Inconsciente, linguagem e ordem simbólica

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  40 SAFATLE, Vladimir. Lacan. São Paulo: Publifolha 1 (Folha Explica), 2007. 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 o início dos anos 50, Lacan começa a ser 17  visto como um dos nomes mais impor- 18 tantes da psicanálise francesa. Seus semi- 19 nários, a princípio realizados na casa de 20 sua segunda mulher, atraem um público cada vez 21 maior e logo precisam ser transferidos para o anfitea- 22 tro do Hospital Saint-Anne. Em 1953, ocorre uma ci- 23 são na Sociedade Psicanalítica de Paris e é criada a 24 Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP), à qual Lacan 25 rapidamente se integra. Essa cisão permite que ele se 26 coloque na linha de frente da reelaboração do pensa- 27 mento freudiano, já que será uma figura maior da So- 28 ciedade nascente. Não é por oura razão que a 29 conferência inaugural da nova Sociedade - “O Sim- 30 bólico, o imaginário e o Real”, – ministrada pelo pró- 31 prio Lacan, será uma exposição programática de 32 reconstrução da teoria freudiana que abria as portas 33 da psicanálise a uma noção de inconsciente relativa- 34 mente inédita. Noção essa que será o cerne de outro 35  N

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SAFATLE, Vladimir. Lacan. São Paulo: Publifolha1

(Folha Explica), 2007.2

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o início dos anos 50, Lacan começa a ser17

 visto como um dos nomes mais impor-18

tantes da psicanálise francesa. Seus semi-19

nários, a princípio realizados na casa de20

sua segunda mulher, atraem um público cada vez21

maior e logo precisam ser transferidos para o anfitea-22

tro do Hospital Saint-Anne. Em 1953, ocorre uma ci-23

são na Sociedade Psicanalítica de Paris e é criada a24

Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP), à qual Lacan25

rapidamente se integra. Essa cisão permite que ele se26

coloque na linha de frente da reelaboração do pensa-27

mento freudiano, já que será uma figura maior da So-28

ciedade nascente. Não é por oura razão que a29

conferência inaugural da nova Sociedade - “O Sim-30

bólico, o imaginário e o Real”, – ministrada pelo pró-31

prio Lacan, será uma exposição programática de32

reconstrução da teoria freudiana que abria as portas33

da psicanálise a uma noção de inconsciente relativa-34

mente inédita. Noção essa que será o cerne de outro35

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Histórias de Estruturas 41

texto maior apresentado no mesmo ano: “Função e1

Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise”. Tam-2

bém não é por outra razão que em 1953 começam3

“oficialmente” os Seminários, verdadeiro espaço de4

elaboração e transmissão da experiência intelectual5

lacaniana.26 6

7

8

9

INCONSCIENTE, LINGUAGEM10

E ORDEM SIMBÓLICA11

12

 A partir de 1953, Lacan pode então “retornar a Freud”13

e trabalhar nesse retorno pelos próximos dez anos. No14

fundo, o “retorno a Freud” foi o slogan encontrado15

por ele para definir o momento de integração do con-16

ceito de inconsciente à sua teoria. Até então, toda a es-17

trutura da causalidade psíquica fora descrita através da18

relação do sujeito com imagens ordenadoras de pro-19

cessos de socialização, que poderiam ser consciente-20

mente apreendidas no interior da análise. A partir de21

agora, Lacan retornará ao conceito freudiano funda-22

mental. Um retorno bem peculiar, já que esse in-23

consciente não virá de Freud . Ele virá do estruturalismo.24

Nascido como um programa interdisciplinar25

que visava redefinir o parâmetro de racionalidade e26

os métodos das ciências humanas, o estruturalismo foi27

um movimento intelectual hegemônico na França28

durante os anos 50 e 60, articulando os campos da29

antropologia (Claude Lévi-Strauss, Georges Dumézil),30

26 Na verdade, os Seminários começam dois anos antes com sessões dedicadas à aná-

lise do caso Dora e do caso do Homem dos Lobos. No entanto, os registros dessesdois primeiros seminários são esparsos e não estão destinados à publicação. 

