, segundo Zehr (2008, p. 108), personificou-se por justificativas próprias no papel de vítima por meio de um paradigma de justiça voltado ao cumprimento estrito da lei, afastando a autonomia dos envolvidos para solucionar a situação conflitante da qual fazem parte, caracte-rizando-se como meros espectadores de sua vida.

Em complementação ao supramencionado, Santos (2011, p. 25) afirma que o aspecto punitivo sempre prevaleceu sobre o pensamento das pessoas. Zehr (2008, p. 93) enfatiza que os paradigmas ditados pela força estatal dominante desenvolve-ram no meio social uma necessidade de encarcerar, caracterizando a sobreposição da justiça pública em face da privada.

À vista disso, Bitencourt (2013, p. 72-73) trata a evolução dos paradigmas de justiça por meio da denominação “vingança”, separando-os em três fases: privado, divino e público. Deste modo, sob a análise da sistemática divina, é possível notar que, nos tempos mais remotos, os atos delitivos eram considerados uma ofensa à divindade, o que, por conseguinte, “levou a coletividade a punir o infrator para desagravar a entidade”. Assim, a sistemática repressiva daquela época era distante do real sentido de justiça, tendo em vista que a agressão sofrida pela sociedade era oriunda também dos entes religiosos aos quais estavam resignados e, portanto, a so-lução consistia em satisfazer as divindades por meios de métodos de extrema cruel-dade a fim de intimidar a comunidade a não reiterar a desobediência.

Seguindo o entendimento de Bitencourt (2013, p. 73), com o desenrolar dos tem-pos, as influências teocráticas foram sendo superadas, perpassando a concepção de justiça privada. Em conformidade com o autor, a vingança de cunho privado trouxe a ideia de que a responsabilidade por atos infracionais poderia ser unicamente do infrator, como também do grupo social em que estava inserido. Dessa maneira, a transgressão cometida contra membro da comunidade era individualmente penali-zada, com a forma de banimento; contudo, ao se tratar de ofensa contra estranho, o grupo como um todo teria envolvimento por meio de batalhas.

Ainda sob a perspectiva de Bitencourt (2013, p. 73-74), a primeira manifestação de igualdade entre vítima e agressor, com intuito de humanizar a lei penal, foi a Lei de Talião com originalidade no Código de Hamurabi, por volta de 1700 a.C., a qual enfatizou o ditado que permanece até os dias de hoje: “olho por olho, dente por den-te”. Foi transformada na denominada composição, em que o agressor se redimia do castigo mediante pagamento de valores. Em que pese ter ocorrido uma significativa evolução na forma de pensar em justiça, passou-se ao terceiro momento, tratado pela percepção pública, ou seja, a questão do ato infracional se tornou problema do poder estatal dominante, o qual reprimiu mediante severas sanções.

Conforme Bianchini (2012, p. 29), foi por intermédio do direito romano que as regras regulamentadoras das ações dos cidadãos, bem como as repressoras, passa-ram a ter forma documental. Além do mais, foi a partir da legislação criminalista romana que também se estabeleceu o caráter público na esfera penal.

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Sendo assim, numa análise dos três momentos marcantes da história que reme-tem às concepções de justiça de cada contexto social, pode-se notar que cada um apresentou características próprias na responsabilização de seus infratores, regula-mentando suas ações pela influência de sua cultura, amparada quer pelos ditames bí-blicos, quer pelos privados ou públicos. Entretanto, apesar de terem se transformado no sistema punitivo e codificado atual, os ideais dos povos mais antigos já se direcio-navam ao caminho da justiça restaurativa, pela consideração da relação interpessoal.

2.1 Vestígios de práticas restaurativas em modelos históricos de justiça

Em que pese o ideal de retribuição e prevenção caracterizado pela necessidade de punição ter mostrado prevalência no pensamento social, a resolução de conflitos apresentou as mais diversas facetas, inclusive de caráter restaurativo.

De acordo com Zehr (2008, p. 95), dentro do sistema de repressão e responsabili-zação, houve também um caminho alternativo, o comunitário, isto porque “o crime era visto primariamente como num contexto interpessoal”. Ou seja, não se tratava de um mero descumprimento de lei, mas de uma ofensa praticada em detrimento de outro cidadão e, por isto, surgia uma obrigação para com o outro. Tais obrigações acarretavam indenizações, restituições ou até mesmo reconciliação. Logo, o autor preconiza que a justiça comunitária visava alternativas restaurativas a fim de igua-lar os envolvidos, bem como trazer para a solução da lide apresentada não apenas vítimas e infratores, mas também, como partes essenciais, os familiares e a socieda-de em prol de um resultado positivo.

Os envolvidos em conflitos buscavam resolver suas desavenças em um contexto coletivo; consoante Zehr (2008, p. 96-99), “quando um indivíduo sofria um dano, a família e a sociedade também se sentiam agredidas”. Por isso, era preferível solu-cionar a questão no âmbito comunitário a levá-la às cortes, às quais se recorria em últimos casos, assim como ao sistema retributivo, utilizado apenas no sentido de responsabilizar o infrator.

Além do modelo comunitário de resolução de conflitos, alguns dos ideais res-taurativos também foram apresentados na aplicação da justiça divina. Isto porque, em conformidade com o pensamento de Zehr (2008, p. 143-145), o paradigma bíbli-co, em mãos de autoridades religiosas, tinha como objetivos a paz social e a aliança entre os povos, assim como possuía o entendimento de que “a justiça é um todo que não pode ser fragmentado”.

Posto isto, é possível notar os elementos restaurativos, haja vista que o cidadão não é visto individualmente do meio em que vive, porque são as experiências vivi-das que constituem sua personalidade. Sendo assim, segundo Zehr (2008, p. 145), as semelhanças com a justiça divina consistem no sentido de que “[...] o contexto social do crime deve ser levado em conta. Não se pode separar os atos criminosos ou seus atores da situação social por de trás deles.”

Desta forma, Zehr (2008, p. 143-144) traz como essenciais características do pa-radigma bíblico, amparado por objetivos de restauração, em prevalência do modelo estatal, retributivo e preventivo inserido no contexto social atual, que preconiza a culpa, a busca pelas soluções dos problemas visando seus resultados futuros; e não apenas aplicação de castigos merecidos baseados em atos do passado, tendo foco nos danos causados, pois o delito é visto como deteriorador dos relacionamentos

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pessoais e não apenas violação da legislação. O infrator é reconhecido e responsabi-lizado, entretanto a ofensa é passível de perdão, devido a tratar-se o cidadão como indivíduo integrado no ambiente social, priorizando sempre a paz social por meio de uma justiça que não faz divisões sob a perspectiva de compaixão para com o próximo em prol do bem-estar e união da comunidade.

Logo, a presença de alguns elementos restaurativos em vários modelos de justiça, aplicados ante o cenário social de diversos períodos históricos, juntamente com a posterior ineficácia do sistema prisional vigente, determinou a busca por meios alter-nativos para solução de conflitos. Assim, a justiça restaurativa por meio de princípios mais humanos e igualitários passou a ter maior notabilidade nos tempos atuais.

2.2 Conceito e aplicabilidade da justiça restaurativa na contemporaneidade

A justiça restaurativa se apresenta como modelo de solução de conflitos que vai além das esferas processuais ou do seguimento literal de regras. Segundo Santos (2011, p. 24), “[...] não é só uma forma alternativa de resolver os conflitos, é também uma forma viável, prática e positiva de modificar o modelo tradicional, tornando-o mais socialmente justo e efetivo.”

Em conformidade com tal pensamento, Melo (2005, p. 13), sob um olhar filosó-fico, frisa cinco pontos essenciais e caracterizadores da justiça restaurativa. Desse modo, em primeiro plano, traz que o entendimento de justiça é construído pelas partes, e não imposto verticalmente, conforme determina o sistema normativo. Quanto ao segundo ponto, salienta as “singularidades daqueles que estão em rela-ção e nos valores que a presidem, abrindo-se, com isso, àquilo que leva ao conflito”. Complementando os primeiros dois aspectos, enfatiza que a terceira peculiaridade da justiça restaurativa prioriza o convívio entre os envolvidos em relação à domi-nância estatal, a fim de trabalhar as divergências em sua integralidade em prol de resultados positivos em prevalência de concepções destrutivamente repressoras. Se-guindo por esse ponto de vista, surge a quarta característica: a justiça restaurativa se volta às consequências futuras quanto ao fato delituoso que deteriorou o rela-cionamento do infrator e vítima. Por último, porém não menos importante, haja vista tratar-se de um todo para sua efetivação, há “a percepção social dos problemas colocados nas situações conflitivas”.

De acordo com Vitto (2005, p. 43), as práticas restaurativas se apresentam como “o modelo integrador [...] o mais ambicioso plano de reação ao delito”, isto porque visam harmonizar a relação entre agressor e sociedade e suas respectivas propen-sões, ou seja, não trabalham cada um individualmente, mas objetivam pacificar as lides decorrentes de um crime para posterior restauração da relação abalada.

Destarte a predominância do silogismo atual de repressão, o desenvolvimento do paradigma de justiça apresentou em alguns momentos resquícios restaurativos. A justiça restaurativa, conforme Jaccoud (apud PORTO, 2008, p. 17), tem raízes nas antigas “práticas de regulamentação social voltadas ao interesse coletivo sobre os in-teresses individuais”, as quais foram desempenhadas na cultura de diversos povos, dentre eles nativos, europeu e pré-estatais.

Contudo, Ferreira (apud BIANCHINI, 2012, p. 99-100) traz que as primeiras manifestações de práticas restaurativas no mundo moderno ocorreram dentre o fi-nal do século XIX e o início do XX, tendo, especificamente, maior representativida-

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de na década de 1970. Foram utilizadas inicialmente em questões discriminatórias e raciais, bem como nas lides comerciais nos Estados Unidos.

Neste sentido, Santos (2011, p. 59) afirma que os métodos utilizados na época “visavam compor uma forma controlada das partes resolverem seus problemas”, acrescentando que o novo modelo proposto remetia a dois caminhos: a renovação do retribucionismo juntamente com uma legislação criminal penal focada na vítima, com o intuito de reconciliar-se não apenas com essa mas também com a sociedade.

E, em conformidade com Pinto (2005, p. 23), as primeiras experiências já deno-tavam as práticas atualmente aplicadas, haja vista que nos procedimentos alterna-tivos de resolução de conflitos a figura do facilitador já se fazia presente – “a vítima descrevia sua experiência e o impacto que o crime lhe trouxe e o infrator apresenta-va uma explicação à vítima”.

