Imprensa alternativa, contracultura e produção de subjetividade

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Imprensa alternativa, contracultura e produção de subjetividade AGUIAR, Leonel Doutor em Comunicação/UFRJ Departamento de Comunicação/PUC-Rio Rio de Janeiro [email protected] GT: História da mídia alternativa Resumo A proposta deste artigo é pensar as relações entre mídia, poder e produção de subjetividade, a partir do estudo de caso do jornal alternativo Luta & Prazer, editado na cidade do Rio de Janeiro e que circulou entre 1981 e 1983. A linha editorial do tablóide estava voltada para a divulgação das propostas da política do cotidiano: os ideais do movimento da contracultura, as terapias psicológicas centradas no corpo, o ativismo ambientalista, a medicina alternativa e as práticas de origem oriental. A análise que empreendemos aponta que o jornal Luta & Prazer visava construir estratégias específicas de luta que significavam questionar como o poder se exerce e quais são as relações da produção de subjetividade com o poder. A partir dos conceitos de Foucault e Guattari, entendemos que nosso enfoque de mídia alternativa uma prática micropolítica como resistência ao exercício do poder – ressalta que os campos de luta contra as experiências fundamentais de

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Imprensa alternativa, contracultura e produção de subjetividade

AGUIAR, Leonel Doutor em Comunicação/UFRJDepartamento de Comunicação/PUC-RioRio de [email protected]

GT: História da mídia alternativa

Resumo

A proposta deste artigo é pensar as relações entre mídia, poder e produção

de subjetividade, a partir do estudo de caso do jornal alternativo Luta & Prazer,

editado na cidade do Rio de Janeiro e que circulou entre 1981 e 1983. A linha

editorial do tablóide estava voltada para a divulgação das propostas da política do

cotidiano: os ideais do movimento da contracultura, as terapias psicológicas

centradas no corpo, o ativismo ambientalista, a medicina alternativa e as práticas

de origem oriental.

A análise que empreendemos aponta que o jornal Luta & Prazer visava

construir estratégias específicas de luta que significavam questionar como o poder

se exerce e quais são as relações da produção de subjetividade com o poder. A

partir dos conceitos de Foucault e Guattari, entendemos que nosso enfoque de

mídia alternativa – uma prática micropolítica como resistência ao exercício do

poder – ressalta que os campos de luta contra as experiências fundamentais de

dominação são as problematizações na ordem da subjetividade. Portanto, a

dominação na ordem da subjetividade surge como problema político central na

cultura contemporânea.

Palavras-chave: imprensa alternativa; micropolítica; novas subjetividades.

Introdução

Podemos delimitar, de uma maneira genérica, a imprensa alternativa como

um conjunto de jornais – geralmente em formato tablóide – e revistas que não se

enquadram dentro dos esquemas econômicos e políticos da indústria cultural,

conforme esse conceito foi formulado por Adorno e Horkheimer (2002:7-74).

Segundo Kucinski (2003:14-15), no Brasil, existiram basicamente duas

modalidades de jornais alternativos: surgidos na década de 60, os de cunho

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político, com seus ideais nacionalistas e populares ou marxistas; e, a partir dos

anos 70, também as publicações influenciadas pelos movimentos de contracultura

norte-americanos.

De acordo com esse autor, que pesquisou a imprensa alternativa entre 1964

e 1980, circularam no país, nesse período, cerca de 150 periódicos de vários tipos

que tinham, em comum, o embate político e editorial contra a ditadura militar.

Contrapor-se aos interesses dominantes e ao discurso oficial dos governos

militares foi também outro eixo em comum da imprensa alternativa – batizada

assim em 1975 pelo jornalista Alberto Dines e que já tinha sido chamada de

imprensa underground e nanica. Desse total, apenas 25 jornais ultrapassaram a

marca de cinco anos de edição contínua; entretanto, o fechamento dos alternativos

não se vincula apenas ao fim da ditadura. “Podemos entender o próprio

surgimento da imprensa alternativa dos anos 70 como uma das últimas grandes

manifestações da utopia no Brasil” (Kucinski, 2003: 27). Ou por outra: a extinção

dos jornais alternativos está inserida no próprio fim da idéia de utopia.

