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“Importa pouco o ter tomado, se se não conservar o que se tomou”: os arbítrios e a
conservação da monarquia pluricontinental portuguesa no contexto do pós-Restauração
(1640-1654)
Marcello José Gomes Loureiro1
Em 1° de dezembro de 1640, três anos depois de uma revolta iniciada em Évora, que
depois se propagou para Setúbal, Santarém, Abrantes, Porto e Viana do Castelo, as sentinelas
do Palácio Real de Lisboa foram derrotadas; Miguel de Vasconcellos, homem de confiança do
Duque de Olivares e principal agente do governo em Portugal foi assassinato, enquanto a
vice-rainha, princesa Margarida de Sabóia, escoltada até a fronteira. No mesmo dia, o Duque
de Bragança era aclamado como D. João IV, rei de Portugal.
O golpe inaugurava uma série de decorrências, configurando-se uma conjuntura de
crítica contundência não apenas para o Reino, mas também para todo o Império português. Na
Europa, iniciava-se uma guerra de desgaste, de quase trinta anos, mal financiada e mal
preparada, contra os castelhanos, que eliminava as transações antes existentes na fronteira
política interna da península. Enquanto isso, no ultramar, os holandeses conquistavam
possessões lusas no Oriente, na América e na África. Além da guerra, havia outros desafios:
exaustão financeira, enorme dificuldade de se obter apoio diplomático e a necessidade de
legitimar a nova dinastia.
Para a gestão de tais desafios, a monarquia se reformulava. Novas alianças e redes de
clientela eram tecidas. Novos Órgãos Superiores foram instituídos, a exemplo do Conselho de
Guerra, do Conselho Ultramarino e da Junta dos Três Estados. Dotados também de auto-
regulação, passavam a concorrer e negociar com os demais poderes sinodais. De forma
prática, a gestão do Império luso se traduzia, em parte, pelo próprio diálogo entre os
Conselhos Superiores da monarquia, que discutiam sua administração diplomática, militar,
financeira e patrimonial. Contudo, por outro lado, a gestão também sofria interferências de
papéis advindos dos espaços periféricos do Império. Eram as elites locais que escreviam ao
rei, seja por meio de arbítrios ou remédios, ou expressavam suas intenções pelas Câmaras e
correspondências oficiais.
Um trabalho que tenha por propósito investigar a gestoria da monarquia portuguesa
deve se preocupar em responder a algumas perguntas, por exemplo: como a monarquia lusa se
reiterava no tempo e como se dava a gestão de tal processo? Será que a Coroa tinha
1 Doutorando e mestre em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ.
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consciência de que dependia do ultramar? Que, ao contrário das demais monarquias
européias, na lusa a periferia era central? Além disso, se o Império é um conjunto de redes,
que políticas poderiam conduzir sua gestão? Se as redes são fluidas, como propôs Luís Felipe
Thomaz para o Estado da Índia, como poderia a Coroa administrá-lo?2 Como pode se
processar a gestão de fluxos, se, para complexificar, nos termos de Hespanha, o governo era
“poliédrico, ambivalente, negociado e indeciso”?3 Caberia ao Conselho Ultramarino, por
exemplo, atribuir inteligibilidade administrativa às partes do Império? Do contrário, os
Conselhos Superiores da Coroa seriam meramente formais? O Império se resume então a uma
interação psíquica?
Explicitadas algumas questões, ainda sem resposta definitiva, mas que norteiam as
reflexões que perpassam estas páginas, é preciso salientar ainda que a compreensão da
dinâmica governativa das monarquias ibéricas pode adquirir melhor refinamento se observada
em momentos críticos, como o do pós-Restauração em Portugal, exatamente quando suas
soluções de continuidade se mostraram reduzidas.
Nessa conjuntura, muitos acreditavam que D. João IV não se manteria no trono, do
que decorreu um esforço imenso, de uma série de conselheiros importantes, como o Padre
António Vieira, no sentido de assessorar Sua Majestade a fim de que pudesse conservar a
Restauração portuguesa.4
Vieira interferia na gestão da monarquia católica por meio de sermões, cartas e
pareceres diversos, sempre explicitando advertências, pautadas em uma ordem e em uma ética
que refletiam os valores católicos. Vaticinando o futuro da monarquia, tratava de temas
diversos, como as finanças e arrecadação de tributos; deveres dos segmentos sociais; atuação
2 Sobre esse ponto, o autor é categórico ao afirmar que: “o estado da Índia é, essencialmente, uma rede e não um espaço: não lhe interessa a produção de bens – mas a sua circulação; não se preocupa tanto com os homens como com as relações entre os homens; por isso, aspira mais ao controlo dos mares que à dominação da terra”. Para Fernanda Bicalho, a noção de Estado em rede é “um caminho teórico-metodológico profícuo e interessante para atribuirmos novos sentidos ao Império”. Cf. THOMAZ, Luís F. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994, p. 210; Cf. BICALHO, Maria Fernanda. “Da Colônia ao Império: um percurso historiográfico”, in SOUZA, L. FURTADO, Júnia & BICALHO, Maria Fernanda. O Governo dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009, p. 91-105, especialmente p. 96. A perspectiva recebeu interessantes considerações em CASALILLA, Bartolome Yun. “Entre el imperio colonial y la monarquía compuesta. Élites y territorios en la Monarquía Hispánica (ss. XVI y XVII)”, in CASALILLA, Bartolome Yun (dir). Las Redes del Imperio. Élites sociales en la articulación de la Monarquía Hispánica, 1492-1714. Madri: Universidad Pablo de Olavide, 2009, p. 11-94. 3 Cf. HESPANHA, António Manuel. “Porque é que foi ‘portuguesa’ a expansão portuguesa? Ou o reviosionismo nos Trópicos”, in SOUZA, Laura; Júnia; BICALHO, Fernanda. O Governo dos Povos, op. cit, p. 42. 4 Jean-Frédéric Schaub sublinha que o aspecto mais interessante da Restauração não parece ser exatamente o golpe contra Castela – até porque outras tentativas insurgentes ocorreram ao longo dos sessenta anos de união peninsular –, mas o seu caráter decisivo ou definitivo, que lhe agrega certa “dimensão miraculosa”. Cf. SCHAUB, Jean-Frédéric. Portugal na Monarquia Hispânica (1580-1640). Lisboa: Livros Horizonte, 2001, p. 97-98.
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(in)justa de oficiais régios e do próprio rei na condução das repúblicas; a entrega de
Pernambuco aos holandeses; e a invasão de Buenos Aires. Sublinhe-se, portanto, que eram
temas de importância fulcral.
Por exemplo, em maio de 1643, Vieira apresentou na Corte uma idéia radical a fim de
tentar levar ao fim a crise em Portugal. O padre e outros assessores mais próximos de D. João
IV, com o fito de obter ajuda militar da França, assessoravam o Rei a vir para o Brasil. Luís
Pereira de Castro e o Padre Vieira propunham em Paris o casamento do infante D. Teodósio
com a duquesa de Montpensier, filha do duque de Órleans, sobrinha de Luís XIII. A regência
de Portugal seria dada ao Duque.5
Um ano antes, em face de uma crise fiscal sem precedentes, o Padre Vieira fazia o
Sermão de Santo Antônio, na festa que se fez ao Santo, na igreja das Chagas de Lisboa. Vos
estis sal terrae. Com esta metáfora, a de que os portugueses são “o sal da terra”, o padre
conclamava os três estados a pagar tributos. Segundo a argumentação de Vieira, da mesma
forma que o sal conserva as coisas, cabia aos portugueses conservar o reino, já que “importa
pouco o ter tomado [Portugal de Filipe IV], se se não conservar o que se tomou”. 6 Nas
primeiras Cortes, buscava-se “remediar o reino, nestas trata-se de remediar os remédios”
aplicados. Referia-se, por um lado, aos tributos que foram estabelecidos para obtenção das
receitas da monarquia, que se debatia nas despesas das guerras contra Castela. Demonstradas
insuficientes, era necessário, agora, não apenas ampliá-las, mas sobretudo buscar meios de
asseverar e legitimar os tributos: “como estes tributos não foram efetivos, como estes
remédios saíram ineficazes, importa agora remediar os remédios”.7
Mas como? Primeiro, era necessário moderar “a violência com suavidade”, uma vez
que “foram ineficazes os tributos por violentos; sejam suaves, e serão efetivos”.8 E, mais
adiante, explicava melhor: “se é necessário para a conservação da pátria, tire-se a carne, tire-
se o sangue, tirem-se os ossos, que assim é a razão que seja; mas tire-se com tal modo, com
tal indústria, com tal suavidade, que os homens não o sintam, nem quase o vejam”.9 Depois,
Vieira defendia que todos os três estados deveriam pagar impostos, incluindo-se, portanto,
nobreza e clero, que tinham, por princípio, “imunidade”. Para tanto, invocava o princípio da 5 Sobre isto, conferir CORTESÃO, Jaime. História do Brasil nos Velhos Mapas. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores, 1965, Vol II, p. 114-115. 6 VIEIRA, Antônio. Sermão de Santo Antônio. Lisboa, 14 de setembro de 1642. In VIEIRA, Antônio. Escritos históricos e políticos. Estabelecimento dos textos, organização e prefácio Alcir Pécora. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 8. 7 Cf. Ibidem, p. 9. 8 Cf. Ibidem, p. 10. 9 Cf. Ibidem, p. 11.