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42 Lacan 

linguística (Roman Jakobson, Emile Benveniste), crí-1

tica literária (Roland Barthes), reflexão filosófica2

(Louis Althusser e o Michael Foucault de  As Palavras e 3

as Coisas) e psicanálise (Lacan).27 A filiação lacaniana4

ao estruturalismo será, no entanto, absolutamente sin-5

gular, pois Lacan procurará, através dela, resolver pro-6

blemas sobre o reconhecimento do sujeito que nada7

têm a ver com o quadro estruturalista.8

Grosso modo, podemos dizer que o fundamento9

do estruturalismo consiste em mostrar como o ver-10

dadeiro objeto das ciências humanas não é o homem11

enquanto centro intencional da ação e produtor do12

sentido, mas as estruturas sociais que o determinam.13

Pensamento em larga medida determinista, ele pode14

chegar a afirmar que o sujeito é uma construção ideo-15

lógica (Althusser) e uma ilusão metafísica (Foucault),16

já que, em última instância, ele não seria agente, mas17

apenas suporte de estruturas que agem em seu lugar.18

Como se, por exemplo, os sujeitos não falassem, mas19

fossem falados pela linguagem, como se não agissem,20

mas “fossem agidos” pelas estruturas sociais. Posição21

que levou Lévi-Strauss a afirmar: “Não pretendemos22

mostrar como os homens pensam nos mitos [ou atra-23

 vés das estruturas, o que, neste contexto, dá no24

mesmo], mas como os mitos se pensam nos homens,25

e à sua revelia. E, como sugerimos, talvez convenha ir26

ainda mais longe, abstraindo todo sujeito para consi-27

derar que, de um certo modo, os mitos se pensam en-28

tre si”.28 Dizer que os mitos sociais se pensam nos29

27 Sobre o estruturalismo, ver Jean-Claude Milner , Le Périple Structurale (Paris: Seuil,2001) e, sobretudo, Gilles Deleuze, “Em Que se Pode Reconhecer o Estrutura-lismo?”. Em: François Châtelet (org.), História da Filosofia  - Ideias, Doutrinas (Rio de Janeiro:

Zahar, 1974), v.8.28 Claude Lévi-Strauss, O Cru e o Cozido (São Paulo: Cosac Naify, 2004). p. 31.