Projeto cultural

Entre 1981 e 1983, o jornal Luta & Prazer torna-se mais uma

possibilidade para se realizar essa experiência do jornalismo alternativo.

Produzido no Rio de Janeiro pela editora Rádice – que antes havia publicado a

revista Rádice, com informações sobre a área psi –, o periódico mensal teve uma

linha editorial voltada, principalmente, para a “política do cotidiano”, com suas

“práticas alternativas” na vida social – na saúde, educação, moradia, transporte,

meio ambiente, alimentação. Com redações no Rio, São Paulo e Belo Horizonte,

além de correspondentes em várias capitais, o primeiro número foi lançado em

agosto de 81, com 28 páginas, e estampava a seguinte manchete: “Como a

esquerda vai pra cama?”. Com uma tiragem de 35 mil exemplares, esse número

trouxe ainda matérias sobre as alternativas de militância política, as creches e

escolas experimentais, as comunidades alternativas, as clínicas sociais de

psicologia e os novos artistas. “Tribos urbanas” foi o título da manchete de capa

do segundo número, que trouxe dez páginas de reportagens e artigos sobre essa

inovadora forma de habitação comunitária – os jovens de classe média que

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deixavam as casas familiares para se agruparem em comunidades mais do que em

“repúblicas estudantis” ou simples moradias coletivas. “Pensava numa revolução

molecular a partir dessas pequenas células sociais” (Kehl, 1981:7).

Já o número 8 do Luta & Prazer, de abril de 1982, com 24 páginas,

apresentou três chamadas de capa sobre temas políticos: “Temas malditos nos

partidos políticos”; “Eleição é papo de cartomante” – artigo sobre as eleições

estaduais de 82 – e “Diálogo de gerações”, entrevista com quatro ex-guerrilheiros

urbanos. Atravessando o fundo vermelho da capa, um machado cravado no toco

que restou de uma árvore. Logo abaixo do título do jornal, o lema que norteia o

trabalho editorial: “este número está de rachar”. Em um dos artigos desse número,

intitulado “Estômago, sexo e fantasia”, o autor discute a conceituação de poder

para além dos aparelhos ideológicos de Estado e as reivindicações de grupos

sociais politicamente minoritários que não encontram acolhimento nos partidos

políticos tradicionais. “As bandeiras levantadas pelas chamadas ‘minorias’ são

questões diretamente políticas que, combatendo a opressão ao nível da vida

cotidiana, lutam por um novo modo de vida” (Vieira, 1982:15).

Em seu número 13, de outubro de 1982, o jornal teve tiragem anunciada de

20 mil exemplares, circulando com 12 páginas e um anúncio dos candidatos do

PT para as eleições estaduais ocupando a contracapa. Na capa, apenas a manchete

– “Nossas eleições” – e um desenho com cinco bucólicos animais e uma legenda

onde se lê “para colorir”. Logo abaixo do título do jornal, o lema editorial: “paca,

tatu, cotia não”. Um dos artigos, com o título “Sem anos de eleição”, no qual o

autor realiza um balanço histórico das eleições desde a época do Império, aponta a

novidade da experiência eleitoral de 1982. “A força das eleições depende do grau

e qualidade da luta social, desde os moradores de bairros, dos trabalhadores nos

sindicatos e fábricas, dos estudantes e dos movimentos sociais mais diversos”

(Serra, 1982:3).