Assim, pode-se dizer que a maior representação da justiça restaurativa se deu na Nova Zelândia por meio de reivindicações, isto porque, segundo Porto (2008, p. 17), a população intencionava o fim das discriminações sofridas por seu povo em com-paração aos brancos europeus. Tal fato atingia diretamente os adolescentes nativos, pois o número destes em internatos, perante os de origem europeia, era significativo.

À vista disso, em 1989, de acordo com Bianchini (2012, p. 101), ocorreu a pro-mulgação da “Lei sobre criança, jovens e suas famílias”, a qual incorporou a justiça restaurativa aos programas de responsabilização penal juvenil, como também in-cluiu a participação familiar nos procedimentos de recuperação dos jovens, sendo considerado imprescindível o papel dos pais.

Além de Nova Zelândia e Estados Unidos, os modelos restaurativos passaram a ser postos em prática em outros países – África do Sul, Austrália, Argentina, Áus-tria, Bélgica, Canadá, Chile, Reino Unido, Alemanha, Noruega, Portugal, Colôm-bia, Brasil, entre outros.

Conforme Pinto (2005, p. 22), o paradigma restaurativo se sustenta em diversos fatores – dentre eles, princípios e valores, procedimento e resultado –, mas que só passarão ao plano real, ou seja, aos círculos restaurativos, caso haja o devido con-sentimento das partes, isto porque não há prevalência de interesses. E, por ser carac-terizado por sua metodologia sigilosa, jamais se utilizará como indício ou elemento probatório, qualquer que seja o processo penal.

Segundo Paz e Paz (2005, p. 134), sob o viés restaurativo, possui uma notável participação, tendo em vista que deve responder de forma primária ao delito, e ao restante do sistema cabe apenas atuar de maneira a auxiliar e atestar que “autorida-de legal deve afirmar sua autoridade comunitária”.

Desse modo, a aplicabilidade da justiça restaurativa no século XXI, para Vitto (2005, p. 45), ocorre com a realização de reuniões com participação da vítima e seu ofensor, as quais são conduzidas por pessoas com conhecimento técnico, denomi-nados “facilitadores”, e possível participação de familiares, juntamente com repre-sentantes comunitários, bem como procuradores das partes. O autor acrescenta, ainda, que os trabalhos são executados em ambientes imparciais, após as devidas explicações dos procedimentos, a fim de deixar as partes seguras emocional e fi-sicamente, e os possíveis resultados da participação em círculos; e possuem dois momentos: a escuta das partes quanto ao ocorrido, motivação e consequências, e a apresentação e discussão de ideias restaurativas pelas próprias partes.

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Portanto, seguindo o pensamento de Paz e Paz (2005, p. 134), devem-se visar às “respostas reparadoras”, desenvolvidas num encontro informal entre os interessa-dos, antes mesmo de se imputar as penalizações, bem como assegurar os direitos humanos e constitucionais, e garantir que sejam dadas as repostas ao ocorrido por meio de formas cuidadosas de comunicação, a fim de que se devolva o empodera-mento às partes sobre suas vidas, inclusive ao infrator, para que este reconheça as consequências de seus atos.

3 Considerações finais

De acordo com a análise do desenvolvimento histórico das concepções de justi-ça, pode-se afirmar que os elementos restaurativos já ansiavam por um espaço mais significativo no cenário da responsabilização de infratores e reconhecimento da real vítima, tendo em vista os mais antigos povos terem demonstrado por meio de sua cultura que uma solução se realiza integralmente quando os verdadeiros envolvidos deixam os postos de espectadores, sendo-lhes concedido o pronunciamento sobre suas necessidades e ressarcimento de danos causados.

Diante disso, com a superação dos paradigmas, sejam eles bíblicos ou privados, para o público, sentiu-se a necessidade de discutir e pleitear uma forma mais igua-litária e humana, trazendo noções antigas à tona: arrependimento, verdadeira res-tituição, perdão e conservação – sob uma perspectiva futura das relações abaladas, decorrentes de crimes.

Assim, também com o intuito da preservação dos direitos humanos e previstos pela Carta de 88, a atual justiça restaurativa se mostra como um modelo eficaz a ser colocado cada vez mais em prática, antes de levar o pensamento estreitamente à punição normativa.

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EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PSICOLOGIA ORGANIZACIONAL E DO TRABALHO

Historical evolution of work and organizational psychology

Thayla DalboscoGraduanda em Psicologia IMED.

E-mail: <[email protected]>.

Amanda Martinello da RosaGraduanda em Psicologia da IMED.

E-mail: <[email protected]>.

Kelly Zanon De Bortoli PisoniOrientadora. Docente em Psicologia da IMED.

E-mail: <[email protected]>.

Resumo

A prática da psicologia organizacional e do trabalho (POT) tem ocupado um im-portante espaço no contexto profissional do psicólogo. Define-se como campo de aplicação dos conhecimentos da ciência psicológica às questões relacionadas ao tra-balho humano, visando promover a saúde do trabalhador, sua satisfação em relação ao trabalho e também benefícios para a respectiva organização/intuição na qual está inserido. O presente estudo objetiva verificar, internacional e nacionalmente, as transformações que esse campo experimentou ao longo dos anos até tornar-se uma profissão reconhecida e essencial. Desse modo, foram revisadas produções científicas voltadas à área. Os resultados demonstram que tal história possui um trajeto recente, complexo e com inúmeros benefícios para o trabalhador e o campo do trabalho, transformando-se de psicologia industrial, no século XIX, à então psi-cologia organizacional e do trabalho. Contudo, infere-se que, apesar das inúmeras variações até o momento, o saber do psicólogo desenvolverá ainda inúmeras muta-ções conforme o contexto social e cultural, podendo modificar-se e influenciar de maneira dinâmica a vida pessoal, social e principalmente profissional do sujeito.Palavras-chave: História. Psicologia Organizacional. Psicologia do Trabalho.

Abstract

The practice of Work and Organizational Psychology (WOP) has occupied an im-portant place in the professional psychologist context. It s defined as the field of

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Evolução histórica da psicologia organizacional e do trabalho

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application of knowledge of psychological science to issues related to human labour, to promote workers’ health, their satisfaction with the work and also the benefits to the organization in which they re inserted. This study aims to verify, in the interna-tional and national ambit, the changes that this field has experienced over the years to become a recognized and essential profession. Thus, it was revised scientific pro-ductions about the area. The results show that its story has a way that is new, com-plex and numerous benefits for the worker and the work field, becoming from the industrial psychology in the nineteenth century, to the present Work and Organi-zational Psychology (WOP). However, it appears that despite the many variations so far, the knowledge of the Psychologist develop numerous changes as the social and cultural context and can be changed dynamically and influence personal, social and especially professional life of the person.Keywords: History. Organizational Psychology. Occupational Psychology.

1 Introdução

A psicologia organizacional e do trabalho envolve ações em instituições e empre-sas voltadas para o desenvolvimento de estratégias. Segundo Campos et al. (2011), ambiciona a melhoria do ambiente de trabalho e entender fenômenos relacionados à vida do trabalhador em seu contexto pessoal e profissional, procurando promover seu bem-estar nesse ambiente. Através da psicologia das organizações, torna-se pos-sível realizar atração e seleção, análise de clima organizacional, resolver conflitos entre funcionários, organizar treinamentos para aprimoramento de habilidades e desenvolver dinâmicas de grupo.

O trabalho é elemento transformador não apenas da matéria mas da vida psí-quica, social, cultural, política e econômica (CAMPOS et al., 2011). Por esse motivo, o psicólogo organizacional exerce importância na busca por satisfação do trabalha-dor para com a empresa/instituição, além de estas serem privilegiadas pela espécie do trabalho desenvolvido. Ainda, demonstra-se relevante destacar que o ofício do profissional dentro das organizações é atuar como facilitador e conscientizador do papel dos trabalhadores dentro dos vários setores que a compõem, considerando sua saúde e subjetividade e o funcionamento da empresa. As atividades exercidas nessa atribuição, fundamentadas em técnicas e instrumentos da psicologia, trazem desenvolvimento para a empresa, para o trabalhador e para a sociedade.

Conhecer aspectos dessa múltipla trajetória traz às claras elementos para a com-pressão dos modos pelos quais as relações foram estabelecidas, suas dimensões téc-nico-teóricas e a forma como o momento sociocultural influenciou a prática. Visto desse modo, pode-se afirmar que a POT sofreu transformações significativas ao longo da história e, a partir de então, surgiram diversas definições e ampliação de estudos acerca dessa nova esfera psicológica, dando origem aos atuais conceitos e práticas desse campo da psicologia. Assim, verificar essas transformações consiste no objetivo deste estudo.

2 Método

Para o objetivo proposto, optou-se pela realização de um estudo acerca da histó-ria da psicologia organizacional e do trabalho baseado numa revisão bibliográfica,

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a qual diz respeito à fundamentação teórica e conceitual, que resultará no processo de levantamento e análise de temas já publicados (SILVA; MENEZES, 2005). Ao estabelecer o método, buscou-se proporcionar informações mais detalhadas sobre o assunto, inclusive para estudos posteriores a este.

A busca foi realizada utilizando os descritores História, Psicologia Organiza-cional e Psicologia do Trabalho. Realizou-se um levantamento de grande parte da bibliografia publicada. Ademais, analisaram-se qualitativamente os dados do fenô-meno social apontado, propondo um estudo descritivo da temática nivelem âmbitos internacional e nacional.

3 Resultados

3.1 História internacional da psicologia organizacional e do trabalho

Segundo as ideias de Peiró (2011), não é simples demarcar a data inicial de um campo profissional e/ou de uma disciplina. No decorrer dos anos, encontram-se inúmeros estudiosos interessados pelo mundo do trabalho e as pessoas nele envolvi-das. Nomes importantes merecem ser destacados: Patrizi, em Modena, que em 1899 criou um laboratório para pesquisar a fadiga; Kraeplin, na Alemanha, e Mosso, na Itália, que nos anos 90 estudaram aspectos psicofisiológicos relacionados à carga de trabalho; Lahy, na França, um dos precursores na utilização de testes na seleção de trabalhadores; e Scott, que, em 1903, publicou o livro The theory of Advertising, so-bre a psicologia da publicidade (ZANELLI; BORGES-ANDRADE; BASTOS, 2014).

Entretanto, está no trabalho Psychology and Industrial Efficiency, datado de 1913, de Münsterberg, o marco principiante mais reconhecido. Este marca o nascimento da psicologia industrial e traz as principais preocupações centrais da época e do novo campo: a seleção de trabalhadores, os fatores que afetam a eficiência do traba-lhador e as técnicas de venda, publicidade e marketing, representando, respectiva-mente, a busca pelo melhor sujeito para o trabalho, o melhor trabalho e o melhor efeito possível – neste sentido elaboraram-se testes psicológicos com o intuito de ajustar as pessoas aos cargos (MÜNSTERBERG, 1913).

