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860 RBSE Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 12, n. 36, Dez. 2013 Moraes MORAES, Carla Gisele Macedo S. M. Impressões da cidade moderna: a constelação de significados de Georg Simmel, en- tre a vida do espírito e a modernidade ininterrupta”. RBSE Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 12, n. 36, pp. 860-872, Dezembro de 2013. ISSN 1676-8965 ARTIGO http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Index.html Impressões da cidade moderna A constelação de significados de Georg Simmel, entre a vida do espírito e a modernidade ininterrupta Carla Gisele Macedo S. M. Moraes Recebido em: 09.10.2013 Aceito em: 30.10.2013 Resumo: Este ensaio discute a grande cidade na modernidade a partir dos ensaios de Georg Simmel “Roma. Uma análise estética” e “As grandes cidades e a vida do es- pírito”. Nestes escritos, Simmel contempla a cidade produzida pela modernidade com um misto de admiração e temor, experimentando, em sua observação subjetiva, uma constelação de sentidos e significados. As impressões sobre a cidade oscilam entre a “unidade do multiforme” da cidade antiga e o controle do “caos inextricável” da cidade moderna, revelando uma verdade multifacetada acerca da cidade europeia no final do século dezenove e início do século vinte. O aparente dualismo inicial ce- de lugar a uma compreensão da cidade não como espaço de antagonismo entre cida- de eterna e modernidade ininterrupta, mas como lugar por excelência das interações sociais e espelho de múltiplas possibilidades de desenvolvimento da vida do espírito. Palavras-chave: cidade antiga, cidade moderna, modernidade, vida do espírito, Ge- org Simmel * “Onde será que isso começa?” 1 Eis o primeiro verso da música O nome da cidade(1984), do cantor e compositor Caetano Veloso (1942- ), que fala sobre a cidade grande, o Rio de Janeiro da década de 1980, que tomo como mote para a incursão que pretendo fazer no tema da cidade mo- derna através da sociologia de Georg Simmel. A música revela a experiência de inserção na metró- pole, contemplada pelo recém-chegado numa atitude ambígua, irresoluta entre a estranheza da pai- sagem urbana e a admiração com “uma viagem que não cessa”. Georg Simmel (1858-1918), ensaísta, filósofo e sociólogo alemão, entre o final do século deze- nove e início do século vinte, já delineava uma abordagem da grande cidade moderna, espaço da economia monetária e do entendimento, que desbotava a “vida do espírito” estabel ecendo uma 1 Todos os versos de Caetano Veloso utilizados no decorrer do texto são da música “O nome da cidade”. Foi compos- ta para um espetáculo preparado por Maria Bethânia inspirado no livro “A hora da estrela”, de Clarice Lispector. A composição foi gravada por Maria Bethânia no álbum “A beira e o mar”, de 1984 e por Adriana Calcanhotto no álbum “Senhas”, lançado em 1992. Caetano em comentário sobre a letra, diz: “Tentei fazer uma canção de chegada ao Rio. Como sempre, não busquei tempo para retrabalhá-la bem. Entreguei achando-a insatisfatória. Depois, anos depois, ouvi Adriana Calcanhotto cantá-la e achei bonita. Na verdade fui tentar cantá-la eu próprio, em casa, e fiquei emocionado” (In: FERRAZ, 2003, p.56; grifo meu).

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RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 12, n. 36, Dez. 2013 Moraes

MORAES, Carla Gisele Macedo S. M. “Impressões da cidade

moderna: a constelação de significados de Georg Simmel, en-

tre a vida do espírito e a modernidade ininterrupta”. RBSE –

Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 12, n. 36, pp.

860-872, Dezembro de 2013. ISSN 1676-8965

ARTIGO

http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Index.html

Impressões da cidade moderna A constelação de significados de Georg Simmel, entre a vida do espírito

e a modernidade ininterrupta

Carla Gisele Macedo S. M. Moraes

Recebido em: 09.10.2013

Aceito em: 30.10.2013

Resumo: Este ensaio discute a grande cidade na modernidade a partir dos ensaios de

Georg Simmel “Roma. Uma análise estética” e “As grandes cidades e a vida do es-

pírito”. Nestes escritos, Simmel contempla a cidade produzida pela modernidade

com um misto de admiração e temor, experimentando, em sua observação subjetiva,

uma constelação de sentidos e significados. As impressões sobre a cidade oscilam

entre a “unidade do multiforme” da cidade antiga e o controle do “caos inextricável”

da cidade moderna, revelando uma verdade multifacetada acerca da cidade europeia

no final do século dezenove e início do século vinte. O aparente dualismo inicial ce-

de lugar a uma compreensão da cidade não como espaço de antagonismo entre cida-

de eterna e modernidade ininterrupta, mas como lugar por excelência das interações

sociais e espelho de múltiplas possibilidades de desenvolvimento da vida do espírito.

Palavras-chave: cidade antiga, cidade moderna, modernidade, vida do espírito, Ge-

org Simmel

*

“Onde será que isso começa?”1 Eis o primeiro verso da música “O nome da cidade” (1984), do cantor e compositor Caetano Veloso (1942- ), que fala sobre a cidade grande, o Rio de Janeiro da década de 1980, que tomo como mote para a incursão que pretendo fazer no tema da cidade mo-derna através da sociologia de Georg Simmel. A música revela a experiência de inserção na metró-pole, contemplada pelo recém-chegado numa atitude ambígua, irresoluta entre a estranheza da pai-sagem urbana e a admiração com “uma viagem que não cessa”.