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Histórias de Estruturas 43

homens sem que estes o saibam  é uma proposição1

absolutamente central. Pois se trata de afirmar que as2

estruturas sociais são autônomas e inconscientes em3

relação à vontade individual.4

 A fim de melhor compreender esse ponto,5

lembremos o que significa “estrutura social” nesse6

contexto. O estruturalismo trouxe uma teoria da so-7

ciedade que transformava a linguagem no fato social cen- 8

tral . Processos como trocas matrimoniais, modos de9

determinação de valor de mercadorias, organização10

do núcleo familiar, articulação de mitos socialmente11

partilhados seriam todos estruturados como uma lingua- 12

 gem , até porque a linguagem é, antes de mais nada, um13

modo de organização, de construção de relações, de14

identidades e de diferenças. Neste sentido, ela fornece15

a condição de possibilidade  para a estruturação de toda e16

qualquer experiência social.17

Esse sistema linguístico que estrutura o campo18

da experiência é exatamente o que Lacan chama de19

Simbólico. A princípio, poderíamos aceitar que ele é20

inconsciente porque, por exemplo, ao falar, os sujeitos21

não têm consciência da estrutura fonemática que de-22

termina seus usos da língua. Da mesma forma, quando23

um homem e uma mulher se casam, eles não têm24

consciência das leis de trocas matrimoniais que de-25

terminam suas escolhas. Na verdade, eles reificam  um26

objeto cujo valor viria simplesmente do lugar por ele27

ocupado no interior de uma estrutura articulada. Ou28

seja, acreditam que o valor vem do objeto, enquanto29

ele vem da estrutura.30

 Tudo se passa como se as relações com o outro,31

nossas ações ordinárias, escondessem as mediações32

das estruturas sóciolinguísticas que determinam a33

conduta e os processos de produção de sentido. Tal34

ilusão nos faria esquecer como temos relações com a35

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44 Lacan 

estrutura antes de termos relações com outros indi-1

 víduos. Como se a verdadeira relação intersubjetiva fosse 2

entre o sujeito e a estrutura, e não entre o sujeito e os outros .3

Daí porque Lacan distinguirá as “relações autentica-4

mente intersubjetivas” (que ocorrem na confrontação 5

entre sujeito e estrutura) e a intersubjetividade ima-6

ginária, própria à relação entre o sujeito e o outro.7

No entanto, sempre se pode dizer que o uso do8

termo “inconsciente” para descre ver essa relação do9

sujeito com aquilo que determina seu agir e pensar10

não é exatamente adequado. É verdade que quando11

falamos não temos consciência das leis sintáticas e12

morfológicas da língua. Mas pode-se sempre de di-13

reito tomar consciência, objetivar tais leis.14

Um giro de perspectiva vão, dirá o estruturalista.15

Pois mesmo as modalidades de apreensão subjetiva da16

ação da estrutura são determinadas pela própria es-17

trutura. O sujeito pode objetivar a estrutura que de-18

termina seu pensamento e falar dela em um discurso19

da terceira pessoa, como se fosse um Outro. Mas não20

pode objetivá-la a partir de uma perspectiva que não21

seja determinada por este próprio outro.29 Mesmo o22

modo de tomar distância das leis que me condicio-23

nam já está marcado por essas mesmas leis.24

O que interessa a Lacan é exatamente tal noção25

de inconsciente como sistema de regras, normas e leis26

29  Aqui já podemos compreender a diferença Lacaniana crucial entre “outro” e “Ou-tro”. Os “outros” são fundamentalmente outros empíricos, que vejo diante de mimem todo processo de interação social. Já o “Outro” é o sistema estrutural de leis queorganizam previamente a maneira como o “outro” pode aparecer para mim. O pri-meiro diz respeito aos fenômenos, o segundo, à estrutura. Como vemos, o primeiroestá submetido ao segundo, o que nos explica como o outro pode se articular a umaestrutura global do meio social. O Outro pode, no entanto, ser representado por

uma figura empírica que, por sua vez, representa a Lei. Daí porque Lacan falará, porexemplo, do Outro paterno, do Outro materno, etc.