Em 1933, Mayo divulgou, em The Human Problems of Industrial Civilization, os resultados de seus estudos: em 1920, na Western Electric Company, revelaram a importância de se considerar os fatores sociais implicados em uma situação de tra-balho. Essa pesquisa ficou muito conhecida como Hawthorne (bairro da cidade de Chicago) e deu impulso à era das relações humanas (MAYO, 1933).

Na sequência, elementos do contexto macrossocial, político, econômico e cultu-ral impuseram desafios e oportunidades para o surgimento de respostas neste meio, tais como: o processo de industrialização no período da Segunda Revolução Indus-trial, com a criação de máquinas novas, requisitando padronização no trabalho; a coação por reformas sociais e contra a exploração do trabalho em 1998; a Primeira Grande Guerra, demandando a solução de problemas derivados da sobrecarga de trabalho; a grande depressão na década de 1930; e a Segunda Grande Guerra. Cabe ressaltar que o binômio avaliação psicológica e ajuste homem/máquina/trabalho instituiu o grande componente definidor desse período inicial (ZANELLI; BOR-GES-ANDRADE; BASTOS, 2014).

De acordo com as ideias de Shimmim e Strein (1998), as respostas aos desafios que surgiram nesse período que perdurou até 1945 foram o surgimento de psico-

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técnicas, testes psicológicos como ferramenta para a seleção de pessoas e o human engineering – que se refere à elaboração de equipamentos para o uso humano. Por este viés, abordagens e métodos também surgiram, como a já citada psicologia in-dustrial, a psicometria, os processos seletivos, a análise e intervenção com foco em pequenos grupos e métodos de treinamento.

Por conseguinte, de 1945 a 1960, instaurou-se o período denominado “expansão e consolidação pós-guerra”. Este caracterizou-se pela reconstrução da economia, das cidades e da vida social em geral, sendo uma fase de expansão e crescimen-to. Assim, na Europa e nos Estados Unidos emergiram as entidades específicas e o psicólogo passou a trabalhar com uma gama de problemas organizacionais, como elaboração de postos de trabalho, seleção, treinamento, inserção de novas tecnolo-gias, aquisição de habilidades, motivação e desenvolvimento organizacional. Dessa forma, a psicologia industrial foi substituída pela organizacional (ZANELLI; BOR-GES-ANDRADE; BASTOS, 2014).

Além disso, a Teoria X (tradicional) e a Teoria Y (emergente) de McGregor, di-vulgadas em 1960, na obra The Human Side of Enterprise, merecem relevância. Nes-se estudo, veem-se dois modos divergentes de encarar o trabalhador: na Teoria X, a ênfase é dirigida às metas da organização, administrando seus recursos humanos de modo autoritário; por outro lado, na Teoria Y, a atenção é dirigida à valorização do empregado, estimulando-o a alcançar suas metas e satisfazer suas necessidades (PÉREZ-RAMOS, 1990).

Conforme Shimmim e Strein (1998), entre os anos de 1960 e 1970, surgiu uma temporada de incertezas, a Guerra Fria espalhou conflitos por todo o mundo. Um modelo novo de relações de trabalho surgiu, ampliando-se a competição devido aos avanços na tecnologia, a busca de lucros e os conflitos nas organizações, apesar do nascimento do discurso da qualidade de vida no trabalho (QVT). No que diz respei-to à psicologia, cresceram as críticas aos testes psicológicos e o desafio de ir além do âmbito individual da análise. Em contrapartida, manifestaram-se a concretização de programas de QVT, a mudança de modelos de gestão de controle para compro-misso e envolvimento, o foco não mais em pequenos grupos; e cresceu o debate sobre questões éticas.

Fenômenos como o aumento do estresse, assédio moral ou violência psicológica têm sido foco de investigação de diversos autores, como Bernal (2010) e Zanelli et al. (2010). Ademais, com o aumento do desejo de equilibrar a vida profissional e fami-liar, embasado sob ética, transparência, justiça e refletindo a aposentadoria, houve um acentuado interesse de inúmeros profissionais por questões referentes à saúde do trabalhador (SILVA, 2007).

3.2 História da psicologia organizacional e do trabalho no Brasil

O desenvolvimento da psicologia organizacional e do trabalho no Brasil acom-panhou as mudanças mundiais, destacando-se inicialmente em um nível mais ge-nérico, a psicologia geral. Seu aparecimento está associado à crescente industriali-zação dos principais países do cenário ocidental, no fim do século XIX e início do século XX. A partir do processo de regulamentação da profissão de psicologia na década de 1960, foi possível incluir fatos, eventos e estudos que mencionam a POT (BORGES, 2010).

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Apesar do ingresso da psicologia organizacional nos estudos de psicologia, esta passava uma visão de compromisso com setores ideologicamente conservadores, fazendo com que pesquisadores criassem certa distância de pesquisas voltadas para a área. Contudo, com o crescente e visível aparecimento de indústrias, passou-se a questionar a ação da POT: de que maneira essa poderia auxiliar nos processos fun-cionais das empresas (BORGES, 2010)?

Diante desse processo, foi nas universidades, principalmente em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Pernambuco, que aconteceram as primeiras experiências em psicologia organizacional no que se refere à psicometria (WELL, 2005). A partir desse contexto, iniciou-se a utilização dos testes, nomeados psicotécnicos, destina-dos à área do trabalho, a fim de realizar seleção profissional.

Com o avanço das tecnologias, a mudança de contexto cultural e social, as pes-quisas apresentaram aumento significativo. O âmbito empresarial mostrava a ne-cessidade da presença de psicólogos para o desenvolvimento corporativo. Soman-do-se, vale registrar que, aliadas ao crescimento da psicologia organizacional e ao surgimento de pesquisadores, estão ações institucionais de associações científicas como a SBPOT (Associação Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho) e a ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia) (BORGES-ANDRADE; PAGOTTO, 2010).

Em decorrência da necessidade de se construir caminhos inovadores e saudáveis para o exercício do trabalho e responder às exigências do mercado brasileiro, a POT, atualmente, ocupa importante espaço como atividade profissional. É válido salien-tar que as demandas modificam-se junto com a sociedade e a cultura; desse modo, o psicólogo deve estar aberto à incorporação de novas intervenções e à ampliação dos objetivos de seu trabalho.

4 Discussão

A partir do estudo realizado, fica evidente que a psicologia organizacional e do trabalho desenvolveu-se buscando responder a desafios específicos impostos pelos contextos sociais, tecnológicos, políticos e econômicos que marcaram os séculos XX e XXI, percorrendo, desse modo, um caminho precursor e recente. A cada período, um conjunto de práticas profissionais vincula-se a antecedentes sociais e culturais, e seu desenvolvimento advém da construção de novos conceitos e técnicas para lidar com as demandas que surgem.

Com base no que demonstra o marco histórico e teórico, a POT sofreu trans-formações significativas ao longo da história. Da perspectiva inicial da psicologia industrial para a psicologia organizacional e do trabalho, nota-se um percurso pro-dutivo, abrangendo os mais variados países.

5 Considerações finais

A realização desta revisão bibliográfica possibilitou o acompanhamento das mudanças do campo da psicologia ora em análise. Assim sendo, o objetivo do pre-sente trabalho foi a investigação da evolução histórica e social da psicologia organi-zacional e do trabalho.

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Essa esfera científica da psicologia nasceu de diversas forças e se desenvolveu por meio do conflito global; hoje, o psicólogo organizacional deve ser multidisciplinar (WANDICK, 2008).

Mudanças ocorrem velozmente nas organizações, exigindo dos profissionais uma grande disposição estratégica e capacidade de gerenciamento de pessoas. Visto por este prisma, o sujeito inserido em organizações tem total influência nestas e na maneira como elas se desenvolvem, pois traz aspectos individuais para o trabalho.

Com base nessa premissa, a POT tem crucial função em observar a relação do sujeito com a organização e vice-versa, visando à melhoria de processos e de com-portamentos. Desse modo, demonstra-se que essa linha ocupa um importante espa-ço na ciência psicológica e que suas ações nesse contexto justificam uma necessida-de de investir em pesquisas mais aprofundadas, visando aprimorar conhecimentos e práticas.

Referências

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S U M Á R I O

http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-83-9-8

A CRIMINOLOGIA CRÍTICA E SEUS LIMITES EPISTEMOLÓGICOS NO DEBATE SOBRE OS DANOS

CAUSADOS PELA INDÚSTRIA DA CARNE NO BRASIL

Critical criminology and its epistemological limits in the debate about harm caused by the meat industry in Brazil

Jenifer Patrícia Fragoso BonattoEspecialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade de

Direito Damásio de Jesus. Pós-graduanda lato sensu em Direito Previdenciário pela Faculdade UNOPAR. Bacharela em Direito pela IMED,

onde foi bolsista PROUNI. Advogada. E-mail: <[email protected]>.

Karine Agatha FrançaAcadêmica de Direito da IMED, onde é bolsista Probic/Fapergs

vinculada ao grupo de pesquisa Criminologia e dano social: a efetivação da sustentabilidade para além do direito penal.

E-mail: <[email protected]>.

Marília De Nardin BudóOrientadora. Doutora em Direito na Universidade Federal do Paraná, com estágio

sanduíche na Facoltà di Giurisprudenza da Università di Bologna, na Itália, com bolsa PDSE/CAPES. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),

onde foi bolsista Capes. Especialista em Pensamento Político Brasileiro pela UFSM. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais e em Jornalismo pela Universidade

Federal de Santa Maria (UFSM), onde foi bolsista PIBIC/CNPq. Docente da Graduação e do Mestrado em Direito da IMED.

E-mail: <[email protected]>.

Resumo

O meio ambiente guarnece todas as condições necessárias para a sobrevivência e evolução das espécies; contudo, ao priorizar a lucratividade das atividades econômi-cas sem considerar o desenvolvimento sustentável, o ser humano tem provocado da-nos irreparáveis ao meio ambiente. Assim, utilizando o método dialético e a técnica de pesquisa exploratória bibliográfica, o presente trabalho tem por objetivo a expo-sição crítica desses danos e, sobretudo a análise da atuação do Estado, partindo do marco teórico da Criminologia Crítica. Parte-se de uma ruptura epistemológica que

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J. P. F. Bonatto, K. A. França, M. N. Budó

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leve em consideração a necessidade de ampliação de seu objeto de estudo para os danos decorrentes de atividades danosas não consideradas legalmente como crimes. Palavras-chave: Criminologia crítica. Agropecuária. Dano social. Sustentabilidade.

