Indicadores culturais e o patrimônio imaterial

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1 Indicadores culturais e o patrimônio imaterial: caminhos para a legitimação da cultura e da identidade de territórios Andreia Costa 1 Resumo O grande interesse pela preservação dos patrimônios imateriais como os processos artesanais tem propiciado oportunidades de ações que visam apoiar e promover comunidades tradicionais. No entanto essas ações estão sendo desenvolvidas dentro de um cenário complexo e de uma linha tênue entre a preservação, intervenção e sustentabilidade dos seus envolvidos. Desta forma, a avaliação sistêmica destas ações se faz fundamental para que haja eficácia e eficiência em seus resultados, oferecendo, assim, dados para o fortalecimento de indicadores culturais nesta área. Essa avaliação se faz necessária para que se cumpra os objetivos propostos pelas políticas internacionais de preservação e salvaguarda de patrimônios imateriais que estabelecem a preocupução com a preservação da cultura imaterial como mutável e, desta forma, não podendo ser realizadas de forma estática; sem considerar as suas relações com a identidade plural da humanidade. Palavras chaves: Indicadores Culturais Patrimônio Imaterial Gestão Cultural. Abstract The great interest on the preservation of the incorporeal cultural patrimony such as on the artisan processes has propitiated opportunities to take action aiming to support and to promote traditional communities. However, these actions are being developed inside of a complex scenario and a thin line between the preservation, intervention and sustainability of people envolved. This way, the systemic evaluation of these actions is fundamental for the effectiveness and efficiency of its results, strengthening the cultural indicators of such area. This evaluation is necessary to fulfill the objectives defined by the international politics of preservation and safeguard of incorporeal patrimonies which establish the preservation of the incorporeal culture as changeable. In this sense, such preservation can not be static and must take into consideration the relationship amongst the plural identity of the mankind. Words keys: Cultural indicators - Incorporeal Patrimony - Cultural Management 1 Andreia Costa, graduada em Design pela Universidade do Estado de Minas Gerais 1995. Designer e consultora para projetos de design e artesanato.

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Indicadores culturais e o patrimônio imaterial: caminhos para a legitimação da cultura

e da identidade de territórios

Andreia Costa1

Resumo

O grande interesse pela preservação dos patrimônios imateriais como os processos

artesanais tem propiciado oportunidades de ações que visam apoiar e promover comunidades

tradicionais. No entanto essas ações estão sendo desenvolvidas dentro de um cenário

complexo e de uma linha tênue entre a preservação, intervenção e sustentabilidade dos seus

envolvidos. Desta forma, a avaliação sistêmica destas ações se faz fundamental para que haja

eficácia e eficiência em seus resultados, oferecendo, assim, dados para o fortalecimento de

indicadores culturais nesta área. Essa avaliação se faz necessária para que se cumpra os

objetivos propostos pelas políticas internacionais de preservação e salvaguarda de patrimônios

imateriais que estabelecem a preocupução com a preservação da cultura imaterial como

mutável e, desta forma, não podendo ser realizadas de forma estática; sem considerar as suas

relações com a identidade plural da humanidade.

Palavras chaves: Indicadores Culturais – Patrimônio Imaterial – Gestão Cultural.

Abstract

The great interest on the preservation of the incorporeal cultural patrimony such as on

the artisan processes has propitiated opportunities to take action aiming to support and to

promote traditional communities. However, these actions are being developed inside of a

complex scenario and a thin line between the preservation, intervention and sustainability of

people envolved. This way, the systemic evaluation of these actions is fundamental for the

effectiveness and efficiency of its results, strengthening the cultural indicators of such area.

This evaluation is necessary to fulfill the objectives defined by the international politics of

preservation and safeguard of incorporeal patrimonies which establish the preservation of the

incorporeal culture as changeable. In this sense, such preservation can not be static and must

take into consideration the relationship amongst the plural identity of the mankind.

Words keys: Cultural indicators - Incorporeal Patrimony - Cultural Management

1 Andreia Costa, graduada em Design pela Universidade do Estado de Minas Gerais 1995. Designer e consultora

para projetos de design e artesanato.

