Impacto da arma de fogo na saúde da população no brasil

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9 Impacto da arma de fogo na saúde da população no Brasil Impacto da arma de fogo na saúde da população no Brasil LUCIANA PHEBO 1. Introdução As violências e os acidentes são passíveis de prevenção, apesar de facilmente se pensar o contrário. Primeiro, por resignação passiva, entende-se que são como fatos da vida. São vistos como eventos imprevisíveis e, portanto, impossíveis de serem prevenidos. Segundo, porque estão cada vez mais freqüentes e banalizados, e o que é comum muitas vezes não é visto como prioridade. Finalmente, a socie- dade ainda não respondeu adequadamente aos acidentes e violências, apesar de serem a principal causa de morte da população jovem do país. A disparidade entre a magnitude deste problema e a pouca resposta dada a ele faz com que se entenda que os acidentes e as violências são de fato um problema, mas que não é possível preveni-los ou controlá-los. Por outro lado, vários exemplos apontam que a pre- venção é uma estratégia eficiente: nos Estados Unidos, o órgão governamental de administração e segurança de trânsito (National Highway Transportation Safety Administration) e as indústrias automobilísticas implementaram medidas de se- gurança que salvaram centenas de milhares de vidas. Através da proposta de saúde pública, lesões e mortes por arma de fogo são tão passíveis de prevenção quanto qualquer outro acidente e violência. A violência armada não é um fato inevitável dos tempos modernos. Podemos preveni-la. Um dos elementos chave dessa proposta é a informação. Para isso, é necessário responder quatro perguntas: Qual é o problema? Quais são as causas? O que fun- ciona para prevenir o problema? Como se pode implementar as estratégias de prevenção? Para responder a primeira pergunta, fazem-se as seguintes perguntas: Quem? O que? Onde? Quando e Como? Ao analisar essas respostas e determinar padrões estabelece-se um conjunto de informações para tomada de decisões. Este processo caracteriza-se vigilância em saúde.(1) Este estudo visa apresentar o impacto da arma de fogo na saúde dos brasilei- ros. São apresentadas as respostas sobre a descrição do problema: quem são as pessoas que morrem ou se ferem por arma de fogo? Qual é a letalidade da arma de fogo em relação às outras armas ou métodos? Qual é o impacto das lesões por arma de fogo nas internações hospitalares? Como é o comportamento deste agravo à

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Impacto da arma de fogo na saúde da população no Brasil

LUCIANA PHEBO

1. Introdução

As violências e os acidentes são passíveis de prevenção, apesar de facilmente sepensar o contrário. Primeiro, por resignação passiva, entende-se que são comofatos da vida. São vistos como eventos imprevisíveis e, portanto, impossíveis deserem prevenidos. Segundo, porque estão cada vez mais freqüentes e banalizados,e o que é comum muitas vezes não é visto como prioridade. Finalmente, a socie-dade ainda não respondeu adequadamente aos acidentes e violências, apesar deserem a principal causa de morte da população jovem do país. A disparidade entrea magnitude deste problema e a pouca resposta dada a ele faz com que se entendaque os acidentes e as violências são de fato um problema, mas que não é possívelpreveni-los ou controlá-los. Por outro lado, vários exemplos apontam que a pre-venção é uma estratégia eficiente: nos Estados Unidos, o órgão governamental deadministração e segurança de trânsito (National Highway Transportation SafetyAdministration) e as indústrias automobilísticas implementaram medidas de se-gurança que salvaram centenas de milhares de vidas. Através da proposta de saúdepública, lesões e mortes por arma de fogo são tão passíveis de prevenção quantoqualquer outro acidente e violência. A violência armada não é um fato inevitáveldos tempos modernos. Podemos preveni-la.

Um dos elementos chave dessa proposta é a informação. Para isso, é necessárioresponder quatro perguntas: Qual é o problema? Quais são as causas? O que fun-ciona para prevenir o problema? Como se pode implementar as estratégias deprevenção? Para responder a primeira pergunta, fazem-se as seguintes perguntas:Quem? O que? Onde? Quando e Como? Ao analisar essas respostas e determinarpadrões estabelece-se um conjunto de informações para tomada de decisões. Esteprocesso caracteriza-se vigilância em saúde.(1)

Este estudo visa apresentar o impacto da arma de fogo na saúde dos brasilei-ros. São apresentadas as respostas sobre a descrição do problema: quem são aspessoas que morrem ou se ferem por arma de fogo? Qual é a letalidade da arma defogo em relação às outras armas ou métodos? Qual é o impacto das lesões por armade fogo nas internações hospitalares? Como é o comportamento deste agravo à

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saúde no decorrer do tempo e sua distribuição geográfica? Em que circunstância amorte ou a lesão aconteceu? O conjunto de respostas poderá servir para nortear aconstrução de propostas de prevenção à violência armada no Brasil.

“Você não precisa saber onde está para estar em algum lugar,mas você precisa saber onde está para ir a um outro lugar.”(2)

2. Metodologia

O impacto das armas de fogo foi dimensionado através da análise de dados demortalidade e morbidade por lesões causadas por projétil de arma de fogo (PAF).As bases de dados utilizadas foram o Sistema de Informação de Mortalidade (SIM)e o Sistema de Informação de Internação Hospitalar (SIH). Ambos os Sistemassão gerenciados pelo DATASUS/Ministério da Saúde e têm abrangência nacional.As informações geradas por eles são detalhadas a nível estadual e municipal. Acausa de morte ou de internação hospitalar são determinadas baseando-se na Clas-sificação Internacional de Doenças e Agravos (CID), da Organização Mundial deSaúde. A CID informa, além da causa da morte ou da internação, a situação ouinstrumento que originou a lesão (envenenamento, afogamento, objeto cortanteou penetrante, arma de fogo etc.). A partir de 1996, o SIM passa a usar a 10ºrevisão da CID (CID10) para codificar as causas de morte. O SIH, como apenasa partir de 1998 classifica as causas externas como causa de internação, sempreutilizou a CID-10. Os códigos utilizados neste estudo para classificar as causasexternas são apresentados segundo a intencionalidade (Tabela 1). Para ambos ossistemas, foram utilizados dados do ano de 2002, como marco referencial paracomparações.