Georg Simmel (1858-1918), ensaísta, filósofo e sociólogo alemão, entre o final do século deze-nove e início do século vinte, já delineava uma abordagem da grande cidade moderna, espaço da economia monetária e do entendimento, que desbotava a “vida do espírito” estabelecendo uma

1 Todos os versos de Caetano Veloso utilizados no decorrer do texto são da música “O nome da cidade”. Foi compos-

ta para um espetáculo preparado por Maria Bethânia inspirado no livro “A hora da estrela”, de Clarice Lispector. A

composição foi gravada por Maria Bethânia no álbum “A beira e o mar”, de 1984 e por Adriana Calcanhotto no

álbum “Senhas”, lançado em 1992. Caetano em comentário sobre a letra, diz: “Tentei fazer uma canção de chegada

ao Rio. Como sempre, não busquei tempo para retrabalhá-la bem. Entreguei achando-a insatisfatória. Depois, anos

depois, ouvi Adriana Calcanhotto cantá-la e achei bonita. Na verdade fui tentar cantá-la eu próprio, em casa, e fiquei

emocionado” (In: FERRAZ, 2003, p.56; grifo meu).

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nova relação do indivíduo com o espaço urbano em constante recriação. Na análise de Simmel, o indivíduo reage a essa cidade rasgada pelo progresso e objetivada pelo dinheiro com contemplação e reserva, admiração e temor, experimentando uma constelação de sentidos e significados.

Compreendendo a relevância da obra clássica de Georg Simmel para a Sociologia e a pertinência e atualidade do tema das metrópoles e suas implicações na vida social nos estudos de Sociologia Urbana mais de um século após os escritos simmelianos, proponho o exercício de análise da grande cidade na modernidade a partir de dois ensaios do autor: “Roma. Uma análise estética” e “As grandes cidades e a vida do espírito”.

As impressões do aventureiro do espírito nessas duas breves análises da realidade moderna nos ofe-recem uma abordagem sob múltiplas perspectivas, a partir das quais somos gradualmente conduzi-dos a uma nova interpretação, que converte o aparente dualismo inicial entre cidade antiga e cidade moderna numa realidade multifacetada, a partir da qual é possível compreender a cidade como lugar por excelência das interações sociais e espelho de múltiplas possibilidades de desenvolvimento da vida do espírito.

Um “aventureiro do espírito” entre duas cidades

Cheguei ao nome da cidade

Não a cidade mesma, espessa

Rio que não é rio: imagens

Essa cidade me atravessa

Caetano Veloso

Georg Simmel, no esforço de constituição de uma ciência da sociedade, procurou identificar em

seus estudos dos processos de sociação, o detalhe e a superfície das coisas, e nesses fragmentos da realidade identificou formas puras de sociabilidade, interações e exercitou a multiplicidade de dire-ções possíveis da abordagem sociológica. Segundo o autor, cada objeto possui uma “constelação” de sentidos e significados presumíveis a partir dos quais pode ser lido e compreendido. “Virando, rearranjando a constelação que trabalha, ele a mostra sob nova perspectiva, em variadas configura-ções” (Waizbort, 2000, p. 26).

Estudiosos que analisam a obra simmeliana, como Leopoldo Waizbort (2000) e Frédéric Van-denberghe (2005), observam que o autor desenvolve uma microssociologia, tomando como objetos de análise sociológica temas cotidianos. Simmel acredita que só se constrói algo a partir das diferen-ças (Simmel, 2006, p. 85) e dualismos, colocando os objetos de estudo em relação e em analogia, num princípio de “dialética sem síntese”. O autor exerce uma atitude espiritual em relação ao mun-do e à vida, compreendendo o filósofo como o aventureiro do espírito, que ousa, se arrisca, buscando desvendar uma verdade multifacetada. Segundo Waizbort (2000), “trabalhando sobre o objeto, é capaz de explorá-lo e expô-lo na sua diversidade e nas suas múltiplas facetas e nuances, sem que tudo isso convirja para uma apresentação acabada, conclusiva e final” (p. 26).

O foco da abordagem simmeliana está, portanto, no processo, no caminho percorrido para a compreensão do objeto e na multiplicidade de direções e de olhares possíveis, em detrimento do conteúdo e dos resultados (Waizbort, 2000, p. 11; 23). O olhar é focado no que é particular, pois o seu “panteísmo estético” admite que tudo está em relação com tudo, sendo possível compreender o todo a partir de qualquer fração da realidade (Vandenberghe, 2005, p. 16). Todo ponto de partida pode ser também ponto de chegada, numa circularidade própria do texto ensaístico, do “pensar com o lápis na mão” (Adorno apud Waizbort, 2000, p. 59).

Sua análise dos processos de sociação é móvel e perspectivista, pressupondo uma trajetória infi-nita de aproximação e distanciamento do sujeito em relação ao seu objeto de estudo. Seu método de compreensão da realidade é uma variação nietzschiana, que consiste em

sempre escavar as camadas mais profundas, em uma interpretação – ‘Sinngebung’, isto é, o processo de dar sentido – que, no entanto, nunca se cristaliza como uma verdade última e imutável, mas está sempre aberta ao movimento que é próprio da vida e do próprio proces-so de interpretação. (Waizbort, 2000, p. 29-30; grifo do autor)

Em seu livro “Questões fundamentais da Sociologia: indivíduo e sociedade” [1917]2, Simmel defende que a sociedade “não é, sobretudo, uma substância, algo que seja concreto para si mesmo. Ela é um

2 Publicado originalmente em 1917, com o título “Grundfragen der Soziologie: Individuum und Gesellschaft”. A

tradução brasileira utilizada neste artigo foi publicada pela editora Zahar em 2006.

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acontecer [...]” (2006, p. 18). O foco de sua análise está neste acontecer, no fato cotidiano, na inte-ração e nas formas de sociação dos indivíduos, seja pelo consenso ou pelo conflito, por laços dura-douros ou ocasionais (Simmel, 2006, p. 17). A sociologia simmeliana adquire uma feição peculiar por aceitar a realidade nas suas mais profundas discrepâncias. Não se trata de negar a contradição, mas admiti-la como um dado da realidade, algo tornado produtivo. Os conteúdos da experiência mais se completam do que se distinguem e por meio das oposições é possível chegar a uma verdade múltipla e relacional.

Esta lógica relacional permite compreender a realidade a partir de um processo de desconstru-ção, correlação e reconstrução pluriperspectivista (Vandenberghe, 2005, p. 18) produzindo o que pode ser definido como uma “sociologia interacionista das formas de associação” (p. 56). Para compreender a sociedade, Simmel promove analogias entre elementos e reconstrói sua análise sob nova perspectiva.

