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Índice

I

ÍNDICE GERAL

..............

I

Resumo .............. V Abstract .............. VII Agradecimentos .............. IX INTRODUÇÃO .............. 1 Objecto .............. 1 Mapeamento da escrita: entre as coordenadas

da modernidade e da ambivalência

.............. 9

A História possível do aluno surdo na Casa Pia de Lisboa .............. 22 Os autores e a escrita .............. 26

I PARTE

PRÓTESE-OUVINTE:

QUESTÕES TEÓRICAS E ARTICULAÇÕES PRÁTICAS

..............

29

A formação de um objecto: a invenção da surdez .............. 31 Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa: governamentalidade, police, poder e biopolítica

..............

49 A produção de saber sobre o aluno : biopolítica e normalização, saber e poder

..............

73 O surdo como hóspede entre ouvintes .............. 89 A construção do aluno surdo como sujeito ético: técnicas do eu, confissão e poder pastoral

..............

105 O corpo e a disciplina na hospedagem da língua .............. 123 A rotina dos dias num internato: aprender a ser e a estar .............. 135

II PARTE

A ESCOLA COMO OFICINA DAS ALMAS

.............. 149

1.OLHAR A PAISAGEM EDUCATIVA:

A ESCOLA COMO OFICINA DAS ALMAS

1.1. A escola para todos

..............

157

1.2. Os surdos na escola .............. 169 2. A admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa: saúde e higiene, exames e registos

..............

191

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Índice

III

3. As regras da casa

.............. 211

4. A comunicação entre os da comunidade surda: poder e resistência

..............

227

5. HOSPEDAR A PALAVRA NO CORPO DO HÓSPEDE

5.1. O método oral puro: coreografia de gestos, vibrações e respirações

..............

235 5.2.O período preparatório e a educação dos sentidos:

a visão e o tacto

.............. 247

5.3. Preparação do aparelho vocal: exercícios respiratórios .............. 263

5.4.Provocação da voz e leitura da fala .............. 269

5.5. Ginástica, ritmos e equilíbrios .............. 279 6. Um manual com 600 imagens

..............

289

7. A SALA DE AULA COMO LABORATÓRIO

7.1. Objectos, jogos e lições de coisas

..............

309

7.2. O corpo, a alma e o ofício: os trabalhos manuais .............. 327

7.3. O desenho .............. 341

7.4. A arte da escrita: a caligrafia .............. 367 ALGUMAS PALAVRAS FINAIS

..............

377 ÍNDICE DE IMAGENS

..............

385 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

..............

397

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V

RESUMO

Este texto procura traçar uma história do aluno surdo na Casa Pia de Lisboa no arco

temporal que vai desde os anos vinte do século XIX até às primeiras décadas do

século XX. Propõe-se uma abordagem centrada na figura do aluno surdo enquanto

objecto de enunciações discursivas que o produzem como um corpo anormal,

fixando-se nesses discursos o referente que nos permite pensar a constituição dos

sujeitos enquanto seres históricos.

O quadro aqui considerado é o de uma paisagem educativa de expressão

moderna, habitada por grupos de especialistas que desenvolvem uma linguagem

científica tendo a criança como objecto de intervenção. A escola e, no caso presente

um modelo escolar de internato, emerge como instituição disciplinar que reflecte a

nova atitude no governo da criança. É este o cenário em que se projecta um conjunto

de técnicas de intervenção que têm como ponto de aplicação o educando e como

objectivo, a sua normalização. Ao longo deste texto os alunos surdos surgem como os

Outros na arena educativa, ainda que o poder operante no tecido escolar não seja lido

naquilo que potencialmente teria de violentação de um estado surdo, mas antes na

produtividade que esse poder transporta ao possibilitar a transformação dos escolares.

Os processos educativos na Casa Pia de Lisboa centraram-se num domínio oralista,

mas foi nas actividades artísticas, manuais e na exploração dos sentidos que

encontraram formas de subjectivação dos escolares.

Elementos centrais neste estudo são as tecnologias disciplinares, biopolíticas e

do eu que, dirigindo-se aos alunos surdos no sentido de um domínio, vigilância e

controlo se desprendem intensamente de regimes coercivos e se fixam nos campos da

persuasão e de um trabalho sobre a alma do educando. Procede-se assim a uma

análise de questões teóricas numa perspectiva de governamentalidade e à sua

articulação com o domínio das práticas que marcaram a construção do surdo

enquanto aluno e a produção da sua identidade a partir de um quadro escolar de

carácter total.

Palavras-chave: Casa Pia de Lisboa; aluno surdo; governamentalidade; modernidade

pedagógica.

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VII

ABSTRACT

This text aims to trace a history of the deaf pupil in Casa Pia de Lisboa during a

temporal arch that goes from the XIX century’s twenties until the first decades of the

XX century. An approach centred in the deaf pupil as a subject of discursive

statements that produce him as an abnormal body is proposed, fixing in those

speeches the reference that allows us to consider the formation of subjects as historic

beings.

The frame considered here is the one of a modern expression educational

landscape, inhabited by specialist groups that develop a scientific language having the

child as intervention subject. The school and, in the actual case a boarding-school

scholarly model, emerges as a disciplinary institution that reflects a new attitude in

the child’s government. This is the scenery in which an intervention techniques set

which has the pupil as an application point and its normalization as an objective is

projected. Along this text deaf students emerge in the educational arena as the Others,

though the powers that be in the school tissue are not read in what they would

potentially have had of violation of a deaf state, but rather in the productivity that

those powers carry by enabling scholars transformation. The educational processes in

Casa Pia de Lisboa are centred in a spoken domain, but it was in artistic, hand-made

activities and in the senses exploration that they found the scholars’ subjectiveness

ways.

The central elements in this study are disciplinary, biopolitic and self

technologies, addressing deaf in a domain, surveillance and control sense are

intensely disengaged from coercive regimes and fix themselves in persuasion fields

and in work about the pupil’s soul. In this manner an analysis of theoretic questions

in a governmental perspective is made and it is articulated with the practice domain

that has marked the formation of the deaf as a student and his identity’s production in

a total institution.

Key words: Casa Pia de Lisboa; deaf student; governmentality; pedagogical

modernity.

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IX

AGRADECIMENTOS

Agora que chega ao fim esta fase de intenso trabalho por entre leitura e escrita, a

memória do que foram estes últimos meses surge como uma sequência de imagens,

ainda muito presentes para que consiga escrever sobre elas. Foi uma época de

múltiplos acontecimentos pessoais, quase todos bons. A estas imagens estão também

ligadas pessoas que significam muito para mim.

Quero dirigir uma palavra muito especial ao Professor Jorge Ramos do Ó pela

orientação científica e pela amizade. A sua disponibilidade para ouvir, para falar, para

ler e comentar criticamente cada fase deste projecto, ainda quando o seu tempo era

escasso. O seu apoio, estímulo e entusiasmo constantes foram determinantes para que

este trabalho se desenvolvesse, apesar das incertezas que, às vezes, eu própria me

colocava. Não me esquecerei do muito que aprendi e cresci a ouvi-lo. A sua presença

na minha escrita foi, e é, marcante. Pela compreensão do que é o acto da escrita, do

que são os sujeitos da escrita e de que forma se processam as articulações entre eles

na construção de sentidos. Devo-lhe também a descoberta, para mim claro, de

autores-textos que me permitiram pensar e escrever. A sua postura na investigação e

na vida, levaram-me a compreender ainda melhor que só faz sentido criar coisas

quando se partilha, se confronta, quando é possível uma relação produtiva e de prazer

com os outros.

A todo o grupo do Mestrado em Educação Artística da FBAUL com quem no

último ano me relacionei de uma forma próxima, à Catarina, à Helena, à Leonor, à

Manuela, ao Pedro e à Teresa, une-me uma enorme amizade e cumplicidade.

Admiro-os a todos profundamente. Foram muitas e boas as conversas, as discussões,

as partilhas de ideias. Foram bons os sábados de manhã (quase sempre) que passei em

sua companhia enquanto a escrita de cada um ia ganhando forma e se contavam as

descobertas de arquivo ou de biblioteca, ou quando à volta da mesa só havia

questões. À Helena e à Leonor devo muito pelas suas palavras de ânimo, pelos seus

comentários e pelas suas ideias, pelas conversas que, às vezes, a distância obrigava a

que fossem escritas. Também à Catarina, com quem nos últimos meses fui mantendo

contacto escrito, com o agrado de pertencer à sua lista colorida.

É justo mencionar ainda todas as pessoas que trabalham na Biblioteca do

Centro Cultural Casapiano que expressaram simpatia durante a nossa presença nas

instalações, no período de pesquisa de material. Igualmente, um agradecimento muito

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X

especial para aqueles que continuam a manter vivo o Ateneu Casapiano e que

manifestaram sempre grande disponibilidade para nos receber nas suas instalações e

nos presentearam com histórias feitas de experiências pessoais. Não posso deixar de

lembrar o Sr. Hélder pela sua dedicação e persistência em encontrar material que

fosse importante para este trabalho.

Gostaria ainda de agradecer aos amigos que foram ficando ligados a esta

escrita, que queriam saber novidades, que estavam sempre prontos para ouvir, que

respeitaram também os meus silêncios e as minhas ausências, por vezes, prolongados.

Para todos eles dirijo um afectuoso abraço de gratidão.

As palavras finais de agradecimento são dirigidas aos meus pais, às minhas

irmãs, Lena e Dália, e ao Filipe. Aos meus pais, por terem sempre acreditado em mim

e apoiado os meus desejos. Eles são, sem dúvida, as duas pessoas mais marcantes na

minha vida, de quem me orgulho profundamente. Às minhas irmãs, porque cada uma

à sua maneira, me apoiaram e me deram confiança para seguir em frente. É aliás essa

atitude que pauta a imagem que tenho delas, desde sempre. Ao Filipe, por me ajudar a

ver e a perceber, cada dia que passa, pormenores importantes na vida.

Se o momento da escrita é, de alguma forma, solitário, só tem sentido se se

comunicar com os espaços e com as pessoas das nossas vidas.

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XI

Para o Filipe.

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“On the one side A, on the other side B and in the middle, a line. A/B.

Whether visible or not, the line which comes in the middle of binary

oppositions draws not only a limit separating the one from the other but

also a minus line: A is not B. The line in the middle comes to mark the

place of the other with a loss or lack. B becomes the minus, the negative

of A. And so the story goes on: difference is the lack of identity, fiction

is the negative of truth and abstraction is the minus of reality” (Lomax,

1989: s/p).

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Introdução

1

INTRODUÇÃO

OBJECTO

Só imagino o início desta tese como um convite para uma viagem. Endereçado ao

meu leitor ou à minha leitora que foram sempre imaginados ao longo da escrita. Feito

o convite, cumpre-me enunciar o plano da viagem, mas deixando desde já claro que

no deslocamento de um ponto para outro, as possibilidades na escolha de um caminho

são múltiplas. Tal como os riscos. Poderá sempre o leitor ou a leitora, optar por seguir

um caminho paralelo ou, justamente, pensar um caminho contrário ao meu. Todavia,

se pretender seguir comigo em viagem, – o que muito me agradaria –, o meu único

desejo será partir neste instante.

Nas próximas páginas desenvolve-se uma investigação centrada na figura do

aluno surdo na Casa Pia de Lisboa, temporalmente situada nos anos que vão desde a

década de vinte do século XIX até aos primeiros cinquenta anos do século XX.

Contudo, mais do que uma narrativa cronologicamente sequenciada, será meu

objectivo propor uma história do aluno surdo na Casa Pia de Lisboa, tentando

inteligibilizar processos que permitiram a construção do surdo enquanto aluno, no

longo arco temporal que se apresenta. Deste modo, a escrita não terá como fio

condutor um elemento temporal, mas antes uma linha de pensamento que se articula

em conceitos que vão desenhando a imagem do aluno surdo. Quando falo em história

do aluno surdo na Casa Pia de Lisboa refiro-me a uma construção em tensão

constante, para tentar compreender a razão e a forma pelas quais os surdos foram

sendo representados como os Outros da instituição. O título desta dissertação

pretende significar isso mesmo. Prótese-ouvinte constrói-se sob um campo

discursivamente estruturado na produção da diferença que o estado surdo significaria.

Fala de enunciações discursivas que permitiram ao surdo habitar um território

marcado pela presença maioritariamente ouvinte. Há diversas questões que me

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Prótese-ouvinte

2

interessa colocar, ainda que a resposta se vá encontrando fragmentada no próprio

processo de expor o problema.

Num primeiro momento, parece-me importante compreender o modo pelo

qual a modernidade fixa os objectos: como se mostram e denominam, como figuram

e são ditos, como se reproduzem e articulam. Falo, evidentemente, da formação do

objecto surdez, da sua invenção e só depois, num movimento que cerca duplamente o

objecto, colando-o a um corpo – o do surdo. Direi surdez como invenção e surdo

como anormal porque, como terei oportunidade de desenvolver, os objectos ganham

corpo nas formações discursivas que os constituem enquanto objectos e no caso da

surdez como anormalidade, foi através da sua cristalização conceitual que se gerou a

possibilidade de intervir sobre um estado. O estado surdo. Como será sugerido nesta

viagem, o que menos importava no cenário educativo era a doença e a cura, o que

mais importava era a anormalidade e a correcção. É a normalidade que se instala

como estado regular.

Esta escrita, apesar de assumir um movimento elíptico em que os conceitos

que tornam legíveis os quadros que se apresentam se visitam regularmente, procura,

no seu conjunto, oferecer uma imagem final feita de matizes várias, onde é possível,

apesar de tudo, encontrar contornos que sugerem formas objectivas. Muitas delas,

estando inscritas num passado de há quase um século, parecerão extremamente

contemporâneas aos leitores de hoje. Mas essa é uma evidência que a voz de diversos

actores que foram marcando a pedagogia, nos permite comprovar, construindo uma

memória tantas vezes ausente. Refiro-me, por exemplo, à liberdade e autonomia do

aluno inseridas num quadro de autoregulação, à ideia de uma escola que deverá

proporcionar e explorar em cada aluno as suas aptidões, ir de encontro ao interesse do

pupilo, a um ensino hoje reclamado por medida1, e que, já no caso das crianças

surdas, já no das crianças normais, já no século XIX e inícios do século XX, marcava

vincadamente os discursos. As propostas da Escola Nova, que tiveram como

principais representantes Claparède, Ferrière, Montessori, e em Portugal, Faria de

Vasconcelos ou Adolfo Lima, entre outros, falavam na diferenciação dos escolares,

no respeito pela individualidade e natureza de cada criança, no perscrutar das aptidões

1 Esta expressão de Edouard Claparède tem que ver com a consideração das características etárias, sexuais e psicológicas de cada

criança que deveriam passar a ser consideradas no processo educativo, passando então a educação a responder às necessidades intelectuais e às aptidões de cada aluno e não a uma adaptação do aluno ao que, invariavelmente, a escola lhe propunha.

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Introdução

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de cada uma, dos seus interesses e tudo isso eram prolongamentos de uma tarefa de

governo do aluno e de técnicas disciplinares, agora cada vez mais inclinadas a atingir

a criança no seu interior, a esculpi-la a partir da alma. O caminho seria de um

autogoverno do aluno. Este, seria autónomo e livre se se dominasse a si mesmo, se

adquirisse uma disciplina interior tal, que comportamentos, acções, pensamentos, se

enquadrassem nos quadros regulamentares estabelecidos. Mas falo também, de uma

educação especial que cada vez mais reclama uma averiguação e análise da criança e

do seu percurso, do ambiente em que cresceu, de um conhecimento e capacidade de

análise e interpretação do sujeito-criança, de uma individualização e, tudo isto, inicia

de uma forma regular o seu aparecimento nas enunciações discursivas e preocupações

da escola, no já longínquo pós 1850. A educação dever-se-ia exercer tendo por base

um saber do professor sobre o educando. Só assim, a realidade particular de cada

aluno era tida como elemento fundamental ao exercício do poder.

Começarei, portanto, por referir que a narrativa que se segue se constrói a

partir de uma ambivalência. E este é o primeiro risco. Mas, também, o verdadeiro

interesse desta escrita. A ambivalência, tornou claro para mim Zygmunt Bauman, é

“um aspecto normal da prática linguística” e decorre de duas das principais funções

da linguagem, o nomear e o classificar. “O ideal desta “função

nomeadora/classificadora” seria “alcançar” “uma espécie de arquivo espaçoso” que

contivesse “todas as pastas que contêm todos os itens do mundo”. Ora, tal arquivo

seria um tipo de objecto de conservação que associaria cada item a seu lugar. “É a

inviabilidade de tal arquivo que torna a ambivalência inevitável”, porque arquivo se

compromete com reunir, com ordenar, com desejar uma eternidade pela memória

(1999: 9-11). Classificar implica sempre incluir e excluir. Nomear inclui em si,

dividir o que pode e o que não pode pertencer a um grupo. Geralmente entre uma

escolha e outra, ou, a uma e a outra escolha se atribui positividade ou negatividade.

Não é isso que se pretende nesta escrita. No meu texto, a ambivalência que o constrói

existe porque o meu texto será feito de uma invenção que marcou pessoas, práticas,

espaços, tempos, disciplinas e que criou identidades, comunidades, dispositivos,

representações, exclusões e inclusões, permitiu constituir um saber e um poder

produtivo. O meu texto será marcado por movimentos que, às vezes, não vão num só

sentido.

Foi a invenção da surdez enquanto anormalidade do corpo que possibilitou a

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Prótese-ouvinte

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transformação do surdo em aluno surdo. Defenderei que a vinda até à paisagem

educativa da criança surda, – o que aparentemente parece uma atitude de inclusão –,

se baseou numa política de exclusão, inventando e marcando a diferença e

justificando dessa forma a necessidade do acto educativo para estas crianças. Neste

sentido, mostrarei que o propósito de acolhimento daquele que era inventado como o

Outro dessa paisagem, não foi senão uma táctica para o bom governo da população.

Apresentarei o quadro de hospitalidade oferecido à criança surda como um espaço de

hostilidade porque tinha como referência a figura do aluno ouvinte. Mas os

propósitos que surgiam à superfície dos discursos eram os melhores: dar ao surdo

uma língua com que se comunicar e prepará-lo para a futura relação e integração

social. Foi este o projecto em que o aluno surdo participou: construiu-se a partir de

uma visão enquanto deficiente auditivo, mas tendo em si o poder de transformar essa

condição não só pela aprendizagem de uma língua oral, como pelo domínio de um

ofício. Com um ensino baseado no método oral puro, o estado surdo foi violentado.

Contudo, esta foi a táctica escolhida na reconceptualização de um grupo que, até

então, fugia à racionalidade da nova arte de governo inaugurada pela modernidade.

Esse Outro que foi o surdo foi uma obsessão temática em busca de o conter nas

possibilidades da sua diferença. A normalização constituiu, então, a tecnologia mais

eficaz no governo dos alunos surdos e também aquela que permitia uma constante

organização de saber sobre este novo grupo de escolares. O processo de normalização

teve como espaço de actuação privilegiado a escola, sendo ela mesma uma tecnologia

disciplinar. Quando utilizo o termo de tecnologia, faço-o no sentido que lhe atribuiu

Michel Foucault. Devo, portanto, advertir de que falarei de tecnologias aplicadas

sobre pessoas, o que significa, numa primeira abordagem, montagens que tendo como

ponto de aplicação o ser humano, derivam de saberes cada vez mais racionais e

técnicos. Estas tecnologias manifestam-se na produção de instrumentos, de espaços,

na estimulação de relações que têm sempre por fim agir transformando, de acordo

com modelos-padrão determinados por uma racionalidade governativa.

Ao processo de normalização esteve sempre associado o domínio da

moralidade que “nas sociedades modernas” “remete cada vez menos para sistemas

universais de injunção e de proibição que para um quadro de liberdade regulada” (Ó,

2003: 8). O surdo foi aparecendo nos discursos de sucessivos educadores como sendo

um ser apartado das regras sociais. Logo, a escola teria uma dupla função a exercer

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Introdução

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neste grupo de anormais. Por um lado, oferecer-lhes uma língua com que comunicar,

por outro, aproximá-los das relações e regras sociais.

Sendo o primeiro risco o de mostrar o quanto de exclusão existe nas práticas

inclusivas, o segundo não é menor. Quando me refiro ao ensino da língua oral ao

aluno surdo como única forma de este aceder a uma condição próxima da

normalidade, não o farei tendo por princípio, um quadro de inculcação, mas sim, um

quadro de acção. Como nota Jorge Ramos do Ó, “a matéria ética é historicamente

indissociável do postulado segundo o qual a escola fabricou um tipo de actor que

devia, ele mesmo, ser sujeito da sua própria educação” (2003:3). Ora, tal só seria

possível se na situação específica do aluno surdo, mais do que as regras, as coerções,

as violências várias para dominar a oralidade, ou o típico sentimento de dominação

tantas vezes referido de forma negativa quando se fala em poder, o aluno surdo fosse

convidado a construir a sua própria identidade. E aqui, claro está, o referencial que

lhe era oferecido era o da comunidade ouvinte. Seria a partir deste modelo que o

sujeito surdo aprendia a narrar-se, construindo o seu eu, numa busca permanente por

uma desejada liberdade e autonomia, localizáveis para os lados da normalidade. A

Casa Pia funcionou como dispositivo de normalização, oferecendo no seu território

ao aluno, um processo de subjectivação, quer dizer, de construção da sua identidade

através das diversas relações, práticas, regulações e autoregulações, desejos e

necessidades, modelos de conduta e de autonomia, currículos, etc. Em última análise,

tudo o que acontecia no espaço escolar contribuía, inevitavelmente, para a construção

do surdo enquanto aluno e enquanto cidadão. Parece-me indissociável deste processo

uma centralidade do corpo como construção social, todavia, sendo continuamente

proposto um quadro de liberdade ao sujeito do corpo, no interior do qual ele seria o

seu próprio autor.

A minha tese será a de procurar, nos discursos daqueles que mais

directamente lidavam com a criança surda na escola princípios que, não se aplicando

somente aos alunos surdos, tinham como objectivo intervir sobre as suas atitudes e

comportamentos, inscrevendo-lhes no corpo e na alma fórmulas de regulação da

conduta. Não poderei deixar de referir que os modelos, as técnicas, os dispositivos

inventados para o aluno surdo se deveram na totalidade a uma implicação das

ciências médicas e psicológicas com as pedagógicas. A arte de governo do aluno

surdo esteve dependente da circulação e produção de diagnósticos, observações,

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Prótese-ouvinte

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orientações psicológicas, quer dizer, de um conhecimento profundo do ser mais

íntimo da criança, e isto, mesmo ainda em pleno século XIX. É certo que a

vinculação à escrita dos actores sociais que tinham como tarefa educar estas crianças,

se fez sentir com maior intensidade com a chegada do século XX, mas as sementes já

haviam sido lançadas. Em Portugal, José Crispim da Cunha escreve sobre o seu

trabalho com surdos, nos anos 30 de 1800; em França, 1880, ano em que se realiza o

Congresso de Milão – que haveria de determinar o método oral puro para a educação

dos surdos – era preenchido com uma panóplia de registos das diversas intervenções.

No contexto francês o ensino de crianças surdas em instituições especializadas vinha

já acontecendo desde, pelo menos o século XVIII.

Antes de continuar, julgo oportuno explicar o elemento que articula a escrita

sobre a construção do aluno surdo na Casa Pia de Lisboa, as técnicas e formas de

governo deste grupo de escolares, com aquilo que constitui a escrita da minha

dissertação de Mestrado, inserida na área da Educação Artística. O título pensado

para esta escrita ‘Prótese-ouvinte’, parte da ideia de que o aluno surdo era construído

com base na característica que estava ausente do seu corpo. O ouvir, associando-se de

imediato ao falar, produzia-se enquanto falta e, portanto, anormalidade que não

podendo ser resolvida no corpo surdo, poderia ser investida por uma menor

visibilidade ou apagamento. Apagar a surdez de um corpo era gesto resolvido pela

somatização de técnicas camufladoras do estado surdo. Se ao surdo não era possível

ouvir, era possível disciplinar-lhe o olhar de tal modo que a língua ouvinte fosse nele

hospedada pela sua coreografia labial. Ora, era fazer do ouvinte, estado de desejo

para o surdo e fazer do corpo surdo espaço de acolhimento de uma língua que, ao

atingi-lo se transformava em visualidade e vibração. A língua oral concebia-se quase

como a prótese de origem, um tipo de monolíngua. “É possível ser monolingue”, diz

Derrida e “falar uma língua que não é sua” (2001:18). Na verdade, o ensino das

crianças surdas tinha como eixo orientador do discurso um domínio da oralidade pois

os Outros que eram os surdos eram seres sem-língua que dificilmente sobreviveriam

autonomamente em sociedade. O objectivo pretendido, – de hospedagem de uma

língua oral num corpo surdo –, as técnicas e as formas de concretização passariam

por abordar a criança naquilo que constituiria a sua forma natural e, a forma natural

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Introdução

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surda, é totalmente direccionada pela visualidade2. As crianças surdas só poderiam

aprender e só poderiam seguir códigos de conduta regulados, a partir do momento em

que consciencializassem e organizassem os dados que as diversas experiências lhes

iam proporcionando. O ensino artístico que desde 1780, ano da fundação da Casa Pia

de Lisboa, marcou uma forte presença nos discursos da instituição, foi considerado o

pharmakon destes pequenos anormais. Não só na vertente artística, mas na

exploração das possibilidades que a expressão através do desenho, dos trabalhos

manuais, da música, no desenvolvimento de uma educação sensorial, poderia

significar para preparar o aluno para receber a língua oral, ou não. Jacques Derrida

diria assim sobre o pharmakon, uma daquelas palavras que surge e é significada na

sua própria ambivalência: “Pharmakon, por assim dizer, é ‘a polissemia regular,

ordenada que, por desvio, indeterminação ou sobredeterminação mas sem erro de

tradução, permitiu passar a mesma palavra como ‘remédio’, ‘receita’, ‘veneno’,

‘droga’, ‘filtro’ etc.’” (Bauman, 1999: 64, 65). Ora, no caso das crianças surdas, a

determinância de um ensino assente sobre a educação dos sentidos constituía

simultaneamente a possibilidade de a criança vir realmente a dominar a oralidade ou,

caso tal não acontecesse, pelo menos ir-se-ia construindo enquanto sujeito autónomo,

numa relação consigo mesmo e com os outros, aceitando um processo de

transformação coincidente com o da sua própria normalização. As actividades

artísticas, nomeadamente os trabalhos manuais e o desenho, filiando-se nos discursos

da educação nova, partiam do carácter lúdico das disciplinas, visando uma

autoconstrução do aluno de acordo com o que ditava a sua própria natureza. Por outro

lado, a educação através de um treino dos sentidos acreditava-se desempenhar um

papel significativo no desenvolvimento da criança, processando-se a aprendizagem

dos alunos surdos na Casa Pia de Lisboa através desse treino. Não será,

evidentemente, por acaso, que o treino sensorial ou da vista, a vertente artística e

manual, ocuparam grande parte dos processos de ensino destes alunos. Era no

tacteamento experimental que se estruturava, linha por linha, um processo mediante o

qual o surdo se ia construindo. Trabalhos manuais e desenho pareciam adequar-se às 2 Não é minha intenção abordar no presente trabalho questões específicas de definição do que é uma língua, todavia, parece-me

interessante sublinhar a ideia de que a língua por meio de sinais, de gestos, é uma língua inteiramente visual que se desenvolve sem o recurso à oralidade, problematizando, portanto, a ideia construída sobre a eficácia da palavra oral para o surdo. Contudo, isto não significa que o som seja um elemento dispensável ao surdo. Como veremos na segunda parte desta escrita, o som é explorado pelo surdo sob a forma de vibrações. A língua de sinais desenvolve-se no espaço, organiza a sua sequencialidade, temporalidade e fluidez nos movimentos que acontecem nesse espaço. É uma língua “ essencialmente ‘cinemática’” (Sacks, 2005: 101).

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Prótese-ouvinte

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necessidades de construção da criança, possibilitando-lhe espaços de plena liberdade

e expressão da sua mais pura interioridade. A escola, oferecendo ao aluno um objecto

que se adequava aos seus desejos e necessidades, retirava dessa acção a produtividade

de um saber sobre o educando. O acto de fazer a que a criança surda se entregava,

expunha-se aos olhos do poder de uma comunidade de especialistas. Foram várias as

técnicas usadas na formatação destes alunos. O surdo só se tornou governável, pela

criação de um contexto ouvintista3, através de um método oral puro, porque foram

consideradas características que o próprio estado surdo da criança impunha e que um

saber governativo permitia transformar em poder. Nos programas que desenhavam o

currículo dos alunos surdos da Casa Pia, terei oportunidade de mostrar este forte

investimento nas áreas da sensibilidade visual e táctil, e um treino da atenção,

trabalhado até em exercícios de respiração. Como nos mostra Jonathan Crary em

Suspensions of Perception, a visão não foi, durante o século XIX, o único “layer” de

um corpo que poderia ser “captured, shaped or controlled by a range of external

techniques”, ao mesmo tempo, “vision is only one part of a body capable of evading

institutional capture and of inventing new forms, affects, and intensities”. No caso

dos alunos surdos, a visão assumiu contornos evidentes no processo de normalização

dos alunos e é a partir dessa consagração da visão, própria da identidade surda, que se

pode considerar os mecanismos perceptivos “in a way that insures a subject is

productive, manageable, and predictable, and is able to be socially integrated and

adaptative”. A atenção foi, na verdade, um ingrediente inevitável “of a subjective

conception of vision”, mas foi, igualmente o ingrediente que tornou possíveis as

diversas abordagens sobre o corpo do aluno surdo. Explica-o desta forma Crary:

“attention is the means by which an individual observer can transcend those

subjective limitations and make perception its own, and attention is at the same time a

means by which a perceiver becomes open to control and annexation by external

agencies” (2001: 3, 4, 5).

Cabe-me dizer uma última palavra na apresentação deste objecto que iremos

visitar. Não é minha intenção fazer qualquer julgamento positivo ou negativo do que

aconteceu no domínio da educação das crianças surdas na Casa Pia de Lisboa. Essa

3 O ouvintismo é um conceito desenvolvido por Carlos Skliar (2001: 15) que se desenvolve num contexto dominado pela

oralidade. Diz respeito às “representações dos ouvintes sobre a surdez e sobre os surdos” e assume na sua forma institucionalizada a figura do oralismo enquanto prática dominante e desejável para o surdo.

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Introdução

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posição iria contra toda estrutura desta escrita. Não se trata de um posicionamento pró

ou contra discursos ou práticas, mas antes de uma tentativa de compreensão das redes

complexas que se estabeleceram. Chamo as palavras de Zygmunt Bauman para me

auxiliarem na finalização da apresentação do objecto da viagem que aqui nos reúne:

“a marcha deve seguir adiante porque qualquer ponto de chegada não passa de uma

estação temporária. Nenhum lugar é privilegiado, nenhum melhor do que outro, como

também a partir de nenhum lugar o horizonte é mais próximo do que de qualquer

outro” (1999: 18).

MAPEAMENTO DA ESCRITA: ENTRE AS COORDENADAS DA

MODERNIDADE E DA AMBIVALÊNCIA

Não gostaria de dizer ao leitor ou à leitora que o meu texto se divide em duas partes e

cada uma delas, noutras tantas e, que entre umas e outras, existe uma hierarquia

inquestionável. Na verdade, esta escrita é apresentada em duas partes. Todavia, a

escrita é só uma, como um corpo. A anulação de qualquer capítulo não significaria

inoperância mas, tão só, um corpo outro, diferente. A suplementação com mais

membros resultaria igualmente numa diferença. Anulação e suplemento, um, aponta

para uma neutralização, o outro para um completamento ou para um excesso. A

primeira parte pode ser comparada a um campo construído sobre conceitos, alguns

deles muito próximos ainda dos textos de onde são capturados, mas que tentam uma

aproximação àquele que é o meu objecto de estudo. Na segunda parte, depois de

apresentados os cenários aos leitores, é tempo de mostrar de perto encenações que

apenas haviam sido sugeridas.

Na medida do possível, tentarei explicar o grande princípio que determinou

esta escrita, quer em termos estruturais quer teóricos. Para esta tarefa, porém,

precisarei de abordar a questão do meu objecto de estudo entre dois conceitos: o de

modernidade e o de ambivalência. O que proponho, sendo a construção do aluno

surdo na Casa Pia de Lisboa o meu objecto, é uma visão descentrada,

desterritorializada lançando um olhar sobre a construção do surdo enquanto aluno.

Este olhar apenas o consigo sem me inscrever num quadro feito de opostos. Este

olhar é lançado sobre um objecto inventado como sendo oposto a um outro.

Em primeiro lugar cabe-me explicitar o que pretendo significar quando utilizo

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Prótese-ouvinte

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a expressão modernidade, sendo que a este conceito geralmente se associam marcos

temporais razoavelmente definidos, pelo menos situando-o entre algo que está antes,

uma pré-modernidade, e algo que vem depois, uma pós-modernidade. Utilizo o termo

modernidade conectado ao campo da pedagogia, num arco temporal já aqui referido e

que vai desde 1823 até à década de cinquenta do século XX, muito embora seja um

conceito que ultrapassa a área da pedagogia, inscrevendo-se a um nível da sociedade.

Não sendo minha intenção produzir a história do ensino das crianças surdas na Casa

Pia de Lisboa, mas tão só apontar caminhos de uma história, entre tantas possíveis, a

minha visão da modernidade constrói-se mais como uma continuidade do que como

uma ruptura entre passado e presente, entre uma época clássica e uma época

propriamente moderna, mas também algo que se prolonga até nós e que, embora

incluindo transformações sociais, mutações tecnológicas, formas de racionalização

diversas, nos poderá proporcionar, através de pesquisas históricas, possíveis

proveniências da nossa própria constituição e reconhecimento enquanto sujeitos. O

sociólogo Anthony Giddens, nos seus recorrentes estudos sobre a modernidade,

sublinha a ideia de que “o termo ‘modernidade’ refere-se a modos de vida e de

organização social que emergiram na Europa cerca do século XVII e que adquiriram,

subsequentemente, uma influência mais ou menos universal. Esta definição associa a

modernidade com um período temporal e com uma localização geográfica inicial,

mas, por enquanto, deixa as suas características mais importantes guardadas, em

segurança, numa caixa negra” (1996: 1). Ora, uma das características que irei apontar

ao longo deste texto é a da relação do indivíduo com o Estado, sendo que as relações

sociais passam a ser mediadas por sistemas institucionais e que ao Estado compete o

bom governo da sociedade. Esta tarefa de governação, como iremos detalhar no

segundo capítulo da primeira parte fundamenta-se no conceito essencial de Estado-

nação, que é “um tipo de comunidade social que contrasta de maneira radical com os

Estados pré-modernos” (Giddens, 1996: 9). O sujeito moderno surge envolto numa

aura de liberdade e de responsabilidade individuais, incumbindo-lhe a ele, trabalhar-

se a si próprio para um progresso da sociedade. Pode definir-se esta linha como

evolucionista e unidireccional, baseada numa racionalidade estritamente moderna.

Adriano Duarte Rodrigues afirma que o processo da modernidade “está intimamente

associado ao projecto iluminista, à vontade de substituir a legitimidade tradicional

pela legitimidade que decorre da indagação da razão humana, em ordem à

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Introdução

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constituição de uma suma de saberes, universalmente aceite por qualquer ser racional,

saberes obtidos pela aplicação da razão à perscrutação dos fenómenos e à averiguação

das regras que regem o desenrolar do seu funcionamento” (1999: 64, 65). Se

quisermos, aliás, traçar um paralelo com aquilo que se tende a designar por pós-

modernidade, diríamos, na esteira de Jean François Lyotard4 que a pós-modernidade

coloca uma grande interrogação na grande narrativa da modernidade. Quer isto dizer

que, ao invés de uma só linha de pensamento baseada numa ciência que para cada

problema apresentava uma solução, emerge agora como cenário um ponto de vista

móvel, desterritorializado, abrangente. Michel Foucault sugere uma forma de encarar

a modernidade não como um “marco temporal”, mas como uma “atitude”. “Por

atitude, quero dizer um modo de relação que concerne à actualidade; uma escolha

voluntária que é feita por alguns; enfim, uma maneira de pensar e de sentir, uma

maneira também de agir e de se conduzir que, tudo ao mesmo tempo, marca uma

pertinência e se apresenta como uma tarefa”. Para caracterizar esta atitude Foucault

viaja até àquele que é considerado como um dos homens mais conscientes do século

XIX, o autor de Le peintre de la vie moderne, Charles Baudelaire. Ora, para

Baudelaire, embora a modernidade seja “‘o transitório, o fugidio, o contingente’”,

“ser moderno não é reconhecer e aceitar esse movimento perpétuo; é, ao contrário,

assumir uma determinada atitude em relação a esse movimento”. Não se trata,

evidentemente de uma questão de sacralização do momento presente, nem tão pouco

de coleccionar na mente fragmentos vários, resultantes de uma errância contínua de

olhos abertos, à maneira de um flanêur. O homem moderno é aquele que “‘vai, corre,

procura. Seguramente, esse homem, esse solitário dotado de uma imaginação activa,

sempre viajando através do grande deserto de homens, tem um objectivo mais

elevado do que o daquele que flana, um objectivo mais geral, diferente do prazer

fugidio da circunstância. Ele busca essa alguma coisa que nos permitirão chamar de

modernidade’”. Todavia, não é apenas a relação com o presente que caracteriza o

homem da modernidade, mas antes uma relação consigo mesmo. “A atitude

voluntária de modernidade está ligada a um ascetismo indispensável. Ser moderno

4 Lyotard designa o pós-moderno como “o estado da cultura após as transformações que afectaram as regras dos jogos da

ciência, da literatura e das artes a partir do fim do século XIX. Estas transformações serão situadas […] relativamente à crise das narrativas”. Trata-se, evidentemente, de questionar os metadiscursos a que a ciência recorre para manter o seu “próprio estatuto”, quer dizer, enquanto forma de se legitimar. O espírito moderno consistiria portanto numa ficção, na invenção que “uma regra de consenso entre o destinador e o destinatário de um enunciado com valor de verdade” instituía, sendo “considerada aceitável” se se inscrevesse “na perspectiva de uma unanimidade possível dos espíritos racionais”. Esta era, portanto, a narrativa das Luzes que o pós-modernismo vem problematizar (2003: 11).

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Prótese-ouvinte

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não é aceitar a si mesmo tal como se é no fluxo dos momentos que passam”, “é

tomar-se a si mesmo como objecto de uma elaboração complexa e dura”, algo

semelhante a fazer da existência uma obra de arte. “O homem moderno, para

Baudelaire, não é aquele que parte para se descobrir a si mesmo, seus segredos e sua

verdade escondida; ele é aquele que busca inventar-se a si mesmo. Essa modernidade

não liberta o homem em seu ser próprio; ela lhe impõe a tarefa de se elaborar a si

mesmo” (2005 a: 341-344).

O carácter reflexivo e problematizador da relação com o presente, fixa um

determinado modo de ser histórico e a constituição do sujeito como sujeito

autónomo. É, aliás, neste sentido que cabe um processo de pesquisa não mais fundado

sobre valores universais, mas precisamente uma “pesquisa histórica através dos

acontecimentos que nos levaram a nos constituir e a nos reconhecer como sujeitos do

que fazemos, pensamos, dizemos”. Sem dúvida que a elaboração desta crítica “é

genealógica em sua finalidade e arqueológica em seu método5” (Foucault, 2005 a:

347, 348). Interessa-me clarificar por exemplo que me refiro a uma modernidade

relativamente a formas de exercício de poder quando, recorrendo a Michel Foucault,

considero um poder soberano e uma transformação desse poder para uma forma não

soberana. É aqui que surgirá o conceito de governamentalidade, de um poder que se

exerce como disciplina sobre os indivíduos e como biopolítica sobre as populações. É

esta também a via de transferência deste poder para vários domínios da vida humana,

existindo por um lado uma racionalidade governativa e por outro uma certa arte de

governar. Não será difícil perceber a nova forma de poder se se considerar o

alargamento de práticas médicas a campos como o da escola, passando então a

constituir-se na própria paisagem escolar dispositivos de normalização derivados da

aplicação de instrumentos de medição, classificação e nomeação dos escolares. A

classificação do surdo como anormal permite cristalizar dois pólos referenciais, o

normal e o patológico, sendo que este último será objecto de intervenção ortopédica,

não no sentido punitivo próprio de um poder que se exerce de cima para baixo, mas

antes no interior de uma estratégia produtiva que tem por fim regular, normalizar,

5 Diz assim Michel Foucault (2005 a: 348): “Arqueológica – e não transcendental – no sentido de que ela não procurará

depreender as estruturas universais de qualquer conhecimento ou de qualquer acção moral possível; mas tratar tanto os discursos que articulam o que pensamos, dizemos e fazemos com os acontecimentos históricos. E essa crítica será genealógica no sentido de que ela não deduzirá da forma do que somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer; mas ela deduzirá da contingência que nos fez ser o que somos a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos”.

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Introdução

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atingindo então pontos de equilíbrio no corpo social. A modernidade é também a

época do homem por excelência e como tal, uma época de produção de um saber

sobre o sujeito e de formas de exercício de poder. O corpo tornar-se-ia alvo do poder,

inaugura-se uma microfísica do poder que trabalha o corpo tornando-o produtivo e

útil. O poder dissemina-se pela sociedade, obedecendo a uma racionalidade

governativa assente numa arte de governar que vinha sendo, pelo menos desde o

século XVI uma questão fundamental. Mais adiante voltarei a esta questão com outra

profundidade. Para já, gostaria ainda de lançar um outro fio que me parece importante

para a compreensão da modernidade e que tem que ver com a relação entre o poder, a

verdade e o sujeito. Numa primeira abordagem e de forma sucinta, direi que o poder

moderno é indissociável da produção de um saber sobre o sujeito e que, é destas

formações discursivas que emergem sistemas de verdade tendentes a fixar os sujeitos

em relação a si. São as formações discursivas vindas de campos que se afirmam como

científicos, mas também as práticas que fazem actuar. No presente trabalho

destacaremos algumas dessas práticas: os questionários ou os relatórios médicos

realizados à entrada da criança surda na Casa Pia, as fichas biográficas, ou ainda a

própria fotografia que documenta momentos passados no interior da instituição.

Documentos de arquivo ou imagens a regurgitar para o exterior que certamente

delinearam modos de ver. Na verdade, a modernidade destaca-se por uma forma de

produção dos objectos que adquirem um lugar no mundo das coisas, por uma

visibilidade que lhes é dada pelas formas materiais dos discursos. Mas um outro

aspecto que me parece importante tornar visível é o da relação entre o espaço e o

tempo numa época moderna. E aqui faz sentido considerarmos os termos pré-

modernidade, modernidade e pós-modernidade e pensarmos que estes três conceitos

são atravessados por uma transformação das relações espaciais e temporais. Numa

pré-modernidade a vida social estaria baseada num cálculo do tempo por referência

ao espaço, sendo que aos nossos olhos o tempo marcado adquire contornos de

imprecisão e variabilidade. A marcação mecânica do tempo, por meio do relógio,

vem permitir uma regularidade e um alastramento de um padrão universal com uma

intensidade crescente até aos dias de hoje. E agora, se transportarmos estes dois

conceitos para uma instituição escolar, veremos como tempo e lugar não se

dissociaram, antes foram objecto de um trabalho minucioso que se colou à pele dos

habitantes destes espaços e constituiu um elemento hábil para o seu governo. Mais

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Prótese-ouvinte

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adiante voltarei a esta problemática, a respeito dos horários de organização das

actividades numa instituição como a Casa Pia de Lisboa.

Viajaremos agora até ao terreno da ambivalência.

A modernidade inventou o anormal como par dicotómico do normal, o surdo

como par dicotómico do ouvinte. Um dos termos é sempre construído como o outro

do primeiro termo, o surdo seria o outro do ouvinte. Aqui habita o primeiro grande

problema. Se por um lado gostaria de tornar claro que só se inventa o anormal como

forma de narração do normal, que o surdo serve ao outro que é ouvinte para lhe

garantir a sua normalidade auditiva, a verdade é que esta é uma visão demasiado

estática e que pressupõe dois tipos de sujeito: um que é sujeito porque enuncia e outro

que é sujeito porque sujeitado. Ora, é minha intenção ir além desta superficialidade

que parecerá óbvia aos leitores. Terei de viajar até ao extremo que veria no sujeito

sujeitado um sujeito simplesmente violentado por um outro que sobre ele exerceria

um poder de dominação, todavia, terei também de referir que essa dominação existe

num quadro de racionalidade característico da modernidade. Além disso, aquele que à

partida teria menos força nesta relação não é feito sujeito pelo outro que pronuncia o

discurso, ele constrói-se Sujeito na experienciação desse discurso. O quadro traçado

pela modernidade é de dinâmica, o mesmo é dizer que há técnicas que, por um lado

são repressivas, mas por outro, incitam à produção. O sujeito surdo deveria ele

próprio transformar-se em sujeito surdo à imagem do modelo de surdo que o ouvinte,

– que é o par forte da relação –, para ele traçou. A modernidade não suporta a

ambivalência. Não suporta a presença de estranhos. O surdo era um estranho.

Bauman expõe-o assim:

“Existem amigos e inimigos. E existem estranhos.

Amigos e inimigos colocam-se em oposição uns aos outros. Os primeiros são o

que os segundos não são e vice-versa. Isso, no entanto, não é testemunho de sua

igualdade. Como a maioria das outras oposições que ordenam simultaneamente o

mundo em que vivemos e a nossa vida no mundo, esta é uma variação da

oposição-chave entre interior e exterior. O exterior é negatividade para a

positividade interior. O exterior é o que o interior não é. Os inimigos são a

negatividade da positividade dos amigos. Os inimigos são o que os amigos não

são. Os inimigos são amigos falhados; eles são a selvajaria que viola a

domesticidade dos amigos. O avesso e assustador ‘lá fora’ dos inimigos é, como

diria Derrida, um suplemento” (1999: 62).

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Introdução

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Ora, a tradução destas palavras para o pensamento que tento desenvolver não

pode senão acontecer numa atitude que é ela mesma de atribuição: o ouvinte e os

ouvintes são os amigos, os surdos são os inimigos que os ouvintes imaginam. Uns são

interiores, outros exteriores não à realidade, mas à realidade construída pelas

enunciações discursivas. Os inimigos terão de ser engolidos para serem objectos de

uma acção, quer dizer, terão de ser nomeados. Acção racional e que no seu

acontecimento obriga a uma reciprocidade. Por uma questão de efeitos sobre efeitos,

nunca a imobilidade seria possível como forma de estar. A assimilação do inimigo,

que é o surdo inventado, implica que o inimigo, – o surdo inventado –, reconheça

naquele que é o amigo, – o ouvinte –, a imagem de um outro, desejável, mas

inatingível. O que foi então o desejo da modernidade? Expurgar a ambiguidade.

Porquê? Porque aquele que é visto como o Outro – o surdo inventado –,

efectivamente existia na sua diferença e estava lá – era o estranho. E este estar lá, este

simplesmente estar diante e poder sempre olhar o Outro, – o ouvinte no seu ser e não

no seu ser-ouvinte –, que se queria ver como Mesmo, – como ouvinte, no desenho de

si mesmo –, colocava no jogo de olhares a possibilidade do Outro, – do estranho, isto

é, do surdo-como-ser-e-estado-surdo –, marcar (n)o seu lugar o seu ponto de vista. E

dois pontos de enunciação da visão, são insuportáveis na modernidade. A razão

encontra-se na própria forma de fabricar os objectos: a modernidade consiste numa

nova racionalidade governativa, tudo o que é diferente e estranho tem de ser contido

na diferença, na estranheza, num lugar de negatividade que permita fronteiras fixas e

um movimento auto-querido, auto-desejado de acordo com um planejamento

racional. Acima de tudo, a modernidade governativa tem de eliminar qualquer dúvida

de desejo, e tem de eliminá-la nos sujeitos governados – nos Mesmos e nos Outros –

fazendo-os viver num estado de desejo constante, de felicidade, de ordem prometida.

Porque os sujeitos Mesmos sentem uma espécie de mal-estar no Outro-estar. A

hipótese única de eliminação desse mal-estar vivido pela inquietude de haver um

Outro que, justamente, não respiraria, não partilharia desse mal, era dar como

oferenda a esse Outro o sentimento de um pensamento de ser-Outro, ou pelo menos,

nomeá-lo e classificá-lo como sendo-Outro. Fazer o surdo ler-se como o outro do

ouvinte, quer dizer, a partir da falta de audição. Fazer o surdo desejar caminhar no

sentido daquilo que é inventado como normal – o ouvinte.

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Prótese-ouvinte

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O sujeito surdo deveria construir uma identidade centrada no modelo ouvinte,

internalizando as questões da falta auditiva como incompletude do seu corpo. Essa

identidade só é entendível num contexto de relações de poder e de significações

discursivas que enredavam os sujeitos surdos em processos educativos de tipo

ortopédico. O surdo construiria a sua identidade por referência a modelos sociais,

espaciais, culturais, educativos, familiares em que imperava uma racionalidade

normativa. Para haver norma é imprescindível a existência de um desvio, mas a

norma só vale se conseguir estabelecer com o desvio uma relação tensional em que

sai ganhadora. O papel da norma no contexto da invenção da surdez era, para o surdo,

o de assegurar processos de identificação estáveis, ordenados, devendo ser

percepcionados como desejáveis e necessários à sua estrutura; para o ouvinte, era a

possibilidade de fixar fronteiras estáveis, de definir o dentro e o fora, de assegurar

ainda que provisória, precária e instavelmente uma ideia de unificação e de

ordenação.

A questão na produção e invenção da diferença, tenho mesmo de o tornar

claro, foi a de um sentimento de poder estar a ser visto pelo Outro e a incapacidade

de controlar esse olhar. E de não saber a matriz desse olhar. E de não suportar ser

visto no silêncio. E de pensar, quer dizer, racionalizar um pensamento – indigerível –

de poder haver um Outro que tem prazer em moldes desconhecidos e que não se

deixa revelar, contudo, insiste em viver num território coincidente com o território do

Mesmo. A primeira tarefa a executar é retirar ao estranho a possibilidade de qualquer

importância moral. Situá-lo numa zona de cegueira moral, local de onde tem de ser

ajudado a livrar-se. Esta ajuda tem de ser aceite pelo estranho e pela colectividade,

transforma-se numa missão colectiva de salvação e, neste enredamento o estranho vai

sendo moldado de tal forma que não há-de desejar diferentemente do que o Estado

moderno deseja. Este era o projecto.

“Assegurar a supremacia para uma ordem projectada, artificial, é uma tarefa de

duas pontas. Requer unidade e integridade do reino e segurança das fronteiras. Os

dois lados da tarefa convergem para um esforço único – o de separar ‘dentro’ e

‘fora’. Nada que for deixado dentro pode ser irrelevante para o projecto total nem

resguardar autonomia em relação aos regulamentos da ordem, que não admitem

excepção (‘válidos para todo o ser racional’). [...] “Tornar clara e nítida a

fronteira da ‘estrutura orgânica’, quer dizer, ‘excluir o meio’, suprimir ou

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Introdução

17

exterminar tudo o que seja ambíguo, tudo o que fique em cima do muro e

portanto comprometa a distinção vital entre dentro e fora. Instaurar e manter a

ordem significa fazer amigos e lutar contra os inimigos. Primeiro e antes de mais

nada, porém, significa expurgar a ambivalência. No reino político, expurgar a

ambivalência significa segregar ou deportar os estranhos, sancionar alguns

poderes locais e colocar fora da lei aqueles não sancionados, preenchendo assim

as ‘brechas da lei’” (Bauman, 1999: 33).

Nomeação e classifficação eram tarefas necessárias para um possível

mapeamento. Todavia, a modernidade para Bauman foi criativa porque não sustentou

a criação de ordem numa exterminação daqueles que instabilizavam um estado

normal, mas antes num cultivo das suas diferenças: “it means licensing them. And it

means a licensing authority” (1992: XVI). Autorizar a sua presença, mantendo os

estranhos sob um olhar de vigilância e cuidado contínuos.

De um lado, é este o pensamento que quero transmitir nesta escrita. Esta

prática e esta racionalidade de separar, de estabelecer fronteiras, mas assimilar por

forma a controlar toda a possibilidade de diferença. Mas gostava, igualmente, de aqui

marcar a minha presença fraterna, que não é boa nem é má, num espaço que é suporte

para múltiplos olhares. Passo a explicá-la: neste texto darei conta da surdez como

invenção, um estado fabricado para justificar racionalmente uma diferença,

constituindo em tempo real, nessa enunciação, a própria diferença. Simultaneamente,

essa diferença só se tornaria real se assentasse na falta da audição que o ouvinte sente

que ao surdo faz falta. Esta diferença só vive entre bem e mal, bom e mau, certo e

errado, belo e feio, próprio e impróprio:

“Ela torna o mundo legível e, com isso, instrutivo. Ela dispersa a dúvida. [...] Ela

faz a opção parecer reveladora da necessidade natural” (Bauman, 1999: 63).

Mostrarei aos leitores o sentimento de estranheza que o Outro provoca em sua

existência. Os princípios que, justamente, porque está diante e é o Outro, activa

naquele que quer ter de si a imagem de normal. Os princípios são de luta, de

eliminação, de morte desse Outro. A forma como através do discurso se enuncia a

terrível fatalidade de estar diante de um Outro que se manifesta:

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Prótese-ouvinte

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O “espírito de insubordinação corrompia a moral dos [...] alunos, cujo defeito

físico os constitui os entes mais altivos e indóceis da espécie humana” (Cunha,

1835: 12, 13).

A vontade de assimilar esse ser-Outro:

“Não é ocasião agora de fazer conhecer ao público o trabalho que tive em

descobrir no intrincado labirinto da gramática portuguesa uma vereda filosófica,

segura, e fácil para ensinar a nossa língua a estes infelizes, a paciência que para

isso é necessária, e os cuidados que nos deu a educação desta deplorável gente, a

mais estúpida, ingrata, e indomável da sociedade” (Cunha, 1835: 17).

Estúpida, deplorável, ingrata e indomável, mas que, mesmo assim, terá uma

hipótese de vida, será objecto de compaixão:

“Direi somente neste lugar que não há ouro em todo o mundo que pague os

desvelos que requer tão árduo ministério, e que nenhum homem poderá

desempenhar tão difícil tarefa, se a paixão dominante do seu coração não for o

amor da humanidade” (Cunha, 1835: 18).

O anormal é o outro do normal. Só num processo de comparação entre as

virtudes de uns e os defeitos de outros, se dá aos primeiros um sentimento estável de

sua identidade e, simultaneamente, aos segundos, uma possibilidade de correcção

segundo a matriz dos primeiros:

“O surdo-mudo, socialmente, é um ser inferior; mas nem por isso deixa de ter

direito à vida e ao convívio humano […]. A sua inteligência é acanhada, porque

lhe faltam duas grandes fontes de ideias, - a audição e a fala; a sua linguagem

limita-se geralmente ao gesto: no entanto os pensadores e os filantropos têm

desde há muito buscado minorar-lhe a desgraça, fazendo-o participar de todas as

condições sociais” (Vasconcelos, 1889: 5).

Todavia, o Outro vai resistindo, vai manifestando a sua estranheza:

“Dois outros sentidos, a vista e o tacto, hão-de nos dar, em graus diferentes, esse

meio poderoso. O surdo-mudo pode ver, numa outra pessoa, a posição exacta dos

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Introdução

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orgãos produtores da fala na maior parte dos sons” (Fusillier, 1893: 393).

É neste movimento que o surdo é feito objecto de um discurso. É construído

como alvo de práticas correctivas que pretendem anular a sua estranheza

inassimilável, colocando-o como o outro lado da oposição binária ouvinte. Esta

atitude assimiladora tem como princípio conter uma força que pressente poder

rebelar-se a qualquer instante. É essencialmente este poder que faz com que o

governo do aluno surdo se estruture tendo por base uma característica do estado surdo

– a visão. Vimos a violência e um poder de dominação, mas teremos de ver também a

positividade de tal poder: é um poder que qualquer que seja o seu plano tem de

obedecer à condição que o Outro, o estranho, lhe impõe – e essa imposição é a visão.

E essa imposição resulta de um outro elemento que é próprio da nova arte de

governo: o saber para poder. Instala-se, portanto, nesta escrita, uma circularidade

inexpugnável.

Ao ser assimilada pela modernidade, a diferença seria uma nomeação e uma

classificação com lugar no arquivo do mundo ordenado e, como tal, o estranho seria

tolerado enquanto inimigo. Mas o segundo problema, e o que constitui

verdadeiramente um arrastamento desta presença dos estranhos na modernidade até

aos dias de hoje, e o que constitui para mim o problema e o pensamento sobre o

ensino das crianças surdas na Casa Pia de Lisboa, é a permanência hoje, muito mais

acutilante da estranheza, da sua força de vida, do seu respirar, do seu viver de um

modo diferente do meu. Nem melhor, nem pior, diferente porque é do Outro e porque

eu sou também um Outro na relação. Porque tanto eu como o Outro somos

fabricações discursivas. E se procuro construir ao longo desta tese um fio condutor de

uma estranheza que foi sendo racionalizada não é, agora, para saber como prosseguir.

Esse caminho conduziria, talvez a uma “paralisia terminal”. Afinal, foi isso que a

modernidade fez com o sentimento da estranheza: suprimiu, exilou porque sentiu que

poderia “perecer” ante a presença do Outro (Bauman, 1999: 68). É porque esta escrita

tem como pretensão pensar na contemporaneidade um problema que se situa num

tempo passado, para compreender, hoje, pontas que nos chegam e de que é difícil

encontrar a ponta inicial, que esta escrita tem de se tecer num arrastamento contínuo

de outras escritas. É porque o objecto desta escrita está inscrito num tempo que

desejava neutralizar a ambivalência através de um planejamento racional que, esta

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Prótese-ouvinte

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escrita é necessariamente ambivalente. A modernidade pretendeu aniquilar os

estranhos fixando fronteiras entre o dentro e o fora, entre o normal e o anormal. Para

uns e para outros desenhou movimentos: o normal circularia num estado de

permanente autoregulação para que não se aproximasse da fronteira; o anormal, teria

duas hipóteses: permanecer para sempre um excluído ou lutar por um lugar de

inclusão. Em ambas as situações o cenário seria o mesmo, de uma eterna

(in)exclusão, de um permanente estar fora, mesmo sendo devorado pela

institucionalização. Mas há um aspecto que se torna difícil explicar e, todavia,

impossível de permanecer na sombra. Já aqui o referi e voltarei a repeti-lo: o surdo só

se transforma em aluno surdo, independentemente dos referentes que lhe são

possibilitados, porque ele próprio se constitui como sujeito construtor da sua

identidade. E neste processo o aluno surdo haveria de desejar aproximar-se o mais

possível do ouvinte.

Depressa se percebeu que o enquadramento de crianças em risco, anormais ou

delinquentes, numa instituição escolar, teria de ter como ponto de partida a própria

criança. Chamando à memória as palavras de Rousseau, ainda em 1761, dizendo

sobre o aluno num aconselhamento ao mestre “que ele creia sempre ser ele a mandar

e que sempre sejais vós a fazê-lo. Não há submissão mais perfeita que aquela que

conserva o aspecto da liberdade; desse modo, até a vontade se submete”. Eis pois, os

dois lados da mesma folha, liberdade e disciplina que não serão aqui entendidos

antagonicamente. “Certamente, ela só deverá fazer o que quer; mas só deverá querer

o que quereis que faça; não deverá dar um passo que não tenha sido previsto por vós;

não deverá abrir a boca, sem que saibais o que vai dizer” (1991: 118). Ora, esta

ambivalência leva-nos a reflectir criticamente sobre as nossas próprias ideias acerca

do que foi e do que é a escola.

A reflexão que agora me proponho serve-me, a mim, para pensar a questão da

exclusão na escola, da invenção do Outro que não foi um vazio na paisagem

educativa. Nem, por outro lado, a sua presença foi totalmente desconsiderada. O

Outro da escola foi também um actor e, por isso mesmo, quando falo em poder de

dominação sobre o surdo, não me refiro a uma lógica linear. Há um conjunto de

técnicas e de práticas que enredam o aluno surdo levando-o a reagir e a responder. As

técnicas e as práticas fundam-se num saber sobre o aluno que o levará a desejar

aquilo que, efectivamente, a escola pretendia que ele desejasse. Num primeiro

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Introdução

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momento a criança surda é colocada num quadro de necessidade de salvação, para

que se possa passar à fase da dependência em relação ao ouvinte e à vontade

individual de transformação e normalização. Leva-me também a pensar sobre um

desenvolvimento de técnicas dirigidas à alma do aluno, “em que se começou a

admitir que estes menores apenas entrariam num processo de aprendizagem dos

conteúdos disciplinares e de modos de conduta quando tivessem a capacidade de

dominar internamente as experiências que as instituições de reeducação e assistência

iam colocando à sua disposição” (Ó, 2003a: 9). Há, portanto, uma espécie de

costuração do aluno surdo às práticas normalizadoras que está, neste momento, em

processo de descosturação ou, pelo menos, em processo de problematização. No meu

ponto de vista, este pensamento, – que é o que também procuro nesta escrita produzir

–, deverá sempre que possível, construir-se tendo por base uma linha de que se

saibam as pontas, ainda que não se pré-saiba o que irá resultar. Uma coisa parece-me

cada vez mais evidente, a tentativa de desocultação dos discursos e das práticas que

foram marcando a produção do Outro, permite-me aceder a uma outra história: a da

invenção de nós mesmos, fortemente marcada pelo interface pedagógico. Boaventura

de Sousa Santos, em Um Discurso sobre as Ciências destaca a ideia de que a actual

forma de conhecimento é significativa se a essa produção estiver associado “um

conhecimento compreensivo e íntimo que não nos separe e antes nos una

pessoalmente ao que estudamos” (1990: 53). Partilho desta ideia e deste carácter

quase autobiográfico e autoreferenciável do pensamento e da escrita científica, ainda

que, deva advertir os leitores, a abordagem de um objecto de estudo como os alunos

surdos ou a surdez funcionem, para mim, como pontos de mediação onde me é

possível visualizar e mostrar práticas e construções alastráveis a outros campos.

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Prótese-ouvinte

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A HISTÓRIA POSSÍVEL DO ALUNO SURDO NA CASA PIA DE LISBOA

Já aqui tentei transmitir que a minha intenção enquanto investigadora, na proposta

que apresento de uma visão da construção do aluno surdo na Casa Pia de Lisboa não

tem como preocupação restaurar um passado naquilo que ele efectivamente terá sido.

Pelo menos, não pretende fixar os acontecimentos, os elementos, a formação de uma

identidade que aqui se conta – a do aluno surdo – num quadro de irreversibilidades.

Interessa-me, mais do que reconstituir, trazer à memória enunciações discursivas do

passado que, hoje, podem ser analisadas numa dimensão que explora a forma como

essas mesmas enunciações construíram um regime de verdades e, como se

prolongaram no tempo. Parece-me interessante a compreensão de um padrão de

normalidade, – associado a uma racionalidade governativa própria de uma

modernidade recém-inaugurada – , íntima e interiormente articulado com uma arte de

governo para que se pudesse instituir como verdade.

Em O governo de si mesmo, Jorge Ramos do Ó, verifica que a racionalidade

governativa se consubstancia “nas inúmeras deliberações tendentes a inventar,

promover e instalar mecanismos de tipo normativo que devem conformar os sujeitos;

circunscreve um espaço de cálculo e de controlo”. A arte de governo, segundo o

mesmo autor, “evidencia os problemas, as dificuldades que aqueles enunciados

enfrentam para se implantar e atingir os seus objectivos mínimos. Sendo a arte de

governo” “uma arte essencialmente falhada, impõe-se retornar ao princípio, levando a

que o planeamento e as agregações estabelecidas pela primeira se intensifiquem de

novo” (2003: 58, 59). Ora, traduzindo este quadro para a compreensão do que foi a

história da criança surda na Casa Pia de Lisboa, não posso deixar de a compreender a

partir dos enunciados discursivos sobre aquilo que se dizia e se legitimava como

sendo a surdez, sobre o que deveria ser o surdo e sobre o papel da educação para as

crianças surdas. Estes três aspectos convergem numa racionalidade governativa que

para operar necessitava de ordenar, de estabelecer fronteiras entre o que inventava

como normal e como anormal. Todavia, não basta à racionalidade governativa a

criação de um dentro e de um fora se, nestes espaços se jogam diversas forças e

relações. Diz assim o autor de O Poder simbólico:

“Ninguém pode lucrar com o jogo, nem mesmo os que o dominam, sem se

envolver no jogo, sem se deixar levar por ele: significa isto que não haveria jogo

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Introdução

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sem a crença no jogo e sem as vontades, as intenções, as aspirações que dão vida

aos agentes e que, sendo produzidas pelo jogo, dependem da sua posição no

jogo” (Bourdieu, 1989: 85, 86).

Em suma, não basta impor, ou antes, a imposição é totalmente dispensável

quando surge como algo que sendo parte integrante da racionalidade governativa, terá

de se afirmar como desejo daqueles que são governados. Não me parece, portanto,

que uma história do que foi um sujeito possa ser contada apenas por aquilo que se

pensa que esse sujeito sempre terá sido. Parece-me importante situar esse e os outros

sujeitos envolvidos nas relações, como actores que estão estrategicamente colocados

em cada ponto. Novamente me explicarei aos leitores: tenho para mim que adoptar

uma posição a favor ou contra um problema, implica pensar esse problema e multi-

problematizá-lo a partir de um ponto de vista – que é o meu – mas informado e

enformado noutros pontos de vista, que até mim chegam através da escrita. A escrita

de diversos actores e do que aí se espelha do que se pretendia que fosse o governo das

crianças surdas, mas, pelas lentes de outras escritas designadas como pós-

estruturalistas6, questionar e verificar que aquilo que se afirma como sendo a surdez,

o surdo, a deficiência, a normalização, são imagens que pretendiam criar modelos de

pessoas que entroncassem por completo na racionalidade governativa proposta. Mas

esses mesmos discursos não eram lineares porque não dizem respeito somente a

instituições, mas a relações entre instituições e pessoas. O deslocamento que me exijo

é um descentramento relativamente a um núcleo a partir do qual sairiam as leis que

seriam aplicadas sobre os alunos surdos. É verdade que os alunos surdos são

habitantes de uma instituição, mas pela condição dinâmica de habitar é que não se

pode entender uma racionalidade governativa apenas como dominação linear,

aplicada verticalmente, de cima para baixo. Os surdos foram hospedados na paisagem

educativa e foi a condicionalidade dessa hospitalidade que fez deles hóspedes-reféns.

É inquestionável, do meu ponto de vista, que as crianças surdas foram objecto de

governo, que foram violentadas na sua condição surda, que foram dominadas por

6 O pós-estruturalismo é um termo utilizado para caracterizar o pensamento crítico de autores como Jacques Derrida, Michel

Foucault, Roland Barthes, entre outros, que propuseram um outro olhar sobre os objectos e os acontecimentos, desconstruindo a tese de significado único em relação a um significante. No fundo, trata-se de olhar objectos e relações não como entidades fixadas por regras verticalmente impostas ou como resultado inevitável de um devir histórico, mas antes como relações móveis entre práticas, formações discursivas, objectos, regularidades e estratégias. Diz assim Culler (1984) “‘postestructuralists investigate the way in which this project is subverted by the workings of the texts themselves’”. Traçando um paralelo com o estruturalismo, dir-se-ia que “‘structuralists are convinced that systematic knowledge is possible; postestructuralists claim to know only the impossibility of this knowledge’” (Ó, 2003: 85).

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Prótese-ouvinte

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práticas normalizadoras, mas há um aspecto que eu não quero esquecer na minha

análise: o da arte de governo. A racionalidade governativa é inseparável da arte de

governo e, esta, mostra a cada momento que as relações são dinâmicas e compõem-se

de efeitos vários para os quais, será necessário, um estudo constante e reactualizado

das técnicas e tácticas para que os princípios da racionalidade governativa sejam

minimamente cumpridos. O governo dos alunos surdos esteve dependente sempre de

um saber impulsionado por um poder, para formar um querer que permitisse nova

aplicação de poder. Impunha-se um conhecimento profundo do que seria a criança

surda para exercer sobre ela um poder. Este conhecimento mostrou que aquilo que

hoje é a marca assumida do ser surdo, foi, no passado, o que sempre determinou

qualquer acção sobre o sujeito surdo. A experienciação visual da surdez – não só o

olhar que vê, mas a língua que não é ouvida, mas vista. O poder não é, então algo que

se detenha numa mão, não é localizável num ponto, ele circula e será percebido não

numa relação, mas numa infinitude de relações de nível microscópico. Escreveu-o

assim Jorge Ramos do Ó:

“Dir-se-á, em primeiro lugar, que o poder não tem homogeneidade, é difuso e

exercido por todos. Mesmo aqueles que usualmente nos aparecem no papel de

marginalizados têm, de facto, meios e recursos próprios tanto para deflectir as

ordens, para se submeter parcialmente ou mesmo resistir, como, igualmente, para

agir de forma localizada. Mas o mais importante estará em ver que estes

movimentos não são externos ao poder, meros sinais de dissenção ou de revolta..

[…] Se a grande questão em torno do poder é a da sua reificação, há então que

dizer que esta não existe sem resistência. Portanto, o poder é menos uma

propriedade que um jogo estratégico” (2003: 64).

Só será possível identificar estes jogos estratégicos através da análise das

práticas levadas a cabo nas relações entre diversos actores. Obviamente que estas

práticas são determinadas de acordo com uma racionalidade governativa que fixa as

fronteiras, os regimes de verdade pelos quais todos se deverão reger. Isto significa

que serão utilizadas técnicas de governo que penetram a interioridade dos sujeitos,

constituindo-os cada vez mais como sujeitos ocupados consigo mesmos. Diz assim

Nanine Charbonell sobre o conceito de interioridade: “on fait de l’intérieur la

répresentation convenue de la mémoire, mais aussi bien de l’intelligence ou des

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Introdução

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qualités morales”(1991: 216). Ao inscrevermos na interioridade do sujeito a

possibilidade de algo mais do que um cenário visceral, inscrevemos nesse sujeito um

psiquismo que será articulado com mecanismos éticos, ou, correr-se-ia o risco de esta

interioridade não se manifestar senão como acultural. A escola teria por tarefa

trabalhar o sujeito a partir da sua interioridade, fornecendo-lhe simultaneamente duas

modalidades de relação: a relação consigo mesmo e esta, em relação com os outros. A

subjectividade dos alunos foi sendo configurada numa relação idiossincrática

consigo, no interior de um dispositivo escolar governamentalizado.

A história da criança surda na Casa Pia, como a irei contar, será a de uma

criança que é transformada em aluno deficiente, mas que constrói a sua própria

identidade com base num princípio de sujeito livre e autónomo, de acordo, parece

evidente, com um olhar e um olhar-se normativo, de tipo ouvinte. A sua liberdade

será mais um instrumento da governamentalidade. A racionalidade governativa da

modernidade prende-se, como veremos, com a verdade, com o poder e com a

subjectivação dos sujeitos governados. Neste processo toda uma rede de actores é

envolvida:

“Thus the exercise of government has become enmeshed with regimes of truth

concerning the objects, processes and persons governed—economy, society,

morality, psychology, pathology. Government has both fostered and depended

upon the vocation of 'experts of truth' and the functioning of their concepts of

normality and pathology, danger and risk, social order and social control, and the

judgements and devices which such concepts have inhabited” ( Rose, 1999: 30).

Do cenário exposto por Nikolas Rose fica evidente que os sujeitos são de

forma cada vez mais intensa, até à actualidade, traduzidos em enunciações

reveladoras da sua interioridade. A fronteira separadora entre interior e exterior,

público e privado, normal e anormal articula-se nos discursos de especialistas que

viajam para o interior de dispositivos disciplinares: a escola, a prisão, os internatos,

etc.

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Prótese-ouvinte

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OS AUTORES E A ESCRITA

A escrita deste texto nunca teria sido possível sem um núcleo de autores que

passaram a inundar a minha vida. Foi um processo lento, como o é qualquer processo

de transformação. Houve recuos e avanços, houve, essencialmente, tempos e espaços.

Muitos conceitos, muitos silêncios neste processo de hospedagem que pretendia,

desde o início, construir uma casa com grandes rasgos de luz e de portas abertas para

permitir a passagem, o movimento, a permanência mais ou menos prolongada, a

entrada e a saída. Para permitir também uma visibilidade constante do interior para o

exterior e o avesso deste olhar. A proposta era, no interior desta casa e através da

escrita, ir construindo uma tessitura.

No espaço de tempo que durou esta escrita habitaram e estou certa que daqui

para a frente continuarão a habitar o meu pensamento, – porque esta casa existiu em

imagem em mim mesma – , Michel Foucault, Jacques Derrida, Zygmunt Bauman,

Thomas S. Popkewitz, Nikolas Rose, Erving Goffman, Jorge Ramos do Ó, António

Nóvoa, Julia Varela e Alvarez-Uria e Carlos Skliar . Estes autores foram aqueles que

viveram dia e noite no pensamento desta escrita, que sustentaram e alicerçaram cada

minuto, cada olhar, cada proposta de interpretação, cada contar que aqui se lê.

Foucault, Derrida, Bauman, Goffman e Popkewitz são, sem dúvida, os autores

a quem peço conceitos para pensar. Mas são Ó, Nóvoa, Skliar, Varela e Alvarez-Uria,

Nikolas Rose que me ajudam nessa tarefa porque, precisamente, já eles escreveram

sobre o que também eu quero escrever.

Facilmente se encontrará na extensão deste texto a presença dos autores que o

motivaram. Antes, porém, é minha obrigação explicar ao meu leitor ou à minha

leitora a minha relação com estes autores e a implicação desse contacto para a

produção desta escrita. Procuro conceber o momento da escrita como o momento em

que me sento à mesa em companhia de outras escritas. E são estas que possibilitam a

minha própria escrita, fornecendo-me lentes pelas quais olhar. Mas falta nesta relação

um outro termo. A escrita de outros autores que não me fornecendo propriamente as

lentes para ver, me oferecem as paisagens a ser vistas. Escritas todas elas com

sujeitos da escrita que, por isso mesmo, por corresponderem as suas escritas também

elas a tessituras de outros textos, os autores desaparecem e fica a sua existência como

acto, como pensamento, como interioridade, como possibilidade de abertura que os

próprios autores esquiçaram na sua escrita: aquilo que Bakhtine chamou de

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Introdução

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dialogismo, que é a intertextualidade, que se aprofunda num sentido de

interdiscursividade:

“Face ao texto entendido nesta perspectiva, a noção de autor perde a sua

pertinência para ser substituída pela de sujeito do texto, o nome próprio que

advém de uma configuração específica do lugar de sujeito no processo de

significância; isto é, um nome é sempre e em última análise já um texto, ou o

nome de um texto, de uma configuração específica de textos. Como tal, o texto é

uma malha particular, polifónica, de citações, de transposições” (Babo, 1986:

s/p).

O texto dos autores encontra-se limitado pelos gestos que o antecederam e só

a partir dessa herança poderá aquele que escreve, tecer nova tessitura. A nova escrita

apropria-se directamente das outras escritas pela citação. Esta técnica, se traz ao texto

que se fabrica uma imagem de autoridade, vale mais, sobretudo, pelos vazios que

possibilita. Primeiro, ela resulta de um processo de leitura de um todo, depois, é

resultado desse processo. A sua imagem inicial é a marca, o sublinhado, o destacado

de uma escrita. Mas a citação compromete aquele que lê, porque o incita ao processo

da escrita, da reescrita. Mas este não é um movimento de pura repetição, ele próprio

se exige como outro significado, outro sentido. E se esta é a possibilidade para uma

interessante polissemia, é também o espaço para um comprometimento sério com o

texto.

Muito embora eu julgue essencial num texto que compõe o corpo de uma tese,

esclarecer-me totalmente perante quem lê, parece-me que mesmo assim há vazios.

Alguns acontecem para mais tarde serem resolvidos, com outro tempo e com outra

profundidade. Outros acontecem como vazios da própria escrita, como espaços ainda

sem significado e à espera de um porvir. “Mas fazer isto”, diz-nos Derrida “é ainda

um modo de dar a ler. Se dermos a ler qualquer coisa de totalmente inteligível,

qualquer coisa de plenamente saturado de sentido, não o daremos a ler ao outro. Dar a

ler ao outro significa também deixar desejar […] significa simplesmente

hospitalidade à leitura do outro e não recusa do outro” (2006: 48).

Por isso esta escrita é um convite.

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Prótese-ouvinte

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I PARTE

PRÓTESE-OUVINTE

“ Todas as sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie de

sociedade produz sua própria espécie de estranhos e os produz de

sua própria maneira, inimitável. Se os estranhos são as pessoas

que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do

mundo – num desses mapas, em dois ou em todos três; se eles,

portanto, por sua simples presença, deixam turvo o que deve ser

transparente, confuso o que deve ser uma coerente receita para a

acção, e impedem a satisfação de ser totalmente satisfatória; se

eles poluem a alegria com a angústia, ao mesmo tempo que fazem

atraente o fruto proibido; se, em outras palavras, eles obscurecem

e tornam ténues as linhas de fronteira que devem ser claramente

vistas; se, tendo feito tudo isso, geram a incerteza, que por sua vez

dá origem ao mal-estar de se sentir perdido – então cada

sociedade produz esses estranhos. Ao mesmo tempo que traça suas

fronteiras e desenha seus mapas cognitivos, estéticos e morais, ela

não pode senão gerar pessoas que encobrem limites julgados

fundamentais para a sua vida ordeira e significativa, sendo assim

acusadas de causar a experiência do mal-estar como a mais

dolorosa e menos tolerável”

(Bauman, 1998: 27).