Um dos problemas de qualidade de informação presente no SIM são as causasmal definidas e desconhecidas de mortalidade. Esses casos acontecem, por exem-plo, quando a morte ocorre sem assistência e não se pode descobrir a sua causa.Atualmente, as causas mal definidas são a segunda causa na estatística de morte dapopulação brasileira. Um outro problema de qualidade é a classificação de mortespor causas externas cuja intencionalidade é desconhecida, ou seja, não se consegueclassificar se a morte aconteceu devido a um acidente, homicídio ou suicídio. Estesproblemas variam de intensidade segundo regiões, estados e cidades do país e atra-vés do tempo. A percentagem de mortes de intencionalidade desconhecida, noBrasil, tem tendido a decrescer, particularmente a partir de 1990. Em 1999, 14,4%

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das mortes foram classificadas como mal definidas ou como causa externa semintencionalidade definida. Esse percentual caiu para 13,0% em 2002. Neste ano,o Maranhão foi o estado que apresentou maior percentual dessas mortes, 40,1%;enquanto o Paraná, o menor, 3,7%. Segundo a Unesco, o limite de aceitabilidadepara considerar um bom padrão de qualidade, usando comparações internacio-nais, é de 6%.(3) Essa flutuação é um reflexo de mudanças administrativas e deordem política. Um claro exemplo de melhoria da qualidade de dados é o domunicípio do Rio de Janeiro. Até 1995, a Secretaria Estadual de Saúde do Rio deJaneiro era responsável pelo gerenciamento do banco de dados de mortalidade. Apartir do momento em que a Secretaria Municipal ficou responsável pelo geren-ciamento do banco de dados, houve um declínio das mortes violentas de intencio-nalidade desconhecida de 46% para 16%. Atualmente, esse percentual vem dimi-nuindo ainda mais devido ao resgate de informação que a equipe técnica da Secre-taria faz na Polícia Civil.

Quando a análise enfoca as mortes por PAF, sem levar em conta a intenciona-lidade, este problema torna-se secundário. Porém, quando se compara as mortespor PAF segundo sua intencionalidade, em determinadas situações, a não inclusãodesses dados nas categorias de intencionalidade definida interfere seriamente naanálise. Muitos homicídios cometidos por parte da polícia ou mesmo suicídiopodem estar subnotificados. Portanto, as mortes por intencionalidade desconheci-da foram redistribuídas segundo o seguinte critério: quando a morte de intencio-nalidade desconhecida for por PAF, todas são consideradas intencionais* e foramdistribuídas segundo proporção conhecida dos casos de suicídio e homicídio; quan-do a morte de intencionalidade desconhecida não for por PAF, foram distribuídassegundo a proporção das causas conhecidas.

Ainda existe a possibilidade de se classificar a intencionalidade da causa damorte – suicídio, homicídio ou acidente –, e não se registrar o instrumento oumétodo utilizado. Segundo o Relatório Nacional de Violência por Arma de Fogono Brasil, na década de 1990, 15% de todos os homicídios ocorridos foram come-tidos com arma desconhecida, o que implica que o percentual de arma de fogo noshomicídios e as taxas de homicídios por arma de fogo apresentados nesse estudosão ainda maiores.

* Não são incluídas as mortes não intencionais por PAF por apresentarem uma baixa freqüência.No ano de 2000 houve 315 mortes acidentais, em contraste com 30.881 homicídios e 1.329suicídios.

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Potencialidades e limitações dos Sistemas de Informações1- O SIM tem uma grande cobertura, pois é alimentado pelo atestado de

óbito. Todo indivíduo que morre e tem emitida uma declaração de óbito, temseus dados registrados no SIM. Há algumas situações excepcionais, como noscasos de cemitérios clandestinos, cujos registros não são possíveis de se realizar.Mesmo nos casos de morte de pessoas de identificação desconhecida, o registro noSIM é feito.

2- O SIM e o SIH utilizam instrumentos de coleta, fluxos de informação eprocessamento de dados padronizados em todo país. Entretanto, há variação dequalidade de informação entre as cidades brasileiras.

3- A Classificação Internacional de Doenças (CID 10) permite a comparaçãointernacional.

4- A demora de liberação dos dados referentes ao país, em média dois anospara o SIM e seis meses para o SIH, é um fator limitador para sua utilização nadocumentação de padrões epidemiológicos correntes e no subsídio à ação localpara controle dos eventos.

5- O SIM foi iniciado em 1979, o que possibilita construir um série históri-ca de 25 anos. O SIH é bem mais recente, e apenas depois de 1998 o registro dascausas externas como motivo de internação foi determinado pelo Ministério da

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Saúde. Atualmente, o Ministério da Saúde oferece incentivo financeiro às unida-des de saúde que registram corretamente as causas externas de internação. Po-rém, muitas secretarias municipais de Saúde e unidades hospitalares desconhe-cem esse fato.

6- Ambos os bancos oferecem dados segundo o país, o estado, e o município.No SIM é possível utilizar dois bancos de dados: de residência (informa sobre amorte de pessoas que residem na área de estudo) ou de ocorrência (informa sobreo local de ocorrência da morte). Como a maioria dos pesquisadores, utilizamos obanco de pessoas residentes para poder determinar taxas.

7- Algumas vezes, a causa da morte, de fato, não é possível ser determinada.Outras vezes, as informações por parte de familiares, policiais, paramédicos, mé-dicos ou legistas não são compartilhadas, o que poderia contribuir para a determi-nação de um diagnóstico definido. Atualmente, há uma tentativa por parte dogoverno de melhorar a qualidade de dados, ao sugerir que as Secretarias Munici-pais de Saúde façam um resgate das informações na mídia e nos institutos deMedicina Legal, mas essa iniciativa tem sido esporádica e pontual.

8- A contextualização da morte ou lesão informada pela CID10 se limita àintencionalidade do ato (se homicídio, suicídio ou acidente). Não há informaçõessobre, por exemplo, se o homicídio foi decorrente de violência doméstica. Essetipo de informação só é possível quando se utilizam dados da segurança pública –que são de mais difícil acesso. Acesso a informações sobre uso de álcool e drogastambém é extremamente irregular – alguns IMLs analisam o teor dessas substân-cias, outros não têm condições metodológicas para fazê-lo. Mesmo aqueles quedispõem da informação nem sempre a divulgam a outros setores interessados.

9- Pela CID10, o tipo de informação sobre as armas de fogo que causarammorte ou lesão se limita ao calibre. Sabe-se, no entanto, que outras característicascomo velocidade de disparo e o tipo de percurso do projétil impactam também nagravidade da lesão.

10- Informações mais detalhadas sobre as circunstâncias das mortes ou daslesões poderiam contribuir para uma melhor compreensão dos fatos. Por exem-plo: os casos de lesões acidentais por arma de fogo poderiam ser por bala perdidaou por acidente de manuseio. Caso seja por bala perdida, circunstância recorrenteem alguns centros urbanos do Brasil, deveria haver uma categoria introduzida naclassificação brasileira.