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Histórias de Estruturas 45 

que determinam a forma geral do pensável. Ela estará1

presente na famosa afirmação: “o inconsciente é es-2

truturado como uma linguagem”, o que no fundo 3

pode ser simplesmente traduzido como: o inconsciente 4

é a linguagem  (enquanto ordem que organiza previa-5

mente o campo de toda experiência possível).6

Isso permite a Lacan livrar-se de uma noção psi-7

cológica de inconsciente. Pois o inconsciente laca-8

niano não está ligado a fatos psicológicos como a9

memória, a atenção e a sensação, ou à intencionali-10

dade em geral. Lacan sabe que os chamados conteúdos11

mentais inconscientes (conteúdos latentes de sonhos,12

crenças não-conscientes, acontecimentos traumáticos13

denegados, lembranças esquecidas, sentimentos laten-14

tes, etc.) não podem ser realmente inconscientes.15

Como são resultantes de um processo de recalcamento,16

chega-se a um paradoxo: para que haja recalcamento17

é necessário uma consciência prévia do recalcado, já18

que o agente do recalcamento não é outro que a pró-19

pria consciência. Por isso, o que normalmente chama-20

mos de “conteúdos mentais inconscientes” devem ser21

compreendidos como conteúdos mentais pré-cons-22

cientes, ou seja, conteúdos mentais momentanea-23

mente fora do acesso da consciência, esquecidos, mas24

que podem ser reintegrados através de processos de25

rememoração e de simbolização. Pois o inconsciente26

não tem conteúdos mentais. Na verdade, ele é vazio, já27

que todo conteúdo do pensamento é, de uma forma ou28

outra, acessível à consciência.29

No entanto, é fácil perceber que essa noção de30

inconsciente como ordem sociossimbólica parece31

demasiado genérica para dar conta da maneira parti-32

cular com que sintomas, sonhos, lapsos, atos falhos33

e tudo aquilo que chamamos de “formações do34

inconsciente” são constituídos. Como explicar que35

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46 Lacan 

sujeitos submetidos ao mesmo sistema de leis possam1

ter formações do inconsciente tão distintas e intradu-2

zíveis entre si? Precisamos explicar, por exemplo,3

como nossos sonhos parecem normalmente seguir4

uma espécie de gramática privatizada, um modo par-5

ticular de organização. Pois não se trata apenas de di-6

zer que o conteúdo semântico dos sonhos é7

particular. Também sua forma sintática, seu regime de8

construção segue regras particulares. Isto faz com que9

o analista nunca saiba de antemão o que um sonho10

significa. Não há um “dicionário universal dos so-11

nhos”, pois, no interior da análise, o analista precisa12

descobrir a gramática particular através da qual o su-13

jeito constrói o significado, o deforma, condensa, des-14

loca, transpõe em imagens, enfim, relaciona elementos15

oníricos. Uma gramática particular que Lacan cha-16

mará um dia de “alíngua” (lalangue). 17

Para dar conta desse modo particular de inflexão18

de uma estrutura genérica, Lacan precisará de um dis-19

positivo suplementar. Na verdade, essa será a função20

do conceito de fantasma (  fantasme   – que alguns tradu-21

zem por “fantasia”). Através dele, Lacan pode explicar22

como um sistema de leis socialmente partilhado pro-23

duz modos particulares de socialização e significação24

do desejo. Veremos essa questão no próximo capítulo.25

26

27

DESEJAR A LEI, DESEJAR ESTRUTURAS28

29

 Aqui, faz-se necessário esclarecer um ponto: como30

essa noção estruturalista de inconsciente enquanto sis-31

tema de regras, normas e leis pode resolver o pro-32

blema clínico que havia ficado em aberto no capítulo33

anterior, a saber, como reconhecer um desejo funda-34

mentalmente negativo e desprovido de objeto?35

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Histórias de Estruturas 47 

 Vimos de que forma a clínica lacaniana aparecia1

como uma espécie de crítica da alienação do Eu, que2

 visava abrir espaço para o reconhecimento do desejo.3

No entanto, o que pode exatamente significar “abrir4

espaço para o reconhecimento” de um desejo que é5

pura negatividade? Significa descobrir que o desejo6

é indiferente aos objetos aos quais se fixa, que sua na-7

tureza consiste em mudar continuamente de objeto?8

Significa dizer que o desejo destrói todos seus obje-9

tos, como se sua verdade fosse ser puro desejo de des-10

truição e morte? É nesse ponto que o recurso à noção11