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Prótese-ouvinte

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A formação de um objecto: a invenção da surdez

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A FORMAÇÃO DE UM OBJECTO: A INVENÇÃO DA SURDEZ

Observação psicológica pela prova de Rey

(Amaral, 1954)

“‘É preciso, tanto quanto ela autoriza, tornar a ciência

ocular’”

(Foucault, 2004: 96).

Na imagem, a surdez é o objecto gritante que não se vê.

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Questões teóricas e articulações práticas

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A formação de um objecto: a invenção da surdez

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“A relação com o ser, que actua como ontologia, consiste

em neutralizar o ente para o compreender ou captar. Não

é, portanto, uma relação com o outro como tal, mas a

redução do Outro ao Mesmo. Tal é a definição da

liberdade: manter-se contra o outro, apesar de toda a

relação com o outro, assegurar a autarcia de um eu. A

tematização e a conceptualização, aliás inseparáveis, não

são paz com o Outro, mas supressão ou posse do Outro. A

posse afirma de facto o Outro, mas no seio de uma

negação da sua independência. […] A posse é forma por

excelência sob a qual o Outro se torna o Mesmo,

tornando-se meu” (Levinas, 2000: 34).

“A loucura não pode ser encontrada no estado selvagem.[...] Eu

quis dizer que a loucura só se tornou objecto de ciência na

medida em que ela foi descaída de seus antigos poderes.[...]

Afinal de contas, cada cultura tem a loucura que merece. E se

Artaud é louco, e se foram os psiquiatras que permitiram a

internação de Artaud, isso já é uma bela coisa, e o mais belo

elogio que se possa fazer...

-Não à loucura, com certeza...

-Mas aos psiquiatras” ( Foucault, 2002f : 163, 164).

Pensar a surdez enquanto invenção significa, logo num primeiro nível, considerá-la

como enunciação, como objecto impulsionador de um discurso de que ela própria é

objecto último. E não é objecto utilitário, mas operatório. É neste sentido que me

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importa analisar o discurso formador do objecto surdez. Mas o interesse que me guia é a

possibilidade de relacionar a invenção e descrever um objecto, para o poder jogar com

instituições, práticas e relações sociais. A invenção deste conceito irá ser por mim

analisada, do ponto de vista de um discurso que nasce no interior da medicina e que se

relaciona com estruturas institucionais outras. Não é a surdez no contexto clínico, como

patologia pormenorizadamente descrita a nível audiométrico que irei considerar,

todavia, é no seio destas práticas discursivas que se encontra a mola impulsionadora e

legitimadora para um enlace da surdez enquanto anormalidade, por todo o tecido social

e, inevitavelmente, prolongando-se para o domínio educativo e institucional.

Partir em busca somente das causas que propiciaram a invenção da surdez como

anormalidade, não é minha intenção. Procurarei verificar de que forma foi possível,

através de que técnicas, de que formações discursivas e não discursivas acerca da

anormalidade em geral, e da surdez em particular, se construiu um dispositivo de

normalidade, no qual, aquele que foi seu objecto primeiro de formação e exclusão,

haveria de ser incluído.

Era assim descrita a anormalidade por Palyart Pinto Ferreira, professor na Casa

Pia de Lisboa e colaborador da Revista A criança anormal:

“Anormalidade quer dizer desvio da normalidade”, todavia, continuava o autor,

“resta-nos saber onde termina esta e onde começa aquela”. “Caracterizaremos como

anormal toda a criança que por deficiência funcional (física ou psíquica) reage aos

estímulos exteriores duma maneira diversa daquela que em regra se nota na maioria

das crianças”. Caberia neste espaço todo o anormal “por carência” (1930: 8).

Esta constatação de Palyart não era nova nem diferente daquela que, pelo menos

desde Bacon, viria a considerar que o domínio sobre a doença só era possível

conhecendo as “suas relações com o estado normal que o homem vivo” desejava

“restaurar”. O desenvolvimento de teorias que articulavam disfuncionalidades do corpo

por comparação a estados de harmonia, “resultou na formação de uma teoria das

relações entre o normal e o patológico, segundo a qual os fenómenos patológicos nos

organismos vivos nada mais” eram “que variações quantitativas, para mais ou para

menos, dos fenómenos fisiológicos correspondentes” (Canguilhem, 2002: 21, 22). O

que esta ideia traz de útil é que apesar de uma variação quantitativa, normal e

patológico não seriam estados estagnantes, quer dizer, conservava-se uma “confiança

tranquilizadora” de “vencer tecnicamente o mal”. Ora, será esta ideia que justificará, –

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A formação de um objecto: a invenção da surdez

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embora não seja a sua causa única –, os processos terapêuticos e que sustenta os

caminhos de correcção quer em instituições de carácter médico quer educativo. Georges

Canguilhem, na sua primeira análise sobre a fabricação do normal e do patológico,

datada de 1943, mostra de que forma estes dois conceitos se desenvolveram no âmbito

científico, partindo de princípios que aparentemente seriam diferentes. Apresenta-nos,

num contexto francês, dois representantes do pensamento dos estados normais e

anormais. Por um lado, Auguste Comte, cujo interesse se dirigia “do patológico para o

normal”, com o objectivo de pela saturação de um estado, perceber as regras de

funcionamento regulares (Canguilhem, 2002: 23). Por outro, Claude Bernard, centrando

a visão no normal e viajando até ao patológico, na tentativa de racionalizar os estados

que quantitativamente se afastavam de um padrão médio. Cerca de vinte anos depois,

Canguilhem apresenta desenvolvimentos que, não contrariando a sua primeira proposta

de perceber os estados normal e patológico, trazem novas perspectivas para a

compreensão da formação do objecto ou do corpo anormal. Desde logo, o autor ensina-

nos que:

“Norma é a palavra latina que quer dizer esquadro” e “normalis significa

perpendicular”. Óbvio se torna que “uma norma, uma regra, é aquilo que serve para

rectificar, pôr de pé, endireitar”. “Normalizar é impor uma exigência a uma

existência, como um indeterminado hostil, mais ainda do que estranho”

(Canguilhem, 2002: 211).

A norma retira o seu sentido da existência, exterior a si, de estados outros não

correspondentes à exigência de que é referente. Por agora, gostaria apenas de deixar

claro que um estado só se torna preferível a um outro estado, se o primeiro for instituído

ou escolhido como favorável. Quer isto dizer que entre normal e anormal instala-se algo

que é próprio da linguagem, – a nomeação e a classificação –, e uma vontade de

controlar o segundo termo no seu desenvolvimento normal-sem normalização. Mas há

mais uma ideia que Canguilhem nos fornece, e que será essencial para a compreensão

da institucionalização da criança surda e dos processos educativos de normalização do

seu estado. Essa ideia é que não há qualquer diferença do ponto de vista da

normalização entre “o nascimento da gramática no século XVII” e a “instituição de um

sistema métrico no fim do século XVIII”: o que estaria em causa era uma regularidade

favorável na utilização de uma opção em detrimento de outra. O que se pressente,

portanto, é que há uma inter-relação entre enunciações discursivas proferidas em

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Questões teóricas e articulações práticas

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diferentes campos, cujos conteúdos também não se assemelham, mas mantêm entre si

um denominador comum: a regularidade e sistematicidade das regras que determinam a

produção dos discursos de verdade. A regra desejável será ditada pela média. Todavia, é

também de economia e eficácia que se fala: “a normalização é considerada como uma

solução para evitar a confusão de esforços, a singularidade das proporções, a

dificuldade e a demora da substituição das peças, a despesa inútil” (Canguilhem, 2002:

217). À partida, na modernidade, não há diferença alguma entre isolar um criminoso

numa prisão, um louco num hospício ou um surdo numa instituição educativa, todavia,

os discursos que permitem este movimento de exclusão/inclusão, tornam-se legítimos

primeiro, pela sua origem e depois, pelo seu interesse para um corpo que começa a ser

formado: a população. As três situações são racionalizadas como pertencentes a franjas

sociais e neutralizadas pela nomeação, classificação e localização em espaços onde se

espera um processo de regeneração activo.

Mas esta fase é posterior a uma outra que tem no olhar a sua condição primeira.

Michel Foucault, no Nascimento da Clínica, apresenta-nos um texto, do qual destacarei

ideias que permitem verificar a extensão das produções discursivas quando se trata de

fazer ver o anormal. O texto que Foucault traz até nós foi escrito por Charles-Louis

Dumas, professor de fisiologia e de anatomia em Montpellier, em 1807. A minha ideia é

colocá-lo face-a-face com um outro texto produzido um século adiante por Ary dos

Santos, médico da Casa Pia de Lisboa.

Diz assim Dumas: “‘Desvendar o princípio e a causa de uma doença em meio à

confusão e obscuridade dos sintomas; conhecer sua natureza, suas formas, suas

complicações; distinguir, no primeiro golpe de vista, todas as suas características e

diferenças’” (Foucault, 2004b: 95-96). Ary dos Santos, revela a necessidade de:

“Inquirir com todo o cuidado das causas determinantes, das acidentais e das

predisponentes que podem originar a surdo-mudez, e só então se poderá estabelecer

com rigor os casos que pertencem a uma das duas grandes divisões: surdez

congénita e surdez adquirida” (1920: 4). Dumas continua: “‘prever os

acontecimentos vantajosos e nocivos que devem sobrevir durante o curso de sua

duração’”; “‘governar os momentos favoráveis que a natureza suscite para operar a

solução’”; “‘determinar com precisão quando é preciso agir e quando convém

esperar’”. Com outras palavras, completaria Ary: “Daqui resulta a necessidade de

estudar: 1º. A hereditariedade em todas as suas manifestações; 2.° Causa de

degenerescência que pode originar a enfermidade; 3.° Os acidentes e as doenças que

durante a primeira infância originam com mais frequência a surdo-mudez. A

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A formação de um objecto: a invenção da surdez

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propósito da hereditariedade não nos devemos esquecer dos casos de transmissão

directa da enfermidade dos pais para filhos dos avós aos netos, da frequência da

surdo-mudez nos colaterais, dos casos de surdez sem mudez nos ascendentes ou nos

colaterais, da consanguinidade, e a transmissão hereditária dum grande número de

doenças nervosas, porque só assim teremos elementos para estudar um dos factores

etiológicos de maior importância” (1920: 4). Concluiria Dumas: “‘combinar todas as

possibilidades, calcular todos os casos’”; “‘tornar-se senhor dos doentes e de suas

afecções’”; “‘acalmar suas inquietudes’”; “‘adivinhar suas necessidades’”; “‘actuar

sobre seu carácter e dirigir sua vontade, não como um tirano cruel que reina sobre

escravos, mas como um pai terno que vela pelo destino de seus filhos’” (Foucault,

2004b: 95-96).

As falas destes dois médicos poderiam acontecer em simultâneo. Uma não

contradiz a outra. Um discurso é o desenvolvimento do outro e, ao que ambos se

referem, é à primazia da observação visual sobre aquilo que era tido como doença. A

clínica teria como tarefa ordenar os corpos, vê-los, isolá-los, rememorar o seu percurso,

verificar diferenças e semelhanças comparando-os, nomeá-los e classificá-los. Se este é

um olhar próximo do do naturalista, a verdade é que, a partir do século XIX, uma nova

racionalidade exige que o discurso da doença saia da boca do médico e que o seu olhar

não se limite a ver, mas a ver atentamente. O problema da atenção, dir-nos-á Crary:

“vision was open to procedures of normalization, of quantification, of discipline” (2001:

12). E Foucault oferece as vantagens do processo: ver e apreender “as cores, as

variações, as ínfimas anomalias, mantendo-se sempre à espreita do desviante” (2004b:

97). Era neste sentido que Ary dos Santos afirmava a necessidade de, diagnosticando-se

a surdez numa criança, procurar descrever pormenorizadamente o grau e as causas da

patologia. O tratamento e normalização da criança surda, teriam claramente, de se

adequar ao caso individual. A prescrição de qualquer terapêutica estaria condicionada

pela situação particular da criança. Daí, as inúmeras vantagens de um inquérito

minucioso à entrada na instituição.

A admissão do surdo na Casa Pia exigia uma tradução da criança num discurso

que lhe traçava um retrato fiel enquanto portador de surdez. Sobre ela, dizia-se tudo.

Aqueles que tinham como função encarregar-se da educação desta criança, possuíam

toda a legitimidade para o fazer pois sabiam mais do estado do sujeito do que o próprio.

O passado patológico da vida familiar da criança surda tornava-se, também, alvo de

investigação. Se havia casos de “melancolia”, “imbecilidade”, “idiotia”,

“excentricidade” ou “tiques”, se durante a gravidez a mãe teria sofrido “traumatismos”,

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ou ainda se a diferença de idades nos progenitores seria grande (Santos, 1920:5). O

discurso médico foi portador de uma verdade que ultrapassava o nível da enunciação

para se fixar no próprio enunciado de que falava. Um novo sentido, agora com uma

forma, fixa-se entre o que é dito e o seu objecto, a verdade tem que ver com a sua

relação à referência enunciativa. Uma nova relação entre a doença e o olhar que a fixa,

oferecendo-se a ele e constituindo-o. Adiantarei ao leitor ou à leitora que o desenho de

um percurso biográfico do passado da criança se relacionaria de forma evidente com a

constituição de um saber sobre ela, para que se lhe pudesse prever um comportamento

futuro. A problemática do arquivo que instintivamente anuncia a irrevogabilidade de um

porvir. Uma correlação, portanto, entre saber e poder que parte de uma articulação entre

a infância e a conduta do indivíduo. Neste cenário estará a psiquiatria como elemento

aglutinador destes campos e será a ela que caberá a tarefa de justificar comportamentos

e estados. A conduta do aluno será sempre o grande objecto a trabalhar na escola e,

figurando, apesar do silenciamento na sua enunciação, como o grande separador entre

normais e anormais. Parece-me pertinente a mudança que se opera no interior da própria

clínica. A doença em si, a verdade de uma surdez, por exemplo, deixará de ser o

elemento único ou o mais importante enquanto objecto de uma análise clínica; o que a

psiquiatria dá ao médico é a possibilidade de considerar para análise o comportamento,

o desvio, a anomalia que, evidentemente, se intensificaria caso se unisse visivelmente a

uma patologia do corpo. Há uma espécie de mesclamento de fronteiras que, mais à

frente teremos oportunidade de verificar.

Pressente-se na invenção da surdez, uma vontade de verdade que tal como

“outros sistemas de exclusão, apoia-se numa base institucional: ela é ao mesmo tempo

reforçada e reconduzida por toda uma espessura de práticas como a pedagogia, claro, o

sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, as sociedades de sábios outrora, os

laboratórios hoje. Mas é também reconduzida, e de um modo mais profundo sem

dúvida, pela maneira como o saber é disposto numa sociedade, como é valorizado,

distribuído, repartido e, de certa forma, atribuído” (Foucault, 2002e: 4). Como de resto

aconteceu com um sistema penal, também os actos discursivos vindos da área do saber

médico, encontraram alicerces e justificação, noutros saberes que os ajudavam a fixar

enquanto discursos de verdade. Em última análise, no caso específico da surdez, um

saber social, permitiria associar a ausência do ouvir a causas outras, perfeitamente

justificáveis por uma racionalidade científica e, poderia, tal como aconteceu, encontrar

forças para reforçar a sua estrutura de verdade, em campos como os da pedagogia,

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A formação de um objecto: a invenção da surdez

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legitimando e legitimando-se nas práticas educativas e correctivas. O discurso parece,

então, corresponder a um corpus de conhecimento que, pelas relações que provoca, pelo

entrelaçamento com outros discursos, se projecta no sentido de construção de um

objecto e da forma de o dizer e pensar.

Georges Canguilhem, comentando o trabalho de Foucault em torno da

fabricação da loucura, toca no ponto essencial:

“Madness had to be constituted at first as a form of unreason held at a distance by

reason as a necessary condition for it to come into view as an object of study” (1997:

24).

A surdez, diria eu, teve igualmente de ser concebida como um estado que,

privando o sujeito de ouvir, obrigatoriamente o situaria na obscuridade e isolamento

onde, nem a palavra de Deus nem a dos homens, poderia chegar. Todavia, semear esta

percepção no tecido social, obrigava à nomeação e à classificação de um estado pela sua

inscrição racional e inteligível. Expressava-o desta forma Almeida Garrett:

“Não se concebe, na organização que ao Criador aprouve dar à espécie humana, não

se concebe como sem palavras se pudessem formar muitas das ideias, combinar

outras muitas e formar juízos”. E notava o autor: “Que ideias tem o surdo-mudo de

nascença? Quase nenhumas e imperfeitíssimas. Nem a arte sublime que a tanto

esforço e custo os restitui em parte à sociedade, os pode, ainda assim mesmo, fazer

completos participantes e membros dela” (1829: 30).

Falei na surdez como estado e, na verdade, foi mesmo necessário que ela fosse

construída como um estado para que se tornasse possível enquanto doença e enquanto

anormalidade. A razão é curta:

“Quem é sujeito a um estado, quem é portador de um estado, não é um indivíduo

normal”. “O estado pode produzir qualquer coisa, a qualquer momento e em

qualquer ordem” (Foucault, 2002: 397). Eis o perigo.

Porque é evidente que os enunciados não surgem inócuos de significado e de

efeitos, mas, pelo contrário, colocam e mantêm os sujeitos numa relação determinada, o

primeiro quadro que importa compreender é o do terreno da modernidade como espaço

de governamentalidade. No próximo capítulo desenvolverei este conceito de Foucault,

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todavia, será pertinente neste momento, considerar a governamentalidade como um

encontro entre as tecnologias de domínio dos outros e as técnicas do eu do sujeito,

levando o indivíduo a transformar-se no sentido de adoptar uma conduta ou

comportamento que, adequando-se a princípios de uma racionalidade governativa, se

inscrevem nele como desejo. Deste modo, creio poder mostrar que a educação das

crianças surdas como educação especial, funcionou como dispositivo de normalização,

utilizando-se de práticas e de técnicas que activaram os processos correctivos e o

sentimento da sua estrita necessidade. De acordo com Foucault, um dispositivo é “um

conjunto decididamente heterogéneo que engloba discursos, instituições, organizações

arquitectónicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados

científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas”. Em suma, diz o autor “o dito

e o não dito são os elementos do dispositivo” e o dispositivo “é a rede que se pode

estabelecer entre estes elementos” (Foucault, 2004 c: 244). São, portanto, as relações e

os efeitos das práticas discursivas, na sua enunciação ou no seu silenciamento que

permitem a constituição dos objectos e o seu lugar de pertencimento. Obviamente, as

práticas são marcadas por uma regularidade e racionalidade que, numa época e numa

área específica, acompanham os modos de dizer ou de fazer. As técnicas agregam à

ideia de práticas um conceito estratégico e táctico. Quer isto dizer que as técnicas de

carácter disciplinar ou do eu, funcionam no espaço escolar “ por meio de uma detalhada

estruturação do espaço, do tempo e das relações entre os indivíduos; de procedimentos

de observação hierárquica e julgamento normalizador; de tentativas para incorporar

esses julgamentos aos procedimentos e julgamentos que os indivíduos utilizam a fim de

conduzir sua própria conduta” (Rose, 2001: 38). Há, portanto, nas técnicas uma relação

entre as tácticas e as estratégias, o mesmo é dizer, entre os meios e os fins a atingir.

Embora mais adiante se especifique as particularidades das técnicas disciplinares e do

eu, direi que as primeiras surgem no pensamento de Foucault através de codificações

que esquadrinham “ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos”, relacionam-se de

forma directa com o corpo, impondo-lhe uma “relação de utilidade-docilidade”, mas,

todavia, são as segundas que permitirão tirar das técnicas disciplinares produtividade

(2004: 118). As técnicas do eu são técnicas usadas numa relação de poder que incitará o

sujeito a transformar-se a si próprio. Quer dizer, relacionam-se com o sujeito enquanto

sujeito de um desejo, mas simultaneamente enquanto sujeito ético, e é no caminho para

essa realização do desejo que operará modificações sobre o corpo e sobre a alma,

conduzindo-se por um trilho de princípios morais vigentes no seu tempo e no seu

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A formação de um objecto: a invenção da surdez

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espaço. O caminho para o surdo que, a partir da sua admissão na instituição passava a

aluno surdo, não era o da cura, mas o da correcção ortopédica, ainda que a possibilidade

do ouvir não fosse senão uma impossibilidade. Depois de excluída do grupo dos

ouvintes, a criança surda era localizada num caminho correctivo de busca por uma

inclusão que, a acontecer, não faria dela algo diferente de um estranho. A Casa Pia de

Lisboa adquiriu a forma de um dispositivo de normalização. A surdez acolhia

visibilidade ao conectar-se aos corpos dos alunos surdos, e assumia-se como deficiência

pelas práticas educativas de carácter correctivo que aí tinham lugar.

Eram os primeiros anos do século XX e a médico-pedagogia estava já instalada

na Casa Pia de Lisboa. Procurava tornar-se visível não só a anormalidade, mas também

inteligibilizar a sua origem, ensaiando-se um cenário explicativo para as desordens do

corpo.

Michel Foucault, ao referir-se aos discursos médicos produzidos durante o

século XIX – e que iriam propagar-se a outros campos, nomeadamente à pedagogia –,

sublinha a existência de “um corpus de conhecimentos que supõem um mesmo olhar

sobre as mesmas coisas, uma mesma grade do campo perceptivo, uma mesma análise do

facto patológico de acordo com o espaço visível do corpo” (2005 a: 99, 100). Quer

dizer, o que se diz, passaria a estar regido por uma espécie de vocabulário ou gramática

da patologia. Esta forma de se dizer da doença, formulou o próprio sujeito como

depositário da enunciação e, portanto, passível de intervenção. Um dos pontos

fundamentais na construção do aluno anormal, foi a aliança estabelecida entre o

discurso da medicina e o discurso da educação, recebendo-se no espaço educativo um

sujeito engendrado na ciência médica. Faz sentido reproduzir aqui a questão que o

mesmo filósofo, colocou acerca das várias formas de enunciados presentes nos

discursos médicos do século XIX:

“Entre uns e outros, que encadeamento, que necessidade? Porquê estes e não

outros?” E para responder a estas questões, o autor, diz que, primeiro, é “necessário

descobrir a lei de todas estas enunciações” e o seu “lugar de proveniência”

(Foucault, 2005: 83).

De um campo estritamente educacional, nomeadamente de um compêndio para

o ensino dos surdos, dado à estampa em 1881, Tobias Leite esboçava e coloria uma

imagem do que seria o surdo, fornecendo indicações de reconhecimento para olhares

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Questões teóricas e articulações práticas

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menos atentos. Começando por distinguir a existência das duas espécies de “surdos-

mudos”, “congénita” e “acidental”, mostrava pela observação a forma de detecção

destas espécies:

“O surdo-mudo congénito tem a face pálida, a fisionomia morta, o olhar fixo, a

caixa toráxica deprimida, movimentos lentos e o caminhar trôpego e oscilante, é

excessivamente tímido e desconfiado. Além destes sinais há um que lhe é peculiar:

certo ruído, ou espécie de gemido que inconscientemente deixa ouvir quando come

ou faz qualquer coisa que exija esforço físico ou intelectual, ou que lhe cause

satisfação”. “O surdo-mudo acidental […] facilmente se reconhece pela face,

sucessivamente ora corada, ora pálida, pelos olhos vivos, o olhar rápido e móvel,

fisionomia alegre, curiosidade excessiva, carácter susceptível, e minimamente

violento” (Leite, 1881:VII – IX).

Daqui se deduz uma representação que se queria experiência individual e social

da surdez. Quer dizer, qualquer um poderia verificar a palidez ou rubor da face, o olhar

fixo ou vivo, a lentidão de movimentos de um corpo surdo que era considerado tímido e

desconfiado ou alegre e curioso. O próprio objecto é constituído pela formulação que

dele se faz. Não é, portanto, do lado da surdez como estado do surdo que se pode

procurar a unidade do discurso vindo da medicina ou da pedagogia. Diz assim Jacques

Derrida acerca da nudez e dos animais e eu proponho que se alargue ao pensamento da

invenção da surdez como objecto que se aplica ao corpo surdo:

“Assim, nus sem o saber, os animais não estariam, em verdade, nus. Eles não

estariam nus porque eles são nus”. “Por ele ser nu, sem existir na nudez, o animal

não se sente nem se vê nu” (2002: 17).

A unidade dos discursos sobre a surdez, a existir, está nas regras e relações que

tornaram possível o aparecimento das descrições médicas da surdez, da negatividade

das suas características, das práticas que permitiram excluir e, depois, incluir aqueles

que eram ditos e vistos como membros de uma comunidade anormal. A surdez seria,

então, o referencial – de ausência de audição com todas as suas implicações negativas –

comum ao grupo dos surdos. Tratava-se de inventar a surdez no nível da palavra: “o

acto descritivo” é “uma apreensão do ser e, inversamente, o ser não se mostra nas

manifestações sintomáticas, portanto essenciais, sem se oferecer ao domínio de uma

linguagem” (Foucault, 2004b: 104). A doença, a surdez, só é objecto a partir do

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A formação de um objecto: a invenção da surdez

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momento em que é enunciável.

No seu texto A vida dos homens infames, publicado pela primeira vez em 1977,

Michel Foucault refere-se à vida daqueles que, pelo seu lugar vulgar na sociedade,

estariam destinados “a passar ao lado de todo o discurso e a desaparecer sem nunca

terem sido” ditos (2002 d: 98). Na verdade, tal só não aconteceu porque, o seu

comportamento provocou uma vontade de representação no momento em que se cruzou

com o poder:

“Aquilo que as arranca à noite em que elas poderiam, e talvez devessem sempre, ter

ficado, é o encontro com o poder: sem este choque, é indubitável que nenhuma

palavra teria ficado para lembrar o seu fugidio trajecto” (Foucault, 2002 d: 97).

Foi necessário, antes de mais, um qualquer elemento que conduzisse o olhar do

poder para uns seres, e não para outros. O comportamento inadequado, incomum, a

loucura, constituiriam, por certo, elementos suficientemente inquietantes para que lhes

fosse concedida a devida atenção. Mas mesmo assim, permanece a dúvida, porque se

está, já, a considerar a verdade de uma loucura. Em última análise, é a “sensibilidade”

de uma sociedade “que serve como elemento regulador quando se trata de decidir”

quem é normal, ou anormal (Foucault, 2003: 80). Cada sociedade tem o seu próprio

regime de verdade, a sua política geral de verdade, quer dizer “los tipos de discurso”

aceites nessa sociedade e postos a circular como verdadeiros. Para tal, têm de ser

considerados “los mecanismos y las instancias” que permitem distinguir os enunciados

verdadeiros dos falsos, “la manera en que se sancionan” uns e outros e, claro está, o

estatuto daqueles que têm como função dizer o que funciona como verdadeiro (Castro,

2004: 345).

Na análise da invenção da surdez como anormalidade do corpo, interessa-me,

essencialmente, considerar a ligação existente entre verdade e poder. A verdade de um

objecto é inseparável dos sistemas de poder que a produzem e legitimam, dos efeitos de

poder que ela própria induz e que se multiplicam. Como disse Nietzsche “ a verdade

não será pois uma coisa existente”, mas sim “ uma coisa” que se cria, que fornece “um

nome para um certo processus; sobretudo, ela exprime a vontade de violentar os factos

até ao infinito, de introduzir a verdade nos factos por um processus in infinitum, uma

determinação activa. [...] Ela é afinal um dos nomes da vontade de poder” (2004: 259,

260). A verdade não é, neste sentido, uma ideologia, mas um núcleo de relações que,

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Questões teóricas e articulações práticas

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sendo inseparável do poder, circula horizontal e transversalmente no tecido das relações

sociais. Será o momento de clarificar o conceito de poder, desenvolvido por Michel

Foucault. Para este autor, o poder deve ser compreendido na “multiplicidade das

relações de força imanentes ao domínio em que se exercem e constitutivas da sua

organização”. Estas forças movimentam-se, transformam e transformam-se. “É o

pedestal movente das relações de força que induzem sem cessar, pela sua desigualdade,

estados de poder, mas sempre locais e instáveis”. Ensina-nos ainda Foucault que, o

poder “é um nome que se atribui a uma situação estratégica complexa numa

determinada sociedade”1 (1994 a: 95, 96). Ora, se nos interessa primeiro perceber a

invenção da surdez, depois, será importante, verificar que o governo de uma população

considerada anormal, não se efectuará por relações que têm a lei como modelo, mas

sim, a normalização; não se efectuará por relações assentes no castigo ou na coerção,

mas no controlo e nas tácticas. Tenho para mim que o ponto mais importante na

produção da anormalidade – neste caso, surda – não tinha na aprendizagem da língua

oral e, portanto, na repressão da gestualidade, o seu objectivo fundamental. Não era, a

meu ver, o mais importante, o facto de a criança surda adquirir, ou não, a língua dos

ouvintes, mas esta, foi uma táctica utilizada num dispositivo escolar, para se manter sob

controlo um grupo que, até aí, fugia à ciência do Estado, isto é, a toda a racionalidade

estatística. Para se sentir parte de uma comunidade – e aquela que era dada como

referente à criança surda, era a comunidade ouvinte – teria de se lhe incutir o desejo e a

aspiração da língua oral.

No campo da medicina, a verdade, quer dizer, o saber sobre o corpo, foi

constituído pelas práticas discursivas, pelos registos escritos, pela acumulação de

relatórios, descrevendo pormenorizadamente – ou nem tanto – o seu objecto. Esta

verdade ultrapassou o âmbito do seu campo teórico e infiltrou-se nas malhas da

sociedade.

“Uma infinidade de discursos que atravessam em todos os sentidos o quotidiano e se

encarregam [...] do mal minúsculo das vidas sem importância”. Houve um apelo à

1 No primeiro volume da História da Sexualidade, Foucault expunha o seu método de análise sobre “a formação de um certo tipo de

saber sobre o sexo” assentando não sobre a repressão ou a lei, mas sobre o poder. “Mas esta palavra poder”, dizia, “corre o risco de induzir vários mal-entendidos acerca da sua identidade, da sua forma, da sua unidade. Por poder não quero dizer ‘o Poder’, como conjunto de instituições e de aparelhos que garantem a sujeição dos cidadãos num determinado Estado. Por poder também não entendo um modo de sujeição que, por oposição à violência, teria a forma de regra. Por fim, não entendo ainda um sistema geral de dominação exercido por um elemento ou um grupo sobre outro, e cujos efeitos, por derivações sucessivas, atravessariam todo o corpo social. A análise, em termos de poder, não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação; estas são antes apenas as suas formas terminais” (1994 a: 95).

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A formação de um objecto: a invenção da surdez

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discursificação que se legitimava no poder de observar para tudo saber. “ Começa a

erguer-se um murmúrio imparável: aquele mediante o qual as variações de conduta,

as vergonhas e os segredos são oferecidos pelo discurso à acção do poder”

(Foucault, 2002 d: 116, 117).

Tudo deve ser dito e, mais, tudo deve ser escrito – legitimando assim o olhar que

se lança.

Uma análise destes discursos que inventam objectos, não deve ser feita, do meu

ponto de vista, no sentido de procurar o que permanece escondido no discurso. O que se

revela como verdadeiramente interessante é, nesses discursos manifestos pressentir

funcionamentos mútuos, coexistentes e que no seu conjunto, constituiriam aquilo que

foi o modo de existência e, portanto, os regimes de verdade, dos acontecimentos

discursivos de uma cultura. “O que se trata de fazer aparecer é o conjunto de condições

que regem”, num tempo e num espaço determinados, “o surgimento dos enunciados, sua

conservação, os laços estabelecidos entre eles, a maneira” em que são agrupados, “a

série de valores ou sacralizações pelos quais são afectados”, como são utilizados “nas

práticas ou nas condutas”, “os princípios” segundo os quais “circulam”, ou são

“recalcados”, “esquecidos”, “destruídos” ou “reactivados” (Foucault, 2005 a: 95).

A necessidade de dar uma língua oral ao surdo, tão evidente no século XIX e

grande parte do século XX, era algo relativamente recente e que só pôde acontecer por

um cruzamento entre medicina, pedagogia e poder. No Crátilo de Platão, Sócrates

questionava-se:

“‘Se não tivéssemos voz nem língua e ainda assim quiséssemos expressar coisas uns

aos outros, não deveríamos, como aqueles que ora são mudos, esforçar-nos para

transmitir o que desejássemos dizer com as mãos, a cabeça e outras partes do

corpo?’”(Sacks, 2005: 29).

No século XVI, o médico-filósofo Cardano demonstrava uma sensibilidade semelhante:

“‘É possível dar a um surdo-mudo condições de ouvir pela leitura e de falar pela

escrita [...] pois assim como diferentes sons são usados convencionalmente para

significar coisas diferentes, também podem ter essa função as diversas figuras de

objectos e palavras”. “Caracteres escritos e ideias podem ser conectados sem a

intervenção de sons verdadeiros’“(Sacks, 2005: 29).

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Questões teóricas e articulações práticas

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E se esta sensibilidade parece apagada dos discursos médico-pedagógicos do

século XIX e do século XX, na realidade, ela está lá e, é sempre sobre ela que se

constroem as enunciações discursivas da surdez. Não é, uma verdadeira consagração do

surdo enquanto surdo, mas é a possibilidade de existência de uma outra língua diferente

da dos ouvintes. Uma das marcas que viajará até este texto e que é, sem dúvida, uma

das regras de produção dos discursos clínicos e pedagógicos sobre a surdez, é a

especificidade visual da experienciação surda. Este seria o limite impeditivo de uma

colonização total do corpo surdo por uma comunidade ouvinte, mas, simultaneamente, o

motor produtivo e multiplicador das inúmeras práticas com objectivos normalizadores.

A surdez como anormalidade do corpo, embora não seja manifestação visível,

foi descrita, foi tornada enunciado e enunciável. A clínica teve como tarefa ver e saber,

dizendo o que via, dominava o visível, construía um saber que legitimava qualquer

prática terapêutica que decidisse levar a cabo. A este terreno viria juntar-se a psicologia,

permitindo uma maior individualização da criança. Para já, darei apenas a ver ao leitor

uma imagem/ enunciado da surdez e lhe direi que, mais do que dar ao surdo uma língua

com que comunicar – aquilo que aparece à superfície do discurso – pretendia-se

introduzi-lo num jogo mais amplo de práticas que se justificavam pelo seu carácter

relacional. No processo de normalização, a criança seria levada a desejar a referência do

ouvinte. Proponho ao leitor olhar a imagem com que se abriu este capítulo.

Independentemente da identificação das duas personagens, interessa saber que o que

aqui se passa é uma observação psicológica pela Escala de Rey. O objectivo da grelha

de testes de observação aplicados ao aluno surdo seria “determinar os elementos

necessários para a elaboração do perfil psicológico da criança”. Um retrato, revelador,

portanto, da “vida intelectual, afectiva e volitiva do aluno” (Amaral, 1954: 49). A

relação entre um actor e outro é de face-a-face. A legenda permite identificar a acção

descrita, todavia, fosse a sua inexistência e não deixaria de se associar a imagem a um

acontecimento entre um médico e um paciente. Observador e observado, uma mesa

como elemento separador, e, contudo, nenhum objecto técnico que denuncie a prática

clínica. Apenas, é claro, o movimento de registo escrito. A constituição de um saber

sobre um objecto, como adiante terei oportunidade de mostrar detalhadamente,

intensifica as relações de poder que circulam à sua volta e se intersectam com ele.

No próximo capítulo é minha intenção mostrar de que forma é que a surdez e o

surdo, depois de nomeados e inscritos num regime de verdade continuam, com mais

visibilidade, a ser objectos de governo. Antes, porém, deixaria os leitores com uma

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A formação de um objecto: a invenção da surdez

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imagem que condensa o que até aqui se disse e antecipa o que se dirá:

“Cartography— the activity of mapping—exemplifies the ways in which spaces are

made presentable and representable in the hope that they might become docile and

amenable to government. To govern, it is necessary to render visible the space over

which government is to be exercised. This is not simply a matter of looking; it is a

practice by which the space is re-presented in maps, charts, pictures and other

inscription devices. It is made visible, gridded, marked out, placed in two

dimensions, scaled, populated with icons and so forth. In this process, and from the

perspective of its government, salient features are identified and non-salient features

rendered invisible. The construction of such a map is a complex technical

achievement. It entails practices such as exploring, surveying, tramping the streets in

order to identify the inhabitants of different dwellings, collecting statistics from far

and wide across the realm, conducting surveys of areas, regions, towns and so on. It

involves the invention of projections, the uses of colour, of symbols, of figures,

scales, keys and much more” (Rose, 1999: 36).

A actividade de mapear torna o espaço previsível. Na marcação de linhas de

fronteira entre o que está dentro e o que está fora, ambos os lados se constituem pela

presença e relação com o outro lado. O planejamento cartográfico da modernidade

obedeceu a uma racionalidade governativa expulsora da ambivalência nas relações.

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Questões teóricas e articulações práticas

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Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa…

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UM PRIMEIRO OLHAR SOBRE A PAISAGEM EDUCATIVA:

GOVERNAMENTALIDADE, POLICE , PODER E BIO-POLÍTICA

Aula da 4ª cadeira da Casa Pia de Lisboa, inícios do século XX

(Arquivo Fotográfico de Lisboa)

Convém antes de mais traçar o enquadramento temporal em que se situa esta análise.

Antecipei já aos leitores, na introdução, que os anos aqui tratados pertencem ao

século XIX e a parte do século XX, e a razão parece óbvia. O ensino dos surdos na

Casa Pia de Lisboa iniciou-se em 1823 com a contratação de um professor sueco –

Per Aron Borg – vindo do Instituto de surdos de Estocolmo. A direcção deste ensino

permaneceria por pouco tempo ligado à Casa Pia, – autonomizando-se –, e só a ela

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Questões teóricas e articulações práticas

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regressando em 1834. Pouco se sabe do que se passou relativamente ao ensino dos

surdos nesta instituição entre os anos trinta e os anos sessenta do século XIX. O que

nos chega, hoje, verdadeiramente interessante, é um documento escrito por José

Crispim da Cunha, professor de surdos no período que vai de 1824 a 1834. Em

História do Instituto dos surdo-mudos e cegos de Lisboa desde a sua fundação até à

sua incorporação na Casa Pia de Lisboa, Crispim da Cunha deixa transparecer todo

o seu desânimo pela incorporação desta educação especial numa instituição como a

Casa Pia, antevendo para o futuro destes seres a quem a natureza havia roubado a

impossibilidade de ouvir, um negro cenário. Na verdade, a população surda parece

não existir durante os trinta anos em que se mantém na instituição. A inexistência de

professores especializados levou a que o ensino dos surdos fosse entregue

sucessivamente a pessoas diferentes, sem grande sucesso. Os surdos foram

institucionalmente mantidos na Casa Pia de Lisboa até 1860. Foi apenas em 1905 que

a educação das crianças surdas voltou às mãos desta Casa da educação. Este ensino

aconteceu, portanto, num contexto institucional que ultrapassou o âmbito da escola,

uma vez que, para além de espaço educativo, a Casa Pia funcionou no regime de

internato. Este é um ponto fundamental, abordado num dos próximos capítulos que

ajudará a explicar a Casa Pia enquanto instituição disciplinar de carácter total, com

fins de normalização social.

Uma das primeiras afirmações que se impõe no arranque deste estudo, é a

consideração da Casa Pia de Lisboa como uma das primeiras instituições modernas

em Portugal. O sociólogo Anthony Giddens, considera que as instituições modernas

“diferem de todas as formas de ordem social precedentes”, “no que diz respeito ao

seu dinamismo, ao grau de erosão dos hábitos e costumes tradicionais e ao seu

impacte global”. Quer o autor dizer que, “a modernidade deve ser compreendida a um

nível institucional” e que estas instituições “entretecem-se de forma directa com a

vida individual e, portanto, com o self” (1994: 1). Ora, é particularmente importante

para o que proporei de seguida, partir da ideia, primeiro, de que a Casa Pia é uma

instituição moderna e, depois, de que a Casa Pia é uma instituição escolar moderna,

de carácter disciplinar. A este aspecto, haveremos de juntar, um pouco mais à frente, a

ideia de que o Estado moderno se coordena administrativamente sobre o conceito de

um Estado-nação, associando o cidadão ao progresso desse Estado.

Criada em 1780 pelo Intendente Geral da Polícia, Diogo Inácio de Pina

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Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa…

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Manique, com o objectivo de “estabelecer um meio coercivo contra os numerosos

vagabundos que faziam das ruas de Lisboa teatro constante de seus ultrajes à moral, e

de seus atentados contra a vida e propriedade do próximo”, torna-se evidente a sua

feição de intervenção social pelo isolamento e regeneração dos acolhidos (Silva,

1896: 2). Mas esta era ainda uma traça demasiado próxima de uma forma-prisão e

que não se regia por critérios específicos e rigorosos, na escolha dos seus habitantes.

Pina Manique, que havia sido elemento muito próximo do Marquês de Pombal,

encontrou uma forma de superar o carácter meramente regenerativo através da

introdução da educação. A Casa Pia de Lisboa transformava-se num “instituto” de

“correcção” e de “lavor para os que por sua vida e costumes pervertidos ofendiam a

segurança e a moral”, era “asilo e amparo de orfãos, escola de gente popular e

desvalida”. Entendeu o Intendente, “que era mais útil e mais prático fundar antes um

estabelecimento educativo, onde pelo ensino largamente desenvolvido, se formassem

bons cidadãos, inteligentes, instruídos e aptos para servirem de elemento

regenerador” (Silva, 1896: 13, 16). Das palavras de Pina Manique emerge uma

imagem de um espaço educativo que se encarregaria no geral, de uma formação

integral de todos os seus habitantes, abrigando-os no seu interior e fazendo deles

através da acção educativa cidadãos conscientes e preparados para enfrentarem e

integrarem o corpo social. A Casa Pia foi adquirindo complexidade e se a “caridade

oficial” se desenhava como seu “objecto”, era uma “caridade produtiva, que da

esmola do pão ou da doutrina, como de semente fecundíssima, aspirava a tirar

centuplicados os frutos sociais, dando ao Estado um vassalo inteligente, honesto,

serviçal, por cada um dos que detinha e amparava já prestes a despenhar-se”

(Margiochi, 1893:7).

Julgo que esta primeira imagem será suficiente para mostrar que se transfere

para a escola “o essencial das tarefas destinadas à efectivação das categorias

modernas de pessoa e de cidadão” (Ó, 2003: 13). A escola aparecia como espaço de

socialização da criança e depressa se afirmava como seu espaço natural. Em 1829,

Almeida Garrett afirmava que “o fim geral da educação” seria “fazer um membro útil

e feliz da sociedade”. O seu objecto, “formar o corpo, o coração, e o espírito do

educando”. E o autor Da Educação não se inibia em questionar a razão de educar. Ele

mesmo adiantava a resposta: O indivíduo deveria ser educado “em relação à natureza,

para filho, esposo e pai”; “ em relação à sociedade civil e ao Estado, para cidadão”

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Questões teóricas e articulações práticas

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(1829: 8, 15). A educação surgia como o ponto de passagem obrigatório na formação

de qualquer indivíduo.

Ora, parece-me de certo modo incontornável analisar a educação das crianças

surdas na Casa Pia de Lisboa, como uma forma de governo de um grupo

populacional, – os anormais e, mais especificamente, os surdos –, num terreno

construído a partir de uma racionalidade política inteiramente moderna. Como nos

mostra Michel Foucault e teremos oportunidade de esclarecer, desenvolveu-se, nos

séculos XVII e XVIII, através de uma ideia de razão de Estado, “um conjunto bem

específico de técnicas de governo”, entre as quais a police ou polizei, adquire uma

importância capilar (2004 d: 304). O que permite esta técnica é a consideração do

indivíduo como seu objecto, a sua vida, a sua felicidade, a sua segurança, não como

consequências de uma boa governação, mas como condições e instrumentos para uma

boa efectivação dessa governação. Foucault fala mesmo da transformação da police

em disciplina, academicamente, tendo como objectivo um zelo da população,

intervindo de modo específico na conduta de cada sujeito. Para tal, a police terá de se

valer de uma intervenção racional, reguladora e regulamentadora. Num

entrelaçamento contínuo entre aquilo que passou a constituir a arte de governo do

Estado e dos seus cidadãos, trarei até este texto a paisagem escolar como uma

derivação desse espaço e dessa racionalidade governativa. Não é que ela lhe seja

derivada em termos hierárquicos, simplesmente foi uma das técnicas – das mais

poderosas – para a efectivação da nova racionalidade política. Para o

compreendermos, basta uma das definições que o século XVII produz para explicar

em que consiste a razão de Estado: “‘é um método ou uma arte que nos permite

descobrir como fazer reinar a ordem ou a paz no seio da República’” (Foucault, 2004

d: 304). A transferência para uma arena educativa1 realiza-se mantendo uma mesma

lógica estrutural: falar-se-á aqui de uma arte de governo da criança surda, no sentido

de uma nova racionalidade técnica que exige tácticas e estratégias que, atendendo

sempre à questão do indivíduo, terá uma finalidade produtiva ao nível do saber e

acréscimo de um poder. A racionalidade técnica que se transfere para a escola é

1 A expressão arena educativa é utilizada por Thomas Popkewitz, referindo-se às práticas educacionais que se estabelecem no

interior dos sistemas educativos e que funcionam segundo dinâmicas que não são exclusivas da escola, mas de toda a sociedade. Diz assim o autor: “Utilizo arena” “como um conceito histórico para considerar posições sociais e de poder” “na educação”

(1998 a: 135).

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Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa…

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proveniente de discursos médicos e científicos que traçam o retrato dos seus

habitantes. Uma série de especialistas das ciências psicológicas entra triunfalmente

no espaço escolar e discursifica sobre o aluno, sobre as suas aptidões, características,

normalidades ou desviâncias. Traça diagnósticos, mas, igualmente prevê

desenvolvimentos, em suma, anuncia no seu esqueleto estrutural as medidas que

fariam uma população escolar feliz, motivada, imbricada nos processos de

autoconstrução da sua própria identidade, fornecendo deste modo um saber

especializado sobre como agir para alcançar. As enunciações discursivas que saíam da

boca da psicologia, posicionam-se como elementos orientadores das relações

propostas aos educandos. O segredo, a existir, está como aqui defenderei, numa

imagem de um autogoverno dos alunos, através da construção da sua identidade

enquanto futuros cidadãos, que não passa de um governo subtil de toda a população a

partir de uma razão de Estado, omnipresente e omnipotente, em todas as relações de

poder. Diz assim Nikolas Rose:

“Governing does not just act on a pre-existing thought world with its natural

divisions. To govern is to cut experience in certain ways, to distribute attractions

and repulsions, passions and fears across it, to bring new facets and forces, new

intensities and relations into being” (1999: 31).

É fundamental na relação governativa a fixação de regimes de verdade que se

colocam em circulação e intersectam a experiência de vida de todos os sujeitos. São

forças que provocam efeitos na subjectivação de cada indivíduo. Essas forças têm que

ver com tempos, espaços, regras de conduta, prescrições médicas, etc., que tendem a

individualizar cada sujeito e a fazê-lo matéria do seu próprio pensamento. Longe de

uma ideia que veria nas regras, nos tempos e espaços governáveis, um poder

repressivo em relação ao sujeito, o que será apresentado ao leitor é antes um quadro

produtivo que não aniquila a experiência de ser sujeito, mas a induz, a abre a novas

formas de produção identitária. E esta produtividade insere-se na própria

racionalidade governativa. Jorge Ramos do Ó, ao analisar a problemática da formação

do sujeito moderno nota que:

“Cada um se deve passar a relacionar consigo mesmo e a desenvolver toda uma

autêntica arte da existência destinada a reconhecer-se a si como um determinado

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Questões teóricas e articulações práticas

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tipo de sujeito” (2003: 5).

Ora, tal relacionamento fica a dever-se a um pensamento devidamente

planeado que “becomes real by harnessing itself to a practice of inscription,

calculation and action” (Rose, 1999: 32). O governo do Estado preocupar-se-á com os

indivíduos no sentido em que são estes que lhe fornecem razão de existência. A arte

de governar acontece por inúmeras relações de poder que são dinâmicas e, é aqui que

a questão do sujeito enquanto promotor de mudança, positiva ou negativa, interessa à

racionalidade governativa. São as técnicas que consubstanciam uma arte de governar

que liga os indivíduos a uma entidade social, dando a essa arte uma forma e uma

possibilidade de continuação. A questão da educação de todo um grupo infanto-

juvenil e, mesmo, o novo estatuto da infância na época moderna, surgem enquanto

necessidades de um Estado que quer governar tudo e todos, controlando até ao

mínimo detalhe a totalidade das existências, com as aleatoriedades que lhes seriam

imanentes. Há regras para a produção do detalhe e para o controlo da população. A

escola, a demografia, a medicina, a estatística, a psicologia serão áreas que permitem

o funcionamento e circulação dessas regras e a sua produtividade.

Creio ter possibilitado uma segunda imagem – ainda que geral e pouco

detalhada – do que legitima, por um lado, a existência da escola como espaço em que

se governam crianças e, por outro, que esta arte de governar se efectua sobre um

quadro que toma o indivíduo na sua singularidade, enquanto futuro cidadão. No ano

de 1869, Simões Raposo, provisor da Casa Pia de Lisboa, dizia-o com convicção:

“Ser útil à pátria é o primeiro dever do cidadão! Ser útil aos nossos semelhantes é

o primeiro e maior de todos os deveres porque é o dever que mais agrada à

divindade que no-lo recomendou! No cumprimento destes deveres é que têm o

seu princípio todas as nossas garantias, todos os nossos direitos e por conclusão

lógica toda a nossa felicidade!” (1869:13).

Era este, afinal, o projecto moderno dos Estados-nação. Do que a escola falará

é da produção de um sujeito útil, mas realizado, autónomo e feliz. De um surdo que

apesar do estigma da deficiência se possa valer a si mesmo na vida, pela

aprendizagem da língua e de um ofício.

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A escola é, pois, uma instituição moderna, inventada pelo Estado para

possibilitar o governo dos seus cidadãos, mas, um ponto fundamental, é o da

emergência de novos mecanismos de auto-identidade, moldados a partir de uma

relação que os sujeitos individuais passam a estabelecer com as estruturas

institucionais. A criança, ao ser colocada em situação de escolar, iniciava a jornada de

se auto-educar. Nos bancos da escola se preparavam os futuros cidadãos, livres,

autónomos, responsáveis e participativos num Estado e numa nação a que também

eles pertenciam. A fabricação da identidade de cada aluno, resultava de uma rede

complexa de relações dinâmicas que convergem naquilo que o filósofo francês

Michel Foucault cunhou com o termo de governamentalidade.

“Num curso do Collège de France, Michel Foucault cunhou o termo de

governamentalidade (gouvernamentalité) para identificar um tipo particular de

literatura que, entre a segunda metade do século XVI e o final do século XVIII, se

foi crescentemente afirmando em torno de uma teoria proclamada como ‘arte de

governo’, isto é, uma técnica que se deduz de regras específicas” (Ó, 2003: 29).

A proposta de Foucault, logo no início do Curso, era explicar de que forma se

relacionavam a segurança, a população e o governo. A literatura de que falou

ultrapassava tematicamente a dos antigos tratados de conselhos ao príncipe. Nestes

tratados, a questão essencial, seria traçar directrizes quanto ao modo de o soberano

“se comportar, exercer o poder, de ser aceite e respeitado pelos súbditos” (Foucault,

2004a: 277). Ora, o que inaugurava a nova literatura, era um núcleo de questões que

se apresentava em múltiplos domínios, mas cuja centralidade comum a todos eles, se

situava em torno de uma arte de governar, quer dizer, no engendramento de práticas

de governo que se aplicavam sobre um corpo que deixara de ser o do súbdito, para

passar a ser o da população, e cujo núcleo irradiador não residiria mais no soberano,

mas no Estado.

Foucault apresenta a problemática da governamentalidade a partir do século

XVI, situada na convergência de dois processos. Por um lado, um movimento de

concentração Estatal que começou a substituir as estruturas tipicamente feudais e que

se corporalizou no aparecimento dos grandes Estados-nação territoriais. Por outro

lado, um processo que embora diverso do anterior, se relaciona directamente com ele

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Questões teóricas e articulações práticas

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– com sede na Igreja – e que questionava, primeiro com a Reforma, depois, com a

Contra-Reforma, “o modo” como se queria “ser espiritualmente dirigido para

alcançar a salvação”. É, portanto, entre estes dois movimentos que mais premente se

torna a questão de “como se governar, como ser governado, como fazer para ser o

melhor governante possível” (Foucault, 2004 a: 278).

Será esta a miríade de questões que durante dois séculos – e com

prolongamentos até aos nossos dias – irá constituir o governo, quer do Estado, quer

do cidadão, da família, das almas e das condutas, da criança, etc. O neologismo então

proposto por Foucault – governamentalidade – transporta consigo uma rede de

tecnologias, isto é, um conjunto de tácticas e de estratégias, patentes na arte de

governar, sem as quais seria difícil o seu exercício na modernidade. A grande

novidade que este termo acarreta é, pôr fora de campo, a trivial relação de soberania

de um rei ou de um príncipe sobre o território ou os súbditos. Não é que desapareça a

relação de poder de uns sobre os outros, mas antes que esta relação passa a definir-se

por regras específicas e, permite cruzar instituições com actores sociais, sem temer a

habitualmente considerada hierarquia que submete uns, aos outros. Este termo

ultrapassa – e muito – as simples relações de dominação que o Estado exerce sobre o

cidadão, que o professor exerce sobre o aluno, quer dizer, não as elimina, mas

também não se reduz a elas. O que interessa perceber nestas relações que acontecem

por intermédio de técnicas específicas – disciplinares, mas não só – é precisamente o

conjunto de artefactos que constitui a nova arte de governo, num deslocamento

evidente do domínio do corpo para a construção moral dos sujeitos.

“O poder liga-se antes aos modos como, numa dinâmica onde a autonomia e

liberdade estão cada vez mais presentes, se produzem cidadãos. Estes não são

destinatários mas intervenientes nos jogos e nas operações de poder” (Ó, 2003:

31).

Isso mesmo se pode ler no capítulo XI do Regulamento Geral da Casa Pia de

Lisboa, relativamente ao serviço de vigilância e disciplina. Este serviço estaria a

cargo de um prefeito geral e de quinze outros prefeitos, devendo o primeiro zelar pela

“direcção moral dos alunos, aconselhando-os e dirigindo-os de modo a inspirar-lhes

“sentimentos de bondade, rectidão e honestidade”. Tal tarefa contava com um

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Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa…

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conhecimento da “índole dos alunos, porque só assim” se poderia ajuizar claramente

os seus “actos e avaliar os sentimentos de que são dotados”. Era ao prefeito geral que

se destinava a vigilância escrupulosa dos outros quinze prefeitos, verificando se

tratavam bem os alunos, “fazendo-se ao mesmo tempo respeitar” (Regulamento de

1904: 41- 43). Havia ainda princípios que teriam de se fazer cumprir pois constituíam

o núcleo de formação do indivíduo:

“Durante as refeições dos alunos”, ensiná-los “a estar à mesa e a servir-se dos

talheres, corrigindo-lhes qualquer maneira imprópria e inconveniente”; observar

“frequentemente se os fatos de uso estão à medida do corpo dos alunos, evitando

que usem os que, lhes prejudiquem a digestão e o crescimento, e que o calçado,

por apertado ou largo, lhes possa viciar os movimentos ou tornar defeituosos os

pés”; vigiar incessantemente pelo asseio dos alunos e pela boa conservação e

escrupuloso asseio de todos os objectos de uso pessoal dos mesmos”; “verificar

se é organizada justa e equitativamente a escala diária dos alunos que cuidam do

asseio dos colégios”. Era ainda “expressamente proibido que o prefeito geral ou

os prefeitos” castigassem “por suas mãos os alunos”. “As faltas cometidas”

seriam “levadas ao conhecimento da direcção” (Regulamento de 1904: 41- 43).

Deste Regulamento interessa-me destacar a figura do aluno enquanto

habitante de uma instituição onde ele próprio é actor, considerado na sua

individualidade, com deveres e com direitos que, a não existirem colocariam em

causa a sua posição enquanto membro activo e participativo de uma comunidade

escolar e, também, o próprio funcionamento da instituição. O discurso aqui

reproduzido deixa transparecer um conjunto de regras que se fixam à construção da

identidade do aluno enquanto sujeito social e moral que, ultrapassam as lógicas de

dominação entre vigilantes e vigiados pois, em última instância também os vigilantes

eram vigiados. Os papéis de todos e de cada um sincronizam-se numa lógica de

efeitos contínuos. As regras tenderiam a vincular-se ao corpo do aluno,

manifestando-se e transferindo-se enquanto hábitos adquiridos, em situações futuras.

Assim, em 1920, numa visita à Casa Pia de Lisboa realizada por um jornalista de O

Século, eis a composição visual e disciplinar a que se poderia assistir:

“São 19 horas, e, precipitadamente, uma sineta soa. Três minutos depois contados

pelo relógio, aqueles 389 rapazes encontram-se alinhados. Abre-se a porta do

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monumental refeitório fradesco. A dois e dois os alunos vão entrando,

acompanhados dos seus monitores; e, ainda não passaram outros três minutos, já

estão todos de pé, junto às mesas. À voz imperiosa do comando do Sr. Câmara

Leme, os rapazes sentam-se em silêncio. E no vasto refeitório, ouve-se apenas o

ruído das colheres nos pratos”. Questionado sobre a forma de manter a disciplina,

António Aurélio da Costa Ferreira, director da Casa Pia, era totalmente

esclarecedor: “Mantém-se graças aos hábitos de obediência voluntária adquirida

pelo ensino da ginástica e de comando, que os faz gerar no indivíduo. Não

deixamos contudo de cultivar a afectividade e de respeitar nos recreios a

liberdade completa do aluno, e deixarmos que a sua individualidade se manifeste

no ensino, principalmente nos trabalhos manuais e no desenho. […] As

formaturas para a entrada nos refeitórios, aulas e camaratas, o costume do

silêncio durante as refeições são práticas que se não podem banir em internatos

grandes” (Anuário 1919-20: 366-368, itálico meu).

A voz deste pedagogo traduzia, efectivamente, um dos grandes princípios de

construção da escola e que tantas vezes é esquecido ou simplesmente colocado como

oposto daqueles que são seus pares inseparáveis: liberdade e controlo, disciplina e

autonomia são termos que pertencem a uma mesma lógica discursiva. O aluno

obedeceria pela incorporação de hábitos de obediência voluntária, quer dizer, a

escola construiria um aluno cuja governação teria de se definir a partir de quadros de

liberdade regulada. O aluno seria livre para escolher e desejar no interior daquilo que

a escola lhe propunha. “Educar e educar-se transformam-se num único e mesmo

gesto” (Nóvoa, Barroso, Ó, 2003: 54).

E se esta imagem não é ainda suficientemente transparente quanto ao modelo

de aluno e de cidadão que a escola pretende criar, veja-se o que o Provedor da Casa

Pia teria a dizer acerca da escola, enquanto espaço de formação de alunos e futuros

cidadãos:

Na escola “ o presente rasga as perspectivas do futuro na modelação de almas que

se hão-de tornar em valores sociais, económicos, morais e espirituais, a

enriquecer a nação. Um clarão de esperança enche os corações com as novas

possibilidades oferecidas de vida mais elevada e digna, alargada na capacidade de

conhecer e de agir. Aqui mais portugueses se prepararão para 'bem conhecerem e

bem saberem trabalhar', fortalecidos nas virtudes que tornam as Sociedades

vigorosas e fecundas de realizações de progresso”. “Não podem estas emoções

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deixar de nos impressionar mais profundamente quando a escola se destina a

crianças que sem ela ficariam reduzidas a condições sociais de inferioridade

degradante, privadas das fontes de convívio social e de conhecimento dadas pelos

sentidos do ouvido e da vista, ou diminuídas por qualquer outra deficiência no

corpo ou na mente” (Tavares, 1954: 31).

Pedro de Campos Tavares referia-se, obviamente, ao ensino das crianças

surdas na Casa Pia de Lisboa. Apesar da imagem de falta que se associava ao corpo e

à mente daqueles que eram privados dos sentidos auditivos, a verdade é que a escola

surge como o espaço onde, por direito, estas crianças deveriam ser enquadradas. O

outro lado da questão, é claro, era o de um perfeito governo destes grupos agora

contabilizados e previsíveis, num espaço onde decorriam jogos de conduta e relações

estratégicas entre indivíduos surdos e ouvintes, entre comunidades, surdas e ouvintes.

Por outro lado, também, a necessidade de uma justificativa moral e de fabricação de

uma felicidade se a criança surda fosse convertida em objecto de práticas educativas.

Em seu próprio nome, o aluno surdo, como de resto, qualquer outro aluno da

paisagem educativa, era sujeito a práticas que abertamente o iriam transformar de

modo positivo.

Ora, esta situação é sintomática do que caracterizará toda a modernidade: a

relação de poder própria da soberania, cederia lugar a uma relação assente no Estado

e esta nova relação atravessa-se pela pedagogia, tornando o governo do Estado

inerente ao governo do indivíduo. Mas, nem por isso esta relação tem como ponto de

partida único o Estado, ou melhor, se o governo dos cidadãos tem como pano de

fundo um conceito então inventado de nação, apoia-se sobre um outro conceito, não

menos inventado – o de cidadão – a quem se pede activa participação. Quando penso

na invenção do conceito de nação, penso-o enquanto objecto conceitual que, nas

práticas discursivas que lhe dão forma, deveria activar no cidadão, um sentimento de

pertença a uma comunidade. Benedict Andersen, no seu livro Imagined Communities,

propõe uma definição antropológica para nação: “it is an imagined political

community”, “it is imagined because the members of even the smallest nation will

never know most of their fellow-members, meet them, or even hear of them, yet in

the minds of each lives the image of their communion”. Todas as comunidades são

imaginadas, são, elas próprias, construções discursivas que pretendem ser o referente

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daqueles de que se dizem o núcleo de referência. Não há, portanto, como, de resto,

Andersen defende, comunidade imaginada “natural” (1991: 6). Desta forma, os

discursos que pretendem associar o indivíduo ao Estado-nação, fabricam a ideia de

nacionalidade e de progresso como estratégia de governo de toda a população,

colocada, então, em marcha, numa missão colectiva pela liberdade e salvação2. Daqui

se deduz a proposta de Foucault:

“Que o poder não é qualquer coisa que se adquire, se arranca ou se partilha,

qualquer coisa que se guarda e que se deixa escapar; o poder exerce-se a partir de

um sem-número de pontos e num mecanismo de relações não igualitárias e

móveis” (1994: 97). O poder percorre todo o corpo social, confrontando-se

continuamente e produzindo sempre, efeitos.

A inexistência de um poder soberano começa a ser explorada por Foucault na

literatura que nomeia como anti-Maquiavel. É este o espaço em que deixa

transparecer o deslocamento do sujeito do poder e, de forma lógica aproxima do

conceito de governo, outras esferas em que é também precisa uma certa arte de

governar. Não é por acaso que Foucault resgata desta literatura expressões próximas

de governar uma casa, governar as almas, governar as crianças, uma família ou um

território. Existe, portanto, um leque variado de práticas de governo, ainda que todas

elas sejam orquestradas no interior de um Estado. São essencialmente dois os textos

de que Foucault se serve para definir o domínio da governamentalidade: Miroir

Politique contenant diverses manières de gouverner, de Guillaume de La Perrière,

editado em 1555 e, uma série de escritos pedagógicos dirigidos por La Mothe Le

Vayer ao Delfim, datados da centúria seguinte.

De acordo com Foucault, o segundo autor identifica três tipologias de

governo. Uma primeira, diz respeito à arte de se governar a si mesmo, apontando

então para o campo da moral. O Delfim só poderia ser bom governante dos outros se,

primitivamente, se soubesse governar a si próprio. A segunda categoria, de ordem

económica tem no governo adequado da família, uma imagem elucidativa. A terceira,

que diz respeito à política, é a ciência de bem governar o Estado. A novidade que

2 “A ‘naturalidade’ do pressuposto de que ‘pertencer-se por nascimento’ significava, automática e inequivocamente, pertencer a

uma nação foi uma convenção arduamente construída – a aparência de ‘naturalidade’ era tudo, menos ‘natural’. Diferentemente das ‘minissociedades de familiaridade mútua’ […] a ‘nação’ foi uma entidade imaginada” que só poderia assentar sobre o “artifício de um conceito” (Bauman, 2005: 29).

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ressumbra destes escritos, é a continuidade entre estas artes de governar, que permite,

precisamente, um movimento ascendente e descendente entre instituições e actores

sociais diversos. O poder, não vem, agora, de cima. “Vem de baixo”. Não existe

como “matriz geral” das relações de poder, “oposição binária e global entre os

dominadores e os dominados” (Foucault, 1994: 97). Se no modelo de soberania o

marco separador do poder do soberano era extremamente visível, a partir de agora, o

governo do Estado inscreve-se na pele dos cidadãos. É esta a grande inventividade da

governamentalidade: fazer “a realidade entrar no domínio do pensável” e servir-se de

tecnologias que “visam traduzir o pensamento no domínio da realidade e estabelecer,

no mundo concreto das pessoas e das coisas que as envolvem, espaços e dispositivos

ágeis capazes de actuar sobre ela” (Ó, 2003: 73). Será a police que no projecto

genealógico de Foucault, como há pouco referi, coloca no cerne da questão da nova

racionalidade política, a possibilidade de uma intervenção do Estado na vida de cada

cidadão.

“Quando o Estado é bem governado, os pais de família sabem como governar

suas famílias, seus bens, seu património e por sua vez os indivíduos se

comportam como devem. É esta linha descendente, que faz repercutir na conduta

dos indivíduos e na gestão da família o bom governo do Estado, que nesta época

se começa a chamar de polícia” (Foucault, 2004 a: 281).

A police, – e é necessário deixar claro que não é no sentido actual que

Foucault considera o termo, enquanto instituição ou mecanismo a funcionar no centro

do Estado –, mas como técnica de governo própria do Estado, iria permitir a

intervenção necessária do Estado em todos os domínios. Se pensarmos que a

finalidade última do bom governo, é a produção de um Estado-nação e, dos seus

cidadãos como actores sociais autónomos, livres, felizes, realizados, participativos e

úteis, facilmente nos aperceberemos que este modelo de cidadão – governado em

todas as esferas da vida – se coaduna e só é possível se funcionar no interior de um

sistema de vigilância e disciplina. Aliás, felicidade dos homens, parecia ser um dos

objectivos de que mais falam os autores que no século XVIII escreveram sobre este

novo instrumento da arte de governo. De Lamare, citado por Foucault, dizia que “‘a

polícia cuida de tudo aquilo que diz respeito à felicidade dos homens’”, mas diz,

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igualmente “‘que regulamenta a sociedade’”, outras vezes que, “‘zela pelo vivo’”.

“Em suma, a vida é o objecto da polícia” (2005b: 312, 313).

Esta será então uma técnica que assegura uma racionalidade do poder. E se o

conceito de polícia viria a derivar em disciplina, convém esclarecer que, para o autor

que temos vindo a referir, o conceito, disciplina, é apresentado em duas vertentes. Há

uma ambiguidade de significado, pois, tanto se refere a um “campo de saber”, quanto

à domesticação dos corpos e das vontades, campo, claramente do poder (Gallo, 2004:

82). No primeiro significado, são as formas discursivas de controlo de novos

discursos que mais prementes se tornam. O segundo, estabelece uma relação com o

primeiro, mas pela sua proximidade ao conceito de normalização das crianças surdas,

será mais abundantemente utilizado nesta escrita. Todavia, fácil é perceber que a

police enquanto disciplina tanto é o conjunto de saberes que se vai constituindo sobre

a população, administrativamente, como a garantia, precisamente pelo domínio de um

saber, de aplicação e efectivação dos princípios da racionalidade governativa.

Foucault fornece-nos ainda outro exemplo que ajudará a perceber esta questão. A

partir do livro de Turquet, La monarchie aristo-démocratique, de 1611, o filósofo

francês sugere uma espécie de imagem de actuação para a police que, consideraria,

então não só as pessoas, os seus interesses e aptidões, a educação, mas também os

registos da existências dessas mesmas pessoas, interesses, aptidões e educação.

Foucault vai mais além, mas o que me interessa é mostrar que qualquer intervenção

teria agregada a ideia de um conhecimento sobre os objectos sobre os quais se

propunha intervir. Esta é uma ideia com uma presença cada vez mais activa nos dias

de hoje: “life is ordered through expert systems of knowledge that discipline how

people participate and act” (Popkewitz, 1998: 5).

A penetração de saberes sobre os indivíduos no espaço escolar, iria constituir

a grande mola impulsionadora no traçado de estratégias de intervenção sobre os

alunos, sendo que este seria um processo permanentemente actualizado pois a escola

era palco e observatório de aplicação e esquiço dessas técnicas. Todavia, estas

técnicas deverão ser entendidas nos mecanismos de acção que libertam e, é

fundamentalmente esse incitamento produtivo que afasta a possibilidade de quando o

poder atinge os corpos, ser entendido negativamente. Não é um poder repressivo o

que provém de um saber que a nova racionalidade governativa estimula: é a formação

de alunos autónomos e responsáveis, cidadãos produtivos e úteis à nação, que

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atravessa os discursos sobre a educação. Inquirido sobre os meios de dignificar a

criança para futuro cidadão, respondia António Aurélio da Costa Ferreira que a

solução passaria por “condições económicas e hábitos que lhes” permitissem “viver

higienicamente”, “educá-los sob a acção de um ideal” que os levasse “a amar a Pátria

e o trabalho e cultivar os sentimentos de Humanidade”, que eram: “amor ao

trabalho”, “amor à Pátria” e “religiosidade” (Anuário 1919-20: 369). Traduzindo,

poder-se-ia propor: futuros cidadãos úteis à sociedade e à nação.

Zygmunt Bauman, descreve da seguinte forma a estreita relação e, dir-se-ía a

colagem da nação ao Estado, na modernidade:

“Nos tempos modernos, a nação era a ‘outra face’ do estado e a arma principal

em sua luta pela soberania sobre o território e sua população. Boa parte da

credibilidade da nação e de seu atractivo como garantia de segurança e de

durabilidade deriva de sua associação íntima com o Estado e – através dele – com

as acções que buscam construir a certeza e a segurança dos cidadãos sobre um

fundamento durável e confiável, porque colectivamente assegurado” (2001: 211).

Estado e nação faziam, portanto, parte de um mesmo plano que tinha como

finalidade governar os seus cidadãos e território, todavia, construindo cidadãos livres,

autónomos e responsáveis3. Estreia-se um sentimento real, nascido como ficção. A

ideia de identidade, essencialmente de uma identidade que relaciona o indivíduo

consigo mesmo, aparece na modernidade com uma intensidade e numa relação de

interioridade do sujeito consigo, derivando de uma relação necessária entre indivíduo

e sociedade. A construção da identidade do indivíduo incorporava-se como objectivo

no governo dos cidadãos, como “tarefa ainda não realizada, incompleta, um estímulo,

um dever e um ímpeto à acção” (Bauman, 2005: 26). Era condição essencial da tarefa

governativa introduzir este sentimento como dever obrigatório e necessário a todos

os seus cidadãos. A construção da identidade assomava-se como uma tarefa

simultaneamente individual e colectiva, desenhava-se como identidade uma

metaidentidade, a par com a ideia de Estado-nação: “o satus de uma supra-identidade,

3 Nos últimos anos do século XVIII, Friedrich Schiller traduzia-o desta forma: “Uma vez que o Estado da humanidade pura e

objectiva serve de representante no peito dos seus cidadãos, ele terá de observar perante os seus cidadãos uma relação idêntica àquela em que eles se encontram perante si próprios. […] Se o homem interior estiver de acordo consigo próprio, salvaguardará assim também a sua particularidade por mais que universalize a sua conduta, e o Estado será apenas o intérprete do seu belo instinto, a fórmula mais clara da sua legislação interior” (1993: 35). O ideal do governo atingir-se-ia no ponto de um autogoverno.

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a mais geral, volumoso e onívora de todas, a identidade que prestaria significado a

todas as outras e as reduziria ao papel secundário e dependente de ‘exemplos’ ou

‘casos especiais’” (Bauman, 2005: 42). Ora, a escola surgia como o espaço ideal de

inscrição dessa afecção do indivíduo a si, numa conexão directa com o tecido social

em que escola e indivíduo se costuravam. Desde então, e até à nossa época e, apesar

dela, não mais o self deixou de estar “inextricably linked with how it is perceived by

other persons” (Baumeister, 1987: 163-176).

A escola foi o modelo encontrado e inventado como dispositivo normal e de

normalização de toda a criança. Certamente que no seu interior, as práticas tiveram

tendência a diferenciar-se de acordo com os sujeitos em abordagem, mas, no geral o

modelo de que fala António Nóvoa, tem-se mantido ao longo do tempo. Basta-nos

recuar aos anos de novecentos sem temer qualquer desconhecimento da paisagem.

“Fixa-se por este período uma espécie de gramática do ensino, que marca - uma

vez que constrói e que organiza - a nossa forma de ver a escola: alunos agrupados

em classes graduadas, com uma composição homogénea e um número de

efectivos pouco variável; professores actuando sempre a título individual, com

perfil de generalistas (ensino primário) ou de especialistas (ensino secundário);

espaços estruturados de acção escolar, induzindo uma pedagogia centrada

essencialmente na sala de aula; horários escolares rigidamente estabelecidos, que

põem em prática um controlo social do tempo escolar; saberes organizados em

disciplinas escolares, que são as referências estruturantes do ensino e do trabalho

pedagógico.

Inventado muito tempo antes, este modelo escolar impõe-se, doravante, como a

via única de fazer escola, excluindo todos os outros possíveis. A força deste

modelo mede-se pela sua capacidade de se definir, não como o melhor sistema,

mas como o único aceitável ou mesmo imaginável” (Nóvoa, 1995: 26, 27). E era

neste modelo que também o aluno surdo tinha o seu espaço reservado.

Do livro de Guillaume de la Perrière, Foucault recupera uma frase que é

essencial encaminhar até este texto porque nos fará clarear uma ideia essencial.

‘“Governo é uma correcta disposição das coisas de que se assume o encargo para

conduzi-las a um fim conveniente”’ (2004 a: 282).

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Ora, o que Foucault retira desta frase são duas realidades fundamentais.

Primeira: governam-se coisas, aliás, homens e coisas em suas relações. O navio

fornece a metáfora perfeita porque governar um navio é, certamente, preocupar-se

com a tripulação, mas também com a embarcação e com a carga, estando, claro está,

cada decisão condicionada pelos ventos e marés, pelas tempestades e obstáculos.

Segunda realidade: existe uma finalidade num bom governo. O essencial do governo

é a forma de dispor as coisas para as conduzir a um objectivo adequado. Não é a lei

aplicada indistintamente sobre coisas diferentes, mas antes a técnica específica

pensada para cada singularidade isto é, utilizando “mais tácticas do que leis, ou

utilizar ao máximo as leis como tácticas” (Foucault, 2004 a: 284). Sendo verdade que

não há poder que se exerça sem alvos e sem objectivos, parece pacífico aceitar que

qualquer bom governo será atravessado por cálculos e por tácticas. Na mesma linha

de pensamento, a escola cumpria-se como metáfora igualmente adequada. A

sincronização de todas as actividades e relações entre os diversos actores teria de

atender às estruturas psíquicas e físicas dos alunos. Como adiante veremos, o

professor surgia como personagem que deveria dominar técnicas de interpretação de

comportamentos e aptidões, quer dizer, saber ver as propriedades totais da população

escolar que lhe estava destinada, para o sucesso da sua intervenção. De nada

serviriam as regras se não as precedessem esquiços calculados e eternamente

inacabados. É que qualquer relação de poder existe desinstalada de um território fixo,

logo, na sua errância por entre coisas e objectos, a lei vê-se substituída pelas tácticas,

a cada passo melhoradas pelo que ditam as vozes dos especialistas da alma. Em

Struggling for the soul, Thomas Popkewitz clarifica a ideia de que “the different

discursive practices about teaching and children in school” são práticas sociais

importantes porque “they normalize children by placing them into a set of distinctions

and differentiations that function to divide the children into spaces” (1998: 6). Estes

espaços, mais do que físicos, são espaços discursivos que criam fronteiras e localizam

os indivíduos nas suas estruturas.

Das realidades apresentadas, sai fortificada a utilidade do conceito de

governamentalidade, para evidenciar a forma como a criança surda foi trazida até à

paisagem educativa, localizando-a, é claro, sob o grande chapéu da anormalidade,

para que se efectivasse o bom governo da generalidade dos escolares. Sem este

conceito, não faria sentido pretender articular mecanismos fortemente disciplinares –

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de um trabalho correctivo aplicado sobre os corpos surdos numa instituição – com

mecanismos de gestão de uma população através também de instituições educativas.

Tanto as tecnologias disciplinares, dirigidas à singularidade de um sujeito, como as

tecnologias reguladoras de uma massa populacional, mantêm entre si uma estreita

relação. É certo que o exercício do poder se efectiva primeiramente através de

mecanismos de natureza disciplinar, contudo, assistimos a uma desvinculação

acentuada de práticas com carácter coercivo e a uma afinação destas mesmas práticas.

Edouard Claparède, afirmava sabiamente que “éduquer et instruire un arriére”, “fixer

son attention voltigeante”, seria possível “par l'activité” : “les méthodes verbales et

graphiques échouent presque totalement. Et c'est aussi par l'affection dont on les

entoure, par la confiance qu'on leur témoigne” (1933: 47). A percepção deste plano

de acção enquadra as relações de poder em quadros de saber e a arte de governar

entronca no bom uso do saber, através de tecnologias de regulação e de auto-

regulação.