11- A má qualidade de informação das variáveis profissão e educação, tanto noSIM quanto no SIH, levou à não inclusão dessas variáveis nesta parte do estudo.

12- A variável cor/raça só foi estudada a partir de 1997, pois apenas a partirdesse ano essa informação passou a ser consistentemente registrada no SIM para

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todo território nacional. As categorias são registradas como branca, preta, parda,amarela e indígena e são definidas segundo informações de terceiros (médico legista).Essas categorias provenientes do censo demográfico realizado pelo IBGE são auto-definidas. As taxas de mortalidade segundo cor/raça foram construídas com osdados do SIM e do IBGE. A diferença das formas de declaração pode trazer desvioda informação.

13- O SIH tem uma cobertura mais limitada, pois só atende às internaçõesque ocorrem nos hospitais públicos ou naqueles conveniados na rede SUS. Esti-ma-se que as internações do SUS cobrem algo entre 77,5% e 83,5% das interna-ções hospitalares ocorridas no país.(4)

14- Os casos atendidos no setor da Emergência e que não chegaram à interna-ção não são registrados no SIH. As pessoas que seguem utilizando os serviços desaúde em ambulatórios e clínicas de reabilitação não são representadas no SIH,mas consomem um volume considerável de recursos.

15- O SIH permite o registro da causa externa como motivo de internação,tanto como diagnóstico principal como secundário. Esta variação, para análise dedados, pode contribuir para a distorção da informação e dificulta, em muito, aoperacionalização do banco. Para todas as variáveis era necessário fazer duas fre-qüências para contemplar o diagnóstico primário e secundário.

16- O SIH oferece informações que denotam a gravidade do caso, como, porexemplo: tempo de permanência, utilização de recursos como sangue e prótese,dias em CTI, tratamento cirúrgico e óbito.

17- No SIH, há informação sobre o valor total de internação, mas é necessá-rio esclarecer que este valor refere-se apenas ao repasse financeiro do Ministério daSaúde às unidades de saúde. Como há outros repasses, seja de nível estadual,municipal ou de outras esferas, o custo real da internação é subestimado pelascifras apresentadas no SIH. Por outro lado, com essa informação é possível fazercomparações com os outros motivos de internação.

18- Sempre que se analisam dados de internação hospitalar deve-se levar emconta o acesso aos hospitais e a qualidade de atendimento. Esses parâmetros irãodeterminar as taxas de internação, a letalidade, os recursos aplicados, o tempo deinternação entre outras variáveis usadas para revelar a gravidade dos casos. Por-tanto, os dados de mortalidade e morbidade revelados pelo SIM e SIH devem sersempre contextualizados com esses parâmetros. A mortalidade em hospitais podeser considerada como indicador de acesso e a dos que chegam aos hospitais emorrem pode ser um indicador negativo da rapidez e da qualidade do atendimen-to. Apesar de não termos informações padronizadas sobre o atendimento pré-

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hospitalar, sabe-se que hoje em dia, devido à letalidade crescente das armas defogo, as mortes estão ocorrendo cada vez mais antes de se chegar aos hospitais.

Propostas para InformaçãoA fim de melhorar a qualidade de informação as seguintes propostas são

sugeridas:1- Municipalização dos dados da Saúde– instrumentalizar as Secretarias Mu-

nicipais de Saúde a gerenciar os bancos de dados da saúde de seus munícipes eutilizar as informações geradas para tomada de decisões.

2- Implantar sistema de informação que retrate as pessoas que utilizam ossetores de emergência e os ambulatórios, bem como o impacto nesses serviços desaúde.

3- Implantar um sistema de informação de custos hospitalares e ambulatoriaisque informe os recursos totais utilizados, as causas de internação ou atendimentoe o perfil do usuário .

4- Implantação da vigilância das mortes e lesões por arma de fogo, através delinks de bancos de dados de diferentes setores (Saúde: SIM e SIH; SegurançaPública: Delegacias e Institutos de Medicina Legal, Defesa Civil: Bombeiros –que realizam resgate) – A convergência dos bancos de dados além de melhorar aqualidade da informação de cada banco, construiria um painel que retrataria commais informações a realidade do impacto das armas de fogo na saúde dos brasileiros.

5- Realizar inquéritos regulares sobre comportamento de risco à saúde queinclua perguntas sobre arma de fogo (posse, uso, vitimização e percepção)

3. Mortalidade

3.1 Comparações internacionaisO Brasil é o pais onde se tem o maior número de mortes por arma de fogo no

mundo. Em 2002, morreram 38.088 ( trinta e oito mil e oitenta e oito) pessoasvítimas de armas de fogo, seja por homicídio, suicídio ou por condições aciden-tais. Em número absoluto, supera tanto países tradicionalmente violentos, comoé o caso da Colômbia, de El Salvador e da África do Sul e como os EstadosUnidos, um país conhecido por suas regulamentações pouco restritas em relaçãoao acesso às armas. Ao se levar em conta o número populacional desses países, oBrasil ocupa o quarto lugar em taxas de mortalidade por PAF. Em cada 100.000

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habitantes, 21,8 morrem, por ano, devido ao uso de arma. O risco de morrer porPAF no Brasil é 2,6 mais alto do que no restante do mundo e essas mortes são, emsua grande maioria, homicídios.

3.2 IntencionalidadeEm 2002, no Brasil, 90,0% das mortes por PAF foram homicídio, enquanto

3,6% foram suicídio. As mortes por PAF cuja intencionalidade não foi determi-nada representaram 5,6% e 0,8% das mortes foram atribuídas a acidentes. A cadadia, quase 94 pessoas morrem por homicídio, 4 por suicídio e 1 por acidente.Todas vítimas de arma de fogo.A taxa de homicídio por armade fogo é 20,8 e de suicídio 0,8por 100.000 habitantes.

Nos Estados Unidos, em2000, essas mortes apresentaramum perfil diferente: 58% suicí-dio, 39% homicídio, 4% de in-tencionalidade desconhecida ouacidental. Em relação à distribui-ção proporcional das mortes porPAF, o Brasil apresentou o pa-drão de países menos desenvol-vidos, onde há mais homicídiosque suicídios, já os Estados Uni-

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dos apresentaram o padrão de países mais desenvolvidos, onde há o predomíniode suicídios. A diferença entre o percentual das mortes por intencionalidade des-conhecida denota a diferença da qualidade da informação entre os dois países.

As mortes por arma de fogo são, em sua grande maioria, os homicídios.

3.3 Mortalidade Proporcional das causas externasEm 2002 houve 126.550 (cento e vinte e seis mil, quinhentas e cinqüenta)

mortes por acidentes e violências. Destas, 30,1% foram cometidas por PAF, sejampor motivos não intencionais (acidentes) ou intencionais (homicídio e suicídio),e 25,9% em virtude de acidentes de trânsito.