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“non pro uma gente, sed pro universo mundo”, ou seja, não sejam os remédios, quer dizer, os
tributos, particulares, mas sim universais, do mesmo modo que “a lei de Cristo é uma lei que
se estende a todos com igualdade, e que obriga a todos sem privilégio: ao grande e ao
pequeno, ao alto e ao baixo, ao rico e ao pobre, a todos mede pela mesma medida”.10
Se todos pagassem os tributos, não haveria do que se queixar, mesmo que a “carga”
fosse “pesada”. “O maior jugo de um reino, a mais pesada carga de uma república, são os
imoderados tributos. Se queremos que sejam leves, se queremos que sejam suaves, repartam-
se por todos”.11 Afinal, como ele mesmo conclui, com argumento irreversível, “não há tributo
mais pesado que o da morte e, contudo, todos o pagam, e ninguém se queixa, porque é tributo
de todos”.12
A partir de então, o passo seguinte era apresentar argumentos que convencessem clero
e nobreza a pagar tributos. Algo bastante complicado, uma vez que, sob certo aspecto, poria
todos em mesmo nível. Como ele próprio reconhece, “como podem se igualar extremos que
tem a essência na mesma desigualdade? Quem compõe os três estados do reino é a
desigualdade das pessoas”...13 A solução, claro, sustentava-se pelo contexto, pela
“conveniência” das circunstâncias. Os estados, nessa difícil conjuntura, deveriam estar
alinhados em prol de uma necessidade vinculada ao bem comum, a conservação do reino:
a obrigação há de se transformar em essência, e devem os homens deixar de ser o que são, para chegar a ser o que devem. (...) Se os três estados do reino, atendendo a suas preeminências, são desiguais, atendam a nossas conveniências, e não o sejam. Deixem de ser o que são, para serem o que é necessário, e iguale a necessidade o que desigualou a fortuna.14
Em outras palavras, nesse contexto especial, em que imperava a “necessidade”,
justificava-se a transformação daquilo que promoveu a “fortuna”. “Três elementos naturais
deixam de ser o que eram para se converterem em uma espécie conservadora das coisas: ex eo
quod fuit, in alteram speciem commutatur”.15 Os eclesiásticos não deveriam exatamente pagar
tributos, mas doar ao reino; até porque, o que para os “eclesiásticos é liberalidade”, para os
“seculares é dívida”.16
10 Cf. Ibidem, p. 13 e 14. 11 Cf. Idem. 12 Cf. Idem. 13 Cf. Ibidem, p. 16. 14 Cf. Idem. 15 Cf. Ibidem p. 17 e 18. 16 Cf. Ibidem, p. 20.
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Já a nobreza, deveria pagar os tributos por duas razões. Primeiro, porque enriqueceu
graças à Coroa, de modo que, nessas circunstâncias, a oportunidade mandava devolver as
graças. “É justo que os que se sustentam dos bens da coroa não faltem à mesma com seus
próprios bens”.
O segundo motivo pelo qual a nobreza deveria pagar os ditos tributos é muito simples.
A fidalguia de Portugal promoveu a Restauração do reino e “fazer, e não conservar, é
insuficiência de causas segundas inferiores”. O compromisso inicial deveria, portanto, ser
mantido: “Nobreza de Portugal, já fizeste ao rei: conservá-lo agora é o que resta, ainda que
custe”.17
O povo, em tese, tinha já a obrigação de desembolsar recursos para satisfazer a
liquidação tributária. Mas era preciso motivá-lo. Mais uma vez, a chave para isso, estaria na
noção de compromisso. Vieira lembra que “vassalos, que com tanta liberalidade despendem o
que tem, e ainda o que não tem, por seu rei, não são povo”.18 Seriam, em breve,
recompensados, podendo, quiçá, até ascender socialmente.
Com essa retórica, pautada notoriamente não apenas em elementos da segunda
escolástica, mas também nas necessidades advindas das despesas da monarquia, Vieira
esperava que as cortes estendessem os tributos a todos os estados, a fim de melhor legitimar
seu recolhimento. A morte existe para todos; por isso, “ninguém se queixa”. Conclamava a
todos os vassalos que, “em nome da pátria”, ninguém “repare a dar com generoso ânimo tudo
o que se pedir”. Assim, os vassalos da monarquia se tornariam “o sal da terra”, sendo
responsáveis, portanto, por conservá-la, mesmo que para isso tivessem de se deixar “todos de
ser o que eram, para se fazerem o que devem”. O esforço conjuntural não misturaria a
essência dos estados, uma vez que possibilitaria, no futuro, o retorno ao status quo. E seria
ainda recompensado: “desfaçam-se todos como devem, tornarão a ser o que eram”.19 Em
outras palavras, era necessário que clero e nobreza abrissem mão momentaneamente de seus
privilégios para que tudo se conservasse. Reformulando o problema, seria necessária uma
alteração substancial para que o Reino se conservasse. Tal conservação definiria,
posteriormente, também a manutenção das hierarquias sociais.
O postulado de Vieira, de que todos deveriam pagar impostos, até poderia, em um
primeiro momento, parecer revestido de grande rigor. Entretanto, não se deve esquecer de que
17 Cf. Ibidem, p. 26. 18 Cf. Ibidem, p. 27. 19 Cf. Ibidem, p. 28.
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ele comporta, em si mesmo, uma recíproca, de decorrência de grande valor para a nobreza e
para os que prestam serviço ao Rei. Se a nobreza deve despender suas fazendas para
conservação do reino – e o deve fazer porque, antes, recebeu mercês – a monarquia assume,
por seu lado, e desde já, um compromisso de reciprocidade com esse segmento social.
A noção de conservação é um dos aspectos mais recorrentes na literatura neotomista.
Toda a ordem social com sua hierarquia dada e mantida pelos séculos e conformada pelo
direito, deveria ser explícita ante aos olhos: as diferenças deveriam ser sempre evidenciadas,
porque “non importaba tanto el ‘ser’ como el ‘parecer ser’”.20 As ações humanas não
deveriam buscar a transgressão dessa ordem, já que, se ela foi dada pelo direito natural, é
imutável.21 A cultura política também não era a da inovação, mas sim a da permanência, a da
repetição.
Nos anos seguintes a 1640, a noção de conservação se tornava ainda mais central, na
medida em que D. João IV corria o risco de não se manter no trono. Além da conjuntura
crítica, que ameaçava a monarquia brigantina, houve no Reino uma conspiração contra el-Rei,
que envolveu pessoas notórias, como o marquês de Vila Real, o duque de Caminha, o conde
de Armamar, o arcebispo de Braga, o inquisidor-geral e alguns homens de negócio de Lisboa.
Com exceção dos eclesiásticos, os envolvidos foram executados. Pouco tempo depois, era a
vez de Francisco de Lucena, Secretário de Estado. Não custa lembrar também que, em São
Paulo, Amador Bueno foi aclamado, mas declinou.
Esses são apenas alguns poucos exemplos dos esforços de Vieira no sentido de
conservar a “dimensão miraculosa” da Restauração, que pode ser entendida como a
permanência de D. João IV no trono. Tudo indicava que ocorreria o contrário, devido às
desproporções de poder entre Portugal e Castela. Daí as constantes comparações realizadas
entre D. João IV e o Rei David, que com uma funda teria matado de modo surpreendente o
gigante Golias.
Vieira é, sem dúvida, uma das mentes mais importantes da Restauração, que não
assiste passivamente os sucessos e dificuldades de D. João IV, mas, com o poder da palavra,
advinda de uma ética escolástica, busca a conservação do rei e do reino, a partir de então sob
a (frágil) autoridade de um Bragança. Mas estava longe de ser o único.
A gestão de um Império esfacelado
20 Cf. HERNÁN, David García. La nobreza en la España moderna. Madri: Ediciones Istmo, s/d, p. 18. 21 HESPANHA. As Vésperas do Leviathan... op. cit., p. 307-323; e, do mesmo autor, O Direito dos Letrados no Império Português. Florianópolis: Fundação Boiteux, primordialmente p. 109-148.
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Para se gerir esse Império, que segundo Vieira guardava a missão divina de afiançar a
paz universal, havia uma complexa estrutura administrativa de gestão. Contudo, em face das
características da monarquia católica portuguesa, não se deve pensar que Gestão pode ser
associada à adoção sistemática de uma política estatal raciológica, que se traduza por uma
espécie de administração pública weberiana. Conforme explica Nuno Gonçalo Monteiro, não
é nem sequer adequado falar de governo em Portugal para o período em questão.22 Hespanha
também sublinha que havia uma “‘descerebração’ dos governos ‘modernos’”, que, de fato,
“não atingia apenas as relações entre os homens, mas também as relações materiais entre
coisas ou, mesmo, paradoxalmente, os processos de decisão”.23
Seja como for, o fato é que as dificuldades não eram inexpressivas. Os processos
decisórios, que dependiam das informações que circulavam sob o ritmo das velas dos navios,
eram complexos e morosos: exame de cartas, representações e aconselhamentos diversos,
produzidos nos mais diversos poderes, centrais ou locais. Outra dificuldade era derivada da
própria lógica de administração por conselhos; nesse ponto, o problema é bastante simples:
“uns são os que aconselham os negócios, e outros os que os executam”.24 Não havendo
sintonia entre as instâncias de aconselhamento e execução, “todo negócio desvanecerá”.
A concepção de uma administração por Conselhos Superiores é antiga e tem suas
origens nas formas medievais do governo régio, não sendo, portanto, uma invenção da
administração filipina. Nas palavras de Jeán-Frédéric Schaub, “os Habsburgo mantiveram o
sistema polissinodal que herdaram (...). Quando Filipe II cingiu a coroa de Avis, esta já havia
fixado os elementos essenciais da sua organização institucional moderna”.25 Isso não
significa, todavia, que não houvesse uma reforma ponderável no sistema político-decisório
empreendida pelos Filipes. Basta lembrar que se elaborou novo regimento para o Desembargo
do Paço, em 1582, e para a Casa da Suplicação e Casa do Cível, em 1605; ademais, as
vedorias da Fazenda foram consolidadas e originaram o Conselho da Fazenda, em 1591.26
De modo geral, o sistema polissinodal acabava por confirmar uma espécie de governo
dos letrados e magistrados, uma vez que os pareceres dos Conselhos eram elaborados por
22 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites e Poder entre o Antigo Regime e o Liberalismo. 2ª Ed. Rev. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2007, p. 20. 23 Cf. HESPANHA, António Manuel. “Porque é que foi ‘portuguesa’ a expansão portuguesa? Ou o reviosionismo nos Trópicos”, in SOUZA, Laura; Júnia; BICALHO, Fernanda. O Governo dos Povos, op. cit., p. 39-62, citações na 40 e 43. 24 VIEIRA, Antônio. Escritos históricos e políticos. Estabelecimento dos textos, organização e prefácio Alcir Pécora. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 248. 25 Cf. SCHAUB, op. cit., p. 29. 26 Ibidem, p. 29.
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juristas que se orientavam pela defesa de sua legitimidade e autoridade.27 Contudo, para o
Conselho Ultramarino, impende considerar também a experiência de certos conselheiros,
como o marquês de Montalvão e Salvador Correia de Sá, que contavam com larga experiência
no ultramar.