O número 18, o último do jornal, saiu em maio de 83, com 30 mil

exemplares e distribuição gratuita, mesmo mantendo a venda de assinaturas e

venda em bancas. Na capa, nenhuma manchete: apenas uma foto com vários tipos

de calçados enfileirados e uma grafia de pés descalços saindo da página. Na

penúltima página, uma declaração da política editorial – “o Luta & Prazer não é

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só um jornal: é um projeto cultural” – e a saudação entusiasmada pelo surgimento

de um novo informativo – o Comum-Unidade – editado pela Associação

Brasileira de Comunidades Alternativas. Nenhum aviso sobre a possibilidade de

encerramento das atividades.

A apresentação de alguns exemplos de matérias jornalísticas do Luta &

Prazer, voltadas para a divulgação e o debate das propostas de uma política do

cotidiano, serve exatamente para a discussão da hipótese que permeia a produção

deste artigo. Enfim: o jornal tornou-se um dispositivo para a construção de

estratégias de lutas políticas visando questionar como o poder se exerce no

cotidiano e quais as suas relações com a produção de subjetividade.

Perspectiva teórica

A proposta desse artigo é realizar a análise da imprensa alternativa pela

perspectiva teórica dos autores que elaboraram os conceitos que criam as

condições de possibilidade para pensar a crise global que afeta a nossa

Contemporaneidade para além das discussões voltadas para as relações sociais

explícitas. A inovação teórica desses autores se dá exatamente por mostrá-la em

sua abrangência enquanto “crise dos modos de subjetivação, dos modos de

organização e de sociabilidade, das formas de investimento coletivo de formações

do inconsciente” (Guattari e Rolnik, 1986:191). A atual crise é a dos modos de

semiotização do capitalismo, que envolve as semióticas de modelização da

produção de subjetividade indicadas para o controle social, superando o nível das

semióticas econômicas. Isto significa que essas crises não conseguem mais ser

explicadas por teorias tradicionais, sejam sociológicas ou econômicas. Por outro

lado, a emergência da singularidade como processo semiótico tenta romper com

determinadas categorias da tradição filosófica e científica, recusando tanto a

privatização capitalista pressuposta pela noção de indivíduo quanto o papel

constituinte da consciência, isto é, do sujeito como faculdade soberana de

representação e de simbolização.

Podemos afirmar, seguindo este caminho teórico através do qual nos

estenderemos analisando a cultura contemporânea, que os modos de produção do

capitalismo extrapolam a ordem do capital e abrangem, principalmente, o modo

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de controle da produção de subjetivação. “O capital ocupa-se da sujeição

econômica e a cultura, da sujeição subjetiva” (idem, 16). Neste sentido, os termos

“comunicação de massa” ou “cultura de massa” devem ser compreendidos como

dispositivos que operam a compartimentação do modo de produção de

subjetividades, fabricando individualidades serializadas: a “comunicação de

massa” é, portanto, o elemento fundamental da produção de subjetividade nos

modelos capitalistas, fabricando indivíduos normalizados e articulados segundo

sistemas de valores hierárquicos e de submissão. No capitalismo contemporâneo,

a questão política central é a produção de subjetividade, que vai além da produção

da subjetividade individuada e abrange uma produção de subjetividade social:

uma produção de subjetividade encontrada em todos os níveis da produção e do

consumo.

É neste quadro que a emergência dos novos sujeitos da Histórica implica

na construção de linhas de fuga ao poder ubíquo dessa máquina capitalista de

produção de subjetividade, enxergando – nas rupturas abertas pelos processos de

singularização – uma recusa que visa construir novos modos de sensibilidade e

criatividade, produtores de uma subjetividade singular. Tais processos de

singularização, ao desenharem novas cartografias do desejo, irredutíveis ao

controle centralizado, criam condições de possibilidade para a emergência de

revoluções moleculares, constituindo micropolíticas. “Toda problemática

micropolítica consistiria, exatamente, em tentar agenciar os processos de

singularidade no próprio nível de onde eles emergem” (idem, 130).