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Territórios Culturais

O que nos identifica é aquilo que nos difere. A cultura molda a identidade ao dar sentido à

experiência que é própria do lugar. O artefato original particulariza a experiência do homem

no espaço tempo, confere significado e lhe dá sentido e razão de ser.

No setor cultural essa identificação que nos difere, mas também nos personaliza, tem

sido amplamente discutida. Os complexos processos da globalização têm, entre outros,

favorecido o acesso aos meios de comunicação e, desta forma, tem ocorrido de maneira rápida

a disseminação da informação e do conhecimento. Com esta facilidade de acesso as culturas

passam a ser mais próximas no sentido da visibilidade, porém a rapidez com que ocorre a

transmissão das informações pode fazer com que esta se dê de forma superficial.

Uma das respostas a essa pluralidade da informação é a padronização dos usos e

costumes, a perda das hegemonias políticas/territoriais e as constantes trocas entre culturas.

Segundo Hall Stuart,

“... as fronteiras dissolvidas e as velhas certezas e hierarquias da

identidade são postas em questão. Os confortos da tradição são

fundamentalmente desafiados pelo imperativo de se forjar uma nova

auto-interpretação, baseada nas responsabilidades da tradução

cultural.” (HALL, 2006)

Um exemplo, no Brasil, é a ampla divulgação do Papai Noel, que é hoje, em todo o

mundo, cultivado como um símbolo natalino, mas que a maioria da população não sabe da

sua origem e nem tampouco consegue decodificar seus símbolos. É comum ver no interior do

Brasil a fusão entre Papai Noel, as pastorinhas e os presépios, num claro exemplo do

hibridismo cultural. Sendo assim, todas as verdades até então conhecidas precisam ser

repensadas em conformidade com a atuação do setor cultural, com suas políticas e com suas

avaliações.

As culturas, os modos de vida, e as diversas idéias de diferentes grupos transitam por

vários lugares, não importando o espaço e a distância. Como resposta a essa interação de

informações, a sociedade passa a produzir identidades plurais, somando identidades e culturas

de diferentes lugares que possuem modos e opiniões distintos do seu lugar de origem,

provocando deslocamentos ou a descentralização do indivíduo.

“Na globalização o indivíduo passa a ter uma identidade fragmentada ou várias

identidades” (HALL, 2006). É essa identidade que se encontra em processo de formação e

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expansão nas culturas atuais. Podemos entender cultura como uma convenção e, como tal,

está diretamente ligada a aspectos políticos e estratégicos – diferentes formas políticas vão

estabelecer diferentes conceitos de cultura.

No entanto, cultura é muito mais abrangente que seu conceito e precisa ser apreendida,

na sua totalidade, como forma de uso, costumes e valores de uma sociedade. Considerando a

cultura de uma forma sistêmica, vamos nos ater apenas a uma parte que trata do patrimônio

imaterial que tem se colocado à luz de várias ações no campo da cultura. E é neste cenário

globalizado, sem fronteiras definidas, com acessos facilitados que se propaga com mais

rapidez a troca de informação e conhecimentos, que estão ocorrendo os projetos de

preservação e promoção do patrimônio. Por essa falta de delimitação de espaços, tanto

territoriais quanto humanos é que devem ser balizados os parâmetros para a avaliação e a

construção de indicadores.

Segundo a Organização das Nações Unidas para Educação Ciência e Cultura -

UNESCO (2003):

“... entende-se por patrimônio cultural imaterial as práticas,

representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os

instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são

associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os

indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio

cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de

geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e

grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e

de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade

e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural

e a criatividade humana.”

Seguindo o raciocínio da UNESCO, um patrimônio imaterial deve ainda ser

legitimado pela comunidade na qual estiver inserido, deve cumprir os estabelecimentos da

convenção dos Direitos Humanos e deve ser compatível com as formas de desenvolvimento

sustentável.