A nova arte de governar, tem que ver com uma racionalidade de governo que

implica técnicas para o exercício de poder, de forma a conduzir a conduta de cada

um. O que procurarei demonstrar e ilustrar com quadros da pedagogia de finais de

novecentos e inícios do século XX, é que, as técnicas para disciplinar o aluno surdo

dirigem-se cada vez mais à sua alma, apelam a uma autonomia e responsabilidade

individuais, construindo uma subjectividade de acordo com um modelo do que

deveria ser o aluno surdo. Este modelo, justifica-se por uma governamentalização do

Estado que encontra na norma a possibilidade de controlo e regulação de um novo

corpo, constituído pela multiplicidade dos seus cidadãos, quer dizer, pela população.

Outro sucedâneo da governamentalidade prende-se com a existência pacífica

de disciplina e liberdade. Já aqui referi este aspecto, mas explicitarei agora duas

definições que nos permitem desmistificar uma ideia inúmeras vezes veiculada que

associaria a disciplina à coacção. Ricardo Rosa & Alberty, professor da Casa Pia,

escrevia num Relatório, a respeito de um Curso de Pedagogia científica de Maria

Montessori, realizado em Barcelona em 1916, parafraseando a mesma pedagoga que

“‘disciplina é a capacidade de ser senhor de si mesmo’, e esta só se consegue com a

educação da vontade no seu verdadeiro sentido. Coacção é o mau hábito de não

consentir que a criança se mostre como é, […] roubando-lhe todas as ocasiões de

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agir, de lutar contra as suas próprias fraquezas, de se tornar responsável” (1917: 363).

Disciplina e coacção são efectivamente diferentes e, se a primeira é imprescindível na

escola, a segunda é o contrário de tudo o que diziam e defendiam os educadores

desde o século XIX. É sobre princípios de liberdade, autonomia, interesse,

individualização, que, se inscreve a produção de alunos disciplinados, cidadãos úteis

e dóceis. O processo de construção do cidadão baseava-se na fabricação de uma

identidade, também nascida como “ficção”, no Estado moderno (Bauman, 2005: 26).

Apresentarei de seguida três quadros extensos, todos eles da autoria de D.

António da Costa, – Primeiro Ministro da Instrução Pública em Portugal – que

mostram a imagem do papel da educação na formação dos cidadãos modernos e, da

sua imprescindibilidade no governo de todos os cidadãos, inclusivamente, refere o

autor, dos anormais.

“Livre por natureza, o homem carece de uma instrução que lhe desenvolva o

espírito, de uma educação que lhe forme a alma, e de um trabalho que lhe seja

vida, como encargo que a providência lhe impôs e como título de glória com que

lhe enobrece o encargo. Ensino, educação, trabalho, estas três instituições

constituem a instrução de todos, a instrução nacional, e nas mãos da instrução

nacional está a vida da nação, como nas da instrução universal está a existência

da humanidade” (Costa, 1870: 5, 6, itálico meu).

“ Não se organizou a sociedade política para destruir os direitos naturais do

homem, foi, pelo contrário, para lhe assegurar a maior soma de garantias, que

aliás lhe seriam impossíveis. A sociedade política do século XIX baseia-se na

liberdade. A liberdade chama os cidadãos todos a tomar parte na vida social. A

política nacional tem por consequência indispensável a instrução nacional. [...]

Mas não basta só o amor da liberdade. Nos governos livres o povo todo é

chamado a realizar por si próprio a vida política. É-lhe portanto indispensável

conhecê-la e realizá-la. Sem a instrução do povo não pode haver cidadãos que a

executem” (Costa, 1870: 8, 9).

“ A instrução universal rebenta de todo este sistema universal. O selvagem

serviria para a comparação com o civilizado, o louco para o desenvolvimento da

ciência, mesmo quando ao selvagem se não pudesse dar a civilização, nem o juízo

ao doido. A cada homem o seu papel na grande representação do mundo social; o

drama universal não tem comparsas, e não os ter é em princípio a lei da

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providência, e de facto há-de ser a conquista sucessiva do progresso humano

resolvida pelo ensino popular. São diversos os destinos, dir-se-á. Não há dúvida

que são. A natureza criou a desigualdade dos talentos, das aptidões e dos

serviços. Nesta mesma desigualdade reside a harmonia universal; mas todos os

destinos são igualmente sagrados e nobres, porque o título humano é a alma.

Cada homem representa um direito. Foi a ignorância que fez [...] da criança

defeituosa um fardo inútil” (Costa, 1870: 14, 15, itálico meu).

Pois bem, ao Estado caberia o papel de modificar este destino. A criança

defeituosa passaria a enquadrar uma paisagem escolar, integrando-se num mundo de

normais e servindo de referente a essa população. Veremos, de seguida, como se deu

este processo. No momento, direi apenas que, no caso da criança surda, o processo

passou, como decerto já se percebeu, pela invenção da surdez como deficiência,

permitindo uma lógica ortopédica que, por sua vez, implicava o apagamento do ser

surdo. A normalização obrigava a uma unificação daquilo que era a língua, o surdo

passaria a fazer parte da sociedade se dominasse a oralidade. Apagamento, portanto,

para que se desse uma inclusão na comunidade-nação imaginada e na comunidade

escolar.

Uma última observação de Foucault sobre o texto de La Perrière, permite

enxergar uma outra característica que marca presença numa relação de

governamentalidade. O bom governante deve ser paciente e diligente, quer dizer,

cada vez menos será pela força que se atingem os objectivos de governo dos

cidadãos. As técnicas serão, essas sim, o elemento principal, resultante, claro está, de

um estudo aturado das coisas a governar. Quem governa tem de constituir um saber

sobre os objectos de governo, condição essencial para o exercício do poder. Já o

referimos em relação à police enquanto técnica e enquanto disciplina. Na verdade, é

este o binómio poder/saber, tão necessário ao meu discurso quando se trata de falar

das tecnologias aplicadas no ensino das crianças surdas. Poder e saber, unem-se a um

outro conceito – subjectivação – que, será aqui considerado, enquanto resultado dos

vários processos, – práticas, técnicas e referentes –, que, constroem o surdo como um

sujeito de certo tipo – deficiente auditivo. A lógica em que se insere esta produção da

deficiência e, depois, da normalização dos deficientes, inscreve a deficiência

enquanto problema social. Os deficientes – já inseridos numa racionalidade de

governo – terão o direito à vida e à inclusão. Vejamos como.

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Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa…

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Aquilo que era o direito do soberano e que consistia no poder sobre os

súbditos – poder de os “fazer morrer” ou de os “deixar viver” – não se exclui ao

passar das mãos de um soberano para um Estado, contudo, ver-se-ia penetrado,

perpassado, modificado, por um “poder inverso: poder de ‘fazer’ viver e de ‘deixar’

morrer” (Foucault, 2002 c: 287). Quer isto dizer, portanto, que passa a ser

preocupação do Estado fazer viver os seus cidadãos, acção altamente ligada a um

prolongamento da vida, obrigando a um zelo e melhoramento constantes das

condições de saúde, de habitação, de higiene, etc. O princípio elementar é o de

aperfeiçoamento da espécie – coincidente, claro está, com o progresso – eliminando e

não deixando que se perpetuem as deficiências, portadoras de desarmonia para um

desenvolvimento normal.

A doença, tal como a deficiência, é construída como fenómeno vinculado não

somente ao indivíduo que a possui, mas antes, ao conjunto de indivíduos da

população. Abria-se, então, a porta para a entrada da medicina, que não só tornaria

inteligível o mal de que padecia o sujeito, como haveria de lhe arranjar meio de cura.

A visonha da anormalidade enquanto facto não controlável sob o ponto de

vista das manifestações e comportamentos exigia do Estado, a operacionalização de

mecanismos de diagnóstico para que se seguissem os terapêuticos.

“São esses fenómenos que se começa a levar em conta no final do século XVIII e

que trazem a introdução de uma medicina que vai ter, agora, a função maior da

higiene pública, com organismos de coordenação dos tratamentos médicos, de

centralização da informação, de normalização do saber, e que adquire também o

aspecto de campanha de aprendizado da higiene e de medicalização da

população. Portanto, problemas da reprodução, da natalidade, problema da

morbidade também” (Foucault, 2002 c: 291).

Foucault refere uma nova tecnologia aplicada agora no governo dos cidadãos.

A seguir a uma primeira tecnologia, de natureza disciplinar, – como a escola

enquanto instituição disciplinar –, individualizante e produtora de sujeitos úteis à

nação e dóceis perante a prática da governamentalidade, segue-se uma outra

tecnologia dirigida não a um, mas a todos os cidadãos. Não se trata de lidar com o

conjunto dos sujeitos como se fossem um só, pois já a disciplina inaugurara esse

tratamento. A nova tecnologia, biopolítica, consiste em lidar com a massa que

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Questões teóricas e articulações práticas

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constitui a população. Por isso mesmo, a população se tornaria o verdadeiro objecto

da police. Também aqui veremos que a escola se torna num dos palcos ideais para

actuação desta biopolítica, lidando, afinal, com nada mais, nada menos do que uma

população escolar que importa manter controlada.

As palavras do autor de Vigiar e Punir, são inigualáveis quando se trata de

clarificar os conceitos que propõe:

“As disciplinas lidavam praticamente com o indivíduo e com seu corpo. Não é

exactamente com a sociedade que se lida nessa nova tecnologia de poder (ou,

enfim, com o corpo social tal como o definem os juristas); não é tampouco com o

indivíduo-corpo. É um novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças,

se não infinito pelo menos necessariamente numerável. É a noção de

“população”. A biopolítica lida com a população, e a população como problema

político, como problema a um só tempo científico e político, como problema

biológico e como problema de poder” (Foucault, 2002 c: 292, 293).

Seria então necessário, cuidar de cada cidadão de forma individual para que o

conjunto dos cidadãos e do Estado resultasse no modelo de progresso pretendido. O

carácter individualizante de uma tecnologia disciplinar, opera ao lado de uma

biopolítica dirigida ao fenómeno do conjunto populacional. Uma e outra, são

mecanismos de controlo do cidadão e da população, visando atingir um equilíbrio

global, preservador da segurança e da ordem do conjunto, em relação a perigos

internos. O processo terapêutico ou correctivo, aplicado quer à infância anormal quer

à infância em risco, justifica-se pela tentativa de controlar dados que antes eram

aleatórios, introduzindo sujeitos em espaços de regulação, onde se procuraria

compensar os efeitos da anormalidade. O progresso da nação surge nos discursos

como progresso de cada indivíduo particular. Coroamos o final deste capítulo com

palavras de Durkheim do início do século XX:

“Ao querer a sociedade, o indivíduo quer-se a si próprio. A acção que ela exerce

nele, designadamente pela via da educação, não tem, de modo algum, por

objectivo e por efeito comprimi-lo, diminui-lo ou desnaturá-lo, mas, pelo

contrário, engrandecê-lo, transformá-lo num ser verdadeiramente humano. Não

há dúvida de que este engrandecimento somente poderá conseguir-se mercê de

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Um primeiro olhar sobre a paisagem educativa…

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um esforço. Mas é precisamente a possibilidade de fazer voluntariamente esse

esforço, uma das características mais essenciais do homem” (1984: 24).

Teremos oportunidade de verificar os diversos jogos estratégicos que a escola

fará actuar para ligar liberdade e autonomia à disciplina. Será essencialmente pela

concepção do sujeito enquanto sujeito ético, pelas tecnologias do eu, que os quadros

das regras disciplinares evidenciarão toda a sua produtividade positiva na formação

dos escolares.

Fazendo uma tradução, embora demasiado geral ainda, direi que a

institucionalização da criança surda na escola foi a via encontrada para exercer uma

prática de governo sobre este grupo populacional. Todavia, este cenário só se torna

perfeitamente compreensível quando articulado com um poder e com um saber, quer

dizer, com um poder exercido com base num acréscimo contínuo de um saber. Este

saber ficará a dever a sua ossatura a uma entrada das ciências psi na paisagem

educativa, a práticas de exame, de individualização, de registo. À definição de normal

e anormal e à fixação de condutas próprias de um e de outro estado. E se a psiquiatria

vai ser a base é porque só ela sustentará um poder clinicamente, medicamente

qualificado. A sua entrada na escola também tem uma justificação óbvia. Como

analisaremos, a infância será a base para a construção de um saber psi. Evidentemente

a criança será um objecto excelente para análise mas, não somente a criança presente,

também, a criança que se foi. E aí, falaremos já da infância passada de qualquer

homem, daquela que se guarda no arquivo da memória, que tanto contém os factos,

como os liberta a múltiplos olhares. A exposição possível abrangerá tudo e todos.

Tentarei neste momento mostrar de que forma uma tecnologia biopolítica, que

induz a técnicas de regulação e normalização, tem origem numa relação do já aqui

referenciado binómio de poder/saber.

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A produção de saber sobre o aluno…

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A PRODUÇÃO DE SABER SOBRE O ALUNO: BIOPOLÍTICA E

NORMALIZAÇÃO, SABER E PODER

Ficha individual de aluno

surdo, primeira metade do

século XX

(Arquivo da Casa Pia de

Lisboa)

Inicio esta possibilidade de articulação entre a existência de uma tecnologia

biopolítica que tem a população e a sua normalização como objecto e objectivo,

articulando-a com a dinâmica relação entre a constituição de um saber e o exercício

de um poder. Procurarei ancorar a este par conceitual, a psicologia e a medicina

enquanto companheiras das práticas educacionais. A tecnologia biopolítica, segundo

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Questões teóricas e articulações práticas

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Michel Foucault, tem que ver com uma consideração do indivíduo, não tanto em

termos individuais, mas ao nível do grupo populacional em que se insere. É uma

tomada do poder em relação ao homem-espécie. Só assim, aliás, se justifica a

necessidade de formar objectos que fixam sujeitos de pertença, como é o caso da

surdez enquanto invenção, agregando a si todos aqueles que eram despossuídos de

capacidade auditiva. O biopoder surge abrangendo dois lados do triângulo segurança,

população e governo a que Foucault se referia para introduzir a ideia de

governamentalidade. Na verdade, o biopoder traz no seu âmago a promessa de

proteger o corpo populacional pelo próprio controlo que sobre esse corpo exerce. “De

que se trata nessa nova tecnologia do poder, nessa biopolítica, nesse biopoder que

está se instalando?” (Foucault, 2002c: 289). Foucault dá a resposta:

“Trata-se de um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos

óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população, etc.”.[...] Trata-se

de lançar mão “da medição estatística”, de observar “procedimentos, mais ou

menos espontâneos, mais ou menos combinados”, trata-se, igualmente, de

verificar a “natureza”, a “extensão”, a “duração”, “a intensidade das doenças

reinantes numa população” (2002c: 289, 290).

São fenómenos, evidencia Michel Foucault que introduzem na própria

sociedade a medicina, com uma função de “higiene pública”, “com organismos de

coordenação dos tratamentos médicos, de centralização da informação, de

normalização do saber”, trazendo consigo, claro está, a neutralização e exclusão de

alguns elementos dessa população (2002c: 291, 292). Mas estes serão tidos em conta

por essa biopolítica. Irão fazer parte de uma racionalidade aritmética, ajudando a fixar

uma média capaz de assegurar um retrato muito próximo daquilo que seria o corpo

populacional. Na longa transcrição que se apresenta, desenha-se o mapa em que o

poder e o saber se vão manifestar na modernidade. Mostra-se, também, de que forma

o governo dos cidadãos se estabelece como governo de uma população quantificada e

quantificável. Para além disso, antecipa-se aquilo que dará origem ao aparecimento

da norma, quer dizer, a regulamentação do corpo, do comportamento, da localização,

etc. A homeóstase a que Foucault se refere é a regulação de princípios de

funcionamento e circulação tendo em vista a obtenção de pontos médios. É a

normalização que se efectiva neste projecto, todavia, a garantia de que as imagens de

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A produção de saber sobre o aluno…

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normal e anormal coexistem é insubstituível. A relação de exclusão entre uma e outra

representação “está subordinada à operação de negação” do anormal, ainda que seja

este “existencialmente o primeiro” (Canguilhem, 2002: 216). Significa que qualquer

padrão com que se pretenda imprimir o tecido social encontrará dinâmica nos pontos

nodais que lhe pretendam modificar os ritmos.

“Nos mecanismos implantados pela biopolítica”, vai-se tratar sobretudo, de

“previsões, de estimativas estatísticas, de medições globais”. A intervenção

afirma-se como prática essencial. “Vai ser preciso modificar, baixar a morbidade;

vai ser preciso encompridar a vida”. Um dos aspectos fundamentais é

“estabelecer mecanismos reguladores que, nessa população global com seu

campo aleatório, vão poder fixar um equilíbrio, manter uma média, estabelecer

uma espécie de homeóstase, assegurar compensações; em suma, de instalar

mecanismos de previdência em torno desse aleatório que é inerente a uma

população de seres vivos, de optimizar, se vocês preferirem, um estado de vida.

[...] Não se trata, por conseguinte, em absoluto, de considerar o indivíduo no

nível do detalhe, mas, pelo contrário, mediante mecanismos globais, de agir de tal

maneira que se obtenham estados globais de equilíbrio, de regularidade; em

resumo, de levar em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e de

assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma regulamentação” (Foucault,

2002 c: 293, 294).

A problemática da biopolítica inseria-se na prática da governamentalidade,

“which concerns the best way to exercise powers over conduct individually and en

masse so as to secure the good of each and of all” (Rose, 1999: 23). A

governamentalidade exigia uma retomada constante das práticas para fundar novos

conhecimentos, isto é, o saber está dependente sempre de um campo de análise

empírico, para pode agir e transformar. Logo, para que o poder exista, não poderá ser

considerado nem como “instituição” nem como “estrutura”, mas sim como “uma

situação estratégica complexa” que não é exterior às relações entre indivíduos e entre

estes e práticas (Foucault, 1994 a: 96). O insuflamento da vida pela medicina

contribuindo para a construção de um modelo de normalização assente na figura do

que deveria ser o normal, isto é, o modelo de homem saudável, traduz-se como “a

bela tarefa de instaurar na vida dos homens as figuras positivas da saúde, da virtude e

da felicidade”. Para além da cura, interessa, pela constituição de um saber sobre o

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Questões teóricas e articulações práticas

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corpo, passar como legítima a ideia de corpo normal como corpo saudável,

imprimindo nos indivíduos o desejo de aproximação a estes estados, intensificando-

se, portanto, a relação e o cuidado de cada sujeito consigo próprio. A gestão da

existência transfere-se para uma dinâmica entre público e privado, isto é, entre

normas sociais e imperativos individuais. A medicina “toma uma postura normativa

que não a autoriza apenas a distribuir conselhos de vida equilibrada, mas a reger as

relações físicas e morais do indivíduo e da sociedade em que vive” (Foucault, 2004 b:

38, 39).

Não me ocorre outra forma de continuar senão possibilitando de imediato a

leitura daquilo que constituía um saber sobre o aluno surdo que a Casa Pia admitia

como seu habitante. Não será agora considerado nenhum relatório médico que diria

do aluno e da sua doença, mas antes um conjunto de perguntas que respondidas e

colocadas em arquivo, juntamente com as dos restantes alunos da instituição, formava

um corpus de saber relativo aos alunos internos. Relembro apenas que sobre estes

alunos se sabe, já, a verdade da sua doença. O que agora se pretende é entrar em cada

um deles para melhor definir as estratégias de intervenção. Joga-se um pingue-

pongue constante entre indivíduo e população, entre surdo e comunidade surda, sendo

que o que será decidido para o grupo, deriva de uma possibilidade de intervenção

positiva no maior número dos seus elementos.

Sabendo que a imagem que abre este capítulo é fragmento de um documento

institucional que pertence aos arquivos da Casa Pia, e que este documento continha

também algumas das questões que serão apresentadas mais à frente, há aspectos que

se tornam evidentes. Um deles é, claramente, do domínio da imagem e do

saber/poder. A utilização da fotografia num contexto institucional diz respeito a um

poder de observação sobre os sujeitos. Fotografia de frente e de perfil, com objectivos

identificativos, fotografia, portanto, instrumental. Durante a segunda metade do

século XIX, a recém-inventada técnica fotográfica “modifica profundamente os

fundamentos da prova, o modo de ver e de compreender” (Sicard, 2006: 18). A

câmara fotográfica nasce como uma máquina de visão que cria objectos a partir de

um ponto de vista que se dilui nos olhos do observador. Os espaços disciplinares e

regulados encontravam na prática do arquivo, do registo contínuo e sistemático dos

que se enredavam neles, a possibilidade de efeitos de poder por um crescendo de

saber. Na segunda parte, no capítulo relativo às regras da casa esta questão será mais

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A produção de saber sobre o aluno…

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pormenorizada.

A admissão do aluno passava por um questionário. Eis alguns dos campos a

preencher: nome, idade, naturalidade, filiação; nasceu surdo? em que idade se

reconheceu a surdo-mudez?; qual é a causa certa ou provável da enfermidade?; falou

antes de ensurdecer?; diz actualmente algumas palavras ou frases?; o que sabe do seu

passado patológico; qual o estado das suas funções cerebrais?; apresenta estigmas de

degenerescência?; tem surdos-mudos na família?; possui alguma instrução?; onde a

adquiriu?; idade dos pais; profissões; os pais têm algum grau de parentesco?; houve

qualquer acidente ou doença infecciosa, antes ou durante o período gravídico?; estado

das funções cerebrais dos pais?; sensibilidade geral e especial (tacto, vista e ouvido)

dos pais; têm a palavra livre ou embaraçada?; apresentam quaisquer sintomas de

afecção nervosa?; há vestígios de qualquer género de vida, de quaisquer hábitos ou

excessos, principalmente do abuso de bebidas alcoólicas?. Diria Ary dos Santos sobre

as vantagens da prática e correcto preenchimento dos questionários, bem como dos

exames médicos aos alunos:

“São imprescindíveis quando se pretende avaliar do desenvolvimento físico do

surdo-mudo” (1920: 12).

Deste inquérito surgem dois cenários. Um deles que encerra a racionalidade

da nova arte de governo – governar tudo e todos –, permite a constituição de um

saber sobre o aluno e sobre a sua família. O outro tem que ver com a produção de um

discurso sobre o aluno, que é o que permite criar um dispositivo técnico de

intervenção. Há regras na produção de discurso e, no caso da escola, estas assumem

uma regularidade e sistematicidade que ainda hoje se verifica. Tal como as

enunciações discursivas que permitiram a formação do objecto surdez, também a

nível institucional, o governo da criança surda terá de se reger por um conjunto de

práticas discursivas que permitem ver e dizer daquele que é o seu objecto. O aluno

surdo seria transcrito em enunciados logo desde a sua entrada na instituição. A

modernidade educativa obrigava a um registo constante dos acontecimentos, a cada

passo formando cenários que permitiriam aceder num só instante às imagens do

acontecimento, como, também, ao controlo desses acontecimentos. É evidente que o

resultado da leitura das fichas individuais dos alunos, não tendo uma feição autoral,

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Questões teóricas e articulações práticas

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revela uma visão unitária e funcional que ligava o domínio da medicina ao domínio

da educação. O propósito seria justificar qualquer acto de normalização, de ortopedia

correctiva sobre o corpo surdo, com base num saber oriundo não apenas do seu ser

individual, mas do saber relativo a um grupo com características semelhantes. As

possibilidades de construção da identidade de cada aluno, resultavam do trabalho de

interpretação e tradução dos elementos apurados no indivíduo, por médicos,

pedagogos, psicólogos que então os analisavam no seu campo de saber específico e

prescreviam receitas de acção. José da Cruz Filipe, era claro quando afirmava que:

Seria depois de conhecer “o deficiente em todas as suas manifestações”, “depois

de vencido o período mais grave da adaptação ao nosso meio de vida entre

educador e aluno”, seria “por meio de uma acção afectiva natural e

indispensável” que mais se ensinaria, porque, precisamente, “mais se ensina e se

aprende com o coração do que com o cérebro”. “Depois de iniciarmos a

verdadeira fase de tratamento”, dizia o pedagogo, “consoante as exigências de

cada caso,- a alegria torna-se o melhor factor de acção a exercer, porque os

progressos, por mais lentos que se apresentem, são sempre motivo de incitamento

e, sobretudo, são a origem da criação de novas esperanças, porque incitam à

invenção de processos sempre baseados no muito que os próprios alunos nos

ensinam” (1942: 22).

Acabei de corroborar a ideia de que seria pela construção de um saber sobre o

aluno que se exerceria um poder produtivo. Mas há mais imagens que os documentos

nos oferecem. Fixemos a atenção, numa análise produzida por Ary dos Santos, em

jeito de balanço do ensino das crianças surdas na Casa Pia de Lisboa. Gostaria apenas

de evidenciar que este é um comentário escrito por um actor da própria Casa Pia,

médico e pedagogo, que analisa um fenómeno que inteligibiliza na forma de

produção de um saber. É suposto que esta seja uma imagem verdadeira do que

aconteceria na Casa Pia de Lisboa e, mais, que esta imagem fosse, à época, produtiva,

pois dando a ver o que era a verdade de um facto, poder-se-ia mais facilmente

delinear uma estratégia de intervenção. Dizia assim Ary dos Santos:

“Foram apenas 20 os alunos que completaram os cursos profissionais durante o

último decénio.

Se causa certo espanto a disparidade entre o número dos alunos que passaram

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A produção de saber sobre o aluno…

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pelas oficinas e o número dos que chegaram a concluir o ensino, maior surpresa

temos quando se recebe, como eu recebi, a informação de que as aptidões do

surdo-mudo, comparadas com as dos ouvintes falantes, são maiores.

Os mestres são unânimes em afirmar que, em geral, o surdo-mudo tem qualidades

de trabalho superiores: boa vontade, tenacidade, mais observação e maior,

perfeição.

Procurando informações acerca da facilidade e natureza das colocações

alcançadas pelos alunos saídos foi-me dito o seguinte:

O ensino profissional não tem tido para estes rapazes a feição prática que seria

para desejar, visto que se notam dificuldades tais que não lhes permitem na vida

prática entrar logo para lugares que certamente desempenhariam se fossem

adestrados doutra forma” (1920: 147, 148).

Uma primeira imagem que estas palavras nos oferecem é relativa ao carácter

que qualquer surdo poderia manifestar, caso fosse objecto de governo: boa vontade,

tenacidade, capacidades de observação e perfeição maiores que os seus companheiros

ouvintes, talvez devido à ausência de um sentido que significaria, quase sempre,

intensificação de outros. Mas há mais neste documento. Para além do retrato do que

acontecia no ensino dos surdos na Casa Pia, o que decerto produziria um

conhecimento desta população, o próprio Ary dos Santos dava conta de uma

produção de saber anterior, pelos próprios mestres que lidavam directamente com os

alunos, relacionando estes dados com outros que, de certo modo, pareciam

contraditórios e que eram, de uma base estatística, de cálculo entre os alunos que

entravam, que frequentavam o ensino e que saíam com sucesso da instituição. É

assim que também pela mão de Ary, ficamos a saber que dos 35 alunos admitidos na

Casa Pia em 1 de Fevereiro de 1906, sendo submetidos a um percurso de ensino oral

que duraria oito anos, nenhum deles saiu com o curso completo.

“Sendo a duração do curso de oito anos, era para esperar que depois de 1914

pudessem sair alunos com o curso completo; mas, triste é dizê-lo, até hoje ainda

não saiu do Instituto um único aluno com o ensino completo da articulação e

linguagem (8ª classe)!

Em 1914 - Saíram 3 alunos: um com a 5ª classe, outro com a 7ªclasse, por terem

completado a idade, e o terceiro saiu com o ensino da 7ª classe escrita. Este

ensino foi ministrado a todos os alunos que tinham vindo do Asilo Municipal, e

que, pela idade avançada para o ensino, já não podiam aproveitar com o método

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oral.

Em 1915 - Não saiu nenhum aluno.

Em 1916 - Saíram 3 com a 6ª classe, 2 expulsos e 1 para aprendizado; um outro

com a 7ª classe (misto) que não frequentou as aulas por se ter dedicado

exclusivamente ao ensino profissional.

Em 1917 - Não saiu nenhum aluno.

Em 1918 - Saiu apenas 1 para aprendizado e que recebeu apenas ensino escrito:

por não ter aproveitado com o método oral” (Santos, 1920: 147).

O que num primeiro momento me interessa clarificar é que o conhecimento

formado sobre um determinado grupo é constitutivo de relações de poder. Da mesma

forma, não há relações de poder que não assentem sobre saberes produzidos. Se

classificar, objectivar e normalizar os indivíduos é tarefa inerente a uma arte de

governo, não é menos verdade que estas classificações, objectivações e

normalizações só acontecem por uma prática de observação e racionalização dessa

visão sobre as coisas. Quando se fala em biopolítica, refere-se sempre uma espécie de

homeostasia que é irremediavelmente produtora de exclusões. Perante um cenário

como o que Ary dos Santos apresenta, de insucesso dos alunos surdos, o caminho

proposto é o de uma nova exclusão. Deve a Secção de Surdos-Mudos receber

qualquer candidato às suas vagas? Ary dá a resposta:

“A meu ver é necessário uma selecção cuidada, devendo-se admitir apenas

aqueles que possam aproveitar com o ensino aí ministrado. É evidente que

surdos-mudos idiotas, imbecis, arriérés, etc., necessitam duma educação

especial”, quer dizer, ainda mais especial, “exigindo do educador conhecimentos

muito vastos” para alcançar o modelo de aluno antecipado. “Julgo, pois,

vantajoso que de futuro se faça a exclusão desta espécie de anormais quando se

apresentem a disputar qualquer vaga” (1920: 7).

Sustentarei agora a ideia de que a observação fazia par com o saber e com o

poder. A simples possibilidade de estar a ser observado criaria no sujeito uma

sensação de desconforto, ou, mesmo que desconhecesse que era alvo de um olhar, só

essa visão era já constitutiva de um poder de ver, sem ser visto. Michel Foucault

analisa o Panóptico de Jeremy Bentham como a figura arquitectural por excelência

que dissocia “o par ver-ser visto” (2004:167). A proposta de Bentham era simples:

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A produção de saber sobre o aluno…

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um sistema construtivo de vigilância constante, aplicável a uma série de instituições

de carácter disciplinar, correctivo ou regenerador. Escrevia-o assim:

“Não importa quão diferentes, ou até mesmo quão opostos, sejam os propósitos:

seja o de punir o incorrigível, encerrar o insano, reformar o viciado, confinar o

suspeito, empregar o desocupado, manter o desassistido, curar o doente, instruir

os que estejam dispostos em qualquer ramo da indústria, ou treinar a raça em

ascensão no caminho da educação, em uma palavra, seja ele aplicado aos

propósitos das prisões perpétuas na câmara da morte, ou prisões de confinamento

antes do julgamento, ou casas penitenciárias, ou casas de correcção, ou casas de

trabalho, ou manufacturas, ou hospícios, ou hospitais, ou escolas” (Bentham,

2000: 17).

A escola é um dispositivo que, em cada momento, cria condições de

enunciabilidade dos seus diversos actores. Considerarei aqui, apenas a situação de

visibilidade em que o aluno surdo estava localizado. Para isso, tomarei como

referência o recreio e o que este espaço permitiria a todo o médico ou pedagogo:

“Há alegria nas almas inocentes das crianças. Elas correm, saltam, jogam, num

mundo cheio de luz, de cor e de harmonia. Dá prazer vê-las tão felizes na sua

infância descuidada. O recreio é sempre do seu agrado. [...] Num ambiente

favorável, onde não se sintam condicionadas, as crianças revelam-se tal como

são. Num tal ambiente não é possível a dissimulação. Durante o jogo, as crianças

deixam transparecer aspectos da sua vida interior, permitindo ao educador

perscrutar as forças mais recônditas da sua alma. Cada criança, através do jogo, é

para o educador uma fonte rica de conhecimentos psicológicos: é possível, desta

forma, ajuizar do seu temperamento e carácter e, consequentemente, estudar o

caminho a seguir na sua educação” (Amaral, 1954:45, 46).

A escola era o próprio laboratório. Observar, registar e experimentar seriam

tarefas produtivas ao alcance dos seus médicos e educadores. Deixei

propositadamente para o final desta incursão uma abordagem mais detalhada de como

se constituiria este saber, – pelo menos ao nível da paisagem educativa, naquilo que

constitui a acção entre professores e alunos –, que, invariavelmente, desagua nas

relações de poder. E aqui, há um aspecto fundamental que gostaria de deixar bem

explícito. Para que o professor construa um saber sobre o aluno, e esta é uma das

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marcas fundamentais do discurso científico a partir do século XIX, é evidente que ele

próprio tem de possuir uma formação adequada, possibilitadora da transformação de

um simples olhar sobre o educando, numa observação fundamentada em leis

provenientes da psicologia. O conhecimento profundo do aluno, sabendo ler nos

comportamentos e reacções de superfície o que de mais interior lhe vai na alma é uma

tópica importante e, diria, fundamental para todo o trabalho a propor no interior da

escola. Exerce também um outro papel, o de a partir da observação classificar os

escolares. Para mergulharmos directamente nesta problemática irei considerar dois

documentos essenciais: um, diz respeito às lições de Psicologia Experimental que

António Aurélio da Costa Ferreira, – director da Casa Pia no início do século XX –,

proferiu, na abertura de um Curso dirigido a professores da escola normal; o outro,

com um alcance diferente, refere-se ao programa seguido na preparação de

professores para o ensino de surdos na própria Casa Pia de Lisboa.

Numa das lições, intitulada A arte de educar e a psicologia experimental, o

pedagogo começa por desenhar uma definição da arte de educar. Explicava-a assim:

“A arte de educar é fundamentalmente a arte de regular a conduta presente e

futura dos que se têm de educar. Implica forçosamente o conhecimento da

conduta, das causas dela, do seu mecanismo e das possibilidades que o indivíduo

oferece. A arte de educar assenta, como a arte de curar, na anatomia e na

fisiologia e assim como o médico [...] tem não só de conhecer as doenças e os

remédios, mas também conhecer os doentes e encontrar as indicações, assim

também o educador [...] tem não só de conhecer os fins da educação e os meios

da educação, a pedagogia e a metodologia, mas também de saber conhecer o

educando e encontrar a forma de educação que mais lhe convenha e se adapte ao

seu feitio” (Ferreira, 1920: 315).

Estas palavras são o espelho da ideia que tenho tentado trazer a esta escrita: a

arte de educar é a arte de governar a criança, na escola e na sociedade. O que diz

António Aurélio da Costa Ferreira entronca por inteiro na perspectiva da

governamentalidade. Torna-se por demais evidente que só a partir do momento em

que a esfera da individualidade do aluno se apresenta como pensável é que o mestre

pode agir de uma forma económica e produtiva. O mapeamento do interior dos

sujeitos é condição necessária para uma intervenção a bisturi na sua alma. Alargarei

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A produção de saber sobre o aluno…

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aqui o campo de compreensão que o conceito de governamentalidade nos pode trazer.

O objectivo será mostrar que, é por uma conexão cada vez mais evidente entre actores

diversos que se pode levar a cabo uma acção sobre os sujeitos. O modelo, esse, não

será o da coerção disciplinar que criaria uma obediência à lei ou à regra, mas será o

da especialização de um saber sobre os sujeitos, levando-os a conduzirem-se a si

próprios, de livre vontade, pelos trilhos previstos. Um dos grandes, – senão o maior –,

contributo que a psicologia traz à paisagem educativa é a possibilidade de uma acção

eficaz, mas cada vez mais transparente no governo do aluno. Nikolas Rose, diz que

“making thought technical, attempts at governing are always limited by the

conceptual and practical tools for the regulation of conduct that are available,

although they may use them in novel ways and inspire the invention of new

techniques” (1999: 22). Ora, as ciências médicas fornecem à pedagogia, a partir do

final do século XIX, um conjunto de saberes e de actores especializados que, desde

daí, não mais abandonaram a paisagem educativa. Diz assim Jorge Ramos do Ó:

“Os seus praticantes serão sobretudo percebidos como os novos especialistas da

alma que, em nome dos imperativos éticos, aglutinam e racionalizam,

intensificam e desenvolvem práticas, técnicas, formas de cálculo, rotinas e

processos relativos às capacidades e performances individuais” (2003: 54).

O palco de acção destes actores será a própria arena educativa. A

disponibilidade experimental dos sujeitos que aprendem e habitam numa mesma

instituição é praticamente total. Veja-se como o recreio fornece elementos

fundamentais para a análise dos que aí deixam os sentimentos mais primários e o

rasto de acções não reprimidas, entregues ao olhar do vigilante. E o estudo desses

comportamentos, continuaria António Aurélio, “tem o maior interesse e importância

para o educador”, pois só por uma análise científica poderá encontrar uma maneira

“de as condicionar”, quando forem reacções inapropriadas. Daqui se deduz a

acutilância de uma formação de professores, habilitados para “conhecer e praticar os

meios científicos de exame”, “de estudar os fenómenos mentais”, “de possuir as

regras e os meios de condicionar esses fenómenos” (1920: 316, 317). O discurso é

explícito e refere-se sem dúvida ao governo do aluno, todavia, deixando-lhe uma

margem aberta para a expressão da sua individualidade. A questão é a de sempre:

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Questões teóricas e articulações práticas

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qualquer manifestação, por mais desadequada que seja, servirá sempre de objecto

para construir um saber. A autonomia e liberdade do educando, sabia-o uma massa de

pedagogos, de Montessori a Dewey, Ferrière ou Claparède, António Aurélio ou Faria

de Vasconcelos, era condição essencial no processo educativo. Aurélio cita Binet

quando este diz que:

É preciso deixar ao indivíduo “‘a plena liberdade de exprimir o que sente e

mesmo convidá-lo a expressamente se observar de perto durante o decurso da

experiência’” (1920: 319).

Jogos no recreio

(Amaral, 1954)

Aliás, de nenhuma outra forma se poderia cumprir aquilo por que clamava

este grupo de educadores e pedagogos ao abrir do século XX. Dizia Claparède,

embora de um modo um tanto radical que, o mestre deveria metamorfosear o seu

papel. Não seria tanto a ruptura, julgo-o, a que o autor se referia quando dizia que: “o

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A produção de saber sobre o aluno…

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educador, em vez de ser um plasmador de almas e de espíritos, tornar-se-á um

estimulador de interesses; em vez de ficar no meio do palco, (onde muitas vezes

pontifica, sem outros resultados tangíveis, a não ser a satisfação de suas tendências

autoritárias), deverá, daí em diante, permanecer nos bastidores, de onde disporá e

organizará o meio da maneira mais favorável ao despertar das necessidades

intelectuais e sociais da criança e ao início de suas andanças intelectuais, de sua

actividade, de seu esforço. Função menos decorativa do que a que lhe reserva a escola

tradicional, mas também tão mais eficaz! E função bem mais difícil e delicada,

também! Logo, não é mais modesta, senão na aparência” (1959 a: 166). O discurso é,

sem dúvida, efusivo, mas do que se trataria, mais do que de um modelo novo ou de

uma posição nova ou de uma figura nova para o professor, era somente de uma

apropriação do que outros domínios poderiam trazer ao desenvolvimento da

pedagogia. António Nóvoa refere a Educação Nova como uma “tradução no plano

educativo de formas de agir e de pensar que estão disponíveis na sociedade da

época”, mais do que “a formulação de modelos educativos (e escolares) radicalmente

novos”. Na realidade, “estes homens não põem em causa a gramática da escola, tal

como ela se consolidou no término do século” XIX. “Num certo sentido, podemos

mesmo dizer que eles aprofundam as três lógicas anteriormente mencionadas

(estatização, profissionalização e cientificação) no contexto de uma crença total nas

potencialidades regeneradoras da escola” (1995: 30). E fizeram-no, pelo menos no

domínio discursivo, com arte. Afirmava convictamente António Aurélio na Lição já

referida:

“Trabalhar a alma da criança com alma e com arte, com arte e com acerto, com

acerto e com ciência, tal é o nosso escopo” (1920: 319).

Terei oportunidade de mais detalhadamente dar a ver ao longo desta escrita o

cenário do saber/poder, directamente nos processos de educação da criança surda na

Casa Pia de Lisboa. Impõe-se, no entanto, que feche esta breve introdução às técnicas

de formação de um saber articulado com um poder, visitando o segundo documento

que referi. Não será uma visita prolongada, mas espero que seja incisiva e pertinente

para evidenciar uma vez mais a perspectiva da governamentalidade no interior da

escola. Trata-se de um Regulamento do Curso de especialização de professores para o

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Questões teóricas e articulações práticas

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ensino de surdos, e o que daqui quero destacar é o núcleo de saberes que compõe o

plano de estudos. Os futuros professores seriam treinados em “psicologia e princípios

de educação de crianças com defeitos de audição”, “didáctica de leitura da fala, do

treino auditivo e do ensino da fala e da linguagem”, “ educação sensorial e rítmica”,

“técnica psicológica”, “técnica audiométrica e auxiliares de audição”, “acústica”,

“fonética”, “anatomia, fisiologia e higiene dos aparelhos auditivo e fonador” e,

finalmente, “ história da educação de surdos”. As aulas teóricas seriam completadas

por uma componente prática e, durante o curso deveria “ser comprovada a vocação

dos candidatos para o magistério de crianças surdas, tendo em atenção as aptidões

exigidas para o ensino destas crianças” (Regulamento do Curso especialização de

professores para o ensino de surdos, 1961: 3,4). Daqui se conclui que a perspectiva da

governamentalidade abrange todos os actores que circulam no espaço educativo. O

curso de habilitação para professores de surdos foi inaugurado a 25 de Abril de 1913

e relativamente à sua organização temporal, dizia Ary dos Santos em 1915, num

Relatório dirigido ao Director da Casa Pia que “seria de grande utilidade aumentar

mais um ano, reservando este exclusivamente a trabalhos práticos, o que seria de

grande utilidade para o aluno e de grande vantagem” para os professores daqueles que

seriam futuros professores. “A prática tem-nos mostrado que nem sempre os alunos

que obtêm melhores classificações nos seus exames ou que melhores concursos

fazem são os melhores professores” (1920: 134). A formação especializada de

professores mais não é do que o governo da própria classe docente. Explica-o assim

Popkewitz:

“Modern schooling inscribes the power relations in governamentality. The

governing of the child is also the governing of the teacher. Pedagogy is the

promotion of subjectivities through the construction of pleasures and ambitions,

and the activation of guilt, anxiety, envy, and disappointment” (1998: 77).

Não é possível desarticular a prática docente das relações de poder e de

fabricação de escolares. Os professores são resultado de uma ciência devidamente

estruturada que os contamina com técnicas de saber, – eficazes numa aplicação

prática –, para um contacto produtivo com os alunos. O tipo de poder que os

professores exerciam sobre os seus alunos era semelhante àquele que os atingia

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A produção de saber sobre o aluno…

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também a eles. Não será demais lembrar que o poder não está centrado em nenhum

objecto nem em nenhum sujeito. O poder circula e provoca efeitos em série.

No processo de ensino da criança surda tornava-se imprescindível que o

mestre soubesse conhecer a criança e prever os seus comportamentos para poder agir

sobre ela. O primeiro curso de especialização para o ensino de surdos foi criado na

Casa Pia de Lisboa, como já se disse, em 1913. Nicolau Pavão de Sousa, a convite de

António Aurélio da Costa Ferreira, ficou responsável pela organização do curso e, no

geral, o pedagogo concluía que a organização de tal formação especializada auxiliaria

o surdo a deixar as “trevas” da “ignorância” que o condenava a “um isolamento

intelectual e moral”, “desprovido de todos os elementos de resistência a opor aos

embates do medonho struggle for life” (Sousa, 1913: 187). Este ensino, que teria

como função substituir a audição por um trabalho redobrado da vista e do tacto, teria

como objectivo primeiro aquilo que Popkewitz designou por struggling for the soul.

Os discursos sobre o aluno que se quer formar e as competências que este deverá

adquirir num contexto escolar, são conectados a ideias de “personal salvation” com

ressonâncias de satisfação pessoal e sucesso da criança. Mais do que o corpo, o que a

escola procurará resgatar é a alma do educando, levando-o a enquadrar-se entre os

padrões do normal e razoável. No caso das crianças surdas, os processos de

normalização correspondem a esta ideia. É a escola a produtora de exclusões e de

inclusões entre os níveis que considera favoráveis ao governo de cada espécie de

alunos: as enunciações discursivas da escola são construídas “both necessary and

legitimate for them to exercise a calculated power over the conduct of populations of

individuals, omnes et singulatim (of each and of all)” (Rose, 1999: 25).

É necessário isolar e excluir para poder juntar e incluir. Isto nos levará ao

próximo ponto. A formação do normal e do patológico. O que irei tentar dar a ver não

é totalmente novo no que já se leu deste texto, mas algumas das questões tornam-se

absolutamente indispensáveis. De qualquer forma, será aqui que terá oportunidade de

sentir de forma mais directa aquilo que constitui a grande ambivalência desta tese.

Desde já o anteciparei: depois de produzido o anormal, havia que lhe dar uma

hipótese de vida, o que, aliás, é condicente com o que se acabou de ler sobre a

tecnologia biopolítica. No entanto, no caso específico dos alunos surdos, a hipótese

de serem salvos de um mundo marginal e acultural, passava por um ensino segundo

métodos orais que, portanto, não levavam em consideração a especificidade do estado

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Questões teóricas e articulações práticas

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surdo. Sendo o Outro da paisagem educativa contemplado debaixo de um olhar

ouvinte, o tipo de hospitalidade que lhe era oferecida pertencia ao domínio

condicional. Mas, contudo, gostaria aqui de distinguir aquilo que seria uma

violentação sobre um estado, uma forma de ser surda, e uma violentação sobre

indivíduos surdos. São campos diferentes e o que se analisa neste texto é a produção

de alunos surdos numa instituição que, obviamente, possuía para eles uma imagem do

que deveria ser o aluno surdo. Simultaneamente, o referente que oferecia a estes seus

habitantes ditos especiais, era um referente de uma comunidade ouvinte.

Comunidade-família, dir-se-ia, com a qual o surdo havia de desejar ser parecido.

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O surdo como hóspede entre ouvintes

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O SURDO COMO HÓSPEDE ENTRE OUVINTES

O professor Pavão ensinando a um surdo-mudo as letras

pela ‘vibração no alto da cabeça’

(A Ilustração Portuguesa de 6 de Maio de 1907)

“Esse gesto tinha, sem dúvida, outro alcance: ele não

isolava estranhos desconhecidos, durante muito tempo

evitados por hábito; criava-os, alterando rostos

familiares na paisagem social a fim de fazer deles

figuras bizarras que ninguém reconhecia mais.

Suscitava o Estrangeiro ali mesmo onde ninguém o

pressentira. Rompia a trama, desfazia familiaridades;

através dele, algo no homem foi posto fora do horizonte

de seu alcance, e indefinidamente recuado em nosso

horizonte. Resumindo, pode-se dizer que esse gesto foi

criador de alienação” (Foucault, 2003: 81).

O aluno surdo seria para sempre o estrangeiro na comunidade ouvinte. Ouvir, para o

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Questões teóricas e articulações práticas

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surdo, constituía-se como uma impossibilidade. Decerto já se terá pressentido que o

que se vai dizer aqui, diz respeito a um estado de ser, surdo, que se viu questionado

por práticas normalizadoras. Todavia, interessa-me deixar claro que mais do que

apontar a violentação ou a repressão, o meu principal objectivo é verificar de que

forma foi possível ao aluno surdo construir a sua identidade a partir de um cenário de

referências ouvintes. Não gostaria que as minhas palavras fossem lidas como uma

indiferença face à não consideração do Outro, que era o surdo, no entanto, o enfoque

deste trabalho vai mais no sentido de identificar práticas que permitiam por um lado,

a ampliação do poder, e portanto, encaixavam-se numa racionalidade governativa e,

por outro, procurar marcas que permitam identificar naquilo que constitui uma

experienciação de vida, a construção do surdo enquanto aluno. Proponho então

analisar o processo de acolhimento, – movimento que passarei a designar por

hospitalidade –, da criança surda na Casa Pia de Lisboa, enquanto experiência

articulada com domínios do saber, práticas normativas e formas de subjectividade que

teriam o ouvinte como referencial.

Num primeiro momento, terei de considerar o processo de exclusão, quer

dizer, a construção do surdo como deficiente auditivo que, logo depois, se transforma

em processo de inclusão, ou seja, o surdo é trazido até à paisagem educativa mas já

com um nome. O projecto é mais ou menos o seguinte: há um conjunto de práticas

discursivas que enunciam a criança surda como deficiente; há, também, a vontade de

mostrar a verdade destes discursos, verdade apenas legitimada no seu processo

produtor da surdez como anormalidade e na afirmação do ouvinte como normal.

Afinal, a surdez é inventada como anormalidade por questões de organização,

classificação, domínio e controlo de um grupo que fugia à nova racionalidade

governativa. Identificados, os surdos eram convidados a incluir-se num espaço que

embora inventado há pouco, se anunciava já como próprio do ser criança, ou seja, a

escola. Simultaneamente, o convite dirigia-se no sentido de incluírem o projecto

moderno e a sua ficção de uma metaidentidade. O mecanismo de inclusão na

paisagem educativa, precedido por uma exclusão, teria necessidade de se valer de

razões de salvação de crianças ditas selvagens, para camuflar a hospitalidade hostil

que se oferecia àquele que era inventado como anormal, como o Outro da paisagem

educativa. Contudo, e é aqui que habita a grande ambivalência desta tese, pretendo

verificar que, apesar de colonizados por uma língua ouvinte, os alunos surdos “foram

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O surdo como hóspede entre ouvintes

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levados a conceder atenção a eles próprios, a interpretar-se, a reconhecer-se e a

confessar-se como sujeitos de desejo, estabelecendo de si para consigo uma certa

relação que lhes permite descobrir, no desejo, a verdade do seu ser, quer seja natural

ou corrompido” (Foucault, 1994b: 11). Em suma, o aluno surdo construiu a sua

narrativa de vida, a sua identidade no âmago da comunidade ouvinte. A escola

ofereceu-lhe processos de subjectivação que o levaram a desejar participar enquanto

sujeito, nas práticas normalizadoras. O mundo dos ouvintes e a língua dos ouvintes

ficcionou-se como o espaço no qual o surdo, sendo estrangeiro, deveria naturalizar-

se, alojando no seu corpo técnicas que, como uma prótese, lhe permitissem falar

oralmente e ouvir visualmente.

Ao considerar a produção da surdez como anormalidade do corpo, refiro-me

aos discursos que classificavam o estado surdo como uma manifestação patológica. O

que estava em causa, portanto, e era trazido até um quadro de visibilidade, era a

incapacidade de ouvir que invadia o corpo do surdo, impossibilitando-o de uma

relação comunicativa oral com o ouvinte. Claro está que o Outro, – o surdo –, era

considerado e olhado a partir de um lugar que como referente tinha apenas o seu

espaço e o seu tempo próprios – o do ouvinte. Todo o elemento que desinstaurasse o

desenvolvimento ritmado e constante de um padrão, era portador de uma desordem

instável e inquietante. Porquê? Porque aquele que é inventado como o Outro [surdo],

está aí diante de mim [ouvinte]:

“E a partir desse estar-aí-diante-de-mim, ele pode se deixar olhar, sem dúvida,

mas também” – é sempre uma possibilidade – “ele pode, ele, olhar-me. Ele tem

seu ponto de vista sobre mim. O ponto de vista do outro absoluto” (Derrida,

2002: 28).

Na introdução, quando situo esta escrita entre as coordenadas da

modernidade e da ambivalência, desenvolvi já esta ideia de que a modernidade não

suporta qualquer tipo de ambivalência. Recordo que a ambivalência transporta em si

a capacidade de desinstaurar uma ordem desejada. Bauman propõe-nos uma imagem-

movimento para a modernidade: aquela “em que se reflecte a ordem – a ordem do

mundo, do habitat humano, do eu humano e da conexão entre os três: um objecto do

pensamento, de preocupação, de uma prática ciente de si mesma, cônscia de ser uma

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prática consciente e preocupada com o vazio que deixaria se parasse ou meramente

relaxasse” (1999: 12). E como o medo de perecimento é grande, a modernidade não

desacelera na produção de registos dos seus estranhos.

Jacques Derrida, identifica o estrangeiro, como um Outro que na sua

deslocação permanente – pois em casa, ‘chez soi’, não se é estrangeiro – é

representado como um estranho. Há qualquer coisa naquele que é estrangeiro,

inassimilável, impeditiva de uma auto-identificação consigo. Um elemento estranho,

apartado da norma, desencaixado do padrão estabelecido. E, no entanto, o

estrangeiro, quer dizer, o Outro, vai permanecendo nos espaços que lhe não

pertencem.

“O estrangeiro é primeiramente estrangeiro à língua do direito na qual o dever de

hospitalidade está formulado, o direito de asilo, os seus limites, as suas normas, a

sua polícia, etc. Ele tem de pedir a hospitalidade numa língua que, por definição,

não é a sua, a língua que o dono da casa lhe impõe, o hóspede, o rei, o senhor, o

poder, a nação, o Estado, o pai, etc. Este impõe-lhe a tradução na sua própria

língua, e é a primeira violência. A questão da hospitalidade começa aí: deveremos

nós pedir ao estrangeiro para nos compreender, para falar a nossa língua, em

todos os sentidos deste termo, em todas as suas extensões possíveis, antes e a fim

de o poder acolher em nossa casa (chez nous)? Se ele já falasse a nossa língua,

com tudo o que isso implica, se nós partilhássemos já tudo quanto se partilha com

uma língua, seria o Estrangeiro ainda um Estrangeiro e poderíamos nós falar a

seu respeito de asilo ou de hospitalidade?” (Derrida, 2003: 36).

As questões que Derrida coloca são as mais pertinentes para um pensamento

sobre o Outro. O pedido lançado ao surdo para que aprendesse a língua do ouvinte,

mais não é do que um pedido de apagamento da sua própria condição surda. A

criança surda seria aceite, transformando-se em aluno surdo, autorizando-se como

objecto de normalização. É aqui que se marca a dimensão de hospitalidade que se

oferece ao Outro. Pedir-lhe que partilhe a língua que é própria da cultura ouvinte no

momento em que se lhe abre portas, significa condicionar a sua permanência.

Numa ficha individual do aluno, contendo observações e anotações da sua

vida escolar, temos acesso directo a uma visão sobre a transformação que se opera no

espaço escolar, na construção do surdo enquanto aluno. A exaustividade dos registos

produzidos sobre os alunos é imensa e pretendia ser um retrato deveras objectivo, que

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O surdo como hóspede entre ouvintes

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apagasse o fosso entre o conhecer pessoalmente, ou não, o sujeito descrito. Da leitura

do cadastro individual do aluno, resultaria um conhecimento do seu ser. Mas se trago,

neste sítio em que se fala da hospitalidade, os discursos que se produziam sobre o

aluno, – claro está, que à sua revelia –, é porque vejo nesta formação de um arquivo

de uma instituição, o alojamento pela escrita de seres que para terem direito a uma

hospitalidade, teriam de incluir-se nas regras institucionais. Não importava o quanto o

aluno surdo cumpria com sucesso as tarefas educativas. Não importava se aprendia,

ou não, a língua oral. O núcleo da questão residia no quanto um sujeito surdo poderia

ser objecto de práticas de normalização, naquela paisagem específica. Proponho que

se observe agora três fragmentos de processos individuais de alunos surdos da Casa

Pia.

Num deles, dizia-se assim: “É muito bom rapaz e regularmente dotado. Bem

comportado, gosta de cumprir e trabalhar. Tem vontade de aprender”. E isto

chega-nos, para passarmos à próxima situação: “Muito brando e pouco

inteligente, tem, no entanto, alguma habilidade. Progride muito lentamente

porque é apático e desleixado. É sossegado. Tem má voz e muita dificuldade para

a articulação. Tem certa facilidade para a aritmética”. Mas surdos havia que não

teriam neste local, espaço de hospitalidade. “Depois da entrada do menor

verificou-se ser este anormal sem condições para ser educado no referido

instituto. Na verdade, trata-se de uma criança de nulas reacções, indiferente e

apática, incapaz de reagir mesmo a quaisquer travessuras ou sinais de seus

companheiros. Nas aulas nenhum exercício por mais interessante, o atrai,

conservando-se imóvel todo o tempo lectivo. O mesmo se verifica na vida social

apenas manifestando qualquer interesse pela pessoa encarregada de olhar por ele.

É assim incapaz de qualquer vida de relação” (fichas individuais de alunos surdos

da Casa Pia de Lisboa).

A aceitação da criança surda na escola, implicou a sua afirmação como

deficiente, segundo regras específicas de um dispositivo educativo penetrado por um

outro dispositivo, de tipo clínico. A paisagem escolar e as instituições de acolhimento

foram hospitaleiras com o Outro previsto, até que ele fosse somente um hóspede de

acordo com o modelo de ser hóspede. Quer dizer:

“Este direito à hospitalidade oferecido a um estrangeiro ‘em família’,

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Questões teóricas e articulações práticas

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representado e protegido pelo seu nome de família, é ao mesmo tempo o que

possibilita a hospitalidade para com o estrangeiro, mas o que no mesmo lance a

limita e a interdita. Porque não se oferece a hospitalidade, nestas condições, a um

recém-chegado (arrivant) anónimo, nem a alguém que não tenha, nem nome, nem

patronímico, nem família, nem estatuto social, e que desde logo é tratado, não

como um estrangeiro, mas como um outro bárbaro” (Derrida, 2003: 39).

O que quero sublinhar é que a classificação que a medicina conferia ao aluno

constituía o seu lugar enquanto escolar. O estado surdo era lugar de pertença mas

deveria estar inscrito na pele do aluno para que a escola lhe abrisse as portas. O

atestado de anormalidade era condição essencial que legitimava a hospitalidade e a

oferta da língua ao aluno. Há diferenças, pois, entre aquele que é estrangeiro numa

paisagem e aquele que é o Outro absoluto. Derrida resolve exemplarmente a questão

das diferenças subtis entre um e o outro:

“A lei da hospitalidade, a lei formal que governa o conceito geral de

hospitalidade, aparece como uma lei paradoxal, pervertível ou pervertedora. Ela

parece ditar que a hospitalidade absoluta rompe com a lei da hospitalidade como

direito ou dever, com o 'pacto' de hospitalidade. Para o dizer noutros termos, a

hospitalidade absoluta exige que eu abra a minha casa (chez-moi) e que dê, não

apenas ao estrangeiro (dotado de um nome de família, de um estatuto social de

estrangeiro, etc.), mas ao outro absoluto, desconhecido, anónimo, e que lhe dê

lugar, que o deixe vir, que o deixe chegar, e ter lugar no lugar que lhe ofereço,

sem lhe pedir reciprocidade (a entrada num pacto), e sem mesmo lhe perguntar

pelo nome” (2003: 39, 40).

A hospitalidade condicional era, então, a possibilidade única de acolhimento e

salvação de sujeitos inventados deficientes. A personagem deficiente não foi a causa

da exclusão, ela foi o resultado da própria segregação. O processo de receber aquele

que se afasta da norma, é, como tivemos oportunidade de sentir nas palavras de

Derrida, hostil para a natureza desse ser Outro. O processo de acolhimento implicava

corroborar com a ideia de que o sujeito estava em carência, em falta, não possuía os

atributos considerados necessários a um sujeito normal.

O lugar da criança era a escola e neste espaço ela haveria de ser governada. A

criança surda não poderia aí ser colocada sem que se tomassem medidas que

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garantissem o sucesso da sua inclusão. Podemos falar de um grupo e da necessidade

de o reconceptualizar como parte de uma população governável. O espaço onde a arte

de governo dos anormais poderia acontecer, estava já inventado e assimilado como

espaço natural da socialização da criança, apenas ligeiras alterações teriam de ocorrer

para que, também o processo de excluir para, depois, incluir as crianças anormais, se

naturalizasse. A institucionalização da criança surda, significou uma apropriação do

seu corpo por dois grupos de experts. Por um lado, havia os médicos que legitimavam

a classificação do indivíduo enquanto anormal, por um saber construído pela

observação e comparação de desempenhos. Por outro lado, os actores da pedagogia

que, tinham em mãos, a tarefa correctiva das desordens do corpo.

“Por ser absolutamente necessário o professor ter de fixar a atenção do aluno num

dado ponto ou objecto, isto é, fazer-lhe a educação da vista, tem de recorrer a

exercícios de ginástica escolar, imitativa e progressiva; com estes exercícios a

vista do aluno começa a fixar-se e a educar-se, o espírito a observar, a aplicar-se e

a comparar e além dissso, estes exercícios servem também para disciplinar o

aluno” (Filipe, 1907: 10).

Esta afirmação de Cruz Filipe, professor de surdos na Casa Pia, é pertinente

quando falamos em hospitalidade. Este pedagogo afirmava a necessidade de atender a

um dos aspectos mais importantes da condição surda: o olhar. Mas o movimento que

parece dirigir-se em direcção ao Outro, violenta-se ao atingi-lo. Desconsidera a

experienciação visual do mundo como forma de estar e de ser o Outro, inserindo-a

numa lógica educativa de exercício e disciplina. “A experiência do olhar”, um dos

“marcadores” culturais do surdo, converteu-se em instrumento na subjectivação do

aluno surdo enquanto deficiente auditivo (Lopes, 2006: 1).

A escola era o espaço por excelência da correcção.

Gostaria agora de lançar os alicerces para uma possível compreensão do

fenómeno de excluir o anormal para depois o incluir, partindo da análise que Michel

Foucault desenvolve sobre as práticas de exclusão dos leprosos e, seguidamente, de

um segundo modelo. Este, de confinamento espacial e inclusão de seres ameaçados

pela peste. A consideração destes dois modelos insere-se na tentativa de traçar fios

condutores de práticas que se instalam como naturais. É na tentativa de encontrar

proveniências e não origens verdadeiras que se fundamenta este processo, ou seja,

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Questões teóricas e articulações práticas

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encontrar noutros domínios elementos que viajam por espaços mantendo uma certa

regularidade e sistematicidade discursiva.

“A exclusão da lepra”, diz o autor do Curso no Collège de France de 1974-

1975 sobre a problemática dos anormais, identificava-se como “prática social que

comportava primeiro uma divisão rigorosa, um distanciamento, uma regra de não-

contacto entre um indivíduo (ou um grupo de indivíduos) e outro”. Formava-se,

portanto, dois grupos, um deles, excluído, sofrendo práticas de marginalização, sendo

colocado à parte da comunidade saudável. Este modelo que, Foucault considera

historicamente activo até meados do século XVII, justificou ainda a “rejeição para

fora das cidades de toda essa população flutuante” – de “mendigos”, “vagabundos”,

“ociosos”, “libertinos” – ou a prática de internamento nos hospitais gerais. Em inícios

do século XVIII, reaparecia outra prática de exclusão, mas, desta feita, o movimento

de um grupo em relação ao outro não era o de expulsão. O modelo a que se refere

Foucault, é o “da inclusão do pestífero” (Foucault, 2002: 54, 55).

Movimento agora directamente ligado a um isolamento, mas no interior do

espaço governável, passando então estes seres que se insulam, a figurar num mapa.

Se até aqui se regurgitava os seres indesejáveis para fora do alcance de uma

população saudável, chegara o momento de os encerrar dentro da própria cidade. Os

indivíduos tocados pela peste viam agora a sua localização definida, fixada e

controlada. O processo era de total individualização. Numa cidade empestada, tudo o

que era “observado devia ser registado, de forma permanente, por essa espécie de

exame visual e, igualmente, pela transcrição de todas as informações em grandes

registos”. O número inicial de cidadãos apartados para quarentena – que poderia

coincidir com a totalidade de habitantes de uma cidade – era obtido pelo nome de

cada um que era anotado e guardado pela administração central da cidade. Duas vezes

por dia, as informações seriam actualizadas por uma inspecção que “fazia a triagem

dos indivíduos” (Foucault, 2002: 56,57).

O segundo modelo referido diferia do primeiro, desde logo, pela proximidade

que a observação meticulosa exigia. Todos os movimentos, todas as baixas da

população, obrigavam a um registo permanente e quase simultâneo com o acontecido.

O fito, parecia ser o de “maximizar a saúde, a vida, a longevidade, a força dos

indivíduos”, a bandeira era a da produção de “uma população sadia”. A montagem do

dispositivo de observação e registo constantes, pelo enclausuramento e confinação

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O surdo como hóspede entre ouvintes

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dos territórios permitidos a cada indivíduo, facilitava o “exame perpétuo de um

campo de regularidade, no interior do qual”, se iria “ avaliar sem cessar cada

indivíduo, para saber se” estaria, ou não, “ conforme à regra” (Foucault, 2002: 58).

Encontramos neste modelo, sem dúvida, semelhanças com o que se passará com a

institucionalização de crianças anormais. Contudo, há diferenças que têm de ser

equacionadas e, certamente que o perigo representado pela vagabundagem livre de

um pestífero, seria diferente daquele representado pela circulação social de sujeitos

anormais. Mas estes, escondiam um perigo potencial, caso não fossem convertidos

em matéria governável. A imprevisibilidade do seu comportamento impedia os ritmos

e padrões regulares1. Daí que seja necessário hospedar, detendo e contendo toda a

diferença que viaja para lá da norma.

Bauman, relembra o viscoso de Sartre, como objecto-matéria que nos ameaça.

A poética do excerto que se segue, certamente se impregnará no leitor ou na leitora e

fará compreender a presença de um abismo para lá da fronteira do normal.

“‘Aqui está o viscoso invertendo os termos: [meu ego] é subitamente

comprometido, abro as mãos, quero desfazer-me do viscoso e ele se cola em

mim, me puxa, me chupa...Já não sou o senhor...O visgo é como um líquido visto

num pesadelo, em que todas as suas propriedades são animadas por uma espécie

de vida, e volta-se contra mim.

Se mergulho na água, se afundo nela, se me deixo submerso nela, não

experimento nenhum mal-estar, pois não tenho qualquer medo de seja lá como eu

possa nela dissolver-me; continuo um sólido em sua liquidez. Se me deixo

submergir no viscoso, sinto que vou perder-me nele... Tocar o viscoso é arriscar-

se a ser dissolvido na viscosidade’”(Bauman, 1998: 39).

O sentimento que o Outro produz e que obriga a uma reconceptualização da

sua existência, tornando-o anormal e isolando-o num espaço onde será, dentro do

possível, normalizado, pode ser entendido com a violência de colonização e de

redução do Outro, ao Mesmo. Todavia, esta atitude de inclusão, de hospitalidade

hostil, é produtora de um poder positivo. O que é positivo, a meu ver, é o poder, não a

1 Foucault desenhava a peste como “um sonho político”. Significou um “momento maravilhoso em que o poder político se

exerce plenamente. A peste é o momento em que o policiamento de uma população se faz até seu ponto extremo, em que nada das comunicações perigosas, das comunidades confusas, dos contactos proibidos pode mais se produzir. O momento da peste é o momento do policiamento exaustivo de uma população por um poder político, cujas ramificações capilares atingem sem cessar o próprio grão dos indivíduos, seu tempo, seu habitat, sua localização, seu corpo” (2002: 58, 59).

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Questões teóricas e articulações práticas

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inclusão sem consagrar a figura do Outro, o seu espaço e o seu tempo. A positividade

deste poder articula-se com a sua produtividade na formação de um saber que

multiplicará os efeitos do poder. Por outro lado, este poder é também positivo porque

permite a regulação de toda a população, essencial para o seu bom governo. É,

portanto, um poder positivo no interior de uma perspectiva de governamentalidade. E,

mesmo assim, o Outro que foi o surdo manifestou-se na sua resistência de ser-Outro:

“Outro de uma alteridade que constitui o próprio conteúdo do Outro”, a “ausência

de pátria comum que faz do Outro – o Estrangeiro; o Estrangeiro que perturba o

“em sua casa”. Mas o Estrangeiro quer dizer também o livre. Sobre ele não posso

poder, porquanto escapa ao meu domínio num aspecto essencial, mesmo que eu

disponha dele: é que ele não está inteiramente no meu lugar” (Levinas, 2000: 26).

Zygmunt Bauman, no seu livro O Mal-Estar da Pós-Modernidade, refere-se,

também à produção dos estranhos na modernidade, quer dizer, daqueles que seriam,

no meu pensamento, equivalentes ao estrangeiro de Derrida, ao anormal de Foucault

e, particularmente ao surdo que tem sido o objecto mais definido nesta pesquisa.

Bauman apresenta duas estratégias alternativas, “mas complementares” que aliás, se

articulam no pensamento anteriormente referido de Michel Foucault. Uma delas teria

um carácter “antropofágico”:

“ Aniquilar os estranhos devorando-os e depois, metabolicamente,

transformando-os num tecido indistinguível do que já havia. Era esta a estratégia

da assimilação: tornar a diferença semelhante”, “promover e reforçar uma

medida, e só uma, para a conformidade” (Bauman, 1998: 28, 29).

A outra estratégia é descrita como “antropoêmica”:

“Vomitar os estranhos, bani-los dos limites do mundo ordeiro e impedi-los de

toda comunicação com os do lado de dentro”. Essa, era a técnica da exclusão, do

confinamento dos estranhos “dentro das paredes visíveis dos guetos, ou atrás das

invisíveis” (Bauman, 1998: 29).

Uma vez mais refiro que numa relação de governamentalidade, uma coisa é a

racionalidade governativa, outra a arte de governar. O segundo termo desta

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O surdo como hóspede entre ouvintes

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composição seria de busca constante, de produção incessante de um saber que

permitisse ao primeiro termo triunfar na produção de sujeitos conformados. Todavia,

o segundo termo nunca atinge a perfeição cirúrgica que deseja daí, entrar numa

circularidade de eterno retorno ao princípio com o sentido de um novo plano. Por esta

razão, aliás, as duas estratégias apresentadas por Bauman são simultaneamente

alternativas e complementares.

A educação do surdo, procurando oferecer-lhe uma língua com que pudesse

elaborar construções mentais, passa pela colonização do seu corpo, normalizando-o,

do ponto de vista do uso da palavra oral, ainda que o sentido auditivo continue para

sempre nulo. A relação entre ouvintes e surdos – que se querem falantes – é uma

relação alérgica para a condição surda. Só acontece quando se massacra a condição

do Outro – o surdo –, apagando-o. Massacra-se, mortifica-se, enclausura-se o surdo

em todos os espaços. Estabelecem-se fronteiras. Não há lugar institucional para o

gesto, para a condição e estado surdos. Mas ele existe como resistência. Inventa-se

uma anormalidade a corrigir, com uma gramática limitada. Todavia essa gramática

atende à visualidade da surdez. Era essa a alternativa possível para que o surdo

tivesse no ouvinte uma referência.

O conceito de inclusão coloca em circulação novas relações de poder,

mascaradas por saberes cada vez mais experts, que actualizam essas relações em

manifestações subtis, invisíveis e produtivas.

A questão da inclusão da criança surda na escola que esta tese procura

evidenciar, não pode ser explicada sem que se avance com a ideia de que falamos de

um sentimento novo, quer dizer, da invenção de crianças com necessidades

educativas especiais que a escola terá de acolher e governar no seu espaço. Estes

discursos da surdez enquanto deficiência, vindos de vozes institucionais, da medicina

ou da pedagogia, formam o próprio objecto de que falam tornando-o visível,

“nomeável” e “descritível”. Claro está que quem profere estes discursos possui um

papel regulamentador. Foucault (2005: 72, 73, 75), quando se refere à formação do

objecto loucura, no século XIX, diz que a sua instauração estaria ligada “ao conjunto

de indivíduos constituindo o corpo médico”, ao “saber e prática”, à “competência

reconhecida pela opinião”, à “justiça” e à “administração”. Mas, não é suficiente para

a formação de um objecto, o isolamento de qualquer dos planos apontados. A relação

entre “instâncias de emergência, de delimitação e de especificação”, é que dará

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Questões teóricas e articulações práticas

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origem a uma formação discursiva constitutiva de um objecto. Considerar, portanto, a

criança surda enquanto criança anormal, implica pensar as relações que

proporcionaram a formação deste objecto e as técnicas usadas para a sua manutenção.

Os indivíduos classificados como anormais são-no por referência e comparação a

uma medida tida como verdadeira e natural. A pedagogia correctiva surge, neste

sentido, com a função de o mais cedo possível impedir desenvolvimentos anormais

do corpo e da alma. Será, por certo, útil, alargarmos aqui a questão de formação do

objecto anormal. Para tal, usamos como mola impulsionadora desta análise, as

palavras de Varela e Alvarez-Uria:

“A principios de siglo florecerá en el jardin botánico de las especies patológicas

un nuevo árbol destinado a confundirse prácticamente con la infancia

delincuente: nos referimos a la infancia anormal. Y es que en todas las escuelas

existen niños rebeldes, incorregibles, turbulentos, niños desordenados,

inadaptados que contagian a sus compañeros y rompen el orden de la clase.

Frente a los desbordamientos de la insumisión, la autoridad magisterial, junto con

el poder médico, en una santa alianza enarbolarán el diagnóstico tranquilizador de

la anormalidad”. “Las primeras clasificaciones de los pequeños anormales fueron

sin duda tan rudimentarias como las elaboradas por los primeros alienistas pero lo

suficientemente claras para poner de relieve la emergencia de un nuevo campo en

el que las fronteras entre lo normal y lo patológico estaban a punto de borrarse. A

partir de ahora nacerá una pedagogia correctora que irá acompañada de medidas,

controles, pruebas, observaciones de cuerpos y almas. Los niños turbulentos,

indóciles, retrasados, inadaptados, inestables, débiles y deficientes van a verse así

aislados en un nuevo laboratorio de observación en el que se obtendrán técnicas

psico-pedagógicas generalizables a las escuelas. No es una casualidad que entre

los nombres de los grandes pedagogos del presente siglo figuren Decroly,

Montessori, Neill y otros conocidos “especialistas” en niños difíciles y

anormales” (1991: 224, 225).

O jardim botânico das espécies patológicas, compõe-se de comportamentos e

manifestações orgânicas e corporais que, de forma nenhuma, se poderiam transplantar

para um terreno educativo regular. A não ser que estas crianças fossem objecto de

práticas correctivas psicopedagógicas. António Aurélio da Costa Ferreira, referindo-

se a um recém-aluno da secção de surdos da Casa Pia, expressava-se desta forma:

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O surdo como hóspede entre ouvintes

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“O ar imbecil que muitas vezes tem o surdo-mudo, sem educação, resulta não da

falta de inteligência mas da falta dum dos orgãos à custa do qual ele mais se

desenvolve. E se quiserdes ter documentos vivos e recentes que provem esta

afirmação não tendes mais do que seguir as transformações que experimentam os

alunos, pobres e abandonados, que se vem matricular no Instituto de Surdos-

mudos.

Ainda hoje lá encontrareis um pequeno catatónico, na realidade inferior, que tem

apenas dias de casa, que parecia tão deficiente, no momento da entrada, que se

chegou a pensar afastá-lo das classes. Pois esse pupilo dia a dia a gente o vê, sob

a acção do ensino, disciplinar-se, ele que era um indisciplinado, e humanizar-se,

ele que só tinha maneiras e fisionomia de animal. Parece que os surdos-mudos

nascem duas vezes” (1913: 82, 83).

No dicionário de Pédagogie dirigido por F. Buisson, Baguer propunha uma

definição para os enfants anormaux. Dizia assim:

“Ce sont les sujets qui, soit au point de vue intellectuel ou moral, ne se trouvent

pas dans des conditions normales pour recevoir l’enseignement commun.

Ces enfants, qui ne peuvent être suffisamment instruits à l’école publique par les

procédés pédagogiques ordinairement employés pour les élèves pourvous de tous

leurs sens et doués d’une intelligence moyenne, sont designés sous le nom

générique d'enfants anormaux ”. A espécie dividia-se em cinco: aveugles, sourds-

muets, o grupo dos idiots, crétins, imbéciles, épileptiques, hystériques,

choréiques, paralytiques e hémiplégiques, os arrières e os instables. Os sourds-

muets eram: “ sujets privés de l’ouie, soit totalement, soit dans des proportions

qui ne leur permettent pas d’adcquérir, par l’audition, le langage spontané des

entendents-parlants normaux ” (Baguer, 1911: 79).

A surdez, portanto, arrecadava um “estatuto de irregularidade em relação a

uma norma” e, ao mesmo tempo, de “disfunção patológica em relação ao normal”

(Foucault, 2002: 205). A solução possível seria, curar e readaptar estes seres que, à

partida, se excluíam de um dispositivo de normalidade. É certo que, esta primeira

repulsa gerava o sentimento contrário de inclusão, chamando estes sujeitos à arena

educativa e fazendo-os participar das técnicas de normalização. Simultaneamente,

contaminando toda a população escolar com a ameaça da anormalidade, caso a

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Questões teóricas e articulações práticas

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conduta de cada indivíduo, não fosse exemplar.

“Essa emergência do poder de normalização, a maneira como ele se formou, a

maneira como se instalou, sem jamais se apoiar numa só instituição, mas pelo

jogo que conseguiu estabelecer entre diferentes instituições, estendeu sua

soberania em nossa sociedade” (Foucault, 2002: 32).

O instrumento que permitiria estabelecer o grau de normalidade ou

anormalidade de cada um, era, claro está, o exame. Sobre o exame, neste momento

apenas diremos que, colocava em funcionamento um poder de normalização,

constituindo-se como instrumento que num só movimento permitia dissecar,

descrever, localizar, ordenar e controlar todos os desvios. A prática do exame activa

princípios de comparação permitindo individualizar o aluno na sua performance, nos

resultados que obtém, mas também, obriga à homogeneidade. Qualquer seriação de

resultados é enquadrável numa grelha que oferece ao observador uma imagem de um

conjunto.