Nas analogias procura compor frequentemente “formas puras de sociabilidade” (Simmel, 2006, p. 77), que à primeira vista parecem refletir configurações antagônicas, irreconciliáveis, mas que na sua reconstrução analítica se revelam muitas vezes faces de um mesmo fenômeno social (Simmel, 2006, p. 34), sendo possível estabelecer entre estas formas relações até então impensáveis, inclusive de complementaridade e coexistência. Nesse tipo de abordagem situam-se, a título de exemplo, o avarento e o esbanjador, a cidade pequena e a grande cidade.

Procuro estabelecer neste ensaio mais uma relação possível, inicialmente antagônica, entre a ci-dade antiga e a cidade moderna, representadas alegoricamente por Roma, o arquétipo da cidade antiga e Berlim, a cidade grande experimentada por Simmel. Essa relação, se não está explícita nos ensaios simmelianos, pode ser desvendada, me parece, a partir da correlação entre os textos “Roma. Uma análise estética” e “As grandes cidades e a vida do espírito”.

Nestes dois ensaios, Simmel parece percorrer as cidades exercendo seu habitual experimento, ex-traindo de pontuais fragmentos da realidade, sua completude. Segundo o próprio Simmel, “[...] trata-se de descobrir os delicados fios, as relações mínimas entre os homens, cuja repetição contí-nua fundamenta e suporta todas aquelas grandes formações, tornadas objetivas e que apresentam uma história própria” (apud Waizbort, 2000, p. 95). A cidade é, portanto, alegoria da própria socie-dade (Fortuna, 2003, p. 106), estando sua essência nas formas de interação que os sujeitos nela, ou apesar dela, são capazes de produzir.

Simmel vislumbra a cidade moderna europeia da virada do século dezenove para o vinte sob en-foques distintos: um primeiro que a compreende como “unidade do multiforme”, resultante da junção casual, porém equilibrada, de elementos antigos e modernos (Simmel, 2003, p. 144; 116) e um segundo, que a percebe como espaço de “intensificação da vida nervosa”, em constante mu-dança (Simmel, 2005, p. 577). Mas, o que torna Roma e Berlim tão diferentes sob o olhar do autor? E por que razão a subjetividade do indivíduo é afetada de diferentes formas nessas duas realidades?

Cidade antiga, cidade eterna

[...] a ideia do curso histórico das coisas nunca desaparece em Roma

Georg Simmel

No ensaio “Roma. Uma análise estética”3, escrito em 1898, Simmel procura descrever a “dinâmica da vida romana”, buscando nos seus elementos constituintes, uma beleza estética inconfundível. Para o autor, a cidade é uma construção notável, onde todas as condições histórico-temporais se revelam numa junção casual, mas não desarmônica, de elementos antigos e modernos. Roma ofere-ce ao observador uma “imagem de conjunto”, onde cada componente está numa relação orgânica com os demais, ligado por uma força agregadora: Roma é a “unidade do multiforme”, revelada por cada um de seus elementos (Simmel, 2006, p. 111; 112; 114-115). Possui um atributo que é um privilégio: a perfeição a partir da junção de elementos que, isoladamente, são “indiferentes e alheios à beleza e que só juntos adquirem valor estético” (Simmel, 2003, p. 109).

3 O título original do ensaio, escrito em 1898, é “Rom. Eine ästhetische Analyse”. A tradução utilizada neste artigo,

em português de Portugal, foi publicada na Revista Crítica de Ciências Sociais, em 2003, a partir do texto original em

alemão publicado em: DAHME, Heinz-Jürgen; FRISBY, David P. (Org.). Georg Simmel, Aufsätze und

Abhandlungen 1894-1900. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992, p. 301-310.

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Simmel observa em Roma um ar próprio da “cidade antiga”, que para ele é uma das razões de sua unidade e beleza estética:

São quase só as cidades antigas, crescidas sem um plano premeditado, que oferecem um tal conteúdo à forma estética; aqui, formas que nasceram de finalidades humanas e que aparecem como simples materializações do espírito e da vontade representam pela sua conjugação um valor que está inteiramente para além destas intenções [...]. (2003, p. 109; grifos meus)

Simmel ressalta que existem parcelas da cidade moderna, mas minimiza sua interferência, de-monstrando sua predileção pelos setores antigos de Roma e indiferença em relação aos acréscimos recentes.

Posso aqui deixar inteiramente de lado as partes de Roma que são de uma modernidade i-ninterrupta e de uma não menos ininterrupta hediondez; por sorte, elas estão situadas de uma forma que leva a que, desde que haja algum cuidado, só relativamente pouco afectem o fo-rasteiro. A última vez que tinha estado em Roma era há mais de vinte anos e fui encontrá-la agora, no essencial, menos mudada do que correntemente se diz. (Simmel, 2003, p. 110; gri-fos meus)

Buscando avançar para além de certa visão nostálgica, veremos que Roma era resultado de in-tervenções urbanas desde o primeiro século antes da era cristã; portanto, uma “colagem” de tempos históricos. O primeiro regulamento da cidade data do ano 46 a.C., com diretrizes de normatização das alturas dos edifícios, largura de vias, pavimentação, obras públicas, limites da cidade, entre ou-tros. Após o incêndio de 64 d.C., Nero interveio radicalmente em Roma, organizando a reconstru-ção dos bairros destruídos com métodos racionais para atender a necessidades pragmáticas, que proporcionaram ao espaço público um aspecto diferenciado.

Figura 1 - Maquete representativa da área central da Roma Antiga no século IV d.C., época do Imperador Constantino. Fonte: Espaço Turismo [online]. Disponível em: <http://www.espacoturismo.com/blog/wp-content/gallery/as-5-melhores-cidades-em-miniatura-do-mundo/as-5-melhores-cidades-em-miniatura-do-mundo-2.jpg>. Acesso em 05 ago. 2013.