Os processos de singularização abrem rupturas na individualidade

serializada produzida pela “cultura de massa”, nesta subjetividade normalizada

que é a de um sujeito-objeto da administração e da organização capitalistas. Já o

devir liga-se à possibilidade ou não de um processo de singularização, no qual

singularidades podem entrar em ruptura com as estratificações dominantes. Os

novos movimentos sociais – e também inúmeros jornais alternativos – sempre

apostaram na multiplicidade e na pluralidade, rompendo com as propostas de

proteção da identidade cultural, pois a identidade significa o retorno ao Mesmo,

ao Idêntico. Enquanto atuarem como processos de singularização, de autonomia

ou de micropolítica em suas diferentes formas de resistência molecular, esses

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movimentos podem manter, em permanente questionamento, o projeto de controle

social em escala planetária.

Para Guattari e Rolnik, a micropolítica implica, enquanto uma cartografia

do desejo, na invenção da autonomia que não se circunscreve apenas às práticas

alternativas, aos movimentos das “minorias” organizadas ou às ações de revolta,

resistência e contestação. Partindo desses territórios de existência, esta cartografia

os ultrapassa e desenha novos campos de ação e de vida, produzindo autonomias

que podem alterar a relação de poder na sociedade. Entretanto, apesar da

possibilidade de rupturas, os novos movimentos sociais – e, consequentemente, a

imprensa alternativa – correm o risco da reiteração do que combatem,

aprisionando os novos territórios vitais nas antigas territorialidades do já pensado

e do já desejado.

Em oposição, há uma visão teórica que descreve os novos movimentos

sociais como meras formas arcaicas e residuais de modos de subjetivação,

devendo ser superadas ou reutilizadas de um modo moderno. Esta é a visão da

hegemonia neoliberal da Escola de Chicago e de Freedman, que propõe uma

política de “darwinismo social” para superação dos arcaísmos, onde a “seleção”

tem por base uma axiomática fundada na propriedade privada, no lucro e na

segregação social. Já outra visão – tipo “terceira via” social-democrata de

Giddens (1996) – aposta na “recuperação” dos novos movimentos sociais através

do deslocamento da política do eixo leste/oeste para o eixo norte/sul, reduzindo a

problemática a uma geopolítica e a um “assistencialismo” cultural para

“modernizar” os segmentos desfavorecidos.

Por outro lado, enquanto processo de singularização que assume a finitude

humana, a produção de cartografias do desejo aponta para o provisório, o precário

e o contingente. Assumir, entretanto, que os processos históricos também são

finitos e falíveis, não significa que esta constatação acarrete em perda de

importância para um acontecimento emergente. Se a imprensa alternativa tornou-

se um domínio capaz de provocar uma ruptura radical nas significações

dominantes, também nos novos movimentos sociais se encontram os núcleos de

resistência “ao rolo compressor da subjetividade capitalística, da

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unidimensionalidade, do equivaler generalizado, da segregação, da surdez para a

alteridade” (Guattari, 1992:115).

Neste caso, podemos seguir a proposta de Guattari para a construção de

uma ecologia do virtual que vise promover paradigmas ético-estéticos para o

campo social, apontando para a dimensão da criatividade nas práticas sociais.

Além da micropolítica, outros domínios como a Filosofia e a ciência, também

podem se constituir em lugares de resistência às redes de significações

dominantes:“A potência estética de sentir, embora em igual direito às outras – potências de pensar

filosoficamente, de conhecer cientificamente, de agir politicamente – talvez esteja em

vias de ocupar uma posição privilegiada no seio dos agenciamentos coletivos de

enunciação de nossa época” (idem, 130).

Em suma: a ecologia do virtual se propõe a funcionar como um dispositivo

de criação de novos modos de subjetivação. Esta ecologia do virtual – tal como

exercido em sua prática teórica pelo jornal Luta & Prazer, enquanto uma

dimensão possível da imprensa alternativa – terá por tarefa preservar “as espécies

ameaçadas da vida cultural cotidiana” e ainda engendrar “as condições de criação

e de desenvolvimento de formações de subjetividade inusitadas” (idem, 116). Ou

seja, se assume como produção de subjetividade.