Todas essas formas de expressão podem acontecer nas diferentes áreas do

conhecimento: seja nas tradições e expressões orais (incluindo o idioma), nas artes, práticas

sociais, rituais e atos festivos, conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo,

nas técnicas artesanais tradicionais.

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Para a manutenção destes segmentos, políticas de patrimônio que têm estimulado

ações de conservação e salvaguarda deste patrimônio imaterial, seguindo as orientações da

“Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial”, formulada pela UNESCO

em 2003 estão sendo discutidas. Porém já se pode observar a dificuldade de abrangência dos

setores – considerando a diversidade de tipologias e de argumentos que se estabelecem em

cada um dos setores das áreas do patrimônio.

Observando a Convenção da UNESCO, e a política de patrimônio imaterial do Brasil,

nota-se que há bons princípios em sua formação, o que faltam são ferramentas para colocar

em prática estes conceitos. É importante uma discussão mais ampla, mais aprofundada, mais

sistematizada para que seja possível passar da teoria para a prática.

Tomemos como exemplo o item 3º do artigo 2º da Convenção para salvaguarda do patrimônio

cultural imaterial que diz:

“Entende-se por „salvaguarda‟ as medidas que visam garantir a

viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a

identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a

proteção, a promoção, a valorização, a transmissão – essencialmente

por meio da educação formal e não-formal - e revitalização deste

patrimônio em seus diversos aspectos.”

Este artigo, apesar de propor a definição do termo, não esclarece o que precisa ser

feito, desta forma é quase impossível se aventurar estabelecer quais as ferramentas seriam

adequadas – uma pesquisa sobre o assunto é de suma importância.

Se entendermos que viabilidade significa como dar condições para que o patrimônio se

sustente e se perpetue, deveremos associar vários setores como economia, saúde, segurança,

meio ambiente, para que seja possível estabelecer o parâmetro de viabilidade. Entendemos,

porém, a dificuldade de articulação entre estes setores que, por vezes, apresentam políticas de

desenvolvimento contraditórias.

Na sequência o texto sugere possíveis ações como identificação, documentação e

termina com a revitalização. Esta é uma questão bastante polêmica quando se trata de avaliar

os projetos culturais. Será mesmo adequado promover a revitalização de patrimônios

culturais? E caso seja feita essa revitalização, será que ela acontece como ação de

salvaguarda? Será que um patrimônio, que por sua definição já é dinâmico e mutável,

necessita de revitalização? Sobre o olhar de quem? São colocações difíceis de compreender e

de responder, pois sempre haverá variantes a serem consideradas.

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Com relação às políticas de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial brasileiro,

acreditamos que os princípios teóricos, que estão sendo abordados para a proposição de

indicadores, estão adequados quando pressupõe a relação entre as políticas sociais que visam

dar sustentabilidade econômica às comunidades a fim de que seus bens culturais também

sejam preservados. O que nos parece é faltam ferramentas adequadas que possam ultrapassar

as necessidades imediatas de cada ação e possam ajudar na construção de uma base de dados

consistente para futuras tomada de decisão.

“A utilização ou a comercialização indevida de conhecimentos

tradicionais; a modificação de produtos artesanais para

comercialização e consumo rápidos; a desagregação de contextos

culturais provocada por impactos gerados por migrações, problemas

econômicos, pelo turismo não planejado ou pela implantação de

grandes empreendimentos, são algumas das ameaças que pesam sobre

o patrimônio cultural imaterial.” (SANT‟ANA, 2008)

Sendo assim observamos a grande necessidade de se discutir o assunto de forma que

inclua, também, as políticas públicas de desenvolvimento no campo da educação, cultura e

economia, pois ações neste sentido não podem ser feitas de forma isolada. E, neste cenário,

verificamos que precisamos da construção de indicadores culturais que possa nos ajudar a

comparar, construir bases de dados sólidas que possam embasar políticas públicas amplas e

melhorar as ações dentro dos projetos em desenvolvimento.