No Renascimento se processaram mudanças ainda mais significativas, relacionadas ao alinha-

mento e ordenamento das construções e à ideia de representação em perspectiva, que auxiliou na construção de um “cenário urbano”. O plano urbanístico do Papa Sixto V, executado entre 1585 e 1590, construiu avenidas majestosas ampliando a ocupação de zonas até então desabitadas (Gonsa-les, 2005). No século dezenove a cidade passou por novas transformações, seguindo o modelo da

Paris de Haussmann4.

4 Georges-Eugène Haussmann (1809-1891), conhecido como Barão Haussmann, foi prefeito do Sena e administrou

Paris entre 1853 e 1870, período em que elaborou uma reforma urbana que tinha como objetivo principal a racionali-

zação do traçado urbano parisiense para facilitar a passagem dos militares no governo de Napoleão III. Significativa

parcela da cidade foi alterada pelo plano, com a demolição de milhares de edifícios, a fim de traçar sobre o antigo

tecido urbano, orgânico e irregular, uma malha urbana racional, com doze vias radiais (os boulevards) convergindo

para um centro, a Place Charles de Gaulle, constituída por um grande carrefour (rotatória) onde se localiza o Arco

do Triunfo. A também cidade foi envolta por um anel viário. Outros objetivos da reforma, além da questão militar,

foram: a melhoria da circulação com o alargamento e a abertura de vias, o acesso rápido aos diversos setores urbanos,

inclusive os bairros mais distantes, a melhoria das condições de salubridade e a clara intenção de trazer à cidade um

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Figura 2 - Planta baixa do planejamento urbano de Roma em dois períodos distintos: no governo de Sérvio Túlio (laranja escuro) e no império de Aureliano (laranja claro). Fonte: Cosmovisions [online]. Disponível em: <http://www.cosmovisions.com/cartes/VL/020a.htm>. Acesso em 05 ago. 2013.

No entanto, todas essas transformações não impediram Simmel de ter, na contemplação de

Roma, uma impressão positiva da conjunção entre natureza e cultura.

Roma produz o efeito de uma obra de arte da mais elevada ordem. Isto começa com a configuração das suas ruas, na forma como esta é determinada pelo acidentado do terreno. Quase por todo o lado os edifícios situam-se numa relação recíproca entre cima e baixo. Assim, refe-rem-se uns aos outros de modo muito mais significativo do que se estivessem situados nu-ma superfície plana, simplesmente uns ao lado dos outros. Talvez seja este o encanto elementar de uma paisagem montanhosa: tudo o que está num plano superior só é possível como tal através do que se situa num plano inferior, e inversamente; assim, as partes do todo ganham uma relação incomparavelmente estreita, a sua unidade, que aqui como em geral assenta sim-plesmente na relação recíproca entre as partes, torna-se directamente visível. (Simmel, 2003, p. 111; grifos meus)

Esta perspectiva revela uma cidade humanizada, pois “o ensaio simmeliano faz as coisas vive-rem (a moldura, a estátua etc.): pois ele as vê em movimento. Mas onde o ensaio haveria de encon-trar forças para vivificar os objetos, senão no sujeito?” (Fortuna, 2003, p. 51)

É na percepção da cidade pelo indivíduo que está enraizado o ensaio sobre Roma. Para Simmel, é “como se todas as dimensões dos conteúdos espirituais atingissem aqui ao mesmo tempo o seu máximo” (2003, p. 116), permitindo ao indivíduo se encontrar. Essa cidade intemporal é o lugar de conforto, harmonia com a totalidade do indivíduo, com a vida do espírito.

Assim, Roma indica-nos verdadeiramente o lugar que nos pertence, ao passo que o lugar que estamos habituados a ocupar interiormente tantas vezes não é de todo nosso, mas o da nossa classe, dos nossos destinos unilaterais, dos nossos preconceitos, das nossas ilusões egoístas. (Simmel, 2003, p.113)

Essa unidade de Roma e esse sentido de equilíbrio só são possíveis a partir do indivíduo, da a-ção, da percepção e interação dele com a cidade, seu objeto de contemplação. Simmel confere um lugar especial ao “ser humano individual”, ele mesmo, desvencilhado do grupo, da comunidade e da sociedade de forma geral.

Em nenhum lugar a plenitude das coisas permite que esta ação especificamente humana e demonstre de modo tão soberano como em Roma, em nenhum lugar a alma, ao mesmo

ar de modernidade e fortalecer os efeitos cenográficos característicos do Renascimento e dos espaços urbanos barro-

cos, como a perspectiva infinita e a monumentalidade. A intervenção envolveu, além do rasgo de largas avenidas

sobre a antiga cidade, a arborização das vias, a implantação de sistemas de iluminação, abastecimento d’água e esgo-

tamento sanitário, criação de praças e de normativas de regulação dos parâmetros da construção, alinhamento, dimen-

sões do lote e dos quarteirões. Pela grandeza e agressividade da intervenção, o Barão Haussmann ficou conhecido

como o “artista da destruição”. O modelo de intervenção parisiense serviu de inspiração para muitas intervenções

urbanas que se sucederam em cidade europeias, tendo sido difundido também para países da América Latina, inclusi-

ve o Brasil, pelos séculos dezenove e vinte (Benevolo, 2012).

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tempo em que absorve tantas coisas, tem, ao mesmo tempo, que agir tanto para formar a imagem. (Simmel, 2003, p.116)

Figura 3 - Piazza Trajano al Vitoriano (1900). Vários edifícios desta praça foram demolidos no século vinte. Fonte: Acervo de Alvaro de Alvariis [online]. Disponível em: <http:// www.flickr.com/photos/dealvariis/4727289358/>. Acesso em 05 ago. 2013.