Apesar do Brasil ser um país eminentemente rodoviário e do uso de arma sermais restrito que o do automóvel, o número de mortes por arma de fogo (n =38.088) supera os de acidente de trânsito (n = 32.753). Interessante apontar assemelhanças dessas mortes. Em ambas as situações, tanto nas mortes que envol-vem a arma – sua maioria é o homicídio – como nos acidentes de trânsito – suamaioria é a morte de pedestres – mata-se o “outro”, muitas vezes mais indefeso.Em países mais desenvolvidos, a maioria das mortes por arma relaciona-se com osuicídio, e as mortes no trânsito são, em sua maioria, das pessoas que ocupam oveículo (condutor ou passageiro). No aspecto simbólico, a arma e o automóvelrepresentam poder sobre o outro.

No Brasil morre-se mais por arma de fogo do que por acidente de trânsito.

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3.4 Homicídios – métodosNo Brasil, 63,9% dos homi-

cídios são cometidos por PAF, en-quanto só 19,8% são causadospor arma branca. A alta letalidadeda arma de fogo é expressada nes-sas proporções.

A arma branca implica umenvolvimento maior com a víti-ma, uma aproximação física, umacoragem e uma determinaçãomaior com relação ao ato. Dife-rentemente da arma de fogo, quepode ser acionada à distância, sem envolvimento. Um ataque a faca requer umacerta força física ou destreza, enquanto uma arma de fogo pode ser manuseadapor uma pessoa de porte pequeno e força física menor que a vítima. Esse contextocertamente favorece a maior participação da arma de fogo nos homicídios.

Arma de fogo, o jeito mais rápido de não ter mais jeito.

3.5 Suicídio – métodoNos casos de suicídios, a arma de fogo é o segundo método utilizado para se

cometer o suicídio (17,7%), sendo o enforcamento o primeiro método (52,2%).Essa distribuição se mantém igual ao de um estudo realizado em 52 países feitopela Organização Mundial de Saúde – OMS.(5)

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Pode-se pensar que a arma de fogo não seja o instrumento mais utilizado noscasos de suicídio por uma questão de acesso. Certamente, é mais fácil obter umacorda para se enforcar do que um revólver. Por outro lado, esta lógica não se aplicaaos homicídios, já que a sua maioria acontece pelo uso da arma de fogo. A questãonão é apenas de acesso, mas também do perfil de quem aperta o gatilho. Noshomicídios, quem mata e quem morre são homens jovens, enquanto que, nossuicídios, as maiores taxas estão entre homens mais velhos. A relação com asarmas desses dois grupos é certamente diferente. No meio jovem há uma atraçãopela arma de fogo, símbolo de poder e instrumento que o permite circular fazendofrente a sua insegurança. Para aquele que quer dar cabo de si mesmo, é um instru-mento final. O jovem quer portar uma arma, ostentá-la, o suicida a deseja paraum único e derradeiro ato. Se para um é objeto de desejo, para outro, uma com-provação do fim.

3.6 Taxa de mortalidade por arma de fogoEm 1982, a taxa de mortalidade por arma de fogo foi de 7,2 e, em 2002,

passou a ser de 21,8 mortes por 100.000 habitantes. Este aumento foi constantee regular nesse período, porém, ao analisar as regiões do país nos últimos 10 anos,verificam-se variações significativas. A região Norte foi a única que apresentouum decréscimo, 8,3%, no Nordeste houve um aumento de 25,7%, no Sudeste asmortes por PAF aumentarem em 54,1%, no Sul do país, 28,8% e a região Cen-tro-Oeste foi a que apresentou o maior aumento de todas regiões,57,0.(6)

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Durante os últimos 20 anos, a taxa de mortalidade por PAF no Brasil triplicou

Os mapas do Brasil mostram a evolução das mortes por PAF durante o perío-do de 1980 a 2000. A evolução no tempo é marcada por uma grande variação dastaxas de morte entre as cidades. Nota-se que no país há um amplo gradiente naescala das taxas de mortalidade: de (0-5) a (59-149). Uma outra característica éque cada vez mais há um maior número de cidades apresentando taxas mais altas,e a distribuição dessas cidades não é homogênea. Há concentrações em determi-nadas sub-regiões do país, muitas vezes não correspondendo às capitais ou regiõesmetropolitanas.

As mortes por PAF serão a seguir analisadas segundo a distribuição por capi-tais de estados e estados brasileiros e segundo sua intencionalidade, ou seja, homi-cídio e suicídio. As mortes acidentais por PAF não foram analisadas por causa dabaixa freqüência nos registros – em 2002, registraram-se 318 mortes assim classi-ficadas em todo país.

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3.7 Homicídio – capitais e estadosAs mortes por PAF devido a homicídio nas capitais brasileiras foram apresen-

tadas da seguinte forma: número de mortes por homicídio, taxa de homicídio,número de mortes por homicídio utilizando arma de fogo, percentual dos homi-cídios em que se utilizou arma de fogo e taxa de homicídio em que se utilizouarma de fogo. Desta forma, estaremos analisando não só a violência através dataxa de homicídio como também a utilização de arma de fogo, através do percen-tual dos homicídios em que se utilizou arma de fogo (%PAFh).

A média das taxas de homicídio das capitais brasileiras foi de 44,7/100.000hab. e das taxas de homicídio por arma de fogo foi de 29,6/100.000 hab. Aproporção média dos homicídios cometidos por arma de fogo (%PAFh) foi de66,3.

Por ser um país de dimensão continental e por apresentar diferenças marcan-tes entre as regiões do país, há de se esperar grandes variações entre as capitais e osestados. Como, por exemplo, o percentual de utilização de arma de fogo noshomicídios variou de 25,7 em Boa Vista a 85,6% em Recife. Outro exemplo foia da taxa de homicídio por PAF, que variou de 7,5 em São Luís e Palmas a 57,3/100.000 hab. em Recife.

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Foi considerada a capital com maior utilização de arma de fogo nos homicí-dios (%PAFh) aquela que teve % PAFh maior que 66,3 (média das capitais bra-sileiras) e menor aquela com % PAFh menor que 66,3. Da mesma forma, foiconsiderada a capital com maior taxa de homicídio aquela que apresentou taxamaior que 44,7 (média das capitais brasileiras) e menor aquela que teve taxamenor que 44,7. Desta forma, chega-se à seguinte conclusão:

• Das 26 capitais e Distrito Federal, 15 (55,5%) apresentaram maior utiliza-ção de arma de fogo nos homicídios e 8 (29,6%) apresentaram maior taxa dehomicídio.