de estrutura mostra sua importância.12

Lacan insiste que a Lei social que estrutura o uni-13

 verso simbólico não é uma lei normativa no sentido14

forte do termo, ou seja, uma lei que enuncia claramente15

o que devo fazer e quais condições devo preencher16

para segui-la. Essa é uma questão central que costuma17

gerar confusões. A Lei simplesmente organiza distin-18

ções e oposições que, em si, não teriam sentido algum.19

 Assim, por exemplo, a Lei da estrutura de parentesco20

pode determinar topicamente vários lugares, como “fi-21

lho de...”,“pai de...”, “cunhada de...”, mas esses lugares22

não têm em si nenhuma significação normativa, ne-23

nhuma referência estável. Por isso, nunca sei claramente24

o que significa, por exemplo, ser “pai de...”, mesmo25

tendo consciência de que ocupo atualmente tal lugar.26

Só posso saber o que um pai é, o que devo fazer para27

assumir a autoridade e enunciar a norma à condição28

de acreditar em certa impostura. É essa ausência de29

conteúdo que Lacan tem em vista ao afirmar que a Lei30

sociossimbólica é composta por significantes puros, que31

ela é uma “cadeia de significantes”. 32

 A definição clássica do signo insiste em que ele33

é formado por duas entidades: o significante e o sig-34

nificado. Sendo o significado o conceito, ou seja,35

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48 Lacan 

aquilo que, de uma forma ou outra, preenche expec-1

tativas de acesso à referência extralinguística, um sig-2

nificante puro será um suporte material da língua que3

não tem significado, que não denota referência alguma,4

como uma palavra que é pura presença do que não se5

determina. A reviravolta de Lacan consistirá em dizer6

que este significante puro, desprovido de referência, é7

a formalização mais adequada para um desejo que, por8

sua vez, é negatividade desprovida de objeto. Pois só9

um significante puro pode dar forma a um desejo que10

é fundamentalmente inadequado a toda figuração. Ou11

seja, a crítica da alienação a que se propõe Lacan deve12

se realizar através do desvelamento de que a verdade13

do desejo do sujeito é ser desejo da Lei, isso nos dois14

sentidos do genitivo: desejo enunciado no lugar da Lei15

e desejo pelo significante puro da Lei.16

 Assim, para Lacan, um processo fundamental17

ocorre quando o sujeito deixa de desejar objetos para18

desejar a Lei que os constitui. Nesse sentido, diremos19

que uma proposição antilacaniana por excelência foi20

enunciada pela heroína de um filme de Lars von Trier,21

Breaking the Waves (Ondas do Destino). Nele, a prota-22

gonista Bess, em uma interpelação contra um pastor,23

afirma: “Eu não sei amar uma palavra, só sei amar pes-24

soas”. Para Lacan, ao contrário, há uma modificação25

profunda no desejo quando descobrimos que uma26

pessoa é, no fundo, uma palavra encarnada. Pois ser27

uma palavra encarnada significa mostrar em seu corpo28

o fundo opaco do ser que toda verdadeira palavra é29

capaz de trazer à luz.30

31

O QUE É ISTO, UM PAI? 32

33

 Afirmar que a verdade do desejo é ser desejo da Lei34

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Histórias de Estruturas 49 

pode parecer, no entanto, uma maneira astuta de re-1

gular o desejo a partir de uma Lei social universali-2

zante e repressiva em relação ao desejo, já que, para3

nós, a Lei é algo que restringe, algo que impõe um4

“dever ser”. Tal impressão fica ainda mais forte se5

lembrarmos que os representantes lacanianos privile-6

giados da Lei social são a  função paterna  (ou o Nome-7

do-Pai enquanto função ordenadora do núcleo8

familiar) e o falo (enquanto função ordenadora dos9

modos de constituição da sexualidade).10

Ou seja, não é difícil se imaginar ante uma clí-11

nica “falocêntrica”, como dizia o filósofo Jacques12

Derrida  – por insistir que o desejo só poderia ser re-13

conhecido se regulado ao falo (quer dizer, regulado a14

uma organização genital da sexualidade que submete15

o prazer polimórfico ao prazer genital) – e, ao mesmo16

tempo, socializada através da lógica própria a estrutu-17

ras familiares patriarcais. Uma dependência historica-18

mente equivocada, já que teríamos entrado na era de19

uma sociedade “pós-edípica”, em que a função pa-20

terna não seria mais o núcleo da vida familiar.21

Nada disto diz respeito ao que Lacan tem em22

 vista. A fim de compreender esse ponto, lembremos23