A constelação de poderes é a base da monarquia corporativa. Dotados de auto-
regulação, freqüentemente os Conselhos Ultramarino, de Guerra, da Fazenda e de Estado,
Mesa da Consciência e Ordens e Desembargo do Paço eram dissonantes em determinada
matéria, até porque “o que designamos por Coroa não era algo unitário, mas sim um agregado
de órgãos e de interesses, que não funcionava como pólo homogêneo de intervenção sobre a
sociedade”.28 O resultado disso é que, na prática, “o governo do Reino constituía-se de um
emaranhado de Conselhos, Tribunais, Secretarias, Secretários e Juntas, numa verdadeira
trama de urdidura política”.29 Nessa lógica, nem sequer a Coroa estava necessariamente
comprometida a afiançar o parecer de seus conselheiros. Noutros termos, seus pareceres não
eram vinculantes.
Os conflitos de jurisdição e de competência eram recorrentes no delineamento de
políticas régias.30 Por exemplo, para reduzir os conflitos do Conselho Ultramarino com o
Conselho da Fazenda, D. João IV determinou que o Presidente do Conselho Ultramarino
27 Ibidem, op. cit., p. 25. 28 Cf. BICALHO, Maria Fernanda. “As Tramas da Política: Conselhos, secretários e juntas na administração da monarquia portuguesa e de seus domínios ultramarinos”, in FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima. A Trama das Redes. Política e negócios no império português. Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2010, p. 343-371, citação na p. 347. 29 Cf. Idem. 30 Sobre a arquitetura de poder e as competências dos Conselhos, ver: COSTA, Fernando Dores. “O Conselho de Guerra como lugar de poder: a delimitação da sua autoridade”, in Análise Social, Vol XLIV (191). 2009, p. 379-414; BICALHO, “As Tramas da Política...”, op. cit.; SUBTIL, José. “Os Poderes do Centro”, in HESPANHA, António Manuel (org). História de Portugal, o Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1998; CAETANO, Marcello. O Conselho Ultramarino: esboço de sua história. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1967, passim; GARCIA, Rodolfo. Ensaio sobre a História Política e Administrativa do Brasil (1500-1810). Coleção Documentos Brasileiros. 2a Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975, p. 123-128; LOURENÇO, Maria Paula Marçal. “Estado e Poderes”, in MENESES, Avelino de Freitas (coord.). Portugal: da Paz da Restauração ao Ouro do Brasil. Coleção Nova História de Portugal, dirigida por Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques. Vol. II. Lisboa: Presença, 2001, p. 17-89, especialmente, p. 42-56; BARROS, Edval de Souza. Negócios de tanta importância: o Conselho Ultramarino e a disputa pela condução da guerra no Atlântico e no Índico (1643-1661). Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004; MYRUP, Erik Lars. To Rule from afar: the overseas council and the making of the brazilian west, 1642-1807. Tese de Doutoramento apresentada na Universidade de Yale, 2006; e, do mesmo autor, “Governar a distância: o Brasil na composição do Conselho Ultramarino (1640-1833)”, in SHWARTZ, Stuart & MYRUP, Erik Lars (orgs.). O Brasil no Império Marítimo Português. São Paulo: EDUSC, 2009, p. 263-298.
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fosse o conselheiro da Fazenda que exercia a Vedoria da Índia. Em sua primeira reunião, em 2
de dezembro de 1643, o Conselho registrava sua insatisfação quanto a esse ponto.31
Tais conflitos não se restringiam aos Conselhos da Fazenda e Ultramarino. Como
mostraram Fernando Dores Costa e Pedro Cardim, também abarcavam o Conselho de Guerra
e o Desembargo do Paço.32 Em suma, a arquitetura de poder da Coroa era constituída por
várias cabeças ou sinodias, cujas responsabilidades não eram perfeitamente definidas. Mas o
importante é que tais conflitos sejam percebidos e analisados também como tensões entre
redes sociais e de clientela.
Não se deve conferir a esses Conselhos Superiores um caráter muito
institucionalizado, no sentido moderno da expressão. Basta lembrar que eles denotavam muito
do prestígio de seus membros que, aliás, não necessariamente eram exclusivos. O marquês de
Montalvão, por exemplo, era o Presidente do Conselho Ultramarino, portanto vedor do
Conselho da Fazenda, mas pertencia também ao Conselho de Estado; o Conde da Torre era
membro do Conselho de Guerra e do Conselho de Estado; enquanto Salvador de Sá pertenceu
ao Ultramarino e ao de Guerra. Enfim, deve-se fazer, nesse caso, uma história social pautada
nas relações entre grupos e pessoas, influenciados por orientações valorativas de Antigo
Regime, e não entre estruturas administrativas ou institucionais dotadas de livre autonomia.33
Outro aspecto interessante é que esses órgãos superiores eram compartilhados por
políticos, juristas e militares, com exceção do Desembargo do Paço e da Casa da Suplicação.
Isso trazia frequentes oposições entre eles. Por exemplo, o jurista Bartolomeu Felipe, que em
1584 publicou o importante Tractado del Conseio y delos Consejeros delos Principes,
distinguiu os “letrados”, aqueles que perseguem a justiça, dos “idiotas astutos”, políticos
orientados pelas máximas “artísticas”.34
Na organização administrativa da monarquia, havia ainda Juntas, com atribuições mais
específicas, a exemplo da Junta dos Três Estados, criada em janeiro de 1643 para executar e
administrar os impostos atinentes ao abastecimento e pagamento de tropas nas guerras de
31 CAETANO, op. cit., p. 45. 32 COSTA, Fernando Dores. “O Conselho de Guerra como lugar de poder: a delimitação da sua autoridade”, in Análise Social, Vol XLIV (191). 2009, p. 379-414; e CARDIM, Pedro. “’Administração’ e ‘Governo’: uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime”, in BICALHO, Maria Fernanda & FERNILI, Vera Lúcia. Modos de Governar. Idéias e Práticas no Império Português (séculos XVI a XIX). São Paulo: Alameda, 2005, p. 45-68. 33 GRENDI, Edoardo. “Microanálise e história social”, in OLIVEIRA, Mônica & ALMEIDA, Carla. Exercícios de Micro-história. Rio de Janeiro: FGV, 2009. 34 HESPANHA, António Manuel. “Os modelos normativos. Os paradigmas literários”, in MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História da Vida Privada em Portugal. A Idade Moderna. Lisboa: Temas e Debates; Círculo de Leitores, 2011, p. 58-72, especialmente p. 68-69.
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Restauração. Essas instâncias de poder, embora despachassem sob a lógica similar a dos
conselhos, agilizavam os procedimentos decisórios porque sua gestão incidia sobre assuntos
especializados. Tratavam, normalmente, de assuntos de maior sensibilidade ou mesmo de
natureza crítica.35
Secretários, como o Secretário de Estado e o Secretário das Mercês e Expediente, a
partir de 1643, e Secretarias diversas, agregavam ainda maior complexidade jurisdicional a
toda essa polissinodia.36 Por tudo isso, Hespanha enfatiza que:
o processo afastava-se cada vez mais de uma linha reta entre uma petição inicial e uma decisão, enfatuando-se e reverberando em mil incidentes, informações, decisões interlocutórias, conflitos jurisdicionais, cada qual obedecendo a lógicas, estilos, narrativas e estratégias totalmente distintas, que se reconhecem na própria maneira de dizer e de contar.37
Tais narrativas, que partiam da própria experiência e interesses de seus autores,
admitiam, freqüentemente, finalidade pedagógica, já que ensinavam aos futuros oficiais
régios como funcionavam as instituições e os negócios nos poderes centrais ou mesmo locais;
assumiam também função normativa, porque poderiam ser assimiladas na concepção de
novos regimentos; e, ainda, pessoal, já que sua leitura poderia viabilizar o reconhecimento
régio e a justa distribuição de mercês.38
Assim, a formulação da gestão do Império não se limita à ação de Órgãos centrais.
Diogo Ramada Curto ressalta que, nessa gestoria imperial, os arbítrios faziam parte da lógica
redistributiva do Antigo Regime, porque geravam expectativa, por parte de quem produziu
papéis para assessoramento, de recebimento de mercês compensatórias. Após, 1640, a
literatura de arbítrios e advertências representaria, inclusive, algo de novo nos circuitos de
comunicação política da monarquia, apontando, em última instância, para uma modernização
das estruturas do Estado e do Império. Assim, as análises historiográficas que desejarem se
35 SCHAUB, op. cit., p. 30. 36 Sobre os a importância dos secretários, conferir: BICALHO, Maria Fernanda. “Ascensão e queda dos Lopes de Lavre: secretários do Conselho Ultramarino”, in: MONTEIRO, Rodrigo Bentes; FEITLER, Bruno; CALAINHO, Daniela Buono; FLORES, Jorge. (Org.). Raízes do Privilégio: Mobilidade social no mundo ibérico do Antigo Regime. 1° ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 283-315. 37 Cf. HESPANHA, “Porque é que foi ...”, op. cit., p. 46. 38 CURTO, Diogo Ramada. “Remédios ou Arbítrios”, in CURTO, Diogo R. Cultura imperial e projetos coloniais (séculos XV-XVIII). Campinas: Unicamp, 2009, p. 177-194, especialmente p. 177-179.
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debruçar sobre o tema, precisam combinar, na observação do autor, as estruturas
institucionais com os arbítrios e advertências.39
Em Castela, o arbitrismo chegou a ser considerado como “la corriente de pensamiento
político-económico más representativa de la España del siglo XVII”.40 Apesar de remontar ao
século XV, foi incrementada a partir do reinado de Filipe II, quando a situação fiscal
apresentava seus primeiros sinais críticos. Os arbistristas, como Francisco Quevedo, que
escreveu La hora de todos o la Fortuna com seso (1635), uma enorme crítica a Olivares,
identificavam os males da “enfermidad española”, propondo soluções conforme seu ponto de
vista. Muito provavelmente, tal é a origem da literatura de remédios em Portugal.