Em alguns aspectos observados por Simmel, Roma, apesar de sua dimensão territorial, parece

representar o modelo da pequena cidade, com o ritmo mais lento e passível de apreensão, com as relações pautadas pelo sentimento e pelo entusiasmo, com a interação e as diversas maneiras de sentir. Ainda há espaço para a excitação e para a experimentação, para as “comoções” e o “revolver interior” próprios do ânimo conservador da cidadela medieval ou da vida no campo (Simmel, 2005, p. 578). Roma, que também é moderna, permanece sendo – ainda – o espaço da contemplação, da unidade dos diferentes: o lugar da pluralidade dos efeitos, princípio vital de sua singularidade estéti-ca.

É que, justamente, esta pluralidade dos efeitos de Roma e das suas interpretações corres-ponde ela própria ao princípio vital de que me parece brotar a sua singularidade estética. Poder ser sentida ainda de tantas outras maneiras e a maneira como é sentida poder ser in-terpretada ainda de tantas outras maneiras, ao mesmo tempo que continua, em última análi-se, a ser sempre uma Roma que é um foco de raios tão divergentes: é esse o auge supremo da sua grandeza estética, que distende todas as oposições até à máxima amplitude, para as conciliar na sua unidade com uma energia tanto mais dominadora. (p. 116; grifos do autor)

Figura 4 - Piazza Venezia (1900), vendo-se carroças convivendo com os trilhos do bonde. Fonte: Acervo de Alvaro de Alvariis [online]. Disponível em: <http:// www.flickr.com/photos/dealvariis/4511226611/>. Acesso em 05 ago. 2013.

O que impede Simmel de distinguir, na cidade eterna, uma estética da modernidade? Talvez a preocupação central não seja a cidade, mas a vida na cidade. A vida do espírito e as formas de estar no mundo e perceber a cidade de Roma não foram afetadas pelas modificações agressivas da moderni-dade. O “forasteiro” que observa a Roma do final do século dezenove não a interpreta como cená-rio de ressignificação dos vínculos sociais. Enxerga harmonia na organização desorganizada dos edifícios e beleza na tristeza das ruínas, remanescentes em meio à “modernidade ininterrupta”. Ro-ma é o lugar eterno, que consegue “reconciliar as tensões que dilaceram o mundo, sejam elas as oposições entre espírito e natureza ou entre o presente e o passado” (Fortuna, 2003, p.104).

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Grande cidade, modernidade ininterrupta

A unidade da época feudal foi destruída pela modernidade

Georg Simmel

Georg Simmel escreveu em 1903 o texto “As grandes cidades e a vida do espírito”5, resultante de uma conferência proferida durante a Exposição das Cidades, em Dresden, Alemanha, em que procurou traduzir como a modernidade, a industrialização e os processos decorrentes da economia monetária influenciaram a subjetividade dos indivíduos, modificando de maneira fundamental os processos de socialização. O autor ressalta que os problemas da modernidade advêm da luta travada pelo indiví-duo para não ser sobrepujado pela coletividade, ao que parece, numa inútil tentativa de fazer sobre-viver sua existência (Simmel, 2005, p. 577).

Figura 5 - Mapa de Berlim, vendo-se os bairros de expansão na periferia (1895). Fonte: Disponí-vel em: <http://www.etsy.com/listing/antique-map-of-berlin-and-environs>. Acesso em 05 ago. 2013.

A cidade grande percebida por Simmel reflete uma racionalidade centrada na forma, mais do que no indivíduo, no objeto, mais do que no sujeito. É uma cidade informada por processos de individualização e intelectualização, pela atrofia da cultura individual e hipertrofia da cultura objeti-va e pela mais elevada divisão social do trabalho. Logo percebemos que a centralidade da aborda-gem de Simmel não está na cidade, mas no indivíduo que a experimenta. Se para Simmel, a socieda-de “é um acontecer”, a vida na grande cidade é a interação dos indivíduos, experimentando uma nova condição urbana moderna. O homem habituado a viver numa cidade medieval fortificada se vê então imerso numa dinâmica alheia à sua vida anterior, uma “intensificação da vida nervosa” que aumenta as individualidades.

Berlim6 representa, para Simmel, o arquétipo dessa grande cidade moderna europeia de ritmo frenético e crescimento desenfreado.

Entre 1858, ano de nascimento deste último, e 1903, ano de publicação do dito ensaio, Ber-lim se transforma de capital da Prússia, com 400 mil habitantes, muita pobreza e alguma mecanização, em capital política, econômica e cultural do império alemão, com três mi-lhões de habitantes, industrialização, comércio e exposições mundiais, uma linha de metrô recém-inaugurada, iluminação pública, bondes elétricos e automóveis, museus e cinemas,

5O título original do ensaio, escrito em 1903, é “Die Großstädte und das Geistesleben”. É também conhecido em

português com o título “A metrópole e a vida mental” (tradução a partir do título em inglês “The Metropolis and

Mental Life”). A tradução utilizada neste artigo foi publicada na Revista Mana, em 2005. 6Este ensaio adota Berlim como exemplo-tipo da grande cidade moderna em virtude de ser a cidade onde Georg

Simmel nasceu e viveu, além de, no texto “As grandes cidades e a vida do espírito”, o autor se referir com maior

frequência aos exemplos da capital alemã, embora também faça breves referências a Londres e Viena.

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jornais e revistas ilustradas, lojas de departamento e cafés, e um milhão de Mietskasernen, is-to é, precárias moradias de aluguel de um ou dois cômodos. (Kapp, 2011, p. 440; grifo da autora)

O indivíduo surpreendido por esta cidade nova, governada pela economia monetária, à qual são transferidos os atributos do dinheiro – falta de cor e impessoalidade – tende a se abrigar em dois processos: a individuação e a intelectualização. Surge a reserva frente aos outros indivíduos e a ati-tude blasé. O tempo desta nova cidade é outro, ditado pelo tic-tac dos relógios, pelos horários de entrada e saída nas fábricas, pelo trajeto dos bondes elétricos. A aparência é sempre renovada pela transformação da paisagem urbana, multiplicação de chaminés das fábricas, vilas operárias e corti-ços, construção de novos cafés, teatros, estações e casas de comércio.