Para esses pensadores contemporâneos, os acontecimentos da década de 60

abriram um novo ciclo revolucionário, instaurando processos que permitiram a

tomada de consciência da transformação da qualidade social da produção e dos

processos de trabalhos; entretanto, foram exatamente os partidos comunistas e

socialistas tradicionais que não perceberam a força dos novos modos de produção

social emergentes com o capitalismo mundial integrado. Essa nova forma do

capital como força transformadora do social tornou-se capacitada para traduzir

qualquer seqüência da vida em termos de troca e de sobredeterminação com a

urgência e a necessidade das operações de quantificação econômica e de comando

político. A integração mundial veio possibilitar ao capital um controle de todos os

tempos singulares da vida: “a família, a vida pessoal, o tempo livre e talvez os

fantasmas e o sonho, tudo está a partir de então sujeito às semióticas do capital”

(Guattari e Negri, 1987:15). Este contexto de assimilação progressiva da

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sociedade à lógica do capital e de desterritorialização dos processos produtivos

acaba por converter as classes operárias em “massa” de consumo.

É também a partir da década de 60 que os novos modos de subjetivação

acabam por deslocar os antigos cenários de luta de classes, instaurando-se no

imaginário e no campo cognitivo da Contemporaneidade. A manifestação do

singular como multiplicidade afirma que só as singularidades são capazes de

movimentos criadores das diferenças e de romperem com a lógica redutora da

dominação capitalista. Este é o contexto de produção das novas subjetividades,

que devem ser pensadas a partir das noções de micropolítica e revolução

molecular, relacionadas com as concepções inovadoras da noção de poder. Isto é,

pensar as singularidades significa criar condições de possibilidades para a

construção das subjetividades coletivas, tomando como ponto de partida os

universos dos desejos. Se o poder emerge e sustenta-se por uma rede múltipla e

dispersa que abarca todos os estratos da vida, a luta política deve procurar também

múltiplos pontos de rupturas. O campo da política não pode mais ser reduzido à

luta de classes: uma “micropolítica do desejo” deve investir em uma

multiplicidade de objetivos ao alcance imediato dos mais diversos conjuntos

sociais. O acúmulo de lutas parciais pode ou não desencadear lutas coletivas

gerais.

É esta analítica das formações do desejo no campo social – a micropolítica

– que realiza o cruzamento entre o nível das diferenças sociais mais amplas – o

nível molar – com o nível molecular. As lutas sociais são, simultaneamente,

molares e moleculares, não existindo entre estes dois níveis uma distinção

opositiva. No nível molecular, o poder lança sua estratégia, faz agenciamentos e

modeliza o desejo; no nível molar, o que se tem é o efeito global do poder, a partir

dessa captura ao nível molecular:“A ordem molar corresponde às estratificações que delimitam objetos, sujeitos,

representações e seus sistemas de referência; a ordem molecular é a dos fluxos, dos

devires, das transições de fases, das intensidades” (Guattari e Rolnik, 1986:321).

A partir dos marcos teóricos de Foucault, Deleuze e Guattari, nossa análise

apresenta-se, portanto, em dois eixos: reconhece o processo de produção de

subjetividades através dos dispositivos de comunicação de massa como uma

modalidade de “indústria de base” do capitalismo mundial integrado e destaca os

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pontos de ruptura nos modos de subjetivação hegemônicos, linhas de fugas onde

pode emergir uma multiplicidade de singularizações.