Vejamos dois exemplos para o império luso. Em novembro de 1649, Gaspar Dias
Ferreira, mercador de muitos anos no Brasil, que foi para a Holanda com Maurício de Nassau,
e depois se tornou agente da Coroa lusa, apresentou uma alternativa para a feitura da paz em
uma audiência com D. João IV. Cerca de dois meses depois, por solicitação do Secretário de
Estado Pedro Vieira da Silva, escreveu um parecer explicando melhor suas intenções.41
Considerava a restituição das capitanias reconquistadas e a reocupação do nordeste opções
impraticáveis. Todavia, apostava na compra dos territórios ou “composissão por dinheiro”, o
que também não lhe parecia fácil. Mas, de qualquer forma, el-Rei não a devia “propor por
meyo pera a pax, senão por remédio da impossibilidade da restituissão”.42 Primeiro, devia-se
compreender mais detalhadamente a impossibilidade dessa restituição a partir de uma
audiência nos Estados Gerais, visto estar provado esta ser a melhor forma de obter diálogo
com os flamengos, e ser “boa política alcansar palauras, o que auia de fazer a forsa das
obras”.43 Após isso, devia-se então propor a compra “ornada de todo o possiuel agrado, e
desejo”, oferecendo-se um montante tal “que albaroe as portas da cobissa holandeza”.44
Como pontos negativos em seu assessoramento, o próprio Gaspar lembrava as dificuldades
sérias em se movimentar fundos; por isso, Sua Majestade deveria mandar estudar formas
viáveis “pera que os estados não tropessem nella irremediauelmente, quando se lhe fizer a
39 CURTO, Diogo Ramada. “Remédios ou Arbítrios”, in CURTO, Diogo R. Cultura imperial e projetos coloniais (séculos XV-XVIII). Campinas: Unicamp, 2009, p. 177-194, em especial, p. 187-189. 40 SIMON, Antoni. La España del siglo XVII. 4ª Ed. Madri: Anaya: 2007. Citação na p. 14. 41 Exposição enviada a el-Rei por Gaspar Dias Ferreira, sobre as possibilidades de se fazer a paz com a Holanda. Papeis Varios – Cod. 1090 (K VIII Ia), fl. 47-48v, in RAU, Virginia & SILVA, Maria Fernanda Gomes da (orgs.). Os Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval Respeitantes ao Brasil. Volume I. Lisboa: Acta Universitatis Conimbriensis, 1956,, doc. 146, p. 87-89. 42 Idem. 43 Idem. 44 Idem.
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proposta”.45 Segundo o parecer, o momento era crítico, posto que os holandeses esperavam
ver este negócio resolvido, pelo que já pensavam em formas de guerrear. Por notícia da
Holanda, enviadas por seu primo, Francisco Ferreira Rebelo, advertia que os flamengos
consideravam a compra dos territórios ocupados uma “inormidade indigna de sua reputasão”,
já que o Rei apenas não entregava Pernambuco pelas pressões dos vassalos do Brasil.46
Menos de um ano depois, outro arbítrio sobre a mesma questão. Dessa vez, Manuel
Fernandes Cruz, antigo morador de Pernambuco, escreveu longa exposição de motivos ao
monarca.47 Nela, dissertava sobre os “comodos” naturais do Estado do Brasil: solo fértil;
pastos para o gado; madeiras para a construção naval; drogas diversas como açúcar, pau-brasil
algodão, gengibre e tabaco; “marinhas de sal nativo”; portos espalhados em mais de
setecentas léguas que se estendiam do Maranhão até ao Rio da Prata e Buenos Aires; além de
minas de metais, salitre e pedras preciosas, como as descobertas em São Paulo, e de
esmeraldas, no Espírito Santo.48 Por tudo isso, não eram plausíveis dúvidas de que “he este
estado, finalmente, muj capax não só de hum Rejno: mas de poder fundar nelle, e sustentar
hum grande imperio. E a mais grandiosa cousa que tem o patrimonio da Coroa de V.
Mag.e”.49
Por dedução, especulava Manuel que todas essas facilidades permitiriam incrementar
o comércio, única forma de tornar poderoso o Reino, e “sacar” muita prata e ouro do Peru,
devido à vizinhança que tinha com Buenos Aires, havendo, para esse porto, caminho já aberto
e facilidade de se abrir outros. Estimava que a produção açucareira dos trezentos e cinqüenta
engenhos do Estado, origem de parcela contundente dos rendimentos dos direitos reais, rendia
seis milhões de cruzados. Assim, o Brasil e as Índias eram a pedra angular do Reino,
argumento suficiente para que o monarca “acuda a libertá-lo da contumacia Ollandeza”.50
O fundamento primacial do parecer consistia no seguinte: a Coroa deveria estabelecer
o estanco do trato das “peças de escravos” de Angola para a América portuguesa, por um
período de cinco anos, trazendo-as à custa da fazenda real. Quinze ou dezesseis mil peças
45 Idem. 46 Idem. 47 Arbítrio em benefício comum que inculca o modo conveniente para se haver o resgate desta praça [de Pernambuco] em caso que o holandês a largue por preço de dinheiro; ou bem se posssa sustentar a guerra, quando pelas armas se liberte; e se socorra com um grosso empréstimo aos moradores para levantarem os seus engenhos, e os fabricarem sem dispêndio da fazenda real. Pernambuco, a 20 de agosto de 1650. Papeis Varios, t. 2 – Cod. 1091 ( K VIII Ib), fl. 1-5v; fl. 18-22; Papeis Varios, t. 34 – Cod. 976 (K VIII Ir), fl. 171-175v, in Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 149, p. 90-96. 48 Idem. 49 Idem. 50 Idem.
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deveriam deixar Angola anualmente, sendo distribuídas cinco mil para Pernambuco, quatro
mil para a Bahia, três mil para o Rio de Janeiro, a um preço de sessenta mil réis cada uma, e
as demais para o Rio da Prata. Já deduzida a mortandade estimada de escravos, e se
considerando somente as que dessem entrada na América portuguesa, a receita do período
deveria perfazer cerca de sete milhões e quinhentos mil cruzados.51 Para que os efeitos
negativos do estanco não fossem sentidos, os negociantes reinóis teriam autorização para
vender seus artigos em Angola, contando que nos cinco anos poderiam comercializar escravos
africanos no Rio da Prata. Tais negociantes deveriam poder vender peças em São Vicente, já
que os “peruleiros” costumavam lá negociar. Em decorrência, estaria o Estado do Brasil
muito opulento, porque reteria muita prata “pello empreguo dos asucares que farão os que por
aqui passarem de volta de Buenos Ajres”. Conforme concluía Manuel Cruz, o parecer
buscava de fato o “benefício comum”: não haveria prejuízo a fazenda real; os vassalos da
América não protestariam em virtude de o preço de sessenta mil réis ser razoável, além de
estarem isentos de décimas, fintas e tributos; enquanto os negociantes do Reinos teriam seu
prejuízo sanado pela compensação de comercializarem diretamente com o Prata.52
O arbítrio de Manuel Fernandes traz elementos muito significativos para reflexão.
Antes de tudo, é preciso destacar como suas palavras são muito interessantes porque
valorizavam o papel do Brasil – aliás, desde 1645, um Principado – no contexto do Império,
termo utilizado por ele próprio.53
Outro elemento importante do arbítrio de Manuel Fernandes Cruz é a conexão que
sugere para o Império. Segundo seu parecer, as elites de diversas praças deveriam se
comprometer para atingir o bem comum da monarquia, num esforço de alteração para
posterior conservação de fluxos mercantis e hierarquias sociais. O papel aborda uma questão
que interessa tanto às elites locais, que na verdade contam com articulação imperial, como
também às de Lisboa. Era uma questão que atravessava e costurava diversos pontos do
Império, explicitando não somente a capacidade de articulação de redes sociais, aspecto já
bastante enfatizado pela historiografia, mas também a conexão da monarquia pluricontinental
e plurioceânica por meio de aspectos vinculados à sua gestão política.
51 Idem. 52 Idem. 53
GOUVÊA, Maria de Fátima. “Poder político e administração na formação do complexo atlântico português”, in FRAGOSO, João; BICALHO, M. Fernanda Baptista & GOUVÊA, M. de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: A Dinâmica Imperial Portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 285-315, especialmente p. 293 e seguintes.
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Além disso, é interessante ainda o fato de que o arbítrio de Manuel Fernandes Cruz
não parte dos poderes centrais, mas da periferia imperial. Remédios eram, portanto, um canal
para que as elites locais, tanto do reino como do ultramar, comunicassem-se com o rei. Isso se
coaduna com a concepção da segunda escolástica de que cada República dispunha de auto-
regulação. Assim, em uma sociedade de Antigo Regime, cada um dos pólos tinha a
capacidade de produzir normas, desde que consonantes com o direito natural e os costumes.
No século XIV, o jurista italiano Baldo de Ubaldis explicava que bastava a mera existência de
um corpo social organizado para que dispusesse de uma correspondente faculdade de
governo: “os povos existem por direito das gentes; como o governo não pode existir sem leis
e estatutos, o próprio fato de um povo existir tem como consequência que existe um governo
nele mesmo”.54
O resultado disso é que cada República pode apresentar ao rei o que considera melhor
para sua conservação.
As observações de Diogo Ramada Curto, portanto, sobretudo aquelas vinculadas ao
ineditismo da literatura de arbítrios na cultura política portuguesa, parecem muito pertinentes
no contexto do pós-Restauração. Não apenas o contexto de guerra demandava informações e
soluções advindas de todas as partes do Império. Papéis que chegavam ao rei com o propósito
de apresentar auxílios eram também símbolos de reconhecimento de sua autoridade. Todos
deviam demonstrar sua lealdade e sua preocupação com a conservação da monarquia. Era o
primeiro passo para serem recompensados.
Por outro lado, dada a fragilidade em que se encontrava D. João IV, restava a
negociação com as elites locais, que participavam da gestão imperial por meio do envio de
seus remédios.
Em termos práticos, para se viabilizar, a monarquia dependia da lealdade de diversos
oficiais da Coroa, dispersos em intrincadas redes imperiais.55 Era a capacidade de brokers
como Salvador Correia de Sá e João de Lencastre de movimentar redes que trazia substância à
política ultramarina portuguesa.56 O Rei se representava graças à lealdade desses homens, que
transformavam política em ação governativa. Frequentemente adaptavam as ordens régias às
54 Cf. UBALDIS, Baldis. De ius et iure, 9, n.4 (século XIV). Apud. HESPANHA, António Manuel. “A Monarquia: a legislação e os agentes”, in MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História da Vida Privada em Portugal. A Idade Moderna. Lisboa: Temas e Debates; Círculo de Leitores, 2011, p. 12-31, especialmente p. 16. 55
FRAGOSO, João; BICALHO, M. Fernanda Baptista & GOUVÊA, M. de Fátima. “Uma leitura do Brasil Colonial. Bases da materialidade e da governabilidade no Império” in Penélope, nº 23, 2000, p. 81-83. 56
FRAGOSO, João & GOUVÊA, Fátima. “Monarquia Pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões sobre a América lusa nos séculos XVI-XVIII”, in Revista Tempo, Vol.14, n° 27, p. 49-63, sobretudo p. 56.