Figura 6 - Centro de Berlim, vendo-se a movimentação nas ruas e grandes praças, hotéis e cafés (cerca de 1900). Fonte: Disponível em: <http://www.flickr.com/photos/trialsanderrors>. Aces-so em 05 ago. 2013.

Também as relações se modificam. Não há mais lugar para a individualidade dos fenômenos, apenas para a mais pura objetividade no tratamento de homens e coisas, de homens como coisas. As relações de entendimento contam os homens como números. Segundo Simmel, “o espírito moder-no tornou-se mais e mais um espírito contábil” (2005, p. 580).

Em cidades como Berlim e Paris, a guerra foi uma das grandes responsáveis pelas transforma-ções urbanas. A passagem da cidade medieval para a cidade moderna trouxe consigo uma “releitu-ra” da cidadela fortificada, adequada às novas exigências militares. Das “distâncias que se cobrem a pé” ao “crescente desejo de ganhar o espaço e se fazer sentir do outro lado do mundo”. Das “pers-pectivas fechadas” às “avenidas por onde podia marchar um exército vitorioso com o máximo efei-to sobre o espectador” (Mumford, 1998, p. 392; 394).

A grande cidade vivida por Simmel tornou-se o solo fértil para a interação entre a constituição

intelectualista e a economia monetária. No ensaio intitulado “O dinheiro na cultura moderna”7, escrito em 1896, Simmel ressalta que “a época moderna conseguiu separar e autonomizar o sujeito e o objeto” pela economia do dinheiro, que passou a ser o fio condutor para os conteúdos de vida (Simmel, 1998, p. 25). Todos os valores qualitativos se reduziram a valores quantitativos, as relações se modificaram, as distâncias se multiplicaram, o núcleo das coisas foi corroído pela economia do dinheiro.

7 O ensaio “O dinheiro na cultura moderna” foi escrito por Georg Simmel em 1896. A tradução consultada está

incluída na obra “Simmel e a modernidade” (organização de Jessé Souza e Berthold Öelze), numa edição publicada

pela Editora da UnB em 1998.

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Figura 7 - A “vida nervosa” numa área central movimentada de Berlim (cerca de 1900). Fonte: Bildarchiv Preußischer Kulturbesitz [online]. Disponível em: <http://www.germanhistorydocs. ghidc.org/sub_image.cfm?image_id=2170>. Acesso em 05 ago. 2013.

A grande cidade, movimentada pelo dinheiro, impôs o seu ritmo, sobrepujou o homem, ampli-ou distâncias. Os aspectos da metrópole extinguiram os traços essenciais e os impulsos instintivos que definiam a forma de vida a partir de si, não deixando espaço para a atitude espontânea, o im-proviso, a cordialidade ou a naturalidade das relações. Na cidade da modernidade existe uma técnica, externa ao indivíduo, que se coloca como elemento de mediação das relações sociais.

[...] mediante a acumulação de tantos homens, com interesses tão diferenciados, suas rela-ções a atividades engendram um organismo tão complexo que, sem a mais exata pontuali-dade nas promessas e realizações, o todo se esfacelaria em um caos inextricável. [...] Assim, a técnica da vida na cidade grande não é concebível sem que todas as atividades e relações mútuas tenham sido ordenadas em um esquema temporal fixo e supra-objetivo. (Simmel, 2005, p. 580; grifo meu)

A atitude blasé, revelada na incapacidade de reagir a novos estímulos com uma energia adequada, é um dos fenômenos anímicos observados no indivíduo que habita essa cidade. Reflete os traços do dinheiro, com sua indiferença e ausência de cor. O que pode ser interpretado inicialmente como reserva, desconfiança e indiferença, pode se revelar como aversão, repulsa, e se levado às últimas consequências, se converter em ódio e luta (Simmel, 2005, p. 583). Esse comportamento do indiví-duo traduz uma cidade impessoal, indiferente, modificada a cada dia e desprendida de referências ao passado ou à sua natureza estética anterior.

Figura 8 - Berlim por volta de 1900, vendo-se a grande interferência do transporte elétrico na paisagem urbana. Fonte: Disponível em: <http://www.keirinberlin.de/?p=380>. Acesso em 05 ago. 2013.

O indivíduo é, para Simmel, multifacetado e sua atitude diante do mundo e desta cidade grande lhe permite uma gradação de simpatias, indiferenças e aversões, que se desdobram ora em compor-tamentos efêmeros, ora em interações duradouras. A atitude de antipatia é uma forma de proteção do indivíduo, fruto da necessidade de se adaptar à nova realidade da vida espiritual. O caráter blasé provoca processos de dissociação, que para Simmel são também formas de socialização, assim co-mo o conflito e a competição, o diálogo e a separação, defendidos por Simmel em outros ensaios como formas de interação essenciais para a vida em sociedade.

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Na grande cidade o indivíduo é levado a círculos sociais cuja unidade interior é mais frouxa em relação a círculos familiares ou grupos coesos característicos das pequenas cidades e da vida no campo, nos quais o controle social é exercido de forma mais efetiva. O indivíduo adquire maior individuação e liberdade de movimento; contudo, “em nenhum lugar alguém se sente tão solitário e abandonado como precisamente na multidão da cidade grande” (Simmel, 2005, p. 585).

Ao tempo em que encontra um espaço de mobilidade maior, o sujeito também se depara com um retrocesso em relação a tudo que é relacionado à espiritualidade, delicadeza e idealismo. Ao passo que se diferencia, esse indivíduo também se homogeneíza como um entre tantos dessa cidade na qual a cultura cresce além de tudo que é individual. E diante desse contexto no qual é apenas mais um na multidão, sente a necessidade de se diferenciar, cedendo espaço para uma atitude ex-cêntrica.

Se a cidade é, para Simmel, uma analogia da sociedade, a estética da grande cidade é a estética das interações sociais que nela os sujeitos são capazes de promover (Fortuna, 2003, p. 106). Berlim é, para Simmel, a representação deste indivíduo que se esforça para preservar sua existência anímica em meio ao ritmo frenético ditado pela modernidade.

Uma constelação de significados

Será que tudo me interessa?