• Do grupo com maior % PAFh e maior taxa de homicídio, Recife se desta-cou por apresentar o mais alto % PAFh (85,6) e a mais alta taxa (66,9) entre todasas capitais do Brasil.

• Do grupo de maior % PAFh e menor taxa de homicídio, Belo Horizonte eJoão Pessoa se destacaram por apresentarem os maiores % PAFh deste grupo (80,2e 79,2, respectivamente)

• Porto Velho e São Paulo foram classificados no grupo de maior taxa dehomicídio e menor % PAFh. Mesmo assim, mais da metade dos homicídios ocor-ridos naquelas capitais foram cometidos por arma de fogo.

• Do último grupo, Palmas e São Luís se destacaram por apresentarem aterceira menor utilização de arma de fogo nos homicídios (37,1 e 37,3%), per-dendo apenas para Boa Vista (25,7) e Macapá (31,5), e a mais baixa taxa dehomicídio (20,2 e 20,0).

Os homicídios nos estados foram analisados segundo os mesmos parâmetros.Os dados referentes às capitais foram excluídos dos dados dos estados para que acomparação entre eles pudesse ser estabelecida.

A média das taxas de homicídio dos estados brasileiros, excluídas as capitais,foi de 28,6/100.000 hab., e das taxas de homicídio por arma de fogo foi de 18,0/100.000 hab. A proporção média dos homicídios cometidos por arma de fogo (%PAFh) foi de 63. Todos indicadores apresentaram uma média menor que as dascapitais.

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Sua análise foi feita com os mesmos critérios, utilizando os dados dos estados.Para os estados, foi considerado maior % PAFh acima de 63 e maior taxa dehomicídio acima de 28,6.

• Dos 26 estados brasileiros, excluídas as capitais, 10 apresentaram maiorproporção de utilização de arma de fogo nos homicídios (% PAFh) e 9 apresenta-ram maior taxa de homicídio. De um modo geral, nas capitais houve uma maiorutilização das armas de fogo nos homicídios do que no interior dos estados.

• Espírito Santo, Rio de Janeiro e Pernambuco se destacaram por suas maio-res taxas de homicídio e maiores proporções de utilização de arma de fogo noshomicídios. Esses altos índices se mantiveram nas capitais e nos estados.

• Por outro lado, 9 estados se destacaram por apresentar menores taxas dehomicídio e menores % PAFh e por manter esse perfil tanto em suas capitaiscomo no restante do estado. São eles: Acre, Amapá, Amazonas, Ceará, Maranhão,Pará, Piauí, Rio Grande do Norte e Tocantins.

• Dos 26 estados brasileiros, 10 não apresentaram o mesmo padrão das capi-tais, sendo eles: Roraima, Rondônia, Sergipe, Alagoas, Mato Grosso, Mato Gros-so do Sul, Bahia, Goiás, Minas Gerais e Santa Catarina.

• Roraima, classificada no grupo de maior taxa de homicídio e maior %PAFh, teve sua capital, Boa Vista, no grupo do outro extremo, menor taxa dehomicídio e menor % PAFh. Bahia, por outro lado, classificada no grupo de

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menor taxa de homicídio e menor % PAFh, teve sua capital, Salvador, classificadano grupo de maior taxa de homicídio e maior % PAFh. A primeira situaçãoindica que a violência armada prevaleceu no interior do estado e a segunda indicaque se concentrou na capital do estado.

• Os estados de Goiás, Minas Gerais, Santa Catarina, Mato Grosso e MatoGrosso do Sul apresentaram como característica em comum % PAFh menor quea média do país e tiveram em suas capitais um % PAFh maior que a média dopaís. O acesso a armas e a cultura de uso de arma, entre outros fatores, podem terinfluenciado para manter essa diferença entre capital e interior do estado.

• Alagoas e Sergipe apresentaram % PAFh maior que a média brasileira nointerior dos estados e nas capitais. As taxas de homicídio, entretanto, foram dife-rentes para capital e estado – enquanto em Sergipe a taxa de homicídio foi maiorque a média e em Aracaju, menor, em Alagoas a taxa foi menor, e em Maceió,maior que a média das capitais brasileiras.

• É importante frisar que a qualidade de informação, que difere entre ascidades, contribui para as distribuições dos estados e capitais.

• O critério eleito para classificar a taxa de homicídio e a utilização de armade fogo apenas subsidiou a classificação das capitais e estados em grupos de maio-res ou menores taxas ou utilização de armas nos homicídios. As taxas de homicí-dio (44,7 e 26,6/100.000 hab. nas capitais e estados, respectivamente) e os per-centuais de utilização de arma de fogo nos homicídios (66% e 63% nas capitais eestados, respectivamente) que foram considerados menores, não são baixos se com-parados no contexto internacional. Em 1990, por exemplo, a taxa de homicídioda Argentina foi de 4,5, do Chile, 2,7 e do Equador, 9,8/100.000 hab.(7) Quan-to à proporção de uso de armas em homicídio, é estimado que a média mundial éde 38% e a da América Latina, região onde mais se utiliza armas para cometerhomicídio, 60%. (8)

3.8 Suicídios – capitais e estadosA análise do suicídio foi realizada usando os mesmos indicadores da análise

do homicídio, ou seja, número de suicídios, número de suicídios por arma defogo, taxa de suicídios, proporção de suicídios em que se utilizou arma de fogo (%PAFs) e taxa de suicídio por arma de fogo.

A média das taxas de suicídio nas capitais foi de 3,9/100.000 hab. e das taxasde suicídio por arma de fogo foi de 0,7/100.000 hab. A proporção média dossuicídios cometidos por arma de fogo (% PAFs) foi de 17,0%.

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25Impacto da arma de fogo na saúde da população no Brasil

• A capital brasileira que apresentou maior taxa de suicídio em 2002 foiMacapá, mas todos os casos ocorridos neste ano não foram cometidos por armade fogo.

• A capital que apresentou maior % PAFs nos casos de suicídio foi PortoVelho (39,9%). Sua taxa de suicídio, entretanto, foi abaixo da média brasileira (3,8).

• Rio Branco foi a capital que mais se destacou quanto a taxa e % PAFs noscasos de suicídio. Teve a terceira mais alta taxa de suicídio (7,1) e o segundo maisalto % PAFs (32,7%).

• Goiânia apresentou a segunda maior taxa de suicídio entre as capitais (7,6)e seu % PAFs foi de 23,3%.

• Porto Alegre, este ano, ocupou o quarto lugar na taxa e quinto no % PAFs.