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realidades locais, de acordo com os seus interesses e os de suas redes. Por isso, Elliott afirmou
que a autoridade real era “filtrada, mediada e dispersada”.57
Polissinodia e arbitrismo na gestão do Atlântico
No contexto do pós-Restauração, sobretudo na década de 1640, três questões
principais pautavam as discussões da Coroa portuguesa em termos de esforço de gestão para o
Atlântico: a necessidade de reconquistar Angola; de solucionar a carência monetária,
mormente pela invasão de Buenos Aires; e uma solução para Pernambuco, invadido desde
1630 pelos flamengos. Elas se tornaram evidentes por ocasião de um conjunto de alvitres
apresentados em Évora, por Salvador Correia de Sá e Benevides, em 1643.
Na verdade, foi o Conselho da Guerra quem sugeriu que o monarca consultasse
Salvador Correia, “q tem gr.de expriençia e conhecimento das coussas”, para que desse um
parecer sobre como não somente “remediar os danos prezentes, e futuros”, mas ainda sobre o
modo como se fazer entrar pelo Rio de Janeiro “algúa prata neste Rey.o”.58 O Conselho
recomendava também que o parecer de Salvador desse entrada no Conselho da Índia, “q.
V.Mag.de agora mandou erigir”, para consulta.59 Um indício de que o recém criado Conselho
Ultramarino tinha prestígio na formulação política. Pelo despacho à margem da Princesa
Margarida, Salvador deveria providenciar o parecer e o próprio Conselho de Guerra, em
seguida, deveria votá-lo, pelo que subiria novamente para a decisão.
Salvador dividiu seu parecer em três documentos. O primeiro deles era referente à
melhor maneira de se reabrir o comércio com Buenos Aires, de forma que fosse
imediatamente reativado o trato com esse porto e, consequentemente, restabelecido o fluxo de
Prata em direção à América portuguesa. O segundo era atinente à situação de Angola, então
dominada pelos batavos desde agosto de 1641. E o último dizia respeito a Pernambuco.60
Em relação a se reabrir o comércio com Buenos Aires, Salvador respondeu que “no
estado prezente o acho dificultozo”, em virtude da impossibilidade de se obter escravos
57 Cf. ELLIOTT, J. H. “A Espanha e a América nos Séculos XVI e XVII” in BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina Colonial, Vol I. 2ª Ed. 2º Reimpressão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2004, p. 299. 58 Idem. 59 Idem. Interessante destacar a forma como o Conselho de Guerra se referiu ao Conselho Ultramarino nesse caso. 60 BOXER, Charles R. Salvador Correia de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola. 1602-1686. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1973, p. 183-184; e BARROS, op. cit. p. 198-200.
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africanos, devido à ocupação holandesa em Luanda.61 Segundo seu parecer, esses negros eram
“a mercadoria q. os castelhanos mais necessitão”.62 Suplantada, antes, essa dificuldade,
aconselhava que Buenos Aires em seguida fosse militarmente conquistada. Para tanto,
deveriam zarpar do Rio de Janeiro e de São Vicente navios com cerca de seiscentos homens,
incluindo-se índios. Salvador indicava como comandante da força-tarefa D. António Ortiz de
Mendonça, segundo ele “fidalguo de muyta experyemsya e Servyços”.63
Quanto ao domínio dos holandeses em Angola, Salvador Correia sugeria que fosse
aproveitada a amizade existente com os negros jagas, muito temidos, “porque comem carne
humana”.64 Em seguida, deveria ser enviada tão logo uma expedição de seiscentos infantes,
dentre eles “yndios frecheiros” comandados por paulistas, que deveriam desembarcar em um
ponto da costa onde não houvesse a presença holandesa, juntando-se, posteriormente, aos
focos de resistência lusa no interior. Mais uma vez, Salvador falava da importância de o Rei
distribuir “merces como são habitos de Santiago e Avis e alguns foros de cavaleiros fidalgos
as pessoas que a sua custa levare tantos indios”.65 Era a segunda escolástica enformando seu
parecer.
O ponto primordial de seu papel incitava a Coroa para que “logo logo mande acudir
aquelle Reino”, já que era muito sentida “a falta do comercio de Angola porque sem ella se
prejudica m.to as fazendas do brazil e se aniquila o aumento da Real fazenda assi no brazil
como neste Reino”.66
Finalmente, no que se refere à necessidade de expulsão dos holandeses de
Pernambuco, Salvador assessorava o rei a ordenar secretamente ao governador da Bahia a
autorizar “com disimulação” todos que desejassem “ir a Roubar e queimar a campanha de
Pernambuco”.67 Segundo o parecer, isso ampliaria os custos de permanência dos holandeses
no Nordeste, incentivando-os a negociar a venda das áreas em seu poder a Portugal, “ainda
61 Informações de Salvador Correia de Sá e Benavides acerca do modo como se poderia abrir o comércio com Buenos Aires. Évora, a 21 de outubro de 1643. AHU, Rio de Janeiro, Castro e Almeida, Caixa no 2, doc. no 245. 62 Idem. 63 AHU, Rio de Janeiro, Castro e Almeida, Caixa no 2, doc. no 216. 64 Informação de Salvador Correia de Sá e Benavides acerca da situação de Angola. Évora, a 21 de outubro de 1643. AHU, Rio de Janeiro, Castro e Almeida, Caixa no 2, doc no 246. 65 Idem. 66 Idem. 67 Informação de Salvador Correia de Sá e Benavides acerca da forma como se poderia perseguir os holandeses no Brasil. Évora, em 21 de outubro de 1643. AHU, Rio de Janeiro, Castro e Almeida, Caixa no 2, doc. no 247. Para Raphael Bluteau, “dissimulaçam” é “Fingimento. Disfarce. (...) A dissimulaçaõ he huma especie de Prudencia, mas timida, covarde e (...) indigna de Magestade”. Cf. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez & Latino. Vol 3, p. 251. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/1 /dissimula%C3%A7%C3%A3o. Acessado em 30 de agosto de 2011.
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que por isto se lhe dera cantidade [de dinheiro] consideravel”.68 A Coroa levantaria os fundos
necessários ao desembolso nos dois lados do Atlântico, em vez de permanecer despendendo
tantos gastos em defesa militar-naval.69
O interessante é que os três pareceres dados por Salvador Correia de Sá retornaram
para avaliação no Conselho da Guerra. Um dos Conselheiros, o Conde de Penaguião, afirmou
serem “bem consideradas as razões q. Salvador Correia apponta para se introduzir [o
comércio com Buenos Aires] e se conforma co’ellas”.70 Só ressalvava o fato de se empregar
seiscentos homens da América portuguesa, que afinal experimentava a guerra, e sugeria, por
seu lado, que esses homens viessem das Ilhas Atlânticas, “por a gente dellas se inclinar mais a
hir servir nas Conq.tas daquelle Estado que nas guerras deste Rey.o”.71 Jorge de Mello, outro
Conselheiro, endossava o ponto de vista do Conde, mas lembrava ao rei que essa empreitada
de Buenos Aires já fora, antes, confiada a Luiz Barbalho Bezerra, governador do Rio de
Janeiro. Contudo, fez valer as informações e meios apresentados por Salvador de Sá, a ponto
de recomendar que seu parecer fosse comunicado a Luiz Barbalho, posto que “lhe poderão
façilitar o que há de obrar”.72 Isso sugere que no Rio de Janeiro já havia intenção de se
realizar alguma iniciativa.
No que se refere à reconquista de Angola, “se conforma o cons.o em tudo com o q.
Salvador Correia propoem”.73 A dissonância entre a percepção de Salvador e a do Conselho
somente pode ser verificada na questão dos holandeses no nordeste. Contrariamente ao
sugerido por Salvador, o Conselho optou por recomendar ao rei que procurasse a solução para
a saída dos holandeses, “gente tão prevenida”, por via diplomática.74 Perceba-se como a
questão foi priorizada de forma contundente nas instâncias de poder da Coroa. A primeira
Consulta do Conselho da Guerra está datada de 17 de outubro; as respostas de Salvador, de 21
de outubro; enquanto a nova Consulta do Conselho da Guerra, de 24 de outubro. Para
Alencastro, “o pedido do Conselho de Guerra, adrede preparado, formaliza propostas
apresentadas de viva voz por Salvador”.75
68 Idem. 69 Idem. 70 Consulta do Conselho de Guerra sobre os alvitres apresentados por Salvador Correia de Sá para acudir Angola, para remediar os danos causados pelos holandeses e para conseguir o abastecimento do comércio com Buenos Aires. Évora, a 24 de outubro de 1643. AHU, Rio de Janeiro, Castro e Almeida, Caixa no 2, doc. no 244. 71 Idem. 72 Idem. 73 Idem. 74 Idem. 75 Cf. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes – Formação do Brasil no Atlântico Sul – Séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia das Letras, 2000, p. 223.