Indicadores

A palavra indicador, do latim Indicator, se refere a descobrir, apontar, anunciar e

estimar; a partir destas definições e também, segundo BELEN (2006) podemos propor como

as principais funções dos indicadores:

- avaliação de condições e tendências;

- comparação entre lugares e situações;

- avaliação de condições e tendências em relação às metas e aos objetivos;

- prover informações de advertência;

- antecipar futuras condições e tendências.

A função do indicador é agrupar informações e fazer com que elas tenham maior

visibilidade, associando os dados primários e os dados analisados de forma a transformá-los

em subsídios para formulação de índices. Esse agrupamento de informações deve acontecer

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de forma a simplificar os dados, melhorando, assim, a assimilação de seu conteúdo,

favorecendo melhores análises de situações e conjunturas mesmo complexas.

Ilustração 1 - Pirâmide de informações. Fonte HAMMOND et al. (1995). Adaptação do

autor.

A avaliação deve ser cíclica, promovendo a comparação constante em períodos de

tempo, para que seja possível avaliar e observar as tendências no espaço tempo. Um dos

objetivos na construção de indicadores está em aprender com as experiências passadas,

construindo assim uma base de dados que permita intuir sobre processos futuros.

Em geral os indicadores são apresentados de forma gráfica ou estatística, porém não podem

ser confundidos com os próprios dados, eles são variáveis agregadas. Os indicadores não são

neutros, eles são formulados a partir de uma premissa que se quer observar e traz consigo todo

um referencial teórico próprio, daí a necessidade de estabelecer claramente o que vai ser

observado e a partir de qual cenário, e deixar isso de forma explícita para os que vão tratar

estes dados.

Indicadores culturais

A construção de indicadores culturais exige, antes de tudo, uma definição do que é

cultura e a sua estratégia política de desenvolvimento e organização. Sendo assim, é mister

que se esclareça o campo de estudo e suas subdivisões de forma clara e objetiva.

Considerando a diversidade de entendimentos que se tem sobre o conceito de cultura e seus

setores, pode-se avaliar a dificuldade em se estabelecer critérios homogêneos para sua

avaliação.

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Se entendermos cultura apenas no seu aspecto restrito do produto e da arte,

deixaremos de observar os aspectos antropológicos da cultura em todos os campos das

relações humanas. Mas, se ao contrário utilizarmos o conceito de cultura no seu aspecto mais

amplo, cairemos em questões de interseção da cultura com as demais ciências humanas, deste

modo deveremos estar preparados técnica e conceitualmente para empreendê-los.

Porém, esse não é um problema só brasileiro, segundo dados debatidos no

Observatório Cultural do Itaú Cultural pudemos observar, pelas experiências relatadas, que

essa é uma dificuldade mundial. Apesar de alguns países já terem algum tipo de experiência

mais adiantada nesse setor – como é o caso da França – as suas dificuldades também são

muitas.

A falta de uma discussão mais ampla entre os estados nacionais faz com que a

possibilidade de comparação entre países seja dificultada. Entendendo cultura como um

elemento que diz respeito ao humano, e que não respeita fronteiras, veremos que a

necessidade de estabelecer comparações entre países é muito importante para que seja

respeitada a diversidade cultural em todos os territórios e para que se possa realizar, com mais

facilidade, a troca de conhecimentos – as informações de um país podem servir como

referência para outro, promovendo, assim, uma maior integração e interação nas ações

multinacionais.

A necessidade em se estabelecer parâmetros internacionais, além das questões de

políticas internacionais que precisam de dados para categorizar países, é também positiva

quando se pretende analisar a formação de territórios culturais que não respeitam,

necessariamente, as fronteiras geopolíticas. Desta forma, ao se considerar indicadores com

parâmetros internacionais, é possível estabelecer e avaliar com mais propriedade estas fontes

de interseção cultural. Essa falta de padronização faz com que seja difícil estabelecer políticas

de cultura no setor macro, deixando as premissas de difusão da cultura também um pouco

retraída.

