Incesto não é penalizado pela lei em Portugal · "Nos casais sem laços de consanguinidade e sem...

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Incesto não é penalizado pela lei em Portugal E o último tabu, mas a legislação portuguesa é omissa quanto à prática do incesto entre adultos e com consentimento mútuo PlB/19

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Incesto não é

penalizado pela lei

em Portugal

E o último tabu, mas a

legislação portuguesa éomissa quanto à prática doincesto entre adultos e comconsentimento mútuo PlB/19

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Lei portuguesa não penalizaamor entre irmãosPatrick e Susan andaram anos a reivindicaro direito a viver como uma família normal.Daniel e Rosa conseguiram que os seus

nomes aparecessem no BI dos filhos. E a leiportuguesa? O que diz sobre o incesto?

RelaçõesNatãlia FariaÉ o último tabu o incesto. Mas con-tinua a ser quebrado por casos deirmãos, e não só, que se apaixoname recusam que a consanguinidadelhes trave o passo. Em Portugal, a leinada diz sobre relações incestuosashavidas entre adultos e com consen-timento de ambos. Significa isto que,excluindo naturalmente os casos deabuso, o incesto não é crime.

"Vigora a ideia de que nenhumcomportamento sexual entre adul-tos, em privado e com consentimen-to de ambos, pode ser tido como cri-me. Talvez se tenha entendido que acensura social e moral são suficientes

para travar esse comportamento",admite Eliana Gersão, especialistaem Direito da Família.

Em termos legais, Portugal não só

não penaliza o incesto consentidoentre pessoas adultas, como permi-te que uma criança nascida dessa

relação seja registada em nome deambos os pais, mesmo que o paiseja também avô ou tio da criança.Em Espanha isso não é possível. Ounão era. Em Novembro de 2010, os

irmãos Daniel e Rosa conseguiramfinalmente que o seu nome figurasseno registo de nascimento dos filhos.Até lá, e no que à lei dizia respeito,Daniel não passava de um tio.

A lei portuguesa mostra-se assimbastante menos conservadora do

que a vigente em vários países eu-

ropeus. Tivessem os alemães Patrick

Stuebing e Susan Karolewski nascido

portugueses e não teriam precisadode guerrear durante tantos anos para

escapar à Justiça. E, seguramente,Patrick não estaria, como está, con-denado a 14 meses de prisão. A pe-na, ditada por um tribunal alemão,foi confirmada há três semanas pe-lo Tribunal Europeu dos Direitos doHomem.

No recurso que apresentaram, os

irmãos alegaram que o seu amor na-da tem de "anormal" e reivindicaramo direito a viver juntos e a criar os

seus quatro filhos sem serem presos.Não é uma história ao género de Os

Maias, de Eça. Os jornais contam

que Patrick Stuebing foi adoptadoaos quatro anos. Tinha 23 quando,em 2000, lhe morreu a mãe adoptivae ele se aventurou a conhecer a mãebiológica. As relações sexuais coma irmã, Susan, então com 16 anos,terão começado um mês depois dese terem conhecido.

"Não fizemos nada de mal. Somosdois amantes normais que queremter uma família", clamam desde en-tão. Mas ambos se sabiam irmãosquando tiveram a primeira relaçãosexual. E, ao primeiro filho, nascidoem 2001, seguiram-se mais três fi-

lhos, dois dos quais com deficiência,que lhes foram sendo sucessivamen-te retirados.

O recurso ao Tribunal Europeudos Direitos do Homem visava im-pedir que Patrick, que já esteve de-tido duas vezes, enfrentasse novapena de prisão - a Susan, que sofrede uma perturbação mental que atorna inimputável, não foi aplicadaqualquer pena. Ao mesmo tempo

que negou o recurso, o TribunalEuropeu dos Direitos do Homemadvertiu a Alemanha para a neces-sidade de acabar com a proibiçãodo incesto.

Efectivamente, há vários países aconsentir nas relações sexuais entreirmãos. França, Espanha, Turquia,Japão e Brasil são, além de Portugal,exemplos disso mesmo. Em todos

impera o princípio de que o Estadonão deve perseguir casais formadoslivremente por adultos em plena pos-se das suas capacidades, por maiorque seja a reprovação social que so-bre eles paire.

Direito a casar-se"Uma coisa é o direito penal e outraa moral. Nem tudo o que é conde-nado pelos costumes e pela religiãoé crime. Estamos a falar de sexo en-tre adultos, no seu espaço privado. Enão é pelo facto de não ser crime queas pessoas desatam agora a come-ter crimes de incesto", insiste ElianaGersão. "Mesmo que se trate de umpai que tenha relações com um filho,desde que este tenha mais de 18 anose seja uma relação consentida, nãoé considerado crime."

Mas o facto de o Estado optar por

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se manter à margem no que se passasem violência no reduto privado decada um não quer dizer que os casosde incesto possam ser oficializados

perante a lei. O Código Civil portu-guês estabelece como impedimentodirimente - ou seja, que não podeser afastado - o casamento entre pa-rentes em linha recta (pais e filhos,avós e netos...) e em segundo grau dalinha colateral (irmãos). Mas no casode tios e sobrinhos, e demais casosde parentesco de terceiro grau nalinha colateral, já não é bem assim."Em princípio tio e sobrinha não po-dem casar, estão incluídos nos cha-mados impedimentos impedientes,mas tais impedimentos podem serremovidos pelo conservador", ex-

plica Eliana Gersão.A Luís Filipe Azevedo, conserva-

dor do Registo Civil no Porto, já che-

garam um tio e uma sobrinha a pedirpara se casarem. "Eles já tinham uma

relação assumida perante as famíliase perante a sociedade, assumiam-se

como casal de facto e a família, em-bora não estimasse muito aquelasituação, tinha-se conformado. En-trevistámos as pessoas todas e, naanálise do processo, concluiu-se quenão havia ali nenhum intuito de cho-

car a sociedade. O casamento foi au-torizado", lembra, para acrescentar

que "em 35 anos de actividade foi oúnico caso do género".