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Os pareceres não se encerraram no Conselho de Guerra, entretanto. Em abril de 1644,
o Conselho de Estado também se reuniu para tratar do assunto. Apesar de ignorarmos os votos
de seus membros nessa ocasião, sabe-se que o Conde da Torre escreveu um parecer
ratificando o seu próprio uma semana após.76
Paralelamente, insistia o rei para que o governador geral Antônio Teles da Silva
envidasse seus esforços para reabrir o trato com Buenos Aires, “para se abster de todo o acto
de hostilidade contra os Castelhanos do Rio da Prata” e “para procurar a introdução de seu
Commercio”.77 O Governador chegou a enviar um navio, de que era Capitão David Ventura,
mas “que não logrou a jornada”.78
A necessidade de invasão de Angola, reconquistando-a aos lusos, circulava com
frequência na Corte por essa época. Vieira escreveu ao Marquês de Niza, em agosto de 1648,
que “Todo o debate agora é sobre Angola, e é matéria em que não hão de ceder, porque sem
negros não há Pernambuco, e sem Angola não há negros”.79 Teles da Silva reforçava essas
impressões ao escrever ao Rei:
Angola, Senhor, está de todo perdida, e sem ela não tem Vossa Majestade o Brasil, porque desanimados os moradores de não terem escravos para os engenhos, os desfabricarão e virão a perder as alfândegas de Vossa Majestade os direitos que tinham em seus açúcares.80
António Paes Viegas, jurista importante e secretário particular de D. João IV, que se
envolvera nas conspirações a favor do golpe de 1° de dezembro de 1640, também escreveu
dois papéis acerca da problemática. No primeiro, lembrava que os holandeses estavam muito
seguros em Angola, não havendo quem os “inquietasse”.81 Tinham negros para si, para
comercializar com os castelhanos e para os seus engenhos de Pernambuco. Produziriam muito
mais açúcar que os portugueses na região; ao passo que, quando acabassem os negros ainda
76 Parecer do Conde da Torre (de acordo com o voto que na semana anterior dera no Conselho de Estado) sobre o socorro que se mandaria a Angola. Lisboa, a 26 de abril de 1644. Papeis Politicos – Cod. 987 (K VII 31), fl. 502-503v, in Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 70, p. 34. 77 Registo de uma Provisão de que o Conde de Athouguia, Governador e Capitão Geral deste Estado, que se passou, a Domingos Vieira Veigão em que lhe manda levantar o seqüestro que os Ministros da Fazenda Real da Capitania do Espirito Santo fizeram no seu Pataxo e fazendas, e Gonçalo Lopes Castelhano que ambos ali aportaram em Buenos Ayres. Baía, a 22 de agosto de 1656. In Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. XIX, op. cit., p. 58-63; citação na p. 59. 78 Idem, p. 60. 79 Cf. Carta ao Marquês de Niza, a 12 de agosto de 1648, in VIEIRA, Antônio. Cartas de Antônio Vieira. Organização e notas de João Lúcio de Azevedo. Vol. I. São Paulo: Globo, 2008, p. 190-192. 80 Apud ALENCASTRO, op. cit., p. 222. 81 Parecer de António Pais Viegas sobre o socorro a enviar a Angola. Cabo Ruivo, a 27 de abril de 1644. Papeis Politicos – Cod. 987 (K VII 31), fl. 499-499v, in Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 71, p. 35.
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existentes nas possessões americanas, não os seria possível suprir, ficando o Brasil “em
miserauel estado”.82
No segundo, defendia que D. João IV deveria enviar o quanto antes uma armada ao
Rio de Janeiro e dar ordens a Salvador Correia para que procurasse não apenas “entabolar as
minas e ouro de lauage”, mas ainda que amealhasse mantimentos e gente “que melhor
aturasse os ares de Angola” para a sua reconquista, conforme sugeriu.83 Se possível, deveria
retornar com negros africanos à América portuguesa, mantendo no Rio de Janeiro essa força
naval pronta para prestar novos socorros ao outro lado do Atlântico, contra os holandeses ou
contra o rei do Congo. Ou, então, a armada poderia saquear Buenos Aires, “com que
largamente se pagarião os gastos dela”. Daquele porto poderiam trazer muito cobre, que
Salvador Correia dizia haver em abundância. Esse plano trazia dois inconvenientes: o esforço
de se prontificar uma força-tarefa e o risco de se desguarnecer o Reino.
Pouco tempo depois, o padre Vieira pressionava o monarca no mesmo sentido de
Salvador Correia. Segundo o jesuíta, os paulistas deveriam invadir a Bacia do Prata, tomar
várias de suas cidades e conquistar as minas do Peru, “com grande facilidade e interesse
nosso, dano e diversão de Castela”.84 Em uma carta ao marquês de Niza, que era membro do
Conselho de Estado, Vieira desenvolvia melhor a hipótese.85 Em seguida, com receio de que
os franceses também se interessassem pela região, oferecia ao Marquês argumentos que
poderiam desestimulá-los de qualquer iniciativa.86
Ainda na tentativa de oferecer razões que dissuadissem os franceses, sugeria uma ação
militar portuguesa, ao mesmo tempo em que explicitava também alguma esperança na
retomada do antigo trato: “para ver se este comércio se pode renovar, uma das ordens que
levou Salvador Correia foi mandar tomar aquele porto”. Isso sugere também que Salvador
Correia recebera ordens para invasão de Buenos Aires.
82 Cf. Idem. 83 Parecer de António Pais Viegas sobre a recuperação de Angola. Cabo Ruivo, a 28 de abril de 1644. Papeis Politicos – Cod. 987 (K VII 31), fl. 500-501, in Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 72, p. 35-36. 84 Papel que fez o Padre Vieira a favor da entrega de Pernambuco aos holandeses (1648), in VIEIRA. Escritos Históricos e Políticos..., op. cit., p. 367. 85 Registra Vieira: “se pode intentar a conquista do Rio da Prata, de que antigamente recebíamos tão consideráveis proveitos pelo comércio, e se podem conseguir ainda maiores, se ajudados [pelos] de São Paulo marcharmos, como é muito fácil, pela terra dentro, e conquistarmos algumas cidades sem defesa, e as minas de que elas e Espanha se enriquece, cuja prata por aquele caminho se pode trazer com muito menores despesas”. Cf. Carta ao Marquês de Niza, a 20 de janeiro de 1648, in VIEIRA. Cartas... op. cit., p. 122. 86 Conforme Vieira: “o rio da Prata não é conquista de consideração, porque não tem prata nem cidades, senão dali a quinhentas léguas de campos desertos, donde vinham alguns mercadores a comprar os negros de Angola, que ali lhe levávamos antigamente, o que se acabou com a guerra de Castela”. Carta ao Marquês de Niza, a 20 de janeiro de 1648, in VIEIRA. Cartas... op. cit., p. 122.
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Por fim, Vieira solicitava ao marquês que escrevesse ao rei, como ele próprio o faria,
para que tal ação se consolidasse tempestivamente: “E assim é necessário que S. M. o faça
logo, e que V.Ex.a o escreva, como eu também farei, porque bastam dois navios e duzentos
ou trezentos homens para tomar Buenos Aires, que é a única povoação que ali há de
castelhanos”.87
Como se sabe, o projeto esboçado por Salvador de Sá, entretanto, não se concretizou
nesse momento. Após mais de sete meses do parecer do Conselho de Guerra, os membros do
Conselho Ultramarino Jorge Castilho, Jorge de Albuquerque e João Delgado, afirmaram que
quanto a Angola “tem V. Mag.de rezolutto o que fazer”, forte e claro indício para se supor que
a decisão já estivesse tomada antes do aconselhamento; sobre Buenos Aires, lembrava-se que
o governador geral António Teles da Silva já tentara abrir o comércio, sem consegui-lo.88 E
que não convinha “em tempo de tantos apertos” abrir novas frentes de guerra. Para o
Conselho, Portugal deveria direcionar esforços diplomáticos, econômicos e militares para
resguardar o que lhe sobrava no ultramar, defendo suas possessões de espanhóis e holandeses.
No que se concerne ao nordeste brasileiro, não se mencionava a via diplomática, conforme
orientação do Conselho da Guerra, mas o envio de quinhentos homens das Ilhas Atlânticas.89
Por meio da análise dos diferentes assessoramentos de que dispunha o rei nesse
momento, podemos perceber como sua decisão era o resultado de um longo processo
administrativo, em que a participação dos conselheiros mais experientes do reino era
fundamental. As decisões, que eram gestadas em Conselhos, dotados de autogoverno,
explicitam o aspecto polissinodal da monarquia portuguesa. Cabe sublinhar que não havia um
projeto pré-definido para o Império, mas sim uma gestão que passava por diversas instâncias
consultivas e que se construía conforme as conjunturas e informações que chegavam dos mais
diversos cantões da monarquia. Tal é um índice, pois, para se compreender as formas de
deliberação da monarquia.
No caso particular que se apresentou, ainda que o Conselho de Guerra estivesse
envolvido, o assessoramento produzido pelo recém criado Conselho Ultramarino foi o que
87
Idem. Vieira também evidencia um receio de compartilhar o Atlântico sul com os franceses, outra razão para que a iniciativa ocorresse sem demora: “se não nos anteciparmos, podem os franceses tomar-nos a bênção, o que nos estava sempre muito mal, porque, demais da perda do comércio, ficarão com eles mui devassados todos os mares e portos do Sul, de que sempre fomos absolutos e pacíficos senhores”. Idem. 88 Sobre os membros iniciais do Conselho Ultramarino, verificar BOXER. Salvador Correia de Sá... op. cit., p. 175-176. 89 Consulta do Conselho Ultramarino sobre os alvitres apresentados por Salvador Correia de Sá para remediar os prejuízos causados pelos holandeses no Brasil e para introduzir o comércio com Buenos Aires. Lisboa, a 10 de junho de 1644. AHU, Rio de Janeiro, Castro e Almeida, Caixa no 2, doc. no. 305.
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prevaleceu. Por isso, discordamos de Edval de Sousa de Barros quando afirma sobre essa
questão que “a deliberação do Conselho Ultramarino a partir das consultas do Conselho de
Guerra não mereceu maior atenção”.90 Recebeu tamanha atenção que suplantou a proposta do
Conselho de Guerra, adiando também os projetos de homens importantes, como Salvador de
Sá e padre Vieira.
Mostra-se evidente também que Salvador Correia circulava com facilidade junto aos
membros do Conselho de Guerra, que não apenas o indicou para apresentar caminhos de
gestão, efetuou os seus despachos com celeridade, e ainda ratificou dois de seus pareceres.
Nessa época, iniciava-se também em Lisboa nova discussão acerca de um novo
remédio para a crise econômica. O problema é que “há remédios que parecem fantasmas... e o
maior perigo não é quando se teme o perigo, é quando se teme o remédio”. Essas palavras do
padre Vieira, lançadas antes da apresentação do arbítrio que estava prestes a propor, em 1644,
indicavam que as repercussões de suas ideias não seriam pequenas. Como ele mesmo afirma,
o remédio temido, ou chamado perigoso, são duas companhias mercantis, oriental uma, e outra ocidental, cujas frotas, poderosamente armadas, tragam seguras contra Holanda as drogas da Índia e do Brasil, e Portugal, com as mesmas drogas, tenha todos os anos os cabedais necessários para sustentar a guerra interior de Castela, que não pode deixar de durar alguns.91
Vieira lembrava ainda que essa foi a solução adotada pelas principais nações da
Europa, “exceto somente a portuguesa”.92 Isso porque o projeto dependia de “dinheiro menos
cristão”, ou seja, de judeus, o que tornava “suspeitoso todo o remédio, e por isso perigoso”.93
Mesmo assim, defendia-o com todo esforço Vieira. Nem “o dinheiro de Judas, [se]
cristãmente aplicado, nem descompõe as chagas de Cristo, nem descompõe as armas de
Portugal”.94 Além disso, lembrava também que “a bondade das obras está nos fins, não está
nos instrumentos. As obras de Deus todas são boas; os instrumentos de que se serve, podem
ser bons ou maus... Os que são servos de Deus, (...) necessariamente hão de ser bons; os que
são servos de Deus porque Deus se serve deles, bem podem ser maus”.95 Assim, o dinheiro
judeu seria um mero instrumento de Deus para um fim bom.