que, por ser uma prática baseada no uso da palavra, a24

psicanálise depende da capacidade de simbolizar de-25

sejos e situações que até então não teriam encontrado26

lugar como representação da consciência. Essa função27

simbolizadora é o cerne do que está em jogo nos pro-28

cessos de interpretação. Mas Lacan insiste que tal sim-29

bolização não deve apenas completar uma história30

subjetiva, cujos capítulos traumáticos foram censura-31

dos e posteriormente escritos na gramática privati-32

zada dos sintomas. A simbolização deve levar o sujeito33

a se reconhecer lá onde o desejo está sempre em falta  34

em relação aos objetos e representação, ela deve35

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50 Lacan 

permitir uma subjetivação da falta-a-ser do desejo.1

Mas, segundo ele, isto só é possível reforçando a iden-2

tificação do sujeito ao Nome-do-Pai e demonstrando3

como seu desejo é regulado pelo falo.4

 Vimos como, desde a época em que estava à5

procura da gênese social da personalidade, Lacan tra-6

balhava com um esquema onde as dinâmicas de so-7

cialização eram pensadas a partir de identificações (a8

principal delas com o pai). No entanto, Lacan parte de9

uma consideração de ordem histórica. Ele pensa o10

problema da função paterna em uma época marcada11

exatamente por uma crise psicológica produzida pelo12

“declínio social da imago paterna". Época na qual a13

imagem do pai é: “sempre carente, ausente, humilhada,14

dividida ou postiça”.30 Época na qual o pai não tem15

mais força de impor estruturas normativas totalizantes.16

De fato o conceito de lei sem conteúdo normativo17

está, ao menos em Lacan, fundamentalmente articu-18

lado à teoria do declínio da autoridade paterna.19

 Várias razões podem ser aventadas para tal declí-20

nio. Segundo Lacan, trata-se de um paradoxo interno21

à família burguesa. Pois o pai da família burguesa não22

é apenas o ideal que fornece as referências da nossa23

conduta e do nosso modo de desejar. No caso mascu-24

lino, ele é também o rival na posse do objeto materno,25

por ser aquele que impede a realização de meus dese-26

jos mais imediatos. Por um lado, há uma relação27

assimétrica de idealização; por outro, uma relação si-28

métrica de rivalidade. Por isto, converge para o pai a29

 função simbólica de representante da Lei, que responde30

pela normalização sexual e que será internalizada atra-31

 vés do Ideal do eu, e a característica imaginária  do pai32

30 Lacan, Outros Escritos (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003), p. 67.

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Histórias de Estruturas 51

enquanto rival na posse do objeto materno, rivalidade1

introjetada através do supereu repressivo. Exatamente2

para impedir tal sobreposição, em várias sociedades o3

pai não é o responsável pelo acesso à função simbólica,4

mas o avô, o irmão da mãe, etc.5

 Assim, por uma razão estrutural própria aos mo-6

dos de socialização hegemônicos na modernidade, o7

pai nunca está à altura de sua função simbólica. Quer8

dizer, ninguém efetivamente pode realizar a função9

simbólica do pai e colocar-se como encarnação do10

Ideal do eu: “o pai simbólico não está em lugar algum,11

ele não intervém em lugar algum”.31 No entanto, a as-12

túcia consiste em dizer que apenas nessa condição pode-13

mos levar o sujeito a reforçar a identificação com a14

função paterna. Pois essa função não é outra coisa do15

que a formalização da impossibilidade de todo e qual-16

quer figura empírica legislar em Nome-do-Pai.17

Ou seja, não se trata de levar o sujeito a se iden-18

tificar com a imagem do pai, mas com uma função19

sem potência normativa, função que apenas dá forma20

à inadequação radical do desejo humano. Daí por que21

“o Nome-do-Pai é apresentado como o nome de22

uma falha”.32 Tudo se passa como se o declínio da23

imago paterna, a crise de investiduras em relação à au-24

toridade, fosse condição sócio-histórica para o reco-25

nhecimento do desejo em sua inadequação. Como se26

o verdadeiro pai não fosse aquele que impõe uma27

norma a ser seguida, mas quem, por se calar diante das28

questões fundamentais da existência de todo sujeito,29

permite que um espaço de indeterminação se abra.30

31

Lacan, Séminaire IV (Paris: Seuil, 1994), p. 210.32 Erik Porge , Les Noms du Père Chez Jacques Lacan (Romonville: Éres, 1997), pg. 105.