Para permitir a comparação dos estados com as capitais, foram subtraídos osdados das capitais da tabela dos estados. A média das taxas de suicídio nos estadossem as capitais foi de 4,7/100.000 hab. e das taxas de suicídio por arma de fogofoi de 0,8/100.000 hab. A proporção média dos suicídios cometidos por arma defogo (% PAFs) foi de 17,8. Todos indicadores apresentaram uma média maiorque as das capitais.

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26 Brasil : as armas e as vít imas

O Rio Grande do Sul foi o estado brasileiro que apresentou a maior taxa desuicídio (10,5) e segundo maior % PAFs (28,0%). Sua taxa de suicídio foi 2,2vezes superior à média dos estados brasileiros (4,7/100.000 hab.) e sua taxa desuicídio por PAF foi 3,6 superior a dos estados brasileiros (0,8/100.000 hab.).Em 2002, tanta a taxa de suicídios quanto o % PAFs foram superiores no interiordo estado.

Em Roraima, 41,6% dos suicídios foram cometidos por arma de fogo, a maiorproporção do país. – 2,3 vezes a média dos estados. Sua capital, Boa Vista, apre-sentou uma proporção bem menor – 23,2%. A mesma dinâmica aconteceu comos homicídios. Neste estado há um predomínio do uso de armas no interior,comparado à capital.

No Estado de Rondônia, por outro lado, o % PAFs foi bem inferior emrelação ao da capital, Porto Velho. No ranking do país, o estado foi o décimoterceiro com 15,4% e a capital, a primeira, com 39.9%.

É interessante notar que todos os indicadores na análise de homicídio foramsuperiores nas capitais aos do interior dos estados, enquanto com relação ao suicí-dio, todos os indicadores foram superiores no interior do estado. Uma hipótese deexplicação desse resultado é que nas cidades maiores, há um número populacionalmaior, um número de interações entre pessoas maior, uma possibilidade de ano-nimato maior que permite que as insatisfações e frustrações possam ser projetadas

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27Impacto da arma de fogo na saúde da população no Brasil

mais facilmente sobre os “outros”. No interior, a maior proximidade entre aspessoas (é mais fácil o conhecimento mútuo), somada à menor quantidade depessoas, não permite a projeção anônima sobre os outros das frustrações e insatis-fações pessoais, o que leva a focalizar em si mesmo o insucesso e, portanto, aprobabilidade de auto-agressão.

3.9 População de risco: homem jovem negro e pardoFaixa etária e sexo

No Brasil, o risco do homem jovem de 20 a 29 anos morrer vítima de arma defogo é 7 vezes superior ao restante da população e 4 vezes superior ao restante dapopulação masculina. O risco de morte para esses jovens homens é 38 vezes maiorque o da população feminina e 20 vezes superior quando comparado com a popu-lação feminina da mesma faixa etária.

Vida, que valor tem?A falta de perspectivas de realização pessoal, profissional e social – a impossi-

bilidade de se ter sonhos e realizá-los – geram uma sensação de impotência e baixaauto-estima, principalmente entre os homens jovens, que termina por levar àviolência armada como forma de expressão. Se houvesse uma possibilidade de semedir o fator “valorização da vida”, certamente, no Brasil, este estaria inversa-mente relacionado com as taxas de morte por arma de fogo.

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28 Brasil : as armas e as vít imas

A esperança de vida dos jovens vemdiminuindo paralelamente à esperança na vida.

A disponibilidade da arma de fogo aliada ao seu uso indiscriminado – comoalternativa para a impotência – levam a esse quadro extremamente grave epreocupante. A nova legislação brasileira, através do Estatuto do Desarmamento,trata de diminuir e restringir a circulação das armas. Entretanto, seu uso indiscri-minado está certamente relacionado com o valor que se tem dado à vida.

Apesar das mulheres corresponderem a uma baixa taxa de mortalidade porPAF em comparação com os homens, o percentual de utilização de arma de fogonos homicídios cometidos contra mulheres é de 42,4%. Além disso, se por umlado a arma de fogo é apontada e usada para e por homens, são as mulheres quesofrem a perda e suas conseqüências – ficam viúvas, órfãs e sem irmãos ou filhos.O medo, a insegurança, o ressentimento, as dificuldades financeiras fazem parteda herança deixada por estas mortes e ou incapacidades.

A arma de fogo mata maishomens adolescentes que

qualquer doença, acidente detrânsito ou qualquer outra causa

externa.

Não existe bactéria, vírus ouveículo a motor que mate mais osadolescentes no Brasil do que oprojétil da arma de fogo. Dos ado-lescentes de 15 a 19 anos que mor-reram em 2002, 39,1% foram ví-timas de PAF. Em nove capitais brasileiras essa proporção chega a ultrapassar ametade dos óbitos. Nessas cidades, o adolescente homem morreu mais devido alesões de arma de fogo do que por qualquer outra causa associada, seja ela doença,acidentes ou outras formas de violência. Em Vitória, por exemplo, 70% das mor-tes ocorridas entre esses meninos foram em conseqüência do uso de arma.

A fase transitória de vida, entre a infância e a vida adulta, a impulsividade, anecessidade de experimentação e a sensação de invulnerabilidade, característicasinerentes aos jovens de maneira geral, associadas aos fatores já mencionados debaixa auto-estima e impotência tornam a população de homens jovens a de maiorrisco para ser morta por arma de fogo.

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29Impacto da arma de fogo na saúde da população no Brasil

RaçaDurante o período de 1997 a 2002, as taxas de morte por arma de fogo da

população de cor negra foram as mais altas, em seguida, as da população de corparda e, por fim, as de cor branca.

Ao se analisar as categorias “preta” e “parda” conjuntamente sob a denomina-ção “preta”, verifica-se que houve um aumento das taxas mortalidade de 40%.Entretanto, a única categoria que de fato apresentou aumento das taxas de morta-lidade por PAF foi a “parda”. Em 1997, sua taxa era de 18,9 e, em 2002, 28,5 por100.000 hab. – aumento de 50,8%. No mesmo período, as populações de corbranca e de cor preta não sofreram aumento da taxa de mortalidade. Em 2002, ataxa de mortalidade da população branca foi de 16,6 e da preta, cerca de duasvezes superior, 30,1/100.00 hab. Em todo o período essa diferença foi mantida.

Apesar das dificuldades em classificar a população segundo sua cor ou raça,nota-se que é importante manter a especificação entre pardos e pretos, pois suastaxas de mortalidade apresentam comportamentos distintos.