90
Cf. BARROS, op. cit., p. 198. 91 VIEIRA. Sermão de São Roque, in Escritos Históricos... op. cit., p. 54. 92 Idem. 93 Idem 94 Ibidem, p. 56. 95 Ibidem, p. 58.
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Não era a primeira vez que o padre defendia a criação de duas companhias de
comércio. Como ele escreveu já no fim de sua vida, ao conde de Ericeira, D. Luís da Cunha
Meneses, em 1689, as companhias de comércio foram “o primeiro negócio que propus a S.
M., pouco depois da sua feliz aclamação e restauração”.96 Não haveria “empenho algum da
real fazenda” enquanto elas “chamariam e trariam a Portugal o dinheiro mercantil de todas as
nações”.97 Em 1641, quando apresentada, a proposta não foi aceita porque “na dita proposta
se dizia que o dinheiro aplicado às companhias de Portugal estivesse isento do fisco”, o que
seria condição básica para que estrangeiros e mesmo portugueses investissem seus recursos,
mas isso “foi causa de que o Santo Ofício proibisse o papel da proposta”.98 Mais tarde,
“depois que os apertos da guerra mostraram que não havia outro meio igualmente efetivo” a
criação das cias de comércio foi finalmente “aprovada pelos letrados mais doutos do reino”.99
Do mesmo modo, não era também a primeira vez que Vieira defendia a utilização de
recursos de judeus. Em julho de 1643, ele registrava em um relatório que era necessário achar
um “meio que diminuísse o poder do inimigo, e acrescentasse juntamente o nosso”.100 Tal
meio compreendia exatamente concentrar em Portugal os comerciantes judeus, uma vez que
“para o comércio não há outros homens de igual cabedal e indústria aos de nação”.101
Em meio à crise da ocupação holandesa em Angola, D. João IV chegou a consultar o
Conselho Ultramarino acerca da possibilidade da mútua convivência de portugueses e
holandeses naquela praça, em portos e locais distintos. Nessa consulta, o voto contrário de
Jorge de Albuquerque à permanência dos holandeses foi decisivo. Conforme o entendimento
do conselheiro, “para o bem deste Reyno [de Portugal], q. por todos os meyos, se fizesse o
possivel, p.a q. os Olandeses Largassem de todo aq.le Reyno [de Angola], ainda q. fosse á
custa da fazenda de V.Mg.de, e da de seus Vassalos, porq. com as utilidades delle, em breves
annos se recuperaria”.102 Ou seja, mantinha o Conselho análogo entendimento acerca da
importância trivial de Angola nos fluxos mercantis do Atlântico. Quatro anos depois do
96 VIEIRA, António. Carta ao Conde de Ericeira. Bahia, 23 de maio de 1689. Escritos..., p. 243. 97 Idem. 98 Idem. 99 Idem. 100 VIEIRA, António. Proposta feita a el-Rei D. João IV em que se lhe representava o miserável estado do Reino e a necessidade que se tinha de admitir os judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa, in VIEIRA, António. Escritos históricos e políticos, p. 266. 101 Ibidem, p. 269. 102 Sobre as conveniençias q. se devem celebrar com os olandeses no Reyno de Angolla. Lisboa, a 17 de fevereiro de 1648. AHU, Consultas Mistas, Códice n 24, fl. 110.
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parecer contrário aos alvitres apresentados por Salvador de Sá, em nada se alterara a
percepção dos conselheiros.
Nesse mesmo ano de 1648, muitos papéis tratavam na Corte dos termos em que se
assentariam as capitulações com a Holanda. Um dos impasses era o problema de Pernambuco,
cuja indefinição já se arrastava há tempos. Muito conhecido é o “papel forte” de Vieira, em
que defendeu a entrega de Pernambuco aos holandeses.103
É preciso que se perceba, entretanto, que esse papel é, como foi dito, de 1648. Quatro
anos antes, o padre já sugeria posição similar no Sermão de São Roque, realizado na Capela
Real, para comemorar o nascimento do príncipe D. Afonso:
Baste por único fundamento, na suposição e circunstâncias do tempo presente, que em todo o passado, Castela e Portugal juntos não puderam prevalecer, assim no mar, como na terra, contra Holanda; e como poderá agora Portugal só permanecer e conservar-se contra Holanda e Castela?104
Essa informação é importante porque, anos depois, em 1689, na carta em que critica a
História do Portugal Restaurado, de autoria do conde de Ericeira, Vieira afirma
categoricamente que não foi sua a ideia de entregar Pernambuco, mas que a achou “na boca e
conceito de S. M.”.105 Caso o conde desejasse, poderia comprovar essa versão com Pedro
Vieira de Melo, que era secretário de Estado, Feliciano Dourado, secretário da Embaixada de
Holanda, ambos vivos em 1689.
Na retirada dos “escravos e fábricas” dos moradores de Pernambuco, consistia a
estratégia de Vieira para a retomada da região. Arquitetou tal estratégia nas seguintes bases:
de tal modo dávamos Pernambuco aos holandeses, que juntamente lhe o ficávamos tirando; porque eles nunca tiveram indústria para tratar negros, nem lavouras ou engenhos de açúcar, e sem os lavradores portugueses nenhuma utilidade podiam tirar daquela terra, antes fazer alguns grandíssimos gastos de sustentar tantas fortalezas, com que se resolveriam a no-las vender facilmente. E, por outra parte, passando-se os moradores
103 Cf. Vieira: “As conquistas de Portugal e o mesmo reino ficam em manifesto perigo de se perderem, se além da guerra de Castela, a tivermos também com a Holanda (...) se Portugal e Castela juntos não puderam resistir a Holanda, como há de resistir Portugal só, a Holanda e Castela? Se todas as forças de Portugal (ajudadas muitas vezes das de Castela) não puderam defender Pernambuco; como só, com não restituirmos parte de Pernambuco, cuidamos que podemos defender Pernambuco, o Brasil, e todas as conquistas?”. Papel que fez o Padre Vieira a favor da entrega de Pernambuco aos holandeses (1648), in VIEIRA, António. Escritos Históricos e Políticos, op. cit., p. 313. 104 VIEIRA, António. Sermão de São Roque. Lisboa, Capela Real, no aniversário de nascimento do infante D. Afonso, ano de 1644. In VIEIRA, Antônio. Escritos históricos e políticos... op. cit., p. 47. 105 VIEIRA, António. Carta a D. Luís da Cunha Meneses. Bahia, em 23 de maio de 1689. In VIEIRA, António. Escritos Históricos e Políticos, op. cit., p. 249.
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pernambucanos com suas fábricas à Bahia, onde não faltavam iguais e melhores terras, o mesmo Pernambuco, que deixávamos em sete graus [de latitude], o teríamos em doze.106
D. João IV era o único que sabia ser “a paz com os holandeses totalmente necessária e
a guerra manifestadamente impossível”.107 Por isso, el-Rei teria mandado que Vieira fizesse
um papel para a entrega de Pernambuco. O padre, de modo conclusivo, afirma que “este
negócio não foi meu, senão resoluto e mandado expressamente por S. M. nas suas ordens; e
no papel que S. M. me mandou fazer só fui relator das forçosas razões que ele tivera para
isso”.108
Seja como for, é importante registrar que muitos outros defendiam a entrega de
Pernambuco antes mesmo do “papel forte” de Vieira. O marquês de Niza fizera uma lista de
alguns deles em 1647:
(...) aqueles que foram causa de nos vermos nessas revoltas [de Pernambuco]. E foram o mesmo governador do Brasil [António Teles da Silva], e o conde camareiro-mor [conde de Penaguião], seu amigo, moço sem experiência, e Antônio Paes Viegas, que Deus tem, que às vezes tinha opiniões terríveis; e se diz que o marquês de Gouvêa [mordomo-mor] e Pedro Vieira da Silva [secretário de Estado], todos em junta particular, mas dos dois últimos não tenho certeza. E quando se propõs no Conselho de Estado a matéria, foi todo contra ele e sem embargo disso se executou”.109
Mas, antes mesmo disso, em setembro de 1645, Lourenço de Brito Correia, que fora
provedor-mor no Brasil, com receio do socorro que a Holanda enviaria para o Nordeste,
aconselhou que ele fosse tão logo evacuado pelos portugueses, sob risco de se ampliarem as
despesas e de se perderem outras áreas, como a Bahia e as Índias.110 Em 1647, Francisco de
Sousa Coutinho prometia aos Estados Gerais, em nome de D. João IV, restituir todas as
praças que os rebeldes de Pernambuco haviam tomado.111
Em outubro de 1648, D. João IV determinava que as condições dessa capitulação
fossem analisadas pelo Conselho da Fazenda. Elas foram propostas por Francisco de Sousa
106 Idem. 107 Idem. 108 Ibidem, p. 252. 109 Carta de marquês de Niza a Vicente Nogueira, em 5 de março de 1647. Biblioteca Nacional de Lisboa, Fundo Geral, ms. n. 7164. Apud MELLO, Evaldo Cabral de. O Brasil Holandês (1630-1654). São Paulo: Cia das Letras, 2010, p. 347. 110 Papeis politicos – Cod. 987 (k VII 31), fl. 491-492 v., in Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 78, pág 38-40. 111
Papeis Varios, t. 7 – Cod 947 (k VIII Id), fl. 229v-231v., in Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 115, pág. 60-62.