Cada coisa é demais e tantas

Quais eram minhas esperanças?

O que é ameaça e o que é promessa?

Caetano Veloso

Retomando o mote que nos conduziu ao tema das cidades, resgatamos as impressões de alguém chegado à grande cidade, imbuído da vivência de um pequeno centro urbano. “O nome da cidade” exprime percepções, o espírito inquieto com um espaço sem começo nem fim:

Onde será que isso começa?

A correnteza sem paragem

O viajar de uma viagem

A outra viagem que não cessa

De forma análoga a Simmel, mais do que descrever a cidade, o compositor exprime seu arreba-tamento com essa cidade e suas primeiras impressões acerca da nova realidade, percebendo o que ela lhe informa num primeiro olhar. Uma cidade impossível de ser decifrada imediatamente, mas apenas aos poucos, onde “cada coisa é demais e tantas”! São sensações acerca dos transeuntes, sur-presas e aspirações interiores, admiração com códigos e imagens ainda incompreensíveis para quem chega da cidade pequena.

Ruas voando sobre ruas

Letras demais, tudo mentindo

O Redentor, que horror! Que lindo!

Meninos maus, mulheres nuas

O excesso de informações nos outdoors, a desconfiança frente às promessas dos anúncios, a i-mensidão de concreto e a forma como natureza e cultura se conformam na imagem ao mesmo tempo linda e apavorante do Cristo Redentor: todos esses eventos se cristalizam na alma do poeta e se tornam canção, revelando um retrato do contraditório desta passagem de uma à outra cidade.

Nos dois breves, porém densos ensaios sobre a cidade, Simmel nos fala de admiração, torpor, surpresa e apatia. Como nos lembra Vandenberghe (2005), “repletos de sutilezas dialéticas e de deslizamentos analógicos, os textos de nosso filósofo não são isentos de contradições, ambiguida-des e confusões” (p. 58). Em Simmel, um mesmo fenômeno social pode ser vislumbrado sob olha-res distintos. Em Roma, a sobreposição de tempos históricos causa surpresa e contemplação. Em Berlim, a mesma sobreposição causa individuação e apatia.

Talvez por isso mesmo, a escrita de Simmel nos permita, no pensamento andando, nas ideias se enca-deando à medida que escreve, acompanhar a contradição da experiência sensorial do indivíduo influ-enciado pelas cidades europeias na modernidade. Na circularidade do pensamento simmeliano, somos levados do indivíduo à cidade e, no movimento contrário, da cidade ao indivíduo. Acompa-nhamos como o indivíduo percebe a cidade, como é por ela afetado e como responde aos impulsos externos, numa atitude ora contemplativa, ora blasé. Simmel, assim como o poeta da cidade con-

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temporânea, também realiza uma passagem de uma à outra cidade, reagindo por meio de seus conte-údos espirituais de forma distinta.

Nas duas cidades vivenciadas por ele, a antiga e a moderna, o lugar do indivíduo é bem demar-cado. Em nenhuma delas a sua individualidade é esfacelada, perdida ou desvirtuada. Pelo contrário, este indivíduo se fortalece, se intelectualiza, se fecha numa atitude nova, de proteção contra a exter-nalidade ou, pelo contrário, de conciliação com ela. Waizbort (2000) nos lembra que “Simmel traba-lha com um conceito de indivíduo extremamente forte: ele não se dissolve no social, senão que permanece sempre senhor de si, em alerta, capaz de se mover por toda a parte e segundo as neces-sidades” (p. 25).

Nesses ensaios, os conteúdos individuais e supraindividuais se confundem e se espelham, mas sem se destituírem cada um de sua unidade própria. O indivíduo resiste, nas duas situações, a “ser nivelado e consumido por um mecanismo técnico-social” (SIMMEL, 2005, p.577). Em Roma, há resistência em reconhecer a contradição e os traços da modernidade. Em Berlim, o indivíduo pro-cura subsistir à corrosão das coisas pela economia monetária e preservar seus conteúdos subjetivos.

Devido ao panteísmo estético de Simmel, é possível visitar seus escritos buscando no particular a compreensão da totalidade. Segundo Fortuna (2003), no olhar simmeliano, “a metrópole, na sua plenitude, constitui-se em categoria alegórica da sociedade mais ampla” (p. 102), na qual é possível compreender a vida do espírito sendo transformada. Desta forma, num e noutro caso, o enfoque, em verdade, está na experiência sensorial do indivíduo frente à paisagem citadina.

Então, Simmel não descreve cidades, mas impressões de cidades, que revelam mudanças nas inte-rações, percepções do intercâmbio natureza-cultura e da relação do sujeito com os objetos e com ou-tros sujeitos e uma adaptação aos novos paradigmas nos processos de sociação. Simmel desvenda atitu-des, comportamentos na saída à rua ou nas relações de compra e venda. A cidade, ela mesma, fun-ciona mais como cenário das práticas e como arena da experiência onde a ação e a interação acon-tecem e menos como um fim em si mesmo.

A cidade é produzida pelo sujeito, pois ela só “é” a partir da percepção de um outro. Simmel des-creve uma dentre tantas experiências possíveis de imersão do indivíduo na cidade.

Roma não teria toda a sua grandeza se a sua fruição apenas admitisse uma interpretação, se ela não se assemelhasse à própria natureza, que fala para cada um na sua própria língua e permite a cada um fruí-la e entendê-la de acordo com o seu coração. (Simmel, 2003, p. 116; grifos do autor)

Mas, por outro lado, embora a cidade não seja o objeto central da análise simmeliana nos dois ensaios visitados, por ser espelho da sociedade adquire traços subjetivos que a traduzem e revelam. A cidade joga com as formas da vida do espírito, pois é humanizada, tornada um elemento de soci-abilidade. A urbe se reflete no indivíduo; desta maneira, o colorido de Roma engendra o encontro consigo mesmo e a falta de cor de Berlim provoca a atitude blasé.