Abstract

The environment provides all the necessary conditions for the species survive and evolve, however, by prioritizing economic activities profits, and disregarding sus-tainable development, the human being has provoked irreparable harm to the environment. Thus, using the dialectical method, and the exploratory bibliogra-phic research technique, this paper aims to critically expose these harm, and, espe-cially, analyze the State action, starting from Critical Criminology theoretical mar-ch. It was initiated by the epistemological rupture considering the need of expand its study object for the harm from harmful activities that are not rightfully considered as crimes.Keywords: Critical Criminology. Agricultural. Social Harm. Sustainability.

1 Introdução

O meio ambiente guarnece todas as condições necessárias para a sobrevivência e evolução das espécies que nele habitam. Contudo, a espécie humana não está fir-mando com a devida responsabilidade a relação de dependência que possui com o planeta. Uma das ações apáticas do ser humano sobre o meio ambiente é a maneira como prioriza a lucratividade das atividades econômicas sem considerar o desen-volvimento sustentável como parte de sua própria sustentação.

Relacionar a problemática do desenvolvimento sustentável com o setor de cria-ção de animais é imprescindível tendo em vista que esse setor é um dos princi-pais responsáveis pelos danos acarretados sobre o meio ambiente no mundo atual, destacando-se seu impacto no aquecimento global, desmatamento e poluição de nascentes. Partindo do problema de pesquisa de como o Estado age diante dos danos ambientais massivos causados pela indústria da carne, e qual o papel da Criminologia Crítica diante desse contexto, o presente trabalho tem por objetivo a exposição crítica desses danos e, sobretudo, a análise da atuação do Estado a partir da ruptura epistemológica promovida pela criminologia verde no debate sobre a sustentabilidade.

O método de abordagem utilizado é o dialético, por se tratar do método mais adequado para as ciências sociais, de modo a compreender a realidade em perma-nente contradição (DEMO, 1989) e a técnica de pesquisa exploratória bibliográfica. O trabalho divide-se em duas partes: foram abordados os danos ao meio ambiente provocados pela indústria da carne e a atuação Estatal; e passou-se à análise do pa-pel da Criminologia Crítica diante dessa situação.

2 Danos socioambientais provocados pela indústria da carne

Após o final da Segunda Guerra Mundial, com o reconhecimento internacional dos direitos humanos, foram surgindo novas preocupações acerca da maneira como os

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A criminologia crítica e seus limites...

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recursos naturais poderiam ser utilizados na tentativa de diminuir os danos causados pelo processo de industrialização que se alavancava na época. O princípio do desen-volvimento sustentável surgiu inclusive na Constituição Federal de 1988, expresso no artigo 225, com o intuito de suprir as necessidades da atual geração sem comprometer as necessidades das futuras gerações.

Desenvolvimento sustentável é aquele que não extingue os recursos limitados da natureza, para que as próximas gerações também possam usufruí-los (ONU, 1972). A partir disso, foram realizados inúmeros tratados, convenções e protocolos em prol da defesa do meio ambiente, apresentados e debatidos em diversos lugares do mundo. Um destes projetos, talvez o mais importante, foi a Conferência de Estocol-mo (1972), instituída pela Organização Mundial das Nações Unidas (ONU), junta-mente com os Estados, que visavam restabelecer uma nova perspectiva sustentável para o planeta. É inegável a contribuição dessas documentações para a realidade atual da crise ambiental; contudo, considerando a necessidade de uma nova estra-tégia de sobrevivência do ecossistema, os objetivos tratados não devem se mitigar a meros interesses políticos e econômicos, como é comum hoje.

Segundo o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), 90% do aquecimento global são gerados por atividades humanas (GUNTHER, 2015), sendo a Indústria da pecuária a atividade que mais provoca danos ao meio ambiente.

Na estimativa da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a emissão de gases poluentes do efeito estufa pela criação de animais equiva-le a 18% do total de CO2 emitido na atmosfera, sendo maior e mais impactante do que a indústria automobilística (STEINFELD et al., 2006). Outras pesquisas, mais recentes, demonstram que a agropecuária é responsável não somente por 18%, mas por 51% de todas as emissões de gases poluentes que provocam o efeito estufa. Além disso, os ruminantes, animais como vacas, ovelhas e porcos, emitem exclusivamente o gás metano, vinte vezes mais prejudicial do que o dióxido de carbono, gás liberado pelos meios de transporte (GOODLAND; ANHANG, 2009).

A pecuária utiliza basicamente 45% das terras do planeta. Essa porcentagem preocupa ainda mais os cientistas para os próximos anos, pois, segundo estimativa, até 2050 a agricultura terá que crescer 70% para suprir a demanda de consumo de carne e derivados, ou seja, o consumo de alimentos provenientes de animais é insus-tentável (THORTON et al., 2011), principalmente nos países menos desenvolvidos, nos quais a demanda por proteína animal é maior.

Enquanto na Europa e nos Estados Unidos o consumo de carne vem estagnando, nos países emergentes ele aumenta – impulsionado, sobretudo pela crescente classe média. Até 2022, cerca de 80% do crescimento no setor serão originados dessas eco-nomias, principalmente na Ásia. Também no Brasil e na África do Sul − integrantes dos chamados países Brics, juntamente com Rússia, Índia e China −, a demanda deve subir em ritmo constante. (HEINRICH BÖLL FOUNDATION; FRIENDS OF THE EARTH EUROPE, 2014).

A expansão da pecuária é uma das principais causas do desmatamento da Ama-zônia, para criação de pastos e de áreas agrícolas; a agropecuária aparece como a causa direta e imediata do desmatamento (RIVERO et al., 2009). Na Amazônia, 91% das terras desmatadas foram resultantes da agricultura de animais, sendo equiva-lente a 136 milhões de acres de florestas (MARGULIS, 2004).

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Rivero et al. (2009) fazem uma análise das causas dos desmatamentos ligadas a essa indústria citando diferentes estudos e conclusões: a expansão das pastagens, da infraestrutura, a utilização do solo, a mudança cultural, o crescimento populacional, as políticas governamentais relacionadas, inclusive com os incentivos econômicos à produção agropecuária, a expansão da atividade econômica.

A pegada hídrica (WWF, 2011) é outro fator problemático da criação de animais: 80% do consumo de água potável no mundo se deve à agricultura (AILLERY; SCHAIBLE, 2015). Nos EUA, por exemplo, 5% da água consumida são para uso individual; em contrapartida, 55% são para uso exclusivo da agricultura animal (THORTON; HERRERO; ERICKSEN, 2011). Estima-se que 64% da população mundial sofrerão com a escassez de água doce até 2025. Fato este decorrente, dentre outros motivos, de grande consumo de água pela pecuária, além dos altos índices de poluição da água – por resíduos de animais, antibióticos, produtos químicos, ferti-lizantes, que causam inclusive problemas à saúde humana, bem como dificultam a infiltração da água nos lençóis freáticos (SOUZA, 2010).

Além disso, a agropecuária influi diretamente na perda da biodiversidade, sobre-tudo na extinção de muitas espécies de animais. Isto ocorre devido à caça de animais predadores, considerados concorrentes pela indústria da carne, pois ameaçam a vida do gado, contribuindo então com a perda de lucratividade da indústria (WWF, 2015). Além disso, os pesticidas e fertilizantes químicos utili-zados nas terras para pastio interferem nos sistemas de reprodução dos animais, bem como são vias de veneno para o solo e os alimentos produzidos para os seres humanos (STEINFELD et al., 2006).

3 A criminologia crítica em face dos danos ambientais causados pela indústria da carne

A criminologia sempre se delimitou a analisar os crimes individuais, aqueles punidos apenas pela justiça penal, ou melhor, os crimes cometidos no chamado “espaço civilizado”. Segundo Bernal et al. (2014, p. 48), “o pensamento criminoló-gico parece ter passado muito tempo sendo ignorado por sua função de disciplina explicativa do comportamento delitivo e das reações sociais (formais e informais) frente ao mesmo”.1

Os crimes individuais não afetam um número tão expressivo de pessoas quanto as condutas praticadas pelos Estados e mercados, que muitas vezes não são vistas como criminosas. Por isso, mediante o enfoque deste artigo, será analisado neste tó-pico como o Estado poderá agir para modificar o paradigma atual da crise ambien-tal, abordando-se os estudos realizados dentro do campo da Criminologia Crítica.

Durante o século XX, a criminologia sofreu inúmeras revisões e transformações em seu objeto de estudo, sem ser possível verificar um consenso em seus diversos enfoques. Cada época trouxe explicações diferentes referentes ao tema do desvio, desde a teoria lombrosiana até a nova criminologia, crítica ou radical (BERNAL et al., 2014) – mas todos esses enfoques apresentam limitações ao objeto de estudo da criminologia.

1 Tradução livre: “el pensamiento criminológico parece haber pasado de largo e ignorado su función de disciplina explicativa del comportamiento delictivo y de las reacciones sociales (formales e informales) frente al mismo”.

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Formalizando uma análise acerca dos danos ambientais provocados pela indústria da carne, sobretudo analisando os estudos teóricos da Criminologia Crítica, percebe-se que esta deve ampliar o seu campo investigativo, hoje subordinado à justiça penal, para um novo objeto de estudo: autônomo e global às ciências penais (FERRAJOLI, 2014). Somente adotando um estudo externo e autônomo da criminologia é que po-demos reconhecer e indagar a existência desses crimes massivos sobre o meio ambiente provocados pela indústria da carne, que hoje não estão previstos em nenhum ordenamento penal.

Wayne Morrison, em sua obra Criminología, civilización y nuevo orden mundial, já perguntava onde estava a criminologia quando ocorriam os crimes em grande escala dos Estados desde o século XIX, qual é o papel da criminologia, bem como se é possível uma criminologia crítica global mediante as atrocidades cometidas no espaço civilizado (apud BERNAL et al., 2014).

Dessa forma, questiona-se o motivo pelo qual a criminologia segue o direito penal, e se deveria se limitar a este ou deveria expandir seu objeto de estudo para abranger as condutas que, embora não tipificadas como crime, produzem danos em massa (BERNAL et al., 2014), tal como, a expansão descontrolada da produção de carne para consumo humano.

O sistema de produção associado ao capitalismo global, além de explorar pessoas, explora o ecossistema, gerando a degradação ambiental e levando à poluição, aque-cimento global e alterações no clima. As mudanças climáticas são associadas a di-versos desastres naturais, que serão cada vez mais frequentes num futuro previsível (WHITE, 2015). Nesse sentido, para a realização de um estudo acerca dos impactos ambientais causados pela indústria da carne, é elementar conduzirmos este para além da criminologia, inclusive da criminologia crítica, considerando a necessária superação dos limites epistemológicos trazidos pelo conceito de “crime”, abrangendo, portanto, os danos.