Há pouco dei conta da série de perguntas que constituiria um processo

biográfico do aluno surdo. Pois bem, lhe direi agora que o interrogatório se devia à

busca por um primeiro sintoma, por um indício na hereditariedade de uma origem

para o estado anormal. Em bloco, se saberia do aluno e da sua família. Nesta tomada

de saber exercia-se um poder: tudo e todos se constituíam como eventual causa da

surdez daquela criança específica. Uma vantagem que se revelava produtiva do ponto

de vista moral, uma vez que trazia a palco a questão das sexualidades ilícitas que, à

partida, seriam responsáveis pelas aberrações manifestas na descendência.

Degeneração, eis a palavra mágica que surge na segunda metade do século XIX e que

será simultaneamente a causa do caso específico daquela criança anormal, e o que faz

funcionar a tecnologia médica na eliminação de uma possível propagação do mal. Os

estados anormais passam a ser explicados nesta construção de um fio articulador

entre a criança e a família, vinculando-se a produção dos discursos à técnica do

registo escrito. Assim se ordenam os saberes, em memórias controladas, e assim

permanecerão nos arquivos. A escola é depositária desse núcleo de informações

porque é a voz, apoiada pelas ciências médicas, que tem o poder de questionar. Mas a

questão da hereditariedade e da degeneração implicam uma complexidade outra que

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O surdo como hóspede entre ouvintes

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no fundo converge no que tenho vindo a referir como hostilidade, hospitalidade

condicional ou exclusão:

“É o racismo contra o anormal, é o racismo contra os indivíduos, que, sendo

portadores seja de um estado, seja de um estigma, seja de um defeito qualquer,

podem transmitir a seus herdeiros, da maneira mais aleatória, as consequências do

mal que trazem em si, ou antes, do não-normal que trazem em si” (Foucault,

2002: 403).

Percebemos, desta forma, a produtividade positiva na formação do anormal,

nos exercícios de saber e de poder, nas tecnologias biopolíticas, na normalização,

enfim, também, nas técnicas disciplinares que serão operadas sobre os corpos surdos.

Parece igualmente incontornável a ideia de que a inteligibilidade e administrabilidade

da população, se encontra ligada à produção de um discurso sobre a anormalidade,

sobre a conduta desregrada, sobre a imoralidade, etc. O processo de subjectivação de

cada aluno, a sua fabricação enquanto indivíduo, teria no Outro, no anormal que

habita o lado de lá da fronteira, o referente para afirmar a sua normalidade. Foucault,

ao referir-se às “espécies” criadas pelos psiquiatras do século XIX, fala de uma

“mecânica do poder que persegue toda esta variedade atribuindo-lhe uma realidade

analítica, visível e permanente: ela enfia-a nos corpos, fá-la deslizar para debaixo dos

comportamentos, faz dela um princípio de inteligibilidade, constitui-a como razão de

ser e ordem natural da desordem”. Não será exclusão por exterminação dessas

espécies, mas “especificação” e “solidificação”( Foucault, 1994: 47, 48). Semeia-as

no real e incorpora essas diferenças anormais, no indivíduo. No capítulo que se segue,

analisaremos, uma das formas de incorporação da surdez como deficiência, sem que,

no entanto, o surdo deixasse de ser ele próprio autor da sua identidade.

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A construção do aluno surdo como sujeito ético…

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A CONSTRUÇÃO DO ALUNO SURDO COMO SUJEITO ÉTICO: TÉCNICAS

DO EU, CONFISSÃO E PODER PASTORAL

Exercícios de vocalização ao espelho

(Ferreira, 1922 b)

“Nous appelons discipliné un individu qui est maitre de lui

et qui peut, par conséquent, disposer de lui-même, ou suivre

une règle de vie” (Montessori: 1958: 37).

“Dialéctica, sempre recomeçada, entre o Mesmo e o Outro”

(Foucault, 2003: 520).

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A construção do aluno surdo como sujeito ético…

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No segundo volume da História da Sexualidade, Michel Foucault propõe-se

“estudar os jogos de verdade na relação” que o sujeito desenvolve “de si para si” e

a “constituição do eu como sujeito, tomando como referência e campo de

investigação aquilo que se poderia chamar a ‘história do homem de desejo’”

(1994b: 12). A minha referência e aquela que proporei é a do aluno surdo

enquanto sujeito experimentador de práticas e técnicas pensadas para produzir em

si uma transformação positiva. Transformá-lo em escolar, inserindo-o num campo

de relações de poder. Uns serão manifestamente dominantes, outros, dominados.

Mas uns e outros, induzem transformações, quer dizer, efeitos. Começarei este

capítulo trazendo à superfície um registo que habita os arquivos da Casa Pia de

Lisboa e com ele, espero conseguir mostrar o quão importante seria para a

comunidade de pedagogos e médicos da Casa Pia, proporcionar ao surdo uma

educação moral. Só desta forma a tarefa de resgate de um mundo acultural seria

cumprida. Tentarei, de seguida, mostrar através de que experiências o aluno surdo

se foi narrando. Pergunta assim Michel Foucault: “Através de que jogos de

verdade o homem se dedica a pensar o seu ser próprio quando ele se percebe

como louco, quando se olha como doente, quando reflecte sobre si como ser vivo,

falando e trabalhando, quando se julga e se pune a título de criminoso? Através de

que jogos de verdade o ser humano se reconheceu como homem de desejo?”

(1994b: 13). Parece-me pertinente inflectir esta pergunta na direcção do aluno

surdo.

Num parecer sobre dois alunos surdos, emitido pelos serviços médico-

pedagógicos da Casa Pia a pedido do Provedor, relativamente a uma perversão

sexual dos mesmos, começa por se caracterizar o temperamento e comportamento

dos alunos, chegando por fim ao ponto em que a dita perversão é lida, tendo em

conta o estado anormal dos alunos, e a solução encontrada, passa por uma

vigilância mais apertada, bem como por uma maior intensidade da acção

terapêutica dos diversos agentes que lidavam com o aluno. O médico escrevia

assim:

“Na interpretação etiológica da perversão sexual amputada ao aluno

(homossexualidade em função activa e, noutro caso, em função passiva) sem

antes ter precedente conhecido na Secção de Pina Manique, há que considerar

que o desvio do instinto sexual é desde há muito, entre os surdos-mudos desta

Secção de D. Maria Pia, fenómeno não só endémico, como, por vezes,

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Questões teóricas e articulações práticas

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avassalador.

E, assim, torna-se por um lado difícil determinar até que ponto haja fixação

de perversão, como por outro tem que ser muito judicioso o apuro das

responsabilidades individuais num meio que parece caracterizado por

imbecilidade moral colectiva. [...] A referida perversão tem de situar-se no

condicionamento de morbidez colectiva que atrás se definiu e o destino a dar

ao aluno é função não de castigos excessivos, reprováveis, mas de

organização técnica e profiláctica que garanta, funcionalmente, possibilidades

reeducativas”(processo individual de aluno surdo da Casa Pia de Lisboa).

A resposta à situação, foi elaborada da seguinte forma pelo Provedor:

“Parecendo os factos considerados de natureza acidental, consequência de um

estado colectivo deficiente e dada a idade dos alunos, deverão os menores ser

sujeitos a uma adequada acção terapêutica da parte do médico escolar, do

capelão, dos professores de ensino especial e dos serviços de disciplina em

coordenação de esforços e tomando em consideração os elementos

psicológicos e caracterológicos expostos pelo médico escolar” (processo

individual de aluno surdo da Casa Pia de Lisboa).

Era mesmo à escola e ao esforço contínuo e empenhado dos seus actores

da classe dirigente, que cabia a tarefa de socialização e moralização da criança

surda. Para este caso que lidava directamente com a sexualidade dos escolares, a

intervenção no sentido de a corrigir, isto é, de modificar as práticas, efectuar-se-ía

numa espécie de encruzilhada sobre os alunos. Médico, capelão, professores e

vigilantes, todos eles tentariam anular a perversão, mas, paradoxalmente, qualquer

acção levada a cabo por estes agentes, continuaria a falar de uma sexualidade, ou,

da sua possibilidade. É exactamente porque o poder não é exercido de uma forma

soberana em torno do aluno por alguém que deteria esse poder, que se organiza

este tipo de dinâmica interna de intervenção. Iria ser nas relações estratégicas

entre actores, espaços e tempos que os jogos de conduta para atingir a alma da

criança surda se efectuariam. Gostaria ainda de destacar que o estado surdo é

descrito como um espaço de degenerescência, quase como o ponto zero da

condição humana e, é nesse ponto que se situa a possibilidade de agir para pôr fim

a essa involução. A perversão sexual não era verdadeira perversão porque não

tinha como actores sujeitos normais. O processo correctivo que a escola propõe

situa-se num plano de transformação do surdo num outro sujeito, através de

processos e técnicas activadores de princípios morais, porque, na verdade,

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A construção do aluno surdo como sujeito ético…

109

enquanto sujeito, o surdo é um outro que não ele próprio, ou melhor, diferente

daquele em que se deverá tornar. Uma espécie de retorno a uma forma natural, à

sua medida, mas que todavia nunca conheceu: “é inocente porque não é aquilo

que é, e culpado por ser aquilo que não é” (Foucault, 2003: 521).

Definitivamente, os castigos excessivos assumiam-se como reprováveis,

mais ainda quando se falava de sujeitos que habitavam lugares nebulosos em que

se tornava difícil estabelecer a fronteira da culpa. O lugar da culpa era

efectivamente importante, era importante perceber até que ponto as acções e

comportamentos estavam ligados a uma consciência plena do sujeito-autor, ou,

seriam apenas a manifestação sintomática da patologia. Michel Foucault refere

que a partir de 1850, a psiquiatria introduz definitivamente a questão da conduta

no imo das possibilidades patológicas do indivíduo. Tornava-se necessário

submeter toda uma massa de dados e de comportamentos a um exercício de

comparação constante relativamente a uma norma que se instituía como padrão.

As eventuais discrepâncias entre comportamentos em relação a uma norma, traria

para a boca de cena o “eixo voluntário-involuntário” (Foucault, 2002: 201).

Enfim, as ciências de origem psi adquirem o poder de instituir uma verdade sobre

os comportamentos, sobre as condutas, na medida em que, criam e dominam um

referencial que lhes permite situar cada conduta individual. Não há nada nem, na

verdade, nenhuma conduta que não possa ser analisada pelo olho psi. As

discrepâncias em relação à norma tornaram-se o objecto por excelência de

qualquer actividade psiquiátrica e psicológica, permitindo dizer do objecto e

traçar-lhe um percurso de correcção favorável.

Antes de continuar, gostaria de fazer aqui uma pequena derivação que,

julgo-o profundamente, estará na base de uma institucionalização das crianças

anormais a partir do século XIX. Solicitaria porém que se mantivesse presente a

figura da criança surda enquanto alguém que, não ouvindo, recebe a realidade

essencialmente pela visão. Este desvio assenta numa análise bastante longa de

Michel Foucault sobre os actos e comportamentos que se transformam em objecto

de estudo psiquiátrico, constituindo os seus autores como personagens anormais.

Um deles, é o de Henriette Cornier, uma mulher que nos inícios do século XIX

decapita uma criança e assume uma atitude de total passividade. Perante tal

neutralidade face ao acontecimento, houve um percurso muito especial no

processo de psiquiatrização do sucedido. No momento em que sistema judicial se

cruza com sistema médico, este último, para que o judiciário possa funcionar, é

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Questões teóricas e articulações práticas

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encarregado de elaborar um cenário explicativo para o acontecido. De que forma?

“Primeiro, procurou-se uma correlação corporal, isto é, um elemento físico que

teria podido servir pelo menos de causa desencadeadora do crime” (Foucault,

2002: 378). Quer dizer, o doentio, a patologia, um instinto monstruoso são as

imagens que se fazem penetrar na conduta e no comportamento de Henriette

Cornier. O seu acto só é justificável enquanto manifestação de uma patologia. O

outro caso que Foucault traz até nós é relativo a dois personagens, Charles Jouy e

Sophie Adam, e passa-se em 1867. O que aconteceu, revela Foucault, seria algo

muito comum na época: “ o interrogatório da menina revela que Charles Jouy a

teria feito masturbá-lo no mato. [...] Em todo o caso, Jouy dá honestamente uns

trocados à menina, que vai correndo comprar amêndoas tostadas com eles. Ela, é

claro, não conta nada a seus pais”, “foi apenas uns dias depois que sua mãe

desconfiou”. Sendo chamada a intervir neste caso que constituía uma acusação

“bem banal de um atentado bem quotidiano aos costumes bem corriqueiros”, a

psiquiatria havia de lhe pegar por um lado ainda não inaugurado (2002: 372, 373).

Quem era Charles Jouy? Era um miúdo bem conhecido na aldeia, não era portanto

um estranho, que vivia, todavia, numa marginalidade evidente. Rejeitado pela

escola, pelos amigos, nas brincadeiras, na família. Perfeitamente conhecido por

todos que, inclusivamente recorriam aos seus serviços para os trabalhos que mais

ninguém desejava realizar e por preços excessivamente baixos. Jouy vivia na

condição de estigmatizado. É esta a conclusão dos estudos psiquiátricos do caso:

“‘Claro, ele é juridicamente, judiciariamente responsável’”, todavia, o seu “‘senso

moral’” é “‘insuficiente para resistir aos instintos animais’”. Enfim, “‘um pobre

de espírito desculpável por sua obscuridade’” ( Foucault, 2002: 376). No primeiro

caso, não fosse a patologia física inscrita no corpo de Henriette e o seu crime não

se justificaria. No segundo caso, não fosse a condição de estigmatizado a

inscrever-se na estrutura da sua personalidade e, a sexualidade periférica de

Charles Jouy passaria perfeitamente despercebida, quer dizer, ignorada ou

tolerada pelos sistemas jurídicos e psiquiátricos. A partir deste quadro obviamente

que Jouy seria submetido a uma série de exames e observações que concluiriam a

sua anormalidade pelas diferenças entre o que as suas medidas permitiriam

registar e aquilo que era considerado normal. “ A boca é larga demais”, “o palato

apresenta uma curvatura que é característica da imbecilidade” (Foucault, 2002:

379). O exame desencadearia a doença. Ora, tentando agora relacionar estes casos

com a situação das crianças surdas podemos concluir que o estado surdo, ainda

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que não de uma forma explícita, seria sentido como um estado potencialmente

perigoso dado a sua proximidade a uma cegueira moral. Da situação de Cornier

retiramos a inscrição da doença no corpo, a surdez no surdo, para se justificar o

acto de homossexualidade dos dois alunos surdos referidos. Do caso de Charles,

retiramos o desequilíbrio funcional que o próprio estigma pela marginalização

provocava no comportamento. O que deveria, à partida integrar, inibir, controlar

os desejos do corpo, encontrava-se ausente porque, precisamente um elemento

perturbador se inscrevia na alma do menino. Conclui Foucault:

Há “uma espécie de dispositivo ruim nas estruturas, que faz” com “que o

instinto, ou certo número de instintos” funcionem “‘normalmente’, de acordo

com seu regime próprio, mas ‘anormalmente’ no sentido que esse regime

próprio não é controlado por instâncias que deveriam precisamente assumi-

los, situá-los” e delimitá-los. Jouy “‘agiu como uma criança e, no caso como

vemos agir com frequência entre si crianças de sexo diferente’, mas,

‘crianças mal-educadas em que a vigilância’”, estaria ausente? (2002: 381,

383, 385).

Ora bem, a psiquiatrização dos dois casos apresentados acontece de forma

diferente e, ambos se relacionam com dois elementos que passarão a constituir um

ponto nodal que se prolongaria no tempo. A conduta e a infância. Quer dizer, para

que Cornier não fosse culpada, disseram-no um tipo de psiquiatras alienistas que:

“‘Você’”, Cornier, “‘ não era o que se tornou; é por isso que não se pode condenar

você’”. Já a Charles, outros psiquiatras disseram: “‘ Se não se pode condenar

você’”, Jouy, é somente “‘porque você já era, em criança, o que é agora’”.

Percebe-se agora, a necessidade de uma inquirição e registo do percurso

biográfico de qualquer novo habitante de uma instituição. Na medida do possível,

o seu comportamento futuro estaria disponível. A infância – e não, a criança –

constitui-se, então, como rampa de lançamento para uma psiquiatria que agarra

também o adulto e, claro está, a sua conduta. Permite um aprofundamento do

saber psiquiátrico e uma intensificação do seu poder. Em tudo isto articula-se:

“prazer e sua economia”, instinto e sua mecânica”, “imbecilidade” com “inércia e

carências”. Dirá Foucault que esta última personagem, a de Charles Jouy, aloja as

figuras do “pequeno masturbador”, “ do grande monstro” e daquele “ que resiste a

todas as disciplinas” (2002: 388, 389). Uns factos passam a ser correlacionados

com outros e, do ponto de vista de uma representação que se pretende verdadeira,

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Questões teóricas e articulações práticas

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creio que haveria toda a conveniência desta difusão, deste esfumado de contornos

nos comportamentos e perigos que poderia o anormal trazer consigo. Qualquer

intervenção a realizar no corpo do anormal será no sentido mais de uma ortopedia

do que no sentido de uma cura. Não é curar o anormal que se pretende – a sua

imagem é necessária – mas levá-lo a corrigir a conduta.

Assiste-se a uma trama que engloba um considerável número de actores,

todos eles empenhados não só em restabelecer um estado regular, que se diria

normal do indivíduo, como a lembrar continuamente – por comparação à conduta

desregulada –, a norma como regra de conduta. Neste espaço, o arquivo do saber

ia crescendo, as técnicas de intervenção afinavam-se. A seta da educação deveria

ser dirigida em direcção à alma do aluno. Este rumo desenhava-se já no século

XIX na Casa Pia de Lisboa. Num Regulamento disciplinar de 1890, é possível ler

que as transgressões disciplinares dos educandos seriam punidas com os seguintes

castigos: “1º admoestação; 2º repreensão; 3º isolamento; 4º tarefa; 5º privação do

recreio; 6º detenção; 7º reclusão; 8º colégio de correcção; 9º expulsão”

(Regulamento disciplinar de 1890: 5). O que sobressai destas penas é o seu

carácter produtivo no sentido do arrependimento e consagração do aluno a uma

análise de si mesmo e do seu comportamento. No isolamento, na censura, no

trabalho, o educando estaria entregue a si mesmo, numa espécie de “‘ascese’, um

exercício de si, no pensamento” (Foucault, 1994b: 15). Nas práticas cristãs, o

movimento ascético pressupõe uma renúncia do sujeito a si mesmo como forma

de aceder a um nível de realidade superior. Renúncia que se torna produtiva num

contexto escolar em que se pretende uma transformação do sujeito.

É, portanto, na utilização de técnicas muito próximas de um ambiente

pastoral cristão, que a escola moderna fixa a punição dos alunos. Todavia, não é

somente ao nível da punição que um poder de tipo pastoral opera. É sobretudo ao

nível da subjectivação dos escolares, e ao nível do desejo. Tentarei tornar evidente

esta transferência da figura do padre enquanto orientador de condutas, para a

figura do professor ainda que, num mesmo local as duas figuras possam e devam,

se possível, coexistir. Nota Jorge Ramos do Ó:

“O poder pastoral remete para a figura idealizada do pastor que é visto [...]

como um ser distinto e superior, que quase se diviniza”. Se o professor de

alunos surdos não tivesse atingido esta altitude, teria sido improvável que os

alunos participassem do mimetismo da língua, de uma prática de emulação

mesmo sem ouvir o referente. O segredo estava na própria escola que, “mais

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A construção do aluno surdo como sujeito ético…

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do que cultivar práticas repressivas com o propósito de inculcar o medo e a

obediência passiva, procurou, e seguramente a partir daquela remota matriz

cristã, formar a personalidade do aluno através de formas de identificação

positivas e de um trabalho interior” (2003: 105).

Esta formação da personalidade, quer dizer, os processos de subjectivação,

tinham origem em técnicas actuantes no tecido escolar. Analisaremos aqui a

prática da inquirição ao aluno e da confissão enquanto técnicas que contribuiriam

para aquela ascese que referimos. Parece-me que a inquirição ao aluno surdo,

versando as suas práticas quotidianas, incutindo-lhe simultaneamente princípios

morais, está próxima do acto confessional e muito contribui para a subjectivação

da criança. Quando me refiro a subjectivação, tenho em mente os processos,

constituídos por técnicas e por práticas que permitem ao sujeito fabricar a sua

identidade numa relação consigo mesmo: relação de conhecimento, de controlo e

de cuidado.

A relação do mestre com o aluno é quase inseparável da ideia judaico-

cristã do pastor que orienta o seu rebanho, estando pronto para partir em busca de

uma das ovelhas perdidas. A relação entre o pastor e cada um dos elementos de

que é guia, deveria ser individual e total. É pertinente um conhecimento de cada

um, rico em pormenores e retrato objectivo do que mais interior lhe vai na alma.

O cristianismo é não só uma religião de salvação, como, também de confissão.

Esta interferência na alma é “acesso” directo “ao âmago da integridade de uma

criança ou de um adulto, tão assustadora quanto instigante. Um Mestre invade e

pode devastar de modo a purificar e a reconstruir” (Steiner, 2005: 25).

O acto confessional, sem dúvida, estreita a relação do mestre ou do padre,

com o aluno ou o penitente, mas, igualmente, do indivíduo consigo mesmo. Como

bem nos mostra Michel Foucault , a cultura de si1, implicava fórmulas de

interioridade diversas.

“Pode-se, à noite ou de manhã, reservar alguns momentos ao recolhimento,

1 No terceiro volume da História da Sexualidade Foucault mostra-nos que o cuidado que o indivíduo deverá ter com a sua

própria conduta, “em relação aos prazeres, insistência aos efeitos do seu abuso para o corpo e a alma”, entre outros pormenores ditados por uma moral cristã, encontram ecos remotos, embora com atitudes diferentes, na cultura grega e greco-latina (1994: 49). O próprio “aumento da austeridade sexual na reflexão moral não assume a forma de um fechamento do código que define os actos proibidos, mas de uma intensificação da relação a si através da qual cada um se constitui como sujeito dos seus actos”. Ora, este individualismo, este cuidado de si, configura-se como uma arte da existência. Este conceito “circula entre numerosas doutrinas diferentes; assumiu também a forma de uma atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou os modos de viver; desenvolveu-se em processos, em práticas e receitas que foram desenvolvidas, aperfeiçoadas; constituiu, assim, uma prática social que deu lugar a relações interindividuais, a trocas e comunicações e por vezes mesmo a instituições; originou, finalmente, um certo modo de conhecimento e a elaboração de um saber” (1994:51, 55).

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Questões teóricas e articulações práticas

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ao exame daquilo que se tem de fazer, à memorização de alguns princípios

úteis, ao exame do dia que passou”. Estes, seriam os “princípios essenciais de

uma conduta racional”. Neste quadro, desempenharia, igualmente, papel de

destaque, “as conversas com o confidente, com os amigos, com o guia ou

director”; a isto acrescenta-se a correspondência na qual se expõe o estado da

alma, se solicitam conselhos ou se dão conselhos a quem necessita deles – o

que de resto constitui um exercício benéfico mesmo para aquele que se

chama perceptor, pois ele reactualiza-os desse modo para ele próprio: em

torno do cuidado consigo, desenvolveu-se toda uma actividade da palavra e

da escrita, em que estão ligados o trabalho de si para consigo e a

comunicação com o outro” (1994: 62, 63).

O serviço da alma que aqui se expõe, mimetizou-se na escola. Cada aluno

deveria desenvolver uma relação consigo, baseada numa condução da sua

conduta, regrada, isto é, regulada e autoregulada. O papel da confissão numa

instituição de alunos surdos, funcionaria como um controlo administrativo, no

qual se surpreenderia e avaliaria o desequilíbrio e o comportamento e se

impregnaria na pele do educando, a matriz a seguir. No segundo volume da sua

História da Sexualidade, Foucault falava em seguir o fio condutor que permitia

compreender a transformação do sujeito em sujeito ético, quer dizer, perceber de

que forma é que o sujeito se construía enquanto sujeito a partir de preocupações

morais e não de interdições objectivas. Este projecto levou-o à cultura grega e

greco-latina e a um conjunto de práticas que nessas sociedades assumiram grande

importância: as artes da existência. Foucault haveria de lhes chamar techniques de

soi. As técnicas do eu, embora com o cristianismo modifiquem substancialmente

o seu princípio, são aquilo que originariamente possibilita esta relação do sujeito

consigo mesmo. Estas técnicas, escrevia Foucault são “ práticas reflectidas e

voluntárias através das quais os homens, não apenas se fixam regras de conduta,

mas também procuram transformar-se eles próprios, modificar-se no seu ser

singular e fazer da sua vida uma obra que integra valores estéticos e responde a

certos critérios de estilo” (1994 b: 17). A dimensão na paisagem escolar não será

esta, mas parece inquestionável que será pelos modelos de identificação que o

sujeito consegue fixar a sua própria identidade. Num determinado espaço e num

determinado tempo há um conjunto disponível de identidades que servem ao

sujeito como ancoradouro de construção da sua própria identidade. No caso das

crianças surdas, circulava uma imagem de deficiência e um conjunto de

procedimentos e prescrições que asseguravam o fio da governamentalidade. Eram

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A construção do aluno surdo como sujeito ético…

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plantados dispositivos na alma do aluno, de tal forma que, ele próprio se

reconhecesse como sujeito em processo de transformação para um certo fim. A

finalidade última resultaria na prescindibilidade de qualquer vigilância ou governo

directo. O governo dos alunos surdos seria bem sucedido se, cada um, sentindo-se

governado, agisse como governando-se a si próprio, desejando aproximar-se de

um mundo de inclusão. A necessidade de ser governado, não colide com a

construção da subjectividade do aluno. Aliás, a existência de um orientador de

condutas, facilita a forma de relacionamento consigo.

Neste sentido, a figura do padre e do professor, desempenha na educação

do aluno surdo um papel de modelo a seguir, para uma autorealização do

educando. Creio que podemos observar nesta tentativa de passar a moral e a

prática religiosa, um dos elementos impulsionadores da educação dos surdos por

um método oral puro. São incontornáveis e elucidativas as palavras de Skliar:

“Para a maioria dos ouvintes a surdez representa uma perda da comunicação,

um protótipo de autoexclusão, de solidão, de silêncio, obscuridade e

isolamento. Em nome dessas representações, construídas quase sempre a

partir da religiosidade, foram e continuam sendo praticadas as mais

inconcebíveis formas de controle: a violenta obsessão por fazê-los falar”

(2003: 162).

Também Georges Steiner nos pode elucidar quando se refere à oralidade, à

palavra falada, como sendo, historicamente, parte integrante do acto de ensinar:

“O Mestre fala ao discípulo. [...] O ideal de verdade vivida é um ideal de

oralidade, de diálogo frontal” (Steiner, 2005: 18).

Passar a palavra ao surdo implicava uma preparação que poderia durar até

oito anos, havendo o risco, de nunca o aluno surdo adquirir a competência da fala

oral. Nesta situação, práticas como a da confissão ficariam comprometidas,

impossibilitadas e neutralizadas todas as tácticas que pretendiam chegar à alma do

aluno. Todavia, era do domínio dos ouvintes, preverem tal situação e por isso, um

Guia de confissão para alunos surdos adiantava que, caso alguns dos alunos

saíssem do “Colégio antes de completarem a sua educação”, ou, se ficassem

“sempre com uma linguagem imperfeita”, facilitar-se-ia “a confissão dos mesmos

com o questionário que se segue e a cujas perguntas responderá o penitente ao

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Questões teóricas e articulações práticas

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indicar-lhas o confessor”(Guia para a confissão dos alunos surdos, s/d: 3).

Momentos antes da confissão, o penitente/aluno, diria a Confissão Geral.

Antes mesmo de confessar qualquer má conduta, da sua boca sairiam as palavras

em que se reconhecia como pecador:

“Eu, pecador, me confesso a Deus Todo Poderoso e a Vós, Padre, que pequei

por minha culpa, por minha máxima culpa” ”(Guia para a confissão dos

alunos surdos, s/d: 4).

Seguir-se-ia o interrogatório, composto por cinquenta perguntas. Entre

elas, o padre queria saber:

“Foste desobediente a teus pais” e “professores”?;”Ficas com ira quando eles

te castigam”?; “Desejaste alguma vez que eles morressem”?; “Ficaste

contente com o mal dos outros?”; “Ensinaste outros a pecar”?; “Tens visto

coisas desonestas”? “ (Guia para a confissão dos alunos surdos, s/d: 5).

Michel Foucault fala de um aumento da curiosidade do questionário no

acto confessional, provocado pela própria “intensidade da confissão”. Diz o autor

que, “o prazer descoberto reflui para o poder que lhe põe cerco”. “A insistência

das perguntas singulariza naquele que tem de responder, os prazeres que sente; o

olhar fixa-os, a atenção isola-os e anima-os” (1994a: 48).

“Tens pensado coisas desonestas”?; “Tens falado em coisas desonestas?

Sozinho ou com os outros”? “Tiveste soberba, avareza, ira, gula, inveja e

preguiça”?; “Perdeste o tempo na escola ou na oficina”?; “Tens lido livros ou

jornais maus”?; “Falas ou jogas com imodéstia com pessoas de diferente

sexo”?; “Tens pena de teres ofendido a Deus com teus pecados”?; “Tens

propósito de não pecar mais”? (Guia para a confissão dos alunos surdos, s/d:

5 - 7).

Nestas questões, “o poder funciona como um mecanismo de apelo”, a

exigir uma revelação total, a fazer tudo passar “pelo moinho sem fim da palavra”

(Foucault, 1994 a: 25, 48). Quanto maior é a exposição do avesso do indivíduo,

maior a vontade de tudo saber. Para o indivíduo, quanto mais é incitado a produzir

um discurso de verdade sobre si, mais efeitos se produzirão nele próprio. Gostaria

agora de analisar um outro aspecto ao nível do conteúdo das perguntas. Da sua

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leitura fica-nos a impressão de que se fala sempre de uma moral, de bem e de mal,

de instintos, de impulsos, de comportamentos eventualmente desregrados, fala-se

também, de sexualidade mas, demarcando regiões de silêncio. Disse, silêncio e

não, repressão. Todavia, essa região de silêncio é um “procedimento de poder”

que implica “a revelação forçada” (Foucault, 2002: 213). Afinal, a técnica que

temos diante de nós é a da confissão. Esta prática de revelação seria

complementar dos discursos sobre sexualidade que as ciências psi passam a

produzir, de um ponto de vista científico, dir-se-ia. O que me interessa considerar,

sobretudo, é que a partir pelo menos do século XIII, segundo Foucault, se agrega

ao acto confessional o vínculo da obrigatoriedade da revelação. Logo, “o que vai

garantir a exaustividade” do que é dito, é o próprio padre, a revelação será

“policiada pelo poder do padre”. O padre adquire o poder de absolver o penitente,

quer dizer, passa a ter o “direito de exame”. Daí, o “formidável desenvolvimento

da pastoral, isto é, dessa técnica que é proposta ao padre para o governo das

almas” (Foucault, 2002: 221, 222, 224). Progressivamente o padre haveria de

desembocar numa espécie de director de consciência. Progressivamente será o

corpo e o prazer o assunto da confissão. No questionário apresentado, o aluno é

levado a reflectir sobre a sua própria relação consigo: se foi desonesto, se desejou

o mal, se viu ou disse coisas desonestas, se as fez, se pecou, se pretende voltar a

pecar. Quais as formas do pecado, da imoralidade, da conduta desregrada, da falta

de domínio sobre si? Foucault dá a resposta:

“A forma primeira [...] é ter tido contacto consigo mesmo: é ter se tocado, é a

masturbação. Em segundo lugar, depois do toque, a vista. É necessário

analisar os olhares: ‘Você olhou para objectos desonestos? Que objectos?

Com que fim?’”(2002: 237, 238).

A estes pecados se juntariam os dos gestos e das palavras. O problema

havia de se transferir para o desejo e o prazer. A vontade do corpo. E não posso

deixar de sugerir o quanto estes aspectos adquiriam importância na educação de

um aluno onde o eixo voluntário-involuntário que acima referimos, por uma

ausência da audição, poderia descambar para comportamentos afastados dos

padrões previstos e adequados. Todavia, se tal acontecesse, lá estariam as ciências

médicas para o explicar e, uma vez mais fazer passar a sexualidade dos escolares

pelo produtivo moinho sem fim da palavra.

Ao considerar a educação religiosa dos alunos surdos numa instituição

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Questões teóricas e articulações práticas

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total, torna-se necessário analisar os discursos não só em torno da alma, mas em

volta do corpo. Seria o bastante pensar que, os princípios da religião mantêm uma

ligação entre alma e corpo, de tal modo que, um e outro, terão de se adequar a

comportamentos regulados para detectarmos que, quando dirigidos a indivíduos

surdos, estes discursos dedicavam especial atenção aos esquemas físicos e às

movimentações do sujeito no espaço. De resto, não poderia acontecer de outra

forma, uma vez que, o aluno surdo, embora educado pelo método oral, era capaz

de falar mas não era capaz de ouvir. O dispositivo montado em volta da

inculcação de princípios religiosos no aluno surdo, tomava em conta a

especificidade da surdez no que respeita à palavra do sacerdote, mas a educação

pelo método oral puro, garantia que os alunos estavam “em condições de se

poderem confessar verbalmente com qualquer sacerdote” (Guia para a confissão

dos alunos surdos, s/d: 3). Ficaria, portanto, a manifestação religiosa do aluno

surdo reduzida a uma imitação de gestos e palavras dos ouvintes.

A arquitectura do dispositivo de confissão obedecia a regras

incontornáveis para que a palavra falada chegasse ao olhar do educando. O

aposento de revelação deveria ser “reservado” e “muito bem iluminado”. Longe

do móvel dividido em que de um lado estava o padre, do outro o penitente,

propunha-se um espaço de visibilidade sem cortina e sem rede. Todavia, o ritual

da confissão teria de manter o carácter secreto de revelação. O sacerdote

colocava-se “ voltado de frente para a luz” e formulava “ todas as perguntas em

termos breves”, não se esquecendo de “ pronunciar todas as palavras clara e

distintamente”. O surdo, fora já do seu estado selvagem, lia no “ movimento e

posição dos lábios e demais orgãos vocais” o que lhe dizia o confessor (Guia para

a confissão dos alunos surdos, s/d: 3,4).

Do acto confessional extraem-se dois aspectos positivos. Por um lado, o

aluno era inquirido e levado a debitar as suas acções, os seus pensamentos, a sua

intimidade. Deveria tudo dizer e nada ocultar. Daqui resultava um saber sobre a

criança surda, deixando-a em estado de dependência face ao adulto que a ouvia.

Esta desigualdade de exposição era necessária para que aquele que revelava as

suas faltas, se sentisse arrependido, mas liberto por as partilhar. Era mais uma

forma de ser conduzido por alguém que propunha um trilho definido.

“Um sacerdote votado de alma e coração aos princípios da religião, e cujo

único afã se traduz em querer formar os corações dos seus educandos; cuja

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A construção do aluno surdo como sujeito ético…

119

única glória consiste em encaminhá-los para o bem, guiando-os pelo caminho

da verdade [...]. Tal é, cumpre aqui dizê-lo, o digno ministro da nossa santa

religião, ao qual está confiado o importantíssimo cargo de capelão e director

espiritual dos alunos deste pio e normal estabelecimento” (Raposo, 1869: 14).

Retomo neste ponto a questão da educação da criança surda e o discurso

humanista que, vendo na surdez uma anormalidade que exclui, pretende dar

através da educação, a possibilidade a estes sujeitos de se constituírem de acordo

com os princípios de liberdade e autonomia modernos. O alvo essencial a atingir

era a alma do educando, pois, o surdo não poderia nunca sair de um estado

selvagem se não incorporasse em si princípios morais que lhe ditassem uma

conduta adequada. Concorrem para esta inscrição na alma, os ensinamentos

escolares e as actividades propostas pelo professor, o controlo do corpo pelos

exercícios que o adestram e o disciplinam no comportamento e na incorporação de

uma língua oral e, sem dúvida que, o saber construído acerca de cada sujeito,

permite ao mestre exercer um poder semelhante ao do padre que conduz os seus

crentes. É, aliás, a relação de saber que permite tecer o quotidiano com práticas

elaboradas, legitimadoras dos discursos daqueles que falam em nome do surdo,

traçando a sua imagem de excluído. Mas estes apresentavam também, – e essa era

a sua função –, as terapêuticas adequadas que conduziriam a criança à inclusão no

mundo ouvinte pelo domínio da fala oral, da leitura labial e da aprendizagem de

um ofício. As implicações são as de sempre. O Outro não era tratado na sua

alteridade outra, mas inserido em contextos pensados para si, inventando-o como

especial.

Julgo que a escola enquanto dispositivo de normalização da criança surda,

é local de múltiplas relações e se a prática da confissão constituía um capítulo

essencial no processo de subjectivação do aluno, a verdade é que, os processos de

descoberta da interioridade e intimidade da criança, eram treinados noutros

espaços que não os do confessionário.

“Diz ao / à X que um dos meninos está deitado e que o outro está a tirar o seu

fato”. “No nº 236, o primeiro menino não se despiu antes de se deitar?”. “O

que vai fazer o segundo menino quando estiver despido?”. “Diz ao /à X que

todas as noites subis ao dormitório, - que vos despis, - que vos deitais, - que

adormeceis, - que dormis toda a noite, - que algumas vezes sonhais quando

dormis” (Trindade, 1906: 94, 95).

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Questões teóricas e articulações práticas

120

Vemos como a criança em geral, o surdo em particular, têm de ser trazidos

até uma área de governamentalidade. Se o surdo estava impedido de ouvir e

comunicar pela palavra com os ouvintes, estava privado de uma moral sobre a

qual deveria conduzir a sua conduta. Esta moral, a escola lhe proporcionaria.

Moral entendida como “conjunto de valores e de regras de acção” que seriam

propostos aos educandos. A finalidade seria também que o indivíduo assumisse

um comportamento moral, em suma, um comportamento consonante com “as

regras e os valores que lhe” eram “propostos”. A experiência de construção da

identidade surda dependia, como aqui se tem dito, dos processos e dos resultados

derivados de uma condução da própria conduta “em referência a um sistema

prescritivo que é explícita ou implicitamente” sugerido ao aluno surdo (Foucault,

1994 b: 32, 33).

A escola produzia discursos de representação da criança surda válidos

socialmente, formando os objectos surdo e surdez enquanto anormalidades pela

desposessão de um dos sentidos. No ano de 1955, Pedro de Campos Tavares,

provedor da Casa Pia na década de cinquenta, traçava o retrato da criança surda:

“Estabelecerá certamente alguma analogia através dos sentidos de que

dispõe, mas nunca poderá atingir uma noção consciente ligada aos reflexos

cerebrais das impressões sonoras. Está sem dúvida muito longe do cego que

pela linguagem das outras pessoas pode apreender muitas das coisas que não

vê ou do paralítico que observa e compreende os movimentos que não pode

realizar. […] Estas crianças encontram-se, como se vê, em condições

inferiores nos atributos que distinguem o homem dos restantes seres da escala

animal e o condicionam como um ser dotado de responsabilidade e de vida

espiritual. […] A criança surda é um ser racional, mas não pode pôr

integralmente em acção os atributos de ser racional. Tem inteligência mas

esta encontra-se apenas em estado potencial. […] O ideal e o sonho que

fazem parte da felicidade humana não pode realizá-los e, como não pode

exprimir as suas ideias nem aperceber as dos outros dentro das virtualidades

da palavra, não pode ter confidentes nem amigos com que mutuamente se

abra. […] A palavra que no seu conteúdo e na sua modulação conforta, anima

e orienta, que enche e ilumina a vida, dá paz e alegria ao coração e é um

fundamento de felicidade, é um bem que não existe para a criança surda. Ela

é um ser à parte na comunidade, condenado a viver sombriamente isolado no

lar, na oficina e na vida social. A consciência, o valor dos actos morais, as

exigências do dever são mais aspectos em que se verificam diminuições de

personalidade na criança surda e que vêm reflectir-se na sua integração na

vida social. […] Será pois por mais este aspecto um inadaptado, não

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A construção do aluno surdo como sujeito ético…

121

atingindo por falta de sentido de responsabilidade moral, as normas morais

que regulam a vida individual e social” (1955: 9-12).

Tornava-se premente confiscar este grupo até uma paisagem onde fosse

possível exercer uma arte de governo. A escola era essa paisagem. O internato

cumpria esse lugar de forma ainda mais eficaz. A regulação total dos

comportamentos e das actividades exercia-se através de técnicas disciplinadoras

como, também, por outros veículos de transmissão de princípios morais, como a

confissão ou o manual escolar. Verifica-se que a confissão ocupa um lugar de

destaque numa vida de internato pois, para além da vigilância constante e

contínua, o interno é ainda colocado em situação de exame de consciência e

revelação dos seus actos. No mundo do internato a confissão é como que uma

máquina de detecção da mentira, portanto, uma máquina da verdade. O aluno terá

de revelar, perante a possibilidade permanente dos seus actos terem sido vigiados

por um dos membros do colectivo em que habita.

Mais uma vez, a especificidade da surdez é considerada de modo a que o

acto confessional se possa realizar cumprindo com eficácia os seus objectivos.

Vale a pena determo-nos sobre o Guia para a confissão dos surdos educados no

Colégio da Imaculada Conceição, tendo presente que a secção das alunas surdas

da Casa Pia, funcionava neste Colégio e, por isso, este Guia também a elas se

dirige. Aliás, suponho que os princípios seguidos nas instalações de Belém, não

divergiriam muito dos que aqui são apresentados.

A escola era o espaço ideal para a produção de discursos e técnicas de

disciplinamento do eu surdo, através de modos de subjectivação que conduziam a

criança surda de encontro aos ideais da instituição ouvinte. O abandono de um

estado selvagem estaria dependente da localização do surdo a cargo de uma

instituição com o poder de o transformar. O surdo deixaria, então, de ser um outro

estranho com o qual se estava impedido de comunicar e, portanto, do qual não se

conhecia nem podia prever o comportamento, para passar a ser um outro marcado

pela deficiência. Novamente faz sentido chamar o conceito de hospitalidade de

Derrida, para verificar que o processo de acolhimento e educação da criança surda

aconteciam de forma condicional. O fundamento na educação deste grupo,

implicava fornecer-se um referente para a construção da identidade do aluno. A

partir desse referente, era suposto que o educando estabelecesse uma relação de

conformidade entre a sua aspiração e auto-realização e, as expectativas que os

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Questões teóricas e articulações práticas

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outros – professores, família e sociedade – depositavam em si.

É-me totalmente impossível arranjar elo de articulação ao próximo

capítulo que não seja um discurso revelador do que até aqui se tem dito: do poder

pastoral, da condução da conduta, das técnicas de si, do saber/poder, enfim, do

governo dos alunos surdos na Casa Pia de Lisboa. Leia-se o que teve a dizer José

da Cruz Filipe:

“Conhecer o aluno, viver a sua própria vida, sentir-lhe o íntimo, seguir-lhe os

pensamentos e concretizar-lhe a expressão da própria vontade, é a arte que

mais sai do coração do educador de deficientes, para amparar um resultado

que impressiona pela felicidade que causa. Um dos valores maiores é a

confiança. Ter confiança e saber criá-la no espírito dos alunos são dos

melhores meios para alcançar êxito. Além disso, o papel da afeição, do

sentimento, do carinho, dos cuidados e da preocupação constante, deve viver

permanentemente na actuação do educador. Em todo o tratamento é

utilíssimo conquistar a amizade do aluno. O respeito e a disciplina no

trabalho, não se devem impor nunca a estas crianças deficientes, antes um

ambiente carinhoso favorece extraordinariamente a nossa acção. […] E,

quando tenha de contrariar e até que constranger determinado trabalho, terá

que usar de habilidade e paciência necessária, a fim de tudo conseguir, sem

que o seu doente se aperceba de que a sua própria vontade está a ser

desviada, a fim de se aproveitar o seu esforço com mais utilidade” (1942:

25).

Julgo que o que se escreveu neste capítulo terá sintetizado uma das

grandes ideias desta escrita, que é a que reúne as tecnologias do eu, às práticas a

que o aluno é exposto e que incitam à consciencialização da sua relação consigo

enquanto sujeito. A confissão, tal como outras técnicas que lhe são similares,

incorporam no sujeito a necessidade de esquemas de autoinspecção, de auto-

regulação que o ajudam a decifrar-se e a constituir-se como um aluno com uma

identidade. E será de disciplina que agora se falará. Melhor, de técnicas

disciplinares de carácter cada vez menos coercivo.

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O corpo e a disciplina na hospedagem da língua

123

O CORPO E A DISCIPLINA NA HOSPEDAGEM DA LÍNGUA

Exercício individual de articulação da fala

(Amaral, 1954)

Na imagem um aluno surdo aprende o movimento, o vibrar, o respirar da palavra

falada oralmente. Aprende-se a falar como se aprende uma coreografia. Como se

aprende uma postura corporal. É sempre disso que a escola fala: aprender, fabricar,

corrigir, tornar apto. Diz Michel Foucault que a partir da segunda metade do século

XVIII, “o soldado tornou-se algo que se fabrica”, assim como uma peça de uma

máquina mais ampla: “corrigiram-se aos poucos as posturas”, “lentamente uma

coacção calculada percorre cada parte do corpo” (1994: 117). É do corpo que se

falará neste capítulo, do corpo que se transforma, que se prepara, que se torna apto

para alojar uma língua, mas também, do corpo que vive numa instituição, sujeito,

portanto, a regras muito específicas e a uma circulação limitada no espaço. Será

através das disciplinas que o poder da norma se estabelece. Todavia, como nos será

dado a apreciar nos discursos de pedagogos e educadores, o trabalho a desenvolver

tomará a direcção da alma do aluno. Começaremos pelos regulamentos que fixavam

os indivíduos a espaços, em tempos determinados. “A coordenação através do tempo

é a base do controlo do espaço” e dos seus habitantes (Giddens, 1996: 13). Para essas

duas estruturas eram delineadas actividades, recombinando espaço, tempo e

programando a utilização deste par.

Desde os alvores do século XIX que, para além da instrução do ler e do

escrever, as meninas orfãs da Casa Pia, tinham no horário os lavores com as “mestras

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Questões teóricas e articulações práticas

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de costura e de prendas próprias do seu sexo”: “coser”, “recortar”, “fazer meia”,

“fiar”, “casear”, “coser obra de cor”, “cortar camisas” e “fazer botões”. Os rapazes

iam para as oficinas “aprender ofícios, assim que chegava a idade própria”. Os ofícios

eram de sapateiro, de alfaiate, de carpinteiro, de latoeiro de folha branca, de serrador,

de tecelão, de cordoeiro, de esparteiro e de tipógrafo (Silva, 1896: 50, 64, 111).

Num Relatório enviado em 1837 ao Governo, Pinto Basto, então

administrador da Casa Pia, dava conta dos desenvolvimentos e melhoramentos que

esta instituição estava a sofrer sob a sua mão. E a verdade é que, segundo as regras,

todos os alunos que tivessem saúde, deveriam “empregar-se em alguma coisa”, sem

esquecer a determinância da idade e a “capacidade de cada um”. Tratava-se, é

evidente, “de acostumar” os internos “ao trabalho e à subordinação”, para evitar,

dizia-o com a máxima clareza o administrador, que os alunos gastassem “o tempo em

ociosidade e travessuras” (Silva, 1896: 110). Na época de Pinto Basto eram 986 os

internos da instituição, entre alunos, orfãos, porcionistas de beneficência e surdos-

mudos e cegos. Estes últimos, agrupados numa mesma categoria, somavam-se em 25,

sendo 18 do sexo masculino e 7 do feminino.

As horas reservadas às oficinas estavam acuradamente esboçadas, o que de

resto, acontecia com qualquer outra actividade prevista ao longo do dia do educando.

Fundamentalmente, os dias estavam repartidos em dois e a programação das

actividades obedecia a uma ordenação que tinha em vista colher uma rentabilidade

máxima. O corpo do aluno adquiria significação nas relações internas da instituição.

Era, claro, “objecto e alvo de poder”, era o corpo que se pretendia manipular, treinar,

que se queria que fosse obediente, hábil, útil, que respondesse ao seu chamamento e a

ritmos temporais prescritos (Foucault, 1994: 117).

Num regulamento do mesmo ano de 1837, Pinto Basto dirigia às meninas

orfãs do Recolhimento de Santa Isabel regras da vida no internato. Este Regulamento,

mandado observar 22 anos após a sua criação, pelo então provedor da Casa Pia José

Maria Eugénio de Almeida, dizia assim:

“As orfãs desde o primeiro de Abril até trinta de Setembro, se levantarão às seis

horas da manhã, e desde o primeiro de Outubro até trinta e um de Março às sete

horas. Às seis e meia no verão, e às sete no inverno, terão varrido, e arrumado o

Colégio, e cada uma a sua cama feita. A esta hora serão acompanhadas ao

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O corpo e a disciplina na hospedagem da língua

125

refeitório pelas suas Regentes, as quais ali lhes assistirão ao almoço, que não

deve exceder o tempo de meia hora; acabado este, irão acompanhadas pelas

mesmas Regentes para os seus destinos: devem repartir-se, metade para a aula de

primeiras letras, e a outra metade para as oficinas, umas de manhã e outras de

tarde, conforme o detalhe, que a Regente em chefe deverá fazer no princípio da

semana. Ao meio dia farão as Regentes reunir as orfãs, e as conduzirão ao

refeitório para o jantar, ao qual devem assistir. O jantar não deve durar mais de

meia hora, depois dele gozarão de recreio, e descanso até às duas horas, que,

reunidas as orfãs, serão conduzidas pelas suas Regentes aos seus destinos. [...]

Nos domingos e dias santos, depois do almoço, ouvirão a explicação da Doutrina

até à hora da Missa, à qual irão assistir acompanhadas pelas suas Regentes.

Depois da Missa ficarão em descanso até à hora do jantar, e depois deste gozarão

de recreio até à noite. Depois que anoitecer até à hora de ceia terão outra

explicação de Doutrina. As orfãs devem assistir à Missa, ao refeitório, aula, e a

todos os mais actos, com toda a decência e decoro, por cuja observância ficam

responsáveis as Regentes, e Mestras” (Regulamento para as orfãs e empregadas

do Recolhimento de Santa Isabel da Casa Pia em Belém, 1837: 10, 11).

Nos diferentes colégios que estavam sob a direcção da Casa Pia de Lisboa, os

regulamentos seriam semelhantes. O horário das actividades era desenhado por

ritmos de aulas, de recreios, de oficinas, de tarefas domésticas, de alimentação e de

doutrina. O encaixe de uns e de outros não era, de forma alguma, aleatório. A

articulação de uma actividade para outra obedecia a momentos de pausa e a

momentos intensos, respeitando já as estruturas e capacidades da criança. A

adequação balanceada dos ritmos temporais e dos esquemas físicos e arquitecturais a

eles associados, era um pormenor que convinha, cada vez mais, considerar. Se a

estrutura da organização das actividades, dos tempos e dos espaços, remete de

imediato para Regulamentos anteriores como os que Michel Foucault nos dá a ver na

sua História da Loucura, relativos a Salpêtrière, a verdade é que o caminho não

sendo de ruptura, é de uma individualização cada vez mais intensa. Não poderei

deixar de destacar e trazer até esta escrita, fragmentos desse Regulamento datado de

1662, para concluir que a modernidade se apropria, de facto, de modelos disponíveis

que continuariam a servir para os novos propósitos de governo. Dizia assim:

“‘ O toque de despertar será dado às 5 horas, os oficiais, as oficiais, os

domésticos e todos os pobres se levantarão, com excepção dos enfermos e das

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Questões teóricas e articulações práticas

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crianças com menos de 5 anos. [...] Às 8 horas, a oficial encarregada das obras na

casa fará soar o sino destinado a advertir que todos devem estar a postos para

começar o trabalho. As oficiais farão a seguir suas rondas, cuidando para que

todos os pobres estejam ocupados, não admitindo os inúteis’” (Foucault, 2003:

536, 537).

Atente-se no essencial da programação do tempo das meninas orfãs ou dos

oficiais, domésticos e pobres, e encontrar-se-á uma sincronização dos actores da

instituição no espaço. As alunas levantavam-se todas à mesma hora. Seguia-se a meia

hora de arrumações e igual tempo de almoço, sob o olhar vigilante das Regentes.

Eram então divididas em grupos, ao que parece, ainda não por idades. Uma das

classes dirigia-se ao ensino das letras e a outra aos ofícios. De tarde, visitavam umas,

o espaço onde haviam estado as outras. Ao jantar, novamente sob o olhar das

superiores, e depois, meia hora de recreio antes de o dia terminar. Aquilo a que se

assiste é a uma disciplina ganha num colectivo institucional, completamente

regulador da vida pessoal e social da aluna interna. O tempo era trabalhado na sua

complexidade, ajustado, combinado de modo a extrair o máximo de produtividade

com uma economia de meios. Acontecia o mesmo em Salpêtrière. Esta era, sem

dúvida, a implantação de hábitos novos, de complexos de regras que criariam na

criança uma habituação de tal ordem que, havia de constituir um habitus, engrossando

o caudal de docilidade na aprendizagem e construção moral e física dos educandos.

Desde já deverei explicar que quando me refiro a habitus tenho em mente a proposta

de Bourdieu que incorpora à palavra “capacidades criadoras, activas, inventivas”. “O

habitus, a hexis, indica a disposição incorporada, quase postural”, de um “agente em

acção” (1989: 61). Quando, aliás, menciono as práticas que acontecem na arena

educativa, faço-o como relações entre actores nas quais, independentemente da sua

localização no campo, surgem sempre movimentos. A eficiência do detalhe do tempo,

da prescrição cirúrgica das tarefas, resulta de um pensamento calculado que visa,

precisamente, incorporar no sujeito, através da sua própria acção criativa, – pois é de

transformação interior do indivíduo rumo a um desejo que deverá ser seu, mas,

igualmente o da instituição –, funcionamentos produtivos.

O horário, herança das comunidades monásticas, bem cedo foi apropriado

pelos espaços onde se pretendia governar alguém. A escola é um espaço feito de

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O corpo e a disciplina na hospedagem da língua

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tempos, de ritmos, de actividades regulares. Cada tarefa no seu tempo e a seu tempo.

O corpo do aluno, mas, também, o do mestre ajustaram-se aos imperativos temporais.

A ciência pedagógica, passando 1900, haveria de referir os vários tempos: escandi-los

de acordo com cada sujeito, adaptando o tempo de execução e de resposta à

actividade proposta ao aluno, mas, nesse mesmo movimento, bebendo na

performance do educando os elementos que permitiriam situá-lo face à

cronometragem mais comum nos escolares. “O corpo”, diz Michel Foucault,

“tornando-se alvo de novos mecanismos do poder, oferece-se a novas formas de

saber” (2004: 132).

Em 1825, no Instituto de surdos-mudos, ainda a funcionar exteriormente à

Casa Pia de Lisboa, a delineação do tempo do aluno não seria muito diferente. Os

ritmos escolares obedeciam já a cortes e a blocos mais fatigantes. Das oito e meia às

dez e das 11 à uma, os alunos surdos recebiam lições. Das dez às onze seria o

momento de pausa para o recreio. Após o almoço, a tarde, para os rapazes, era

destinada aos ofícios mecânicos e ao desenho, para as meninas, aos lavores com a

Regente.

Um século adiante, na Secção de surdos da Casa Pia, era assim que ditava o

regulamento:

“Os alunos levantam-se às 6 horas no verão e às 6 1/2 no inverno, almoçando

sempre às 7 1/2. Depois do almoço têm um pequeno recreio antes da entrada para

as aulas, que se faz às 8 1/2, onde permanecem até às 12 1/2, havendo meia hora

de intervalo para recreio. Às 13 1/4 depois da lavagem das mãos, vão jantar, indo

às 14 1/2 para as oficinas, uns, e para aulas especiais, outros. Ceiam às 19 e

deitam-se às 20” (Filipe, 1920: 21, 22).

O aluno era totalmente governado por um horário escolar quer nas obrigações

quer nos momentos de lazer. A acentuação das questões do tempo escolar não pode

ser inseparável do registo das diversas actividades ao longo do dia. Refiro-me aos

horários das actividades lectivas e oficinais e à tarefa obrigatória dos habitantes da

paisagem escolar em fixarem a sua memória futura através da escrita. Terei

oportunidade de mais à frente dar conta de planos de lições e do seu sumário pelo

mestre, os diários da classe, “onde os professores descrevem na generalidade os

assuntos de que trataram nas suas lições, bem como os métodos e processos que

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Questões teóricas e articulações práticas

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empregaram” (Simões, 1869: 15, 16). O mesmo tipo de registo se esperava do aluno,

num outro suporte, é certo, que, apesar de não fazer parte dos objectos de arquivo das

instituições escolares, subsistiu até à contemporaneidade, vinculando na aula o pupilo

ao trabalho. O caderno diário teria “efeitos sobre os alunos, visíveis não apenas no

plano de aprendizagem quanto essencialmente no da disciplina”. De efeitos,

evidentemente, é que a escola fala. De “‘ordem e método’”, de “um excelente meio

de ocupação permanente” (Ó, 2003: 329).

A Casa Pia entendeu bem cedo esta mensagem. Dizia em 1869, Simões

Raposo:

“Começou-se por estabelecer horários. Organizaram-se depois umas instruções

que definem não só as obrigações dos professores, no exercício de suas funções,

mas também a disciplina e ordem dos exercícios graduais, que em cada matéria

são obrigados a ensinar. Uma outra parte das instruções consta das recompensas e

punições que devem ser aplicadas aos alunos, e dos casos em que, recompensas

ou prémios, podem ter lugar”. Simões Raposo sonhava com o dia em que os

professores da Casa Pia tivessem na aula todo o material necessário e adaptado às

exigências de cada aluno: “colecções de problemas graduais em extensão e

intensidade”, “colecções de assuntos próprios a desenvolver a inteligência, o

senso prático das crianças, e a despertar-lhes no coração os sentimentos da honra,

do trabalho, da economia, da justiça e da caridade”. “Assuntos tirados da vida

usual, dos seus próprios brinquedos, das suas triviais ocupações e finalmente de

tudo o que possa ser aplicado à vida real” (1869: 15).

No enunciado deste actor da Casa Pia reflecte-se a noção de arte de governar.

Estão presentes as tecnologias disciplinares, os horários, o duplo sistema gratificação-

punição, mas, igualmente, a consciência de que o aluno teria de ser governado sem o

sentir. Não que não fosse dirigido, mas que o fosse de forma especial. Adaptada ao

seu ser, às suas aptidões e competências. Todo o momento se revelava oportuno para

transmitir lições morais, para despertar bons sentimentos e treinar o aluno no trabalho

e disciplina. Sempre que possível, também, convergir nos seus interesses: antecipação

do que nos dirá Dewey, Claparède ou outro pedagogo.

Gostaria de assinalar a acentuação de técnicas persuasivas, apelando sempre

que possível à interioridade do aluno, com vista a uma progressiva autodisciplina e

autoregulação do corpo e da conduta. O duplo sistema gratificação-punição dividia os

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O corpo e a disciplina na hospedagem da língua

129

educadores. Se por um lado, faria o aluno participar na dinâmica dos objectivos que

para si a instituição traçava, por outro, não passava de uma motivação exterior. A

ciência ensinaria o professor “a manejar as actividades psíquicas” do aluno, “dando-

lhes o máximo rendimento útil na dinâmica social” (Rodrigues & Mártires, 1912:6).

O discurso que apresento antecipava a questão da diferença e individualidade de cada

aluno e, simultaneamente, uma economia governativa:

“Preferimos mil vezes desenvolver nos alunos o sentimento de que todos eles têm

aptidões embora muito diversas, e que é nessa diversidade que está o melhor

penhor, a mais segura garantia da felicidade e de bem-estar colectivos. Sobretudo

preferimos radicar bem no espírito dos alunos a ideia de que todas as aptidões são

iguais em dignidade e pretendemos fixar essa ideia de tal modo que passe do

estado consciente ao estado subconsciente, isto é, que se converta em sentimento”

(Rodrigues & Mártires, 1912: 9, 10).

Era no interior desta dinâmica rumo à interioridade do aluno que o professor

se situava como uma espécie de mediador. Auxiliado pela psicologia, cabia-lhe a ele

descobrir as aptidões dos escolares. Desejos e motivações deveriam formar um só

bolbo na alma do aluno. A questão do interesse assumia-se como fundamental e este

estaria conectado à disciplina. E não mais o trabalho assumiria uma imagem de

esforço. Em Leçons sur les prisons, o autor, citado por Michel Foucault, fazia

referência ao trabalho como transformador da conduta do detento: “ ‘torna-se pouco a

pouco pela força de um hábito inicialmente puramente exterior, mas logo

transformado em segunda natureza, tão familiarizado com o trabalho e os gozos dele

decorrentes que, por pouco que uma instrução sábia tenha aberto sua alma ao

arrependimento, ele poderá ser exposto com mais confiança às tentações que lhe são

trazidas pela recuperação de sua liberdade’” (Foucault, 2004: 202).

Num artigo publicado no jornal A Pátria, em 1912, relativo a uma visita à

Casa Pia de Lisboa, o jornalista constatava, deixando emergir um certo espanto:

“À uma e meia da tarde começa o trabalho nas oficinas, havendo um descanso,

para merendar, às quatro da tarde. É curioso ver a aplicação e o amor com que os

rapazes se lançam ao trabalho, disciplinados e contentes, num grande à vontade

respeitoso para com o mestre da respectiva oficina em que vêem um amigo, que

docilmente os guia e ensina. [...] Não está no espírito da instituição fazer do

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homem simplesmente uma máquina”. Os alunos frequentavam, conta-nos o autor

do artigo, as oficinas, os trabalhos manuais, assistiam “a palestras feitas por

senhoras” para evitar a “bisonhice própria dos internados”. Outros, praticavam

ainda o foot-ball, entre outras actividades, claro está, a que voluntariamente se

entregariam não só para ocuparem o tempo livre, como para encontrar um sentido

para a vida. “A Casa Pia é a interpretação fiel do tema da República, que nas

paredes de todas as oficinas se lê: Ordem e Trabalho” (Anuário 1912-1913: 142-

145).

Definitivamente, teremos que substituir as ideias de um poder exercido por

dominação, por outras que têm no trabalho sobre o educando enquanto sujeito moral

e ético a sua fundamentação. As tecnologias aplicadas na Casa Pia de Lisboa, como o

corrobora o autor do artigo, jogavam liberdade e disciplina. Eram reguladoras

obviamente, mas apenas na medida em que se articulavam com a via de uma

autoregulação do aluno. Grande parte da discursividade pedagógica alimenta-se das

próprias práticas que são aplicadas diariamente na instituição, daí que as técnicas

estejam em constante processo de fabricação. Qualquer tarefa proposta pelo mestre ao

aluno tinha origem num conhecimento do educando. E para o conhecer, nada melhor

do que saber observá-lo. Cruz Filipe, adiantava a utilização do jogo como melhor

instrumento que, não só permitia ao educador formar um saber mais profundo sobre o

aluno, como cativava a criança, levando-a a aderir espontaneamente às tarefas:

“Os jogos educativos são de aconselhar o mais cedo possível para que a criança

se prepare, brincando, para o reconhecimento dos objectos, para a imitação de

movimentos, para a observação de gravuras e, sobretudo, para progressivamente

fixar toda a sua atenção para os movimentos da palavra, ao mesmo tempo que,

também a brincar e muitas vezes ao espelho, se lhes pede a imitação dos variados

exercícios de ginástica bocal e de respiração. São exercícios de adestramento dos

orgãos da fala, que se conseguem sem esforço desde que o professor saiba

amenizá-los com as brincadeiras actuais das crianças; isto é, é indispensável que

nos tornemos crianças, brincando, rindo, ganhando confiança e afectividade,

dispondo bem o ambiente, para que tudo se aproveite com o intuito de beneficiar

a aquisição da palavra” (1942: 29, 30).

No quadro de educação das crianças surdas, o jogo serviria como recurso

lúdico para uma aproximação facilitada entre o educador e o aluno. O dispositivo

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O corpo e a disciplina na hospedagem da língua

131

escolar criava, mesmo para os alunos difíceis, estratégias de intervenção. Ontem,

como hoje. Os jogos educativos não só iriam de encontro ao interesse da criança

como, também serviam enquanto meio de diagnóstico e de aprendizagem. De

diagnóstico porque, alguns tipos de jogos como os de Decroly, funcionavam como

testes que permitiam ao educador situar o seu pupilo em escalas de desenvolvimento.

E Claparède anunciava a excelente ideia de organizar escalas de testes apropriados à

determinação do grau de desenvolvimento e de cada aptidão da criança. Resumindo,

dizia Claparède:

“É preciso levar em conta as diferenças de aptidões, porque ir contra o tipo

individual é ir contra a natureza. E ir contra a natureza tem duplo inconveniente:

em primeiro lugar [...] não há rendimento, ou só um rendimento não proporcional

ao esforço dispendido. E, em seguida – é preciso insistir – repugnância. [...]

Importa que a ideia do trabalho” esteja “associada à satisfação” (1959: 149).

Eis aqui o motivo que me levou a alargar o quadro de técnicas disciplinares

aplicadas sobre o educando, ao domínio do saber produzido sobre ele, sobre as suas

aptidões e capacidades. Cedo se manifesta a ideia de que para um bom governo é

necessário considerar os interesses do educando. E estes adequar-se-iam aos padrões

de interesse disponíveis. Foi essa a lição que nos deixou a biopolítica. O

conhecimento profundo, exaustivo e detalhado do corpo populacional justifica-se

para uma intervenção que se dirá de prolongamento da vida, da saúde, intervenção de

acréscimo para os governados. Não seria pela coacção mas pelo desejo, não seria pela

lei, mas pela norma que o sujeito se constituiria como sujeito de desejo em viagem de

aperfeiçoamento constante. “Podem-se corrigir as más tendências”, afirmava-o

António Aurélio da Costa Ferreira, “modificando o organismo, actuando

medicamente sobre ele, mas também se as podem corrigir criando hábitos que as

inibam, moderem ou sublimem, e esse é o trabalho do educador” (1919: 328).

O internato soube tirar partido de regimes fortemente disciplinares como os

que incluíam a clausura – conventos ou prisões – e, desde o início houve clara

consciência da necessidade de programação da vida diária no seu interior. Os seus

habitantes precisavam de estar vigiados e ocupados a cada hora do dia e a classe

dirigente deveria saber exactamente o que cada um fazia em cada momento. Um

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Questões teóricas e articulações práticas

132

papel importante que cumpre uma instituição que tutela menores, como o era a Casa

Pia, é o de um delineamento rigoroso das práticas institucionais, na medida em que

estas se aplicam a um grupo infantil que socialmente lhes foi entregue. Podemos

novamente recordar o grande princípio dos Estados-nação de construir cidadãos,

antecipando-os a partir de uma obrigatoriedade escolar, à paisagem educativa onde

seriam feitos sujeitos socialmente úteis e enquadrados. No caso específico dos

internatos, – e neste contexto, dos alunos surdos em regime de internato na Casa Pia

– , a questão de produção dos alunos enquanto sujeitos aprofunda-se, na medida em

que, a disponibilidade da sua presença permite estudar e experimentar metodologias

que, funcionando em populações anormais, facilmente seriam convertidas em

instrumentos úteis em populações normais. Não é por acaso, como veremos na

segunda parte desta tese, que as vertentes artísticas eram tidas como facilitadoras de

aprendizagens, de consolidação de conhecimentos ou de catalisadoras de energias. No

ensino de crianças classificadas como anormais, grande parte da carga curricular era

dedicada às actividades de carácter manual e artístico, funcionando estas como

tecnologia disciplinar e de subjectivação.

No ensino das crianças na Casa Pia de Lisboa, às disciplinas de matriz teórica,

cedo foram acrescentadas as disciplinas artísticas e as actividades manuais. A sua

utilidade é significativa e no tronco de conteúdos curriculares dos alunos surdos a sua

presença é expressiva. O trabalho artístico e manual cumpria o papel de

requalificação do interno como indivíduo social, ocupando-o numa actividade útil e

resignada, preenchendo o tempo quase total da vida na instituição. Ademais, passa

mesmo a ser desejado porquanto quebra os momentos de extrema solidão ou

isolamento. Não é, aliás, por acaso, que o isolamento é prescrito como um dos

castigos na prisão ou na escola. É um tipo de sanção moral. Apartado do grupo o

sujeito estaria entregue a uma relação com a sua própria consciência, impedido de

participar activamente em qualquer tarefa. A prática da ascese teria outros momentos

que não os do castigo.

Qualquer que fosse o género de aluno da Casa Pia – surdo ou ouvinte – teria o

trabalho manual no tronco de disciplinas da sua carreira de institucionalizado. O

trabalho vincula-se a outros domínios que não os da punição directa sobre os

indivíduos que cometem faltas ou desadequam o seu comportamento dos moldes

previstos. Não é tampouco o carácter produtivo e rentável de uma tarefa o que mais

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O corpo e a disciplina na hospedagem da língua

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importa, quando a instituição determina a sua obrigatoriedade. O elo entre trabalho,

instituição e escola liga-se mais aos efeitos que produz na mecânica humana.

Claramente, o trabalho veiculava um princípio de ordem e de regularidade. Habituava

o corpo a movimentos regulares, obrigava a uma fixação da atenção, ocupava enfim

todas as horas do dia. O preguiçoso se tornaria dirigente e activo, não haveria sequer

tempo para as sinuosidades da imaginação. Os pensamentos seriam direccionados

para a rotina das tarefas a executar e, de tal forma as disciplinas tocariam na alma que

o aluno haveria de se vincular. Antes de dar por terminado o capítulo gostaria de

deixar marcada a minha posição quanto à análise da escola enquanto ela mesma

tecnologia disciplinar, mas também tecnologia humana e tecnologia moral. O

enquadramento da criança na escola, e não só da surda, mas de qualquer outra,

acontece por imperativos de governação, de ajustamento e integração útil e produtiva

no tecido social. Quando trouxe até este texto a forma-prisão, pretendi com isso

evidenciar que o trabalho sobre a interioridade dos alunos, assumindo um carácter

coercivo cada vez menos presente, encontra neste modelo prisional ou conventual

verdadeira fonte de inspiração. Em primeiro lugar há o espaço de regeneração,

também a criança surda ou a criança perigosa – que passam a ser convertidas em

discurso clínico a partir de metade do século XIX – são enquadradas na escola com

fins correctivos. No interior destes espaços operam elementos disciplinares e

disciplinadores do sujeito. O treino direcciona-se no sentido de atingir uma

moralidade reguladora dos comportamentos de cada um, isto é, encaixa-se numa

perspectiva de governo de toda uma massa populacional que devia, apesar de tudo,

ser voluntariamente guiada. António Aurélio da Costa Ferreira expressava-o desta

forma:

“Viver é essencialmente adaptar-se”. “Educar é favorecer, conduzir

intencionalmente, metodicamente, esse ajustamento, essa adaptação”. O

indivíduo adaptava-se “por instinto, ou por hábito”. E mesmo “seres ineducáveis”

poderiam sofrer a influência positiva do educador, “colocando-os nos meios mais

conformes com os seus instintos, e pela forma mais conveniente à sociedade”

(1921: 384, 385).

O verdadeiro problema do educador seria tornar o real aceitável para o

educando, considerando a felicidade, o bem-estar como base de uma harmonia

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Questões teóricas e articulações práticas

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desejável, que se poderia entender como “adaptação completa dos desejos aos

poderes, e dos poderes aos meios” (Ferreira, 1921: 391). As relações disciplinares são

histórica e eticamente inseparáveis e ambas são pensadas em cada pormenor da

paisagem educativa. Na segunda parte desta escrita estas questões hão-de ter novos

desenvolvimentos. Para já, proponho que se visite a Casa Pia de Lisboa como uma

instituição próxima daquilo que o sociólogo Erving Goffman definiu como sendo

uma instituição total.

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A rotina dos dias num internato…

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A ROTINA DOS DIAS NUM INTERNATO: APRENDER A SER E A ESTAR

Refeitório da Casa Pia de Lisboa no claustro dos Jerónimos

Inícios do século XX

(Arquivo Fotográfico de Lisboa)

“As rotinas que os indivíduos seguem, à medida que os

seus caminhos de espaço-tempo se entrecruzam nos

contextos da vida quotidiana, constituem essa vida

como 'normal' e 'previsível'. A normalidade é gerida

com aturado pormenor no seio das texturas da

actividade social: isto aplica-se tanto ao corpo como à

articulação dos envolvimentos e projectos do

indivíduo” (Giddens, 1994: 113).

A Casa Pia de Lisboa, já o adiantei no capítulo referente à governamentalidade e

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Questões teóricas e articulações práticas

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poder, pode ser caracterizada como um tipo particular de instituição moderna,

nomeadamente, uma instituição total. Este é um ponto de partida essencial para a

leitura que a seguir se propõe. Decerto já se terá percebido que este capítulo antecede

a segunda parte desta tese e na verdade, sem ele tudo o que a seguir será dito, não

teria qualquer sentido. Passo a explicar: não fosse o carácter total da Casa Pia, a

identidade dos sujeitos aí produzidos, teria sido diferente. De resto, é como em tudo,

mudando as premissas o resultado é variável. Começarei por introduzir o conceito de

instituição total que, num ou noutro local deste texto, tem feito a sua aparição

pontual.

O sociólogo Erving Goffman no estudo Asylums, propõe o conceito de

instituição total, aplicando-o ao estudo de organizações formais com objectivos

sociais específicos que funcionam, simultaneamente, como núcleo residencial de

comunidades restritas. Estas comunidades são formadas por sujeitos que de alguma

forma se afastam daquilo que socialmente é inventado como norma.

Quando há pouco contextualizei o conceito de governamentalidade sugerido

por Michel Foucault, evidenciei o facto de o governo dos cidadãos estar imbricado

com tecnologias disciplinares e reguladoras da população. Ora, uma das formações

discursivas da modernidade, que visa o exercício de práticas disciplinares e

reguladoras, é a instituição social de acolhimento de crianças em risco, anormais,

órfãos, indigentes, delinquentes, etc. São vários os sistemas de carácter disciplinar

presentes na modernidade – a escola, as instituições correctivas para menores, a

prisão, o hospital para doentes mentais – sendo, necessariamente, a sua função

instrumental para garantir a ordem e o controlo da população. Estas são

essencialmente, instituições de regulação e controlo social.

De acordo com o autor de Vigiar e Punir, o nascimento da prisão é anterior à

definição dos novos códigos penais, pelo menos a presença no tecido social de uma

forma-prisão que se constitui como matriz das instituições disciplinares de carácter

total. Não são exclusivos da prisão os “processos para repartir os indivíduos”, para os

fixar e distribuir “espacialmente”. A mesma repartição, classificação e distribuição no

espaço está presente na escola, nas instituições de acolhimento de crianças, nos

hospitais para doentes mentais, constituindo-se um saber que permite tirar dos

habitantes destes espaços, “o máximo de tempo, e o máximo de forças, treinar seus

corpos, codificar seu comportamento contínuo” (Foucault, 2004:195). O isolamento

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A rotina dos dias num internato…

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dos detidos garantia a eficácia, com o grau de intensidade julgado apropriado a cada

caso, do poder exercido sobre cada um. Interessa-me clarificar que a construção do eu

do sujeito surdo estaria vinculada à experienciação a que esse sujeito era exposto.

Seria por intermédio das práticas educativas e das relações estabelecidas no espaço

escolar que o surdo se iria construindo numa relação consigo mesmo. A fixação a um

espaço, os regulamentos, os horários, os exercícios, enfim, a longa panóplia de

elementos discursivos da instituição disciplinar havia de se combinar de tal forma que

seria a imagem natural da vida diária do aluno surdo. Quando Foucault se refere à

prisão como local de aplicação de receituários de carácter disciplinar, situando-a

numa espécie de antepassado do modelo escolar de internato, fá-lo não de um ponto

de vista negativo, mas, pelo contrário, positivo. Os princípios aplicados nas celas

prisionais, como também os dos conventos e das escolas, obrigavam a princípios de

ordem e regularidade, um poder rigoroso sobre o corpo, localizando-o, afastando-o de

fontes de distracção desaconselháveis, implantando-lhe como prótese o gosto, a

vontade, o querer do próprio trabalho e disciplina. A forma-prisão referida por

Foucault pode trazer contaminações – que excedem o puro mecanismo jurídico-penal

– ao pensamento de instituição total desenvolvido por Goffman, tornando-se útil na

leitura que faço da Casa Pia enquanto instituição que acolhe seres que habitam as

franjas da sociedade. Se na Idade Média o monstro era a figura por excelência para

representar o Outro, a época moderna representa-o na figura do anormal. O anormal é

o estranho que coloca em causa toda a possibilidade de representação de um

completo e único mappa mundi. Se na Idade Média, o monstro era a figura

representada no exterior da urbe, o anormal é o monstro recuperado e inserido na

cidade, claro está, fazendo dele um interno de uma instituição total. O grande monstro

havia de se dissolver “num formigamento de anomalias” (Foucault, 2002: 205). Nesta

figura, joga-se em partida única, um duplo movimento: o anormal, vê-se encerrado

numa instituição pela desordem que poderia provocar no desenvolvimento

harmonioso do corpo social, – e é a medicina, a psicologia e a pedagogia que

patrocinam este encerramento –, e a normalização ou correcção a que é submetido,

evidencia o poder disciplinar e regulador da sociedade que se diz de cidadãos livres.

