Inconstitucionalidade Por Arrastamento - Vicente Paulo

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15/08/2005 - Inconstitucionalidade por arrastamento Bom dia, Examinaremos hoje uma técnica de declaração de inconstitucionalidade, largamente adotada pelo Supremo Tribunal Federal na fiscalização da validade das leis: a “inconstitucionalidade por arrastamento”. Acredito que muitas das pessoas que acompanham o meu trabalho voltado à preparação de candidatos para concursos públicos buscam, no que eu escrevo e ensino em sala de aula, uma só coisa: a desmistificação do Direito. Penso que esse é, de fato, o meu maior papel como preparador, especialmente porque trabalho com candidatos que, em sua maioria, não têm formação jurídica. O outro papel relevante é acompanhar a legislação, as provas e tendências das diferentes bancas examinadoras, com o fim de orientar e direcionar o estudo dos candidatos. Esse segundo papel não oferece maiores problemas, só exige tempo para o acompanhamento simultâneo das mudanças legislativas, das novas orientações doutrinárias e jurisprudenciais e, sobretudo, das provas recentemente realizadas pelas diferentes bancas examinadoras. Afinal, professor desatualizado é um desserviço ao candidato, um crime que deve ser punido com o esquecimento (do professor, claro!)! O primeiro papel – desmistificar o ensino do Direito - exige muito esforço, e nem sempre, em Direito Constitucional, o resultado alcançado é o que desejamos. Primeiro, porque há temas que, pela sua própria natureza, envolvem o conhecimento de vários aspectos do Direito Constitucional, e são de uma subjetividade quase infinita. Segundo porque, cada vez mais, as bancas examinadoras exigem conhecimento sobre aspectos avançadíssimos do Direito Constitucional, que fogem completamente do cotidiano daqueles candidatos que não praticam o Direito. Não é fácil, num primeiro momento, explicar para um aluno que não dispõe de formação jurídica, que até pouco tempo nunca havia pensado em estudar disciplinas jurídicas,

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15/08/2005 - Inconstitucionalidade por arrastamento

Bom dia,

Examinaremos hoje uma técnica de declaração de inconstitucionalidade, largamente adotada pelo Supremo Tribunal Federal na fiscalização da validade das leis: a “inconstitucionalidade por arrastamento”.

Acredito que muitas das pessoas que acompanham o meu trabalho voltado à preparação de candidatos para concursos públicos buscam, no que eu escrevo e ensino em sala de aula, uma só coisa: a desmistificação do Direito.

Penso que esse é, de fato, o meu maior papel como preparador, especialmente porque trabalho com candidatos que, em sua maioria, não têm formação jurídica. O outro papel relevante é acompanhar a legislação, as provas e tendências das diferentes bancas examinadoras, com o fim de orientar e direcionar o estudo dos candidatos.

Esse segundo papel não oferece maiores problemas, só exige tempo para o acompanhamento simultâneo das mudanças legislativas, das novas orientações doutrinárias e jurisprudenciais e, sobretudo, das provas recentemente realizadas pelas diferentes bancas examinadoras. Afinal, professor desatualizado é um desserviço ao candidato, um crime que deve ser punido com o esquecimento (do professor, claro!)!

O primeiro papel – desmistificar o ensino do Direito - exige muito esforço, e nem sempre, em Direito Constitucional, o resultado alcançado é o que desejamos. Primeiro, porque há temas que, pela sua própria natureza, envolvem o conhecimento de vários aspectos do Direito Constitucional, e são de uma subjetividade quase infinita. Segundo porque, cada vez mais, as bancas examinadoras exigem conhecimento sobre aspectos avançadíssimos do Direito Constitucional, que fogem completamente do cotidiano daqueles candidatos que não praticam o Direito. Não é fácil, num primeiro momento, explicar para um aluno que não dispõe de formação jurídica, que até pouco tempo nunca havia pensado em estudar disciplinas jurídicas, conceitos complexos do constitucionalismo, tais como: eficácia erga omnes, inconstitucionalidade superveniente, efeito vinculante, amicus curiae, inconstitucionalidade pro futuro, efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade etc.

Bem, fiz essas breves considerações para, antecipadamente, desculpar-me por eventuais imperfeições no tratamento do tema de hoje (inconstitucionalidade por arrastamento), em razão de sua inerente complexidade. Tentei simplificar ao máximo, apresentando alguns exemplos, mas reconheço, desde logo, que estou em dúvida

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quanto ao resultado alcançado! Mas, vamos lá, vamos examinar o que é a tal “inconstitucionalidade por arrastamento”.

A inconstitucionalidade “por arrastamento” ou “por atração” ocorre quando a declaração da inconstitucionalidade de um dispositivo da lei é estendida a outro dispositivo, em razão da existência de uma correlação, conexão ou dependência entre eles.

Esse tipo de declaração de inconstitucionalidade ocorre nas situações em que diferentes dispositivos integram um sistema normativo, de forma que com a declaração da inconstitucionalidade de um, os demais não têm como se manter no ordenamento jurídico, por falta de vida própria, por deixarem de ter qualquer significado autônomo.