A construção de indicadores na área da cultura é recente no Brasil, e tem seu início

pautada em avaliações econômicas. No entanto, as avaliações têm partido para análises mais

amplas sem, porém, desconsiderar a importância dos dados econômicos da cultura, já que, em

alguns casos, ela acaba por ser o que poderá propiciar a sua conservação. Tem sido discutida a

necessidade de se pensar também os dados qualitativos da cultura.

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Existem muitas discussões acerca do assunto, segundo TOLLILA os dados

quantitativos também trazem questões qualitativas já que a eles também dizem respeito o

universo da cultura e, se consideramos a cultura no seu sentido antropológico, teremos a

economia como objeto de estudo. Sem a pretensão de apontar uma verdade podemos trabalhar

apenas com o consenso de que é necessário estudar todos os aspectos do setor, sejam

quantitativos ou qualitativos, pois ao avaliarmos apenas um segmento teremos sempre uma

idéia menor da análise em questão.

Segundo o exemplo citado SILVA, durante o encontro sobre indicadores culturais,

promovido pelo Observatório do Itaú Cultural em 2005, existem dados estatísticos que

mostram o aumento do uso do artesanato tradicional como elemento nas coleções de moda

brasileira. Vários estilistas e grifes têm utilizado o artesanato como elemento, seja decorativo

ou de base, para a confecção de suas coleções. Ao nos depararmos com esses dados é

importante observarmos todas as suas implicações. Avaliar apenas o valor econômico que está

sendo mobilizado nesse comércio para o setor artesanal seria desconsiderar outros fatores

importantes. Por exemplo: um valor sozinho não é capaz de relacionar a forma como esse

trabalho está sendo desenvolvido, qual o seu grau de sustentabilidade, se essa ação está

ajudando realmente a promover e a preservar os fazeres tradicionais ou, se ao contrário, está

tirando o real valor simbólico das peças, deslocando o artesanato do seu contexto. Enfim, um

dado não pode abarcar todas as ordens em questão.

Entendemos que capital cultural é uma “herança” de conhecimentos e/ou de produtos

culturais acumulados pelo indivíduo em sua vida, às margens de sua família e de seus

ambientes externos por onde interage. Segundo BOURDIEU (1998) essa “herança” pode

acontecer de três formas:

- estado incorporado: são aqueles conhecimentos adquiridos pelo indivíduo através de sua

vivência e experiências verdadeiras de relação com as formas culturais. Esse capital

incorporado faz parte do indivíduo e se acaba com sua morte;

- estado objetivado: são os capitais culturais estabelecidos pelo acúmulo de bens materiais

adquiridos ou herdados pelo indivíduo, não sendo, no entanto, fruto de vivência particular.

Esses bens podem ser de posse de um indivíduo que não tenha o conhecimento incorporado

para poder fazer a fruição desses bens. No entanto esses bens não desaparecem com a morte

do indivíduo, eles podem ser repassados para outras pessoas;

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- estado institucionalizado: É o capital cultural de valor convencional, que confere ao portador

um status social.

Para a avaliação de projetos na área de patrimônio acreditamos ser importante

observar as formas de capital cultural de estado incorporado. Devemos buscar compreender

como acontece a assimilação das informações referente aos processos e qual a participação do

meio nas decisões. Pode-se avaliar se foram preservados os processos e escolhas do individual

e se eles se apropriam destas informações de forma a se tornarem parte de si, parte de deu

patrimônio cultural.

Se pensarmos nas bases de dados econômicos, ainda há poucas iniciativas, ficando

como principais exemplos as pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística - IBGE, que tem sido de fundamental importância para o setor cultural, não só pela

competência com que tem sido realizada – dentro do universo e conceitos do instituto –, mas

pela constante presença em debates com o objetivo de melhorar suas formas de verificação e

análise. Vale lembrar que o IBGE não trata apenas de dados econômicos, mas também de

aspectos socioculturais.

A partir da afirmação DURAND (2005) de que “nem tudo o que é importante é

mensurável, nem tudo o que é mensurável é importante”, podemos observar outra dificuldade

do setor –que é a definição do que será avaliado e por quê. É cogente lembrar que indicadores

são dados e, como tal, precisam ser processados e comparados no tempo e no espaço, para que

façam sentido.