Proponho uma imagem: “O asilo é talvez sempre internamento e exclusão; mas agora

ele é, além disso, ingestão. Como se, às velhas leis tradicionais do hospital: ‘Tu não

mexerás, tu não gritarás’, se acrescentasse esta: ‘Tu engolirás’” (Foucault, 2002f:

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Questões teóricas e articulações práticas

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318). Mas esta é uma leitura muito restrita do que significa o posicionamento e a vida

no interior de uma instituição total. Neste engolimento, nesta absorção, o sujeito

transforma-se. Metamorfose que depende, como tenho vindo a afirmar, da

experienciação diária, do contacto com regras, com actores, do espaço reservado à

relação consigo mesmo.

As instituições de molde disciplinar desenvolvem técnicas de observação das

suas populações, mantendo-as “numa visibilidade sem lacuna”, de onde extraem um

corpo de saber que é registado e anotado em arquivos que expõem a interioridade dos

sujeitos a que se referem (Foucault, 2004: 195). Basta-nos recordar os processos

individuais dos alunos para convergir nesta ideia. Todavia, gostaria de oferecer aos

olhos de quem lê, algo que não pareça tão óbvio, mas cuja análise permita perceber o

carácter total de uma instituição. Para isso proponho a leitura do Capítulo I de um

Regulamento disciplinar da Casa Pia de Lisboa – já aqui citado – no entanto, agora,

relativamente aos Deveres dos Alunos:

“Artigo 1º – Os alunos devem regular o seu procedimento pelos ditames da

religião, da moral e da boa educação, observando os seguintes preceitos especiais:

1º respeitar os superiores;

2º cumprir sem hesitação todas as ordens e regulamentos que lhes digam respeito;

3º conviver bem com os colegas;

4º aplicar-se ao estudo com boa vontade;

5º ser atenciosos para com todas as pessoas;

6º ser pontuais em todas as suas obrigações;

7º ser cuidadosos no asseio e conservação dos objectos que lhes sejam dados para

seu uso;

8º apresentar à autoridade competente quaisquer escritos que pretendam enviar

para fora do estabelecimento;

9º não ter em seu poder dinheiro, objectos de ouro ou prata, relógios e outros que

a direcção entenda dever proibir;

10º não ter em seu poder manuscritos ou impressos sem que neles esteja

consignada a devida autorização;

11º não tomar parte em quaisquer jogos que a direcção entenda proibir;

12º não praticar quaisquer acções de onde possa resultar dano a pessoas ou a

coisas;

13º não dar a quaisquer objectos uso ou destino diferentes daqueles para que lhes

foram fornecidos” (Regulamento disciplinar de 1890: 3, 4).

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A regulação da vida do aluno, numa instituição total, faz parte do

planejamento levado a cabo por aqueles que têm a tarefa educativa a seu cargo. Na

leitura dos deveres dos alunos desenha-se de imediato uma imagem de uma escola

fechada, com funcionalidades ordenadoras, regulamentadoras e, sobretudo,

encaixadas como bunker na paisagem social. Há estabelecimento de fronteiras entre o

que é dentro e o que é fora, entre o que pode e não pode penetrar na arquitectura

institucional. Todavia, no interior da instituição, moldam-se indivíduos respeitadores,

com boa vontade, cumpridores das suas obrigações, dir-se-ia, regenerados para serem

regurgitados no tecido social. Um dos traços mais evidentes deste grupo de

instituições é o seu carácter híbrido porque, estando plantadas no mapa social, têm

uma tendência de fechamento ao exterior, marcando visivelmente o que está dentro e

o que está fora. A cesura entre o mundo interno da instituição e o mundo externo da

sociedade fundamenta-se na sua forma mais básica, no isolamento a que são sujeitos

os indivíduos institucionalizados.

A privação de liberdade constitui na modernidade uma pena por excelência,

na medida em que a liberdade é um dos sentimentos estruturais da construção do

cidadão. Avanço com a ideia, que não é nova, de que liberdade e disciplina formam

um par inseparável. Aliás, será aqui o momento de tornar claro que, apesar das

instituições de carácter total terem como matriz um princípio de enclausuramento, de

fechamento, de privação de liberdade, contudo, parece interessante verificar que

coexiste com este modelo a vontade de formar os sujeitos institucionalizados como

indivíduos autónomos e preparados para serem cidadãos. Por isso mesmo, a

ambivalência já aqui referida da minha tese. É que apesar de a criança surda ser

submetida a regimes disciplinares no sentido de ser corrigida a sua falha, a verdade é

que a correcção lhe é dada a compreender num quadro de acção prometedor de uma

inclusão. Ora, tal promessa justificaria a livre vontade de transformação. Não

gostaria, portanto, de considerar o enclausuramento e as prescrições próprias de uma

instituição total como simplesmente negativos. Esta visão desaproveitaria tudo aquilo

que Michel Foucault nos fez compreender na sua História da Sexualidade: “a

produtividade do poder disciplinar governamentalizado. O lado positivo do poder,

digamos. Aquele que submete, é certo, mas que também constitui” (Ó, 2003: 53).

Daí, evitar também, desperdiçar a ideia de que, de facto, foi por uma condição de

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Questões teóricas e articulações práticas

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isolamento, de enclausuramento, de imposição de regras disciplinares que se

formaram uns indivíduos e não outros. Partilho da ideia de Jonathan Crary quando diz

que “the ways in which we intently listen to, look at, or concentrate on anything have

a deeply historical character” (2001: 1). É por demais evidente a constituição de uma

identidade, a aquisição de um habitus através da experimentação. Convido a uma

leitura do outro lado do Regulamento de que há pouco falei. Diz assim no Capítulo

IV, relativo às Recompensas:

“Artº 29 – As recompensas concedidas aos alunos pelo seu bom comportamento,

aplicação e bom serviço de monitores, consistem na inscrição em quadros de

honra e prémios. Artº 30 – Os prémios são prendas escolares e medalhas, que

podem ser de cobre ou de prata. Artº 31 – Os prémios são conferidos anualmente

e têm por fundamento as classificações obtidas as lições durante o ano para o

prémio de aplicação. [...] Pode também ser adquirido nas aulas especiais de

desenho, ginástica e música”. [...] A inscrição nos quadros de honra e a aquisição

do prémio ou medalha, são sempre acompanhados de um certificado impresso,

designando a qualidade e motivo da recompensa” (Regulamento disciplinar de

1890: 17-19).

Parece evidente que as recompensas seriam alcançadas se houvesse um

cumprimento das normas disciplinares. Mas é certo que o núcleo das

regulamentações apelam, mais do que a um bom desempenho e brilhantes resultados

nos campos do saber, a uma relação que o sujeito passa a estabelecer consigo

enquanto sujeito de desejo, aprendendo a controlar os seus impulsos primários e a

saber-se situar na relação social. Mais autonomia do educando significaria,

precisamente, bom governo. Prémios e castigos pairariam como fantasmas na

paisagem educativa. Diria assim Faria de Vasconcelos:

“Num regímen de vida franca, livre, cordeal, aberta, o professor é um

companheiro mais velho, um amigo firme e inteligente, que compreende, que se

interessa pelo aluno, pela sua vida, pelas suas ocupações. No regímen da

autonomia escolar o professor apresenta-se ao aluno como um irmão com mais

experiência, que brinca, que ri, que trabalha com ele. A escola deixa de ser uma

prisão e o professor um polícia, um juiz. A liberdade, a confiança, a cordialidade,

fazem com que a influência do professor seja maior, os seus efeitos mais seguros

e os seus resultados mais felizes” (1925:360).

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Ao que o pedagogo se referia era a um regime de vida escolar de acordo com

o self-government. Não será aqui o local ideal para referir o self-government, todavia,

parece-me importante destacar algumas das ideias que constroem este regime.

Partindo-se de uma base de autonomia dos educandos, atingir-se-ia maior disciplina.

Faria de Vasconcelos deixava explícita a ideia de que ao aluno não agradava ser

“obrigado”, mas sim, ser “guiado” (1925: 356). Já deixei por esta escrita o rasto de

que o governo dos alunos seria tão mais eficaz e real quanto mais os pupilos se

sentissem guiar-se a si próprios. Obviamente que a figura do professor não se

eclipsava do horizonte educativo, aliás, a sua vigilância seria contínua. Antes de tudo

o mais, o self-government era “uma lição prática de educação cívica, a prática da

autonomia escolar seria “ o laboratório da classe de instrução cívica”. “Liberdade” e

“responsabilidade” do aluno sucediam-se como ingredientes indispensáveis neste

“método de disciplina”. Não era outro, afinal, o objectivo que intersticiamente

percorreria a lista de deveres ou de recompensas dos alunos, que não desenvolver “o

hábito da benevolência do self-control, do valor moral, da generosidade e clara

consciência do dever cívico” dos educandos (Vasconcelos, 1925: 356, 359).

Os habitantes de uma instituição total, criteriosamente seleccionados,

constituem uma comunidade, desenvolvem todas as suas vivências no mesmo espaço

físico. Numa instituição deste tipo, o sujeito come, dorme, aprende, brinca, trabalha,

descansa, cresce. É mantido sob um olhar permanente de especialistas e alvo da

constituição de um saber potenciador do exercício do poder. Logo, o poder exercido

permite não só a formação de um núcleo de conhecimentos e, os seus efeitos são

evidentes – porque provêm de um saber individualizado sobre cada um – como,

também, participa na construção de sujeitos dóceis e submissos. O tom de docilidade

e submissão se parece demasiado violento, na verdade, ocorre num mapa de liberdade

e responsabilidade individual, num espaço em que cada um é ensinado a conduzir da

melhor forma, a sua conduta. Não deveremos ler nos efeitos de dominação somente

uma “vontade única e central”. Tal concepção conduziria, como já atrás referi, a uma

impossibilidade de “apreender a contribuição própria que os agentes (incluindo os

dominados) dão, quer queiram quer não, quer saibam quer não, para o exercício da”

governamentalidade por meio das relações tácticas e estratégicas propostas

(Bourdieu, 1989: 86). A dupla poder/saber aparece como um conjunto tecnológico, –

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Questões teóricas e articulações práticas

142

um prolongando o outro –, que esboça e constrói os sujeitos a que aplica os seus

instrumentos. Como estufa para mudar pessoas, a Casa Pia, procura manter e aplicar

tratamento e técnicas individualizadas, ao desenvolvimento de cada criança que

acolhe, contando para o conseguimento desta tarefa, claro está, com um conjunto de

médicos e pedagogos. No seu seio, conseguiu reunir o substancial da cela prisional,

da oficina e do hospital.

As instituições totais são espaços correctivos – quer se trate da normalização

operada sobre o surdo, quer sobre a criança delinquente, sobre o preso ou sobre o

doente mental – e de observação por excelência. Como terei oportunidade de mostrar,

esta observação ocorre em dois sentidos. Por um lado, o mecanismo de vigilância a

que são submetidos os internos, por outro – resultante deste – o conhecimento

individual de cada um, do seu comportamento, das suas disposições e aptidões. Daqui

se deduz a formação de um corpus de saber sobre cada indivíduo institucionalizado,

ficando, portanto, aberto um caminho de intervenção personalizada: exercícios

graduados de acordo com as capacidades, aptidões de cada um e práticas de

intervenção que vão direitas à alma do internado, visando, é claro, a sua adesão

voluntária às regras, às tarefas, aos comportamentos, etc. Duas vozes, separadas por

mais de meio século e, eis o que diziam:

“O professor deve conhecer o seu discípulo, estudando-lhe o temperamento, o

génio, o carácter, e até os costumes adquiridos na vida doméstica”( Leite, 1881:

VII).

“Hoje o educador tem em vista uma realidade, porque entende que não deve

perder um só momento de contacto com a criança, seguindo-a em todas as

manifestações da vida, para que a conheça tal qual ela é, com o fim único de lhe

preparar o futuro de harmonia com as suas possibilidades e, sobretudo, em

condições de poder conseguir a natural adaptação ao meio em que deverá viver”

(Filipe, 1942: 22, 23).

Na relação com o mestre ouvinte e, com a comunidade de alunos internos da

Casa Pia também ouvintes, a criança surda, até pela minoria do grupo dos iguais a si,

aprendeu a orientar e a controlar os seus comportamentos de acordo com “as

diferentes coisas que” poderia “fazer ou não fazer enquanto” desempenhava “perante

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os outros o seu papel” (Goffman, 1993: 9). Pierre Bourdieu em o O poder

simbólico, adverte-nos para a situação de que nem a submissão deriva de imposições

imperativas, quer dizer soberanas, nem resulta, geralmente de uma submissão

consciente (1989: 86). A abordagem deste quadro conduz-nos à racionalidade

governativa e à arte de governar, constituintes da perspectiva de governamentalidade,

embora neste momento me permita questionar a própria concepção de identidade da

modernidade, como sendo algo relativamente diferente do que se passava numa época

clássica. Baumeister (1987) analisa historicamente o tipo de relações que o sujeito

estabelece com a sociedade e o modo como a identidade desde, pelo menos, o século

XI é considerada. É certo que o autor se serve essencialmente de fragmentos literários

na apresentação do self como uma problemática criada pelo indivíduo, mas a

perspectiva apresentada é de um aumento de intensidade nas relações do sujeito

consigo mesmo, resultantes da sua localização em redes estruturais em que o olhar

dos outros assume uma presença mais activa. Poderei agora apresentar as palavras

que se seguem ao pensamento antes enunciado de Bourdieu:

“A subordinação”, como uma “espécie de orquestração sem maestro, só se realiza

mediante a concordância que se instaura, como por fora e além dos agentes, entre

o que estes são e o que fazem, entre a sua ‘vocação’ subjectiva” e “a sua ‘missão’

objectiva (aquilo que deles se espera)”. “A história objectiva, institucionalizada,

só se torna ‘actuada’ e actuante se” o “’papel’ socialmente designado e

reconhecido, ‘assinar uma petição’, ‘participar numa manifestação’” (1989: 86,

87). E estar institucionalizado, na escola ou no internato, significava assumir um

papel e participar das regras, ainda que não fosse com resposta concordante. É, de

resto, este sentido de clausura que explica e dá sentido ao controlo do espaço, do

tempo, do corpo, da alma, à organização de currículos e tarefas dirigidas à

subjectividade dos alunos.

Tentarei sempre que possível proporcionar uma visão sobre a construção do

aluno surdo como a fabricação de um eu de um sujeito que não “pré-existe às formas

históricas criadas para a sua recognição social” (Ó, 2003: 103). Nikolas Rose propõe

uma genealogia da subjectivação como uma escrita de processos através dos quais o

sujeito foi sendo fabricado como sujeito de um certo tipo, isto é, uma análise das

práticas e das técnicas que lhe são aplicadas e que ele experiencia, o que não constitui

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em si uma narrativa histórica, mas antes uma busca por pontos que se inter-

relacionam e atingem o sujeito no seu imo, criando um dispositivo de regulação e

simultaneamente, “uma espécie de plano irreal de projecção” (2001: 34, 35). É na

viagem em direcção a este plano que o sujeito se confronta com uma relação consigo

mesmo – transformando-se no sujeito de desejo de que já falei noutro capítulo – e se

confronta também com que lhe é exterior, com os outros e com os olhares dos outros.

À exterioridade, justapõe-se, na modernidade e com prolongamentos até hoje que

tornam a ambivalência como sentimento de estranheza, a interioridade. Isto é, as

relações que o sujeito passa a estabelecer consigo mesmo como um eu. Ora, estas

relações são determinadas obviamente pelos esquemas de governo de que o indivíduo

tem sido objecto. A relação do sujeito consigo tem sofrido até à actualidade uma

intensificação que se explica por “toda uma variedade de esquemas mais ou menos

racionalizados, os quais têm moldado as nossas formas de compreender e viver a

nossa existência como seres humanos em nome de certos objectivos – masculinidade,

feminilidade, honra, reserva, boa conduta”, etc. (Rose, 2001: 35, 36). Parece-me

evidente que no caso do aluno e no caso da escola, estes processos e estes esquemas

acontecem e é imprescindível que aconteçam para que, precisamente a racionalidade

governativa adquira o seu sentido. A posição ocupada pelo aluno surdo no interior da

instituição educativa, permite-nos olhá-lo como um sujeito que é atravessado por

práticas, por exercícios, por técnicas que projectam uma imagem ideal, quer dizer,

produzem um sentido. Este sentido, longe de ser produzido pela experiência é, ele

mesmo o produtor de experiência. Para que este sentido exista, ele é inventado e

reinventado na própria arte de governar os sujeitos. Logo, a genealogia da

subjectivação é prática e técnica.

Viver em internato significava uma regulação da vida privada, habitar um

espaço de permanente controlo e avaliação de qualquer actividade ou comportamento.

A clausura de uma instituição total como a Casa Pia de Lisboa, contrastava

fortemente com a ausência de espaços privados, ligando-se, então, duas entidades, a

escola e a casa, numa arquitectura única, no interior da qual o aluno estudava,

brincava, dormia, alimentava-se, vestia-se, adoecia e curava-se, em espaços comuns à

comunidade dos hóspedes daquela escola-habitação. A possibilidade de uma

vigilância non-stop sobre qualquer acção que o aluno realizasse, transformava o

observador, fosse ele o professor, o funcionário ou o companheiro, mesmo na sua

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ausência, em figura omnipresente de controlo. Estabelecia-se, portanto, um

meticuloso poder de observação, operante até quando nada nem ninguém estava de

vigia.

Pensarmos no ensino dos surdos na Casa Pia, equivale, necessariamente, a

considerar a vida diária destes alunos no interior de um mesmo local, um singular em

que se ia à escola, estando-se em casa. Goffman descreve um dos aspectos das

instituições totais “com a ruptura das barreiras que comummente separam essas três

esferas da vida”, quer dizer, a esfera privada, social e de actividade.

“Em primeiro lugar”, diz o autor, “todos os aspectos da vida são realizados no

mesmo local e sob uma única autoridade. Em segundo lugar, cada fase da

actividade diária do participante é realizada na companhia imediata de um grupo

relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e

obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto. Em terceiro lugar, todas as

actividades diárias são rigorosamente estabelecidas em horários, pois uma

actividade leva, em tempo predeterminado, à seguinte, e toda a sequência de

actividades é imposta de cima, por um sistema de regras formais explícitas e um

grupo de funcionários. Finalmente, as várias actividades obrigatórias são reunidas

num plano racional único, supostamente planejado para atender aos objectivos

oficiais da instituição” (Goffman, 1961: 17, 18).

A vida quotidiana do surdo na instituição encontrava-se rodeada por um

conjunto de práticas médicas e escolares que, reservavam para o surdo a imagem de

aluno com patologia, em processo de reabilitação. O surdo institucionalizado

aprendeu a representar-se a partir do ângulo do professor ou da instituição, desejando

para si aquilo que a instituição determinava que devia exactamente desejar. O surdo

foi ensinado a olhar-se e a narrar-se como um sujeito marcado pela falta, tendo vivido

uma história de submissão ao normal ouvinte. Esta submissão, adquiria um formato

próximo de uma obrigação moral, necessitando de um cenário educativo de tipo

pastoral – no qual o professor ocupava o lugar do padre na orientação da conduta –, e

o aluno melhorava as suas capacidades individuais. Foi, portanto, participando na

construção de uma imagem de surdo e de surdez, como uma condição e um estado

dos quais, não se podendo libertar, podia, pelo menos disfarçar. Passou, claro está, a

disciplinar-se no cumprimento de uma conduta moral que, mais do que por

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Questões teóricas e articulações práticas

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interdições, seria marcada pela relação que o surdo ia estabelecendo consigo próprio.

O anormal, servindo sempre de objecto métrico da normalidade, tinha, no normal, o

equilíbrio a atingir e foi essa visão, quase miragem, que determinou, no caso do aluno

surdo, a sua viagem de transformação de um estado para um outro estado.

“Mais ainda, espera-se de um modo geral que cada um dos participantes suprima

os seus sentimentos imediatamente vividos, transmitindo em vez deles uma

imagem da situação que sinta que os outros poderão pelo menos temporariamente

considerar aceitável. A conservação deste acordo de superfície, desta aparência de

consenso, é promovida pelo facto de cada um dos participantes dissimular as suas

próprias exigências por trás de declarações que afirmam valores aos quais todos

os presentes se sentem obrigados a dar uma adesão verbal”. Numa perspectiva

temporal, os comportamentos adoptados, colar-se-iam de tal forma ao aluno que,

o comprometeriam “com o que ele” estava “a propor ser” e exigiriam “dele que”

pusesse “de lado todas as sua pretensões de ser outras coisas” (Goffman, 1993:

20, 21).

Para ilustrar o quanto uma instituição de carácter total, – embora adquira

contornos diferenciados, tratando-se de uma escola, de um internato, de uma prisão

ou de um convento –, tem como princípio transformar os actores nela encerrados,

trarei até este texto parte de uma proposta para a organização do espaço e do tempo

numa prisão:

“Calmer les passions par des occupations prédominantes, par des travaux rudes

qui exigent une grande dépense de force, mais prescrits cependant avec mesure,

tel serait le palliatif au mal qui vient d’être signalé comme une conséquence de la

grossièreté et de la brutalité de la plupart des détenus: de cette brutalité qui reçoit

une nouvelle excitation par la vie sédentaire, condition rigoureuse de l’état de

détention.

Le régime à substituer à la police pratiquée dans l’intérieur des prisons,

nécessiterait de grands changements au système de distribution dês bâtiments”

(Baltard, 1829: 5, 6).

Foi sem dúvida o trabalho, prescrito adequadamente que se transformou numa

das grandes técnicas de regeneração das instituições totais. As actividades escolares,

os diferentes exercícios de educação sensorial, organizavam-se no sentido de obterem

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A rotina dos dias num internato…

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do aluno uma eficácia máxima num esforço que este deveria sentir como mínimo.

Quer dizer, a criança surda, desde cedo, deveria sentir que o caminho do progresso,

aquele que lhe traria felicidade, reconhecimento e integração, seria o da aquisição da

língua oral. Habituada, portanto, a estar ao cuidado dos outros, médicos e professores,

fragilizada por uma examinação constante, que permitia, aliás, aos experts que com

ela lidavam adequarem as técnicas ao caso, a criança surda encontrava-se num estado

de docilidade e submissão, aprendendo a representar diariamente, cada vez melhor e

de forma mais convicta, o papel que lhe foi destinado. Contrariamente ao que se

poderia pensar, o selvagem havia-se tornado educando.

O essencial do governo, volto a repeti-lo, é mais a forma de dispor as coisas

de modo a conduzi-las a um objectivo adequado, do que impor uma lei

indiscriminadamente sobre os diversos objectos ou sujeitos a governar. Neste sentido,

pode-se considerar a institucionalização de um sujeito num organismo formal de

carácter total, como uma táctica, que a um só tempo, aplica sobre um indivíduo uma

ortopedia correctiva e rentabiliza, no corpo populacional, o conceito de norma.

Se olharmos o modo como os jornais de início de século falavam sobre os

alunos surdos da Casa Pia, deparamos com uma imagem daquilo de que o aluno

surdo seria capaz de fazer se submetido a um controlo e disciplina da instituição. A

viragem nos comportamentos e acções, seriam julgadas como positivas para a criança

surda que, participava já do mundo cultural ouvinte. Imagino poder avançar para a

segunda parte desta escrita, mas não sem antes deixar uma imagem do que poderia

representar a situação de o aluno surdo, efectivamente, adquirir a língua oral dos

ouvintes. A minha ideia é que a situação de estranheza e de inquietude que o Outro

transmite, e que conduziu à sua apropriação e apagamento, nem neste movimento de

normalização se extingue. O aluno surdo, seria sempre o aluno deficiente para os

ouvintes, por muito bem que desempenhasse o papel que lhe atribuíram. Relatava

assim, um jornal de 1917, acerca do exame de uma aluna surda da Casa Pia de

Lisboa:

“Uma pequena surda-muda, Iria das Neves, que foi educada na Secção da Casa

Pia de Lisboa” era “a primeira aluna surda da instituição a ser submetida a exame

do 1º grau”. Aquando da sua entrada para a Casa Pia, não lhe passava, com

certeza, “pela ideia que” poderia “vir a exprimir os seus pensamentos como

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Questões teóricas e articulações práticas

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qualquer outra pessoa”. No dia do exame, porém, encontrava-se “desmutizada,

graças ao processo de ensino seguido pelo método oral”. Constava a prova “de

leitura em voz alta e explicação do trecho lido, resolução de vários problemas

sobre sistema métrico e ditado feito no quadro preto, lendo a criança nos lábios

da examinadora as palavras ditas”. Já se vê que o resultado do exame “foi

brilhantíssimo” (Anuário, 1917-1918: 303, 304).

O público observava atentamente a prova – um sentido de admiração – por

estes que, estavam a viver “tecnicamente um exílio”, utilizando a língua “no lugar”

[ouvinte], mas não sendo “do lugar”(Bauman, 2001:236). A fronteira não desaparece,

ela foi marcada antes mesmo de haver qualquer espécie de estranhamento do outro;

“elas são traçadas, como regra, antes que o estranhamento seja produzido”: há um

“‘nós’” [ouvintes] e um “‘eles’” [surdos], “então os traços cuidadosamente espiados

‘neles’ são tomados como prova e fonte de uma estranheza que não admite

conciliação” (Bauman, 2001: 202, 203). Nem tem, talvez, que admitir. Cada

identidade é construída – e este é o fio que nos conduzirá à segunda parte desta

escrita.

(Coguillot, 1889)

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II PARTE

“ANULAÇÃO. Sopro de linguagem durante o qual o

sujeito acaba por anular o objecto amado sob o volume do

próprio amor: por uma perversão especificamente

apaixonada, é o amor que o sujeito ama, não o objecto”

(Barthes, s/d: 40).

“COMPAIXÃO. O sujeito experimenta um sentimento de

violenta compaixão perante o objecto amado, sempre que

o vê, o sente ou o sabe infeliz ou ameaçado, por esta ou

por aquela razão, exterior à própria relação de amor”

(Barthes, s/d: 80).

“Dá-se então a reviravolta: pois se o outro sofre sem mim,

porquê sofrer em vez dele? A sua infelicidade arrasta-o

para longe de mim, apenas posso cansar-me a correr atrás

dele, sem esperança de alguma vez o alcançar, de coincidir

com ele” (Barthes, s/d: 81).

CONDUTA. Figura deliberativa: ao sujeito apaixonado

surgem problemas angustiosos [...] de conduta: perante tal

alternativa, que fazer? Como agir?” (Barthes, s/d: 85).

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Abre-se aqui a segunda parte desta

tese. Ao leitor ou à leitora

proponho que continuem esta

viagem que terá agora como

cenários, paisagens mais interiores

da experienciação surda na Casa Pia de Lisboa. O primeiro título que marca esta

segunda parte da escrita é A escola como oficina das almas. Passo a explicá-lo: parto

da ideia de que a educação das crianças surdas, enquadrada na perspectiva da

governamentalidade exposta na primeira parte, se direcciona com grande intensidade

para o governo do aluno a partir de uma administração da sua alma. Ao longo do

texto tenho vindo a falar acerca da autonomia, responsabilidade, tecnologias

disciplinares, biopolíticas e do eu, estas últimas intimamente implicadas com a

questão da subjectivação do aluno surdo. Uma das ideias que deixei esboçada atrás

foi a de que as tecnologias aplicadas na educação destas crianças, derivadas de uma

relação de saber/poder, assumem um carácter cada vez menos coercivo, uma espécie,

adianto-o agora de “mão de ferro numa luva de veludo” (Planchard, 1982:131). É

fundamental a ideia de que o poder só se exerce sobre sujeitos livres e apenas

enquanto estes permanecem livres para obedecer passivamente ou para resistir. A

inclusão da criança surda na paisagem educativa significou, desde o início, o resgate

deste grupo para uma área discursiva onde, para lá da preocupação moral, a

preocupação do sujeito ético passou a constituir a grande problemática. Quando

Michel Foucault nos ensina a produtividade que as tecnologias disciplinares alcançam

em articulação com as artes da existência, percebemos que a construção da identidade

de cada sujeito adquire uma interessante complexidade que ultrapassa em muito os

simples sistemas punitivos. A problematização do sujeito por ele próprio tem que ver

com regras de conduta de domínio ético e com práticas que visam a transformação do

seu ser na tentativa de integrar e fazer da sua vida uma resposta positiva a essas

regras. Como nos foi possível verificar, a ética apenas adquire inteligibilidade no

domínio da prática. O aluno surdo, tal como o aluno normal, deveria ser ele próprio

autor da sua construção e, uma genealogia da subjectivação do sujeito mostra-nos que

a questão da identidade se prende cada vez mais com a relação que o sujeito

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estabelece consigo mesmo. Todavia, o governo do aluno surdo exigia um saber

especializado sobre este grupo de escolares, inventando, reinventando e

aperfeiçoando a cada momento uma arte de governar. Ao recuar à cultura grega e

greco-latina para procurar a forma através da qual os sujeitos se relacionaram consigo

mesmo através dos jogos de verdade circulantes, Foucault abre-nos um palco de uma

constituição do sujeito, historicamente construído como experiência. Como o homem

se reconheceu como “podendo e devendo ser pensado”. No momento em que

“pensávamos ter adquirido distância”, “encontramo-nos na vertical de nós próprios”:

“a viagem rejuvenesce as coisas e envelhece a relação consigo” (Foucault, 1994b:

15,17). Ora, a escola pelo menos desde o século XIX descobriu que a prescrição de

regras de conduta deveria ir mais além de sistemas de injunção moral e fixar-se nos

próprios sujeitos, estudando atentamente a forma de os atingir no âmago da sua alma.

Poderíamos, evidentemente, recuar a Coménio para verificar que “o método de

ensinar deveria ser a arte de plantar nos espíritos” (1966: 206). Ainda em pleno

século XVII, escrevia na sua Didáctica Magna que “os súbditos devem ser

esclarecidos para que saibam obedecer prudentemente àqueles que governam

sabiamente: não coagidamente, com uma sujeição asinina, mas voluntariamente, por

amor da ordem. Com efeito, a criatura racional não deve ser conduzida por meio de

gritos, de prisões e de bastonadas, mas pela razão” (Coménio, 1966: 124, 125).

Ao analisarmos atentamente os Regulamentos da Casa Pia, verificamos que a

disciplina é fabricada no corpo do aluno como manifestação exterior de uma vontade

interior à qual o corpo voluntariamente se submete. Se podemos compreender este

quadro através das práticas militares profundamente exploradas na instituição, ou

através de práticas artísticas ou ainda do desenho que se assumiam como disciplina

do olhar, domínio total da capacidade de representar, é num mesmo fio condutor que

o ensino das crianças surdas surge como um forte disciplinamento do corpo, do que

de potencialmente continha de não racional, para o introduzir num nível de

obediência voluntária. Voltando novamente a Coménio e à sua ideia de que a

condição do homem seria semelhante à da árvore, vale a pena determo-nos num outro

fragmento da sua escrita:

“Efectivamente, da mesma maneira que uma árvore de fruto [...] pode crescer por

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si e por sua própria virtude, mas, sendo brava, produz frutos bravos, e para dar

frutos bons e doces tem necessariamente que ser plantada, regada e podada por

um agricultor perito, assim também o homem, por virtude própria, cresce com

feições humanas [...] mas não pode crescer animal racional, sábio, honesto e

piedoso, se primeiramente nele se não plantam os gérmens da sabedoria, da

honestidade e da piedade. Agora importa demonstrar que esta plantação deve ser

feita enquanto as plantas são novas” (Coménio, 1966: 127).

Ora, o sujeito a educar seria a criança, o mais cedo possível, atendendo-se no

entanto ao seu estado de desenvolvimento. “O sujeito da educação passa por

sucessivos e característicos estádios de desenvolvimento fisiológico, estético, mental

e social, que se manifestam pelos interesses e necessidades próprios e dominadores

em cada um deles, - podemos concluir que devem adoptar-se processos especiais de

ensino e de educação de harmonia com a fisiologia e o psiquismo do sujeito” (Lima,

1932: 10). O que vem de encontro à tese de Rousseau de que “a criança nunca tenha

de fazer nada por obrigação: não há nada que seja bem para ela, a não ser as coisas

que ela sente que o são” (1990: 191). O aluno surdo desejaria a língua oral, desejaria

pelo menos participar no processo de normalização, que lhe era mostrado como o de

uma possível integração e utilidade social. Logo que o pupilo conseguisse assimilar o

significado da “palavra útil”, ficaria o mestre “com mais uma rédea para o governar”

(Rousseau, 1990: 192).

A atenção vai sendo progressivamente voltada para a subjectividade dos

alunos e, por isso, no caso das crianças surdas, mas igualmente numa população

escolar normal, as actividades que apelam à interioridade do educando, à sua

expressão livre e completa, se afirmam com a importância própria de tecnologias que

agem positivamente no governo e no autogoverno dos alunos.

Começarei o primeiro capítulo por mostrar a estrita necessidade de educar as

crianças surdas, através de discursos produzidos por diversos actores. Inicialmente

mostrarei, contudo, de que forma a educação de crianças ditas anormais se enquadra

no sistema de uma escolaridade obrigatória. De seguida, passarei ao momento de

admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa e aqui, deter-me-ei mais

pormenorizadamente na questão da observação da surdez. No primeiro capítulo desta

escrita, procurei mostrar que a surdez só foi tornada anormalidade porque se fez

objecto. Por meio de enunciações, práticas discursivas e não discursivas. Foi colada

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como patologia ao corpo e à identidade dos surdos. Será agora o momento de

prolongar o que foi dito, tendo como eixos orientadores a observação clínica e o

exame como condições essenciais de legitimação da anormalidade e das acções

terapêuticas em espaço escolar. Chamo à memória o caso de Charles Jouy aqui

contado, apenas para relembrar que o poder médico sobre o corpo se legitima na

inscrição da doença no corpo e na alma, na multiplicação de um saber e, na

consideração da conduta e do passado do sujeito como um estado, para o qual se irá

propor uma intervenção. Duas tópicas essenciais serão aqui desenvolvidas, após o

capítulo relativo à presença histórica das crianças surdas na Casa Pia de Lisboa. A

primeira tem que ver com os processos de admissão na instituição, colocando

enfoque nas práticas de exame, de registo e de observação dos escolares, e a segunda,

com as regras da casa, detendo-me especialmente na experiência do aluno nos

tempos de adaptação institucional. De seguida, avançaremos novamente para a

questão do poder, prolongando agora este conceito numa articulação com um

elemento que lhe é indissociável, a resistência.

Esta tese termina com dois grandes capítulos, ambos associados ao conceito

de currículo como sendo um dispositivo complexo que incorpora narrativas

particulares sobre os modelos de sujeitos que alunos e professores deverão ser. Mas

se o currículo é um campo de relações de poder, a verdade é que o saber é o outro

lado do poder e, unem-se aqui à questão da subjectivação do aluno. Não se defende

aqui uma ideia de currículo como narrativa discursiva de dominação dos escolares, na

medida em que o currículo “não está envolvido num processo de transmissão ou de

revelação, mas num processo de constituição e de posicionamento: de constituição do

indivíduo como um sujeito de um determinado tipo e de seu múltiplo posicionamento

no interior das diversas divisões sociais” (Silva, 1995: 195). Em suma, tudo o que

acontece no interior da paisagem educativa inscreve-se no currículo. É, então, dentro

desta moldura que considerarei as diversas aprendizagens propostas ao aluno surdo e

é também aqui que considerarei a construção da identidade do aluno surdo num

quadro de acção: ele próprio se faz sujeito na experienciação das relações em que está

envolvido. O currículo é, igualmente, uma forma de representação. Recordo o que se

disse no primeiro capítulo da primeira parte em torno da formação dos objectos, isto

é, da sua representação. Verificou-se que são as enunciações discursivas provenientes

de vozes consideradas legitimadoras que conferem aos objectos de que falam uma

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existência real e verdadeira. Logo, os enunciados veiculados no interior dos

currículos, não pré-existem ao momento discursivo que lhes possibilita a inscrição em

regimes de verdade o que, de imediato, nos fará procurar as relações de poder e o

modo como estas incitam à produtividade dos sujeitos na sua própria produção

enquanto indivíduos de um determinado tipo.

Procurarei mostrar que a aprendizagem da língua oral passava pela utilização

de técnicas disciplinares e disciplinadoras: o corpo do aluno participava de exercícios

minuciosamente prescritos e empenhava-se no alcance dos detalhes. Mas se estas

eram claramente técnicas disciplinares, a verdade é que se afirmam intensamente não

pela coerção, mas pela persuasão. Além disso, são técnicas individualizadas, que se

dizem atender a cada criança na sua singularidade. É minha intenção desmontar os

discursos e perceber que efeitos de poder resultariam dessas montagens discursivas.

Visitaremos também, com alguma demora, as actividades de carácter manual e

artístico que completavam o elenco de disciplinas do aluno surdo, bem como as

actividades de natureza sensorial e táctil, os exercícios físicos e de respiração. No

fundo, será minha intenção considerar o currículo dos alunos surdos na Casa Pia de

Lisboa como um dispositivo complexo sempre inacabado, uma rede discursiva em

que operam o poder, o saber e a subjectividade. Para tal, terei de considerar por um

lado, o fechamento de cada área num conceito de disciplina, por outro, a verificação

de regularidades discursivas que atravessam os vários campos e que convergem para

a construção da identidade do aluno.

Sempre que possível será minha intenção trazer à superfície a imagem do

aluno surdo no relacionamento que lhe é proposto com o tempo e com o espaço, os

movimentos, os gestos, a modelação do seu corpo, regulado e auto-regulado e,

forçosamente, a moldagem também, da sua alma.

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A escola para todos

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OLHAR A PAISAGEM EDUCATIVA: A ESCOLA COMO OFICINA DAS ALMAS

1.1. A ESCOLA PARA TODOS

“ Afinal, o Estado-nação deveu seu sucesso à supressão

de comunidades que se auto-afirmavam. [...] Quanto

mais determinada a kulturkampfe iniciada e

supervisionada pelo Estado, maior o sucesso do

Estado-nação na produção de uma 'comunidade

natural'. [...] Seu esforço tinha o poderoso apoio da

imposição legal da língua oficial, de currículos

escolares e de um sistema legal unificado” (Bauman,

2001: 199).

“Magistério primário, sabeis qual seja a vossa missão?

É receber da família um depósito sagrado; exerceis um

sacerdócio; sois a primeira instituição social. Sois o

doutrinador, a pretexto de cada sucesso dentro ou fora

da escola, dos preceitos que purificam a alma. O

coração da criança é como a cera; imprimir-lhe os

verdadeiros princípios de maneira que lhes fiquem

indeléveis, eis o vosso encargo” (Costa, 1870: 33, 34).

Pelo que tenho vindo a mostrar, decerto se aceitará que mais do que quem governa

quem, é importante perceber as tácticas e técnicas de governo em cada relação – e são

múltiplas – em que se identifica a presença de poder. Importa também lembrar que a

invenção de uma série de técnicas encontra-se sempre ligada à ideia de agir sobre os

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A escola como oficina das almas

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sujeitos sem romper com a ideia de autonomia, isto é, o princípio ideal seria de um

efeito anestesiante, governar sem que os governados se sentissem governados. Neste

capítulo proponho uma agenda mais pormenorizada sobre os princípios governativos

implicados na missão de educar todas as crianças e, de forma específica, de uma

educação para aquelas que eram representadas como anormais, ainda que, em

Portugal, seja necessário ultrapassarmos o século XIX para obtermos uma maior

regularidade discursiva tomando-as como objecto. Este primeiro momento é anterior

àquele em que se falará, especificamente, da educação das crianças surdas desde

1823, num contexto ligado à Casa Pia de Lisboa. Um ponto que importa tornar

explícito, é o da leitura e compreensão da escola enquanto pedra preciosa de um

Estado que então se torna governamentalizado. Diz assim António Nóvoa:

“Ao longo do século XIX, em paralelo com a emergência de novos modos de

governo e a afirmação dos Estados-nação, a escola transforma-se num elemento

central do processo de homogeneização cultural e de invenção de uma cidadania

nacional” (1995: 26, 27).

Nasce um modelo escolar que se transforma num projecto de toda a

sociedade. Julia Varela e Alvarez-Uria definem cinco condições sociais,

possibilitadoras da invenção da escola e da sua naturalização como espaço de toda a

população infantil, recuperando-se e instrumentalizando-se uma série de dispositivos

que emergiram e se configuraram, na opinião dos autores, já no século XVI. A

importância de detecção na história de princípios que parecem ter-se prolongado no

tempo não se funda no carácter “magistral y pedagógico” que um olhar sobre o

passado poderia fazer prever, mas antes, através do “método genealógico”

Foucaultiano “abordar el pasado desde una perspectiva que nos ayude a descifrar el

presente” (1991:14,15). No sentido de compreender a escola e aquilo que se tem

mantido de um modelo escolar, apesar das inúmeras reformas que nela se têm tentado

empreender. Não se trata de buscar a origem dos objectos, mas somente compreender

a sua proveniência, as suas presenças, ausências ou mutações ao longo de um arco

temporal alargado.

Uma das condições de aparição de uma instância que articulando-se com a

ficção do Estado-nação, possibilitou uma ideia de escola que passará a ser para todos,

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A escola para todos

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associa-se à definição de um novo estatuto da infância. Nos últimos anos do século

XIX e mais profundamente na transição para o século XX, a criança é feita objecto de

observação empírica e experimental, sendo rodeada por escalas métricas,

quantitativas, quadruplamente observada nos seus planos biológico, fisiológico,

psicológico e mental. E no entanto, é este esmiuçamento do seu ser físico e psíquico

que lhe garante uma singularidade nova. A segunda condição apontada por Varela e

Alvarez prende-se com a invenção de uma necessidade. O florescimento de uma nova

forma de ser criança e de um novo tipo social infantil, exigia uma arquitectura

própria, – a escola –, todavia, organizada administrativamente, instância

simultaneamente controladora e controlada. O espaço escolar converte-se num

dispositivo disciplinar, desde a sua organização propriamente arquitectónica, à

organização das suas populações em classes, aos imperativos de composições

temporais, aos objectos e relações que abriga, habitado não só por crianças, mas, – e é

esta a terceira condição que os autores assinalam –, por um corpo de especialistas que

fala cientificamente sobre a criança, agora em contexto de aprendizagem, adquirindo

in visu a legitimidade bastante que lhe permite classificar e agir sobre este grupo

infanto-juvenil. Todavia, a sobrevivência de um modelo escolar desenvolvido desde o

século XIX, – tão semelhante ao actual –, implicou a destruição de outros modos de

educação. Os três pontos anteriores mantêm uma estreita relação com este, uma vez

que a criança deixa de ser considerada um adulto em ponto pequeno, para adquirir um

“especial 'status da infância'”. A personagem infantil passa a ser concebida como um

sujeito que precisa de ser separado de um crescimento osmótico com os adultos. É

representada como “um ser frágil, que requer estreita e constante vigilância e

interferência; um ser inocente mas que, pela própria razão de sua inocência, vivia sob

uma constante ameaça de ser 'estragada', incapaz de evitar e combater os perigos por

sua conta” (Bauman, 1998: 177, 178). A orientação e o controlo por parte do adulto

aconteceriam no espaço escolar.

As ideias sugeridas por Varela e Alvarez-Uria alimentam-se mutuamente uma

vez que será pela criação de espaços escolares onde as crianças deveriam ser

introduzidas, que a ideia de aí as incluir vai ganhando força e se vai legitimando pela

constituição de um saber psicobiológico da infância. A ciência pedagógica alimentar-

se-ia numa progressiva extracção de saber a partir da própria criança em ambiente

escolar, graduando-se de forma progressiva e assumindo uma complexidade

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crescente. O modelo de internato adoptado na Casa Pia de Lisboa, vindo já dos

colégios jesuítas vai, a partir do século XVIII, aperfeiçoar as suas práticas, passando a

graduar os seus habitantes por idades e por uma maior individualização. Já aqui

referi, na primeira parte, pelas palavras do Provedor da Casa Pia Simões Raposo, a

matriz de distribuição dos alunos, a graduação das matérias e exercícios escolares, as

pedagogias centradas no aluno e, de facto, nesta casa da educação o processo de

individualização de cada aluno começava a caminhar paralelamente a uma fórmula de

produção de discurso que “facilitasse o conhecer em qualquer momento”, “o estado

de adiantamento em que qualquer aluno se achasse”, “bem como o seu procedimento

ou esperanças quer literárias quer especiais que as suas tendências indicassem”

(Raposo, 1869: 15). O quinto elemento sugerido por Varela e Alvarez-Uria tem que

ver com a institucionalização propriamente dita da escola: a imposição da

obrigatoriedade escolar decretada pelos poderes públicos e sancionada, quando não

fosse cumprida, pela lei.

Aquilo que os dois investigadores citados consideram como emergência de

um dispositivo institucional, arquitectonicamente, um espaço fechado, encaixa-se

com a tese de Philippe Ariès de encerramento das crianças, que serviria nem mais

nem menos do que para o governo deste grupo, antes inexistente em termos de um

discurso de governamentalidade. Diz assim o autor:

“A escola substituiu o aprendizado como meio de educação. Quer isto dizer que a

criança deixou de se misturar com os adultos e de aprender a viver no contacto

directo com eles. [...] A criança foi separada dos adultos, e isolada numa espécie

de quarentena antes de ser lançada no mundo. Essa quarentena é a escola, o

colégio. Inicia-se então um longo processo de encerramento das crianças (como

dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que não deixará de se alargar até aos

nossos dias e que se chama escolarização” (Ariès, 1988: 12).

Em Portugal deveriam ir à escola – por obrigação legal – todos os que

tivessem uma idade compreendida entre os “ seis anos até doze anos”, “de um e outro

sexo” desde que não houvesse qualquer impedimento justificativo da sua ausência.

Justificações válidas eram apenas aquelas que a lei consagrava, isto é, não estaria

obrigada à frequência escolar toda a criança que recebesse instrução “ na própria

casa, ou em escola particular”, sustentada claro está pelos pais ou tutores, aquelas

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crianças que residissem “a mais de 2 quilómetros de distância de alguma escola

gratuita, pública ou particular, permanente ou temporária”, e para além daquelas

situações de” extrema pobreza”, estariam dispensados de frequência escolar todos os

“ filhos ou pupilos” que fossem “declarados incapazes de receber o ensino em três

exames sucessivos perante os júris” (Carta de lei de 2 de Maio de 1878). Já a

Reforma de 1894 apresenta alterações quanto às tipologias de crianças que deveriam

obrigatoriamente passar pelos bancos da escola:

“Por um lado, a escolaridade primária contempla determinadas populações, até aí

excluídas, por intermédio das instituições que as albergam. Assim, formalmente,

decreta-se que “Art. 12º - Haverá escolas ou cursos destinados ao ensino de cegos

e de surdos-mudos” e também, revelando a respectiva inclusão na esfera da

instrução pública” (Correia, 2005: 194).

Abria-se definitivamente caminho para a inclusão de populações em risco ou

em perigo moral, e é, aliás, neste grupo que se poderá situar uma certa genealogia do

que viria a ser a futura escola de massas. Ao abrir as portas aos anormais, a escola

abria as portas a todas as espécies de crianças. A infância delinquente e anormal, os

retardados escolares passam a incorporar novas composições discursivas, passando a

ser possível ordená-los estatisticamente. Do que se fala aqui é, evidentemente, de

uma tecnologia biopolítica, de um corpo populacional exposto a olhares e a gestos. A

escola surgia como o terreno favorável para iniciar o governo de todos os indivíduos

e da sociedade. A educação deveria ser para todos. José Simões Raposo apresentava

em 1869 um Relatório das aulas à Administração da Casa Pia assente no princípio de

“dar educação ao maior número e dá-la pura e sem joio” (1869: 7). “É verdade”,

lembra-nos Perrenoud, “ que estes objectivos são muitas vezes formulados em termos

idealistas” e, quase nunca se diz “que se trata de adaptar o indivíduo à sociedade”.

Não era o caso dos discursos do século XIX e inícios do século XX, aí, “ não se

receava” “afirmar que a escola devia formar bons cidadãos, bons patriotas, bons

trabalhadores e até mesmo bons crentes. O indivíduo” estaria, claramente, “ao serviço

da nação” (1995: 55). Ainda que se tratasse de educar uma criança anormal, ensiná-la

“a vestir-se e a comer, a varrer, a limpar metais, a fazer um recado simples que seja”,

seria torná-la “menor encargo para quantos” a rodeassem, torná-la “um valor ainda

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que diminuto”. Colocando de lado, “por um momento, o interesse pedagógico do

problema”, “o princípio da educação dos anormais deve não ser estabelecido

unicamente como princípio humanitário, mas ainda como meio de defesa para a

sociedade”. Um outro ponto de interesse desenvolvia-se em torno do “estudo dos

métodos e processos” que a relação estabelecida com estas crianças num contexto

escolar possibilitava. Não é novidade que “é às classes especiais, à educação dos

anormais que se devem os modernos processos, as modernas normas educativas”

(Ferreira, 1930a: 7-9). A população escolar converteu-se num conjunto de habitantes

de um mesmo espaço, contabilizados, examinados, vigiados, comparados,

classificados. A possibilidade de agir sobre os corpos desregulados só acontece se

houver técnicas de busca destes corpos e de medição das suas anormalidades,

aplicando-se então uma terapêutica inibidora de um desenvolvimento indisciplinado e

aleatório.

É evidente que será necessário referir o papel do Estado na captura destes

seres habitando as franjas da sociedade, todavia, não é num Estado como “ entidade

governativa, que exerce poder de cima para baixo” que se localiza o núcleo da análise

apresentada (Popkewitz, Bloch, 2000: 33). Por esta razão, aliás, é adoptado o

conceito de governamentalidade de Michel Foucault, para explicar a produção de

sujeitos escolares com base numa arte de governar, operante através de tecnologias

dirigidas com crescente incidência, à alma das crianças. O que se visava nesta nova

arte de governo dos alunos era tatuar-lhes a alma, de tal modo que incorporassem

princípios de condução da sua conduta.

“O disciplinamento do corpo do indivíduo patológico, na prisão e no hospício do

século XIX, não envolveu apenas a sua organização no interior de um regime

externo de vigilância e normalização hierárquica e sua montagem por meio de

regimes moleculares de governo do movimento no tempo e no espaço, mas

buscou também impor uma relação interna entre o indivíduo patológico e o seu

corpo, no qual o comportamento corporal tanto manifestaria um certo controle

disciplinado exercido pela pessoa sobre si mesma quanto ajudaria a mantê-lo”

(Rose, 2001: 43).

A produção de sujeitos disciplinados e dóceis exigia, mais do que a lei ou o

castigo, um discurso orientado para a liberdade e autonomia do educando, futuro

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cidadão activo. Se do lado do Estado havia a intenção de governar toda a população,

reduzindo-a a dados estatísticos, prevendo o seu comportamento e vigiando as suas

práticas, fazendo dos cidadãos homens de trabalho e de riqueza para a nação, foi a

escola o instrumento mais eficaz no cumprimento dessa ideia. A colocação em grupos

de acordo com os perfis individuais, delineando uma série de elementos descritores

dos sujeitos é a hipótese perfeita para a governabilidade de todos e de cada um.

Governar todos os educandos obrigava a governar cada um deles, inclusivamente

aqueles que aos olhos do educador parecia situarem-se numa zona de

ingovernabilidade pela ineficácia face aos programas que a escola para si reservava.

A possibilidade de estes sujeitos se tornarem para sempre ingovernáveis era

inimaginável. Violentos, selvagens, diferentes, atrasados, imbecis, anormais, vão ser

submetidos a um discurso médico que, ao contrário de os negligenciar, os recupera

pela manifestação directa da sua inaptidão, ineficácia ou anormalidade, e os introduz

novamente numa escola que lhes serve agora um menu diferente. Programas de

ensino especial para meninos que de outra forma não seriam facilmente ensinados e,

muito menos, moralizados. A questão da escolarização era, tratando-se da infância

normal ou anormal, indissociável da necessidade de governabilidade, sem a qual a

população seria uma massa sempre crescente de insubmissão e desregramentos, em

suma de imoralidades. Compete ao Estado não só governar, como criar as estratégias

de governo, burilando os contornos de cada indivíduo aos perfis para si imaginados.

Numa crónica de 1908, publicada num jornal de Lisboa, dava-se conta da

necessidade de regenerar a infância insubmissa.

“O problema de regenerar a infância está preocupando neste momento uma parte

séria da imprensa de Lisboa. A vadiagem cresce de dia para dia

despropositadamente e a crónica das gatunices e das navalhadas toma colunas e

colunas das folhas noticiosas [...]. Nos bairros da cidade onde a indigência

abunda, na maior parte atulhados de uma estranha população de mulheres de

fábrica e de má nota, de rufiões e fadistas com cadastro, o garoto vegeta em toda

a plenitude, e nessa escola de devassidão e de torpeza, à medida que o seu pobre

organismo se atrofia e aniquila, toda a vivaz laboração precoce do seu encéfalo se

agita, se contorce, se desmanda e se acelera” (Prudêncio, 1908: 137).

A vegetação de crianças aos molhos pelas ruas de Lisboa, constituía um

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A escola como oficina das almas

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perigo simultaneamente de pouca higiene social e moral. Não seria tanto a onda de

crimes, de cutelos, de “navalhadas”, mas a indisciplina e a desordem, a “devassidão e

a torpeza”, o inaproveitamento de corpos de trabalho, o crescimento e

desenvolvimento aleatório, desordenado, insubmisso, da espécie humana e do corpo

social. É esta população, ainda infantil, que se converte numa nova área de saber e de

intervenção, não apenas disciplinar mas como refere Michel Foucault, alvo de uma

biopolítica do poder. Ao obrigar-se cada criança a um ensino obrigatório, obriga-se

todo o conjunto de crianças em condições etárias semelhantes, ao ensino obrigatário.

“El Estado tiene pues, de acuerdo con la Constitución, una función de verdadero tutor

de la libertad de enseñanza y a él corresponde regularla. No se trata

fundamentalmente de una cuestión de verdadera caridad, sino de una cuestión de

derecho civil. El Gobierno tiene la obligación de cumplir todo aquello que constituye

un derecho para los ciudadanos, derecho pues de tutela, de protección y de auxilio,

para que todos los individuos reciban una educación acorde con el progreso de los

tiempos”. Educar, desenvolvem os autores, “equivale actualmente a domar, adiestrar,

domesticar” (Varela, Alvarez-Uria, 1991: 191, 194). Intervém-se sobre cada corpo

mas sobretudo regula-se todos os corpos. Podendo existir individualmente corpos

desregulados, a verdade é que no colectivo apresentam uma incidência que é possível

calcular e prever. Tornava-se uma tarefa urgente, de salvação até, retirar estas

crianças “orfãs” da rua e dar-lhes o acolhimento numa instituição-prótese da

instituição familiar ou aplicar ortopedias correctivas às crianças classificadas fora da

norma.

Se ao garoto desvalido, “se acaso alguém lhe vale, se alguém o aproveita, ele

saberá recompensar em êxito a bondade paternal com que o tratem e os esforços de

paciência disciplinar que para com ele empreguem. Se ninguém o chama, e à revelia

deixam o extraordinário progresso das suas faculdades, não tardará ao desgraçado,

com as mórbidas predisposições da hereditariedade - toda uma gestação de

concubinatos crapulosos” (Prudêncio, 1908: 138). Aumentava assim

assustadoramente o número de indivíduos ameaçadores da lei, constituindo-se a

infância como elemento de periculosidade social. É aliás esta infância em perigo, que

possibilita a emergência de uma outra infância - a anormal. Esta última, por sua vez,

na sua invenção, constitui-se como barómetro de regulação da infância normal. Uma

e outra, infância normal e anormal, exigem um espaço escolar para que possam

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acontecer.

“La instrucción de los hijos de los trabajadores aparece, para los hombres de

gobierno, como uno de los dispositivos más eficaces para moralizar, domesticar e

integrar a los trabajadores del mañana. La niñez se percibe como un campo ductil

y fácilmente influenciable que ofrece, en vistas a su transformación, menos

resistencias que los trabajadores adultos... Además, la imposición de la escuela

obrigatoria se verá posibilitada y reforzada por otras leyes también sociales y

estrechamente relacionadas con ella, leyes que regulan el trabajo de mujeres y

niños, combaten la mendicidad infantil y protegen a la infancia menor de diez

años” (Varela, Alvarez-Uria, 1991: 178).

Produz-se um discurso de obrigatoriedade escolar que é construído como

imagem de protecção da infância e protecção social. Por um lado, toda a criança

deverá, porque a isso tem direito, ser educada numa escola obrigatória e, gratuita,

permitindo assim a frequência das camadas sociais filhas de uma massa proletária. Da

impossibilidade de um domínio eficaz deste grupo passa-se a um controlo a partir da

paisagem escolar. Estas crianças tornam-se agora corpos a disciplinar e seres vigiados

por um grupo de profissionais e por um conjunto de técnicas aplicadas sobre o seu

corpo. No caso da infância anormal, enquanto representação desviante, é uma

invenção apenas possível a partir deste enquadramento total de um grupo na escola.

Em 1907, Henri de Weindel, por ocasião de uma visita ao Instituto Nacional

de Surdos-mudos de Paris, escrevia um artigo extenso sobre o ensino dos surdos nesta

instituição e dava a conhecer as palavras do director deste Instituto, M. Coguillot:

“'Démutiser un sourd-muet, lui donner une instruction primaire, c'est sans

conteste lui rendre un grand service; mais développer chez lui un jugement sain et

des sentiments délicats, c'est une oeuvre non moins importante et non moins

difficile. Pour la mener à bien, l'action quotidienne du professeur est

indispensable, mais la discipline bien comprise est aussi d'un utile secours'“. A

disciplina assumia-se como par inseparável da liberdade. O governo dos alunos

surdos exigia um aperfeiçoamento constante de uma arte de governar, possível

pela constituição de um saber sobre estas crianças. “Dans les premières années,

ils subissent les règles qu'on leur impose; ils y mettent plus ou moins de bonne

grâce, selon que leur caractère est plus ou moins bon, mais ils s'inclinent devant

l'autorité du maitre. Mais à mesure que leur esprit s'ouvre et se meuble, ils

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A escola como oficina das almas

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cherchent à se rendre compte de ce qui se passe autour d'eux; ils se mettent à

raisonner sur les choses de leur propre existence. Alors s'ouvre la deuxième

période. Ils commencent par réclamer une liberté absolue, proclament illégitime

toute règle qui y porte atteinte; on leur montre alors la nécessité de l'ordre et de la

loi pour pemmetre à chacun de jouir de sa part de liberté sans entraver celle

d'autrui” (Weindel, 1907: 21, 22).

Liberdade e disciplina articulam-se num mesmo discurso caminhando num

sentido de autonomia do sujeito e de um governo de si mesmo. Era este o princípio

defendido na Casa Pia de Lisboa na educação de todos os seus alunos desde o século

XIX. E em inícios do século XX era também a esta ligação que Montessori se referia

quando propunha desenvolver na criança uma liberdade correlacionada com

autonomia e responsabilidade. Disciplinado, afirmava-o Montessori, era um

indivíduo que fosse mestre de si mesmo, dispondo do controlo do seu corpo e alma.

Todavia, este sujeito só se produziria na escola através de um trabalho especial do

professor: “Il est nécessaire que la maitresse ait une technique spéciale pour conduire

l'enfant à une telle discipline; mais il marchera ensuite toute sa vie dans cette voie,

avançant toujours vers une but de perfection”(Montessori: 1958: 37). Disciplina que

se estenderia a todos os domínios da vida do aluno, escola e sociedade seriam apenas

prolongamentos comunicantes.

Os trabalhadores do futuro, afirmam Julia Varela e Alvarez-Uria, só seriam

rentáveis se tivessem sido fabricados em condições ideais de pressão e temperatura

social (1991: 211). O Estado que tutela e protege a criança – devendo-lho por direito

– deverá ser visto por ela e pela sociedade em geral com legitimidade bastante para o

fazer, velando pelo bem da sua família, pelas suas necessidades e pelos seus

interesses. Claro está que não por acaso se viu a paisagem escolar invadida por

pedagogos, médicos e psicólogos que então classificavam o normal e o patológico, e

prescreviam terapêuticas correctivas. O binómio saber/poder encaixa-se neste cenário

e é com facilidade que se percebe que o saber sobre o aluno, sobre as suas

capacidades e aptidões, comportamentos, sentimentos e paixões irá determinar o

exercício da governamentalidade de cada um. As formações discursivas produzidas

pelos experts da alma, instalam-se por um período que chega até nós, nos bastidores

do palco educativo e influenciam as práticas, currículos e relações entre actores. Não

foram só os especialistas da alma, foram também os da política governativa, a

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A escola para todos

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escolarização de todas as crianças implicou uma nova racionalidade política e

científica da infância – todos seriam agora matéria populacional, filhos e pais –, mas

era também a partir deste quadro que todos eram convidados a construir-se como

cidadãos livres e autónomos. Para isso, estes discursos que promoviam a liberdade e a

responsabilidade do aluno ou do cidadão, operavam com técnicas disciplinadoras e

reguladoras que haviam de se manifestar em padrões de comportamento e acção

regulados e, mais, autoregulados. A vertente em que ao longo deste texto é

apresentada a educação das crianças surdas pelo método oral, constitui-se como um

dos trunfos no processo de construção do aluno surdo autónomo e livre, capaz de, por

si, comunicar com o mundo ouvinte. Deste quadro resulta um forte disciplinamento

desenvolvido a partir dos processos de subjectivação que a escola propôs ao

educando. É pois, a escola, um tipo particular de instituição disciplinar que

incorporando no aluno princípios morais e éticos através de práticas pedagógicas e de

conteúdos curriculares, é bem sucedida na modelação das crianças a padrões

ajustados de normalidade.

“Por exemplo, as escolas deveriam moldar o carácter das crianças e da família.

Novos regimes de controlo do corpo (higiene científica) e do intelecto (literacia,

matemáticas), bem como a inculcação de hábitos de virtude na infância, tinham

por objectivo gerir, disciplinar e articular a formação do carácter, quer nas

crianças, quer nas famílias” (Popkewitz, Bloch, 2000: 39).

O que acontece na arena educativa não está de modo nenhum separado do que

se passa na sociedade. A forma de administração da população escolar ocorre com

base nos discursos liberais e é por esta razão que a construção do cidadão do futuro

estaria associada à preparação prévia desse cidadão enquanto escolar. O encerramento

da população em classes, a partir da infância, surge como alternativa única de

controlo, de imposição de uma ordem mas, de uma ordem imposta servindo o próprio

indivíduo educando de mecanismo regulador da sua conduta. A escola só cumpriria a

sua função moralizadora se, ao contrário de repressiva, castigadora, proibitiva, fosse

produtiva no sentido de o educando ser simultaneamente objecto e mecanismo

impulsionador de uma prática e de um “cuidado de si”. Sob a vigilância atenta de

educadores e psicólogos a criança ía seguindo caminho, encontrando-se, explorando-

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A escola como oficina das almas

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se, desenvolvendo as suas potencialidades intelectuais, físicas e morais, bem como as

suas aptidões. Na sala de aula, as crianças são distribuídas espacialmente, cada corpo

em seu lugar, alinhados, seriados, vigiados, entregues aos exercícios de escrita, de

gramática, de contas, de desenho, de manualidades, de ouvir, sempre, a voz do

professor mas, igualmente, pela disciplina, aprender a ouvir uma voz interior que dita

o dever e o bem fazer.

A atenção dedicada à infância fazia sobressair uma imagem de criança que

deveria ser formada intelectual, física e moralmente. “A escola” reinventaria “a

criança na sua individualidade para reagrupá-la em populações organizadas

tipologicamente” (Correia, 2005: 201). Esta ideia constrói-se sob um terreno que tem

a medicina como instrumento legitimador de princípios reguladores que, numa

economia de movimentos, pretende atingir uma maximização de forças seja ao nível

do rendimento escolar, seja ao nível da ortopedia correctiva. Como veremos mais

pormenorizadamente num dos próximos capítulos, a introdução de um corpo de

especialistas, falantes de uma linguagem médica, traria a necessária colaboração à

pedagogia, conferindo-lhe o poder de agir sobe o aluno. Faria de Vasconcelos, nas

suas Lições de Psicologia e Pedologia Experimental, diria que “a intervenção do

médico na escola”, limitando-se no início “ a uma simples missão de medicina

repressiva” havia alargado as suas funções (s/d: 12). É neste contexto que as

instituições de carácter social que em nome da criança em risco, em perigo ou

anormal, iniciam uma marcha pela educação e normalização destes seres.

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Os surdos na escola

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1.2.OS SURDOS NA ESCOLA

Aula de treino auditivo e rítmico

(Amaral, 1954)

“Os alunos de ambos os sexos Surdos-Mudos e um Cego do Real

Instituto no sítio da Luz, tiveram no dia 2 do corrente mês de Julho

a distinta honra de ser admitidos à Real Presença de Sua Majestade

no Real Paço da Bemposta, conduzidos pelo Directores daquele

Estabelecimento, o Major João Hermano Borg, a felicitar e beijar a

Mão de Seu Augusto Pai e Benfeitor, Sua Majestade para dar mais

um testemunho da suma Benevolência, com que sob a sua

Protecção acolhe os mais infelizes dos Seus vassalos, houve por

bem destinar-lhes Audiência particular e descendo do Trono, que

tão heroicamente ocupa, os recebeu com angélica afabilidade,

mostrando-se para com este Pio estabelecimento mais do que Rei, e

estas inocentes crianças ao mesmo tempo que reverentes beijavam a

Real Mão que os protege, expressavam por meio da sua linguagem

própria os votos de seus corações pela conservação preciosa do

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mais caro dos seus Benfeitores, e uma das alunas pôde entoar bem

inteligivelmente estas palavras, que jamais os Bons Portugueses

cessarão de repetir:=Viva o Senhor Dom Miguel Primeiro, Nosso

muito amado Rei!” (Gazeta de Lisboa, 11 Julho de 1829: 670).

Este fragmento era parte do corpo da notícia que A Gazeta de Lisboa imprimia

a 11 de Julho de 1829. Recebidos em audiência particular perante o Rei, os alunos

surdos e um cego do Instituto da Luz, expressaram por meio de linguagem própria

toda a sua gratidão pelo acolhimento e protecção Reais. Uma das alunas, dominando

já a língua dos ouvintes, articulou uma frase de Viva a D. Miguel. Alunas e alunos

presentearam ainda Sua Majestade com dois sonetos que o Director do Instituto

garantiu terem sido escritos por uma aluna, Maria Bárbara da Conceição, e por um

aluno, Augusto de Castro, ao som das palavras ditadas pelo ajudante, segundo

professor do Instituto. Dizia assim parte do soneto das meninas: “Agora, que por Arte

mais que humana, / Vê nossa reflexão esclarecida, / Um Deus no Céu, / Autor de

nossa vida, / Na Terra o Rei, que nossos males sara;”. E o dos rapazes: “Pois se a

sorte cruel com força injusta/ Nos malfadou o triste nascimento, / Aos Pés do Trono

achando acolhimento, / A nosso coração já nada assusta. / Se o Mudo o som não

sente, e a voz tem presa, / Se o Cego o Sol não vê, e em trevas moralmente por dura

Lei, / que oculta a Natureza; / Nenhum de nós em tal condição chora, / Porque temos

um Rei, cuja Grandeza/ Estende sobre nós Mão protectora” (Gazeta de Lisboa, 1829:

670). Ora, daqui se deduz uma representação, ainda que apenas esboçada do surdo e

da surdez. Nascendo com mau fado, mau futuro pela frente, os alunos e alunas surdos

teriam na protecção do Rei, – através do patrocínio da sua educação –, a cura possível

da sua deficiência, quer dizer, um horizonte menos mau para o qual caminhariam. A

surdez emergia como representação de um estado atribuível àquele que tinha uma

falta, um vácuo relativamente a um ponto referencial ouvinte. E ouvir era o estado

normal de quem não era surdo, capacidade conectada ao bom e ao útil. “Segundo esta

teoria, bom é aquilo que sempre se revelou útil e que, desse modo, pode afirmar-se

como ‘valioso em grau supremo’, como ‘valioso em si’“ (Nietzsche, 2000: 23).

Torna-se evidente que de um ponto de vista estritamente moderno, o lugar do ouvinte,

associado ao bom, implica traçar o lugar do surdo, no lugar do mau. A surdez era

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Os surdos na escola

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inventada como objecto de intervenção ortopédica desenrolada pela oferenda amorosa

e desinteressada de uma língua oral, do ouvinte ao surdo. Nietzsche fala numa

genealogia da moral, associada à procura da proveniência dos sentidos dos juízos

avaliativos de bom e de mau. Quanto ao bom, diz-nos o autor, que “ainda hoje com

alguma frequência transparece um matiz principal que indica que os mais nobres

sentiam que eram gente de uma ordem superior” e que tendem a designar-se

“segundo um traço típico de carácter”: “os verídicos”. Segundo a raiz grega desta

última palavra, verídico é “‘um indivíduo que é’, que possui realidade, que é real,

verdadeiro” (2000: 25). É neste sentido que ser ouvinte é construído como bom e

verdadeiro e é, por oposição, que ser surdo é mau, mas também verdadeiro. Um

verdadeiro indesejável porque só não é falso por uma estranha presença do surdo

frente ao ouvinte. E neste processo, “as palavras que designam ‘mau’, ‘baixo’,

‘infeliz’, nunca mais deixaram de ter uma ressonância, um matiz em que é a ideia de

‘infelicidade’ que predomina” (Nietzsche, 2000: 37). Quando seis anos mais tarde,

em 1835, José Crispim da Cunha escreve sobre o ensino das crianças surdas no

Instituto de surdos-mudos, transparece a ideia de que educar significaria, em primeiro

lugar acolher o Outro para, depois, o corrigir e tratar, tentando arrancá-lo à

infelicidade correspondente ao estar do lado do mau. Esta vertente normalizadora,

pelo menos, no sentido de incorporação da palavra oral no corpo surdo, fez-se sentir

com mais intensidade a partir de finais do século XIX, embora nesta altura, o aluno

surdo se visse rodeado por um conjunto de especialistas que reclamava a

adaptabilidade da terapêutica a cada indivíduo. Assiste-se ao alargamento do conceito

de acolhimento/hospitalidade da criança surda na escola e na comunidade social, uma

permissão, um direito a uma existência verdadeira. De facto, estas crianças deveriam

ser salvas dos mundos aculturais onde a surdez as posicionava e a ideia de que esse

resgate do mundo dos excluídos era um direito da criança, começa a tornar-se

aliciante para a eficácia das técnicas usadas na sua educação. Ficava claro, portanto,

que toda a criança – mesmo a cega e a surda – deveria passar pela fase de preparação

para a vida que invariavelmente significaria adquirir a língua oral.

No terceiro ensaio da sua Genealogia da Moral, Freidrich Nietzsche abre a

escrita com o título Que significam os ideais ascéticos?. A resposta elabora-a

diferente para diversos tipos de ser: para os artistas, para os filósofos, os eruditos, as

mulheres, para os malformados e para os desequilibrados, para os padres e para os

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A escola como oficina das almas

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santos. Ora, se o ideal ascético significou “tanta coisa para o homem exprime desde

logo o traço fundamental da vontade humana”, a saber, “o seu horror vacui: o homem

precisa de um objectivo” (2000: 115). Constitui-se então o homem de desejo de que

nos falou Michel Foucault e que é novamente trazido até esta escrita para, uma vez

mais, referir a construção da identidade do aluno surdo conectada à ideia de uma

autoconstrução alimentada pelo desejo de uma língua oral, única chave para uma

prometida inclusão. Um e outro elemento só assumem contornos nítidos num

contexto educativo/correctivo, na aceitação de uma relação de tipo pastoral do aluno

com o seu mestre. Como a que nos é permitido imaginar da leitura de um outro texto

publicado a 10 de Novembro de 1830 na Gazeta de Lisboa:

“Para solenizar o Faustíssimo aniversário do nosso Rei, O Senhor D. Miguel

Primeiro, sob cuja Augusta Protecção prospera o Real Instituto dos Surdos-

Mudos e Cegos, houve no dia 26 do mês de Outubro um exame de alunos e

alunas deste Estabelecimento, na presença de seus parentes, e de outras mais

pessoas de distinção, que tiveram ocasião de admirar os felizes progressos destes

meninos na laboriosa carreira da sua educação, e de abençoar o generoso

Governo que tão Pia Instituição promove. O director e primeiro Professor João

Hermano Borg, depois de uma sucinta exposição dos princípios desta importante

arte de instruir os Surdos-mudos, fez conhecer a instrução das meninas em uma

multidão de palavras, que elas perfeitamente escreveram, mostrando saber já as

declinações dos nomes, e as conjugações dos verbos, o uso dos adjectivos e

pronomes, e entrando já na inteligência das palavras abstractas. Também

executaram as quatro operações de aritmética e distinguindo-se particularmente a

primeira aluna Maria Bárbara da Conceição, que resolveu uma proposição

algébrica, fez por escrito várias perguntas às suas condiscípulas, e pronunciou

bem distintamente toda a Oração do Padre Nosso” (Gazeta de Lisboa de 10 de

Novembro de 1830: 1079).

Esta imagem, diferente daquela que um ano antes era notícia, abre-se agora

para um campo em que a educação das alunas tinha já atingido um alto grau de

desenvolvimento. Eram prestadas provas. Fazia-se um exame a estas meninas surdas

sob o olhar incrédulo, decerto, de todos quantos pensavam estes seres

irremediavelmente perdidos na sua mudez, mais do que na sua surdez. Pela leitura

labial, terão escrito uma multidão de palavras, mostrando dominar as declinações dos

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nomes e a conjugação dos verbos, usar adjectivos e pronomes, perceber a abstracção

das palavras, realizar operações de aritmética e uma das meninas, novamente Maria

Bárbara, recitou perante a audiência toda a oração do Padre Nosso. Esta actuação,

resultado de um intenso trabalho desenvolvido no Instituto, só se torna possível por

uma aderência do desejo do aluno surdo aos objectivos do professor ouvinte. “A

actividade mecânica e o que dela faz parte – como a regularidade absoluta, a

obediência pontual e incondicional, a adopção de uma vez por todas de uma certa

opção de vida, o preenchimento integral do tempo... e também uma 'impessoalidade',

um auto-esquecimento, uma incuria sui, até certo ponto autorizada, mas também

cultivada com disciplina –, tudo isto o sacerdote ascético soube utilizar de modo tão

radical e tão refinado na sua luta com a dor”. Tudo isto a escola soube transportar

para o seu espaço, manifestando-se na relação de poder pastoral entre mestre e aluno.

O pastor que está sempre pronto para partir em busca da ovelha perdida ou sempre

em posição de guia do seu rebanho, tem de dominar uma certa arte de governo “para

conseguir que essa gente passasse a ver um benefício ou uma relativa felicidade em

coisas que até aí detestava” (Nietzsche, 2000: 166). O modo de o fazer, se já o tenho

deixado dito um pouco por todo o texto, volto a repeti-lo, outra vez, agora pelas

palavras de Nietzsche:

“Um outro meio ainda mais apreciado [...] consiste na prescrição de uma pequena

alegria, fácil de obter e fácil de converter em regra; esta medicação é

frequentemente usada em associação com a anterior. Na maior parte dos casos

esta alegria usada como medicamento é prescrita sob uma forma típica: a alegria

de dar alegria (fazer boas acções, dar ofertas, suavizar sofrimentos, prestar

auxílios, encorajar, consolar, louvar, premiar). No fundo, ao prescrever o ‘amor

ao próximo’, o sacerdote ascético prescreve de facto uma excitação do instinto

mais forte, do instinto mais afirmativo da vida, uma excitação da vontade de

poder, muito embora numa dosagem mínima. Essa felicidade – decorrente da

ínfima superioridade que o facto de praticar boas acções, de ser útil, de ajudar ou

de distinguir alguém sempre provoca – é, entre os remédios para a obtenção do

consolo, o mais eficaz de que se costumam servir os indivíduos atingidos pela

inibição fisiológica, mas com a condição de haver um bom aconselhamento,

porque, caso contrário, provocam dor uns nos outros, ao obedecerem ao mesmo

princípio fundamental” (2000: 167).

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A verdade é que este movimento opera em dois sentidos: um do lado do

aluno, outro do lado do mestre e ambos se inscrevem na perspectiva da

governamentalidade. Tal como o sacerdote ascético ou o pastor, o professor surge

como o “salvador predestinado”, aquele que, para além de conduzir o rebanho tem,

igualmente de se conduzir a si próprio, exercendo sobre si mesmo “um domínio ainda

maior do que sobre os outros”, “tem que permanecer incólume designadamente

quanto à sua vontade de poder, para ter a confiança e o temor dos doentes, para poder

ser para eles um amparo e um obstáculo, um apoio e um constrangimento, um

instrutor e um tirano, para poder ser o seu deus. E tem que proteger o seu rebanho”

(Nietzsche, 2000:154).

Depois do exame, a Regente e mestra das alunas surdas “fez ver o seu

adiantamento na costura, obras de cabelo e mais prendas próprias do seu sexo”,

levando, por certo, os objectos produzidos em espaço escolar e mostrando-os perante

os espectadores. Seguiu-se o exame dos alunos e foi Crispim da Cunha quem os

orquestrou, fazendo “ praticar todas as operações de aritmética até aos números

quebrados, e no estudo gramatical mostraram eles conhecer as diversas espécies de

palavras, as declinações dos nomes e pronomes, as conjugações dos verbos, e

observar as regras da sintaxe em muitas perguntas e respostas, que entre si fizeram,

dando por este modo a mais alta ideia da eficácia do método que por meio da escrita

restitui à comunhão social estes outrora degredados entes”. Mas a oralidade, que se

iria tornar o prato forte a prescrever na instrução das crianças surdas, começava já a

mostrar o seu perfil: “três de entre eles pronunciaram muitas sílabas e palavras, que

se lhes escreveram, e já dois entendem, e perfeitamente escrevem de memória a

Oração Dominical”. De tal modo era importante mostrar ao surdo a inoperância da

sua audição que, após uma visita às oficinas e à aula de desenho, surgiu o retrato do

rei, “num arco triunfal, majestosamente armado pelos alunos, e uma das alunas

recitou uns versos em acção de graças ao Todo Poderoso pela preciosa vida do Nosso

Augusto Soberano, seguindo-se depois uma dança entre os alunos e alunas dirigida

pelo Mestre de dança e esgrima João Batista Gambette, e acompanhada ao som da

rabeca pelo aluno cego” (Gazeta de Lisboa de 10 de 1830: 1079, 1080).