Em situações como essas, o Poder Judiciário poderá determinar a extensão da declaração da inconstitucionalidade a dispositivos não impugnados expressamente na petição inicial, em razão da dependência existente entre eles. Enfim, a relação de dependência entre os dispositivos faz com que a declaração da inconstitucionalidade de um afete a validade dos demais. Diz-se, então, que a declaração da inconstitucionalidade de um dispositivo acaba por atingir, por arrastamento, a validade do outro.

O fundamento para esse tipo de declaração de inconstitucionalidade é muito simples: se as normas legais guardam interconexão e mantêm, entre si, vínculo de dependência jurídica, formando-se uma incindível unidade estrutural, não poderá o Poder Judiciário proclamar a inconstitucionalidade de apenas algumas dessas normas, mantendo as outras no ordenamento jurídico, sob pena de causar uma verdadeira desagregação do próprio sistema normativo a que se acham incorporadas.

Podem ocorrer, ainda, situações em que diferentes dispositivos legais tenham, em essência, conteúdo análogo. Ora, se ambos têm conteúdo análogo, e se for impugnada a validade de apenas um deles, certamente a declaração da inconstitucionalidade deste conduzirá, por arrastamento, a invalidade dos demais.

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal admite a declaração da inconstitucionalidade “por arrastamento” ou “por atração” de outras normas que o autor não tenha expressamente requerido na inicial, em razão da conexão ou interdependência com os dispositivos legais especificamente impugnados. Segundo o Tribunal, nesses casos não há necessidade de impugnação expressa pelo autor, dispositivo por dispositivo, uma vez que o eventual reconhecimento do vício relativamente a certos dispositivos conduzirá, por arrastamento, à impossibilidade do aproveitamento dos demais (ADI 2.653/MT, rel. Min. Carlos Velloso; ADI 397/SP, rel. Min. Eros Grau; ADI (MC) 2.648-CE, rel. Min. Maurício Corrêa; ADI (MC) 2.608-DF, rel. Min. Celso de Mello).

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Examinemos uma situação em que a aplicação da técnica da declaração de inconstitucionalidade por arrastamento restou evidente, por ocasião da apreciação de uma ação direta de inconstitucionalidade – ADIn pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 397/SP, rel. Min. Eros Grau, 3/8/2005).

Nessa ação direta, foi requerida pelo Procurador-Geral da República a declaração da inconstitucionalidade do item "1" do § 2º do art. 31 e, por arrastamento, do item "3" desse mesmo parágrafo, ambos da Constituição do Estado de São Paulo.

O item “1” do § 2º do art. 31 da Constituição do Estado de São Paulo prevê, para fins da composição do Tribunal de Contas estadual, formado por sete Conselheiros, que a escolha de dois deles será feita pelo Governador, alternadamente, entre os substitutos de Conselheiros e membros da Procuradoria da Fazenda do Estado junto ao Tribunal.

Por sua vez, o item “3” do mesmo dispositivo prevê que uma outra vaga será preenchida, uma vez pelo Governador e duas vezes pela Assembléia, alternada e sucessivamente.

Essas regras da Constituição do Estado de São Paulo foram declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal nessa ADIn, por violação à jurisprudência consolidada da Corte, no sentido de que na composição dos tribunais de contas estaduais, quatro conselheiros devem ser escolhidos pela Assembléia Legislativa e três pelo Chefe do Poder Executivo Estadual, cabendo a este escolher um dentre auditores e outro dentre membros do Ministério Público que atua junto ao respectivo tribunal, e um terceiro à sua livre escolha (STF, Súmula nº 653).

Anote-se que, nessa ação, o próprio autor (Procurador-Geral da República) já requereu, na inicial, a declaração da inconstitucionalidade do item “1” do § 2º do art. 31 da Constituição do Estado de São Paulo e, por arrastamento, do item “3” do mesmo dispositivo.

Entretanto, caso o pedido do autor houvesse sido somente a declaração da inconstitucionalidade do item “1”, o Supremo Tribunal Federal certamente declararia, também, por arrastamento, a invalidade do item “3”, em virtude da dependência existente entre eles. Afinal, não há dúvida de que o reconhecimento da inconstitucionalidade do item “1”, pelos fundamentos acima expendidos, acabaria por atingir, por atração, a validade do item “3” do mesmo dispositivo.

São vários os julgados do Supremo Tribunal Federal em que é empregada a técnica da declaração de inconstitucionalidade por arrastamento, conforme se verifica no seguinte trecho do voto do

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Min. Maurício Corrêa (ADIMC nº 1931, rel. Min. Maurício Corrêa, 21/08/2003):

“Anoto que se impõe a declaração de inconstitucionalidade do § 1º e de seus incisos, visto que, embora não impugnados, devem ter a mesma sorte do caput do artigo em face de sua correlação, dependência e conexão com este. É o que Canotilho chama de inconstitucionalidade por arrastamento (...)”.

Bem, a inconstitucionalidade “por arrastamento” ou “por atração” é isto: impugnada a validade do dispositivo “X”, a declaração de sua inconstitucionalidade “arrasta” o dispositivo “Y” para a invalidade, em razão da relação de dependência existente entre eles; com a declaração da inconstitucionalidade do dispositivo “X”, o dispositivo “Y”, a ele ligado de maneira indissociável, não tem mais como permanecer no ordenamento jurídico, e será, então, “arrastado” para a inconstitucionalidade.

Um forte abraço – até breve.

Vicente Paulo