Nos estudos de Hillyard e Tombs (2013), revela-se a necessidade de modificar o termo científico atribuído aos estudos sobre os danos sociais, Criminologia Crítica, para Zemiologia, ou seja, o estudo dos danos, pois a palavra “criminologia” vincula o próprio nome ao estudo do crime, sendo assim, automaticamente relacionado às ciências penais. Portanto, para alguns autores, o estudo sobre Criminologia Crítica deve ir além de seus danos sociais, averiguando a impunidade e a aceitação por parte das opiniões públicas sobre os crimes mais danosos; mas, para isso, algumas teorias devem ser desconstruídas.

Segundo Baratta (2011), é necessária a deslegitimação de certos dogmas do direito penal para avançar numa verdadeira explicação da situação atual da criminologia ante os crimes maiores, pois essa ideologia só serviu, até agora, para legitimar, através do discurso dos princípios do direito penal, uma aplicação seletiva da lei, que nunca alcançou os poderosos ou os agentes do Estado.

[...] em um sentido estratégico, a longo prazo, a criminologia deve ser abandonada, já que seu enfoque sobre o crime, lei e justiça criminal tem sido sempre insuficiente, já que tem comportado, em parte, uma reprodução do que Braithwaite chamou de “uma administração da justiça criminal classista”. (HILLYARD; TOMBS, 2013).2

2 Tradução livre: “en un sentido estratégico, a largo plazo, la criminología debe ser abandonada, dado que su enfoque sobre el crimen, la ley y la justicia penal ha sido siempre inadecuado ya que ha comportado en parte una reproducción de lo que Braithwaite ha denominado “una administración de justicia penal clasista”.

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A lei não representa um instrumento de solução de conflitos, mas sim um ins-trumento utilizado pelas classes dominantes para impor seus interesses às classes dominadas. Assim, a lei apenas representa os interesses de quem tem poder para produzi-la, de forma que reproduz também o interesse de conservar o poder (PAVA-RINI, 2002). Dessa forma, as organizações ambientais, juntamente com o Estado, acabam se tornando omissas com a sociedade e com o próprio ecossistema.

Enquanto o Estado se recusar a enunciar os dados verídicos acerca dos im-pactos da agropecuária sobre o meio ambiente, em nenhum lugar na política será encontrado espaço para incentivar a formação de uma consciência crítica na so-ciedade no que diz respeito à conservação e preservação do meio ambiente ado-tando uma dieta livre de produtos oriundos de animais. Neste diapasão, calha interrogar qual a ideologia dos vários partidos políticos sobre a temática, embora a questão ecológica tenha passado historicamente ao largo das agremiações de direita e de esquerda, ambas preocupadas exclusivamente com os seres humanos (LOURENÇO; OLIVEIRA, 2012).

As técnicas utilizadas para a não responsabilização pelas mudanças climáticas são a negação de que a responsabilidade da causa dos problemas seja antropocên-trica, como, por exemplo, afirmar que os desastres naturais são normais, negar a vitimização, principalmente dos mais vulneráveis (WHITE, 2015).

Os impactos massivos causados pela produção de carne não se limitam apenas à estrutura ecológica do nosso planeta, também estão relacionados com a omissão do Estado em relação à situação caótica de extrema pobreza vivida por algumas famílias – 82% das crianças famintas vivem em países em que os alimentos são administrados exclusivamente aos animais (OPPENLANDER, 2012). Segundo rela-tório da FAO, a substituição total de alimentos provenientes de animais por outras proteínas, como as vegetais, é vital para erradicar a fome no mundo. Isto porque a pecuária é considerada insustentável para o planeta (STEINFELD et al., 2006).

Os crimes dos poderosos estão destruindo o meio ambiente, contribuindo para as mudanças climáticas e o aquecimento global. A exploração dos recursos ambien-tais escassos leva à vulnerabilidade do ecossistema. Os Estados, juntamente com as corporações transnacionais, são responsáveis por esses danos (WHITE, 2015).

Um direito (interesse) só cede legitimamente diante de outro direito (interesse) equivalente ou de um direito (interesse) considerado superior (OLIVEIRA, 2013, p. 27). Portanto, não é correto o ser humano, para satisfazer seus desejos alimen-tares, ceifar a vida de animais não humanos, bem como provocar danos massivos sobre o meio ambiente. Dessa forma, diante de tais dados, verifica-se que, dada a omissão e banalização do Estado, este deveria ser responsabilizado, juntamente com corporações que causam os danos de massa contra o meio ambiente, para evitar o que Ferrajoli (2014, p. 92) chama de

[...] uma gigantesca omissão de socorro frente a populações inteiras afetadas pelos da-nos provocados pelo mercado sem leis: um crime duplo, portanto, consistente, em pri-meiro lugar, nas catástrofes que provocam e, em segundo lugar, na omissão de socorro para as pessoas e as populações afetadas.

Cientistas de diversas áreas vêm, há anos, alertando sobre os danos provocados pelo aquecimento global – tese negada sistematicamente por algumas pessoas, mas

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aceita atualmente pela maioria. A destruição do meio ambiente pode ser conside-rada, na concepção criminológica, como tipo específico de crime, chamado ecocídio. O ecocídio vem sendo definido como danos extensos e destruição de ecossistemas (WHITE, 2015).

4 Conclusão

Os maiores responsáveis pelo desequilíbrio ecológico do planeta são despertados pelas necessidades ilimitadas do homem sobre os recursos limitados da natureza. São padrões de consumo que necessitam ser refletidos e transformados para que os impactos sobre o meio ambiente diminuam, pois não se está diante do desgaste dos recursos naturais apenas, mas, sim, da deterioração das próprias condições de vida do planeta.

Muitas práticas errôneas ainda são permitidas pelas leis do Estado, como a pro-dução desenfreada de carne para consumo. Contudo, o Estado não é o único a agir indiferente sobre os impactos causados por essa indústria. Por isso, é imprescindível que a sociedade adote uma postura ética ambiental, abandonando o pensamento antropológico que impossibilita visionar a verdadeira relação entre os seres humanos e o meio ambiente, bem como reestruturar uma educação voltada a compreender essa postura ética entre todas as espécies que habitam o planeta.

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LOURENÇO, Daniel Braga; OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Sustentabilidade, economia verde, direito dos animais e ecologia profunda: algumas considerações. Revista Brasileira de Direito Animal, v. 7, n. 10, jan./jun. 2012. Disponível em: <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/8403/6021>. Acesso em: 20 out. 2015.MARGULIS, Sérgio. Causas do Desmatamento da Amazônia Brasileira. Brasília: Banco Mundial, 2003. Disponível em: <http://www.amazonia.org/AmazonForest/Deforestation/MargulisWorldBank0703.pdf>. Acesso em: 13 out. 2015.OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Direitos da natureza e direitos dos animais: um enquadramento. Ano 2, n. 10. 2013. Disponível em: <http://scholar.googleusercontent.com/scholar?q=cache:UMY_q-reDGAJ:scholar.google.com/&hl=pt-BR&as_sdt=0,5>. Acesso em: 20 out. 2015.OPPENLANDER, Richard. The World Hunger-Food Choice Connection: A Summary. Comfortably Unaware, 2012. Disponível em:<http://comfortablyunaware.com/blog/the-world-hunger-food-choice-connection-a-summary/. Acesso em: 02 abr. 2015.ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. 1972. Disponível em: <http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/estocolmo1972.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2015.PAVARINI, Massimo. Control y dominación: teorías criminológicas burguesas y proyecto hegemónico. Argentina: Siglo XXI, 2002.RIVERO, Sérgio et al. Pecuária e desmatamento: uma análise das principais causas diretas do desmatamento na Amazônia. Nova econ., Belo Horizonte, v. 19, n. 1, jan./apr. 2009. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0103-63512009000100003>. Acesso em: 12 out. 2015.SOUZA, Jenifer Sifuentes de. O impacto ambiental atribuído à pecuária. Conselho Regional de Medicina Veterinária – CRMV/PR. 2010. Disponível em: <http://www.crmv-pr.org.br/?p=imprensa/artigo_detalhes&id=65>. Acesso em: 13 out. 2015.STEINFELD, Henning et al. Livestock’s long shadow: environmental issues and options. Food and Agriculture Organization of the United Nations, Roma, 2006. Disponível em: <ftp://ftp.fao.org/docrep/fao/010/a0701e/a0701e.pdf>. Acesso em: 14 out. 2015.THORTON, Philip; HERRERO, Mario; ERICKSEN, Polly. Livestock and climate change. Issue Brief, 2011. Disponível em: <https://cgspace.cgiar.org/bitstream/handle/10568/10601/IssueBrief3.pdf>. Acesso em: 12 out. 2015.WHITE, Rob. Climate Change, ecocide and crimes of the poweful. In: BARAK, Gregg. The Routledge Internacional Handbook of the Crimes of the Powerful. USA: Routledge, 2015.WWF. Impact of habitat loss on species. Disponível em: <http://wwf.panda.org/about_our_earth/species/problems/habitat_loss_degradation/>. Acesso em: 1 out. 2015.______. Pegada hídrica incentiva o uso responsável da água. Disponível em: <http://www.wwf.org.br/?27822/Pegada-Hdrica-incentiva-o-uso-responsvel-da-gua>. Acesso em: 14 out. 2015.

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S U M Á R I O

http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-83-9-9

OS BENEFÍCIOS DA RELIGIOSIDADE NA VELHICE

The benefits of religion in old age

Luana Cristina Zick QueirozAcadêmica de Psicologia da IMED.

E-mail: <[email protected]>.

Monalisa Col DebellaAcadêmica de Psicologia da IMED.

E-mail: <[email protected]>.

Resumo

Na velhice, ocorrem múltiplos eventos e mudanças; ora, a religiosidade mostra-se uma importante ferramenta para lidar com esses eventos. Este é um tema de grande relevância para a psicologia por estar ligado à forma como o sujeito lida em relação aos eventos ao longo da vida; assim, viu-se a necessidade de pesquisar quais os be-nefícios que a religiosidade pode proporcionar aos sujeitos na velhice. O presente estudo objetivou investigar o fenômeno da religiosidade nos idosos e como esta con-tribui para a melhoria de vida nessa fase do desenvolvimento. Por meio de pesquisa bibliográfica, constatou-se que a religiosidade pode servir como suporte social, for-necendo forças aos indivíduos para que desenvolvam sua autonomia. Através desta pesquisa, verificou-se que a religiosidade pode ser considerada um importante fator de saúde mental, fornecendo estrutura motivacional e emocional, proporcionando um melhor envelhecimento.Palavras-chave: Envelhecimento. Idoso. Religiosidade. Espiritualidade.