Disciplinados, os surdos terminaram a demonstração de oralização dançando ao som

da música que não ouviam, mas sob a orientação de um ouvinte. A visibilidade que

estas exibições e os discursos que as relatam dão ao processo de normalização do

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corpo surdo, sublinha a identidade deficiente enquanto problema que pode, no

entanto, ser corrigido pelo empenho e boa condução do professor. Dando visibilidade

ao que é produzido no interior da escola, a instituição expõe os seus habitantes ao

olhar de outros que podem, a partir do exterior, testemunhar os processos de

transformação que a escola opera sobre os anormais. A diferença do surdo face ao

ouvinte só é pensável na modernidade pela sua fixação a um campo enquadrável,

onde possa ser olhada e nomeada. A instituição escolar foi o espaço encontrado. Com

o surgimento da fotografia e com a sua utilização pelas instituições, a representação

dos objectos, – de que a surdez é exemplo –, faz com que os olhares de quem está do

lado de fora e olha para o interior passem a ser governados por aquilo que as imagens

dão a ver.

O Sr. Presidente da República assistindo a um

dos exercícios no Instituto de Surdos-mudos

(Anuário, 1924)

A 5 de Dezembro de 1923, o Presidente da República Teixeira Gomes,

visitava as instalações da Casa Pia de Lisboa. Os jornais fizeram notícia. No Diário

de Notícias de 6 de Dezembro, poder-se-ia ler:

“‘O Sr. Teixeira Gomes declarou que aquela Casa lhe merecia um carinho

especial […]. Naquele estabelecimento se trabalha a sério na preparação dos

alunos para a vida. A Casa Pia tem as tradicionais e grandes virtudes da

actividade, do método prático, do espírito de observação, da percepção e de

aperfeiçoamento que muito a distinguem. […] Em seguida dirigiu-se para o

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Instituto de Surdos-Mudos, onde o seu ilustre professor, Sr. José da Cruz Filipe,

fez uma lição demonstrativa do seu método de ensino, tendo começado pelos

exercícios de leitura labial e prova escrita e terminando pelo da articulação,

exercício este que faz com que o aluno chegue a falar claramente. O Sr. Teixeira

Gomes, que admirou tão interessante método de ensino, teve no final palavas de

felicitação e de incitamento para o ilustre professor’” (Anuário, 1924: 11, 12).

A fotografia passaria a ser mais uma formação discursiva de fácil assimilação.

Na imagem, Cruz Filipe executa um movimento bocal e faz perceber ao aluno surdo

nº 55 o que se espera da sua exibição. Teixeira Gomes, à esquerda, observa

atentamente o desempenho oral do surdo. A normalização estava institucionalizada

como prática de salvação destas crianças.

Em Portugal, o ensino dos surdos iniciou-se como já aqui foi dito em 1823,

sob a tutela da Casa Pia de Lisboa. Este primeiro instituto de surdos, ficava localizado

numa casa do Conde de Mesquitela, à Luz, tendo sido fundado a expensas do Rei e

sob o patrocínio da infanta D. Maria. Inicialmente o Instituto só admitia indigentes,

contando em 1824 com 8 alunos, um deles cego, sendo 5 do sexo masculino e 3 do

feminino. Todavia, noutros países, a batalha por uma educação para aqueles que se

afastavam da norma, havia começado muito tempo antes. Um prospecto de 1792 de la

Pension de L'Institution Nationale des Sourds-Muets de Paris identificava a

necessidade de enquadrar as crianças surdas num espaço em que o objectivo essencial

seria:

“les mettre en communication avec les autres hommes, on leur apprend à lire et à

ecrire, afin que l'ecriture qui, dans tous les cas, remplace la parole, leur serve à

exprimer leurs idées et à comprendre celles des autres” e as condições de

admissão adiantavam que a educação gratuita poderia ir até aos seis anos.

Admitidos seriam todos os surdos “ de quelque pays, de quelque religion, de

quelque etat que soient leurs parents”. O acolhimento poderia ocorrer em

qualquer idade desde que os pais pagassem a sua pensão e, até aos 10 anos, se

pretendessem usufruir da gratuitidade do ensino. O passe de entrada obedecia a

“un examen rigoreux du médecin et du chirurgien de la maison” (1792: 1-4).

Na Casa Pia de Lisboa, os processos de admissão viriam a ser um pouco mais

rigorosos, principalmente quanto ao número de alunos que seria possível receber na

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Os surdos na escola

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instituição. As idades iriam variar, após 1905, entre os 7 e os 11 anos para o período

de admissão e os 18 anos como limite de saída da instituição. A desvinculação do

Instituto da tutela da Casa Pia, ainda em 1824, contou com uma vinculação directa ao

Estado que dotando o instituto com 4.600$00 reis anuais, elevou em quatro o número

de alunos a serem admitidos. Oito alunos do sexo masculino e quatro alunas deveriam

perfazer a população surda que beneficiava de ensino e habitação nesta instituição até

1834. Todavia, eram dezoito os alunos existentes em Fevereiro desse ano e ainda se

abria mais seis vagas (Cunha, 1835: 44). As idades escolares deveriam variar entre os

oito e os catorze anos, tal como previa o regulamento provisório em 1827 (Santos,

1920: 95). Um Decreto de 25 de Fevereiro de 1834, viria, no entanto, estabelecer

nova articulação do instituto de surdos com a Casa Pia de Lisboa. Dizia assim:

“‘Não correspondendo os resultados do Instituto dos Surdos-mudos e cegos, tal

qual se acha organizado à excessiva despesa com ele feita, sendo todavia a

existência de tão útil, quanto benéfica instituição aconselhada, e instada pelos

princípios de humanidade e de filantropia em virtude do que convém determinar

uma outra forma, porque tal estabelecimento, mantendo-se, atinja os saudáveis

fins a que é consagrado. E porquanto considerando eu, que pela união do

sobredito instituto na Casa Pia, vindo a poupar-se as despesas do edifício,

mestres, serventes, e outras, melhor se poderão prover ao sustento, e educação

dos alunos dele, aplicando além disso as sobras do seu dispêndio em proveito da

Casa Pia’” (Cunha, 1835:33, 34).

Esta ordenação, dirigida ao então director do Instituto de surdos-mudos e

cegos – José Crispim da Cunha –, levou-o a escrever a História do Instituto de

surdos-mudos e cegos de Lisboa desde a sua fundação até à sua incorporação na

Casa Pia de Lisboa, demitindo-se do seu cargo e desafiando todos para que lhe

apontassem um “estabelecimento de caridade e educação cujos directores e mestres”

desempenhassem “encargo de tanta paciência e trabalho, em que os alunos” fossem

“mais decentemente vestidos, e alimentados”, estabelecimento que apresentasse

“melhores resultados” do que o que então dirigia. Além do mais, Crispim da Cunha

dizia com satisfação que os alunos a si entregues, permaneciam todos de perfeita

saúde, não tendo conhecido “sarna, nem moléstias de olhos” (Cunha, 1835: 45). E

esta era uma época em que a Casa Pia teria tido no seu interior grandes enfermidades

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A escola como oficina das almas

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“algumas das quais se haviam já tornado verdadeiras endemias no estabelecimento”,

“uma delas, a oftalmia, que ainda por muitos anos devia servir de flagelo da

população da Casa Pia” (Silva, 1896: 76).

Sucederam no ensino dos surdos a Crispim da Cunha, dois antigos alunos

surdos da instituição, Augusto de Castro e José da Costa, que ali permaneceram por

pouco mais de uns meses, pois ainda no ano de 1835, viria a ocupar o lugar de

professor de surdos um empregado do instituto, Bernardo José Fragoso que, na

opinião de César da Silva na sua Breve História da Casa Pia nos diz que “o

verdadeiro professor” deveria ser “algum surdo-mudo, que por mais inteligente ou

mais prático no método, se prestava a ensinar os seus companheiros” (1896: 93). Em

1836, José Ferreira Pinto Basto era nomeado Administrador da Casa Pia de Lisboa e

num relatório elaborado em inícios de 1837, dava conta das aulas em exercício na

instituição: “‘caligrafia, aritmética, gramática portuguesa, ortografia, inglês, francês,

geografia, pintura, desenho, litografia, música instrumental e vocal, dança e

esgrima’”. Dizia o Administrador que estas aulas eram “‘regidas por professores’”

que, a seu ver, eram competentes para as leccionar a “‘discípulos de ambos os sexos,

e até surdos e mudos, que pelos seus progressos’” dariam grande “‘satisfação a Vossa

Majestade e honra à nação portuguesa’” (Silva, 1896:106, 107).

No ano de 1840, é José Maria Pereira, aluno surdo da Casa Pia que assume a

direcção da educação dos alunos surdos, acumulando este cargo com o de escriturário

da repartição de fazenda. Ary dos Santos afirma que “o seu trabalho como professor

não foi digno de menção”, sendo a causa principal uma instrução pouco elevada, mas

era um “desenhador bom” e um “calígrafo distinto”. Por esta altura, o ensino dos

surdos na Casa Pia era misto e constava “do ensino das letras, contas, desenho e

cursos profissionais de alfaiate, sapateiro, canteiro, funileiro, carpinteiro e torneiro”.

Para as surdas compunha o currículo escolar a costura, “fazer meia, marcar, bordar e

fazer cordões de cabelo, artefactos que então estavam muito em moda” (1920: 98).

Ditava o regulamento que poderiam ser admitidos alunos pensionistas mediante 3$00

ao mês e quanto a idades, sabe-se que era permitido que os alunos permanecessem na

instituição após os vinte anos, facto este que, ainda na opinião de Ary terá contribuído

para que “contraíssem hábitos que os inutilizaram para a vida honesta e

independente” (Santos, 1920: 98). Em 1844, o subsídio concedido pelo governo para

auxílio dos surdos-mudos foi suspenso, desorganizando completamente este ensino

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Os surdos na escola

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na Casa Pia de Lisboa. Seria em 1860, definitivamente extinto o ensino dos surdos na

instituição e durante todo o tempo que restava do século XIX. José Maria Eugénio de

Almeida traçava o cenário em que habitavam os surdos na Casa Pia de Lisboa,

aquando da sua entrada como Provedor:

“Há surdos e mudos de um e de outro sexo: os do sexo masculino têm como

único mestre, único regente e único guia, um surdo-mudo dos que foram

educados no antigo instituto, o qual tem desempenhado como simples aluno essas

funções todas do modo que pode; os do sexo feminino não têm mestra sua, e

quando aquele tem ocasião vai lá dar-lhes algumas lições. Das aulas próprias para

ensinar a escrever, a contar e tudo o mais que se pode ensinar aos cegos, não

achei vestígio algum.

Em toda a parte, onde tenho visitado estabelecimentos desta natureza, notei que

havia guias para dirigir esses infelizes nos passeios, nos recreios e nos exercícios,

e que estes eram combinados de um modo especial a fim de lhes serem úteis. Na

falta disto, acontece que essas pobres crianças mudas e cegas estão aqui expostas

a padecer sem poderem queixar-se de todas as travessuras que lhes fazem as

outras crianças que as cercam por toda a parte. Notei também que se procurava

nesses estabelecimentos desenvolver a inteligência e guiar a vontade por uma

infinidade de mapas, de quadros, de objectos em relevo, de mil lembranças

engenhosas, que homens distintos, com vista e com fala, postos à testa daqueles

institutos têm inventado e aperfeiçoado com arte delicada e com paciência

incansável. [...] Escuso dizer a V. Ex.ª que nada disto há aqui. O que há pois? Há

um nome sem realidade; impostura indigna da nação em cuja boca se põe, e que

serve somente para iludir o público, fazendo-lhe acreditar que existe ainda este

estabelecimento, quando dele não restam senão miseráveis fragmentos”

(Almeida, 1861: 95, 96).

Das palavras de Eugénio de Almeida fica traçada a ideia de que após a saída

de Crispim da Cunha, o ensino dos surdos não terá atingido qualquer progresso,

muito pelo contrário, acelerou-se em decadência ao ponto de existir o nome sem a

realidade. É com José Maria Eugénio de Almeida que se dão as grandes reformas da

Casa Pia de Lisboa, “alma generosa”, “dotada com uma razão ilustrada e com uma

vontade indomável, livre de preconceitos” que “empreendeu, qual médico experiente”

“a cura radical da doença de que estava enfermo o estabelecimento”. Na Casa Pia

anterior a Eugénio eram grandes as desproporções entre “despesa real” e “despesa

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A escola como oficina das almas

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racional”, “a educação física, compreendendo a alimentação, o asseio a higiene e a

ginástica” eram fracas, incompletas e viciosas (Raposo, 1869:7-9). Daqui resultava

um cenário de ingoverno da população estudantil, de uma má educação, de um foco

de doenças contagiosas em que as oftalmias, crescendo a olhos vistos, deixavam

muitos alunos cegos. Foi, portanto, neste contexto que terão sobrevivido os alunos

surdos da Instituição. Tornava-se necessário, na visão estratégica de Almeida, alterar

a organização do estabelecimento. Um dos pontos fundamentais era a redução do

número de alunos. Dos “oitocentos a mil e tantos alunos” do antigamente, passou-se a

seiscentos. Dos 20% que sucumbiam e de outros tantos que ficavam “inabilitados”,

caminhou-se para quatro mortos em 8 anos (de 1860 a 1869) e mais nenhum

inabilitado (Raposo, 1869: 9). Era de todo inviável que um “colégio de educação

popular” fosse “conjuntamente asilo de inválidos, hospital de incuráveis e casa de

educação”. Deste modo, nenhum dos fins poderia ser “regularmente desempenhado,

porquanto as regras disciplinares, os cuidados, os alimentos, os recreios, a educação,

enfim, que tem aplicação a uma destas classes não a pode ter às outras” (Almeida,

1862: 103, 104). A desarmonia seria completa, pelo que, uma das primeiras decisões

passava por:

“considerando que por falta de providências bem combinadas que estabeleçam de

modo eficaz o exame do estado sanitário dos orfãos que são mandados para esta

casa, e que pelo resultado desse exame regulem as entradas, acontece que há hoje

na Casa Pia um número considerável de orfãos de um e de outro sexo, que pelo

seu estado moral ou físico são incapazes de se lhes aplicarem os regulamentos da

casa e de receberem a educação que nela se deve dar, e tais são os idiotas, os

paralíticos, os cegos, os surdos, os tísicos, os atacados de moléstias incuráveis ou

contagiosas, especialmente os oftálmicos, os enfezados, os quais todos pedem

cuidados constantes e minuciosos” e por isso, “Artigo 1 - É instituído na Casa Pia

um colégio especial e inteiramente separado dos outros, o qual será formado

exclusivamente com os alunos que pelo seu mau estado físico permanente ou

temporário devem ser separados de regime comum aos outros alunos e receber

cuidados especiais” (Almeida, 1862: 103-105).

Este colégio deveria tomar a denominação de Colégio dos inválidos. Apesar

da data de publicação destas Portarias, aquela que aqui se refere datava de 22 de Maio

de 1860, ano, portanto, em que definitivamente se punha termo à presença dos surdos

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na Casa Pia, transferindo-os para secções do Asilo Municipal de Lisboa. A decadência

em que vivia o instituto de surdos na Casa Pia, foi também corroborada por Vítor

Ribeiro na sua História da Beneficência Pública:

“Na Casa Pia teve o instituto vários professores, e apesar da decadência em que

caíra, alguns dos seus educandos se dedicaram com proveito ao desenho, e foram

completar cursos à Academia de Belas-Artes, ou alcançaram profissões práticas,

com que conquistaram vida independente” (1907: 204). Francisco José Marques

ou Rafael Idésio Maria Pimenta são disso exemplo, destacando-se o primeiro

como pintor e o outro como gravador.

É certo que a partir desta data surgiram iniciativas particulares de ensino de

surdos em Lisboa, no Porto e em Guimarães. Em Lisboa não poderemos esquecer

Pedro Maria de Aguilar que abriu no Liceu de Lisboa um curso gratuito para surdos e

que em 1872, se deslocou para Guimarães onde continuou o seu trabalho de instrutor

destas classes. A ajudá-lo tinha dois sobrinhos, Eliseu de Aguilar e Joana Barbosa do

Lago. Em Guimarães, Pedro de Aguilar não terá permanecido por mais de dois anos,

mudando-se então para o Porto, cidade onde continuou o seu trabalho, chegando

mesmo em 1877 a ser subsidiado pela Câmara. É Eliseu que lhe sucede no ensino dos

surdos nesta cidade. Também no Porto, por escritura de 21 de Março de 1893, surge

“um notável instituto de surdos-mudos”, custeado pela herança que José Rodrigues

Araújo Porto lega para a causa de ensino dos surdos (Ribeiro, 1907: 205). Foram aí

professores Joaquim José da Trindade e Nicolau Pavão de Sousa, este último indo

para Paris realizar o curso especial do Instituto Nacional de surdos-mudos e mais

tarde, transferindo-se para a Casa Pia de Lisboa. Em Lisboa, após a extinção do

ensino para surdos na Casa Pia, funcionou na Rua de S. Lázaro e na do Benformoso,

de 1880 a 1887, um instituto para surdos e cegos dirigido por Emídio José de

Vasconcelos. No seu colégio terá tido apenas catorze alunos entre os 11 e os 13 anos,

ensinando-lhes “caligrafia e um dos seguintes ofícios: alfaiate, sapateiro e

encadernador” (Santos, 1920: 114). Apesar dos subsídios recebidos pela Câmara

Municipal, as receitas não eram bastantes para uma continuação independente deste

instituto pelo que foi definitivamente absorvido pela Câmara, passando a sua sede

para a Ajuda. Foi esta escola incluída nas secções que compunham o Asilo municipal

de Lisboa, “em internatos mistos de falantes e surdos-mudos”. Em 1887, era Eliseu

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de Aguilar que dirigia o então Instituto Municipal de surdos-mudos de Lisboa, sendo

suspenso pouco tempo depois e assumindo o cargo de professor Inácio José Miranda

de Barros que “tentou introduzir o ensino pelo método oral” (Filipe, 1920: 11). Por

esta época a população de alunos contabilizava-se em 23 alunos surdos e 7 alunas

surdas, os primeiros internados em instalações na Rua da Santíssima Trindade e as

segundas num edifício do Largo da Graça. A Reforma da Beneficência Pública de 24

de Dezembro de 1901, viria determinar que o ensino nas duas classes passasse a ser

ministrado pelo professor surdo-falante Augusto Joaquim da Silva Campos, que viria

a ser professor de desenho no Curso industrial da Casa Pia de Lisboa. Os alunos

permaneceriam no instituto até aos dezoito anos, recebendo ensino profissional nas

escolas industriais. A título particular, a cidade de Lisboa contou ainda com o ensino

gratuito para surdos no Convento do Bom Sucesso, ministrado por madre Maria

Petronilla e, talvez o exemplo de maior sucesso, um colégio para surdos, em Benfica,

dirigido por Anicet Fusillier e por sua mulher. Fusillier havia iniciado o seu trabalho

no Instituto de surdos-mudos de Paris, tendo igualmente leccionado no instituto de

Chambery e no de Gentilly. Fundado em 1890, este colégio admitia alunos internos e

externos, “sendo a mensalidade dos primeiros 45$00 réis, tornando-se por esta razão

privativo dos alunos pertencentes a famílias abastadas” (Santos, 1920: 116). Todavia,

a irregularidade e os inúmeros percalços sofridos ao longo dos anos, levavam a que,

ainda em 1942, José da Cruz Filipe, constatasse a necessidade de alargamento na

educação de crianças com desenvolvimento irregular:

“Porém, em muitos países já se vai reconhecendo também a necessidade de

obrigatoriamente ser cuidada e alargada a educação de milhares de crianças, cuja

irregularidade de desenvolvimento prevê funestas consequências se, a tempo, se

lhe não opuserem as devidas barreiras. Mas, para que essa acção possa ser

profícua, é indispensável uma campanha forte em favor desta questão humana

quão imperiosa, devendo a influência dessas salutares medidas atingir todos os

que se encontrem em estado de carecer delas” (1942: 14, 15).

Mas foi o decreto de 27 de Dezembro de 1905 que reorganizando os serviços

de beneficência pública, transferia para a Casa Pia de Lisboa as crianças surdas até aí

cuidadas na Secção de surdos-mudos do Asilo Municipal. Foram 35 no total os novos

alunos e alunas surdos, a habitarem as instalações de Belém. Outro decreto, de 5 de

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Abril de 1906, autorizou a admissão de alunos surdos pensionistas e mandou adoptar

o método intuitivo oral “por ser o que melhores resultados, até então, havia dado nas

escolas estrangeiras” (Filipe, 1920: 16). Estava traçado o perfil do que viria a ser o

ensino das crianças surdas durante grande parte do século XX. O método oral puro,

considerado a partir do Congresso Internacional de Milão, realizado em 1880,

largamente favorável ao ensino das crianças surdas, marcava presença orientadora

nos principais institutos de surdos da Europa. Em 1900, num Congresso Internacional

pour l'etude des questions d'assistance et d'education des sourds-muets, Henri

Gaillard, apresentava uma comunicação em que dizia que “entre toutes les méthodes,

celle qui semble la plus excellente, c'est la méthode orale pure, celle qui rend le

mieux, je ne dis pas complètement, le sourd-muet à la sociétè”. O especialista

aconselhava a começar-se, pelo menos a partir dos seis anos “sans tarder l'étude de la

langue, non pas avec des livres, des vocabulaires plus ou moins ingénieux, mais avec

les phrases de la vie courante, d'une portée usuelle. C'est comme cela que l'enfant

comprendra le sens des mots et sourtout leur valeur exacte. Parallèlement, menez

l'enseignement de l'écriture, l'enseignement du dessin et les travaux manuels”. E

mesmo que o aluno surdo se rebelasse contra a aprendizagem do método oral,

manifestasse predominância do gesto sobre a palavra, os primeiros quatro anos de

escola, decerto o fariam perceber “des bienfaits de l'orale”. “Cette rebellion est peut-

être le fait d'une arriération d'esprit, d'une mauvaise disposition, aphasie motrice, des

organes vocaux, d'une précarité endémique de la santé, d'un état général

supranerveux, ou plus simplement d'une antiphathie volontaire ou impulsive de

l'enfant”. Em semelhante situação, o professor de surdos deveria servir-se de um

saber sobre o aluno e criar técnicas de intervenção. Poderia tirar partido da

preferência pelo gesto e trabalhá-lo como meio de aproximação ao seu aluno,

tentando então um método misto de signos: palavra e escrita. Pormenor de extrema

importância no processo educativo das crianças surdas era o próprio contexto em que

decorria o processo. Um sistema de internato surgia como proposta aliciante porque

possibilitaria que os alunos vivessem “en récréation, au réfectoire, au dortoir”,

aprendendo “à se connaitre, à s'aimer, à s'entr'aider, à se pénétrer de tous les

sentiments de solidarité qui doivent régir la société de demain” (1900: 83-85).

Nenhum campo será tão profícuo quanto o da escola, para controlar e disciplinar toda

uma população. É a partir da inserção da criança na escola que é possível criar

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tipologias, perceber cientificamente as diferenças entre os escolares e classificá-los de

acordo com elas.

São estas produções discursivas que tecem sistemas de verdade que, por sua

vez, no interior da escola, pelo recurso a técnicas – derivadas de um saber sobre os

sujeitos –, os produzem de acordo com modelos normativos. Os atributos e

competências de cada aluno, quando classificados negativamente, instalam-se como

estigma no indivíduo que os possui. Erving Goffman, define o estigma como a

representação construída sobre a figura do Outro, tendo, evidentemente, como

referente uma visão idiossincrática. É o atributo que o Outro exibe, diferente daqueles

que dentro de uma determinada categoria seria previsível assumir:

“While the stranger is present before us, evidence can arise of his possessing an

attribute that makes him different from others in the category of persons available

for him to be, and of a less desirable kind - in the extreme a person who is quite

throughly bad, or dangerous, or weak. He is thus reduced in our minds from a

whole and usual person to a tainted, discounted one. Such an attribute is a stigma,

especially when its discrediting effect is very extensive; sometimes it is also

called a failing, a shortcoming, a handicap. […] “which are incongruous with

our stereotype of what a given type of individual should be” (1990:12,13).

A escolaridade obrigatória implicou um alargamento da educação ao conjunto

da população infanto-juvenil, ainda que fosse essa mesma escola que se queria para

todos, a produtora de exclusões. A educação era vista como via única para um

progresso do Estado-nação e a criança classificada anormal, via-se envolvida em

práticas correctivas que pretendiam restituir-lhe uma normalidade imaginada. As

escolas convertem-se em laboratórios de detecção de casos desviantes e de aplicação

de pedagogias correctivas, mas estas crianças diferentes desempenham o importante

papel de barómetro de regulação da normalidade. Foi exactamente pela detecção de

casos desviantes que se tornou possível criar dispositivos reguladores de condutas

numa população escolar normal. A escola seria então o espaço da correcção.

A funcionar desde 1905, a Secção de surdos-mudos da Casa Pia admitia

apenas anormais com o domicílio de socorro na capital. Em 1915, porém, alterou-se o

Regulamento, passando a instituição a receber os alunos com domicílio fora de

Lisboa e os de Lisboa que não tinham residência, em regime de internato, sendo que

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os alunos com residência em Lisboa, passariam ao regime de semi-internato. A estes,

era-lhes atribuído um pequeno subsídio, compensatório da cessação do favor de

internamento. Continuariam a ser admitidos pensionistas à razão de 6$00 mensais.

Em 1918, era manifesta a necessidade de alargamento do quadro docente da Casa Pia.

Passa a haver dois professores efectivos e três auxiliares na secção masculina e dois

professores efectivos e um auxiliar na secção feminina. Nesta secção só seriam

admitidas professoras. As disciplinas de trabalhos manuais, de desenho e de ginástica

poderiam ser leccionadas pelos professores que também as ministravam aos ouvintes-

falantes.

Os regimes disciplinares, combinados com os discursos pedagógicos sobre

como actuar com a criança surda, tinham a ambição de transformar a sua

incapacidade comunicativa com o ouvinte, levando-a a aceitar medidas de

normalização social. Não foi nunca esquecida a construção da autonomia e

responsabilidade do aluno surdo, transferindo-lhe como desejo e necessidade a

aprendizagem da língua oral, mas também dos restantes saberes escolares ou dos

ofícios que lhe permitiriam, mais tarde, incluir-se como corpo produtivo e útil na

sociedade.

José Crispim da Cunha, professor de surdos no período compreendido entre

Novembro de 1824 e Fevereiro de 1834, traça um primeiro quadro da organização da

educação das crianças surdas. Os alunos eram divididos em duas classes, de um lado

as meninas, do outro, os rapazes.

“Em todos os dias não notificados havia lições desde as 8 e meia horas da manhã

até às 10, e desde as 11 até à uma hora. De tarde se ensinavam os ofícios

mecânicos, e o desenho, para o que havia um mestre alfaiate, um sapateiro, um

carpinteiro, ou marceneiro, e um funileiro, sendo o desenho ensinado pelo

ajudante ou por mim: as meninas eram ocupadas pela Regente nos trabalhos

próprios do seu sexo, e ao cego se ensinava a tocar piano, rabeca, fazer meia,

&c.” (Cunha,1835: 16, 17).

Reconhece-se aqui o esboço de um espaço de governo da classe. Os horários,

a divisão por género, a prescrição de tarefas úteis do ponto de vista social e

disciplinadoras do aluno.

Em 1907, Cruz Filipe enviava de Paris um relatório – resultado da sua

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investigação no Instituto de surdos-mudos dessa cidade – em que dava conta dos

“processos empregados, para preparar os orgãos do aluno a perceber e a emitir a

palavra, para provocar e corrigir a voz, para ensinar de per si cada elemento fonético,

para unir estes elementos entre si, segundo as múltiplas combinações” que

constituíam “a língua falada”. Mas antes tornava-se inteiramente necessário preparar

o aluno para a hospedagem da palavra.

A educação dos surdos era diferente da dos ouvintes. Ao surdo não se podia

fazer ouvir o som da língua oral, o que desde logo deveria constituir razão suficiente

para não fazer desta língua uma língua materna. Contudo, se por um lado se

pressentia que era pelo gesto que melhor o surdo se comunicava, por outro, em

sociedade a língua das mãos dificilmente seria percebida. Havia até quem

considerasse próprio do surdo falar com as mãos, e imaginasse mesmo “que o ensino”

só se podia “dar pelos sinais”. E era verdade que estes constituíam “uma linguagem

própria, conhecida há muito e enriquecida pouco a pouco, linguagem rica em

vocábulos, com uma sintaxe particular” que facilitava “imenso a expressão rápida das

ideias. Com ela, surdos-mudos inteligentes alcançaram resultados surpreendentes e

tornaram-se úteis aos seus infelizes irmãos, ministrando-lhes depois ensino regular”.

Ainda assim – apesar das vantagens – seriam numerosos os inconvenientes: a sintaxe

produzida pelo surdo era contrária à da ordem gramatical do ouvinte, os seus gestos

eram violentos para o olhar do que ouvia, era grande a morosidade do dizer das coisas

e, também, do fazer-se perceber “fora do colégio” (Fusillier, 1893: 391, 392).

É, portanto, o problema da implantação da língua que aqui se coloca. Mas de

uma forma específica, pois esta implantação longe do sentimento de violentação,

deveria sentir-se como convite de todo favorável à criança surda. Os mestres do

ensino falavam constantemente dos inúmeros benefícios que adviriam a estes

“deserdados da sorte, preparando-os e dotando-os com a palavra” para que “mais

facilmente” afrontassem “as vicissitudes da vida” (Filipe, 1920:3).

Aprender a falar com a boca, e ler a fala na boca dos outros, constituía-se

como o grande desejo da criança surda. Ou pelo menos assim se construía.

A construção do surdo enquanto educando numa escola de ouvintes

pressupõe, à partida, que o mestre seja autor de uma conquista. Com que arte, era já

uma questão apresentada num compêndio para o ensino dos surdos-mudos, de 1881.

A resposta não anda longe do que tenho tentado tornar evidente. O trabalho sobre a

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alma do educando, parece ser o ponto essencial para que se alcance a sua vontade. “É

estimá-lo, e dar-lhe sinais de afeição. Por outro modo não se poderia obter dele

confiança, nem dominar sua índole selvagem”. Parece não haver qualquer dúvida de

que para conquistar a confiança do aluno, “ que se traduz logo em cega afeição, só há

um meio, a amizade, manifestada racionalmente por todos os meios e em todas as

ocasiões”. Construído um ambiente de confiança, o professor teria “nas suas mãos um

discípulo tão dócil” quanto “é dúctil a cera”. Daí para a frente, “com o calor do

carinho”, poderia moldá-lo à “forma” que lhe indicassem “a sua sabedoria e os

sentimentos do seu coração” (Leite, 1881: X, XI, 6, 7). Para que o processo educativo

do aluno surdo fosse viável, teve de se isolar o aluno numa espécie de redoma

protectora fabricada na espessura de mecanismos de relação professor-aluno, de

centragem do ensino na criança, de sistemas de vigilância, de tecnologias reguladoras

através das práticas inscritas no espaço institucional.

O que pretendo mostrar é que a colonização do corpo da criança surda pela

língua oral, torna-se possível unicamente porque o ouvinte, mestre, sabe como actuar

sobre a sua alma. Tomem-se as palavras de D. António da Costa, ainda no século

XIX, como ilustração do que deveria acontecer no processo educativo:

“Na educação, medicina da alma, o tecto é tudo; esforçai-vos por alcançá-lo.

Infiltrai-lhe o amor ao trabalho. Preparai-a para combater as paixões com que se

vai achar a braços, e para sair delas vitoriosa. A criança vai pedir à escola a

ciência da felicidade. Ensinai-lha, professores, convencendo-a de que a felicidade

consiste no cumprimento do dever, na limpidez da consciência, nas nobres

ambições de ilustrar o próprio nome com actos que beneficiem a humanidade”

(1870: 34, 35).

A educação enquanto medicina da alma tinha por função curá-la, afastá-la da

preguiça e de vícios, infiltrando-lhe o amor ao trabalho, prepará-la para enfrentar

paixões, negando-as e escolhendo caminhos racionais. No fundo, tudo o que a criança

desejava era ser feliz e a sua felicidade seria aquilo que o mestre desejasse que o

fosse. Era preciso, primeiro, que o educador mais do que instruir conseguisse captar o

seu aluno por forma a estabelecer uma relação de afecto. “Já que o surdo-mudo” se

apresentava, “antes de adquirir a instrução necessária como uma espécie de

selvagem”, o “primeiro cuidado” seria mesmo “o de merecer a sua confiança e

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estima” pelas “maneiras afectuosas e de o subjugar pela doçura e bondade” (Filipe,

1907: 6). Se, em certas pessoas, “a formação da vontade” era “fácil”, noutras, dizia-o

o Director Geral da Saúde Escolar, João Serras e Silva, era tarefa “difícil, e até muito

difícil”, “conforme a natureza” ajudasse ou não ajudasse. “Cultivar a vontade”

equivalia a “fazer grande parte da educação moral – dominar os desejos, as

impulsões, o amor do prazer ilícito […], o temor do esforço, […]. Ser dono de si

mesmo, dos seus nervos e das suas paixões. Cultivar a vontade não pertence ao

programa dum ano do liceu, pertence a todos eles” (1938: 222,223).

A transformação do surdo em aluno surdo implica o abandono de um estado

selvagem, e a entrada num mundo de moral. A aquisição da língua seria a

possibilidade de este desenvolver ideias – boas, más, justas, injustas, correctas,

incorrectas – legitimadas por uma comunidade que estabelecia a norma. “A

consciência, o valor dos actos morais, as exigências do dever”eram sem dúvida

“aspectos em que se” verificavam “diminuições de personalidade na criança surda”.

O dever – obrigação moral de qualquer membro da sociedade - seria, como já referi,

oferecer hospitalidade a estes estrangeiros que por não ouvirem estavam tão próximos

do despotismo dos “desejos”, das “impulsões”, dos “prazeres ilícitos”, da preguiça e

de tantos outros males, sem sequer disso terem consciência (Tavares, 1959: 11).

A ideia de um Estado jardineiro de que Bauman fala em Modernidade e

Ambivalência, tem que ver com um cultivo das plantas úteis e uma remoção, ou, pelo

menos um controlo e localização do crescimento das ervas daninhas. Ainda mais

porque essas que eram nomeadas como ervas daninhas eram “plantas que se

tornavam ervas daninhas simplesmente porque uma razão superior exigia que a terra

ocupada por elas fosse transformada em jardins de outros” (Bauman, 1999: 38). O

professor deveria assumir-se como jardineiro, devendo proporcionar à criança

condições de desenvolvimento em consonância com a sua vida interior. Não era,

portanto, da anulação do mestre que se falava mas antes de um actor que, dominando

técnicas especiais de intervenção, conseguisse criar raízes férteis na alma do aluno. A

postura do professor numa perspectiva das construções da modernidade, como a do

médico e, por analogia a do jardineiro, era construtiva mesmo quando identificava

irregularidades. Sobretudo, eram essas irregularidades que potenciavam os regimes

correctivos, ortopédicos ou higiénicos.

Saber, técnicas e discursos científicos tecem a possibilidade de poder, de

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Os surdos na escola

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controlar, de neutralizar, de modificar aqueles que se afastam da norma. São três os

tipos de tecnologias implicadas na educação das crianças surdas: as disciplinares, as

biopolíticas ou regulamentadoras, e as tecnologias do eu. Nesta segunda parte será

dada maior ênfase às tecnologias disciplinares e do eu, embora a regulamentação, a

normalização do aluno surdo permaneça sempre como pano de fundo de tudo o que

aqui será escrito, mas a verdade é que a alma, mais do que o corpo será o primeiro

objecto a ser conhecido e disciplinado.

(Amaral, 1954)

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A escola como oficina das almas

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A admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa

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2.A ADMISSÃO DO SURDO NA CASA PIA DE LISBOA: SAÚDE E HIGIENE,

EXAMES E REGISTOS

Ficha individual do aluno Correcção da respiração Observação audiométrica

(Arquivo da Casa Pia de Lisboa) (Amaral, 1954) (Amaral, 1954)

Será agora altura de olhar a paisagem educativa da Casa Pia como sendo habitada por

um conjunto de actores que assumia uma preponderância máxima quando se tratava

de dizer da saúde, do desenvolvimento, da normalidade e da anormalidade dos

escolares. Refiro-me claro está aos médicos que começam a ser presença constante na

Casa Pia de Lisboa desde o século XIX, muito embora, tenham sido o tempo e a

experiência a desenvolver a operatividade das técnicas médico-pedagógicas. A

criação de um Instituto médico-pedagógico na Casa Pia de Lisboa data de 1915,

instalado no edifício de Santa Isabel e devendo-se à iniciativa do seu director,

António Aurélio da Costa Ferreira. Iniciarei esta incursão sobre a figura do médico na

paisagem casapiana considerando duas tópicas essenciais a partir mais ou menos de

1850: a saúde e a higiene dos escolares. Embora pouco demorada, esta visita traçará

uma linha que nos conduzirá às práticas do exame e do registo, levando-me a

desenvolver estes conceitos de uma forma articulada. O exame dos escolares seria

inseparável da prática de registo que iria habitar os arquivos da instituição. A prática

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Saúde e higiene, exames e registos

192

que Erving Goffman lê como sendo de violação da reserva de informação quanto ao

eu do sujeito que é institucionalizado: “during admission, facts about the inmate’s

social statuses and past behaviour – especially discreditable facts – are collected and

recorded in a dossier available to staff”, naturaliza-se de tal forma que passa a ser um

procedimento que não é posto em causa nem pelos actores ao serviço da instituição

nem pelos que nela ingressam (1991: 32). De facto, esta prática de registo é útil a

vários níveis e insere-se numa perspectiva de governamentalidade. As relações de

poder e de saber aqui envolvidas determinam e legitimam a sua existência. Gostaria

de referir, por exemplo, que a obrigatoriedade de registo dos dados resultantes de um

exame determinava a vinculação à escrita dos actores da instituição. O saber passava

pela sua transcrição num discurso escrito que fixava, obrigatoriamente, uma

linguagem comum ao grupo de especialistas que tinha o poder de dizer sobre o aluno.

Foi aliás esta regularidade do registo que permitiu “estruturar uma política integrada

de governo, racionalizando o movimento e a distribuição da população” escolar,

“viabilizando igualmente um ensino individualizado e um trabalho terapêutico

direccionado para o corpo e a alma” de cada aluno (Ó, 2003: 10).

A introdução da medicina na paisagem escolar vem criar e desenvolver uma

lógica de construção científica do normal e do patológico. Será, portanto, mais uma

técnica moderna de controlo da sociedade: não só um poder que se fixa no corpo do

aluno, mas também, como se verá, na família e nos antecedentes hereditários dos

alunos (pais, avós, etc.). A presença de médicos na escola dá corpo à estratégia

biopolítica já apontada, marcando pela continuidade e intensividade do seu exercício

um regime normal que servirá de referente para a produção da docilidade e utilidade

do corpo. O aluno surdo seria, no contexto educativo, um objecto diferenciado pelo

olhar de um grupo de especialistas e, também, objecto de intervenção ortopédica. O

poder aplicado sobre estes alunos no sentido de uma normalização, invasivo da

condição surda é, porém, positivo e produtivo sob a perspectiva de

governamentalidade inerente ao bom governo da população. As estratégias de

distribuição, diferenciação e classificação dos escolares actuam em sistemas

reguladores e normalizadores, orientados pela ideia de uma população saudável. O

alargamento da prática clínica ao espaço escolar é imagem da contaminação de várias

áreas da vida e campos do saber por estas práticas, passando então a considerar-se no

interior do foro médico questões antes situadas fora deste e intensificando-se a

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relação que o sujeito passa a estabelecer consigo, impulsionada agora por um olhar

científico que funciona como interface na visão do corpo próprio.

Num Regulamento para os Regentes da Casa Pia de Lisboa datado de

Dezembro de 1859, são já manifestas as preocupações com a saúde dos educandos.

No artigo 6º ordenava-se que os Regentes evitassem “com a maior eficácia, que os

alunos” andassem “expostos ao sol” e que proibissem “qualquer divertimento que

lhes” pudesse “ser prejudicial”. No artigo 15º do mesmo Regulamento lê-se que “os

Regentes” procurariam “com a maior vigilância descobrir se algum dos seus alunos

sente algum incómodo de saúde, e neste caso”, os conduziria “imediatamente à

enfermaria” (Regulamento manuscrito, s/p). Saúde e higiene foram duas faces da

mesma moeda. Em 1880, num Regulamento para o Prefeito e sub-Prefeitos da Casa

Pia de Lisboa, determinava-se a obrigatoriedade destes actores em desempenharem

um cuidado serviço de vigilância quanto ao “asseio pessoal dos alunos, vestuário,

camas e utensílios do seu uso”. No artigo 16º estabelecia-se que nenhum aluno

deveria ter “bacia de cabeceira” que estivesse rachada, pois poderia feri-lo, e não era

permitido manter estes objectos “sem uma pequena porção de água a cobrir o fundo,

para evitar os maus cheiros e as incrustações”. Artigo 17º: os sub-Prefeitos

ordenariam “que os pentes finos se” conservassem “limpos, fazendo substituir

qualquer, que, pelo seu muito serviço não” estivesse em estado de bem servir”. Artigo

31º: Cada sub-Prefeito daria sempre “atenção aos alunos, quando” estes se

queixassem “de doenças, ainda que à primeira vista” parecesse o lamento

“impertinente ou vicioso, porque as crianças geralmente fogem a queixar-se, e

quando alguma maliciosamente o” fizesse, lá estaria “o facultativo para corrigir esse

abuso”. A regularidade de um discurso científico sob o ponto de vista da

maximização da saúde dos escolares adquiria grande expressão a tal ponto que,

mesmo os banhos quentes dos alunos, eram objecto de observação com o termómetro,

para verificar se a água estaria “na temperatura de 30 a 32 graus centigrados”, não

devendo ser o banho mais demorado do que “8 a 10 minutos”, e a presença dos sub-

Prefeitos para o rigoroso cumprimento destas normas disciplinares seria essencial.

Era sua a preocupação de vigiar as correntes de ar que pudessem “prejudicar a saúde

de qualquer aluno” e a manutenção no espaço da “casa de abafo” por um período de

“pelo menos dez minutos antes de saírem” para o exterior (Regulamento para o

Prefeito e sub-Prefeitos, 1880:7-19). Mas quem eram estes sub-Prefeitos e como

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conseguiriam fazer cumprir as regras? É evidente que “nem toda a gente tem a

predisposição mais conveniente para dirigir e tratar rapazes”. Decerto não seriam a

“severidade e a rispidez” “os melhores guias para governar crianças”, tampouco a

“benevolência piegas”. Os sub-Prefeitos eram pessoal que pela “força da autoridade,

conquistada pela correcção do procedimento, pela justiça e imparcialidade nas

apreciações e no julgamento dos factos e dos actos de todos os dias” relacionavam-se

com os alunos de forma afável, “com suavidade no trato”, com “seriedade de

carácter” (Margiochi, 1893: 23). As regras e o papel de cada actor permitiam gerir o

corpo de habitantes sob o mesmo tecto, tanto em termos disciplinares como

higiénicos e, consequentemente, em termos administrativos. Quando se sabe do

“terrível mal das oftalmias, que durante muitos anos zombou de todas as medidas

tomadas para seu aniquilamento”, atingindo “as proporções de 15 a 20 por cento, em

relação à população asilada” e das influências “do deplorável estado sanitário” desta

população devido à “acumulação em alojamentos de capacidade insuficiente”, às

influências nefastas de uma parca alimentação e à capacidade estrondosa de

proliferação das doenças devido a uma ausência de princípios higiénicos, facilmente

se percebe a necessidade de incorporar no corpo de especialistas da Casa Pia

elementos médicos (Silva, 1896: 125). Foi em 1861, por altura das grandes reformas

de José Maria Eugénio de Almeida que a Casa Pia passou a incorporar um médico

especialista de doenças oftálmicas. Na Portaria nº 20 de 25 de Janeiro de 1860,

Eugénio de Almeida, mandava publicar que os facultativos da Casa Pia passariam a

proceder a “uma inspecção rigorosa de todos os alunos para o fim especial de

examinarem as doenças de olhos, mais ou menos graves, de que cada um deles”

padecesse. Os resultados destes exames deveriam ser postos por escrito, “em um ou

mais documentos”, nos quais deveria constar o número do aluno na matrícula geral, o

colégio a que pertencia, o nome e idade. Igual inspecção deveria ser realizada às orfãs

e os documentos de registo teriam de especificar detalhadamente o estado geral da

saúde dos alunos, bem como a especificação da doença (Portarias da Administração,

nº1 a nº66: 66). Em 1895, Francisco Simões Margiochi, escrevia em A Real Casa Pia

de Lisboa, Notícia da sua fundação, que os “serviços sanitários” estavam a “cargo de

3 facultativos efectivos, 3 suplentes e um enfermeiro. Dois dos facultativos”

revezavam-se “fazendo serviços aos meses alternados”, sendo o terceiro “especialista

de doenças dos olhos” (1895: 24, 25). Sobre a higiene dizia ainda o Provedor:

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“A higiene, isto é, o conjunto de regras e precauções, que harmonicamente

concorrem para a conservação da saúde, é na Casa Pia escrupulosamente

atendida; é ela o objecto de um verdadeiro culto. [...] A higiene – segundo a

expressão de um médico distinto – é o senso comum aplicado a tudo. Por isso na

Casa Pia de Lisboa os cuidados da higiene” “acompanham o aluno de dia e de

noite, em casa e na rua” (Margiochi, 1895: 27).

Para uma boa higiene, para uma boa saúde dos alunos, todas as prescrições

desenvolvidas nos Regulamentos da Instituição entravam em diálogo. Era o discurso

positivo da ciência a legitimar as práticas disciplinares da instituição: mens sana in

corpore sano, corpos disciplinados, dóceis e úteis. Trabalhados nos mais ínfimos

pormenores, nos detalhes. Os espaços físicos como dormitórios, casas de banho e a

capacidade máxima de alunos por aulas, eram aspectos de extrema importância. O

desenvolvimento de uma mecânica temporal, alternando-se os momentos de trabalho

com os de lazer. A reformulação do horário das refeições “para estabelecer uma boa

relação entre estas e o trabalho escolar”. As tabelas de alimentação “estudadas de

modo que as necessidades fisiológicas da nutrição sejam inteiramente satisfeitas”. Os

pesos médios e, portanto, normais, dos alunos. A regra de que após o jantar “só há

aulas, em que não se exige trabalho intelectual”: “desenho, música vocal e

instrumental, ginástica e exercícios militares”. Para os recreios, Margiochi propunha

o foot-ball, iniciando-se aí uma prática marcante no percurso escolar dos alunos

casapianos. “Como fecho completo de um sistema de higiene” determinava-se

absolutamente a proibição de “castigos corporais. No código disciplinar” figurariam

apenas “castigos que não” prejudicassem “fisicamente os alunos” (Margiochi, 1895:

28, 29).

Todos estes parâmetros eram objecto de representação em quadros e tabelas:

fixava-se números, contabilizava-se presenças e ausências, propunha-se prémios e

castigos, desenhava-se horários, prescrevia-se exercícios, ordenava-se tarefas,

recomendava-se receituários, apontava-se as entradas e as saídas, as admissões e as

baixas. Entre uma linha vertical e uma linha horizontal sugeria-se uma imagem da

população escolar homogeneizada, ainda que depois, nas práticas escolares, médicas,

de exame ou de registo cada um tivesse direito ao seu espaço. O que merece lugar de

destaque é este apego à prática da escrita: tudo e todos são contabilizados. Todos são

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Saúde e higiene, exames e registos

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normalizados na higiene, na alimentação, nas doenças, nos horários, nas

necessidades. Uns são objecto da escrita, outros são sujeitos da escrita. Ambos se

encontram vinculados à instituição e são localizáveis. Em 1880, o Provedor da Casa

Pia, aprovava o Regulamento para as repartições da secretaria e fazenda

“considerando que, tornando-se mais completo o sistema fiscal, teve de aumentar a

escrituração; a disciplina, tornando-se mais rigorosa e eficaz, sobrecarregou a parte

administrativa, de onde veio a necessidade de multiplicar o serviço de expediente”

(Almeida, 1881:62). O objecto onde se lêem estas palavras era igualmente elo de

ligação à prática do registo. Os Relatórios da Administração, regulares pelo menos a

partir de 1850, constituíam a memória das práticas que hoje se abrem a múltiplos

olhares. Já aqui referi que a biopolítica enquanto tecnologia que toma o corpo da

população tendo em vista contabilizar, classificar e corrigir-lhe os erros, estrutura-se a

partir da produção de um saber que promete pela norma, atingir cada sujeito na sua

individualidade e o faz caminhar em busca de uma felicidade. O controlo, a

observação, a fixação das práticas em discursos escritos, fundamentam a necessidade

de regulamentar para atingir pontos de equilíbrio. Evidentemente que a estatística

aparece como a ciência capaz de passar do uno ao múltiplo, possibilitadora de uma

imagem de um só corpo com inúmeras cabeças como o dos habitantes da Casa Pia de

Lisboa:

“Nos grandes agrupamentos de indivíduos, agrupamentos a que se dá o nome de

estados, não há dúvida de que a estatística, reduzida [...] a um estabelecimento

ainda assim da importância da Real Casa Pia de Lisboa, que, na sua larga

existência, tem tido um enorme movimento de gente, de material, de dinheiro e

de factos de variadíssima ordem” “além de dar uma noção clara e precisa da

marcha da existência da instituição, deve, pela comparação dos números,

despertar a atenção para muitos assuntos que, sem esse precioso auxiliar de toda a

administração, passariam sem reparo, não havendo meio de apreciar factos sem

intervir a comparação numérica de onde provenha mudança de orientação numa

determinada ordem de ideias” (Margiochi, 1893: 27, 28).

Não bastaria a compilação de dados, afirmava Margiochi, era necessário

interpretar esses dados para se atingir uma maximização de forças, com uma

economia de meios. Então, a introdução de “dados estatísticos” em “dezenas de

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quadros comparativos, seriam elementos preciosos de estudo”. “E que valiosos

elementos de estudo para tantos fins” (Margiochi, 1893: 30). É de disciplina que se

fala, de observação dos mínimos detalhes, de um poder que estende o seu olhar sobre

todos os sujeitos, sobre os gestos mais quotidianos e que se faz circular. A Casa Pia

foi uma instituição moderna que nunca cristalizou e por isso é necessário entendê-la

na complexidade de redes que se foram estruturando. O exercício do poder que mais

facilmente se lê em quadros de submissão a regras institucionais, na verdade,

constituiu sempre um jogo estratégico de acções sobre acções, de efeitos sobre

efeitos.

Impossível não considerar o corpo como elemento central dos discursos

produzidos em volta do aluno: o corpo no espaço, o corpo na relação com os outros, o

corpo disciplinado, o corpo útil, o corpo a corrigir, o corpo a alimentar, o corpo a

educar, o corpo sempre alvo de observação. O corpo visto, escrito, fichado, dito e

guardado em palavras ou em imagens fotográficas nos arquivos casapianos. Mas

também, o corpo que se fabricou a si mesmo na sua experimentação do espaço, nas

relações com outros, que se disciplinou, se tornou útil e se corrigiu porque esse era

um domínio sobre si mesmo.

Sugiro agora apresentar o corpo na sua relação directa com as práticas

clínicas.

Lê-se assim no artigo 12 da Portaria nº 169, de 1886:

“Os orfãos chamados para entrar serão, antes da admissão, examinados por uma

comissão de facultativos, para se verificar se têm moléstia ou impedimento, de

que derive impossibilidade de entrar na Casa Pia.

§Único. Quando a moléstia ou impedimento, de que trata este artigo, for

temporário, o orfão será submetido a novo exame, três meses depois de se haver

feito o primeiro exame” (Almeida, 1886: 9).

Ora, o que se detém desta regra é o poder de constituir um saber sobre o

indivíduo, mesmo antes de ele ser incorporado na instituição. O exame de admissão

de qualquer aluno na Casa Pia passava pela observação e pelo registo, pelo olhar

legítimo de um especialista capaz de traduzir o que vê num discurso científico. E não

é apenas, como veremos, o sujeito que no momento da admissão se expõe perante o

médico, mas também o sujeito que se foi e o meio de que se provém. Michel Foucault

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Saúde e higiene, exames e registos

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refere a introdução do ‘biográfico’ no sistema penal como algo que faz “existir o

criminoso antes do crime e, num raciocínio-limite, fora deste” (2004:211). Como se o

passado que constituiu o indivíduo que se tem diante pudesse justificar as suas falhas,

os seus comportamentos actuais ou futuros. Estabelece-se uma rede causal entre o

que se foi e o que se será, legitimando assim qualquer prescrição terapêutica vinda da

boca de especialistas.

O Regulamento Geral da Casa Pia de Lisboa de 1904 determinava no Capítulo

X, os procedimentos obrigatórios relativos ao serviço clínico da instituição. Este

serviço médico seria feito por dois especialistas, um deles de doenças dos olhos,

competindo-lhes “fazer diariamente o serviço clínico dos alunos e empregados

internos doentes”, “fazer semanalmente uma inspecção geral de saúde”, “fazer o

serviço de inspecção para admissão dos menores”. No momento de admissão

deveriam os dois médicos examinar “minuciosa e atentamente os menores

apresentados” e preencher “o respectivo boletim, no qual” indicariam “se o menor”

estaria “apto para ser desde logo internado” ou se carecia de ficar em espera um

período de tempo por razões do “seu estado físico ou moral” ou por não poder

“aproveitar a educação” ou ainda, por a sua admissão representar um perigo para o

higiene do estabelecimento. No momento de admissão e “em épocas” determinadas

pela direcção, dever-se-ia proceder às “mensurações antropométricas dos alunos”

(Regulamento 1904: 38, 39). Não há, portanto, muitas diferenças entre os ditames

deste Regulamento e o de 1886, ainda que aqui se apele a uma cientificidade e rigor

da observação e se refira uma nova ciência de apuro de medidas e comparações.

Mesmo esta era, de resto, já falada em 1894. A portaria nº 70 desse ano considerava

“muito conveniente e interessante que numa colectividade tão numerosa como” o era

“o corpo dos alunos da Real Casa Pia de Lisboa”, se estudasse “em todo o

desenvolvimento a antropometria”. Francisco Simões Margiochi afirmava que era

mesmo “obrigação moral” “colher dados” que representassem uma “contribuição

valiosa para os estudos antropológicos” e que poderiam “com vantagem, ser

aproveitados pelos indivíduos ou corporações” que se dedicassem a tais estudos,

“como a sociedade de ciências médicas”. Este era um saber cujos custos de obtenção

eram praticamente nulos. Os alunos estavam à total disposição para serem

observados, tal como o pessoal em exercício de funções no estabelecimento. Todavia,

enquanto que para os segundos a submissão a exames antropométricos seria

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facultativa, para os primeiros estabelecia-se que passasse a obrigatória. Desenhavam-

se três campos de observação e registo: perimetria da cabeça, do tórax e da coxa,

dinamometria das mãos, do pulmão, da tracção, do murro, do soco e do pontapé, por

fim, o peso dos escolares (Margiochi, 1894: 36, 37).

Em 1915, por ocasião da inauguração do Instituto médico-pedagógico,

António Aurélio manifestaria a utilidade de um diálogo próximo entre pedagogia e

antropologia. Dizia mesmo que “de futuro, todo o educador será antropologista, visto

que àquele muito importa conhecer a acção da hereditariedade, para melhor

aproveitamento e mais completos resultados do seu trabalho”. A razão era explícita:

“certos degenerados que muitas vezes na escola não conseguiriam aprender a

conhecer sequer os números, são susceptíveis de aprender a ler por processos

especiais de educação. Depende de lhes ir educando os sentidos, habituando-os a

fixar a sua atenção sobre as coisas e os objectos, ensinando-os progressivamente a

distinguir cores, formas, dimensões, etc.” (Anuário 1915-1916: 411). Do que falava o

Administrador da Casa Pia era da constituição de um saber que facilitasse o exercício

de um poder sobre o aluno, tornando mesmo aqueles que à partida se considerariam

ineducáveis, em sujeitos educáveis como todos os outros. Convertê-los em alunos

passando então a governá-los, estudando técnicas aplicáveis e eficazes sobre estes

seres. Cada indivíduo se tornaria um corpo útil, fosse pelo saber que permitia extrair

da sua condição, fosse pela incorporação de gestos, de comportamentos disciplinados,

pelos efeitos, relações e articulações com outros. Um primeiro momento de exame

pode ser visual, o médico observando o doente, mas é no interior dessa observação

que o médico garante ao questionário que se seguirá, o seu lugar num campo

discursivo. Cada um se torna um elemento observável e descritível mas não, como já

referi, objecto de um olhar naturalista. A leitura do indivíduo parte de uma visão

médica que percorre o corpo, mede, compara, procura revelar segredos que o corpo

esconde, desoculta verdades. Na admissão à Casa Pia de Lisboa os futuros alunos

expunham-se a um olhar sábio e produtivo, entravam individualmente num campo de

saber.

As crianças surdas que passaram a habitar a Casa Pia a partir de 1905 estariam

sujeitas a este mesmo Regulamento, ainda que, no seu caso, os exames médicos de

admissão tivessem de ser mais rigorosos e específicos no que dizia respeito à

incapacidade auditiva. Era necessário determinar com rigor as causas e os graus da

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Saúde e higiene, exames e registos

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surdez, não só para que sobre a doença se pudesse constituir um retrato rigoroso, mas

também para traçar com rigor as práticas pedagógicas a aplicar a cada aluno. O

exame enquanto técnica que documenta aquele que a ele se sujeita “faz de cada

indivíduo um ‘caso’: um caso que ao mesmo tempo constitui um objecto para o

conhecimento e uma tomada para o poder”. O caso “é o indivíduo tal como pode ser

descrito, mensurado, medido, comparado a outros e isso em sua própria

individualidade; e é também o indivíduo que tem que ser treinado ou retreinado, tem

que ser classificado, normalizado, excluído, etc.” (Foucault, 2004: 159).

Ary dos Santos após uma observação rigorosa das papeletas sanitárias dos

alunos da secção de surdos relativas aos primeiros 52 alunos do século XX, bem

como dos questionários realizados no momento de admissão, denunciava

“deficiências nas respostas e até manifestas contradições” (Santos, 1920:3). Ora, seria

tarefa dos médicos escolares inquirir pormenorizadamente a família do surdo quanto

à primeira infância da criança e também indagar relativamente aos antecedentes

familiares do aluno. Muitas das causas da surdez poderiam resultar de manifestações

hereditárias ou de acontecimentos patológicos precoces na vida da criança. Num

quadro que nos fornece uma imagem da população surda da Casa Pia nos anos de

1905-1906, dos 37 alunos registados, ficamos a saber da causa da surdez de 29 destes

alunos. Destes, 19 foram diagnosticados com surdez adquirida devido essencialmente

a meningite, mas também, embora numa percentagem muito inferior, se possa

encontrar o sarampo, a febre tifóide, otite, garrotilho e escarlatina. Os restantes 10

alunos foram classificados como surdos congénitos devido à consanguinidade dos

pais (primos em 1º grau), ao facto de provirem de regiões montanhosas e húmidas, a

quedas graves, maus-tratos ou sustos da mãe durante o período de gestação. Para

além da identificação de cada um dos alunos, este mapa geral da população surda da

instituição fornece-nos as idades dos mesmos, variando entre os 4 e os 20 anos, sendo

que na coluna relativa ao estado intelectual dos alunos a 1 de Fevereiro de 1906, nos

informa que uns são ‘nulos’, outros que sabem ler, escrever e contar, uns

mediocremente, outros, de forma regular, alguns deles desenham. Todavia, os

inúmeros exames médicos efectuados aos alunos permitiriam compor uma tabela de

incidências de várias doenças em surdos do sexo feminino e masculino, uma

comparação relativamente aos mesmos géneros ouvintes, extrair conclusões e estudar

possibilidades correctivas para este grupo.

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A admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa

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Ary dos Santos foi incisivo nos estudos apresentados até 1920 relativos aos

exames efectuados aos alunos surdos da Casa Pia de Lisboa. Apresentou inúmeros

quadros estatísticos contendo “resumidamente tudo quanto” colheu “ nas inspecções

clínicas feitas aos alunos da Secção de surdos-mudos” (Santos: 1920: 32). Mais do

que os dados aí fornecidos, interessa-me analisar a prática do registo como forma de

classificação e diferenciação dos alunos que permitiria, fundamentalmente, duas

situações. A primeira era um retrato da população acolhida na instituição, pensada já

de forma racional, inserida numa grelha acessível a qualquer actor que lidasse

directamente com o aluno, quer dizer, uma massa de dados claramente útil do ponto

de vista de uma tecnologia biopolítica. A segunda situação prende-se com a

legitimidade que esta recolha e registo de informações relativos a cada um dos

escolares dava às prescrições terapêuticas e práticas educativas dirigidas a cada

educando. Dois processos, portanto, de objectivação e de sujeição produtiva. Estes

quadros de visualização respondiam de forma clara à inscrição no tecido escolar de

um novo vocabulário, progressivamente mais técnico e mais detalhado, de

enunciações discursivas que acabavam por determinar o tipo de experiência e o tipo

de aluno que seria construído no interior daquela paisagem escolar. Era também a

inscrição de cada aluno num campo de observação.

Observação psicológica pela Escala de Weschler

(Amaral, 1954)

Gabinete médico. Um aluno surdo segura na mão direita uma folha que lhe é

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Saúde e higiene, exames e registos

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dada pelo médico. O aluno observa o papel e é observado pelo clínico que o olha,

expectante, à espera de uma resposta, de um gesto, de um assentimento de cabeça. O

médico segura também o pequeno pedaço de papel com a mão esquerda enquanto

com a mão direita agarra uma caneta pronta a registar qualquer resultado. A imagem

é de tensão, nela se exprimem saber e poder e há uma articulação clara entre um e

outro. O aluno olha o papel, o médico olha o aluno e segura o papel, a mala de onde o

papel terá sido retirado permanece aberta pronta a contê-lo novamente, para posterior

utilização com qualquer outro aluno. A mesa separa o observador do observado,

todavia, também este é observador e será do resultado da sua observação que se

produzirá um saber sobre si. Aurélio da Costa Ferreira expressava-o desta forma:

“Os fenómenos psíquicos, as formas de actividade do indivíduo, os seus actos, as

suas maneiras de reagir, são fenómenos que se podem observar, provocando-os

ou não, em circunstâncias estritamente definidas e praticando os métodos que se

praticam, por exemplo, na física: a observação e a experiência, cientificamente

dirigidas, isto é, em condições de se poderem repetir e verificar, com precisão. A

mentalidade, a alma, é um conjunto de possibilidades, de faculdades ou poderes

de reagir, que se manifestam, que se exteriorizam em acções, as quais se podem

estudar cientificamente” (1922: 13).

O indivíduo seria caracterizado pela forma da sua resposta. Instrumentos

necessários eram, tal como afirmava Binet, nenhuns outros para além de “uma pena,

um pouco de papel e muita paciência” (Ferreira, 1922: 15). Ora, parece-me por

demais evidente que as regras de governamentalidade estão instaladas no discurso

médico-pedagógico, quer dizer, o clínico produzia um discurso que, no limite, se

estruturava como a verdade sobre aqueles que eram objecto de enunciação. O

conhecimento produzido sobre cada escolar condicionava e ao mesmo tempo

constituía a sua idiossincrasia, tornava-o também elemento calculável num espaço

composto e complexo de relações entre uns e outros, como o era a escola. Mas neste

processo de representação do aluno, também o médico esboçava uma representação

de si próprio. O espaço da escrita é um espaço de governo e de autogoverno. Registos

diários são realizados por cada professor em cada disciplina, assinalando a presença

ou ausência do aluno, a sua performance face aos que conteúdos ou às atitudes que se

pretende que ele incorpore e manifeste, a sua evolução ou possível regressão. No

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A admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa

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processo individual de cada aluno consta, também a classe dos factos mais

importantes a destacar no interior da instituição. Há, em primeiro lugar, uma ficha de

admissão, cartas de pedido de entrada na instituição ou encaminhamento

especializado, questionários exaustivos feitos por especialistas da instituição sobre a

vida anterior do aluno, situação dos pais, ocupação, doenças, maus vícios, economias.

Depois, consta o percurso do aluno desde o momento da entrada na instituição. As

suas capacidades, o seu comportamento, positivos ou negativos, dão origem a

prémios ou a castigos. Contudo, prémio e castigo tendem a cada vez mais ausentar-se

do campo da materialidade.

Importava estabelecer um espaço discursivo útil que, por um lado

individualizava o corpo do aluno, localizando-o num ponto específico ao longo de

uma série e, por outro, homogeneizava o corpo de todos, num único corpo, corpo

múltiplo, capaz de por si falar de todos: “a colocação em quadro tem por função”

“tratar a multiplicidade por si mesma, distribuí-la e dela tirar o maior número possível

de efeitos”. Ligando a singularidade de cada aluno, à multiplicidade do grupo, a

transcrição e codificação dos dados obtidos a partir da observação, do exame ou do

inquérito, permitia “ao mesmo tempo a caracterização do indivíduo como indivíduo,

e a colocação em ordem de uma multiplicidade dada”. Esta era e é ainda hoje, uma

táctica disciplinar que funciona como “condição primeira para o controle e o uso de

um conjunto de elementos distintos: a base para uma microfísica de um poder que

poderíamos chamar ‘celular’” (Foucault, 2004: 127).

O registo escrito articulava-se com a prática do exame. Em contexto escolar o

exame assume uma presença marcante e, quer seja de um exame que procura aferir as

capacidades intelectuais, de memorização, de operatividade, é sempre do corpo que

se fala. Do corpo enquanto objecto impulsionador de um saber que induz a uma

hierarquização, vigilância e normalização. Numa instituição de carácter disciplinar a

prática do exame é espelho da manifesta “sujeição dos que são percebidos como

objectos” e, igualmente, “objectivação dos que se sujeitam” (Foucault, 2004: 154).

Todavia, porque precisamente possibilita relações de poder, o exame é uma técnica

útil e produtiva na constituição de um saber necessário ao governo dos alunos, mas de

um saber que se cola à pele do sujeito que é seu objecto, tornando visíveis e

inteligíveis as suas características, traçando referenciais reguladores porque

construídos discursivamente como desejáveis. É certo que o exame se concebe como

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Saúde e higiene, exames e registos

204

instrumento estruturado e estruturante, resultando daqui um poder simbólico que

impõe padrões normativos: “combinando vigilância hierárquica e sanção

normalizadora” (Foucault, 2004: 160). É importante notarmos que os saberes

provenientes da prática do exame derivam da voz de um conjunto de especialistas

inscritos numa área médica e, portanto, falando uma linguagem verdadeira e

verdadeiramente científica. Era esta linguagem rigorosa que haveria de constituir a

base para uma futura acção no sentido de corrigir o mais possível defeitos físicos

associados à surdez e determinar uma conduta moral e ética regulada. Práticas

comuns nos exames dos alunos surdos seriam as mensurações toráxicas,

determinando perímetros axilares e xifoideos máximos, mínimos e diferenciais,

estabelecendo médias para um e para outro sexo; mensurações dinamométricas da

pressão da mão direita e da mão esquerda, tracções e médias; determinação da

circunferência máxima dos membros: braço, coxa, antebraço, perna e respectivas

médias; exame objectivo do ouvido externo; exame funcional do labirinto;

verificação das anomalias do pavilhão auricular quanto às inserções assimétricas,

comprimentos bilaterais excedendo ou sendo inferiores às linhas limítrofes,

dimensões e larguras desiguais, ângulos céfalo-auriculares maiores do que o normal e

desiguais, assimetria do tubérculo de Darwin e um sem número de pontos detalhados,

pertencentes a um campo de saber estritamente clínico. Esta gramática dominada por

um grupo restrito de especialistas, permitia, no entanto, fazer o levantamento das

características, propriedades e taxinomias relativas a cada sujeito.

No terceiro volume da História da sexualidade, Michel Foucault mostra-nos

como o cuidado que o indivíduo estabelece consigo mesmo está, “segundo uma

tradição que remonta longe na cultura grega”, “em correlação estreita com o

pensamento e a prática médicas”. A partir de um conceito de “phatos”, aplicado

“tanto à paixão como à doença física, à perturbação do sono” ou “ao movimento

involuntário da alma”, percebe-se uma perturbação do equilíbrio capaz de induzir

comportamentos ou manifestações no sujeito, contrárias à sua vontade. Tornou-se

possível construir uma “grelha de análise válida para os males do corpo e da alma”,

um esquema nosográfico que permitiu aos estóicos fixar graus de desenvolvimentos

dos males e desenvolver mecanismos de cura para os diversos estádios da doença

(1994: 66, 67). “Séneca”, diz Foucault:

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A admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa

205

“distingue os doentes curados total ou parcialmente dos seus vícios, dos que se

libertaram das suas doenças mas não ainda das suas afecções; há aqueles que

recuperaram a saúde mas são ainda frágeis por causa das disposições que não

foram corrigidas. Estas noções e esquemas devem servir de guia comum à

medicina do corpo e à terapia da alma. Permitem não apenas aplicar o mesmo

tipo de análise teórica às perturbações físicas e às desordens morais, mas também

seguir o mesmo género de abordagem para intervir em relação a uns e a outros,

ocupar-se deles, tratá-los e, eventualmente, curá-los” (1994: 67).

O que gostaria de destacar do quadro que Foucault nos fornece analisando a

cultura grega, como forma de conceber, volto a repeti-lo, uma genealogia do modo

como o sujeito se relaciona consigo de um ponto de vista ético, diz respeito à

interdependência crescente do objecto corpo e da ciência médica, estabelecendo

quadros que permitem localizar e classificar cada sujeito ao longo de uma linha

imaginária, mas referencial. O cuidado de si, que se inscreve como questão de

construção da identidade e da subjectividade, fixa-se a um nível da linguagem

enquanto tecnologia do eu, pretendendo por uma certa arte de governar, fundir-se

com as técnicas do eu:

“Tratar-se-ia de transformar a linguagem e os critérios fornecidos para agir sobre

o corpo, os pensamentos e a conduta do aluno exactamente naqueles em que ele

deveria percepcionar os seus próprios, defeitos, desvios ou vícios ou ainda

projectar os seus ideais de realização e felicidade” (Ó, 2003: 401).

Seria conveniente corrigir os males do corpo pois estes facilmente

contaminariam a alma. O corporal não poderia nunca sobrepor-se a uma vontade

consciente do sujeito. O intercâmbio entre os males do corpo e da alma era

acautelado por uma relação entre actores. Para que o cuidado de si fosse uma prática

real, teria de se construir a partir do convite de “aproximação (prática e teórica), entre

medicina e moral”. “A prática de si implica que o sujeito se constitua a seus próprios

olhos não apenas como indivíduo imperfeito, ignorante e que tem necessidade de ser

corrigido, formado e instruído, mas ainda como indivíduo que sofre de certos males e

que deve tratá-los seja por si mesmo, seja através de alguém que tenha competência

para o fazer. Cada um deve descobrir que está em estado de necessidade, que lhe é

preciso receber medicação e socorro” (Foucault, 1994: 70). Ora, esta perspectiva

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Saúde e higiene, exames e registos

206

permite uma instalação dos especialistas da alma na paisagem educativa. Mesmo o

pedagogo, como aliás, verificámos já noutra secção, deveria passar a dominar uma

gramática assente numa técnica de análise psicológica de forma a centrar qualquer

acção, na alma do seu educando.

José da Cruz Filipe, num Relatório enviado em 1907 à Casa Pia de Lisboa,

dando conta da sua especialização no Instituto de surdos-mudos de Paris, dizia que:

“A primeira preocupação do professor, assim que o aluno se apresenta na aula,

deve ser a de proceder ao exame do seu estado físico e intelectual”. Eram sete os

pontos essenciais da observação informada do professor: “1º Se o aluno

apresenta alguns defeitos físicos, tais como: a deformação do crânio ou da cara, a

paralisia de um membro, o estado defeituoso da dentição, etc,; 2º Se o aluno

ainda possui um pouco de ouvido; para este exercício basta o professor colocar o

aluno de costas voltadas para si próprio e pronunciar-lhe as vogais ao ouvido; se

ele as repetir é porque se poderá servir do ouvido, não muito, durante o tempo da

sua instrução, mas é preciso ainda submetê-lo a exercícios especiais; - se não as

repetir, mas se der a entender que ouviu um ruído é porque só possui um pequeno

resto de audição, o qual não pode ser empregado no ensino; 3º Se o aluno

apresenta algum defeito das pernas, e para isso, é preciso que o faça marchar; 4º

Se o aluno tem defeitos na vista, tais como: a miopia, o estrabismo etc, etc, que é

muito prejudicial para o ensino. Se acaso se lhe apresentar um aluno nestas

condições o professor deve ter o cuidado de o colocar o mais perto de si, possível

para poder seguir os mesmos exercícios que os seus camaradas; 5º A voz que o

aluno ainda pode possuir, porque é importante conhecer desde o começo da

instrução a voz ou a afonia de cada aluno; 6º Se nos primeiros exercícios que

fizer, há alguns alunos que são mais rápidos a executá-los. Este exame tem a

vantagem do professor vir a saber quais são os alunos mais atrasados, para depois

os tomar mais especialmente aos seus cuidados, para evitar que haja uma cauda

na classe, isto é, para evitar que haja alguns alunos muito mais atrasados do que

outros; o que será prejudicial porque o professor não poderá fazer os mesmos

exercícios, ao mesmo tempo a todos os alunos;7º Se o aluno recebeu alguma

instrução; algumas vezes é mesmo ele que nos diz o que ele sabe; mas caso, seja

necessário o professor proceder a este exame pode servir-se da leitura super labial

e da escrita. A única linguagem que o professor deve empregar com o seu aluno

no começo da instrução, é a linguagem da acção, quer dizer, a linguagem que fala

à inteligência a realização completa de uma acção material, a designação directa

de objectos ou de fenómenos acessórios à vista” (Filipe, 1907: 7-10).

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A admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa

207

Longe iam os tempos do século XIX em que se “utilizava uma trombeta para

verificar se os seus alunos conservavam alguns sinais de audição” (Filipe, 1920: 6).

Nos anos cinquenta do século XX, Antonino Gonçalves Amaral, director do instituto

de Jacob Rodrigues Pereira, referia-se aos testes auxiliares para classificação de cada

criança com problemas auditivos como sendo a única possibilidade para a

determinação de um correcto caminho didáctico. “Lamirés”, “compreensão dos

sons”, “peep-show” e testes audiométricos afiguravam-se como as provas necessárias

para determinar o quantum de surdez invadia o corpo da criança (Amaral, 1956: 11-

13). Todavia, não se pode pensar a entrada de novos instrumentos e de novos

especialistas na paisagem escolar sem que se considere a imprescindibilidade da sua

presença para aquilo que era o próprio projecto da escola. Quando Cruz Filipe esboça

esta proposta de observação individualizada do aluno, tem em mente a prescrição de

um conjunto de exercícios que deveria facilitar a aquisição da língua oral ou a

correcção de defeitos associados ao estado surdo do aluno. E Amaral falava “em

normalizar tanto quanto possível a vida dos deficientes de audição” (Amaral, 1956:

5). A observação sobre o aluno e a sua performance, quando determinada por lentes

científicas, inscrevia-se a um nível de economia dos discursos, precisamente porque

se situava num campo de conhecimento científico. Apesar desta objectivação dos

dados recolhidos, que tornavam o aluno visível num campo de nomeação, a verdade é

que se abre espaço para as variabilidades individuais de cada educando e, no caso das

crianças surdas, o seu agrupamento em classes de aprendizagem deveria depender das

suas necessidades específicas. O campo do registo e observação médico-pedagógico é

um dispositivo tecnológico que se estende muito para lá do momento em que

acontece num gabinete médico. Configura-se como acontecimento ininterrupto no

dia-a-dia da Casa Pia de Lisboa. Os olhares dos educadores, como o dos médicos

deveria ser treinado para ver e interpretar nos escolares manifestações determinadas,

sob um ângulo de visão médico e psicológico.

Palyart Pinto Ferreira alimentava a ideia de que o exame psicológico de uma

criança “deveria ser mais para os professores do que para os médicos”. Os primeiros

estariam “mais habituados a tratar com crianças” do que os segundos, “melhor”

conheceriam “as suas formas de defesa, e como pô-las à vontade”, sendo este um

factor essencial para “o descobrimento das suas faculdades” (Ferreira, 1930a: 12, 13).