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52 Lacan 

 Talvez essa verdadeira inversão dialética, que1

transforma o fracasso da autoridade paterna em su-2

cesso de socialização do desejo, possa nos explicar por3

que Lacan intitulará um de seus últimos seminários4

(1972-73) Les Non Dupes Errent  (Os Não Tolos Er-5

ram), jogando com a homofonia entre essa frase e o6

francês le Nom-du-Père. A ideia consiste em afirmar7

que a socialização do desejo é solidária de um deixar-8

se enganar, de um identificar-se com o pai na esperan-9

ça de, com isto, aprender a desejar, saber qual objeto é10

adequado ao gozo. Experiência cujo saldo verdadeiro11

é uma espécie de decepção formadora, já que, através12

das vias da decepção, desenvolve-se uma formação que13

 visa certo saber-fazer a respeito da inadequação do de-14

sejo. Daí porque “a psicanálise, ao ser bem sucedida,15

prova que se pode perfeitamente livrar-se do Nome-16

do-Pai, à condição de saber dele se servir”.33 17

Essa natureza do pai como formalização da ina-18

dequação entre o desejo, os objetos empíricos e as re-19

presentações imaginárias é tão central que organizará20

as distinções lacanianas entre neurose e psicose. A psi-21

cose será vista,  grosso modo, como o resultado de um22

 fracasso do processo de socialização resultante da foraclu-23

são (termo jurídico para tratamento de um fato como24

se ele nunca existira) dessa natureza eminentemente25

simbólica da função paterna. Daí por que as repre-26

sentações de pais de psicóticos são desprovidas de27

qualquer carência ou fragilidade (como se não exis-28

tisse diferença entre pai empírico e função paterna),29

ou simplesmente inexistentes, como no caso Aimée.30

 Já nas neuroses essa natureza simbólica da função31

paterna é inscrita no campo da experiência. No32

33 Lacan, Séminaire XXIII (Paris: Seuil, 2005), p. 136.

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Histórias de Estruturas 53

entanto, ela é inscrita de maneira peculiar, já que o1

neurótico procura a todo o momento negar o que2

ele mesmo inscreveu.3

4

 A OPACIDADE DO SEXUAL5

6

Essa mesma dinâmica da simbolização da inadequação7

do desejo a objetos empíricos anima outro operador8

maior da clínica lacaniana: o falo. Vimos como a clí-9

nica lacaniana está fundamentalmente ligada a exi-10

gências de reconhecimento do desejo. No entanto,11

esse desejo está sempre ligado ao campo sexual. Se12

perguntarmos de onde vem essa importância do se-13

xual na determinação do desejo, uma das respostas14

possíveis consistirá em dizer que os processos de so-15

cialização estão organicamente vinculados à constru-16

ção da sexualidade, à determinação de identidades17

sexuais. Ou seja, para Lacan, a sexualidade é uma cons- 18

trução social .19

 Assim, ele insistirá que “homem” e “mulher” são,20

antes de mais nada, significantes  cuja realidade é emi-21

nentemente sociolinguística. Nesse sentido, é absolu-22

tamente possível uma mulher (anatomicamente23

falando) ocupar uma posição masculina na sua relação24

ao desejo.25

Proposições dessa natureza se prestam a vários26

mal-entendidos. Afinal, como é possível dizer que a27

sexualidade é uma construção social se há diferenças28

anatômicas evidentes que parecem naturalmente cons-29

tituir dois sexos? E se ela é, de fato, uma construção so-30

cial, por que falamos apenas em dois sexos? Por que31

não cinco? Por que não abandonar a distinção binária32

e pensar uma produção plástica de novas formas de se-33

xualidade? Esta é uma questão, direcionada a Lacan,34

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54 Lacan 

bem posta pelos  gender studies , em especial por Judith1

Butler.34 2

No entanto, dizer que a determinação da sexua-3

lidade se estabelece sem levar em conta a diferença4

anatômica dos sexos, como quer Lacan, não implica5

em afirmar que tal diferença inexista. Não é exata-6

mente a mesma coisa, por exemplo, um homem e7

uma mulher (anatomicamente falando) ocuparem a8

posição masculina. O que Lacan parece dizer é que9

tal diferença anatômica é desprovida de sentido, ela não10

é normativa, por não ter força para determinar con-11

dutas: ou seja, ela é uma diferença pura. Isto significa12

dizer que, diante do sexual, sempre nos vemos diante13

de algo irredutivelmente opaco e resistente a toda14

operação social de sentido. “A sexualidade”, dirá La-15

can, “é exatamente esse território onde não sabemos16

como nos situar a respeito do que é verdadeiro”.35 17

Notemos este dado fundamental: as considera-18

ções clínicas lacanianas são solidárias de um tempo no19

qual as estruturas familiares perderam sua substância20

normativa e no qual a sexualidade não é mais um21

campo direcionado a uma finalidade clara (a reprodu-22

ção). Nesse contexto histórico de indeterminação, a23

socialização do desejo não pode simplesmente levar o24

sujeito a desempenhar papéis e identidades sexuais sem25

distância alguma, como se fosse questão de naturalizar26

o que é socialmente construído. Ao contrário, a socia-27

lização do desejo deve nos levar ao confronto com tal28

opacidade. Essa é, em última instância, a função do falo.29

É só levando essas questões em conta que po-30

demos entender por que Lacan define o falo como31

34

Ver Judith Butler, Problemas de Gênero (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003).35 Lacan, Mon Enseignement (Paris: Seuil, 2006), p. 32.

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Histórias de Estruturas 55 

“o significante fundamental através do qual o desejo1

do sujeito pode ser fazer reconhecer”.36 Ou seja, o falo2

não é exatamente o pênis orgânico, ou algum signo3

de potência, mas um significante puro, uma diferença4

pura que organiza posições subjetivas (masculino/fe-5

minino) a partir da experiência de inadequação fun-6

damental entre o desejo e as representações “naturais”7

da sexualidade. Nesse sentido, o falo é apenas “um8

símbolo geral dessa margem que sempre me separa de9

meu desejo”.37 10

11

12

UM FRAGMENTO CLÍNICO13

14

Um exemplo ilustrativo da maneira com que Lacan15

pensa tal questão é fornecido por um fragmento de16

caso clínico. Nele, Lacan descreve um paciente neu-17

rótico obsessivo que conheceu na infância um jogo18

de destruição e desprezo da mãe em relação ao desejo19

do pai. Desprezar aqui significa afirmar que o pai não20

tem o que possa satisfazer o desejo da mãe. Esse pa-21

ciente organizou seu desejo a partir da tentativa de22

ser aquilo que falta à mãe, o que o colocou na condi-23

ção de também destruir e desprezar o que, nele, asse-24

melhava-se ao pai.25

Mas há aqui um impasse. Ele não é um psicótico,26

ou seja, não deixou de se identificar ao Nome-do-27

Pai. Isto significa que foi a partir da identificação ao28

pai que o sujeito aprendeu a desejar. Assim, para satis-29

fazer o desejo da mãe, ele deveria destruir o desejo30

paterno com o qual ele próprio se identificou. Isto31

36

Lacan, Séminaire V(Paris: Seuil, 1998), p. 273.37 Idem, p. 243.