Abstract

In old age occurs multiple events and changes, so that religion shows become an im-portant tool for dealing with such events. This is a highly relevant topic for psycho-logy because it is linked to how the individual handles ahead to the events lifelong thus saw the need to investigate what benefits that religiosity can provide subjects in old age. This study aimed to investigate the religious phenomenon in the elderly and how this contributes to the improvement of life in this stage of development. Through bibliographical research it was found that religion can serve as a social su-pport by providing forces individuals to develop their autonomy. Through this stu-dy it was found that religion can be considered an important factor mental health, emotional and motivational providing structure, providing a better agingKeywords: Aging. Elderly. Religiosity. Spirituality.

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1 Introdução

O envelhecimento populacional no Brasil está ocorrendo rapidamente; esse pro-cesso, para Oliveira et al. (2013), verifica-se em função das mudanças do perfil po-pulacional que estamos vivenciando, além do aumento da expectativa de vida da população. O envelhecimento é um processo que inicia desde o nascimento e segue até o final da vida, fazendo parte da condição humana; engloba mudanças biológi-cas, fisiológicas, psíquicas e sociais, que irão interferir ao longo da vida (SOUZA, 2015). A velhice, Segundo Oliveira et al. (2013), é constituída por acontecimen-tos que podem ser esperados ou não, abrangendo o desenvolvimento de algumas áreas e declínio de outras. Em razão disso, a religiosidade vem ganhando grande significado na vida dos idosos.

Oliveira e Alves (2014) consideram que a religiosidade e a espiritualidade são bastante evidenciadas na velhice; e que as duas necessitam ser atendidas, valorizadas e incentivadas pelos indivíduos que se apropriam da função de cuidar, tornando-se significativo dar maior atenção neste âmbito. Assim, a religiosidade tem sua grande importância para idosos como forma de lidar com situações como o adoecimento e outras situações estressantes (MOREIRA-ALMEIDA et al., 2010). Fung e Lam (2013) sugerem que a religiosidade pode elevar o propósito de vida e a longevidade. O pre-sente artigo tem como objetivo investigar o fenômeno da religiosidade nos idosos e como esta contribui para a melhoria de vida nessa fase do desenvolvimento.

Este estudo trata-se de uma pesquisa qualitativa, e optou-se pela metodologia de revisão bibliográfica, por se entender que pode oferecer recursos significativos para a investigação acerca do tema religiosidade na velhice. Para a realização da revisão bibliográfica, foram pesquisadas bases de dados tais como: Scielo, Capes, Pubmed, ERIC (Education Resources Information Center), PsycINFO, PePSIC. Utilizaram--se os seguintes descritores: envelhecimento, religiosidade e espiritualidade, religio-sidade e envelhecimento humano, terceira idade, velhice, fenômeno da religiosidade no idoso, e os benefícios da religiosidade – pesquisados em publicações de 2008 a 2015. Os artigos selecionados foram escolhidos de acordo com o tema em questão, tanto na área de Psicologia quanto em outras áreas como da Antropologia e Geron-tologia, já que possuem material muito relevante e esclarecedor referente ao tema.

2 Resultados e discussão

Por muito tempo a ciência e a religião viveram em conflito; hoje, vemos a neces-sidade de que haja uma conversa entre ambas para que possamos estudá-las e co-nhecer o papel da religião e espiritualidade na qualidade de vida (VIEIRA, 2014). Para isso, torna-se necessário diferenciar a espiritualidade de religiosidade. Histo-ricamente, a religiosidade e espiritualidade foram raramente diferenciadas, fazen-do com que, por muito tempo, fossem consideradas sinônimas (MOBERG, 2012). No entanto, Rocha e Ciosak (2014) sugerem que os conceitos não são sinônimos, de modo que a religiosidade é uma das formas de expressão da espiritualidade. Desta forma, verifica-se que nos últimos anos muitos pesquisadores procuraram analisar de maneira ética a questão da religiosidade no comportamento humano, avaliando cientificamente e não se atendo a questões teológicas e filosóficas de cada religião (SOUZA, 2015).

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Os benefícios da religiosidade na velhice

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Segundo Duarte e Wanderley (2011), “religião” e “espiritualidade” são termos que não possuem uma conceituação única devido à falta de concordância na litera-tura científica, dificultando assim pesquisas acerca do tema. Desta forma, os con-ceitos se tornam muito amplos, parecendo de difícil entendimento. Para Lucchetti et al., (2011), a religiosidade é o quanto um indivíduo pratica e crê em uma religião; o sujeito poder participar dos encontros realizados no templo religioso ou igreja ou somente praticar sua fé por meio de rezas, livros e programas religiosos no rádio, na televisão e internet. Já a espiritualidade é uma busca pessoal que pode ou não conectar-se com as práticas religiosas; é a busca pelo sentido da vida e as questões relacionadas a ela. Gutz e Camargo (2013) propõem que a espiritualidade na velhice estaria mais ligada ao sentimento de finitude e preparação para a morte. Ainda se-gundo Souza (2011), oração, leituras bíblicas e práticas religiosas, são fundamentais para a sustentação da religiosidade.

Em um estudo realizado por Esteves (2014), percebeu-se que os idosos dão muita importância à religiosidade; conforme o avanço da idade aumenta, também a crença nessa temática. Esteves (2014) verificou ainda que a religiosidade é, em muitos casos, utilizada como estratégia para que se possa lidar com as perdas, não apenas com perda de autonomia/dependência, mas também perdas de papel social, profissional e até familiar. A religiosidade é utilizada pelos idosos como estratégia de acolhi-mento e apaziguamento de mudanças ocasionadas em virtude do envelhecimento que esses sujeitos estão sofrendo em seus corpos em função da incapacidade funcional – antes seus corpos eram capazes de coisas que hoje já não são mais. Esses idosos acabam se envolvendo por um sentimento de perda de si mesmos, e é nesse proces-so que a religiosidade acolhe esses sujeitos, tornando suas vidas mais suportáveis (SANTOS et al., 2013).

Para Souza (2015), a religiosidade tem-se apresentado como importante meio de atingir uma maior qualidade de vida para o indivíduo, independentemente de sua idade. Foi comprovada a relação da religiosidade com a saúde e o bem-estar dos ido-sos na superação das dificuldades que ocorrem no envelhecimento humano. Nesse sentido ainda, Mello e Oliveira (2013) afirmam que a religiosidade dá significado à vida ante o sofrimento, inclusive ao estimular a constituição de uma rede social de apoio, fazendo com que a pessoa em sofrimento obtenha mais apoio da comunidade, garantindo-lhe sensações de acolhimento e bem-estar. Mello e Oliveira (2013) ainda fortalecem a concepção de que uma consequência fundamental da religião é a de que ela modifica a visão que o indivíduo tem do mundo. Isso não significa necessa-riamente a retirada dos sintomas, mas a alteração dos significados que o indivíduo delega à sua doença, podendo resultar também em mudanças no seu estilo de vida.

O enfrentamento religioso, para Santos et al. (2013), é uma importante estratégia entre os idosos; ajuda na resposta emocional provocada pelo desenvolvimento de incapacidade funcional, reparando o vazio existencial e fazendo com que o sujeito possa se sentir acolhido e tranquilizado na realidade de seu corpo de hoje, enve-lhecido. Idosos com práticas religiosas possuem maior facilidade para interação e integração social, maior sentimento de bem-estar, comprometimento com sua saú-de, capacidade de enfrentamento aumentada, assim como elementos para enfrentar diversas situações com mais autonomia e uma diminuição de hábitos prejudiciais à saúde (SOUZA, 2011; SORIANO; LÓPEZ, 2012; CHAVES et al., 2014).

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L. C. Z. Queiroz, M. C. Debella

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Em uma pesquisa realizada por Souza (2011), com idosos entre 67 e 83 anos, constatou-se que idosos com faixa etária entre 67 e 72 anos frequentavam assidua-mente encontros religiosos, já idosos entre 77 e 83 anos lamentavam as dificuldades que encontravam em frequentar a sua entidade e encontros religiosos em função de sua perda de autonomia relacionada ao envelhecimento. Mesmo os sujeitos que tiveram de reduzir sua frequência nesses encontros religiosos acreditavam que as entidades religiosas exercem um papel fundamental em suas vidas.

Devido a limitações físicas em função do envelhecimento, Lindolpho (2009) afirma, alguns idosos diminuem seu envolvimento em atividades religiosas for-mais, como frequentar cultos e celebrações em suas comunidades, porém utilizam as orações como forma de enfrentamento a adversidades. As orações reduzem o sentimento de solidão e abandono e aumentam o sentimento de esperança e amor próprio. A dor, para Celich e Galon (2009), Santos et al. (2014), é um dos principais fatores que impede os idosos de manter-se em seu cotidiano normalmente, o que de alguma forma acaba prejudicando a realização de suas atividades, impactando as-sim sua qualidade de vida. A religiosidade pode ser utilizada como uma ferramenta a mais para a diminuição das dores sentidas pelos idosos.

Um estudo realizado por Duarte e Wanderley (2011), em que o objetivo era ava-liar de que forma a religião e a espiritualidade influenciam no enfrentamento da doença e hospitalização em pacientes idosos, constatou que elas têm importante função como recurso de enfrentamento em idosos hospitalizados numa enfermaria geriátrica: ajudam a preencher a distância da família, da rotina, prestam acolhimen-to e suporte para as dificuldades impostas pela rotina hospitalar. Lindolpho (2009) verifica que parte da comunidade científica já tem abordado questões relativas à es-piritualidade, como o valor das orações para tratamento complementar a pacientes com câncer, já que se sabe que esse tipo de medicina alternativa é muito utilizado pela população com câncer, sendo eficaz porque a fé, ou espiritualidade, contri-bui com mais qualidade de vida aos pacientes. Sobre a religiosidade em pacientes com câncer, Teixeira e Lefèvre (2008) referem que a fé religiosa pode propiciar uma maior esperança e fortalecimento para lutar contra essa doença; assim como leituras e estudos de textos religiosos podem evidenciar um otimismo, conforto e segurança em relação ao tratamento.

Uma pesquisa realizada por Santos et al. (2014), com dez integrantes de um pro-grama de treinamento físico que apresentavam sintomas de claudicação intermiten-te (dor, formigamento ou câimbra nos membros inferiores), avaliou nesses idosos a percepção sobre a dor ao caminhar – eles utilizavam a religiosidade para superar o sintoma doloroso. Concluiu-se que a fé e a religiosidade mostram-se meios de supe-ração da dor. Ressalta-se, portanto, que esse cenário se apresenta significativo para que os profissionais da saúde possam levar em conta a religiosidade como um dos fatores que intervém na qualidade de vida de pessoas enfermas.