É pelo direito a casar-e que os es-

panhóis Daniel e Rosa Moya Pena lu-tam agora. A residir na Corunha, es-tes irmãos, que há 35 anos iniciaramuma relação marital, conseguiramem 2010 que o Estado espanhol os

reconhecesse a ambos como proge-nitores dos filhos que entretanto jásão adultos. Foram décadas a lutarnos tribunais.

"Se morrer, já podem herdar demini. Legalmente são meus filhos e

não sobrinhos", congratulou-se Da-

niel em declarações ao jornal espa-nhol El País.

A história do amor destes irmãos jáfoi levada aos ecrãs espanhóis no fil-

me Más queHermanos. Sinopse: Danicresce com a irmã e a mãe, cuja trau-mática separação leva à instituciona-

lização de alguns dos sete filhos. Rosa

cresce num orfanato. Em 1977, diver-tia-se com as amigas numa discotecade Madrid quando um desconhecidoa convida para dançar. Recusa. Du-as semanas depois, o acaso volta a

juntá-los. Apaixonam-se. Seis meses

depois reparam na coincidência dos

apelidos. Confrontados os registosde nascimento verificaram que os

pais eram os mesmos. Separaram-se.Na altura, o incesto ainda era crime.Cinco meses depois, concluíram quenão conseguiam manter-se afasta-dos. Assumiram a conjugalidade.As resistências que tiveram que fu-rar não são alimentadas apenas porquestões morais.

Os riscos de doenças"As crianças nascidas de casais con-

sanguíneos têm um risco real acres-cido de desenvolver doenças", ex-

plica o geneticista Jorge Sequeiros,investigador no Instituto de BiologiaMolecular e Celular da Universidadedo Porto. "Nos casais sem laços de

consanguinidade e sem nenhuma do-

ença recessiva na família, o risco deterem um filho com doença genéticaou malformação congénita ronda os

2 ou 3%. No caso dos primos direitos,

que partilham um oitavo da sua he-

rança genética, esse risco aumenta

para os 4%."E no caso de uma criança gerada

por irmãos ou por um pai e uma fi-lha? "A probabilidade aumenta pa-ra o dobro em comparação com os

primos direitos, porque partilhammetade dos seus genes", respondeo especialista.

Posto isto, Jorge Sequeiros lembra

que este risco tende a ser "hipervalo-rizado" por razões morais, sociais e

religiosas. "No caso dos primos direi-

tos, se não houver nenhuma doençagenética declarada na família, o risconão é significativamente maior do

que para a população em geral", en-fatiza, repetindo aquilo que costumadizer aos casais consanguíneos quelhe chegam ao gabinete.

"É muito comum virem cá pri-meiros primos e segundos primos.A maior parte das vezes, consegui-mos tranquilizá-los fazendo a histó-ria familiar completa. Se não houvernenhuma doença recessiva declara-da, o risco mesmo para os primosdireitos é muito pequeno e para pa-rentes mais afastados é praticamenteinsignificante."

Os receios face ao risco de disse-

minação de doenças genéticas rarase malformações congénitas causadas

pela consanguinidade entre meios-irmãos agudizaram-se por causado crescente número de criançasgeradas por inseminação artificial

com recurso a doares anónimos desémen. Nos EUA, foi descoberto o

caso de um dador a partir de cujoesperma se tinham gerado 150 crian-

ças. Lá vigoram apenas as recomen-dações.

Nos EUA, não há um limite de gra-videzes bem sucedidas por dador.Por cá, embora não exista ainda umregisto nacional de dadores, o riscoé bem menor, porque "as boas prá-ticas" dos centros de reprodução im-

pedem que os espermatozóides deum dador sejam usados em mais queoito gravidezes bem sucedidas.

"A probabilidade de se encontra-rem indivíduos com um progenitorem comum é muitíssimo pequena,altamente improvável mesmo", des-

valoriza Sequeiros. O que não querdizer que não possa acontecer.

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Os irmãos Daniel e Rosa com os doisf ilhos na sua casa na Galiza: há anos que lutam pelo direito a casar-se

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Susan Karolewski e Patrick Stuebing: ele cumprea terceira pena

14Meses de prisão foi a penaaplicada por um tribunal alemãoa Patrick Stuebing por viver umarelação incestuosa com a irmã.Os dois têm quatro filhos

1977O ano em que os irmãos Daniel eRosa Mova Peiia se conhecerame iniciaram uma relação. Trintaanos depois, o Estado espanholreconheceu-lhesalguns direitos

0 QUE ELES DIZEM

"Uma coisa éo direito

penal e outra a moral.Nem tudo o que écondenado peloscostumes e pela religiãoé crime. Estamos a falarde sexo entre adultos,no seu espaço privado.E não é pelo facto denão ser crime que as

pessoas desatam agoraa cometer crimes deIncesto"

Eliana GersãoEspecialistaem Direito da Família

"Se morrerjã podemherdar de mim.

Legalmente são meusfilhos e não sobrinhos"

Daniel Maya PenaEspanhol que há 35 anos viveem relação marital com a irmã

"E muito comum viremcâ primeiros primos e

segundos primos.!...]Se não houver nenhuma

doença recessivadeclarada, o risco

[de os filhos virem a

desenvolver doenças]mesmo para os primosdireitos é muito

pequeno"

Jorge SequeirosGeneticista