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Coutinho aos Estados Gerais e eram “os ultimos termos a que se pode chegar este negocio”.112
O Conselho deveria enviar dois ministros para falar com Sua Majestade e, posteriormente,
discutir o assunto com o Padre Antônio Vieira com todo o segredo.113
Paralelamente, uma consulta do Conselho de Estado, motivada por uma consulta da
Câmara, condenava os artigos de paz com a Holanda, admitindo-se somente a possibilidade
de se dar dinheiro aos holandeses para abandonarem o nordeste.114 No mesmo sentido da
consulta dessa Câmara, manifestava-se a Junta dos Três Estados, por meio de uma consulta
que criticava as circunstâncias de paz com a Holanda, acrescentando razões ponderáveis e
recursos disponíveis para a continuidade da guerra.115
Diversos conselheiros produziram pareceres sobre o assunto. Primeiro, foi elaborado
um parecer pelo Procurador da Fazenda de quatro pontos, em que alertava el-Rei para a
nocividade dessas capitulações, que ofendiam a piedade cristã e o valor dos vassalos.116
Primeiro lembrava que não havia razão para se abandonar aos hereges flamengos cento e
cinquenta mil almas católicas. Depois, advertia que não teriam os pernambucanos condições
de pagar por suas dívidas, que por vezes atingiam mais de trezentos mil cruzados. Em terceiro
lugar, se os holandeses ficassem com Angola, teriam o comércio do ouro, dos negros e da
prata das Índias de Castela, pois estavam em paz com esse Reino, podendo-se assim preparar
para conquistar ainda mais territórios da monarquia portuguesa. Sem escravos, seria
imperativo abandonar a cultura do açúcar na América. Em suma, todos os prejuízos
acumulariam mais de um milhão e duzentos mil cruzados para a Coroa. Sem contar que os
holandeses poderiam se juntar a Castela e à França, configurando-se assim uma ameaça
intransponível aos lusos.
Reforça então uma ideia já apresentada por Vieira. Para o Procurador da Fazenda, o
único remédio era a constituição de uma Companhia de Comércio, que organizaria duas frotas
anuais, com 30 ou 40 naus de guerra, mais 40 naus de particulares, também armadas, que
fariam o provimento das praças do Brasil. Nestes parâmetros, entrariam os holandeses “em
112 Cópia do Decreto pelo qual el-Rei mandara ver as capiltulações com a Holanda no Conselho da Fazenda. Alcântara, a 21 de outubro de 1648. Papéis vários, t. 29 – Cod. 874 (K VIII Im), fl. 236, in Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 131, p. 70. 113 Idem. 114 Não foi possível precisar na documentação a que Câmara esta Consulta se refere. 115 Consulta do Conselho de Estado em que se vira a consulta da Câmara sobre os artigos de paz com a Holanda. 3 de Dezembro de 1648. Memorias do Conselho de Estado – Cod. 1081 (K VIII 6b), fl. 224-224v, in Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 132, p. 70. 116 Parecer enviado a el-Rei sobre as condições da paz com a Holanda. Lisboa, a 5 de dezembro de 1648. Papeis Varios t.2 Cod. – 1091 (K VIII Ib), fl 37-39, in Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 133, p. 71-73.
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noua conçideração”.117 Mesmo com o estabelecimento da paz, sempre seria conveniente que o
açúcar fosse transportado em naus de guerra. Por fim, o parecer alertava para que “uirsse em
alguma justa comuniençia” com os homens de negócio do Reino, já que deles dependia a
defesa do nordeste, que, se entregue, aniquilado estaria todo o comércio.118 Não custa anotar o
modo como o parecer articula Angola, considerada mais uma vez imprescindível, o Nordeste
e as possessões de Castela.
O conde de Odemira, membro do Conselho de Estado, também escrevera um parecer
comentando praticamente todos os vinte artigos da proposta de paz de Francisco de Sousa
Coutinho. Confirmava o voto do Procurador da Fazenda, entendendo que os termos do
convênio proposto prejudicavam a religião, o respeito e a autoridade real, o comércio, os
vassalos e a própria conservação da paz futura. Quanto a deixar Pernambuco aos holandeses,
condicionava sua concordância à posse de Angola, na medida em que os negros de que
necessitava o Brasil eram “hum modo de segurança”.119 Ou seja, até aventava a entrega do
Nordeste, mas não a de Angola.
Diante do decreto real de 21 de outubro e dos papéis do Procurador da Fazenda, a
quem “se dera vista”, e do conde de Odemira, manifestou-se por consulta o Conselho da
Fazenda. Entendeu que se devia buscar a paz “prepetua firme e segura” com os holandeses,
sem que houvesse, entretanto, ofensas a religião e a reputação do monarca.120 Lembrava a
importância de se informar os Estados da Índia, Brasil e costa africana acerca dessas tratativas
de avença, para que se prevenissem “assy pera a hostilidade, como pera o engano”.121 Sobre
os pontos apresentados pelo Procurador da Fazenda, acreditava o Conselho que, primeiro, de
nenhuma maneira se deviam restituir as praças do Brasil e África. Quanto ao segundo, que,
sem se devolver as praças, era “ajustado” oferecer dinheiro e drogas para a paz. Concordava
que era preferível a guerra à restituição requerida; e concordava plenamente com o último
ponto.122 Não custa lembrar que Salvador de Sá falara em oferecer dinheiro aos holandeses
em seu parecer de 1643. À margem da consulta, D. João IV determinava que se convocasse
117 Idem. 118 Idem. 119 Parecer do Conde de Odemira sobre as propostas de paz oferecidas aos holandeses pelo embaixador português Francisco de Sousa Coutinho. 10 de dezembro de 1648. Papeis Varios, t. 29 – Cod. 874 (K VIII Im) fl 328 v.-331v, in Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 134, p. 74-81. 120 Consulta do Conselho da Fazenda sobre as capitulações com a Holanda. Lisboa, a 14 de dezembro de 1648. Papeis Varios, t. 2 – Cod. 874 (K VIII Im), fl. 340-341, in Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 135, p. 81-82. 121 Idem. 122 Idem.
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um tribunal para que, em caso de fracasso das negociações com a Holanda, fossem
examinados os meios de defesa do reino, “tão exhausto de gente e de cabedal”, frente os
Estados Gerais e Castela.123
O imbróglio com os holandeses não se delineava. Em 27 de janeiro de 1649, os
Estados Gerais declaravam não concordar com as propostas de Francisco de Sousa Coutinho
apresentadas quatro dias antes aos deputados da Junta em Haia. Não apenas caracterizavam
por “dilações e longuras” as falas do embaixador, como advertiam que empregariam os meios
necessários para a restituição das conquistas indevidas dos portugueses.124
Vale lembrar ainda o (já citado) “remédio” apresentado por Manuel Fernandes Cruz,
antigo morador de Pernambuco, que articulava Pernambuco, Angola e Prata de modo a
solucionar a problemática do Atlântico.125
Considerações finais
Não sem tensões e fraturas, Conselhos e homens de governo discutiam os caminhos
para a administração patrimonial, militar e financeira do Império. A ideia de autogoverno dos
Conselhos Superiores, muito característica da segunda escolástica, fica patente no quadro
abaixo, que sintetiza a posição desses mesmos tribunais acerca de questões de fundamental
importância na gestão imperial. Essas posições dos Conselhos Superiores, bem como da Junta
dos Três Estados, evidenciam o caráter polissinodal da monarquia:
CONSELHO/ÁREA
Angola
Pernambuco Prata
Conselho de Guerra Reconquista Via diplomática Invasão militar Conselho Ultramarino Reconquista Guerra Não invadir
Conselho de Estado Reconquista Entrega ou compra Alguns defendiam
a invasão
Conselho da Fazenda Não restituir aos
holandeses Compra ou Guerra ?
Junta dos Três Estados ? Guerra ?
123 Idem. Despacho régio à margem. Lisboa, a 24 de dezembro de 1648. 124 Resposta dos Estados Gerais a Francisco de Sousa Coutinho. Haia, a 27 de janeiro de 1649. Papeis Vários, t. 29 – Cod. 874 (K VII Im), fl. 365, in Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc 137, p. 83. 125 Arbítrio em benefício comum que inculca o modo conveniente para se haver o resgate desta praça [de Pernambuco] em caso que o holandês a largue por preço de dinheiro; ou bem se possa sustentar a guerra, quando pelas armas se liberte; e se socorra com um grosso empréstimo aos moradores para levantarem os seus engenhos, e os fabricarem sem dispêndio da fazenda real. Pernambuco, a 20 de agosto de 1650. Papeis Varios, t. 2 – Cod. 1091 ( K VIII Ib), fl. 1-5v; fl. 18-22; Papeis Varios, t. 34 – Cod. 976 (K VIII Ir), fl. 171-175v, in Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 149, p. 90-96.
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Mas, como notou Ramada Curto, é preciso apreender também o sentido dos arbítrios e
remédios, que representam uma forma de comunicação política entre as elites locais e Sua
Majestade. Por meio desses papéis, tais elites interferiam na gestão da monarquia
pluricontinental. Quando consolidamos os pareceres analisados ao longo dessas páginas,
apresentamos o seguinte quadro:
AUTOR DO PAPEL/ÁREA
Angola Pernambuco Prata
Padre Vieira Reconquistar Abandonar Invadir Salvador Correia de Sá
e Benevides Reconquistar
Roubar e queimar, depois comprar
Invadir
António Teles da Silva Reconquistar Abandonar Invadir
Conde de Odemira Solução
diplomática Abandonar ?
António Paes Viegas Reconquistar Abandonar Invadir Lourenço de Brito
Correia ? Abandonar ?
Francisco de Sousa Coutinho
? Abandonar ?
Manuel Fernandes Cruz
? Comprar Estabelecer comércio
Conde de Penaguião ? Abandonar ?
Graças a uma circulação de informações, os conselheiros da monarquia refletiam
acerca dos espaços que deveriam ganhar destaque na política ultramarina, explicitando os
nexos intrincados de uma monarquia pluricontinental. Contudo, para além da auto-regulação
pertinente à linguagem da cultura política, parece que a turbulência do contexto trouxe
complicações para a definição das prioridades. Afinal, os escassos recursos disponíveis
deviam ser direcionados para Pernambuco, para Angola ou para a invasão do Prata, se tais
regiões possuíam articulação?
Os quadros demonstram que havia notória dificuldade em se hierarquizar os espaços
ultramarinos. Mas perceba-se que foi o parecer do Conselho Ultramarino, todavia, que definiu
esta questão; embora recém criado, o Conselho se sobrepôs à opinião do Conselho de Guerra
e de homens de enorme prestígio na Corte.
Por fim, insta-se registrar que os pareceres eram modulados pela possibilidade de a
Coroa viabilizar propostas, o que dependia da vontade e do interesse de seus vassalos em lhe
prestar serviços, bem como de sua capacidade de movimentar redes nos espaços imperiais. O