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30 Brasil : as armas e as vít imas

Uma hipótese para o aumento das taxas de morte por PAF da populaçãoparda é que esta população pode estar mais em risco que as demais. Por se carac-terizar em uma situação intermediária entre brancos e negros, pode haver maiorexposição aos riscos da competição por recursos na sociedade. Esta é uma explica-ção que supõe um aumento real das mortes por PAF. Uma outra hipótese baseia-se no fato de que a população dita “parda” vem diminuindo e a população negravem aumentando nos últimos dez anos. Segundo o Censo, houve uma diminui-ção de 7,77% da proporção de pardos e um aumento de 23,47% na proporção denegros na população, entre os anos 1991 e 2000. Levando em conta que a infor-mação para o Censo sobre raça é auto-declarável, esta mudança do perfil popula-cional pode ter sido em decorrência do Movimento Negro no Brasil, que valorizaa identidade da raça negra. Portanto, o aumento das taxas de morte por PAF entreos pardos pode ter sido decorrente de uma diminuição da população dita parda,diminuindo o denominador no cálculo das taxas e, conseqüentemente, produzin-do resultados maiores. As duas hipóteses podem estar associadas.

Não se analisaram as taxas de mortalidade das populações de cor amarela eindígena porque o número de mortes destes grupos não ultrapassou 0,7% dototal.

4. Morbidade

O impacto das armas de fogo na saúde da população brasileira, historicamen-te, tem sido medido principalmente através dos dados de mortalidade. São dados

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31Impacto da arma de fogo na saúde da população no Brasil

de fácil acesso, de boa qualidade, que são apresentados em série histórica de maisde 20 anos e que, portanto, sinalizam padrões relacionados às vítimas. Por outrolado, ao se limitar às mortes, a dimensão do problema não é inteiramente revela-da. É necessário buscar informações sobre aqueles que são feridos, mas não mor-rem, ou pelo menos tiveram oportunidade de se internar em hospitais. Para di-mensionar o âmbito da morbidade por arma de fogo, foram utilizados os dadosdo Sistema de Informação de Hospitalização (SIH).

Em 2002, houve 19.519 (dezenove mil, quinhentas e dezenove) internaçõeshospitalares devido à lesão por PAF. Comparando com o número de pessoas quemorreram neste mesmo ano (38.088), há uma diferença de 18.569. Ao analisardados de internação hospitalar, questões como acesso e qualidade de serviço po-dem influenciar tanto no número de internações como nas evoluções dos casos.Porém, essa diferença é tão grande que se pode afirmar que a arma de fogo matamuito mais do que fere (levando a uma internação hospitalar). Diz-se que seolharmos apenas para as mortes para dimensionar um agravo à saúde é como verum iceberg – apenas a ponta é visível e a maior parte está imersa, invisível. No casodas armas de fogo, por serem tão letais, o iceberg parece navegar de ponta-cabeça.

4.1 IntencionalidadeComparando a intencionalidade das mortes por PAF e a das internações por

lesão por PAF, as agressões tomam menor proporção no grupo de hospitalizações(61,5%) com relação ao grupo de mortes (90,0%), devido à intencionalidade doato e à alta letalidade da arma de fogo. Ou seja, quando uma pessoa tem a inten-ção de ferir a outra usando uma arma de fogo, a chance de matá-la é alta. É bomatentar para o fato de que mesmo as pessoas que chegaram a se internar, muitasmorrem no decorrer ou após a internação por complicações da lesão inicial. Asagressões são, em ambos os grupos, as causas mais freqüentes de morte ou inter-nação.

Os acidentes tomam uma maior proporção no grupo de internação hospitalar(32,7%) em relação às mortes (0,8%). Novamente, a não intencionalidade do atocombinada com a alta letalidade da arma, levam a pessoa ferida acidentalmente ase hospitalizar. Mesmo sendo por acidente, ou seja, sem a intenção de ferir, aslesões causadas por arma normalmente são tão graves que levam à internaçãohospitalar. No Brasil, a cada 3 pessoas que se hospitalizaram devido a lesões porarma de fogo, 1 foi por uso acidental da arma. Questiona-se se a bala perdidaestá incluída nesta categoria – o que leva à discussão da necessidade de se classifi-car essa situação em categoria à parte.

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32 Brasil : as armas e as vít imas

Das pessoas internadas devido a le-sões por arma de fogo, 2,8% foram emconseqüência de tentativas de suicídio.Este percentual não variou muito em re-lação às mortes: das pessoas vítimas dePAF, 3,6% foram por suicídio. A peque-na variação pode ser por dois aspectos:uma taxa baixa de suicídio no Brasil, prin-cipalmente quando comparada com oshomicídios – em 2002, as taxas foram,respectivamente, 4,6 e 32,5 por 100.000hab; e a arma de fogo ser menos utilizadanos suicídios do que nos homicídios.

Como se é de esperar, as causas de internação hospitalar por lesões cuja inten-cionalidade é desconhecida (3,0%) é menor que nos casos das mortes (5,6%),pois a vítima pode se reportar.

4.2 Faixa etáriaDo total das pessoas que se hospitalizaram devido a lesões por PAF em 2002,

42% foram jovens da faixa etária de 15 a 24 anos. Neste grupo, as agressõesestavam envolvidas em 63% dos casos. Os acidentes, entretanto, foram as princi-pais causas de internação de crianças e adolescentes jovens (de 0 a 14 anos) comlesões por arma de fogo. As agressões lideram nos demais grupos etários, mas osacidentes têm um destaque em todos eles.

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33Impacto da arma de fogo na saúde da população no Brasil

A cada dia, cerca de 2 crianças ou adoles-centes jovens são internados em hospitais

devido a lesões por arma de fogo pormotivo acidental, e 1 devido à agressão.

4.3 Agressão – métodoPor causa da alta letalidade da arma de

fogo, o percentual de sua participação noscasos hospitalizados por agressão (30,4%) émenor do que nos casos de homicídio(63,9%). A arma branca, menos letal, tem uma maior representação (39,0%).