Outra preocupação importante é que tudo o que é avaliado passa pelo filtro do

avaliador. Isso quer dizer que, por mais bem elaborados e conceituados os indicadores, eles

poderão vir a sofrer interferências das equipes que estiverem fazendo as coletas dos dados,

das análises e do próprio público externo. Um problema que pode acontecer é uma avaliação

causar a falsa impressão de que bom é o que está sendo avaliado, criando assim um

direcionamento do olhar externo para essas questões, interferindo tanto que acabaremos

valorizando o que está sendo estudado e não estudando o que é valorizado.

Em relação à função, os indicadores podem ser definidos como sistêmicos ou de

performance. Sistêmicos estão relacionados a setores que já possuam normas e padrões

estabelecidos. Considerando a área de cultura e a sua complexidade o que mais se aproximaria

de suas necessidades seria o de performance que:

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“... são ferramentas para comparação, que incorporam indicadores

descritivos e referências a um objetivo político especifico. Fornecem

aos tomadores de decisão informações sobre o grau de sucesso na

realização de metas locais, regionais ou internacionais. São utilizados

dentro de diversas escalas no campo da avaliação política e no

processo decisório.” (BELLEN, 2006, p. 48)

Outra forma de classificar os indicadores seria nos embasarmos nas suas

características. Sendo assim eles podem ser:

-“estratégicos: quando se referem à meta;

- de sustentabilidade: quando aferem a consecução de propósitos de políticas;

- de resultados: quando avaliam o desempenho de programas e projetos determinados;

- de atividade: quando apontam características de desempenho”.

(REVISTA OBSERVATÓRIO CULTURAL, 2005).

Seja qual for a forma adotada para classificá-los, o importante é que eles cumpram o

seu objetivo que deve ser o de registrar, de avaliar dados importantes e que, de alguma forma,

esses dados possam ampliar ou ratificar outros conhecimentos.

Um indicador por si só não traz tanta informação se não for avaliado dentro de sua

metodologia de construção e seus objetivos. Segundo MACHADO (2007) “o indicador

avalia, mais do que descreve”, por isso a necessidade de se ter outras ferramentas para que se

possa descrever a situação e apontar soluções pontuais.

Ao se propor algum indicador a projetos culturais de patrimônio, é importante que seja

verificado a autenticidade desta ação. Entende-se autenticidade com o pressuposto de um

dado lugar e momento histórico, ou seja, do contexto. É que essa autenticidade pode ser

mudada se qualquer fator humano ou ambiental sofrer algum tipo de variação. A

autenticidade deve ser relativizada, sendo assim sua busca deve ser amparada em estudos

mais complexos e amplos que possam revelar mais processos do que conceitos estáticos. E,

com essa variável inconstante e relativizada, também devem ser compreendidos os

indicadores que vão tratar dessas questões.

É preciso, também, considerar a vocação da comunidade e que se obtenha dela a

validação da ação de avaliação. É preciso que a comunidade compreenda qual a real intenção

da avaliação e de seus resultados. Essa preocupação se justifica pela fragilidade de algumas

comunidades, principalmente quando são de baixo poder econômico ou vivem em situação de

risco. Nestas comunidades a urgência de suprimir as necessidades básicas como, por exemplo,

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de alimentação, saúde, moradia ou acessos, podem sobrepor a objetivos específicos. Nesse

cenário podem acontecer as interferências externas graves que podem ferir ou distorcer uma

história ou um processo – tudo isso justificado pelo possível retorno financeiro esperado.

O perfil dos profissionais envolvidos nessas avaliações também merece destaque, pois

devem ter, além de conhecimento técnico, a sensibilidade para ir além das perguntas e o poder

de observar a forma como as ações se estabelecem na comunidade – as relações de poder ou

subordinação. A observância do caráter mutável dos bens culturais e as suas autênticas

mudanças realizadas a partir da apropriação dos indivíduos dos novos modos de fazer e de

viver.