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Saúde e higiene, exames e registos

208

Em 1934, Faria de Vasconcelos reunia Algumas das Fichas mais Notáveis de

Observação, Para Observar as Crianças, onde exprimia a necessidade de o professor

conhecer as diferenças entre cada escolar, “pois de outro modo não pode educar os

alunos convenientemente”. E para conhecer as crianças era “indispensável colher

sobre cada uma delas todos os dados necessários”. Como o fazer, satisfazendo todas

“as exigências do espírito científico” era o que o pedagogo se propunha examinar. “A

experiência do observador” assumia o topo da lista de prioridades numa boa

observação e esta seria resultado de um “treino persistente prolongado” (Vasconcelos,

1934: 10-12). Quando instalada no espaço escolar, mais a mais num espaço de

internato, e tendo como actor o próprio professor, a técnica de observação-registo-

interpretação concebia-se num ambiente de todo favorável pois teria ao seu dispor,

em directo, os indivíduos em inúmeras situações ao longo do dia. Exigia-se,

obviamente, a vinculação à escrita e o estabelecimento de um plano e era aqui que

entravam, com inúmeras vantagens, as fichas de observação que Vasconcelos refere.

“Estas fichas”, escrevia-o assim:

“são um repertório de perguntas ordenadas e agrupadas sob as rubricas dos

principais processos e actividades fisiológicas e psicológicas da criança”, tendo

por objecto “auxiliar o professor e o médico no caminho a seguir para observar a

criança”. Isto é, delinear um trajecto para a produção de um conhecimento.

“Permitir que com os dados obtidos” “se possam estabelecer as características

diferenciais da criança”, bem como as “suas qualidades, aptidões, lacunas e

defeitos”. Dados estes que serviriam de “guia, depois de colhidos” “para

proceder, em bases mais seguras, à sua educação ou ao seu tratamento”

(Vasconcelos, 1934: 19).

A escrita configurava objectos documentais que serviam para ser utilizados

num contexto disciplinar extremamente produtivo e útil. Não posso deixar de voltar à

questão da admissão do aluno surdo na Casa Pia de Lisboa e de referir duas tópicas

essenciais. Uma tem que ver com a discursividade tecida pelo inquérito e primeiros

exames médicos ao aluno, estruturando a sua história de vida e configurando o seu

estado no momento da admissão. Dando-lhe uma visibilidade sem lacunas. A ficha

biográfica, enraizando-se num conhecimento científico da criança, era o equivalente à

cartilha biográfica Montessoriana, consistindo num inquérito à vida social, familiar e

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A admissão do surdo na Casa Pia de Lisboa

209

eventualmente escolar, do aluno. Das respostas surgiriam “valiosos subsídios para a

determinação do carácter e do tipo mental do aluno”. Através de factores como

“descendência, alimentação, trabalhos extra-escolares”, “condições sociais e meio

ambiente em que nasceu e vive, heranças atávicas, princípios ancestrais que sobre” a

criança pesariam, enfim, um avultado número de parâmetros influentes naquilo que

cada criança poderia ser enquanto aluno (Anuário 1916-1917: 314, 315). Pelo

conhecimento individual de cada aluno tornava-se cada individualidade governável e,

simultaneamente tornava-se possível qualquer intervenção de tipo correctivo. A

segunda, apresento-a como uma imagem instantânea, daquelas que num momento são

e depois já não são senão memória, a não ser pela sua cristalização em escrita que se

conserva arquivada. Esta imagem será o impulso para o próximo capítulo:

“A entrada é sempre uma passagem, uma mudança de status – e esse misterioso

evento de avatar mais do que tudo coloca o ‘estranho de ontem e nativo em

perspectiva’ em conflito com o mundo onde deseja entrar, um mundo que baseia a

sua confiança (e, antes de mais nada, sua atracção para o estranho) na suposição

de que ninguém jamais é transformado, de que ninguém jamais sai nem se

encontra cá fora. O episódio de entrada marca o ‘ex-estranho’ para sempre –

como uma criança trocada ao nascer, uma pessoa que pode optar e escolher, que

tem a liberdade que os ‘apenas nativos’ não possuem, cujo status não pode jamais

ter o mesmo grau de solidez, finalidade e irreversibilidade que o dos nativos”.

“Ele é um eterno nômade, sempre e em toda a parte errante, sem esperança de

jamais ‘chegar’” (Bauman, 1999: 88, 89).

Esta ausência de um chegar definitivo é o que marca a construção da

identidade do surdo e determina uma busca perpétua por uma perfeita arte de

governar.

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As regras da casa

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3.AS REGRAS DA CASA

Alunos vestindo-se depois do banho

(A ilustração Portuguesa de 8 de Abril de 1907)

“Não há um só lugar na sociedade em que estejam

[os indivíduos] realmente à vontade e que possa

conferir-lhes uma identidade natural. A identidade

individual torna-se portanto algo a ser ainda

alcançado (e presumivelmente a ser criado) pelo

indivíduo envolvido e nunca segura e definitivamente

possuído – uma vez que é constantemente desafiado

e deve sempre ser de novo negociado. [...] Todas as

relações com os outros sendo em última análise

meras estações na estrada pela qual o eu chega a si

mesmo” (Bauman, 1999: 211).

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Prótese-ouvinte

212

Nesta secção pretendo abordar a entrada da criança surda na Casa Pia de Lisboa a

partir de dois ângulos. Um deles, aberto para as regras impostas por uma instituição

de carácter total e outro, com abertura para o campo da experimentação dessas

mesmas regras pelo próprio aluno surdo. Para tal conto essencialmente com dois tipos

de documentação: os enunciados discursivos que compunham os Regulamentos e a

narração na primeira pessoa, escrita por um ex-aluno surdo da Casa Pia de Lisboa

relativamente ao seu tempo de aluno.

Erving Goffman utiliza a expressão regras da casa, “house rules”, referindo-

se a um conjunto explícito e formal de “prescriptions and proscriptions that lays out

the main requirements of inmate conduct” (1991: 51). Estas regras, como nos foi

possível verificar no último capítulo da primeira parte, determinam e especificam

detalhadamente a vida diária do interno numa instituição de carácter total. Goffman

desenvolve aqui, no entanto, um aspecto que impulsionará esta análise no que diz

respeito à experiência inicial por que passa o sujeito que é institucionalizado. Diz

assim:

“Admission procedures, which strip the recruit of his past supports, can be seen

as the institution’s way of getting him ready to start living by house rules”

(Goffman, 1991: 51).

Na verdade, o momento de entrada numa instituição que passará a ser também

habitação, é acompanhado por uma série de processos de observação e descrição que

fixam desde cedo o sujeito à rede daquele dispositivo disciplinar. Os rituais de

passagem, quer dizer, “as transições ou passagens cerimoniais que marcam a entrada”

de um sujeito numa instituição de tipo total, são determinantes para o início da nova

dinâmica institucional (Goffman, 1999: 138). Já aqui referi os exames médicos a que

estariam sujeitos todos aqueles que viessem a fazer parte da população escolar, bem

como os registos biográficos que vão preenchendo os arquivos. Todavia, darei agora

conta de outras técnicas que, não sendo exclusivas de uma paisagem de internato,

adquirem neste contexto uma significação própria e por vezes próxima daquela que

lhe é conotada em contextos prisionais, hospitalares ou conventuais. No seu estudo

Asylums, o sociólogo Erving Goffman desenvolve articulada à ideia de total

institution e house rules, uma outra que tem que ver com mortification of the self,

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As regras da casa

213

estando intimamente ligada ao desapossamento do sujeito de tudo aquilo que fazia

parte da sua experiência de vida, anterior ao momento de admissão na instituição.

Uma das primeiras barreiras constitutivas de um corte entre o passado e o

desenvolvimento do presente é a própria fronteira entre o que se designa como

interior e como exterior à instituição. Mas se esta separação entre dentro e fora é o

que caracteriza a vida do institucionalizado, o momento de passagem do fora para o

dentro exige-se como prática quase ritualizada:

“Taking a life history, photographing, weighing, fingerprinting, assigning

numbers, searching, listing personal possessions for storage, undressing, bathing,

desinfecting, haircutting, issuing institutional clothing, instructing as to rules, and

assigning to quarters” (Goffman, 1991: 26).

A fotografia servia a Casa Pia em dois campos específicos. Por um lado,

constituía os arquivos, marcava presença num pequeno rectângulo na parte superior

das fichas psico-pedagógicas dos processos individuais dos alunos. Sobre a criança

surda que se iria admitir na instituição, pretendia-se traçar uma radiografia de vida e

de carácter. Número de processo, data de admissão, data de nascimento, nome,

filiação, antecedentes, doenças familiares, ocupação dos pais, imagem da criança, se

apresentaria, ou não, traços profundos de anormalidade, delinquência ou de

imbecilidade, outras deficiências visíveis. Toda e qualquer anotação deveria ser

baseada em “dados tanto quanto possível objectivos e bem fundamentados”, só se

deveria inscrever o que fosse “possível investigar” e, as “estimativas deveriam ser

registadas a preto, as medidas a vermelho” (ficha individual de aluno da Casa Pia de

Lisboa). Há todo um código de inscrição da criança na instituição, um ritual de

iniciação de mortificação de um outro, que se traduziu em números, se comparou

com padrões mais vistos, se classificou. O internato acolheu a criança e na sua

entrada engoliu-a, capturou-a, em algumas linhas de escrita e numa imagem, às vezes

duas, de frente e de perfil, conseguiu mapear um indivíduo, representou-o. John Tagg

considera a fotografia inserida em contexto institucional a partir de finais da centúria

de novecentos, como um objecto aberto a uma ampla “variedad de aplicaciones

científicas y técnicas” e que “proporcionaba una instrumentación preparada para uns

serie de instituciones reformadoras o emergentes, de tipo médico, legal y municipal,

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Prótese-ouvinte

214

en las cuales las fotografías funcionaban como medio de archivo y como fuente de

prueba” (2005: 81). Este movimento e papel da fotografia situa-se na continuidade

da sua importância noutro tipo de instituições disciplinares como a prisão ou as casas

para doentes de foro psiquiátrico. A fotografia serviu claramente como tecnologia

disciplinar no interior de instituições legais ou médicas, estando vinculada a um

conceito de arquivo baseado num mapeamento da realidade. Neste contexto, a

fotografia produzia um saber sobre os sujeitos que eram seu objecto. Fotografar era,

acima de tudo, produzir conhecimento com um objectivo utilitário. Não por acaso, a

polícia foi das primeiras instituições modernas a compreender o valor que a fotografia

traria ao exercício do poder, enquanto prática e discurso disciplinar, enquanto técnica

produtiva na construção de perfis sociais. O gesto arquivístico localiza-se no interior

de uma lógica de poder que, pretendendo controlar cada indivíduo, encontra na

homogeneização, isto é, na formação de um só corpo de múltiplas cabeças, a figura

ideal para uma homeóstase social. A configuração que a fotografia atinge no interior

deste sistema de registo sistemático é de inventariação e classificação da população.

Produzindo-se um saber sobre os sujeitos, ampliam-se as hipóteses de conceber

técnicas de governo ajustadas ao exercício do poder. Por outro lado, o mapeamento

do mundo responde à necessidade moderna de nomeação e classificação dos objectos

por metanarrativas compostas segundo linhas de divisão binárias e antagónicas. A

fotografia participou enquanto elemento estrutural do desenvolvimento de uma certa

normatividade do ver pela inventariação indexical que permitiu.

Havia, portanto este carácter de arquivo, de constituição de documentos

acedíveis apenas pelo pessoal especializado da instituição, todavia, um outro carácter

documental estava presente na fotografia como fonte de prova das práticas

institucionais. As primeiras imagens relativas à forma como aprendiam os meninos

surdos são, não apenas a imagem que o estabelecimento pretende lançar de si próprio,

mas essencialmente a prova de que estava a cumprir a sua função civilizadora de

meninos que antes eram selvagens. Este estado inicial, agora em recuperação, poder-

se-ia comprovar pela ficha psico-pedagógica do aluno. Numa ficha individual

podemos ler: “Deficiência – surdo-mudez”, às vezes, no momento de admissão

verificava-se também que o futuro educando no campo da linguagem, via-se

esboçado com “emite sons”. A sua representação não terminava por aqui. A

impressão geral com que ficava o observador neste contacto com a criança era

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As regras da casa

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também registada. “Atitude natural, certo à vontade e vivacidade”, a sua inteligência

dava para fazer “recados aos pais, ir buscar pão, fósforos, sabão, etc.” contudo, “não

interpreta gravuras, não compreende o que pretendemos, talvez por não estar

habituado a ver gravuras” (ficha individual de aluno surdo da Casa Pia de Lisboa).

Estas práticas inserem-se numa racionalidade governativa que as necessita

para uma produção de saber e, consequentemente, para um funcionamento efectivo

das diversas relações de poder distribuídas no espaço institucional. Proponho uma

leitura atenta das palavras de um ex-aluno surdo da Casa Pia de Lisboa, referindo-se

ao seu primeiro dia na instituição:

“O chefe Carvalho ordenou a um aluno falante que me cortasse o cabelo, melhor

... que me deixasse careca. Quanto eu me zanguei com aquele aluno falante,

armado em ‘fígaro’! Até parece que eu adivinhava quanto iria ficar mais feio. [...]

Fiquei mesmo muito feio, com as minhas grandes orelhas a tornarem-se ainda

maiores do que eram e os outros todos a rirem apontando para elas! Depois o Sr.

Carvalho forneceu-me a celebérrima blusa dos ‘chadrezinhos’, uma camisa de

pano crú, umas calças cinzentas que me ficavam largueironas e compridas (e eu

que tinha um lindo calção vestido), um lenço, pares de peúgas, um par de sapatos

nº 34, uma cama completa de ferro (colchão – bem duro por sinal) – dois lençóis,

um cobertor escuro e um outro branco, uma toalha grande e uma fronha para a

travesseira, também muito dura! Bacia não havia se não as dos lavabos comuns.

Pela minha cabeça demorou-se então a ideia de fugir de Lisboa [...] mas o 38 e o

44, também alunos surdos vieram buscar-me e levar-me à minha prisão”

(Carvalho, s/d: 31).

Ora, são vários os elementos presentes nesta escrita que nos permitem

identificar o sentimento de mortificação do eu a que se refere Erving Goffman. Quase

todos estes elementos se ligam num primeiro nível ao corpo do aluno. A primeira

alteração diz respeito à própria imagem do aluno, quase uma desfiguração de acordo

com um padrão regular comum a todos os institucionalizados. Numa Portaria

mandada observar em 1882, pode ler-se ao nº 28 que:

“Artigo 1º: No princípio de todos os meses cortar-se-á rente o cabelo da cabeça

dos asilados menores do sexo masculino” (Lima, 1882: s/p).

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Prótese-ouvinte

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Sem escolha, o sujeito é obrigado a largar a imagem que tem de si próprio,

perdendo referências que faziam parte da sua identidade. Para além da deformação

corporal, o corte abrupto do cabelo que salienta as grandes orelhas, o sujeito é ainda

simbolicamente violentado pela perda de mais objectos do seu “identity kit”. “The

individual is likely to be stripped of his usual appearance and of the equipment and

services by which he maintains it, thus suffering a personal defacement” (Goffman,

1991: 29). As roupas pessoais são substituídas pela farda institucional, igual para

todos, os objectos de higiene, as roupas de dormir, os espaços dos lavabos e os

dormitórios são comuns a toda a população de alunos. Esta relação totalmente nova

de inexistência de privacidade configura-se, também, como uma perda relativamente

a um tempo anterior. Mesmo nos casos dos alunos orfãos, indigentes ou

abandonados, esta espécie de hospitalidade não ultrapassa o nível condicional. Não

podemos, no entanto, deixar de considerar outros efeitos produtivos resultantes deste

tipo de práticas. Há, evidentemente, princípios higiénicos resultantes de um discurso

científico que vai ocupando progressivamente o espaço escolar, dando

fundamentação positiva às prescrições dos regulamentos.

Em 1881, Carlos Maria Eugénio de Almeida regulamentava acerca da higiene

dos alunos. “A roupa do corpo” deveria ser mudada “uma vez por semana, sendo o

sábado o dia marcado”. Já as meias o deveriam ser duas vezes por semana, “às

quartas-feiras e sábados”, sendo que poderia acontecer que “pelas condições especiais

de cada aluno”, mais trocas se tornassem necessárias. Que “no inverno, os lençóis”

fossem “mudados de mês a mês, e no verão de quinze em quinze dias; e as fronhas

dos travesseiros” o fossem “sempre quinzenalmente, bem como as toalhas do rosto”.

Em circunstância alguma, advertia o Administrador, se consentiria “que os alunos” se

servissem “de roupa ou fato” que não fosse seu. A mudança de fatos dos alunos mais

velhos e corpulentos estaria dependente de uma visita à inspecção sanitária que

verificaria da oportunidade ou inconveniente da passagem da roupa para os mais

novos ou franzinos. Cada fato seria numerado. Os alunos deveriam trazer “as unhas

cortadas, os cabelos curtos, os fatos abotoados e providos de todos os botões”

(Almeida, 1881: 12, 13). A vida numa comunidade escolar e habitacional rege-se por

princípios de arregimentação que quebram a singularidade de cada um, chegando

mesmo a interferir com o próprio nome, trocado por um número. A vida diária do

aluno passaria a contar sempre com a presença de outros, alunos surdos e ouvintes,

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As regras da casa

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professores, funcionários, médicos. A relação numa instituição de carácter total é

social, muito embora o fechamento da instituição, mas é uma relação imposta.

“Impressionaram-me muito aquelas cinco mesas tão compridas onde nos

sentámos todos, mudos e falantes. Pelos meus cálculos deveríamos ser para aí

cerca de 800 alunos. Às 20 horas, ainda a noite mal tinha começado, todos os

alunos se dirigiram para os dormitórios e camaratas separadas por grupos etários

dos 8 aos 12 e dos 13 aos 18 anos. Perto das camaratas, nas grandes divisões

góticas, ficava o quarto do chefe Carvalho. Em frente, do lado norte, ficava uma

fonte de água e dos lados ficavam salas de aulas e de desenhos” (Carvalho, s/d:

31).

A vida em grupo exige contacto entre os internados, o que no caso das

crianças surdas, assume um papel importante para o seu governo. A racionalidade

impera sobre os alunos nos exames, nas observações, nas medições, nas prescrições,

no desenho das práticas, dos horários, das presenças simultâneas entre grupos

diferentes. O contacto permanente com a comunidade ouvinte funcionaria

constantemente como um motor de produção da diferença. Claro que também para o

ouvinte, a presença de elementos representados como anormais faria a norma adquirir

maior visibilidade. Mas era também o contacto com outros elementos surdos que

possibilitava o desenvolvimento de um sentido de comunidade, de pertença, de uma

forma de experienciação possível apenas por quem pertence a um determinado

estado. A programação das actividades diárias era traçada por regulamentos. O tempo

e os espaços são organizados de modo a juntar ou isolar grupos determinados, a

permitir a execução de tarefas num tempo dado, a controlar e vigiar as presenças e as

ausências. Uma das características dos regulamentos de instituições de carácter total,

como já noutro espaço desta escrita se observou, é a prescrição de horários de

levantar, de tomar as refeições, de assistir a aulas, de ter tempo livre e de deitar.

Impõe-se uma rígida disciplina corporal que tendia a impregnar-se na pele dos

sujeitos pela força do hábito.

“Pelas 5 e meia da manhã levantámo-nos. O nosso despertar era feito com luzes

de ‘pisca-pisca’ da lanterna do chefe Carvalho. Vestimo-nos e, em grupos, fomos

para a casa de banho que era pequena para tantos jovens, a fim de lavarmos a cara

em água fria e fazermos as nossas necessidades. Uma vez vestido e lavado, o sr.

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Carvalho chamou-me para ver os outros jovens colegas a limpar com vassouras e

panos todos os pavimentos, soalhos e mármore e, por fim, alinharem as camas na

camarata” (Carvalho, s/d: 32).

A simples aceitação destas regras e tarefas, que se afigurava como necessária

ao aluno recentemente admitido na instituição, mais que não fosse pela aceitação

perante os pares, coloca-o em situação de total dependência face à instituição. Esta

vulnerabilidade é essencial e facilitadora da missão regeneradora prevista para o

aluno surdo. Um dos aspectos que se verifica neste período de adaptação do novo

aluno na Casa Pia de Lisboa, e que difere da admissão noutros espaços de carácter

correctivo, é a tentativa de integrar o aluno pela comunicação imediata com a

comunidade de que fará parte. A aprendizagem de muitas das regras da casa seria

feita pela visualização do que os outros faziam, o que não implicava uma imposição

coerciva das regras, mas uma identificação obrigatória do aluno recém-chegado com

os outros alunos e, portanto, com a instituição. A anuência em participar de

momentos tão simples quanto os de comer no refeitório com mais 800 alunos, em

partilhar o quarto, em levantar-se perante uma ordenação, em vestir a farda

institucional, em ser submetido a exames médicos, pressupõe uma aprovação das

regras institucionais. Esta seria condição essencial para uma economia de poder da

população escolar: os efeitos dos pequenos detalhes multiplicar-se-iam, fixavam cada

um ao seu lugar e o do aluno surdo era um lugar de normalização.

É claro que as técnicas de mortificação do eu, à semelhança do que acontecia

com os castigos, assumiam configurações mais sofisticadas. Os regimes coercivos

cederiam lugar a um desenho mais subtil, mas eficaz. Os castigos seriam cada vez

menos de carácter fisicamente violento, fixando-se a um nível simbólico. Num

Regulamento disciplinar da Casa Pia de Lisboa de 1890, prescrevia-se a detenção

como uma forma de castigo, consistindo em:

“Conservar os alunos em uma sala especial, a começar uma hora depois do toque

de levantar até à ceia, saindo dela para as aulas que os alunos frequentarem, para

as refeições do dia e para as tarefas que lhe forem impostas, ou por outro motivo

imperioso”. Todavia, “os alunos em detenção almoçam e jantam em separado no

refeitório, depois dos outros alunos saírem dele”. “A detenção é acompanhada de

tarefas escolares, ou de serviços de fascina ou de exercícios de ginástica”. Mas

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poderia também haver reclusão: “a reclusão consiste em encerrar e conservar

isolado o aluno em casa apropriada de modo que possa convenientemente ser

vigiado”. Em reclusão os alunos não frequentariam as aulas com os seus

companheiros, alimentar-se-iam depois deles, dormiriam na prisão. Haveria

também a expulsão e esta prática, não olhando à idade do aluno mas apenas à

gravidade da falta, adquiriria a forma de um ritual simbólico, devendo ser

assistida por todos os alunos, director, professores e empregados (Regulamento

Disciplinar da Real Casa Pia de Lisboa, 1890: 6-9).

A existência deste lado punitivo, caso as regras não fossem cumpridas,

deveria funcionar como elemento dissuasor. Seria, aliás, aconselhável que o castigo

físico não fosse uma prática comum numa instituição como a Casa Pia. Em 1894,

Margiochi determinava que daquele dia em diante cessasse “o uso da palmatória”,

que fossem “inutilizadas todas as palmatórias” e que se procedesse “no mais breve

prazo possível à elaboração de regulamentos de prémios e castigos”, esperando dessa

forma incentivar ao cumprimento da disciplina (Margiochi, 1894: 6). As disposições

fundamentais do Regulamento Geral de 1904, diziam que a instituição era um

“estabelecimento destinado a recolher, alimentar, educar e instruir menores do sexo

masculino, indigentes e desvalidos, e a tratá-los nas suas enfermidades, devolvendo-

os à sociedade depois de atenuados ou corrigidos por uma rigorosa educação física os

seus defeitos constitucionais; por uma cuidadosa, constante e solícita educação moral

e religiosa os defeitos do espírito; esclarecidos por uma instrução variada, sólida e

tanto quanto possível prática”. Finalmente, dizia o regulamento que era objectivo da

Casa Pia tornar os seus alunos “aptos para, segundo as suas tendências, inteligência e

aptidões, angariarem, em todos os ramos da actividade humana, os meios de

subsistência” (Regulamento Geral de 1904: 5). Ora, perante este cenário que assumia

atender às características de cada aluno, respeitando as suas tendências, inteligência e

aptidões, não se vislumbra como necessário o castigo. Michel Foucault fala de um

desaparecimento da punição como espectáculo. “A punição vai-se tornando, pois, a

parte mais velada do processo penal, provocando várias consequências: deixa o

campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstracta”. A sua eficácia

passa a habitar uma zona mais de fatalidade do que de intensa visibilidade. “A certeza

de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro”.

Daí uma nova relação no entendimento da punição: “o essencial é procurar corrigir,

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reeducar, curar” (Foucault, 2004: 13). O castigo passa a existir em relação com os

seus efeitos. É interessante verificar que um direccionamento para a alma do sujeito

no acto correctivo ou punitivo, pode ter a sua genealogia nas punições e suplícios em

que a violência física garantia o ritual de castigar: “que não seja mais o corpo, com o

jogo ritual dos suplícios; que seja o espírito ou antes um jogo de representações e de

sinais que circulem discretamente mas com necessidade e evidência no espírito de

todos” (Foucault, 2004: 84). O efeito é de um constante exercício em que cada um é

posto à prova no que ao domínio das suas forças internas diz respeito.

Cada aluno seria incitado a desenvolver uma autonomia e responsabilidade

que mais do que o governo, permitiria o governo de si mesmo:

“A aprendizagem foi rápida e eu fiz logo a minha cama também. Depois o

funcionário da portaria que habitualmente estava no átrio chamou-me para que eu

levasse a minha mala de roupa para debaixo da minha cama. [...] Fomos depois

tomar banho no tanque de água quente que às quintas-feiras era ocupado pelos

mais novos e aos sábados pelos mais velhos. Às sete e meia fomos para o

refeitório tomar o pequeno-almoço. [...] Mostraram-me as cartas de menu ou

ementas, que estavam no refeitório. Desde logo fiquei a saber: que o pequeno-

almoço tinha como base uma tigela de café e pão, todos os dias da semana,

durante todo o ano. Que o segundo almoço” “era às 13 horas e que era constituído

por sopa e um prato. Que o jantar era às 19 horas e só com um prato” (Carvalho,

s/d :32).

Podemos então associar a governação dos indivíduos num local como um

internato, a partir não só dos quadros discursivos, mas também a partir das práticas

que são exercidas sobre os seus corpos. Estas práticas tornam-se eficazes no

momento em que o aluno se deixa envolver nelas. Há obviamente um carácter

disciplinar muito marcado, todavia, não podemos esquecer que o poder só se exerce

se contar com um saber em constante reformulação e este, tende a afinar-se de forma

a possibilitar técnicas de intervenção voltadas para a alma do aluno, cada vez menos

visíveis, tal é a rotina do seu uso. A expressividade destas técnicas é notável na

construção da identidade da criança surda. O mesmo aluno até agora citado, escrevia

mais à frente:

“Todos os alunos aprendiam um bom ofício para conquistarem a sua

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possibilidade de sobreviverem dignamente, atenuando na vida o estiarna da

deficiência. Mas para que tudo isso fosse possível, o Instituto de surdos-mudos da

Casa Pia tinha seis bons professores que aqui não posso deixar de os recordar

com muita saudade e carinho”(Carvalho, s/d: 36). Os seus nomes: José da Cruz

Filipe, D. Emília, D. Albertina e D. Amélia, Sousa Carvalho, Augusto Campos,

Chefe Carvalho.

A entrada da criança surda na Casa Pia de Lisboa estaria marcada também

pela possível devolução social da criança, já educada e preparada para viver em

sociedade. A devolução ao exterior é uma característica própria das instituições de

carácter total e, uma vez mais, não se pode fazer a sua leitura sem considerarmos o

elemento punitvo, correctivo ou regenerador associado à institucionalização daqueles

cujo corpo e alma se afastavam de um padrão normal. Novamente o sociólogo Erving

Goffman proporciona-nos uma imagem que permite visualizar o quadro de

transformação operante em locais como um internato ou um hospital psiquiátrico. Ao

referir-se a uma espécie de “ciclo metabólico” Goffman descreve “a entrada ou

recrutamento, a mastigação e o regurgitamento dos seres humanos” novamente para o

espaço social. Na verdade, se estas instituições modernas têm por função “recolher

pessoas que se comportam de maneira inaceitável no exterior” ou se os seus estados

são vistos como desviantes, perturbadores de uma ordem social, “entra, então, nas

funções da instituição, persuadir os reclusos que as pessoas no exterior não

conseguiram persuadir” (Goffman, 1999: 122). Cabem aqui todas as técnicas de

regeneração ou correcção com fins de normalização. A instituição seria um aparelho

de transformação, capaz de agir sobre a alma e o comportamento pela consideração

de uma nova política do corpo. Para serem efectivas, as impressões têm que ser feitas

na alma do institucionalizado. Estes são princípios elementares comuns à forma

prisional, já aqui referidos no último capítulo da primeira parte:

“Trabalho obrigatório em oficinas, ocupação constante dos detentos, custeio das

despesas da prisão com esse trabalho, mas também retribuição individual dos

prisioneiros para assegurar sua reinserção moral e material no mundo. [...] A vida

é então repartida de acordo com um horário absolutamente estrito, sob uma

vigilância ininterrupta: cada instante do dia é destinado a alguma coisa. [...] A

prisão, aparelho administrativo, será ao mesmo tempo uma máquina para

modificar os espíritos” (Foucault, 2004:102, 103).

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Prótese-ouvinte

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Cada instante era na Casa Pia de Lisboa destinado a alguma coisa. Tempos de

trabalho e tempos de repouso, bem como espaços, passaram a constituir o breviário

de conceitos da escola e, uns e outros, tinham como fim aumentar a produtividade do

aluno. Recorro agora ao psicólogo faria de Vasconcelos e ao que sobre os horários,

aulas e recreio escreveu em Problemas escolares. Dizia que a “confecção” dos

horários deveria “merecer uma atenção especial na organização escolar”, porque,

evidentemente, dessa boa organização derivaria o rendimento do aluno. Os horários

escolares não se compadeciam com uma elaboração “ao deus dará, ao sabor da

improvisação” já que os inconvenientes seriam mais do que muitos (Vasconcelos,

1935: 293). A distribuição das ocupações ao longo do dia e da semana deveria

articular-se por centros de interesse e potenciar as capacidades de concentração do

aluno em cada fase de desenvolvimento. Era evidente que a construção da

personalidade do aluno estaria conectada aos discursos e às práticas em torno de si

elaboradas. Os currículos, quer dizer, tudo o que em matéria de planos de estudo, de

horários, de regras, de relações que aconteciam no espaço escolar, estavam na base da

construção identitária dos alunos, transformando-os interiormente. O que, aliás,

haveria de se manifestar a um nível corporal de posturas, de hábitos, de mecânicas de

pensar e de fazer. Os horários bem elaborados, para lá do carácter estritamente

disciplinar de organização de dinâmicas internas da instituição que permitiam

localizar qualquer actor em qualquer momento, continuavam a desenvolver-se por um

mesmo fio condutor disciplinar e de subjectivação. “Em primeiro lugar”, escrevia o

psicólogo, “ o horário deve tomar em conta o valor educativo e pragmático dos

diferentes ramos” de ensino. Na escola primária, seriam as ciências naturais e os

trabalhos manuais a formar o núcleo orientador das aprendizagens, porque,

“educativamente, respondem a interesses profundos da criança que é um naturalista, e

um manipulador por excelência, e pragmaticamente conduzem à acção, têm

numerosas aplicações úteis e concretas” (Vasconcelos, 1935: 296). Ora, não é por

acaso que a todos os alunos surdos da Casa Pia era ministrado o ensino primário e,

após consulta à família do aluno, era-lhes destinada a frequência “das oficinas de

carpintaria, marcenaria, entalhador, latoaria, pintura, serralharia, canteiro e sapataria”,

recebendo também “lições de pintura artística e de dactilografia”, sendo para todos

obrigatória a participação nas aulas “de desenho industrial e artístico e da classe de

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trabalhos manuais” (Filipe, 1920: 20). As meninas surdas, em 1920 estavam já a

habitar não as instalações de Belém, mas as de Santa Isabel onde funcionava o

Instituto médico-pedagógico da Casa Pia. Teriam também um ensino primário pelo

método oral e as suas oficinas de trabalhos manuais, de corte e de costura. Dos 81

alunos em 1920, 60 rapazes e 21 meninas, que não frequentassem ainda as oficinas,

seriam direccionados para os trabalhos manuais ou para a ginástica. Indissociável

desta organização escolar era a ideia de preparação para a vida fora dos muros da

instituição. O ensino pelo método oral e o ensino oficinal tinham em vista tornar o

surdo apto “para a vida, indicando-lhe o lugar que socialmente deve ocupar”. Assim,

“após o terceiro ano de frequência de oficina com aproveitamento, os alunos”

passariam “a receber um salário dividido pela seguinte forma: 50% da féria semanal”

ficaria “no cofre da Casa Pia como compensação das despesas feitas com a educação

profissional do aluno; 40%” seriam “depositados, em conta corrente individual, numa

caixa económica, e os restantes 10%”ser-lhe-iam “directamente entregues” (Filipe,

1920: 21, 22).

Proponho agora que se faça um pequeno recuo à década de noventa do século

XIX, visitando através de um plano de estudos, uma secção de ensino de surdas

debaixo da vigilância de Maria Fusillier, que funcionava a nível particular em Lisboa.

Este elemento de análise permite-nos não só verificar a continuidade e o

desenvolvimento das práticas desta educação especial, como também verificar as

articulações e cadências que compunham horários e planos de estudo. Publicado na

Revista de Educação e Ensino em 1893, gostaria de propor a sua leitura à luz do

quadro de acção que tenho vindo a referir para a construção do aluno surdo, e não

num quadro de inculcação. Quer isto dizer que, apesar da vinculação, quase colagem

do plano de estudos ao aluno, este não é um efeito estagnante ou imobilizador. O

aluno é um actor que vai somando experiências no contexto escolar, nas vivências

que aí experiencia e que o transformam. E isto não é decerto um efeito escondido

pelo que constitui o currículo, mas antes algo que lhe é inerente e que pertence ao

quadro de governamentalidade que se tem referido. Os planos de estudo estavam

intimamente ligados às regras da casa e estas à produção dos escolares. Ditava assim

o dito plano que passo a transcrever na íntegra:

“Programa dos Estudos

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Prótese-ouvinte

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Articulação ou fala artificial

Utilização ou melhoração da audição por numerosos exercícios apropriados e

com a ajuda de unstrumentos acústicos e de música, principalmente do piano, nas

crianças que ouvem alguma coisa.

Leitura nos lábios

Língua portuguesa falada e escrita.

Aritmética e elementos de geometria: estas duas ciências são ensinadas debaixo

de um ponto de vista essencialmente prático.

História e geografia: uma rica colecção de gravuras, diferentes mapas, esferas,

etc., facilitam este estudo e tornam-no agradável.

Elementos de física e química: são apresentados nas formas mais simples e

aprazíveis pelo meio de demonstrações frequentemente repetidas e baseadas

sobre as observações da educanda.

História natural: cada aluna está exercitada em fazer colecções nos três reinos.

Reunidas estas no museu tem o professor preciosos elementos para todas as

matérias do ensino.

O ensino intelectual cujas matérias ficam expostas, é ministrado pelo director.

Todavia, em língua portuguesa, a exmª srª D. Maria Fusillier, concorre

poderosamente, pelas suas lições diárias, no adiantamento rápido das discípulas.

Instrução moral e religiosa: coadjuva-nos valiosamente nesta missão, o

reverendo de Benfica, cónego A. de Sousa Azevedo.

Desenho linear de ornato e de figura: professor ex.mº sr. J. A. César da Silva,

com o curso da Academia das Belas-Artes.

Modelação

Pintura: professor ex.mº sr. João Cabral.

Trabalhos manuais: costura à mão e à máquina; crochet, bordados, trabalhos em

flores, etc., etc.

Ensino complementar

Francês, falado e escrito, inglês, escrito.

Lições particulares: em casa das alunas e no colégio” (Fusillier, 1893a: 378,

379).

O que se pretende reflectir a partir deste programa é a organização dos saberes

escolares e da sua estreita ligação à organização do dia-a-dia das alunas e à produção

da sua subjectividade. Para além de um ensino pelo método oral, as diversas

disciplinas que constituem o corpo do programa, assumem um carácter

essencialmente prático, construído a partir de uma base visual. As colecções de

gravuras, os mapas, as esferas, as demonstrações repetidamente expostas dependendo

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As regras da casa

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da capacidade de observação das alunas. A autonomia do aluno através da construção

de colecções em torno de um núcleo temático e, claro está, prevendo a necessidade

própria da criança surda em ter como eixo orientador da aprendizagem os sentidos,

marcam também presença o desenho, a modelação e a pintura. Estas actividades

ocorreriam à vez, o que não significava decerto que entre elas não se comunicassem.

Contudo, a organização deste plano de estudos, embora não nos seja dito da sua

divisão ao longo do dia ou da semana e da sua duração, prevê já os ritmos

psicobiológicos da criança e as questões do interesse associadas à motivação. O

carácter eminentemente prático, envolvendo a aluna no processo de aprendizagem

prevenia os momentos de fadiga. Esta estruturação dos saberes aqui expostos, bem

como daqueles reservados aos alunos surdos da Casa Pia deixa perceber que nas

práticas que os discursos ditavam, os sujeitos estariam em transformação. Basta que

consideremos o carácter de individualização do aluno, centrando em si o processo de

aprendizagem, e logo se revelam as técnicas do eu. Aquelas que impelem o sujeito a

exercer sobre si mesmo um trabalho, sobre o seu corpo, a sua alma, o seu

pensamento, a sua conduta. Era assim descrita a entrada de uma criança surda na

Casa Pia, agora pela voz de uma professora:

“ A criança, ao entrar no nosso instituto especial, mostra-se tímida e receosa de

tudo e de todos. Não lhe passa pela ideia que possa vir a exprimir os seus

pensamentos como qualquer outra pessoa. Mas, decorridos alguns dias, vemo-la

brincar e rir com as suas condiscípulas e o professor pode então dar começo à sua

tarefa, que se torna mais fácil quando a criança está animada de uma vontade

firme de aprender e de reagir contra a fatalidade do seu destino” (Anuário 1917-

1918:303).

O que articula esse exercício sobre si mesmo com os discursos e com as

práticas é o próprio desejo que uma racionalidade governativa baseada num saber e

num poder, conseguiu fazer um querer. É a modificação constante no interior de um

espaço escolar, de um modo de ser sujeito através de indícios que incitam e que

retraem num único gesto.

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A comunicação entre os da comunidade surda

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4.A COMUNICAÇÃO ENTRE OS DA COMUNIDADE SURDA: PODER

E RESISTÊNCIA

Um dos aspectos mais interessantes dos mecanismos de poder, com o qual o leitor ou

a leitora já estará familiarizado, é o de que o poder se exerce através de relações de

forças. Lembra-nos Gilles Deleuze que, “um diagrama de forças apresenta, ao lado

(ou melhor, ‘face-a-face’) das singularidades de poder que correspondem às suas

relações, singularidades de resistência, determinados ‘pontos, nós, centros’”(2005:

121). A questão de que se trata neste capítulo é então, a de observar, naquilo que os

documentos da Casa Pia nos permitem, alguns dos possíveis nós agrilhoados por

aqueles que, sendo alunos surdos de uma instituição de orientação oralista, teriam nos

colegas do grupo surdo, elementos de identificação. Trata-se de verificar quais as

estratégias que impulsionadas pelo sentimento de pertença a uma cultura – a surda,

puderam manifestar-se num espaço dominado por uma comunidade ouvinte.

Gostaria, no entanto, de iniciar esta análise a partir de um comentário de

Hannah Arendt, relativo ao papel desempenhado pela escola num contexto

americano. Arendt focaliza a natureza política da educação americana, justificando-se

tecnicamente pelo facto de “a América ter sido sempre uma terra de imigrantes.

Nestas circunstâncias, a educação e a americanização dos filhos dos imigrantes pôde

realizar essa tarefa imensamente difícil de fundir os mais variados grupos étnicos”,

quer dizer, fundi-los, homogeneizá-los, ainda que essa fusão seja “nunca

completamente bem sucedida”, mas “continuamente” realizada, quer dizer,

perseguida como miragem governativa. Hannah Arendt continua o seu pensamento

dizendo que “os imigrantes”, isto é, os estrangeiros, constituem para o país a garantia

de que ele representa de facto a nova ordem” e, “a magnificiência desta nova ordem

consiste no facto de, desde o princípio, ela não se ter desligado do mundo exterior

para o confrontar com um modelo perfeito” (2000: 23, 24). Ora, esta imagem

fornecida pela autora parece-me adequada para sublinhar o aspecto da

governamentalidade que será aqui identificado de um modo, agora, mais

pormenorizado. Refiro-me à existência de uma resistência própria daqueles que são

governados, mas que se enquadra, desde o início nos planos de governação. Nikolas

Rose enquadra os domínios que “não são ‘dominados’ pelo governo” numa outra

esfera: a do conhecimento, da compreensão e da abordagem. Significa isto que “os

saberes e formas de expertise concernentes às características internas” desses

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Poder e resistência

228

domínios, cobrem essa suposta área ingovernável, tornando-a então governável

(2001: 40). Embora pareça contraditória, esta situação corresponde meramente a um

aperfeiçoamento constante de uma arte de governar. Os nódulos de resistência

funcionariam como sustentação da racionalidade governativa, em vez de lhe fazerem

oposição. E esta reacção por parte daqueles que são os Outros, os surdos, é uma acção

criativa, produtiva e que, no interior da perspectiva de governamentalidade,

direcciona essa acção a algo exterior a si próprio, ou seja, ao referente ouvinte. Já

“com o modo de avaliação aristocrático passa-se o contrário: age e cresce

espontaneamente e só procura o seu contrário para poder, com redobrada gratidão e

alegria, dizer ‘sim’ a si próprio. O seu conceito negativo – ‘baixo’, ‘vulgar’, ‘mau’ –

é apenas uma imagem tardia e pálida que serve de contraste ao conceito positivo, ao

conceito fundamental, todo ele impregnado de vida e de paixão: ‘Nós os nobres, nós,

os bons, nós, os belos, nós, os felizes! [nós os ouvintes!] Se este modo de avaliação se

engana e peca contra a realidade, tal acontece em relação a uma esfera que lhe não é

suficientemente conhecida, que despreza e que se recusa mesmo a conhecer em

pormenor” (Nietzsche, 2000:36). Neste capítulo tentarei problematizar uma imagem

que adquire contornos num cenário de resistência surda, mantendo-se o sujeito num

meio ambivalente, quer dizer, construindo-se enquanto sujeito cuja fabricação da

identidade passa pela pertença a uma comunidade Outra e, simultaneamente, ao

vislumbre das pequenas alegrias de que nos falou Nietzsche.

A fabricação da identidade surda na Casa Pia, aconteceu num processo de

internamento ou de hospitalidade, em que a criança surda não teve direito de

manifestar o seu consentimento. Todavia, isto não significa que o aluno surdo

estivesse inerte, recebendo apenas o que os ouvintes lhe davam. À sua disposição

tinha identidades que lhe aplicavam e lhe impunham, tinha práticas oralistas como

referente, a partir das quais, era convidado a narrar-se. No dizer de Bauman, estas

identidades permitidas “estereotipam, humilham, desumanizam, estigmatizam”

(Bauman, 2005: 44). Mas não é este lado que pretendemos, por agora, analisar. São,

isso sim, os efeitos vindos dos corpos que habitam esses territórios. Um ponto

essencial que teremos de considerar é de que as práticas educativas dirigidas aos

surdos na Casa Pia de Lisboa, tinham como centro de aplicação crianças em situação

de aprendizagem, quer dizer, alunos. Mas o que acontece no espaço são relações entre

as práticas e os discursos educativos e os sujeitos que o habitam. Falamos, portanto,

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A comunicação entre os da comunidade surda

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de relações entre uns e outros, de “‘interacção’ entre o eu e a sociedade”, fosse um

grande grupo, fosse aquele constituído pelos habitantes da instituição (Hall, 2005:11).

Zygmunt Bauman diz-nos que, “o que quer que ‘comunidade’ signifique, é

bom ‘ter uma comunidade, ‘estar numa comunidade’” (2003: 7). Ora, este prazer

sentido, identifica-se com o sentimento de pertença, de segurança, de familiaridade

com as pessoas e com os espaços. Quando, ao longo deste texto, falo da existência de

uma comunidade ouvinte e de uma comunidade surda, refiro-me, desde logo, a dois

grupos que se diferenciam pelo próprio elemento que levou um, a excluir o outro.

Muito embora a escola, tenha adoptado princípios de uma cada vez maior

individualização dos sujeitos, a verdade é que, o ensino se dirigia a classes de alunos,

vendo nos seus companheiros elementos de uma experiência partilhada. O ofício de

aluno, no sentido em que o define Perrenoud, compõe-se, também, do

“desenvolvimento de estratégias de protecção e de resistência” face “à imposição de

qualquer actividade escolar”e, inseparável desse ofício, parece estar o processo de

identificação com os pares, bem como a indução de respostas adaptadas às situações

escolares (1995: 78). A identidade, numa concepção sociológica definida por Stuart

Hall, constrói-se no hiato entre um interior e um exterior o que quer dizer que quando

um sujeito se ‘projecta a si próprio’ em tipos de “identidades culturais”, internaliza

“significados e valores”, tornando-os ‘parte de si’. É neste mecanismo, de assimilação

produtiva que se torna possível “alinhar” “sentimentos subjectivos com os lugares

objectivos” que ocupa “no mundo social e cultural” (2005: 12). “A identidade” que o

aluno surdo autoconstrói, tendo como ingredientes o que a instituição e as relações

lhe oferecem à experiência, “costura (ou, para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o

sujeito à estrutura”. Neste mesmo processo se identifica algo que Hall designa já

como sendo próprio de um sujeito pós-moderno, pelo menos ao nível de uma

dinâmica constitutiva da identidade. “Dentro de nós há identidades contraditórias,

empurrando em diferentes direcções, de tal modo que nossas identificações estão

sendo continuamente deslocadas” (Hall, 2005:13). A possibilidade de cambiantes e

de uma identidade em processo é o substrato fecundo de um processo de

subjectivação que tem o aluno como actor e a escola como palco.

Em face de um ensino distintivamente oralista é fácil aceitar que, no interior

do grupo dos surdos, houvesse alguma agitação mais em conformidade com a

natureza surda. É sabido por todos nós, que já frequentámos a escola e

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Poder e resistência

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experienciámos os seus diversos espaços que existem comportamentos específicos

que é suposto adoptar-se em cada um deles. As posturas corporais que a escola treina

para uma coerência do sujeito nas suas acções no espaço escolar e social são disso

exemplo. Há comportamentos que se exibem perante todos e comportamentos mais

secretos, facilitados por uma arquitectura mais fechada, há diferentes tons de voz a

usar e diferentes efeitos que se pretendem produzir, há as conversas em grupo e as

conversas restritas, há a dissimulação de mensagens dentro da aula, haveria, também,

a linguagem dos gestos entre os que dominassem o código. Padden e Humphries,

citados por Sacks dizem que:

“O aspecto mais significativo da vida no internato é o dormitório. Nos

dormitórios, longe do controle estruturado da sala de aula, as crianças surdas são

iniciadas na vida social dos surdos. No ambiente informal do dormitório, as

crianças não só aprendem a língua de sinais, mas também o conteúdo da cultura”

(Sacks, 2005: 149).

Mas todos estes aspectos encontram-se enunciados no interior de discursos

que permitem a sua existência. Eles são uma espécie de resistência consentida por

uma racionalidade governativa que, não encontraria sentido no exercício de um poder

se constantemente não se visse na necessidade de aperfeiçoar a arte de se exercer. O

que pretendo considerar neste momento é a existência da língua de sinais numa

escola que assumia a oralidade como eixo orientador das suas práticas. A proliferação

do gesto era um “efeito-instrumento” que não só tornava mais visível o poder como o

fazia crescer, na medida em que essa manifestação se constituía como “superfície de

intervenção” (Foucault, 1994a: 52).

David Wright, que ensurdeceu aos oito anos após, portanto, dominar já a

linguagem oral, citado por Oliver Sacks, descreve a sua primeira experiência visual,

ao contactar com a escola de surdos onde estudou:

“A confusão atordoa os olhos, braços giram quais moinhos de vento num furacão

[...] o enfático vocabulário silencioso do corpo – aparência, expressão, postura,

relance de olhos; mãos representam sua pantomima. Pandemónio absolutamente

arrebatador. [...] Começo a decifrar o que está acontecendo. A aparentemente

coribântica agitação de mãos e braços resume-se a uma convenção, um código

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A comunicação entre os da comunidade surda

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que até agora nada transmite. De facto, ela é uma espécie de vernáculo. A escola

desenvolveu sua própria língua ou jargão específico, embora não verbal. [...] A

regra era que todas as comunicações fossem orais. Nosso jargão de sinais,

obviamente, era proibido. [...] Mas aquela regra não podia ser imposta sem a

presença dos funcionários da escola. O que estou descrevendo não é o modo

como falávamos, e sim como conversávamos entre nós quando nenhuma pessoa

ouvinte estava presente. Nesses momentos, nosso comportamento e nossa

conversa eram muito diferentes. Relaxávamos as inibições, não usávamos

máscara” (Sacks, 2005: 26, 27).

Como se acaba de ler, nos momentos de vigilância inactiva, os alunos surdos

assumiam comportamentos ditados pela natureza surda. Falavam a sua língua visual.

E esta, se era proibida pela escola – para que os alunos não deixassem de sentir

necessidade da língua dos ouvintes – exigia, pelo menos uma vigilância visual

contínua. As possibilidades de uma conversa de carácter visual são enormes,

relativamente às de uma conversa oral. A proximidade física não é estritamente

necessária – os comunicantes podem estar separados por vários metros –, e a sua

existência não é notada senão pelo olhar que vê movimentos no espaço. A proibição

de uma língua gestual numa escola oralista assemelha-se ao combate a partir do

século XIX do “onanismo das crianças como uma epidemia que se pretenderia

extinguir”. Quero com isto explicar que o controlo de médicos e educadores

proibindo o gesto, dando a ver a sua periculosidade e incompatibilidade num sistema

social, toma, tal como o fizeram os adultos “em torno do sexo das crianças”, o seu

próprio “apoio nesses prazeres subtis”, constituindo-os “como segredos (isto é, de os

obrigar a esconderem-se para ser possível descobri-los), de os procurar, de os seguir

das origens aos efeitos”, instalando-se mecanismos de vigilância que se abriam a

essas mesmas práticas como forma de novamente alimentarem a produção de

discursos e o afinamento de técnicas correctivas (Foucault, 1994a: 45, 46).

Erving Goffman designa estas relações como paralelas, sendo comuns em

instituições de carácter total. “An ‘institutional lingo’ develops through which

inmates describe the events that are crucial in their particular world” (1991:55). É

comum que o “staff” tenha conhecimento destas práticas, podendo mesmo utilizá-las,

falar delas ou sobre elas, como forma de lhes dar uma visibilidade controlada.

Novamente se torna útil considerar o quadro da sexualidade infantil para percebermos

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Poder e resistência

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que contrariamente a uma atitude repressiva, de eliminação violenta, se instalam

silêncios que “fazem parte integrante das estratégias que subentendem e atravessam

os discursos” (Foucault, 1994a: 31). Escreve assim Michel Foucault:

“Vejamos os colégios de ensino do século XVIII. Globalmente, podemos ter a

impressão de que neles não se fala praticamente do sexo. Mas basta lançar um

olhar aos dispositivos arquitecturais, aos regulamentos da disciplina e a toda a

organização interna: o sexo está constantemente em jogo. Os construtores

pensaram nele, explicitamente. Os organizadores levam-no em conta

permanentemente. Todos os detentores de uma parte de autoridade são colocados

num estado de perpétuo alerta, que as organizações, as precauções tomadas, o

mecanismo dos castigos e das responsabilidades, relançam incessantemente. O

espaço da aula, a forma das mesas, a disposição dos pátios de recreio, a

distribuição dos dormitórios (com ou sem divisórias, com ou sem cortinados), os

regulamentos previstos para a vigilância do deitar e do sono, tudo isso remete de

um modo muito prolixo para a sexualidade das crianças” (1994 a: 31, 32).

António Aurélio da Costa Ferreira, apesar do pendor oralista da educação na

Casa Pia, admitia a existência da linguagem dos gestos entre os alunos surdos.

Escrevia assim: “ a criança, traz o cérebro nas mãos, fala principalmente com as

mãos; eduquemos-lhe, portanto, as mãos. Tão convencido estou da acção da educação

manual sobre o desenvolvimento da inteligência, que mesmo nos surdos-mudos a

quem se quer ensinar a falar eu acho ser um contra-senso pedagógico calar-lhe,

emudecer-lhe o gesto”. E esta opinião, dizia-o ainda, tinha tido oportunidade de a

partilhar, com professores de surdos do Instituto para o ensino dos surdos-mudos e

cegos de Belém (Ferreira, 1914: 306).

Mas é noutro local e, não exactamente sobre a linguagem gestual entre os

alunos surdos que, se pode encontrar um ponto de contacto com esta linguagem de

uma comunidade. É assim que, num artigo de 1914, o então director da Casa Pia, dá

conta de uma linguagem especial usada entre os alunos:

“Havia na Casa Pia, pelo menos uma linguagem especial, bastante antiga, como

pude verificar, porque empregados, antigos alunos, com cinquenta anos de casa, a

conheciam desde pequenos, linguagem especial ou calão que primeiro por

necessidade e depois por curiosidade me lembrei de estudar” (Ferreira, 1914 b:

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A comunicação entre os da comunidade surda

233

326).

Cumpria ver como aparecera e se tinha estruturado tal linguagem. Dizia o

director que era “um calão”, composto, claro está, por palavras “criadas

intencionalmente com o fim de ocultar e servir de meio de defesa”, mas a sua origem

estava distante no tempo. “Remonta a um tempo em que a disciplina do internato se

mantinha quase exclusivamente à custa de um regime policial severo, com castigos

corporais e prisões e à custa de um apertado serviço de espionagem e delação”. O teor

do vocabulário referia-se a “castigos, designações e actos dos vigilantes, ludibrio,

pancadas, etc”. O calão era uma linguagem “intencionalmente secreta”, sempre por

perto quando a necessidade a reclamava, “porque o seu fim” consistia

“essencialmente na defesa do grupo que o emprega” (Ferreira, 1914 b: 326-328). À

semelhança da linguagem gestual dos surdos, também na comunidade ouvinte se

criara um código de comunicação entre os pares. Como bem sabia Costa Ferreira, não

seria proibindo que acabaria com o seu uso.

Já se sabe que, nem todos os alunos surdos aprendiam a comunicar pela língua

oral. Todavia, embora a documentação da instituição revele que aqueles que não se

adaptavam ao método oral, acabavam por ser direccionados para os trabalhos

exclusivamente manuais e oficinais, raramente foi referida a estratégia de

comunicação destes alunos. É pela autobiografia de um ex-aluno surdo da Casa Pia

que, ficamos a saber que para além do bom ofício, os surdos aprendiam com os

professores “o alfabeto manual dos surdos e os números” para “melhor” se

entenderem “ com os outros” surdos (Carvalho, s/d: 36). O estado surdo impunha

determinadas formas de intervenção para uma acção produtiva sobre os corpos. A

visualidade, o gesto, a exploração dos sentidos foram estratégias adoptadas, longe de

serem reprimidas, no ensino dos alunos surdos porque um saber sobre este grupo

desenhava nestes territórios uma eficácia governativa. Era importante que o aluno

surdo se fabricasse como sujeito com uma identidade própria, dono de si, porque “o

controlo”, sendo uma “prova de poder”, era também “de liberdade” e o sujeito surdo,

numa escola oralista deveria “aferir a relação entre si próprio e o que é representado,

a fim de só aceitar na relação consigo aquilo que” pudesse “depender” da sua

“escolha livre e razoável” (Foucault, 1994: 77). Ora, a comunicação entre os da

comunidade surda, mesmo desenvolvendo-se pela gestualidade, não era ameaça às

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Poder e resistência

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práticas oralistas, antes as justificava e lhes aumentava a intensificação de

intervenção. É caso para lançar a questão que já Rousseau colocou aos mestres, na

sua obra Emílio: “Possuir os instrumentos e saber utilizá-los correctamente não é ser

mestre da operação?” (1990: 179). Ou então, as palavras de António Aurélio quando

afirmava que “o problema do educador” seria o de “tornar o real aceitável, conforme

a natureza do indivíduo e pôr este em equilíbrio com a sociedade”. Para tal precisava

de dominar um saber que lhe permitisse descortinar o modo de dar “ao indivíduo a

noção de realidade mais conforme com a sua natureza e a do meio social. O problema

do educador é o problema da felicidade que, como diz Deschamps, se pode chamar

uma ‘harmonia psicosocial, uma adaptação completa dos desejos aos poderes, e dos

poderes aos meios’” (Ferreira, 1921: 391).

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O método oral puro…

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5.HOSPEDAR A PALAVRA NO CORPO DO HÓSPEDE

5.1.O MÉTODO ORAL PURO: COREOGRAFIA DE GESTOS, VIBRAÇÕES E

RESPIRAÇÕES

“Exmo. Senhor,

É com o máximo reconhecimento e gratidão que venho, por este meio, agradecer a Vª

Excª a assistência, ensino e educação que durante mais de 9 anos foi ministrada a

meu filho. [...] Nunca será esquecido, por mim nem por meu filho, tão grande

benefício que o habilitou, na medida do que foi possível fazer, a ganhar a sua vida

honestamente”.

(Carta de uma mãe de um aluno surdo ao Director da Casa Pia de Lisboa, primeira

metade do século XX)

(Coguillot, 1889)

Foi no quadro da governamentalidade, do governo e de um apelo a um autogoverno

que também os alunos surdos da Casa Pia construíram a sua identidade. No

dispositivo escolar cruzaram-se tecnologias disciplinares, biopolíticas e tecnologias

do eu do sujeito, relacionando os comportamentos de todos e de cada um. A escola

reúne em si mecanismos disciplinares de submissão do aluno que apenas resultam

pela utilização de mecanismos reguladores da conduta do aluno, estes, obrigando-o

docilmente, a operar em si uma transformação. As tecnologias do poder, diz-nos

Foucault, determinam a conduta dos sujeitos e submetem-nos a determinados fins de

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Coreografia de gestos, vibrações e respirações

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submissão, mas, sublinha-o o autor, são as tecnologias do eu, “which permit

individuals to effect by their own means or with the help of others a certain number

of operations on their own bodies and souls, thoughts, conduct, and way of being, so

as to transform themselves in order to attain a certain state-of happiness, purity,

wisdom, perfection, or immortality” (1988:18). É a batuta do poder que, no seu toque,

propaga os seus efeitos numa espécie de rede que atinge tudo e todos.

O aluno surdo era pensado como alguém que deveria desejar a língua oral. O

estado surdo do aluno era de carência e de total disponibilidade para uma conversão

que lhe pudesse dar um enquadramento social.

Na sua obra A apresentação do Eu na vida de todos os dias, Erving Goffman,

explora as diversas possibilidades de interacção e comportamentos do sujeito, nos

confrontos face a face, próprios do quotidiano. É aqui que refere que o indivíduo, nas

acções e atitudes que exibe perante os outros, pode ser “completamente tomado pela

sua própria acção”, estando “sinceramente convencido de que a impressão de

realidade que encena, é a realidade real” (1993: 29). Ora, neste sentido, identifica-se o

sujeito com o actor que veste de tal forma a pele da personagem a desempenhar que

acaba a confundi-la consigo, ou, pelo menos, apresenta um desempenho de tal ordem,

completamente inquestionável para a plateia que assiste. A colagem da língua oral ao

aluno surdo pode aproximar-se, em parte, desta situação. A criança surda, poderia

desejar, efectivamente, incorporar em si as ferramentas de comunicação com o

ouvinte, mas, – outra possibilidade –, a aprendizagem da língua oral, ao longo da

exposição do aluno às práticas educativas, idealizar-se-ia como escolha inevitável e

acertada. Dizia convictamente Cruz Filipe que:

“Todas as crianças, mesmo as surdas-mudas, têm tendência para querer falar.

Aproveite-se este esplêndido ensejo, cultive-se o mais possível e insista-se

sempre na repetição, para que alguma coisa fique deste natural desejo de falar”

(1920: 29).

O maior cultivo possível e a repetição a que Cruz Filipe aludia, eram, sem

dúvida, relativos a uma intensificação das técnicas aplicadas no acto educativo. O

corpo do aluno teria de se tornar o objecto por excelência de aplicação de tecnologias

transformadoras. Michel Foucault, em Vigiar e Punir, ensina-nos que “o momento

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O método oral puro…

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histórico das disciplinas” é aquele “em que nasce uma arte do corpo humano, que

visa não unicamente o aumento de suas habilidades”, nem sequer a sua simples

sujeição. Esta situação seria, como vimos, própria de um poder soberano. O

mecanismo que as disciplinas se esforçam a alcançar é o do seu próprio afinamento,

de tal modo que tornam aqueles a que se aplicam, tanto mais obedientes quanto mais

úteis. A “manipulação calculada” de “elementos”, de “gestos” e de

“comportamentos”, constitui uma “‘anatomia política’” e uma “‘mecânica do poder’”

que “define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente

para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas,

segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica, assim, corpos

submissos e exercitados, corpos “dóceis” (2004: 119). Eis então uma tradução do

quadro que se acabou de traçar, pelas palavras de um educador da Casa Pia:

“Fixai o olhar do vosso educando, aprendei a usar de gestos apropriados, a

traduzir pela expressão do olhar e pela maneira de gesticular a vossa intenção e

com facilidade podereis sossegar o agitado, disciplinar o indisciplinado, tornar

atento o distraído, despertar o apático, imobilizar quando quiserdes imobilizar,

agir quando quiserdes que se movam, castigar quando quiserdes castigar, premiar

quando quiserdes premiar, e por eles mais facilmente do que com os vossos

discursos podereis conseguir o que constitui, tanto no ensino de anormais como

de normais, o principal segredo da arte do educador: saber fazer do educando um

amigo, saber apossar-se do aluno. Educai não só com a alma; educai com alma”

(Ferreira, 1917: 538).

Estas palavras mostram bem o quanto o professor teria de saber sobre o seu

aluno, para poder agir sobre ele e mais, para o levar a agir sobre ele próprio. O

cuidado em relação a si mesmo, a disciplina corporal, nada teriam de repressivo ou de

renúncia, mas pelo contrário, marcariam o início da constituição de um novo tipo de

sujeito. É no interior desta rede de relações de mecanismos fortemente disciplinares e

de discursos pedagógicos sobre como agir com a criança surda, – entre, por um lado,

as regras, os exercícios, o trabalho minucioso sobre o corpo do educando e, por outro

lado, o intenso saber e investida sobre a sua alma, possível, aliás, por uma merecida

“confiança e estima”, pelas “maneiras afectuosas” do mestre e, por uma forma de

subjugar o aluno surdo “pela doçura e bondade” –, que a criança surda entra no

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Coreografia de gestos, vibrações e respirações

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mundo escolar e numa instituição governada por ouvintes (Filipe, 1907:2). Estas duas

tecnologias, as disciplinares, activamente implicadas no processo de dar hospitalidade

à criança surda, e as tecnologias do eu são ao mesmo tempo, passo e fim da

governamentalidade do aluno surdo.

Na verdade, dar ao surdo uma casa, uma escola e uma língua com que pensar,

seria a hipótese única de este vir a realizar, “o ideal e o sonho que fazem parte da

felicidade humana” e que a privação do som impedia, não podendo, a criança surda,

realizar nem exprimir “as suas ideias nem se aperceber das dos outros dentro das

virtualidades da palavra”. Ora, “a palavra” era tida como “fundamento da felicidade”,

enchendo e iluminando a vida, dando “paz e alegria ao coração”, “bem” que

injustamente não existia para a criança surda (Tavares, 1955: 11). Mas esta tarefa da

hospitalidade, era uma tarefa que estimulava “os melhores sentimentos” e cativava

“os mais exigentes” médicos e pedagogos, nunca se tornando excessiva a

“propaganda contínua, sobre a vantagem moral e social de se cuidar, a valer, de tanto

infeliz, a quem deficiências físicas ou mentais” inibiam “de usufruir as mesmas

regalias e o mesmo bem-estar moral, que a todos” era “dado conhecer e apreciar”

(Filipe, 1942:3). O desejo da língua, sendo algo que parecia referir-se a princípios

universais, seria um desejo a que também o surdo se submeteria.

Estudo de pronunciação pelo movimento dos lábios diante um espelho

(A Ilustração Portuguesa de 6 de Maio de 1907)

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A imagem dá a ver sete crianças voltadas de costas para o observador,

sentadas num banco comprido, de frente para um espelho rectangular. Também um

adulto, de pé, um braço amigavelmente apoiado sobre o ombro de uma das crianças e

inclinado para ver o seu reflexo no espelho. Para além deste reflexo, mais seis, de seis

das crianças e uma parte, mínima, do reflexo da sétima criança, apertada contra a

extremidade direita do banco e em frente da moldura que determina o corte da

superfície reflectora. A fotografia é extremamente condensada, determinando uma

proximidade do observador situado mesmo por trás das crianças, até à parede. Mas o

espelho, reflecte um outro espaço, que é o que está por trás das crianças – aquele

portanto em que também o observador se situa – aparentemente uma sala de aula,

pelo quadro negro e pelas folhas que se vêem penduradas na parede lateral. Aqui, o

espelho, funciona como redobro das personagens representadas, mas diz, também,

algo de um espaço que sendo o do observador, e sendo também o das figuras, não

estava lá representado. A proximidade do enquadramento, não deixa ver o espaço da

acção. Todavia, o espelho, dá visibilidade ao espaço exterior à fotografia e mostra os

rostos daqueles de que se vêem as cabeças. Aqui o espelho é certamente o centro das

atenções. Das crianças e do adulto. Do próprio observador que procura compreender

a razão do interesse destas oito pessoas pela sua imagem no espelho. Posso esclarecer

o leitor ou a leitora, ainda que pouco, dizendo que a fotografia, da autoria de Joshua

Benoliel pertence aos inícios do século XX, especificamente a um dos anos entre

1905 e 1907, tendo como personagens Nicolau Pavão de Sousa, professor de ensino

primário dos alunos surdos da Casa Pia de Lisboa, e sete crianças surdas que recebem

uma lição de articulação oral em frente de um espelho. As atitudes rectas, imóveis,

verticais destes sete actores, mostram-nos que “um corpo disciplinado é a base de um

gesto eficiente” (Foucault, 2004: 130).

Há, pelo menos, duas coisas essenciais que não gostaria deixar de dizer sobre

esta imagem. Uma, diz respeito à subjectivação do aluno, ao processo de construção

da sua identidade em relação a uma imagem que lhe destinam. A outra, tem que ver

com a correlação entre corpo e gesto, disciplina e eficiência. Começarei pela

subjectividade.

As sete crianças representadas realizam, num mesmo tempo, exercícios de

vocalização. Estes exercícios, segmentados como de resto todos os saberes escolares,

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Coreografia de gestos, vibrações e respirações

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contribuiriam para o domínio dos sons e, por fim, das palavras. A imagem pode ser

uma encenação daquilo que habitualmente aconteceria numa aula. E, nesse caso,

coincidiria aqui, por um lado, a imagem que do interior da instituição se queria passar

para o lado de fora e, por outro, o comprometimento do aluno com uma pele que lhe

propunham vestir. “Quando o indivíduo se apresenta perante os outros”, escreve

Goffman em A apresentação do Eu na vida de todos os dias, “o seu desempenho

tenderá a integrar e a ilustrar os valores oficialmente reconhecidos pela sociedade”

(Goffman, 1993: 49, 50). Ora, é inquestionável que este grupo de alunos – sete alunos

e não apenas um – apresenta um desempenho condicente com a idealização

imaginada pela comunidade ouvinte. A fotografia que não captou som, levanta

alguma inquietação pois não permite afirmar a qualidade do desempenho dos alunos

surdos. Do domínio da visualidade é apenas o gesto e a atitude corporal. É aliás, este,

também o domínio a que os alunos representados são expostos e, portanto, será nesta

incorporação de práticas de rotina, de esquemas de acção, de avaliação, de

apresentação de desempenhos que se forma o habitus, determinante na construção

que o aluno empreende de uma imagem da realidade e de si próprio. É evidente o

carácter normalizador que esta prática de sala de aula ou encenação, criava nos alunos

envolvidos. Era aqui que se manifestava o grau de adaptação do aluno

comparativamente às expectativas de uma comunidade ouvinte. Governo do corpo e

governo da oralidade.

O ponto de partida para o segundo aspecto a referir, apresenta-se nas palavras

de Foucault:

“O corpo e o gesto postos em correlação: o controle disciplinar não consiste

simplesmente em ensinar ou impor uma série de gestos definidos; impõe a melhor

relação entre um gesto e a atitude global do corpo, que é sua condição de eficácia

e de rapidez. No bom emprego do corpo, que permite um bom emprego do

tempo, nada deve ficar ocioso ou inútil: tudo deve ser chamado a formar o

suporte do acto requerido. Um corpo bem disciplinado forma o contexto de

realização do mínimo gesto” (Foucault, 2004: 129).

Este, portanto, não era um mero exercício de aprendizagem de sons. Era uma

técnica que ocupava o aluno, obrigando-o a uma participação activa no processo de

aprendizagem. O aluno era chamado a ser autor da sua aprendizagem. O seu corpo

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O método oral puro…

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encerrava-se em gestos e ocupava um lugar específico no grupo. Cada aluno,

prestava provas do conhecimento que era suposto adquirir. Supomos que a cena real

que o fotógrafo captou fosse acompanhada de som e, no entanto, os alunos a quem

este se dirigia, eram surdos. “Que outros objectivos se encontram no silêncio dessa

prática?” (Lopes, 2002:121).

Os alunos surdos no processo de hospedagem de uma língua que não é a deles

mas do colono – o ouvinte-mestre – são organizados numa série de exercícios

disciplinadores sonoros e mímicos do corpo. Cada educando, é posto frente à sua

própria imagem no espelho e à imagem do professor. Observam o reflexo do mestre

de fala, desejando aproximar-se da performance desta imagem. A atenção do aluno é

totalmente centrada no movimento bocal de cada som que não ouve, mas do qual

conhece a vibração e a representação visual certas. Os exercícios de articulação de

cada aluno, individualmente, em frente a um espelho, objecto de observação

simultânea do professor e dos outros alunos surdos. Há uma avaliação constante de

desempenhos, do que se é capaz de falar, embora esta cerimónia oral da fala apenas

seja acessível ao professor, como único ouvinte que avalia o surdo a partir de uma

representação do seu corpo, enquanto corpo com falta, isto é, a partir da característica

que não está lá, o ouvir.

“Na medida em que a tendência expressiva dos desempenhos seja admitida como

realidade, então, aquilo que nesse momento é admitido como realidade assumirá

algumas das características de uma celebração” (Goffman, 1993: 50).

A frase de Goffman não poderia ser mais condicente com o que a imagem

revela do domínio oralista no ensino dos alunos surdos. Numa palavra, o aluno surdo

deveria transformar-se durante o processo de institucionalização. Para tanto exigia-

se-lhe um aperfeiçoamento constante, conseguido apenas pela incorporação de

práticas definidas em cada aula. “O ofício do aluno”, diz Perrenoud, “encontra-se

definido essencialmente pelo futuro que ele prepara e a escola faz como que se esse

futuro bastasse para conferir sentido ao trabalho de cada dia” (Perrenoud, 1995: 21).

Ora, o sentido de incorporação de uma língua oral, construía-se a partir de

representações do que deveria ser e saber o aluno surdo, e era nas interacções e nas

relações com o espaço escolar e com os seus diversos actores que esse sentido

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Coreografia de gestos, vibrações e respirações

242

ganhava corpo.

“O professor não fica satisfeito com uma aproximação, exige constantemente

o som claro, bem timbrado e vai exercitando o mudozinho, emendando uma posição

falsa da língua, aumentando ou diminuindo a intensidade da voz até obter a pureza

perfeita e definitiva. Pronunciando bem o som o aluno continua a repeti-lo todos os

dias em frente do espelho, para evitar qualquer exagero na posição dos orgãos da fala,

conservando igualmente a mão aplicada à laringe para a melhor apreciação das

vibrações sonoras” (Fusillier, 1893: 394). Todo o treinamento apela a uma economia

e eficácia dos movimentos, garantindo-se pela repetição a correcção de cada

momento inadequado ou excessivo à produção da fala. Os ruídos serão anulados pela

persistência do treino. Os exercícios desmultiplicam-se. Cada som tem um gesto e

uma vibração próprias. A gramática da oralidade vai sendo incorporada nos corpos

surdos.

“Isso acontece, sem dúvida, porque os alunos interiorizaram a necessidade de

aprenderem e trabalham cada vez mais por vontade própria” (Perrenoud, 1995:

77).

É esse, aliás, o poder produtivo das disciplinas. Produzir corpos dóceis e úteis.

Só um método rigoroso, pensado em cada detalhe que o compõe, o permite.

“Começar pelos sons mais fáceis e acabar pelos mais difíceis, seguindo

escrupulosamente para os intermediários as leis de derivação fisiológica que não

admitem que se produza por exemplo o g antes do q ou o v antes do f. […] Quanto

maior for o número de sons conhecidos, tanto maior será o número de palavras que

com eles se pode pronunciar. Possuindo-os todos, com as suas numerosas

combinações, pode-se falar qualquer palavra, portando qualquer período e nessas

condições o surdo-mudo deixa de ser mudo” (Fusillier, 1893: 394, 395). Passa a ser

surdo-falante. Estamos diante de um acontecimento possível neste enquadramento

institucional dos surdos numa instituição como a Casa Pia. Goffman diz que as

instituições, nomeadamente estas de carácter total, “são as estufas para mudar

pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu” (2003:

22).

O exercício era para o surdo a única forma de se tornar um corpo competente

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O método oral puro…

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para hospedar a fala. Há uma seriação de exercícios, organizados em dificuldade

crescente, cujo domínio lhe vai possibilitando, primeiro, a pronúncia de sons e um

controlo e qualidade no domínio desses sons que serão, depois, palavras. A repetição

contínua conseguida pela adesão da criança ao ideal do educador, será garantia de

uma performance cada vez mais perfeita. O ponto em apreço é o “exercício”, a

técnica pela qual se impõem aos corpos tarefas ao mesmo tempo repetitivas e

diferentes, mas sempre graduadas. Dirigindo o comportamento para um estado

terminal, o exercício permite uma perpétua caracterização do indivíduo seja em

relação a esse termo, seja em relação aos outros indivíduos, seja em relação a um tipo

de percurso. Assim realiza na forma da continuidade e da coerção, um crescimento,

uma observação, uma qualificação” (Foucault, 2004: 136,137). Mas não é só a figura

do mestre de fala que impulsiona uma performance perfeita dos sons, é o espelho em

que o surdo vê a imagem da sua própria transformação, que não percebe abusiva do

seu estado surdo, porque, precisamente, persegue a libertação desse estado surdo

através da resolução pronta, dócil, laboriosa, atenta dos exercícios que o mestre

falante lhe propõe.

Há ainda que registar um outro aspecto que continuamente tem sido pano de

fundo desta escrita. A escola era um dispositivo de poder, e o poder não é um

“atributo”, “mas relação”. O poder “é operatório”. “A relação de poder é o conjunto

das relações de forças, que passa tanto pelas forças dominadas como pelas

dominantes, constituindo ambas singularidades”. Desde logo, a dominância oralista,

gera uma dinâmica de forças desiguais, contudo, a língua oral que se impõe ao aluno

surdo não é uma violência que se exerce sobre o corpo surdo, mas antes, “o efeito” de

uma força sobre o aluno surdo (Deleuze, 2005: 44). E esta força possui a

particularidade de normalizar. O surdo terá não só de adquirir a mimética de gestos

faciais do ouvinte como também de desempenhar o complemento sonoro de tais

gestos, muito embora, esta prática possa significar um abuso do seu estado original –

pois tem de dominar uma prática que não lhe pertence – a força que é dominante,

produz um real e uma verdade – a idealização da normalidade pelo acolhimento da

língua oral. Neste processo, apenas um elemento não é abusado – a especificidade da

experiência visual da surdez. E aqui reside também a força de poder do aluno surdo.

Desenha-se um conjunto de práticas, algumas violentadoras da condição

surda, mas que actuavam positivamente no sujeito que passava a desejá-las,

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Coreografia de gestos, vibrações e respirações

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estimulado pela valorização do seu sucesso, dos progressos na assimilação da língua

do mestre, que se queria que fosse um amigo. O surdo institucionalizado aprendeu a

representar-se a partir do ângulo do professor ou da instituição, desejando para si

aquilo que a instituição determinava que devia exactamente desejar.

“Na relação com o ouvinte, o surdo foi ensinado a olhar-se e a narrar-se como um

deficiente auditivo. A marca da deficiência determinou, durante a história dos

surdos e da surdez, a condição de submissão ao normal ouvinte. Dessa história de

submissão, criaram-se práticas correctivas derivadas de saberes que informam e

classificam os sujeitos dentro de fases de desenvolvimento linguístico,

cronológico e de perda auditiva” (Lopes, 2006: 4).

O surdo foi, portanto, participando na construção de uma imagem de surdo e

de surdez, como uma condição e um estado dos quais, não se podendo libertar, podia,

pelo menos disfarçar. Passou, claro está, a disciplinar-se no cumprimento de uma

conduta moral que mais do que por interdições, seria marcada pela relação que o

aluno surdo ia estabelecendo consigo próprio. O anormal, servindo sempre de objecto

métrico da normalidade, tinha, no normal, o equilíbrio a atingir e foi essa visão, quase

miragem, que determinou, no caso do aluno surdo, a sua viagem de transformação de

um estado para um outro estado. O processo de subjectivação do eu surdo, isto é, o

dispositivo de práticas e de técnicas que incidiram sobre o seu corpo, produziram a

experienciação da surdez enquanto deficiência.