Souza (2011) afirma que, para entender o indivíduo como um todo, há que se considerar que uma trama de crenças interage auxiliando na etiologia, prevenção, tratamento e evolução das doenças e o comprometimento da qualidade de vida pode contribuir para que o profissional de saúde reconheça quando a religiosidade afeta positivamente, ou quando é causadora do problema. As investigações sobre a relação entre religião e saúde, segundo Alves et al. (2010), devem ser abordadas por profissionais da saúde, pesquisadores, leigos e comunidade religiosa para que esta

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Os benefícios da religiosidade na velhice

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área possa contribuir de forma que, se a religiosidade traz para os sujeitos benefícios em sua saúde, estes devem ser motivados e respeitados pelos profissionais e demais. Assim, é importante que os profissionais da saúde reconheçam a religiosidade como recurso no cuidado da saúde do idoso (CHAVES et al., 2014).

Rusa et al. (2014) colaboram com a ideia de que os profissionais da saúde devem considerar também a religiosidade e crenças pessoais em pacientes com doenças re-nais crônicas para fornecer ao paciente um maior suporte, tranquilidade e conforto neste momento. Neste sentido, Linck et al. (2009) fazem uma reflexão sobre a ideia de que a temática do envelhecimento deve ser abordada ainda durante a formação acadêmica para uma preparação do futuro profissional ao cuidado de forma huma-na, incentivando a autonomia do idoso.

O profissional que lida com o paciente idoso deve estar preparado para abordar a questão da religiosidade e seus aspectos positivos e negativos, respeitando o idoso quanto a suas escolhas nessa fase da vida. É importante que as ações sejam discu-tidas para e com os idosos, podendo, assim, recuperar a autonomia destes sujeitos. Deve-se contar com profissionais que sejam capacitados para trabalhar com idosos e todas as situações que estes trazem, zelando por sua proteção e saúde (MORAES, E.; MORAES, F.; LIMA, 2010; LUCCHETTI et al., 2011).

3 Considerações finais

O presente artigo objetivou investigar o fenômeno da religiosidade em idosos e como esta contribui para a melhoria de vida nessa fase do desenvolvimento. Verifi-cou-se, a partir da pesquisa, que na velhice ocorrem muitos eventos estressores, e o indivíduo irá necessitar de recursos para lidar com questões adversas. É nesta pers-pectiva que se enquadra a religiosidade como um importante fator de saúde mental, que pode fornecer estrutura emocional e motivacional para eventos da velhice como perdas, saída de emprego, mudanças físicas, doenças crônicas e outras enfermida-des, proporcionando um melhor envelhecimento.

O processo de envelhecimento trata-se de um acontecimento multidisciplinar; o aumento da população idosa irá ocasionar impactos em muitas áreas: econômica, social, cultural, política, assim como na área da saúde. Esse fenômeno demanda um olhar mais atento da sociedade para pensarmos um envelhecimento com qualidade; é nesse aspecto que a religiosidade vem trazendo grandes benefícios para o sujeito, que pode estar integrado em uma comunidade religiosa, fazendo parte de um grupo que lhe fornece condições de apoio para o enfrentamento dos processos evolucio-nais que estão ocorrendo nessa fase, assim como os sujeitos que não possuem mais a capacidade de locomover-se e frequentar grupos e encontros religiosos.

Cabe ressaltar que esses sujeitos que possuem suas crenças religiosas também sentem-se mais seguros, apoiados e protegidos ante as mudanças que ocorrem na velhice. Os profissionais que trabalham com os idosos devem considerar a religiosi-dade de cada um como algo relevante, que fornece ao indivíduo conforto e contribui para um bom envelhecimento. Portanto, deve-se respeitar a religiosidade de cada idoso, compreendendo que isso faz parte de suas crenças e de sua constituição como ser humano.

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L. C. Z. Queiroz, M. C. Debella

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Os benefícios da religiosidade na velhice

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S U M Á R I O

http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-83-9-10

A ATUAÇÃO INSTRUTÓRIA DO JUIZ NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

The instructory judge acting in criminal procedure brazilian

Ana Claudia de LimaEstudante do 9º nível do curso de Direito da IMED.

E-mail: <[email protected]>.

Muriele de Conto BoscattoOrientadora. Mestre em Direito pela IMED.

Resumo

O presente artigo versa sobre o papel do juiz criminal no Brasil, analisando, atra-vés do método dedutivo, sua atuação instrutória nos processos. Tem como objetivo verificar a conformidade entre a norma constitucional e a norma infraconstitucio-nal processual penal, que outorga aos magistrados poderes de iniciativa instrutória, permitindo que o juiz ordene de ofício a produção de determinadas provas. Visando uma boa compreensão, aborda inicialmente a ideia central de cada sistema proces-sual penal, o sistema inquisitório, o sistema acusatório e também o tão discutido sistema misto; versa, então, sobre a gestão da prova e a possibilidade de concessão dela ao magistrado; segue com a explanação de determinados princípios processu-ais penais que demonstram a problemática decorrente dessa iniciativa probatória do juiz, como o princípio da imparcialidade, o princípio da presunção de inocência e o princípio da prevalência do interesse do réu. Por fim, constata que seria impossível conceder ao magistrado a gestão da prova sem ferir a Constituição Federal de 1988, pois estaríamos instituindo no País um sistema inquisitório, no qual cabe ao juiz as funções de acusar, defender e julgar, algo inconcebível sendo que foi constitucional-mente adotada a ideia de um sistema acusatório para o processo penal brasileiro.Palavras-chave: Sistemas processuais penais. Instrução probatória. Poderes instru-tórios do juiz.

Abstract

This article focuses on the role of criminal justice in Brazil, analyzing, through de-ductive method, the instructory performance of the same in the processes. Aim-ing to verify compliance between constitutional law and criminal procedure infra standard, which gives powers to the magistrates of instructory initiative, allowing the judge orders craft production of certain evidence. Aiming a good understanding

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A atuação instrutória do juiz no processo penal brasileiro

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initially addresses the central idea of each criminal justice system, the inquisitorial system, the adversarial system and also the much-discussed mixed system; dealing after on the management of evidence and the possibility of granting it to the magis-trate, and following with the explanation of certain criminal procedural principles that demonstrate the problems arising from this evidentiary initiative of the judge, as the principle of impartiality, the principle of presumption of innocence and the principle of prevalence of the defendant’s interest. Finally, notes that it would be im-possible to give the judge proof of management without hurting the Federal Consti-tution of 1988, we would be setting up in the country an inquisitorial system where it is up to the judge functions accuse, defend and judge, inconceivable and it was constitutionally adopted the idea of an adversarial system for the Brazilian criminal proceedings.Keywords: Criminal procedural systems. Instruction probative. Instructive powers of the judge.

1 Introdução

Tendo como tema o papel do juiz no processo penal, este estudo objetiva a aná-lise da atuação instrutória do juiz, examinando a conformidade constitucional da legislação processual penal brasileira, que tem concedido aos magistrados poderes de iniciativa instrutória.

Há grande dissenso entre os doutrinadores sobre a (in)constitucionalidade des-sa iniciativa instrutória e a forma como isso se reflete no processo penal e na socie-dade como um todo, o que torna o tema relevante.

Em busca de ideias, conceitos e, consequentemente, resoluções para o problema que se adéquem ao panorama contemporâneo, a base da pesquisa bibliográfica fo-ram autores como Aury Lopes Jr., Guilherme de Souza Nucci e Paulo Rangel.

Visando contribuir para uma melhor compreensão do tema, o estudo, através do método dedutivo, aborda primeiramente a ideia de sistemas processuais penais e de seu núcleo fundante, seguindo para uma conceituação de prova e ação instrutória, até finalmente chegar ao ponto central através de quatro princípios: princípio acu-satório, princípio da presunção de inocência, princípio da prevalência do interesse do réu e princípio da imparcialidade – verifica-se a compatibilidade da iniciativa instrutória do juiz com o sistema acusatório.

2 Desenvolvimento

2.1 Sistemas processuais penais

Um sistema pode ser conceituado como elementos diversos que se inter-relacio-nam na execução de determinada função. Seguindo essa lógica, pode-se dizer que sistema processual penal é “o conjunto de princípios e regras constitucionais, de acordo com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas à aplicação do direito penal a cada caso concreto” (RANGEL, 2010, p. 49).

O sistema processual penal de um país reflete muito de seu modelo político es-tatal, pois através dessa interação entre Estado e indivíduo é possível identificar se a estruturação política tem cunho democrático ou não (ARMBORST, 2008, p. 3).

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A. C. Lima, M. C. Boscatto

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Assim, um Estado estruturado de maneira totalitária costuma adotar o sistema in-quisitório no processo penal, que reúne o poder nas mãos do juiz – sistema que não tem possibilidade de ser adotado por um Estado democrático, no qual obrigatoria-mente todos devem ser tratados como sujeito de direitos.

Para tornar mais clara essa afirmação, é importante uma análise da estrutura de cada sistema, iniciando pelo sistema inquisitório, cujos poderes de acusar, defender e julgar se concentram nas mãos do juiz (LOPES JUNIOR, 2012, p. 122). Outras características importantes desse sistema são a iniciativa da acusação de ofício pelo juiz; a forma sigilosa do processo; a inexistência de qualquer garantia processual, como o contraditório e a ampla defesa; a adoção do sistema de prova tarifada, sendo considerada a confissão a prova máxima de um delito (RANGEL, 2010, p. 50); e a finalidade de buscar a ‘verdade’, não sendo relevantes os meios utilizados para isto (ZILLI, 2003, p. 40). Em virtude dessas características, o sistema inquisitório costu-ma ser associado a modelos absolutistas de Estado (ZILLI, 2003, p. 39) e dificulta sua adoção, pois seria incongruente utilizar-se deste sistema após o advento dos Estados Democráticos de Direito.

Já no sistema acusatório concebe-se o “juiz como um sujeito passivo rigidamen-te separado das partes e o juízo como uma contenda entre iguais iniciada pela acu-sação, a quem compete o ônus da prova, enfrentada a defesa em juízo contraditório, oral e público e resolvida pelo juiz segundo sua livre convicção” (PRADO, 2006, p. 153). São características deste sistema a publicidade dos atos processuais, as garan-tias concedidas pelo contraditório e pela ampla defesa, a adoção do livre convenci-mento como sistema de provas e a imparcialidade do juiz (LOPES JUNIOR, 2012, p. 119). Devido a esses aspectos, o sistema acusatório é o que melhor se adapta às atuais estruturas estatais, por possibilitar um processo que condiz com os direitos fundamentais consagrados nas modernas Constituições.