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56 Lacan 

leva a um conflito, já que ele só poderá desejar des-1

truindo seu próprio desejo. O que no seu caso signi-2

fica: sendo impotente.3

De fato, ele era impotente com sua amante. La-4

can relata então uma situação decisiva, quando o pa-5

ciente diz à amante que gostaria de vê-la tendo6

relações sexuais com outro homem. O que, nesse7

contexto, implica aceitar que ele só pode ocupar um8

lugar externo à relação amorosa. Na noite dessa con-9

fissão, sua amante tem um estranho sonho, no qual10

ela tem um pênis e uma vagina. Mesmo tendo um11

pênis, ela quer ser penetrada. Ela acorda e conta o so-12

nho ao amante. Os dois fazem amor.13

Como Lacan interpreta esse fragmento clínico?14

Segundo ele trata-se de “mostrar ao paciente a fun-15

ção do falo no seu desejo”. A esse respeito, vale a  16

pena tecer algumas considerações preliminares17

sobre a teoria lacaniana das neuroses. De forma18

simplifi-cada, podemos dizer que, para a psicanálise, as19

neu-roses (histeria, obsessão, fobia) são resultados de20

conflitos psíquicos ligados à impossibilidade do re-21

conhecimento de exigências próprias à sexualidade.22

 Através do recalcamento de tais exigências e expec-23

tativas de satisfação, abre-se o espaço para a criação24

de sintomas, de inibições e de angústias, que nada25

mais são que modos de manifestação de conflitos re-26

calcados.27

Lacan parte desse esquema geral para afirmar28

que o recalcamento produzido na dimensão do se-29

xual não diz respeito a alguma forma de satisfação li-30

bidinal irrestrita, impossibilitada por obrigações de31

convívio social. Trata-se do recalcamento da negativi-32

dade constitutiva de toda manifestação do desejo,33

dessa falta-a-ser a respeito da qual Lacan tanto insiste34

e que o falo permitiria formalizar.35

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Histórias de Estruturas 57 

No caso do neurótico obsessivo, a impossibili-1

dade do reconhecimento da falta-a-ser vem do fato2

do Outro aparecer ignorando aquilo que Lacan3

chama de “castração”. Aqui, castração não significa a4

ameaça de perda do pênis devido à rivalidade com o5

pai no interior do conflito edípico (como em Freud),6

mas sim a realidade simbólica de que nenhum objeto7

é adequado ao desejo. Como o Outro não reconhece8

a falta enquanto modo de ser, ele bloqueia toda pos-9

sibilidade do sujeito assumi-la no interior de uma10

relação intersubjetiva constitutiva. No caso do frag-11

mento clínico citado, essa função de um Outro que12

desconhece a castração é encarnada pela mãe  –  por13

essa mesma mãe que se coloca acima do pai ao des-14

prezar o que ele pode oferecer.15

Mas para que essa ignorância em relação à falta-16

a-ser seja sustentada, faz-se necessário que o sujeito17

destrua o seu próprio desejo, que ele se mortifique.18

Pois se ele não o destruísse, se conseguisse sustentar a19

relação ao Outro através do desejo, ele obrigaria o20

Outro a também manifestar seu desejo e, com isto, sua21

falta. Pois, como Kojève havia ensinado a Lacan, de-22

sejar o desejo de um Outro é sobrepor duas faltas. Na23

neurose obsessiva, essa anulação do próprio desejo24

pode se dar de várias formas: seja através da imple-25

mentação de exigências estritas de autocontrole e de26

contenção, seja através da inibição de toda manifesta-27

ção do desejo, seja através da incapacidade do obses-28

sivo e vincular-se a um objeto que ele possa assumir29

como desejável, seja ainda através da constituição de30

um objeto proibido, inalcançável, diante do qual ele se31

sente impotente.32

É por isso que Lacan dá tanta importância ao33

sonho da amante do paciente. O que ela procura mos-34

trar ao seu amante é que o falo não é um signo de35

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58 Lacan 

potência e plenitude, mas o significante da castração.1

 Ao dizer que, mesmo tendo o falo, ela é capaz de sen-2

tir o desejo que vem do amante, ela demonstra essa3

“ordem na qual um amor ideal pode desabrochar – a4

instituição da falta na relação de objeto”.38 Isto per-5

mite ao sujeito organizar seu desejo a partir de uma6

experiência do negativo.7

Para finalizar, notemos essa maneira lacaniana de8

organizar as estruturas nosográficas. Lacan não parte,9

por exemplo, da descrição de sintomas que comporiam10

a neurose obsessiva (ideias obsedantes, compulsão a rea-11

lizar atos indesejáveis, rituais que devem ser escrupulo-12

samente repetidos, etc.), sintomas que encontraremos13

catalogados no DSM-IV sob a rubrica “Transtorno ob-14

sessivo-compulsivo”. Seu interesse é mostrar como a15

neurose é uma posição subjetiva frente ao desejo, resultante de 16

 problemas em processos de socialização que se iniciam no núcleo17

 familiar . Tal posição é marcada por um déficit de18

reconhecimento intersubjetivo em relação ao desejo,19

devido à incapacidade de “subjetivação da falta”. 20

 A mesma estratégia será utilizada para dar conta21

de outras estruturas neuróticas, como a histeria e a fo-22

bia. Por isso, a clínica lacaniana é uma clínica estrutural ,23

e não uma sintomatologia. Ela privilegia a análise es-24

trutural do modo com que as relações sociais entre25

sujeito e Outro são constituídas, indicando a partir daí26

suas patologias. De certa forma, ela começa de cima27

(da estrutura) para baixo (a multiplicidade de sinto-28

mas). Isto permite a conservação de estruturas noso-29

gráficas relativamente flexíveis do ponto de vista da30

configuração de sintomas.31

38 Lacan, Séminaire IV , p. 157.