É neste sentido que entendemos a noção de máquina desejante ou

produção desejante como multiplicidade pura que supera as categorias do múltiplo

e do Uno, rompendo com o conceito freudiano de desejo enquanto produção do

inconsciente e associado à representação:“O inconsciente funciona como uma usina e não como um teatro (questão de produção e

não de representação); o delírio, ou o romance, é histórico-mundial, e não familiar

(deliram-se as raças, as tribos, os continentes, as culturas, as posições sociais); há

exatamente uma história universal, mas é a da contingência (como os fluxos, que são o

objeto da História, passam por códigos primitivos, sobrecodificações despóticas e

decodificações capitalistas que tornam impossível uma conjunção de fluxos

independentes)” (Deleuze e Guattari, 1995:7).

O desejo é uma produção: tem a capacidade de produzir seus objetos e os

modos de subjetivação que lhes correspondem. São as “máquinas desejantes”,

forças que investem o mundo social, que percorrem os acontecimentos sociais e

produzem as subjetividades. As estratégias do poder passam pela captura dos

investimentos desejantes: é no nível do desejo que se dá o funcionamento do

poder, pois administrar o desejo é fundamental para um sistema totalizante. Por

ser uma força capaz de dar sentido ao mundo, capturar o desejo torna-se uma

condição indispensável para o funcionamento do poder da máquina capitalista. O

capital aparece como o pressuposto natural do trabalho, mas não é o produto do

trabalho; além de se opor às forças produtivas, o capital rebate-se sobre toda a

produção e constitui uma superfície onde se distribuem as forças e os agentes de

produção, que se tornam o seu poder:“O inconsciente, o desejo não tem complexos, ele produz. O quê? Sujeito? Algumas

vezes, em determinadas conjunturas, mas não necessariamente. O inconsciente maquínico

produz tudo: a terra, os homens sobre a terra, suas relações, territórios com múltiplos

devires possíveis” (Ewald, 1991:90).

No campo da política, as novas singularidades propostas pelos diversos

movimentos sociais emergem como resistência e ruptura em relação aos processos

de usinagem homogeneizante das subjetividades submetidas à ordem do capital.

As possibilidades de construção de outras subjetividades, que se produzam como

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ruptura na subjetividade dominante de "massa-consumidora", são múltiplas e

várias, não se limitando ao campo dos novos movimentos sociais.

Como um operador semiótico a serviço de formações sociais

determinadas, o capital assume a regulagem e a sobrecodificação das relações de

poder próprias às sociedades contemporâneas. Para manter sua reprodução, o

capitalismo é obrigado a construir e impor seus próprios modelos de desejo,

produzindo um “inconsciente maquínico” (Guattari, 1988) que se expande muito

além dos limites do inconsciente psicanalítico como dispositivo intrapsíquico. A

mídia, a publicidade e os equipamentos coletivos reportam-se incessantemente às

técnicas de recentralização do inconsciente no sujeito individuado, mas produzem,

de fato, um “inconsciente maquínico” que, além de abranger as individualidades,

também produz intensamente as forças sociais e as realidades históricas.

Mas o “inconsciente maquínico” também pode reterritorializar novas

formas de singularidades. São “fluxos esquizo" que abrem as possibilidades de

novos agenciamentos de enunciação: simultaneidade de sujeito, objeto e meio de

expressão, ruptura da tripartição entre o campo da realidade, o campo da

representação e o campo da subjetividade. Os agenciamentos coletivos de

enunciação produzem seus próprios meios de expressão, pois trabalham

simultaneamente os fluxos semióticos, os fluxos materiais e os fluxos sociais. Por

não coincidirem com as individualidades biológicas, os agenciamentos coletivos

de enunciação possuem um caráter diferente de uma enunciação individuada,

instância reificadora da significação dominante. A enunciação maquínica

circunscreve grupos-sujeitos que atravessam ordens diferentes, possibilitando a

proliferação de um conjunto de máquinas desejantes, produções singulares e

heterogêneas: os novos movimentos sociais. “Só um grupo-sujeito pode trabalhar

fluxos semióticos, quebrar as significações, abrir a linguagem para outros desejos

e forjar outras realidades" (Guattari, 1981:179).