No sistema processual penal misto, o processo é dividido em duas fases: “a ins-trução preliminar, com os elementos do sistema inquisitivo, e a fase de julgamento, com a predominância do sistema acusatório” (NUCCI, 2010, p. 116-117). O sistema misto tem como características a separação das funções de acusar e julgar: na fase preliminar, o acusado é mero objeto de investigação em meio a um procedimento sigiloso; na fase de julgamento, a acusação e a defesa têm diretos iguais; o ônus de demonstrar a culpa do acusado, na fase judicial, pertence ao Ministério Público; nesta mesma fase, são assegurados o contraditório, a ampla defesa e a publicidade dos atos processuais (RANGEL, 2010, p. 55). Mesmo sendo considerado um avanço quando comparado ao sistema inquisitivo (RANGEL, 2010, p. 55), o sistema misto sofre duras críticas por parte dos doutrinadores. Para a doutrina, o sistema misto nem pode ser considerado um verdadeiro sistema processual, pois os sistemas acu-satório e inquisitivo possuem princípios rígidos e totalmente opostos, o que impede de maneira lógico-científica uma fusão deles (CARVALHO, 2002, p. 493).

Atualmente não existem sistemas puros, entretanto não podemos considerá-los mistos, pois “o misto deve ser visto como algo que, ainda que mesclado, na essência é inquisitório ou acusatório, a partir do princípio que informa o núcleo” (LOPES JUNIOR, 2012, p. 134). Portanto, faz-se necessária a compreensão do núcleo fun-dante dos princípios centrais de cada sistema antes de ser feita a análise dos poderes instrutórios do juiz criminal.

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A atuação instrutória do juiz no processo penal brasileiro

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Há dissenso entre os doutrinadores quando se trata da identificação do núcleo fundante dos sistemas processuais penais; para parte da doutrina, o cerne de cada sistema “reside na (in)existência da separação de funções de acusar, defender e jul-gar, ao passo que outra corrente identifica o núcleo fundante dos sistemas no crité-rio da gestão da prova” (ARMBORST, 2008, p. 11). Entretanto, tendo o processo a finalidade de, através da instrução probatória, reconstituir o crime para possibilitar o julgamento correto pelo juiz (COUTINHO, 2001, p. 28), adotaremos o entendi-mento de que o núcleo fundante dos sistemas processuais penais será determinado pelo modo de gestão da prova. Portanto, se a gestão da prova fica detida à figura do juiz, o sistema é inquisitório; caso pertença às partes, o sistema é acusatório (ARM-BORST, 2008, p. 11-12).

2.2 Poderes instrutórios do juiz

As provas podem ser compreendidas como “os meios através dos quais se fará a reconstrução do fato passado (crime)” (LOPES JUNIOR, 2012, p. 535), entretanto o seu objeto não é consenso entre os doutrinadores. Aqui, seguindo a doutrina que melhor se encaixa no sistema processual adotado pelo Brasil, pode-se dizer que sua finalidade é o convencimento do juiz (RANGEL, 2010, p. 451) – convencimento que deve ser feito observando-se todas as garantias processuais, cada prova deve entrar de forma legal no processo (LOPES JUNIOR, 2007, p. 521-523).

Entre o conhecimento do caso pelo juiz e a sentença, há a instrução probatória (ARMBORST, 2008, p. 17), que é um “conjunto de atos que têm por objeto recolher as provas com que deve ser decidido o litígio” (MARQUES, 2000, p. 326). O juiz atua intensamente em todas as fases da instrução probatória; entretanto, essa atuação se limita, quando se trata da iniciativa instrutória, porque “os poderes [...] do juiz visam coordenar e inspecionar a atividade das partes, estimulando-a quando deficiente, e reprimindo-a quando excessiva” (MARQUES, 2001, p. 189), porém devem perma-necer circunscritos a isto. Portanto, não se deve igualar a iniciativa instrutória aos poderes instrutórios que o juiz possui dentro do processo; estes significam que

O órgão judicial é sujeito indispensável à instrução, porquanto, além de ser o responsá-vel pela avaliação do material nela colhido, também tem o dever de impedir eventuais violações a direitos e garantias fundamentais[...], enquanto a iniciativa instrutória seria a faculdade de o juiz buscar de oficio o material probatório. (ARMBORST, 2008, p. 18-19).

Nesse ponto surge uma problemática, pois é impossível conciliar o sistema acu-satório consagrado pela Constituição Federal com a iniciativa instrutória do juiz. Considerando-se a gestão da prova como o núcleo essencial de cada sistema proces-sual, ao darmos essa iniciativa ao juiz, estaríamos promovendo o sistema inquisitó-rio no País, o que atingiria diretamente alguns princípios processuais.

2.3 Princípios constitucionais penais e a iniciativa probatória do magistrado

O primeiro princípio atingido pela iniciativa instrutória do juiz é o princípio acusatório, que limita os poderes instrutórios por parte do juiz. Segundo tal prin-cípio, há a “exigência de um juiz sem poderes de iniciativa na formação da prova” (THUMS, 2006, p. 238), além da inércia durante a instauração do processo e uma

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postura equidistante no decorrer dele. O magistrado deve ser um “espectador, dedi-cado acima de tudo à valoração objetiva e imparcial dos fatos” (FERRAJOLI, 2002, p. 488); isso, porém, não diminui de forma alguma a atuação do magistrado no processo: continuará participando de cada fase da produção de provas mas caberá a ele apenas coordenar a produção de provas das demais partes para que respeitem o devido processo legal.

Outro princípio é o da presunção de inocência, que traz ao réu a garantia de ser tratado como inocente até o trânsito em julgado da sentença condenatória (NUCCI, 2010, p. 81). Segundo esse princípio, deve-se partir da ideia de que o réu é inocen-te e “o dever de provar a culpa é do órgão acusatório, pouco importando quem o constitui” (NUCCI, 2012, p. 265); se a culpa não for comprovada categoricamente, caberá apenas a absolvição. Isto ocorre pois, integrado ao princípio da presunção de inocência, está o princípio da prevalência do interesse do réu, o qual determina que, restando qualquer dúvida, a absolvição é um imperativo (LOPES JUNIOR, 2010, p. 179-180), e “não se trata de um favor [...] ou uma simples benevolência; trata-se de um dever legal para declarar primordial o estado de não culpabilidade” (NUCCI, 2012, p. 271). Uma sentença condenatória nesses casos seria uma afronta aos princí-pios processuais penais.

Além dos princípios acusatório, de presunção de inocência e prevalência do in-teresse do réu, a iniciativa instrutória do juiz atinge diretamente o princípio da im-parcialidade. Este determina ao juiz uma posição de terceiro “atuando como órgão supraordenado às partes ativa e passiva” (LOPES JUNIOR, 2007, p. 81) no processo. A imparcialidade do juiz é essencial à justiça e o que torna confiável toda a atuação do sistema judiciário (NUCCI, 2012, p. 332).

Em face do exposto, e levando-se em conta a ideia de que o núcleo fundante dos sistemas processuais penais é a forma de gestão da prova, percebe-se que, ao conce-dermos ao juiz a iniciativa instrutória, estaríamos violando diversos princípios pro-cessuais penais e, consequentemente, configurando no País um sistema inquisitório.

O advento da Constituição Federal de 1988 trouxe profundas mudanças ao pro-cesso penal, pois acabou por instituir no Brasil o sistema processual penal acusatório (ARMBORST, 2008, p. 28); isso não ocorreu expressamente, entretanto, com uma análise, pode-se perceber diversos fatores que corroboram essa ideia. São exemplos disso a presença do contraditório, da ampla defesa, da presunção de inocência, da imparcialidade do magistrado e, principalmente, a separação das funções de acusar, defender e julgar. Quando “a Constituição da República opta pela tutela dos direitos fundamentais, a estrutura processual daí derivada há de ser imposta com estrita obser-vância do modo pelo qual é possível harmonizarem-se todos estes direitos” (PRADO, 2006, p. 47), assim a adoção do sistema inquisitorial seria totalmente incongruente.

Ora, torna-se visível a incompatibilidade entre as normas constitucionais que determinam um sistema processual acusatório e as normas infraconstitucionais que concedem ao juiz poderes para iniciativa instrutória. Sabe-se que

A coexistência de ambos os sistemas em um mesmo ordenamento jurídico é clara-mente inadmissível, sobretudo quando o enfoque reside na atuação instrutória do juiz, haja vista que ou se assume a inquisitorialidade, e se admite a iniciativa probatória ofi-cial, ou se opta pela acusatoriedade, e se vedam os poderes instrutórios. (ARMBORST, 2008, p. 32).

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A atuação instrutória do juiz no processo penal brasileiro

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A resposta a essa controvérsia deve ser buscada na própria Constituição, pelo fato de esta possuir supremacia em relação às demais normas do País – toda lei in-fraconstitucional deve se adaptar a seus princípios, em virtude de ser considerada inconstitucional em caso contrário (BULOS, 2011, p. 136). Sendo que “nenhuma lei ou ato normativo [...] poderá subsistir validamente se for incompatível com a Constituição” (BARROSO, 2011, p. 323), torna-se claro que o magistrado não pode continuar aplicando uma lei que contém um vício manifestamente insanável. Por fim, é obrigação do juiz “negar a aplicabilidade da norma em cada caso concreto” (ARMBORST, 2008, p. 37), abrindo mão, assim, da própria iniciativa instrutória no processo penal em nome da proteção de garantias constitucionais.

3 Considerações finais

Ao verificar, através de uma avaliação, que o sistema processual penal adotado pelo País é o acusatório, e tendo o entendimento de que o núcleo fundante de cada sistema processual é a forma de gestão da prova, é perceptível que conceder ao ma-gistrado poderes de iniciativa instrutória é inconcebível, pois nesse caso estaríamos instituindo um sistema inquisitório no Brasil.

A iniciativa instrutória do juiz fere diretamente diversos princípios processuais penais que foram consagrados pela Constituição Federal de 1988; sendo assim, é ne-cessário que se leve em conta a supremacia das normas constitucionais em desfavor das demais normas do País.

Enfim, pôde-se constatar a total inconstitucionalidade da legislação processual penal que atualmente tem concedido ao magistrado poderes que não condizem com sua real função no processo: a de coordenar a produção de provas, não a de sair em uma busca desenfreada por estas.

Com base no estudo, constatou-se que, para solucionar o problema de forma célere, basta que cada juiz, individualmente, adote a postura correta, negando a apli-cabilidade de uma lei manifestamente inconstitucional.

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