Em 1898, quando Simmel escreveu o ensaio sobre Roma, ela era já uma metrópole, embora para o autor sobressaísse a cidade antiga, imersa e contida na cidade moderna, mas possível de ser des-cortinada, conhecida e revisitada. Berlim, por sua vez, era arena da mudança frenética da moderni-dade, com o alargamento de avenidas, ocupação das periferias e reconfiguração urbana. Em Roma, a organicidade presente na relação entre os elementos antigos e modernos; em Berlim, o governo do tempo sobre a vida do espírito. A cidade europeia da modernidade parece a Simmel essa múlti-pla e diversificada realidade, ao mesmo tempo, conciliatória e ambígua.

Talvez Simmel não tenha conseguido enxergar em Berlim a harmonia encontrada na cidade de Roma justamente porque nela faltava o caráter “intemporal”. Na cidade moderna e modernizada, as impressões momentâneas e não duradouras, a impossibilidade de absorver todas as mudanças com a velocidade necessária e a ruptura na forma das interações sociais impossibilitam o sujeito de se reconhecer e se encontrar, como na cidade eterna.

Ocorre que a cidade de Roma era então a estratificação de diversos tempos, tendo sido arena de remodelações urbanas, planos urbanísticos, demolições, novas construções, adequação do espaço público às novas necessidades de circulação, embelezamento e saneamento, tão em voga nos países europeus na segunda metade do século dezenove, inspiradas no modelo haussmmaniano de Paris. Roma era uma cidade modernizada, de espírito moderno, na qual um certo ar atemporal, eterno, estava, de fato, se esvaindo, assim como arruinados estavam grande parte de seus templos antigos, soterrados pela modernidade. Eis um contraste com a atemporalidade experimentada por Simmel

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nos seus componentes mais perenes. Talvez a força simbólica de Roma tenha permitido que a legi-bilidade do observador nostálgico não tenha sido afetada, mesmo frente às mudanças da moderni-dade.

Já em Berlim, o grande crescimento econômico e industrial pareceu estremecer a percepção do transeunte, constrangido nas interações pessoais mais corriqueiras da vida citadina. Onde se escon-dia a Roma moderna, que não se revelou agressiva e insuportável ao nosso forasteiro? E, por outro lado, em que recantos se preservavam os traços mais tradicionais da Berlim que Simmel conhecera na infância e vira se modificar tão abruptamente ao longo das últimas décadas?

A percepção de Simmel não se fecha no dualismo cidade antiga versus cidade moderna. Roma e Berlim contêm elementos da cidade antiga e da aparência moderna. Na constelação de sentidos simmeliana, a percepção descrita é uma entre tantas possíveis e, nesse exercício, na aventura do espírito a oposição pode ser também integração.

A impressão acerca da cidade é pontual, como um instantâneo que retrata um cenário específico num momento específico, um excerto espaço-temporal, mas que pode se desdobrar, se confundir e se refazer em outras impressões e relações dos indivíduos entre si e dos indivíduos com a cidade, pois a cidade e a sociedade são, para Simmel, puro movimento. O autor nos esclarece que, sob alguns ângulos, o forasteiro poderia contemplar Roma “no essencial” sem as interferências da mo-dernidade. Da mesma maneira imagino que seria possível, para Simmel, descortinar, na cidade mo-derna as suas várias faces, da hedionda à cosmopolita, da individual à libertária. Bastaria estabelecer um novo foco, redirecionar a lente da observação sociológica, reinterpretar a partir de um novo ponto a constelação de significados.

No ensaio sobre as grandes cidades, Simmel conclui dizendo que não cabe o julgamento dessas novas formas urbanas, pois nelas distingue um caráter funcionalista e reconhece o seu lugar irrever-sível de protagonismo na modernidade. A cidade é um lugar ao mesmo tempo de conflito e de oportunidade. A percepção de Simmel é, portanto, múltipla e não definitiva. Essas cidades somente se mostram e se fazem interpretar a partir dos indivíduos, que a elas conferem sentidos e significa-dos. Entre a eternidade de Roma e possibilidade do caos inextricável de Berlim, Londres ou Viena, está o indivíduo, buscando sobreviver à quantificação da vida e percebendo nessas cidades, a po-tência de realização de uma série de eventos, num espaço “prenhe de significações ilimitadas, no desenvolvimento da existência anímica” (Simmel, 2005, p. 591).

Simmel está, portanto, entre dois mundos, da mesma forma que o avarento e o esbanjador po-dem estar na mesma pessoa e que na coqueteria, espaço da conquista amorosa, se pode ter simulta-neamente uma atitude afirmativa e negativa, sem que o indivíduo necessariamente precise se definir.

Na sociologia simmeliana, as formas são tornadas sociais pelos processos de interação e ganham uma dinâmica própria na medida em que se autonomizam. As cidades descritas por Simmel nada mais são do que formas sociais puras – a cidade antiga e a cidade moderna – que resultaram dos processos de interação, e, portanto, refletem os indivíduos que as contemplam. Mas essas formas são duas faces de um mesmo fenômeno social, a modernidade. Nada impede que se encontre em Roma uma cidade moderna, escondida entre as montanhas, e em Berlim uma cidadela medieval em algum lugar recôndito, preservada do caráter impessoal da modernidade.

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Abstract: This paper debates modern metropolis by Georg Simmel’s perspective in

essays “Rome. An aesthetic analysis” and “The Metropolis and Mental Life”. In the-

se writings, Simmel contemplates the city produced by modernity with a fusion of

veneration and fear, experiencing in their subjective observation, a constellation of

meanings and senses. The impressions of the city oscillate between “unity of

multiforme” in old city and control the “inextricable chaos” of modern city, reveal-

ing a truth about the multifaceted European city in late nineteenth century and be-

ginning of the twentieth. The apparent initial dualism that saw the city as space of

permanent antagonism between eternal city and uninterrupted modernity, gives way

to an understanding of this metropolis as the place for excellence of social interac-

tions and mirror for multiple possibilities of development of mental life. Keywords:

old city, metropolis, modernity, mental life, Georg Simmel

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