A emergência das lutas pela afirmação das novas subjetividades e o fim

dos projetos totalizantes revolucionários são alguns dos sintomas da perda dos

pressupostos ético-políticos referenciais das democracias modernas. A

Contemporaneidade defronta-se com a construção do processo histórico, pois,

com o declínio dos ideais de “bem supremo” e de “ser supremo”, não há mais

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origem – passado – ou finalidade – futuro – que possam dar conta do tempo

presente, de responder às nossas questões do presente.

Conclusão

O processo de globalização veio consolidar o capitalismo mundial

integrado, que tende cada vez mais a descentrar seus focos de poder das estruturas

de produção de bens e de serviços para as estruturas produtoras de signos, de

sintaxe e de subjetividade, especialmente pelo controle que exerce sobre a mídia,

a publicidade e as sondagens de opinião. Na Contemporaneidade, o capitalismo

se sustenta sobre diversos instrumentos, agrupados principalmente em quatro

regimes semióticos: econômico, jurídico, técnico-científico e de subjetivação,

sendo estes centralizados nas máquinas midiáticas e os demais, em outras

máquinas, tais como aquelas relativas à arquitetura, ao urbanismo, aos

equipamentos coletivos.

A articulação ético-estético promovida pelo registro da ecologia do virtual,

que teve entre suas estratégias os jornais alternativos com linha editorial vinculada

a políticas do cotidiano, nos permite pensar as implicações de uma perspectiva

ecosófica sobre a concepção da subjetividade. Também possibilita colocar a

comunicação midiática como campo político hegemônico da Contemporaneidade,

por funcionar como máquina de produção de subjetividades moduladas pelo

capitalismo global. Uma das tarefas da ecologia do virtual consiste em fazer

atravessar a sociedade capitalista da era da mídia para uma era pós-mídia, na qual

os grupos-sujeito serão capazes de uma reapropriação da mídia para geri-la em um

processo de singularização. Outra tarefa é produzir linhas de rupturas no projeto

de uniformização midiática, reinventando a relação com o corpo, o tempo e os

espaços da vida cotidiana.

As problemáticas produzidas pelos novos movimentos sociais – dentre as

quais, a questão da mídia alternativa – resultam da ultrapassagem dos

antagonismos de classe do século XIX com seus campos homogêneos e

bipolarizados de subjetividade para o contexto contemporâneo de multiplicação

dos antagonismos, de rupturas, descentramentos e processos de singularização.

Coube às primeiras formas de sociedade industrial serializar a subjetividade das

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classes trabalhadoras. A solidez da consciência de classe do operariado

desmanchou-se no decorrer da segunda metade do século XX, quando a sedução

da máquina midiática diluiu as resistências aos valores unidimensionalizantes do

capital e produziu um difuso sentimento de pertinência social, que acabou

descontraindo as polarizações modernas. O capitalismo global só potencializa a

produção de subjetividades para serem colocadas a serviço da nova ordem social:

uma subjetividade serial para as classes assalariadas; uma outra subjetividade

correspondendo à massa de não-garantidos nos direitos sociais básicos; e uma

subjetividade de padrão elitista, às classes dirigentes.

A adoção de uma nova ética implica em distinguir os agregados

imaginários de massa dos agenciamentos coletivos de enunciação, opondo os

mecanismos de repetição vazia aos maquinismos vivos “autopoiéticos” (Varela,

1989). Discutir as relações entre comunicação midiática e crise global é fazer do

diagrama da imprensa alternativa uma “caixa de ferramentas” teóricas para pensar

questões contemporâneas. A perspectiva de uma ecologia do virtual engendra

novos universos de referência e novos territórios existenciais, diferentes da visão

reducionista correlativa ao primado da informação como trânsito incessante nos

sistemas midiáticos.

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