De cada 4 feridos nos casos de agressões por arma de fogo que chegaram a serinternados, 3 morreram. Essa relação nos Estados Unidos é de 4:1, levando emconta casos menos graves, que chegam a ser atendidos na emergência, mas não

necessitam de internação. Os dados bra-sileiros refletem apenas os casos mais gra-ves, que levaram à internação hospitalar. (9)

A participação da arma de fogo nastentativas de suicídios também tem umimpacto menor que nos suicídios. Por serextremamente letal, a arma de fogo temum impacto menor naqueles que conse-guiram se hospitalizar. Dos 17,7% casosde suicídio, a participação da arma de fogocai para 5,2% nos casos de tentativa desuicídio que chegaram à hospitalização.A intoxicação, principalmente com uso demedicamentos e inseticidas, é a responsá-vel por 74,1% das internações hospitala-res. Sabe-se que o fácil acesso ao métodoou instrumento de tentativa de suicídio éum fator de risco para o suicídio – o riscode cometer suicídio para aqueles que têmarma de fogo em casa é 11 vezes superiordo que o de usá-la para ferir ou matar emsituação de legítima defesa.(10)

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34 Brasil : as armas e as vít imas

4.4 Duração de internação, letalidade, custosApesar de haver mais internações por acidente de trânsito, as lesões por arma

de fogo são mais letais, tem um tempo de internação maior e custam mais.O tempo médio de internação por lesão por PAF foi de 7 dias, enquanto que

por acidente de trânsito foi de 6 dias.A letalidade das pessoas internadas por lesão por PAF foi de 8,9%, enquanto

que por acidente de trânsito foi de 4,4%. Levando em conta que 64,3% dasinternações por lesão por arma de fogo foram por motivos intencionais (agressõese tentativas de suicídio) e os acidentes de trânsito, em sua maioria, não são inten-cionais, é esperado que indicadores de gravidade como tempo de internação eletalidade sejam menores em relação aos acidentes de trânsito que por lesão dePAF. Acrescido a este fato, no Brasil, com a introdução do Código de TrânsitoBrasileiro verificou-se não só um declínio nas taxas de morte por acidente detrânsito, mas também uma diminuição na gravidade das lesões. Espera-se que oEstatuto do Desarmamento possa também levar a essas mudanças.

Das internações por lesão por PAF, os casos de tentativa de suicídio foram asque apresentaram maior letalidade, 13,4%.

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35Impacto da arma de fogo na saúde da população no Brasil

A determinação dos custos de internação hospitalar através da análise do Sis-tema de Informação de Hospitalização (SIH), como mencionado na metodolo-gia, é parcial, visto que só são cadastrados no banco de dados os repasses realiza-dos pelo governo federal. Como se sabe, as fontes de recursos de uma unidade desaúde vinculada ao SUS podem ser estaduais, municipais e/ou outras, a dependerde sua origem. Outra questão é que apenas a rede hospitalar pública ou comvínculo público estão neste Sistema. Com essas limitações, o SIH não informa osgastos totais das internações, mas é possível informar os custos relativos das hos-pitalizações. Por exemplo, as internações por acidentes e violência custam emmédia 37% mais que o restante das internações, por serem lesões mais graves queexigem tratamento mais complexo. Acresce-se o fato de que 70% das internaçõesdevido a lesões e envenenamento são classificadas como cirúrgicas, enquanto essaproporção é de 22% para o total das hospitalizações (11). Ao se comparar custosde internação, chega-se à conclusão que as internações por PAF custaram 16,45%mais que as internações por acidente de trânsito.

Para estimar os gastos totais das internações, foi utilizado um levantamentorealizado pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS- Rio deJaneiro) sobre os gastos das unidades de saúde da rede municipal. Esses dadosincluíam todos os gastos da unidade: atendimento no setor de emergência, ambu-latorial e de internação. Para especificar os gastos de internação, os dados do le-vantamento foram contrastados com os dados do SIH e do Sistema de Informa-ção Ambulatorial (SIA).* A partir dessa comparação foi possível chegar à conclu-são de que 15% dos gastos correspondiam ao repasse federal e 85%, ao das outrasfontes. Essa proporção foi, então, aplicada aos valores de internação por lesão porPAF, informados no SIH, e chegou-se ao valor total da internação. Concluiu-seque cada internação custou em média R$ 5.564 ou U$ 1.545.** Como a média detempo de internação foi de 7 dias, o gasto diário das internações por lesões causa-das por PAF foi estimado em R$ 795 ou U$ 221,** e o custo total das internaçõesem hospitais do SUS representaram R$ 108.606.048 ou U$30.168.347.**

Para se incluir as unidades de saúde não conveniadas com o SUS, usou-se aestimativa de cobertura 77,5 a 83,5%(5), obtendo os seguintes valores:

Custo total das internações hospitalares devido a lesões por PAF: entreR$130.067.123,35 e R$140.136.836,13, equivalentes a U$36.129.756,89 eU$38.926.899,35, respectivamente.

* Da mesma forma que o SIH, o SIA contém dados sobre repasse financeiro de fonte federal.Informa sobre os atendimentos ocorridos nos ambulatórios e no setor de emergência, mas nãoregistra o motivo da consulta.

** O valor de câmbio do dólar foi baseado no cotação de dezembro de 2002.

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36 Brasil : as armas e as vít imas

Há uma limitação importante nessa metodologia que deve ser mencionada:poderão existir diferentes distribuições na proporção de recursos federais ou nãofederais, dependendo do tipo ou origem administrativa de unidade de saúde. Oestudo padroniza essa distribuição em 15% dos gastos como repasse federal e 85%dos gastos como repasse não federal. Para se ter um resultado mais preciso, é neces-sário fazer um estudo específico sobre impacto econômico das lesões por arma defogo (que abranja inclusive os casos atendidos nos setores de emergência e de am-bulatórios) ou implantar um sistema de informação sobre gastos hospitalares.

Referência:1) Surveillance: The Key to Firearm Injury Prevention – Rosemberg M, Hammond R;Am J Prev Med; 15 (3S), 1998.

2) The Global Burden of Disease Foege WH. Foreword, In: Murray AJL, Lopez (eds.).Geneva: World Health Organization, 1996.

3) Mapa da Violência IV. Os Jovens do Brasil, Juventude, Violência e Cidadania, JulioJacobo Waiselfisz, Unesco, 2004.

4) Iunes, R.F. The Economic Impact of Violence on Health Care Services: a case study of thecity of São Paulo. S. Paulo: 1994. Trabalho elaborado para OPAS/OMS, 1994.

5) Small Arms and Global Health. Geneva World Health Organization, 2001.

6) Violência por armas de fogo no Brasil – Relatório Nacional, Maria Fernanda TourinhoPeres NEV/USP, Organização Pan-Americana de Saúde, Small Arms Survey, 2004.

7) htpp://www.paho.org/English/ad/dpc/nc/violence-graphs.htm

8) Rights at Risk. Small Arms Survey, Oxford: 2004.

9) Kellermann AL and Waeckerle JF. Preventing Firearm Injuries. Ann Emerg Med 32:77-79, Julho, 1998.

10) Kellermann AL. “Injuries and Deaths Due to Firearms in the Home”. J, Trauma1998; 45(2):263-67.

11) Iunes, Roberto, Revista de Saúde Pública, v.31, n..4, supl. São Paulo, ago., 1997.

LUCIANA PHEBO

PesquisadoraViva Rio / Iser