A multidisciplinaridade das equipes, formadas por pesquisadores, antropólogos,

educadores, economistas, entre outras especialidades, podem ajudar a atenuar as dificuldades

de compreensão de vários aspectos que podem ser considerados nestes setores.

É também muito importante observar que o patrimônio imaterial está intimamente ligado ao

seu lugar de origem e, desta forma, deve ser compreendido como parte de um todo, composto

por fatores humanos, econômicos, ambientais etc. Sendo assim, é imprescindível a presença

de um profissional com visão sistêmica que possa avaliar várias questões do setor cultural em

sintonia com os demais setores, sejam econômicos ou políticos.

Considerações finais

“Las cifras no son más que un aspecto del vasto problema del conocimiento de los

fenómenos culturales” (TOLILA, 2007). Quando falamos de patrimônio geralmente falamos

de algo a ser preservado; no entanto, quando se fala de imaterial, se fala de algo em constante

mudança. É essa dicotomia que motiva o trabalho de pesquisar as formas de avaliação dos

projetos culturais relacionados nessa área, já que devem estar em sintonia com essas

particularidades, não devendo ser simplificados em número apenas, mas analisados e

contextualizados. É importante que os dados sejam analisados por um especialista e que sejam

disponibilizados para quem está, na prática, à frente das tomadas de decisões.

O grande interesse pela preservação dos patrimônios imateriais tem propiciado ações

que visam apoiar e promover comunidades tradicionais. No entanto as ações estão ocorrendo

dentro de um cenário complexo e de numa linha tênue entre a preservação, a intervenção e a

sustentabilidade dos seus envolvidos.

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Desta forma, a avaliação sistêmica destas ações se faz fundamental para que haja

eficácia e eficiência em seus resultados, oferecendo, assim, dados para o fortalecimento de

indicadores culturais. Essa avaliação se faz necessária para que se cumpra os objetivos

propostos pelas políticas internacionais de preservação e salvaguarda de patrimônios

imateriais que estabelecem a preocupação com a preservação da cultura imaterial como

mutável e, desta forma, não podendo ser realizada de forma estática; sem considerar as suas

relações com a identidade plural da humanidade.

“A avaliação é um processo de identificar, obter e proporcionar

informação útil e descritiva acerca do valor e do mérito das metas, do

planejamento, da realização e do impacto de um objeto determinado,

com o fim de servir de guia para tomar decisões, solucionar

problemas de responsabilidade e promover a compreensão dos

fenômenos implicados.” (STUFFLEBEAM apud AGUILAR &

Ander-Egg,1994)

Assim, podemos dizer que uma avaliação pode ajudar a prevenir ou minimizar os

problemas de distorção de objetivos vivenciados nos projetos culturais. Tratar da avaliação

sistêmica de projetos na área de patrimônio imaterial poderá auxiliar nos processos de

salvaguarda e proteção destes bens, pois pode ajudar a mensurar o grau de envolvimento e

empoderamento das comunidades com seus saberes.

Nesse caso a avaliação terá grande peso na área qualitativa, pois os dados estatísticos

não conseguem descrever os níveis de interação dos participantes nestes processos. Mas, para

que sejam eficazes, as discussões devem ser direcionadas a responder questões claras e

objetivas, seguindo os padrões internacionais e, principalmente, respeitando as diversidades e

particularidades impostas pelos patrimônios vivos, mutáveis e humanos.

Portanto, pensamos ser imprescindível nos atentarmos para a interferência que

podemos fazer no universo do patrimônio cultural ao avaliarmos ou deixarmos de avaliar, ao

construirmos ou deixarmos de construir indicadores sólidos que norteiem e possam corrigir

futuras ações. Fazendo isso estaremos cuidando não só da permanência, mas também da

essência do patrimônio cultural imaterial brasileiro.

A avaliação de projetos culturais deve cuidar do indivíduo, do espaço onde ele está e

de sua forma, de desenvolvimento e perpetuação cultural para, assim, podermos entender o

resultado do seu produto cultural.

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