Um dos primeiros artigos do século XX sobre o ensino dos surdos na Casa Pia

de Lisboa, estava recheado de um conjunto de imagens que constituem um objecto de

análise visual fundamental. Datado de 1908, relatava a experiência de uma visita à

Real Casa Pia de Lisboa, descrevendo os métodos de ensino, as actividades e os

exercícios que aí se praticavam, com o objectivo de dar uma língua falada, a quem

“não se tendo servido da boca senão para comer e para respirar”, não sabia “movê-la

como um falante”, não sabia “igualmente contrair e estender os lábios e recuar a

língua como nós” (Filipe, 1907: 12).

De entre as várias surpresas reservadas ao autor do artigo, a maior, não terá

sido a dos métodos de ensino, mas antes a de “uma realidade, tão real” quanto a de

“que nós ouvimos surdos-mudos falar, repetindo as palavras que percebiam pelos

movimentos da boca de quem as pronunciava, e ainda mais escrevendo-as

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O método oral puro…

245

correctamente a giz no quadro preto da escola”. Estes “pobres abastardados”, a quem

a natureza privou do uso da palavra e que, sem ela, ficariam próximos de um estado

dito “selvagem”, não só pronunciavam a palavra que nunca poderiam ouvir, o que era

um bem enorme para a sua progressiva integração e socialização, como também se

haviam convertido em educandos, isto é, não eram já crianças ineducáveis, mas

ineducadas que, a pouco e pouco se iriam formatando ao padrão de criança-aluno,

habitando uma paisagem escolar e integrando a ordem física e funcional dessa

paisagem. “Um destes alunos” fez, até, “contas de quebrados à nossa vista, no mesmo

quadro”. Todavia, “o tempo e a paciência que se gasta” até fazer o surdo pronunciar

“a primeira letra do alfabeto, não é fácil de calcular” (Alberto, 1908: 139). Três anos

se empregariam em exercícios de educação dos sentidos e de respiração. Convido o

leitor ou a leitora a assistirem a este período preparatório para a hospedagem da

oralidade.

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Coreografia de gestos, vibrações e respirações

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O período preparatório e a educação dos sentidos

247

5.2. O PERÍODO PREPARATÓRIO E A EDUCAÇÃO DOS SENTIDOS:

A VISÃO E O TACTO

“É inteiramente necessário que o professor preludie ao ensino oral puro pelo período

preparatório se não se quiser ver parado, a todo o momento, pela necessidade de

corrigir os defeitos tanto mais rebeldes a desaparecer quanto mais tarde forem

corrigidos” (Filipe, 1907: 5). Eram estas as palavras de José da Cruz Filipe num

relatório já aqui mencionado, enviado a partir de Paris onde, no Instituto de surdos-

mudos dirigido por Coguillot, o professor da Casa Pia se especializava. O período

preparatório consistia num trabalho centrado sobre o corpo do aluno, fazendo-lhe

uma educação dos sentidos visual e táctil para que depois se pudesse complexificar a

aprendizagem, introduzindo o estudo dos sons, das articulações e da leitura labial.

Esta fase essencial do processo de aprendizagem do aluno surdo tinha por fim “obter

do aluno uma perfeita imitação”, conseguida apenas por adestramento da sua

capacidade de atenção (Filipe, 1907:6). Num período preparatório tornava-se

necessário incorporar no sujeito mecanismos de obediência e disciplina, que

permitissem uma rentabilidade máxima das suas respostas face a uma economia de

acções. Uma intensificação de cada detalhe, como se o fraccionamento dos sentidos

pudesse ampliar a consciência da realidade do corpo e depois, da realidade do som. O

aluno surdo é lentamente introduzido num sistema espesso de regras, de detalhes que

lhe são dados a ver no seu próprio corpo e que o fecham na relação consigo. O recorte

efectuado sobre o corpo do aluno, tornando-o consciente para ele próprio, é o início

de um processo de transformação de que o aluno deverá ser o actor principal. As

técnicas aplicadas visam um relacionamento do sujeito consigo mesmo, com base

numa imagem que lhe é projectada como algo que deverá desejar atingir.

A educação dos sentidos assumia no processo educativo das crianças surdas

um papel primordial enquanto tecnologia disciplinar e de subjectivação:

“Les sens sont des organes de ‘préhension’ des images du monde extérieur,

nécessaires à l'intelligence, comme la main est l'organe de préhension des choses

matérielles nécessaires au corps. Mais le sens et la main peuvent s'affiner au delà

de leur simple rôle, en devenant les serviteurs toujours plus dignes du grand

moteur intérieur qui les tient à son service” (Montessori, 1958: 85).

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A visão e o tacto

248

A educação dos sentidos visual e táctil era igualmente necessária como base

para uma educação estética e moral. A afinação dos sentidos, disciplinando a criança

surda nas nuances visuais e tácteis, treinava a sua capacidade de se fixar nos

pormenores dos objectos, no movimento dos lábios, na vibração dos sons. As técnicas

utilizadas confluíam para um treino intenso da atenção, utilizável nos inúmeros

exercícios propostos na escola: de articulação, respiratórios, no desenho ou nos

exercícios físicos. Tratava-se de através dos sentidos integrar as qualidades dos

objectos no corpo do aluno surdo como se estes fossem o passaporte para uma

consciência da realidade. E mesmo nestes exercícios disciplinadores do corpo e do

espírito percebemos a mecânica produtiva que sempre se instala na relação de

governamentalidade. Partindo de algo que um saber sobre a criança, classificava

como inerente à sua natureza, exercer-se-ia um poder sobre ela, que a deixava livre na

experienciação individual e construção de um saber sobre os objectos e sobre si

própria. Aqui é preciso que se conte uma história, a da importância dos sentidos nos

métodos educativos que não negavam liberdade e disciplina e que consideravam a

criança como centro de toda a aprendizagem a propor. Dizia Jean Jacques Rousseau,

mais ou menos a meio do século XVIII, que os primeiros movimentos do homem

seriam de experienciação, “para se medir com tudo o que o rodeia, e experimentar,

em cada objecto que avista, todas as qualidades sensíveis que se podem relacionar

com ela”. Tudo o que entrava “no entendimento humano” lhe chegaria “pelos

sentidos”. O primeiro contacto com a realidade das coisas seria sensitivo e, na

verdade, serviria de base “à razão intelectual”. O aluno produziria sobre o espaço e

sobre a panóplia de objectos que o rodeavam um saber que lhe alargaria a experiência

a novos campos. “Para exercer uma arte, é necessário começar por adquirir os

instrumentos necessários para a praticar; e, para poder utilizar utilmente esses

instrumentos, é preciso fabricá-los bastante sólidos, para que resistam ao uso. Para

aprender a pensar, é, pois, necessário exercitar os nossos membros, os nossos

sentidos, os nossos orgãos, que são os instrumentos da nossa inteligência” (Rousseau,

1990: 124). Partindo do princípio que a criança surda estava naturalmente

vocacionada para uma fixação na experimentação visual, havia que utilizar este

sentido como técnica aproveitando o interesse que decerto o aluno manifestaria:

“O surdo-mudo tem olhos para ver os movimentos da boca, tão variados como os

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O período preparatório e a educação dos sentidos

249

sons que saem dela; tem mãos para sentir o sopro que se escapa com o som, as

vibrações do peito, da laringe, do crânio, das asas do nariz, etc. que acompanham

toda a vibração vocal. Estas manifestações acessórias parecem ter nenhuma

importância para aquele que ouve: basta-lhe o som , apesar de ouvir melhor

quando olha para a pessoa que fala. Mas se se atrair a atenção do surdo-mudo

para estes fenómenos, se se habituar a sua vista e o seu tacto a apreendê-los tão

lestamente como eles se produzem, se se lhes ensina a interpretá-los, ele

conseguirá, ao fim de um determinado esforço, distinguir as vogais, as

consoantes, as sílabas, as palavras e, portanto, inicia-se na linguagem dos seus

semelhantes” (Ilustração Portuguesa, 1907: 546).

A assimilação das propriedades formais e materiais das coisas esboçava-se

como objectivo de disciplina e de normalização, pois não só os sentidos eram o meio

impulsionador para a aquisição da palavra como o seu treino obedecia a um percurso

disciplinador, ainda que este se justificasse por uma necessidade inerente à própria

condição surda. A visão e o tacto surgiam como as duas modalidades com propensões

fecundas de desenvolvimento naqueles que tinham a audição como falta. Como se

esta falta pudesse compensar-se na maximização de outros sentidos. A ausência do

som significaria um elemento perturbador a menos para a fixação da atenção num

outro ponto sensorial. Necessário seria trabalhar na criança a capacidade de se centrar

no objecto proposto: “ce sont les stimulants, et pas de encore les causes qui attirent

son attention; aussi, est-ce l'époque où l'on doit doser méthodiquement les stimulants

sensoriels, afin que les sensations se développent rationnellement; on prépare ainsi la

base sur laquelle se construira une mentalité positive” (Montessori, 1958: 82).

Em 1893, Anicet Fusillier, professor particular de surdos em Lisboa, lançava a

questão que ainda hoje, com outro aspecto formal, se prolonga na memória de

muitos: “Os surdos-mudos falam?”. E à pergunta respondia com nova interrogação:

“Então, porque razão os surdos-mudos não conseguiriam falar?” (1893: 393). Ora, a

mudez que se associava à surdez não era algo inerente a esse estado, justificando-se a

não articulação de palavras por uma espécie de cegueira sonora:

“A mudez, salvo excepções raríssimas, provém exclusivamente da surdez; uma

criança não pode reproduzir sons que não ouve, ainda menos palavras e frases;

não tem defeito orgânico que impossibilite a articulação. O ideal portanto, não se

prestando o ouvido, seria encontrar outro meio capaz de dar a sensação dos sons.

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A visão e o tacto

250

Dois outros sentidos, a vista e o tacto, hão-de nos dar, em graus diferentes, esse

meio poderoso” (Fusillier, 1893: 393).

De facto, as técnicas pensadas para a educação das crianças surdas tomam a

interioridade e a subjectivação do sujeito como seu objecto. Normalização e

disciplina seriam apenas resultados alcançáveis se a criança participasse com

interesse nas actividades propostas. A arte de governar os alunos surdos via na

exploração da mais funda interioridade e sensibilidade, a única forma de afectação da

criança e da sua vinculação a sistemas que lhe poderiam ser demasiado abstractos não

fosse a particularidade de ela própria os sentir fisicamente. Havia que proporcionar ao

aluno surdo formas de racionalização da realidade e os instrumentos que serviam a

esta compreensão situavam-se no próprio corpo do educando. A educação dos

sentidos, mais não era do que a articulação, através de sensações corporais, entre

ideias e coisas. Não havia, aliás, forma mais objectiva de fazer a criança surda

perceber a sua falta senão demonstrando-lhe que um som tinha propriedades que ela

desconhecia, mas era tão verdadeiro quanto a vibração que poderia sentir na mão ou o

movimento que poderia ler nos lábios. O resgate de sentidos visuais e tácteis e a sua

educação era o ponto de ligação vital entre a interioridade do sujeito surdo e aquilo

que lhe era exterior mas deveria passar a fazer parte do seu querer. Seria absurdo

pensar em normalização, correcção ou disciplina sem se considerarem focos de

actuação adequados. O trabalho a partir das próprias sensações da criança,

individualizando-a e tornando-a o centro da prática educativa, era apresentado como

um processo quase espontâneo, quase natural, e que, afinal, era ditado pela própria

interioridade do aluno surdo. A identidade do surdo seria construida em cima deste

sentimento de falha de um sentido auditivo, mas para tal, esta falha assumia uma

verdade pela sua manifestação sob uma outra forma:

“Perdendo progressivamente os seus pontos de referência exteriores, a

consciência do corpo concentra-se nas impressões tácteis; desposa inteiramente

as sensações, mergulha nelas, afunda-se nelas com força; de súbito, ganha uma

nova clareza. Pouco a pouco, penetra num outro universo cujo espaço assimila

confundindo-se com ele. Eis que se expende agora, uma vez que o próprio corpo

se expande; eis que por seu turno se descobre enquanto universo e já não conhece

limites” (Gil, 2001: 172, 173).

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O período preparatório e a educação dos sentidos

251

Uma espécie de som fantasma, um som ficção que o próprio surdo fabricava

em si dando-lhe uma forma ressonante e coreográfica.

O corpo, considerado nas suas capacidades de sentir, torna-se alvo de

mecanismos de poder, oferecendo-se também a novas formas de saber. Na execução

de cada tarefa, na participação em cada proposta, no envolvimento através do jogo, o

aluno expunha as suas próprias condições de funcionamento. O saber sobre este

grupo de escolares, nascido da observação, permitia actuar sobre ele a partir dos

pontos que eram a sua própria experienciação do mundo. Se os sentidos, visual e

táctil, eram senão os únicos, pelo menos os mais importantes instrumentos a que a

criança surda recorria para se inteirar do que a rodeava, dever-se-ia então aproveitar

este princípio na sua educação. Dizia assim Palyart Pinto Ferreira, glosando um outro

educador:

“‘Cativar as crianças, fazer-lhes primeiro tocar com o dedo um fim desejável, dar-

lhes os motivos de todos os esforços que se exigem da sua atenção. [...] Pedir-

lhes, em lugar de uma obediência passiva, absolutamente degradante, um élan

espontâneo, o desejo activo de saber; desenvolver nelas com discernimento o

desejo, natural em todas, de curiosidade e de actividade cerebral; iniciá-las no

divino prazer de compreender; eis o verdadeiro dever de um mestre, de um

educador digno do papel magnífico de tutor de almas’” (1930b:4).

Ora, esta perspectiva conflui nas ideias proclamadas pela pedagogia nova e

julgo que não as podemos considerar sem as articular com liberdade e disciplina.

Liberdade porque era reconhecida à criança a possibilidade de apreender a realidade

de uma forma que lhe era natural, quer dizer, através de jogos sensoriais, do ver e do

tactear os objectos. O carácter disciplinar suceder-se-ia a este interesse infantil,

educando os sentidos no momento em que já a criança estava envolvida na

experienciação dos objectos. Desenvolver a rapidez, o golpe de vista, a habilidade

manual, seriam resultados obtidos por um rigoroso trabalho disciplinar sobre o corpo

do educando. Mas esta era uma disciplina que se afigurava como proposta de

desenvolvimento e de domínio do aluno sobre si próprio e nunca como imposição

violenta do exterior. A dimensão sensorial apresenta-se como uma variante da

dimensão lúdica ou antes como uma especialização desta dimensão. Na execução de

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A visão e o tacto

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qualquer movimento participavam corpo e alma. Na atenção dedicada aos sentidos, o

aluno surdo conectaria o corporal e o espiritual, incorporando em si o mundo à sua

volta. Para tal lhe eram propostas as mais diversas actividades, contudo, não sem que

estas se estabelecessem num quadro científico. Não podemos ignorar o carácter de

utilidade para a produção de um saber cada vez mais técnico que a educação da visão

ou do tacto poderia representar. Estas eram áreas que quando direccionadas para

actividades do domínio do fazer manual, revelavam pelo registo o carácter daquele

que as produzia:

“pelo desenho de uma criança se aquilata do seu poder de observação e de

interpretação, dos seus interesses, não falando já no saber fazer que depende de

um adestramento especial de células motrizes, da aquisição de uma técnica. Pelo

desenho se pode ver como ela pensa” (Ferreira, 1930b: 6).

O estudo da alma da criança poderia fazer-se tendo apenas a observação como

instrumento. Actividades como o desenho e os trabalhos manuais seriam excelentes

para desenvolver a capacidade de atenção visual do aluno. Eram mesmo tecnologias

essenciais quando se pretendia uma hexis corporal, uma capacidade de concentração e

vinculação a uma tarefa durante um espaço de tempo estipulado. Na construção da

identidade da criança, a actividade artística ocupava um posicionamento privilegiado

porque sendo espaço aberto a uma liberdade interior, era também espaço de

regulação adestradora, fosse pelo domínio da realidade através do traço, fosse pela

organização do corpo no espaço, fosse pelo planeamento estratégico do tempo. Estas

eram coordenadas que envolviam a criança surda e exigiam dela uma resposta

pessoal, no recorte celular de si enquanto indivíduo.

“Por ser absolutamente necessário o professor ter de fixar a atenção do aluno num

dado ponto ou objecto, isto é, fazer-lhe a educação da vista, tem de recorrer a

exercícios de ginástica escolar, imitativa e progressiva; com estes exercícios a

vista do aluno começa a fixar-se e a educar-se, o espírito a observar, a aplicar-se e

a comparar e além disso, estes exercícios servem também para disciplinar o

aluno” (Filipe, 1907: 10, 11).

Fixar a atenção do aluno no corpo do professor agregaria às vantagens de

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O período preparatório e a educação dos sentidos

253

duplicação do exercício, as vantagens da emulação relativa à figura do mestre. Entre

os exercícios possíveis figuravam o “fazer marchar o aluno imitando os passos do

professor”, fazê-lo “abrir e fechar a porta”, “levantar-se”, “sentar-se”, “saudar”,

“inclinar-se para a frente”, “para os lados”. Exercícios “tão úteis”, desenvolvendo o

“espírito de imitação” e envolvendo “todo o corpo” do aluno. Semelhante aos

exercícios militares. Todavia, também para as mãos e para os dedos se esboçavam

ginásticas especiais: “mostrar 1, 2, 3 dedos e depois fazê-los dobrar rapidamente”

(Filipe, 1907: 11). Era de todo conveniente que o aluno surdo entendesse estes

exercícios como jogos em que o prazer de participar, tão natural na criança, o faria

desenvolver sensações determinadas. Mais tarde, a imitação dos movimentos

necessários à fala, não seria de todo estranha a este mecânica activa da imitação, para

além de os movimentos labiais serem mais facilmente apreendidos por um

desenvolvimento e educação conveniente da atenção visual e táctil. O sentido da vista

desdobrava-se no sentido das formas, dos tamanhos, das cores, das distâncias, dos

movimentos, o sentido do tacto, nas temperaturas, nas formas, nos tamanhos, nas

texturas, nas vibrações.

“Antes de executar qualquer exercício para a educação táctil devem banhar-se as

polpas dos dedos em água tépida, enxugando-as e friccionando-as depois com

uma toalha felpuda afim de fazer afluir o sangue e dar aos dedos um maior poder

de sensibilidade” (Anuário 1916-1917: 346).

Exercício de treino táctil

(Ferreira, 1922 b)

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A visão e o tacto

254

“Depois de muitos destes exercícios, e quando o sentido táctil tiver atingido

um certo grau de desenvolvimento, passa-se a outro exercício que é ao mesmo tempo

verificativo e ainda educativo e que é executado de olhos vendados” (Rosa y Alberty,

1917: 346). Estes eram receituários que o professor da Casa Pia Rosa y Alberty trazia

da sua presença num Curso de Maria Montessori realizado em Barcelona. Segundo a

pedagoga, cada criança teria a sua venda própria, guardada numa carteira com as suas

iniciais. A imagem fotográfica aqui reproduzida pertence ao arquivo de memórias do

que foi o processo educativo dos alunos surdos da Casa Pia, nos primeiros anos do

século XX. Na Casa Pia, os alunos surdos não tinham uma venda especial, mas

utilizavam o próprio lenço, dobrado, para tapar os olhos. Um aluno surdo de olhos

vendados: não ouve e não vê. Procuraria pelo tacto adivinhar o objecto que lhe

colocam nas mãos. Cinco alunos, de idades semelhantes, observam-no junto à mesa

dos professores. Três alunos, mais velhos, sentados, cada um atrás da sua carteira

escolar, dirigem o olhar para o acontecimento. Parecem atentos. Não fosse a barreira

visual que os cinco alunos de pé formam, dir-se-ia que observavam o desempenho do

colega de olhos vendados. A professora observa o tactear do aluno. O professor olha

de frente a câmara fotográfica. As paredes da sala são preenchidas com imagens. O

espaço é transbordante de detalhes visuais, neutro em som. A atenção fixa-se nos

sentidos: do tacto, da visão, da audição (por causa e pela sua ausência).

“O tacto é susceptível de adquirir uma delicadeza e uma habilidade especiais;

e já se conhece o grau que ele atinge no ensino dos cegos”. O trabalho a desenvolver

enquadrava-se no disciplinamento do sentido cutâneo elevado ao seu máximo grau de

percepção, por forma a reconhecer-se no objecto que não se via, a qualidade, a forma,

o tamanho. Privado do som, o surdo via-se também momentaneamente privado da

visão, para melhor isolar as suas capacidades estereognósticas tácteis. Um saber

geralmente extraído deste grupo de escolares mostrava que teriam “o tacto muito

menos desenvolvido que a maior parte das crianças que possuem todos os sentidos,

porque a sensibilidade nervosa é mais ou menos diminuída neles, segundo eles são

mais ou menos degenerados”. Era portanto útil treinar este sentido para que as

crianças surdas no processo de aprendizagem da língua estivessem capazes de

facilmente “distinguir as vibrações fortes, fracas, locais, etc” (Filipe, 1907: 16, 17).

Depois de colocado nas mãos “um objecto qualquer” para que a criança o

apalpasse, tirava-se-lhe o “ objecto das mãos e o lenço dos olhos” e o aluno deveria

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O período preparatório e a educação dos sentidos

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indicar qual era o objecto que tacteara, seleccionando de entre muitos que se

colocavam em cima da mesa. “Para este exercício” empregavam-se, primeiramente,

“objectos inteiramente diferentes entre si, tais como: uma caneta, um caderno, um

aparo, etc.”. Em seguida, o exercício tornava-se mais complexo pela utilização de

“objectos semelhantes na forma mas de qualidades diferentes, tais como: dois lápis da

mesma dimensão, mas sendo um de madeira ordinária e outro de madeira

envernizada; para se dar mais desenvolvimento ao tacto”, poder-se-iam “misturar 3,

4, 5 ou 6 canetas, mas com uma certa diferença entre si, assim como por exemplo:

uma caneta com aparo, outra sem ele, outra com uma extremidade partida, etc.”

(Filipe, 1907:17, 18). Do que aqui se fala é de um treino intensivo da atenção.

De modo gradual, o aluno seria levado a distinguir os diversos elementos do

mundo exterior fixando-os como objectos de observação. O treino dos sentidos

enquadra-se na cultura da atenção de que falou Gabriel Compayré no século XIX. Se

haveria primeiro que desenvolver na criança surda a consciência de si, quer dizer,

“aquela consciência que tem por objecto imediato o eu, e que é o princípio do

sentimento da personalidade”, a educação teria que exercer “uma acção para assim

fortalecer a reflexão psicológica e assegurar à pessoa humana a plena posse de si

mesma”. Todavia, a uma criança, ainda mais privada do sentido auditivo, a grande

questão seria “ensinar-lhe a estar atento” e o meio de o conseguir não era explicando-

lhe “teoricamente as condições da atenção”, mas fazê-la “conhecê-las pessoalmente”,

“apresentando-lhe objectos que estejam ao seu alcance, e excitem o seu interesse”

(Compayré, 1893: 315). Esta preparação haveria de fazer o aluno fixar-se em tudo o

que o rodeasse, mas também possibilitar-lhe a capacidade de concentração num

detalhe mínimo como um movimento de lábios. A educação dos sentidos organizava-

se a partir de uma selecção cuidada introduzindo de acordo com as capacidades

individuais de cada aluno, elementos novos com que a criança se fizesse “senhora do

mundo que a cerca”:

“Começa a distinguir as formas dos tamanhos, as cores das formas, as diferentes

graduações de cores e dentro da mesma cor os seus diferentes tons. [...] Distingue

o simples tacto da possibilidade de apreciar o peso ou reconhecer a forma e o

tamanho de qualquer objecto e, lentamente mas seguramente, se vai

estabelecendo a ordem em meio do caos” (Anuário 1916-1917: 351, 352).

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A visão e o tacto

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Terei de conduzir esta escrita novamente até Rousseau quando este se refere

às estimações auferidas através do tacto, como sendo “as mais seguras, precisamente

porque são as mais limitadas”. Não era um contrasenso o que motivava esta

afirmação “pois que, estendendo-se unicamente até onde as mãos podem alcançar”, o

sentido táctil corrigiria na proximidade com os objectos “as estimações precipitadas

dos outros sentidos”, principalmente quando estes não estavam devidamente

adestrados. “Tudo o que o tacto sente, sente-o bem”, para além de que acrescentando

“a força dos músculos à acção dos nervos, reunimos – através de uma sensação

simultânea – a avaliação da temperatura, das grandezas e dos aspectos, a avaliação do

peso e da solidez” dos objectos (1990: 140).

O isolamento de cada um dos sentidos em cada exercício educativo, por certo

ajudaria o aluno a dirigir e aplicar toda a força útil do seu corpo no objecto que o

mestre lhe determinava. Esta atitude, fruto de um longo processo de adestramento,

era “o espírito em liberdade”. O trabalho do mestre seria criar situações que

prendessem e captassem o seu pupilo. Uma atenção involuntária seria procedida por

uma atenção voluntária. “O melhor meio de chamar o espírito à liberdade é o de

submetê-lo primeiro a sensações contínuas e forçadas” (Compayré, 1893: 316, 319).

Michel Foucault, em Vigiar e Punir, demonstra que um corpo só se

transforma numa força útil se for simultaneamente produtivo e submisso. A

submissão de que fala não é obtida unicamente por intermédio de instrumentos de

violência. A sujeição daquele que é sujeito é fruto de um cálculo, de uma organização,

de técnicas pensadas por uma racionalidade governativa. As técnicas utilizadas na

educação das crianças surdas na Casa Pia de Lisboa, inscrevem-se ao nível de uma

“microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições”, mas no interior

de relações em que o poder não é “concebido como uma propriedade, mas como uma

estratégia”, os seus “efeitos de dominação” não são “atribuídos a uma ‘apropriação’,

mas a disposições, a manobras, a tácticas, a técnicas, a funcionamentos” (Foucault,

2004: 26). Neste quadro, é importante percebermos que o investimento sobre o corpo

da criança surda, numa atitude ortopédica, se direcciona para um campo em que não é

a submissão a regras, à oralidade, ao modelo ouvinte que assume preponderância,

mas antes uma evolução que se pretendia natural, que se deveria manifestar a partir

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do próprio interior do aluno surdo, de um desenvolvimento gradual da vontade a

penetrar os hábitos impostos. A vontade e o desejo caminham paralelamente. Em

1938, Serras e Silva escrevia que o “saber é negócio de inteligência, querer é negócio

de vontade. […] O saber é fácil de ministrar, o querer é mais difícil de instalar na

vontade. Requer tirocínio, exercício, prática e verificações” (Silva, 1938: 208).

Isso mesmo verificou João de Sousa Carvalho, professor da Secção de surdos

da Casa Pia, que em 1916 foi encarregado de uma classe de alunos quase todos com

“pouca disposição para o trabalho” e “extremamente desleixados, apresentando

sempre os seus cadernos muito enxovalhados e cheios de borrões; também muito

teimosos, chegando muitas vezes a não quererem fazer o que lhes ordenava, mas se

insistia, lá faziam alguma coisa, quase sempre de má vontade e com maus modos”.

Pois bem, numa situação destas se distinguiria o bom do mau pedagogo. Nesta

matéria, não era o conteúdo do que se ensinava que estava imediatamente em causa,

mas, isso sim, a capacidade do mestre para incentivar o aluno: “trabalho”, “paciência”

e “preserverança” eram três das qualidades necessárias às quais se somava o saber da

psicologia (Carvalho, 1918: 277, 278). A educação não poderia deixar “de tomar em

consideração os interesses e as aptidões da criança. A educação não cria capacidades;

vai somente desenvolver e aperfeiçoar aquelas que já existem” (Amaral, 1956: 49).

Logo, seria conveniente que o educador conhecesse o seu aluno de modo a não lhe

propor exercícios que muito o fatigassem. A este conhecimento juntava-se,

evidentemente, o da ciência pedagógica que propunha o respeito pela individualidade

de cada criança, a graduação dos exercícios, a sua variabilidade, a criação de

momentos de trabalho e de espaços de recreio. Livremente o aluno deveria ser

conduzido a executar as tarefas que lhe propunha o mestre. Em “lugar de usar de

autoridade ou modos bruscos”, seria pelos “meios brandos e suasórios” que o

professor haveria de conseguir o seu “desideratum”. A confirmação estava à vista de

todos e era com orgulho, que João de Sousa Carvalho, afirmava “ter conseguido”. De

início, impunha-se adaptar os alunos “ à vida escolar por uma variedade de

exercícios, de que eles gostavam imenso”, quer dizer, cativando o aluno de uma

forma apenas possível por um saber construído sobre a sua alma. Estava já em

execução o hábito da disciplina. Seguidamente, haveria que repetir sem cansaço “a

necessidade que tinham de adquirir a linguagem falada, fazendo-lhes ver que esta era

a melhor forma pela qual podiam trocar as suas impressões e exprimir os seus

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A visão e o tacto

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pensamentos para com os seus semelhantes” (Carvalho, 1918: 278). Era este o

balanço do esforço:

“Foi, pois, assim, não os deixando um só momento, que consegui fazer-lhes criar

hábitos de trabalho e asseio e hoje posso dizer afoitamente que consegui afinar a

minha classe, a ponto de me apresentarem sempre os seus trabalhos com

pontualidade e limpos e, o que é mais ainda, estarem bem dispostos sempre e

prestando a maior atenção às minhas explicações. Ora certamente que esta

transformação se não deu porque possua a qualidade de disciplinador emérito, ou

pelas minhas aptidões, mas sim porque os surdos-mudos, ao contrário do que

muitos supõem, são dóceis, meigos e obedientes quando a pessoa que lhes

ministra o ensino lhes faz sentir que tem por fim reabilitá-los para o convívio

social, fornecendo-lhes os conhecimentos que eles não puderam adquirir em

virtude da falta do ouvido” (Carvalho, 1918:279).

O período preparatório que tenho vindo a referir tinha por fim não só preparar

o aluno para articular a palavra mas também para o fazer desejá-la. O apetite da

palavra deveria partir da vontade do aluno surdo após um disciplinamento intenso do

seu corpo, dotando-o de um maior domínio de si e das suas sensações. Vale a pena

novamente ouvirmos o que dizia Serras e Silva acerca da instalação da vontade no

sujeito e da relação que esta tem com o domínio de si, mas também com a ligação

estreita à ideia de liberdade de acção e de escolha, neste caso, do educando: “O

domínio de nós mesmos é a segunda virtude a cultivar”. A primeira, dizia, era a

tenacidade, princípio em nada contrário à interrupção das tarefas “de tempos a

tempos”. Afirmava-se a pausa, de resto, “como necessidade nas crianças e em todos

os fatigados”, devendo ser respeitada e aproveitada pelo mestre como momento para

melhor conhecer o seu aluno, e planear acções mais eficazes. “O que” era “preciso”

era “voltar à tarefa, até que ela” estivesse “completa”. Havia, portanto, que fazer da

questão da vida escolar uma questão de domínio do educando sobre si mesmo,

exercitando-se o sentimento de vínculo a uma tarefa e o dever de a realizar. “O

esforço, agora”, exercia-se “sobre o próprio indivíduo. Com esforço e tenacidade

conquistam-se muitas coisas, mas a mais importante conquista a fazer é a conquista

de nós mesmos. A técnica, para se adquirir este elemento fundamental do carácter”,

não era complicada, mas era “longa – a posse de nós mesmos” seria “obra de longos

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O período preparatório e a educação dos sentidos

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meses e anos de trabalho, obra sempre incompleta, sempre a refazer, sobretudo com

as naturezas fracas, tímidas, nervosas e instáveis” (Silva, 1938: 222). O actor a quem

competia desenvolver estas virtudes no aluno, era o professor. Na relação com este, a

criança teria de descobrir um amigo no qual confiasse totalmente.

Os exercícios elaborados a pensar na implantação da língua oral em crianças

que não ouvem, são segmentados e divididos por níveis de dificuldade. Primeiro, a

educação do tacto e da vista, seguida da preparação do aparelho vocal, “que tem por

fim a educação da respiração”. Nunca, à criança surda, se deveria exigir uma palavra

sem que os fonemas que a compunham, os movimentos e as vibrações necessárias

para a dizer, tivessem sido minuciosamente exercitados e devidamente corrigidos os

defeitos. De hóspede, o aluno surdo transformava-se em hospedeiro da língua do

ouvinte. O processo de hospedagem da língua era celularmente dividido. Todavia, os

sentidos visual e táctil permaneceriam sempre acompanhando todos os outros.

Exercícios de vocalização

(Coguillot, 1889)

Da educação da vista porque é de observação e atenção que se fala, faziam

parte os exercícios de ginástica preparatória, subdividindo-se em exercícios de

ginástica bocal, labial e lingual. Era importante ensinar o aluno surdo a mover a boca

como um falante, a posicionar a língua e os lábios, a executar movimentos

conscientes. A ginástica bocal iniciava-se por um abrir “devidamente a boca do

aluno”, fazendo-o “tomar a posição dos diversos sons e articulações”, fazê-lo mover a

maxila inferior da direita para a esquerda e vice-versa” (Filipe, 1907:12). Os

exercícios de ginástica labial dividiam-se em sete partes. O primeiro passo a ser

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A visão e o tacto

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cumprido correspondia a um máximo afastamento, rápido, das comissuras, mas sem

afastar os lábios. As restantes seis etapas orquestravam-se quase todas em dois

tempos:

“2º De um movimento brusco levar as comissuras ao seu estado normal.

1º tempo- afastar as comissuras como para o sorriso.

2º tempo- levá-las depois ao seu estado normal.

3º 1º tempo - As comissuras afastam-se o mais possível, acompanhadas da

separação dos lábios que devem deixar ver os dentes que estão um pouco

afastados.

2º tempo - Os dentes e os lábios tomam rapidamente a sua posição normal.

4º 1º tempo - As comissuras afastam-se como para o sorriso acompanhadas da

separação dos lábios e dos dentes.

2º tempo - Voltar à posição normal.

5º 1º tempo - Avançar os lábios o mais possível e apertá-los.

2º tempo - Passar deste movimento ao grande afastamento das comissuras dos

lábios.

3º tempo - Voltar à posição normal.

6º 1º tempo - Combinar o avançamento dos lábios indicado no nº 5 com o

afastamento das comissuras e separação dos lábios e dos dentes.

2º tempo- Voltar à posição normal.

7º 1º tempo - Combinar o avançamento dos lábios indicado no nº 5 com o

alongamento e arredondamento dos lábios, isto é, os lábios tomarem a forma do

o.

2º tempo - Voltar à posição normal” (Filipe, 1907: 13, 14).

Uma militarização da face. O surdo falante é algo que se fabrica. Um corpo

inapto que se vai tornando apto pelos exercícios calculados que se apoderam dele.

Uma resposta rápida de movimentos, um automatismo que se incorpora no corpo

surdo e o transforma. O surdo é o aluno que está diante do professor e à sua total

disposição. É um corpo analisável e mais, manipulável. Mas não podemos esquecer

que este lado das prescrições rigorosas é a secção racional de uma possível ortopedia

daquele que é representado como anormal. Ele próprio se constitui sobre esta imagem

da falta e se recupera, se autoconstrói, na incorporação de cada pedaço de exercício.

Próximo tempo: ginástica lingual. “1º Deitar fora a língua e fazê-la recuar

rapidamente”. Quando recua, a língua deverá adoptar uma posição “estendida na

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O período preparatório e a educação dos sentidos

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cavidade bocal”, deixando a abertura da faringe visível. Todavia, se a língua for

demasiado mole, o que iria dificultar progressos futuros, novo trecho de exercícios

segundo a seguinte sequência: 1º” fazer alongar e recuar a língua o mais rapidamente

possível”, 2º “ levantar a parte dorsal da língua contra a abóbada palatina “, 3º “

levantar a ponta da língua contra a abóbada palatina ou contra a raiz dos dentes

superiores e depois deixá-la cair mas para diante”, 4º “levar a ponta da língua contra a

raiz dos incisivos inferiores, deitando ao mesmo tempo a parte dorsal para diante, de

maneira a arredondá-la”. Os movimentos da língua exigiam um trabalho profundo,

devendo executar-se bem combinados com os lábios e com a maxila inferior, de

modo a obter-se uma perfeita articulação dos sons. Mas o mestre deveria também

detectar se a língua não seria demasiado espessa, pouco habituada a movimentações.

Nesta situação, o remédio era desenvolver-lhe a actividade. Movê-la rapidamente em

todos os sentidos, começar “por deitar pouco a pouco a ponta de fora”, achatá-la à

medida que “se faz passá-la entre os lábios apertados” (Filipe, 1907:14, 15).

O corpo é sem dúvida considerado nesta categoria de exercícios tecidos numa

discursividade prolixa. O corpo total, sem qualquer possibilidade de fuga porque

precisamente é trabalhado no seu mínimo detalhe. Uma mecânica de gestos, de

movimentos, de atitudes, de rapidez, de eficácia. Um corpo codificado, mapeado,

técnico. Um corpo traduzido em sistemas de produtividade e de operatividade. O

aluno surdo, pela disciplina, passa a dominar o domínio sobre o seu próprio corpo:

fará “bom uso da voz”, “perfeita emissão dos sons da fala”, “correcta pronúncia das

palavras”, “ritmo aceitável” (Simões, 1961:8). Não é a sujeição nem tampouco a

habilidade, é o corpo tanto mais obediente, quanto mais útil.

Creio ter dado ao leitor ou à leitora uma imagem pormenorizada da presença

de uma relação de governamentalidade no ensino das crianças surdas na Casa Pia de

Lisboa. Parece-me que o cenário aqui desenvolvido de preparação do aluno para

receber a língua oral, através do desenvolvimento dos sentidos, é uma transcrição de

uma arte de governar que renuncia à tradicional violência de poder, de propriedade ou

apropriação de um corpo por um poder coercivo, que nega também um saber

interessado ou desinteressado de um sujeito particular. Foi uma arte de governar que

se fabricou na correlação de um poder e de um saber, de um investimento sobre o

corpo, mas igualmente sobre a alma levando o sujeito a incorporar hábitos e

certamente desejos.

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A visão e o tacto

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Exercícios de treino táctil

(Amaral, 1954)

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Preparação do aparelho vocal

263

5.3.PREPARAÇÃO DO APARELHO VOCAL: EXERCÍCIOS RESPIRATÓRIOS

Darei agora conta dos exercícios que tinham por função trabalhar a respiração na

criança surda, por forma a fazê-la falar com os ritmos e timbres correctos. Estes

exercícios deveriam ocorrer paralelamente à educação sensorial da vista e do tacto e

era de todo conveniente que não tardassem face à ginástica bocal. Segundo Cruz

Filipe, considerava-se que cerca de “3/4 dos defeitos na articulação dos surdos-mudos

devem ser atribuídos a uma respiração defeituosa”. A explicação não era complexa.

Os pulmões que num falante desempenham não só a função de “introduzir oxigénio

no sangue e fornecer o sopro, a matéria da voz”, naquele que não fala porque não

ouve, cumprem apenas a primeira acção. “A respiração de um mudo é curta e

sufocada”, num minuto executaria cerca de dez respirações a mais do que um ouvinte

(1907: 19). Logo, haveria que trabalhar-lhe a respiração como preparação do aparelho

vocal. O que se propunha eram “exercícios de adestramento dos orgãos da fala, que

se” conseguiriam “sem esforço desde que o professor” soubesse “amenizá-los com as

brincadeiras actuais das crianças” (Filipe, 1942: 30). Já se vê que a questão do

interesse andava sempre ligada às técnicas de ensino:

“Toda a complexa tarefa de aprender teria de assentar na motivação do aluno e na

sua adesão livre à aquisição de conhecimentos”. Os incentivos nunca seriam de

mais na escola moderna: ‘adquire-se de modo mais completo e dura mais em

nosso espírito o que aprendemos interessadamente’” (Ó, 2003: 232).

Exercícios (Ferreira, 1924)

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Exercícios respiratórios

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Ora, o que se pretendia no caso das crianças surdas era uma total

interiorização dos mecanismos que lhes eram prescritos no processo educativo. O

jogo associava-se a um aumento da intensidade participativa do educando, sendo

meio de desenvolvimento da criança e apelo a uma consciência de si. Um exercício

que muito agradava ao aluno surdo era o do treino do sopro fazendo bolas de sabão. A

expiração deveria ser muito lenta e não interrompida abruptamente. Os exercícios

respiratórios exigiam uma articulação entre o corpo e o espírito, visando um domínio

do corpo por força de uma vontade interior. O aluno surdo tentaria respirar como um

ouvinte, uma espécie de faz-de-conta, de retenção de inspirações e de expirações. São

técnicas disciplinares que se evidenciam, mas também as técnicas do eu. São

propostas práticas através das quais os alunos tentariam melhorar as suas capacidades

de acordo com os modelos normativos ouvintes. Eis como se iniciava o processo:

pedir-se-ia ao aluno que expirasse a maior quantidade de ar possível e, para o fazer

notar do que “ele pode e deve fazer” “ o professor pode servir-se de uma bexiga de

porco e fazê-la encher completamente pelo aluno”. Nenhuma quantidade de ar, ainda

que mínima, deveria ser deixada escapar-se pelo nariz. Caso se produzisse este

defeito durante o processo, apertavam-se-lhe “as fossas nasais”, evitando então a

“saída de ar” (Filipe, 1907: 21).

Exercício de respiração no aparelho de compressão

(A Ilustração Portuguesa de 6 de Maio de 1907)

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Preparação do aparelho vocal

265

Controlo, exercícios e transformação. Formação também de um saber sobre os

indivíduos: “será útil empregar um espirómetro para se constatarem os progressos

feitos por cada aluno a respeito da capacidade pulmonar e da duração da expulsão do

sopro. Somente para este fim são empregados os espirómetros” (Filipe, 1907: 21). A

sala de aula é o espaço da intervenção ortopédica, observatório permanente de

capacidades individuais, aparelhos de saber que inventarão técnicas de requalificação

dos sujeitos, espaços de objectivação, classificação de desempenhos e localização de

cada aluno:

“As fossas nasais estando fechadas, pode-se medir ou uma expiração máxima, ou

a quantidade de ar que passou num tempo dado, (cinco minutos por exemplo),

nos pulmões do aluno. Um sistema de rodas dentadas faz andar duas agulhas,

uma das quais marca os litros e a outra as divisões do litro. Pode-se portanto fazer

estudos comparativos e saber qual é a quantidade de gaz expirado, no mesmo

lapso de tempo, por muitos alunos” ( Filipe, 1907: 23).

Novo mapeamento, nova cartografia de cada escolar. São criadas condições

que servem, simultaneamente ao exercício e ao teste, envolvendo ainda outras

coordenadas específicas do modelo escolar: a observação, o tempo, a comparação,

individualização do aluno e homogeneização na classe. A informação recolhida,

mediada agora não apenas por técnicas de observação científicas, mas, também, por

objectos de mensuração, legitimava o treinamento contínuo do corpo. De facto,

pretendia-se com os exercícios respiratórios colocar em circulação no corpo do aluno,

a maior circulação de ar possível, modificar-lhe a cadência respiratória, regular-lhe a

pressão do sopro, treinar a sua interrupção e o seu gasto progressivo. Esta é uma

abordagem cuja escala é particular, é o movimento, o sopro, a pressão, o gesto, que se

articulam numa disciplina corporal de experienciação da surdez num contexto

correctivo. É toda uma mecânica corporal de manipulação calculada e de aptidões

aumentadas. Pela ligação entre um saber como actuar e um poder de actuar, o aluno

surdo converte-se em algo diferente do que era no momento de entrada na Casa Pia.

Zygmunt Bauman refere o processo da identidade como uma fabricação de bricoleur,

“guiada pela lógica da racionalidade do objectivo”, seria um constante acumular de

peças de experimentação (2005: 55). Ora, o que acontece com o aluno surdo

envolvido em processos correctivos, é uma somatização de experiências que ele

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Exercícios respiratórios

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próprio realiza, em viagem para uma imagem deslocada, desterritorializada do que

seria ser ouvinte. E cada experiência é um elemento mais de que o sujeito se apropria.

O sentido do tacto, antes treinado, seria agora mobilizado para regular a

respiração. O aluno deveria sentir na própria mão a diferença sensorial entre o ar

inspirado e o ar expirado. No corpo do professor e igualmente no seu, era convidado

a sentir o duplo movimento pulmonar:

“Le maitre, prenant la main de l'enfant, se appliquera sur le thorax pour lui faire

sentir les mouvements de la dilatation ou de la contraction de l'appareil

pulmonaire. Et l'élève, reportant son autre main sur son propre thorax, exécutera à

son tour les mêmes mouvements” (Coguillot, 1889: 121, 122).

Exercícios

(Coguillot, 1889)

Os exercícios seriam repetidos, mais tarde, envolvendo também a produção de

sons, pois estes provocariam estremecimentos sensíveis ao tacto. Este gesto de

verificar o real no corpo do outro e no seu próprio, complexificava-se por envolver

um sentimento de emulação da figura do mestre. Quando referi o poder pastoral, falei

na sua articulação com o desejo: trago-o agora para um cenário prático. Os exercícios

de implantação da língua oral fariam do hábito uma vontade, do professor um amigo

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Preparação do aparelho vocal

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e um guia. A relação estabelecida entre professor e aluno é algo que se localiza no

interior de um projecto tecnológico de efeitos que operam sobre outros efeitos, de um

poder que assenta na produção útil de um saber. Por outro lado, a realização pessoal

do self, tornou-se no motor da disciplina interna do aluno. A verdadeira emulação

seria “a emulação para consigo próprio - 'aperfeiçoa-te que aperfeiçoarás' - 'a mais

elevada, a que melhor faz brotar do estudo mananciais de estímulos generosos e belos

entusiasmos'” (Lima, 1932: 17).

Uma outra atitude respiratória muito comum na criança surda era a de entrada

e saída do ar simultaneamente pelo nariz e pela boca. A correcção também aqui

passaria pela pressão exercida sobre as fossas nasais, obstruindo assim a passagem de

ar, “après quoi, on l'exercera à respirer avec le nez seul, la bouche étant fermée”. Era

o momento de entrada em cena do sentido visual, chamando a atenção do aluno para

as asas do nariz “on lui fera remarquer que le souffle s'échappe par le nez et non par

la bouche” (Coguillot, 1889: 123). Diante do nariz poder-se-ia colocar um espelho

que ficaria embaciado pelo vapor provocado pela expiração. E decerto o aluno

manifestaria interesse por esta transformação visual do objecto, provocada por si.

Os discursos das imagens falam em espaços de fronteiras entre a

anormalidade do surdo e a possibilidade de uma normalidade. As pedagogias

correctivas, as técnicas, oferecem um possível lugar de ser operativamente como o

ouvinte. Neste processo de normalização, o aluno surdo deveria empenhar-se o mais

possível.

Exercício de sopro na régua graduada

(A Ilustração Portuguesa de 6 de Maio de 1907)

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Exercícios respiratórios

268

Doze crianças surdas assistem a uma prova de sopro do colega. Uma barra

negra horizontal, graduada como uma régua e sustendo em dois pontos, a diferentes

distâncias do aluno em exame, dois castiçais com duas velas acesas. “Para variar os

exercícios de respiração pode-se fazer apagar, ao nosso aluno, uma vela a uma certa

distância, aproximadamente 45 a 60 centímetros, segundo o tamanho do aluno. Para

este exercício ainda se pode fazer pegar a vela ao aluno e estender o braço para

depois a apagar a esta distância” (Filipe, 1907:23). O momento captado fala, no

entanto, de uma tentativa de sopro com o queixo encostado a um suporte vertical,

agarrado com ambas as mãos pelo aluno. Todos ficamos expectantes face ao

desenrolar da acção. O professor inclina-se como que para medir o posicionamento, a

amplitude do sopro, os restantes alunos fixam diferentes objectos: o colega, o

professor, a luz das velas.

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Provocação da voz e leitura da fala

269

5.4.PROVOCAÇÃO DA VOZ E LEITURA DA FALA

A provocação da voz seria precedida por uma ginástica vocal. Os exercícios

preparados para esta fase consistiam no ensino dos sons, das sílabas, das palavras,

podendo executar-se de modo sonoro ou não sonoro. As práticas não sonoras

utilizariam os movimentos da ginástica bocal e labial, adaptando-os à da ginástica

vocal: fazia-se o aluno “vibrar a língua, os lábios” e incentivava-se a produção de

“expirações explosivas”. As práticas sonoras acrescentariam a estas, “as vibrações da

laringe, dos lábios, da língua e do tórax” (Filipe, 1907: 27, 28). O aluno surdo deveria

dominar esta codificação de produção do som para passar à fase seguinte. O enfoque

de cada uma destas práticas vai para o corpo do aluno o que significaria, obviamente,

que a sua execução correcta era resultado de um perfeito domínio sobre si.

Laringe (orgão gerador do som vocal), pulmões, traqueia, faringe, boca e

fossas nasais são os orgãos envolvidos na produção da fala oral e aqueles que seriam

trabalhados no aluno com o objectivo de o levar a articular a palavra. Os exercícios

do período preparatório e os de respiração deveriam ter familiarizado o aluno com o

seu corpo, os diversos orgãos, sua localização, domínio, movimento e vibração. A

esta categoria de exercícios era atribuída a nomeação de ‘meios naturais de

provocação da voz’, dividindo-se em meios directos e meios indirectos. Os primeiros

teriam como finalidade preparar o espírito do aluno e os seus sentidos, devendo para

tal o professor:

Colocar “o aluno de pé, os braços pendendo normalmente e a cabeça bem

levantada”. Voltaria “de novo aos exercícios de respiração” e colocaria “ao

mesmo tempo os orgãos do aluno na posição do fonema mais simples, isto é, o

A”. Os segundos, servindo para provocar a voz de forma directa, exigiam que o

mestre colocasse “os orgãos do aluno na posição desejada”, fazendo-o “perceber

por meio do tacto as vibrações produzidas na laringe e no peito”, insistindo”com

o aluno para repetir as mesmas vibrações” (Filipe, 1907: 30).

Facilmente se percebe que estas prescrições permitem ir mapeando o conjunto

de práticas que deveria enformar a produção do aluno, num contexto de

aprendizagem oralista. A leitura deste pequeno fragmento projecta uma imagem de

um aluno ao dispor do professor, executando passo por passo o receituário de

provocação vocal. O eu do sujeito surdo ir-se-ia fabricando na intersecção de

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Prótese-ouvinte

270

relações, de práticas, de experiências pessoais e experimentações que tinham o seu

corpo como objecto. Uma análise atenta e vigilante dos resultados fazia parte de um

aperfeiçoamento das técnicas e modos de fazer. Caso o aluno não correspondesse ao

resultado previsto para o exercício prescrito, o professor voltaria “à ginástica vocal e

quando o aluno” produzisse já “as vibrações labiais e linguais, então, o mestre,

“entreabrindo-lhe muito docemente os lábios”, obteria do educando “um som” que

seria “aproximadamente o som a” (Filipe, 1907: 30). Para os outros sons, o mesmo

exercício, proporcionando aos orgãos as posições adequadas.

Mas não se pense que seria fácil a arte de dar uma voz perfeita ao aluno surdo.

Não ouvindo, o surdo teria dificuldade em censurar a sua emissão oral e eram cinco

os principais problemas com que habitualmente o professor se confrontava no

processo de correcção: excesso ou falta de voz, voz de falsete também designada por

voz de cabeça, voz nasal e voz gutural. O excesso de voz, se não constituía

um”grande defeito” era, pelo menos, inconveniente e por isso se traçavam meios de o

eliminar. Bastaria fazer notar ao aluno que não seria necessário aplicar “muita força

para emitir o som”. Logo que o percebesse, o pupilo deixaria de contrair

desagradavelmente o rosto por um excesso de “energia do sopro” e então, “por meio

do tacto”, seria altura de demonstrar a “grande intensidade das vibrações produzidas

na laringe, ou ainda melhor, fazer-lhe conservar uma vogal durante um certo espaço

de tempo (20 segundos pouco mais ou menos) para o obrigar a dirigir bem o sopro e a

diminuir a intensidade da expiração”. Ora, se mesmo assim não se obtivesse o

“resultado desejado”, colocar-se-ia “o aluno à dieta da palavra”, quer dizer,

obrigando-o “a articular sem emitir o som” e, por último, voltar-se-ia “aos exercícios

de respiração afónica e sonora”. Para a falta de voz, ditavam as regras que para além

dos numerosos exercícios respiratórios, de ginástica vocal e bocal, o aluno seria

submetido a “um regimen confortativo”, composto de “bom alimento e ginástica”

(Filipe, 1907: 31-33).

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Provocação da voz e leitura da fala

271

Exercício de provocação

da voz

(A Ilustração Portuguesa

de 6 de Maio de 1907)

A voz de falsete ou de cabeça, “pouco voluminosa, mas penetrante e aguda, com

ressonância na parte superior do tubo sonoro (faringe e fossas nasais) e com

vibrações em todas as partes da cabeça”, seria objecto de um trabalho propriamente

disciplinar (Filipe, 1907: 33). Primeiro, o aluno era colocado de pé e o professor dar-

lhe-ia a entender que era necessário produzir o som com uma economia de esforço.

Depois:

“com uma espátula abaixa-lhe a língua e com uma mão aperta-lhe a cartilagem

tiróide (situada debaixo do queixo) a fim de fazer descer a laringe; e por fim com

pequenas pancadas no peito do aluno experimenta produzir as vibrações toráxicas

que caracterizam a voz natural” (Filipe, 1907: 34).

A voz nasal, provocada por um uso intensivo de uma respiração nasal ou por

um abaixamento do véu palatino, era defeito difícil de corrigir. Para além de uma

dose de exercícios de respiração bocal e de vibrações toráxicas, só havia como

solução com a espátula tentar levantar o véu palatino de modo a evitar que o sopro se

escapasse pelas fossas nasais. A voz gutural, “rouca, mal timbrada e desagradável ao

ouvido”, vulgar no surdo de nascença, devia-se à “falta de elasticidade nas partes

constituintes da laringe” e “à maneira lenta como vibram as cordas vocais”. A solução

passava pelos exercícios “de respiração, de articulação e de silabação, com o fim de

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Prótese-ouvinte

272

tornar flexível o orgão vocal e de emitir o sopro sonoro sem nenhuma violência”

(Filipe, 1907:35, 36).

Resulta deste quadro de práticas uma atenção que era dada às minúcias e aos

detalhes de cada parte do corpo, em especial aos orgãos ligados à fala, embora todo o

corpo fosse envolvido numa atitude postural própria do exercício de correcção. A

intervenção queria-se individualizada, distribuindo os alunos no espaço.

Exercício de articulação

(Amaral, 1954)

O professor trabalha com um aluno da primeira fila. O lugar do aluno está

vazio. À esquerda, a extremidade de um cotovelo deixa adivinhar a presença de um

outro aluno e mais dois sentados à direita do lugar daquele com quem o professor

realiza exercícios. Na segunda fila, mais dois alunos que parecem ocupados na

transcrição para o caderno diário do desenho e das palavras do quadro preto. Os dois

alunos sentados à frente observam o desempenho do colega. Os efeitos provocados

por esta situação, para os alunos, seriam semelhantes. O aluno em exercício,

encontrava-se numa situação de aprendizagem directa, mas também em avaliação de

capacidades. Os restantes observadores aguardariam o momento da sua chamada e

bebiam na performance do outro, os segredos a executar para uma boa actuação. E

estas são já formas de relação dos sujeitos consigo, treinando-se pela relação

pedagógica, organizando-se por comparação com os outros, transformando-se e

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Provocação da voz e leitura da fala

273

corrigindo-se. Estes alunos vestem uma identidade criada para si, composta por

rótulos que um saber descobre no seu corpo e que um poder torna visíveis. Para o

funcionamento desta dinâmica é apenas necessário que o aluno surdo se deixe

introduzir nos processos escolares.

“O espaço escolar desdobra-se; a classe torna-se homogénea, ela agora só se

compõe de elementos individuais que vêm se colocar uns ao lado dos outros sob

os olhares do mestre. A ordenação de fileiras no século XVIII, começa a definir a

grande forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos na

sala, nos corredores, nos pátios; colocação atribuída a cada um em relação a cada

tarefa e cada prova; [...] sucessão dos assuntos ensinados, das questões tratadas

segundo uma ordem de dificuldade crescente. E nesse conjunto de alinhamentos

obrigatórios, cada aluno segundo sua idade, seus desempenhos, seu

comportamento, ocupa ora uma fila, ora outra; ele se desloca o tempo todo numa

série de casas; umas ideais, que marcam uma hierarquia do saber ou das

capacidades, outras devendo traduzir materialmente no espaço da classe ou do

colégio essa repartição [...] A organização de um espaço serial foi uma das

grandes modificações técnicas do ensino elementar. [...] Fez funcionar o espaço

escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de

recompensar” (Foucault, 2004:125, 126).

A intervenção ortopédica sobre os alunos surdos alimenta-se nesta disposição

espacial e disciplinar, nos elementos que lhe introduzem complexidades como o

exercício ou o exame. O segundo aponta sempre para a dimensão individual e

comparativa do que cada um é capaz de fazer em relação ao outro. Já o exercício,

“permite, sem dúvida, que o indivíduo se vá adequando desde o início da regra da

relação tanto com os outros como com um determinado tipo de percurso” (Ó, 2003:

48). O trabalho de diferenciação de uns relativamente aos outros é sustentado pela

própria intervenção clínica que pretende identificar e atingir os mínimos detalhes e

agir eficazmente sobre eles. Uma microfísica que toma o corpo como objecto de

intervenção. O professor procura em cada momento reconhecer as falhas do aluno,

sublinha-as e apaga-as. O apagamento é feito no processo correctivo, no interior de

uma sala que é também laboratório onde se detecta o desvio naqueles que já são casos

desviantes e onde se experimenta a correcção.

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Prótese-ouvinte

274

“A professora preparou-nos para aprendermos as primeiras lições. Começámos

pela abertura da boca e pela aprendizagem dos diferentes sons [...], de leitura

labial com emprego de espelho, ou grande espelho, para educação dos sentidos,

seguindo-se exercícios respiratórios e de vocalização [...]. Aprendemos também

letras de pautas durante sete meses, mas eu ainda não falava o 'G' e o 'R' eram-se

bastante difíceis, principalmente quando punha na boca o lápis no fundo da

língua. O meu parceiro do lado, o nº 13, deu-me orientação para a maneira de

pronunciar mais facilmente o 'G' e o 'R'. Aprendi depressa e depois já falei

correctamente, facto que a Srª professora muito admirou” (Carvalho, s/d: 33).

A observação minuciosa dos mais minúsculos detalhes a corrigir permitia um

controlo dos alunos, desenhando um conjunto de regras, “um conjunto de técnicas”,

“um corpo de processos e de saber”, “de descrições”, “de receitas e dados” (Foucault,

2004: 121). Uma retórica corporal é então falada pelo corpo – de disciplina e de

correcção. Um corpo que está sob constante vigilância, aberto à produção de saber e

disponível para jogos de poder. A escola é um dispositivo disciplinar que se torna

num “aparelho de exame ininterrupto que acompanha em todo o seu comprimento a

operação do ensino” (Foucault, 2004:155). É sem dúvida o exame que inverte a

economia de visibilidade de uma relação de poder. O mestre não tem de tornar visível

o seu poder, ele manifesta-se inevitavelmente numa situação de observação sobre o

aluno. A prática do exame confere visibilidade àqueles sobre os quais incide.

Individualiza, regista os pontos a normalizar, faz do indivíduo sujeito de mecanismos

disciplinares. Também a segmentação, decomposição e recomposição das actividades

permite fixar o sujeito às práticas de carácter disciplinar, acentuando o seu

funcionamento enquanto parte operativa de um dispositivo escolar. No processo de

ensino do vocabulário, primeiro:

“O professor pronuncia uma palavra e o aluno lê-a sobre os lábios dele e repete-

a”. Depois, “o aluno repete a palavra e mostra ao mesmo tempo o objecto

correspondente”. Num terceiro momento, “o professor para fixar ao aluno o nome

do objecto, escreve-o”. De seguida, “o professor tendo na sua presença muitos

objectos diferentes e de que o aluno já conhece o nome, pronuncia o nome de um

qualquer e o aluno indica-o”. Atingindo esta fase, “o professor dita o nome de um

objecto qualquer que o aluno conheça, e o aluno escreve-o no quadro preto,

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Provocação da voz e leitura da fala

275

articula-o e mostra ao mesmo tempo o objecto correspondente”. Por último, “ao

nome dos objectos que o aluno souber melhor juntar-se-á o artigo singular – o, a”

(Filipe, 1907: 37).

Há, portanto, toda uma encenação de práticas que encontra na seriação de

elementos muito simples, uma engenhosa forma de vinculação e operacionalização.

Cada fase nova é uma etapa a que só se acede depois de superar a anterior. Garantia

de esforços, de utilidade, de docilidade de que o sujeito se torna imagem porque ele

próprio participa na realização de si pelo exercício, treinamento e correcção. O

exercício é uma técnica disciplinar que amplifica o exercício do poder,

simultaneamente, fazendo “crescer a habilidade de cada um”, coordenando-a com a

de todos, acelerando movimentos, permitindo aumentar “capacidades de resistência”

(Foucault, 2004: 173). As disciplinas fabricam corpos úteis. Aproximam-se

intensamente da alma num jogo estratégico com o olhar que cada sujeito desenvolve

para dentro de si. Mais do que uma instância de julgamento onde se fixam punições,

o processo de correcção assume-se como um tipo de controlo do ouvinte sobre o

surdo e do surdo sobre si próprio e a falha, se existe e é marcada, é porque provoca

efeitos, reactiva a necessidade da correcção e legitima a sua aplicação:

“A falta não é reactivada pelo exame para fixar uma culpabilidade ou estimular

um sentimento de remorso, mas para reforçar, a partir da constatação lembrada e

reflectida de um fracasso, o apetrechamento racional que assegura uma conduta

sábia” (Foucault, 1994: 76).

Só faz sentido ser speculator sui, isto é, espectador de si próprio e autor de

uma história de vida se existem referentes que se fixam como espaços de desejo. Este

olhar que o surdo desenrola tende como objecto tem como referente a figura do

ouvinte. Ao nível das práticas não haveria talvez referência tão intensa quanto a de

fazer o surdo ler a oralidade do ouvinte.

A leitura da fala era, evidentemente, o treino que mais garantia o domínio da

língua dos ouvintes. Era aqui que a educação sensorial encontrava terreno de

aplicação prático. Se a leitura da fala era uma capacidade que o aluno surdo haveria

de adquirir por um treino intenso, a verdade é que a esta disciplina se somava uma

panóplia de microdetalhes que codificavam os corpos e a sua localização e relação no

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Prótese-ouvinte

276

espaço. Para que o aluno surdo pudesse executar uma boa leitura da fala descrevia-se

uma série de regras que, independentemente de se tornarem possíveis num espaço

exterior à escola, deveriam ser no espaço escolar estritamente cumpridas:

“1º A face do educador deve estar bem iluminada. 2º A boca deve estar à altura da

criança. 3º A palavra ou as frases que pretende ensinar deve emiti-las no

momento psicológico. 4º Os olhos do educador devem ser expressivos para que

possa falar tanto com a boca como com os olhos. 5º A fala deve ser distinta e

emitida um bocadinho mais devagar do que se fala para a criança ouvinte, mas

sem exageros. 6º As primeiras palavras ensinadas devem ser simples e visíveis.

Se a palavra se encontrar numa frase deve-se-lhe dar maior ênfase. Não se devem

ensinar no mesmo dia pau, mau, pão, mão, etc. 7º as palavras devem ser sempre

escolhidas de acordo com os interesses da criança. 8º Tem de haver cooperação

entre o professor e o aluno. 9º A repetição deve fazer-se, mas sempre apresentada

de modo diferente. 10º Devem se utilizados os objectos correspondentes às

palavras a ensinar” (Simões, 1961: 10).

As lições de leitura da fala consistiam em treinar a compreensão visual do

movimento que a linguagem oral provocava nos lábios, rosto e garganta de quem a

utilizava. Era, portanto, algo mais do que uma leitura labial, embora fosse nos lábios

que se concentrava grande parte da percepção visual da palavra. Todavia, conseguir

que a criança surda olhasse sempre que necessário para o rosto do professor, era algo

que não se alcançava pelo chamamento. “A criança surda nem sempre olha quando se

deseja. Tem que haver cuidado para que não surja a possibilidade de um embate entre

os interesses da criança e o desejo em forçá-la a olhar” (Pereira, 1955: 6). Ora, uma

vez mais a questão do interesse aproxima-se das acções das práticas de governação

por meio de um conhecimento que calcula: “employing a variety os techniques and

forms of knowledge, that seeks to shape conduct by working through our desires,

aspirations, interests and beliefs” (Dean, 1999: 209). A concentração do olhar da

criança no rosto do mestre conseguir-se-ia por meio de técnicas que lhe despertassem

um desejo de participação. Teremos de considerar a prática da leitura da fala num

contexto de aula, organizada em torno de uma ideia ou centro de interesse. A

concentração seria conseguida através de metodologias activas que usavam objectos,

imagens ou o jogo como ferramentas da aprendizagem. Seria “indo do concreto para

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Provocação da voz e leitura da fala

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o abstracto, e acompanhando as regras com exemplos bem escolhidos” que não

haveria “dificuldade que se não” pudesse “vencer” (Fusillier, 1893: 397). Nas aulas,

para habituar os alunos a lerem na boca do mestre as palavras, as transmissões de

ordens seriam muito úteis, exigindo do aluno um estado de alerta permanente.

“O que é necessário é interessar o aluno: fazê-lo querer ver e fazer” (Ferreira, 1915 a:

536).

Para além da fala dirigida à classe, havia as lições individuais em que o aluno

era chamado para junto do professor, onde poderia sentir no corpo do mestre a

vibração táctil da sua fala. “Estas lições” requeriam do professor “muita paciência e

perseverança” e obrigatoriamente teriam de se ajustar aos “interesses ocasionais da

criança”. “Monotonia” era um estado a evitar porque inevitavelmente o

“aproveitamento” seria “nulo” (Amaral, 1954: 57). Também a fadiga do aluno era

elemento de preocupação e por isso, os tempos da lição teriam de se adequar aos

tempos de concentração da criança. Quinze minutos, pouco mais, pouco menos,

contabilizavam-se como espaço temporal adequado. Convinha fazer pausas

frequentes para renovar a capacidade de atenção e usar de métodos que estimulassem

a participação activa do educando. Uma classe com todos os alunos “ocupados” e

“interessados”, “é indispensável para que haja disciplina. Uma classe activa será

naturalmente ordenada. Cada uma das crianças concentra-se na tarefa a realizar. E,

assim, o tempo passa sem disso nos apercebermos” (Amaral, 1954: 56).

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Prótese-ouvinte

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Ginástica, ritmos e equilíbrios

279

5.5.GINÁSTICA, RITMOS E EQUILÍBRIOS

Exercícios

(Amaral, 1954)

Por certo já se terá percebido da importância do treino do corpo na aprendizagem dos

alunos surdos. “Na criança surda, devido à perda de audição, os movimentos são por

vezes arritmados”, há falta de equilíbrio no andar, falta de firmeza e de sentido de

orientação. Os causadores seriam o “caracol” e o “labirinto”, “orgãos do ouvido

interno” que no caso dos surdos não desempenham eficazmente a sua função no

sentido da orientação e do equilíbrio (Pereira, 1956: 181). Será este pequeno capítulo

dedicado a abordar a questão da ginástica e do treino rítmico como práticas que,

inserindo-se na educação sensorial, correspondem também a um adestramento do

corpo. Fala-se de uma economia de poder através destas tecnologias disciplinares que

encontram no lúdico um atalho para o governo dos escolares.

D. António da Costa via como “grande mal a carência da educação física” na

escola, comparável apenas à “carência da educação moral”. “Inteligência lúcida” e

“vontade firme” eram estados impossíveis de atingir sem uma “sanidade do corpo”.

Ora, a base da educação física encontrar-se-ia na ginástica praticada “principalmente

na infância e juventude, em todas as escolas, especialmente na primária, e em ambos

os sexos”. As vantagens apontadas pelo primeiro Ministro da Instrução Pública em

Portugal eram evidentes: a ginástica como “principal sustentador do carácter”, a

ginástica como “o grande modificador dos temperamentos débeis”, a ginástica como

“base do desenvolvimento intelectual” e a ginástica como “chave da riqueza

individual e nacional” (1870: 155, 156, 158). Desde 1838 que a Casa Pia de Lisboa

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Prótese-ouvinte

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organizava nos planos de estudos o ensino da ginástica, mas foi por altura das

Reformas de José Maria Eugénio de Almeida que esta prática adquiriu forte

expressividade e a verdade é que, “‘em lugar das crianças pálidas, debilitadas e

melancólicas’” dos anos anteriores a 1860, o Provisor de estudos da instituição falava

em “‘crianças coradas, fortes e buliçosas de alegria’” (Costa, 1870: 163). Numa

entrevista publicada na Instrução Nacional, Simões Raposo traçava a imagem do

início deste ensino. Eugénio de Almeida terá começado por visitar os

estabelecimentos de ensino, a nível europeu, “mais célebres desta especialidade”,

convencendo-se que eram a “falta de higiene, alimentação e ginástica” os vírus mais

nefastos à educação dos alunos casapianos. Contratou-se então um professor, Mr.

Delaunay, que prestava também serviços no Colégio militar e na escola normal,

substituindo-o pouco tempo depois por Roger Jean, “mandado vir expressamente de

França de um dos melhores estabelecimentos de ginástica” (Costa, 1870: 262-270). O

horário prescrito era rígido:

Ginástica “‘logo depois do levantar, durante meia hora ou três quartos, isto é, até

ao almoço, o que lhes desperta o apetite. Depois têm mais ginástica desde as onze

horas e meia até às doze, o que lhes abre a vontade de jantar. De tarde têm meia

hora de recreio à saída das aulas e ginástica a valer das cinco às seis horas, depois

recreio, e finalmente ginástica desde as seis e três quartos até às sete horas e

meia, isto é, até à ceia, depois recreio (que é um outro exercício à larga) até às

nove horas. Por fim o deitar’” (Costa, 1870: 262-266).

A organização do tempo dos alunos era comandada pela introdução desta

nova disciplina que tantas vantagens trazia ao corpo do aluno sim, mas também ao

seu governo. A ginástica enquadrava-se como preceito de um regime de vida físico,

rigoroso e higiénico. Era prescrita como elemento regulador e inibidor de

comportamentos desadequados dos educandos. O psicólogo Faria de Vasconcelos

discorreu sobre o assunto: “uma boa alimentação não excitante, um vestuário amplo,

racional e limpo; o número de horas do sono e as condições em que dorme (evitando

que a criança durma acompanhada de outras numa cama fofa e mole, numa habitação

quente e debaixo de mantas pesadas, (o calor é um estímulo sexual poderoso); o

asseio e a higiene do corpo e dos seus orgãos (evitando todas as causas de irritação),

constituem, com uma vigorosa actividade física, condições essenciais de uma boa

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Ginástica, ritmos e equilíbrios

281

educação sexual” (1925a: 235). Já se vê que a ginástica foi descoberta como fonte de

dispêndio de energias e como meio de “sublimação das tendências sexuais, para uma

derivação e satisfação ideal”. Era evidentemente concebida como um meio de

regeneração dos internos, “fez e faz maravilhas na transformação, na regeneração

física das crianças que para a Casa Pia vieram e vêm, faz maravilhas não menos

grandes na sua formação intelectual e moral” (Ferreira, 1922 a:284). Esta teoria ía de

encontro às bases em que Simões Raposo, já na década de sessenta do século XIX,

dizia assentar a educação física na Casa Pia:

“Ar puro e luz abundante,

Limpeza e asseio obrigatórios,

Alimento sadio e nutriente,

Medicina preventiva e aplicada,

Movimento regular e conformemente sistematizado,

Ginástica racionalmente concebida e metodicamente aplicada” (1869: 11).

Na educação das crianças surdas a ginástica cumpriu o seu papel regulador do

corpo e comportamentos, todavia, quase sempre se baseou no desenvolvimento das

capacidades sensoriais do aluno. Técnica simultaneamente incitadora e retraidora de

impulsos. A execução de um qualquer movimento envolveria a participação completa

do corpo. No espaço poder-se-iam construir sentimentos por um despojamento total

do eu do sujeito. Claro que este esvaziamento do interior para o exterior, expondo-se

ao olhar de quem lê esses gestos, adquire uma significação que num contexto de

intervenção correctiva, despoleta inúmeras ortopedias. No ensino das crianças surdas,

a organicidade do seu corpo era visualizada numa articulação com o seu psiquismo:

“O ritmo exterior é sempre resultado do ritmo interior” (Pereira, 1956: 181).

Sendo o ritmo exterior desordenado, tornava-se imperioso corrigi-lo,

atingindo-se por certo a interioridade da criança e regulando-a também por dentro.

Um dos primeiros aspectos a considerar seria a fixação da atenção do aluno no seu

próprio corpo e nas suas acções. A indisciplina do movimento, “a confusão do andar,

o passo irregular e a falta de equilíbrio” poderiam ser eliminados pelo recurso aos

exercícios de ginástica e de marcha (Vaz, 1956: 188). A ginástica proporcionava a

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Prótese-ouvinte

282

aquisição de conceitos como o tempo, dificilmente explicáveis ao aluno surdo.

Através dos ritmos, dos movimentos acelerados ou lentos, dos vazios de gesto,

desenhava-se a compreensão de uma forma temporal. Quando trabalhados

repetitivamente os elementos de uma série, a acção mecânica da repetição

incorporava-se no corpo do aluno, tornando-o apto para representar diferentes

cadências temporais tendo-se a si próprio como meio de expressão. A educação do

“instinto do movimento”, aplicada a crianças surdas consistiria “em elas aprenderem

a dominar, e a controlar-se harmonizando-lhes o ser”, de modo a que a sua fala fosse

“igualmente controlada, harmónica, fluente, ritmada”, condições imprescindíveis para

a sua “inteligibilidade” (Vaz, 1956: 188). O treinamento do corpo do aluno era

marcado por uma perspectiva oralista, a aprendizagem dos ritmos, o controlo dos

movimentos, os pontos de equilíbrio, como de resto acontecia com o apuramento da

visão ou do tacto enquadravam-se nas técnicas que visavam hospedar no aluno a

língua oral. A ginástica aparecia como complemento essencial de uma educação

integral do indivíduo, acrescentando-se no caso do surdo a sua vertente terapêutica.

Unia-se à medicina por preceitos higiénicos e correctivos. Na Casa Pia de Lisboa, um

pouco antes de 1920, Ary dos Santos, no seu papel de médico, enviava aos directores

dos principais institutos de surdos da Europa uma carta perguntando-lhes sobre o

plano de estudos seguido nos seus estabelecimentos na instrução dos alunos surdos.

De Asnières, vinha a resposta em forma de relatório pormenorizado do ensino nas

suas classes:

“De 4 à 7 ans, section maternelle-Exercices d'attention, d'imitation, attitudes;

gymnastique respiratoire, formation des rangs, des sections; marches cadencées.

Jeux. De 7 a 13 ans - Gymnastique sans appareils. Mouvements d'ensemble

d'apres la méthode française et la méthode suédoise; marches et promenades

prolongées suivant le développement des éleves. Exercices d'assouplissement,

échelles jumelles. De 13 à 18 ans-Reprise des exercices précédents. Études par

séries. Saut en longueur. Barres paralleles. Pour les garçons, grimper à la perche,

à la corde à neuds, à la corde lisse. 'Anneaux, barre fixe, trapeze ; mouvements

élémentaires de boxe’” (Santos, 1920 : 13).

De Bruxelas, do Institut Provincial des sourds-muets et d’aveugles, vinha dito

que todos os alunos surdos e cegos eram sujeitos a uma hora diária de ginástica,

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Ginástica, ritmos e equilíbrios

283

“pendant la matinée” e “pendant la récréation, ils se livrent à des exercices libres de

gymnastique ou à des jeux enseignés pendant les leçons”. As lições de ginástica

seriam leccionadas por um professor especial e entre os exercícios contavam-se os de

ginástica sueca, especialmente para os mais jovens. Os exercícios de ginástica

dividiam-se nos propriamente educativos e nos fundamentais. Do primeiro grupo

faziam parte: “l° Exercices lents des jambes; 2° Exercices de la tête; 3° Exercices des

bras ; 4º Exercices de flexion et de rotation du tronc; 5° Exercices rapides de jambes”.

O segundo grupo era mais extenso, envolvendo coordenações mais complexas,

códigos adestrantes mais específicos: “1º Les exercices combinés des jambes et des

bras; 2° Lés extensions dorsales; 3° Les exercices de suspension; 4º Les exercices

d’équilibre; 5° Les exercices de marche et de course; 6° Les exercices dorsaux; 7°

Les exercices abdominaux; 8º Les exercices latéraux; 9° Les exercises de saut; 10º

Les exercices respiratoires”. Estes exercícios ginásticos espalhavam-se por inúmeras

modalidades : marcha, natação, foot-ball, saltos, etc. No relatório de 1907 que Cruz

Filipe escrevia em Paris, pode ler-se que “são também exercícios importantes, a

ginástica sueca, a marcha, correr, que desenvolvem muito os pulmões” (1907: 23). A

ginástica respiratória fazia parte do núcleo de práticas que coadjuvavam a

aprendizagem da língua e as restantes actividades desempenhavam papel importante

na coordenação mental e física do aluno, bem como na sua adaptação interior

orgânica, preparando-lhe os orgãos para a actividade oral. A actividade física era

também “o melhor meio de corrigir as atitudes viciosas” do corpo, de desenvolver

“flexibilidade e resistência à fadiga”, influindo directamente no âmago das qualidades

psíquicas. “Decisão, vontade, confiança em si próprio, desembaraço, destreza,

prudência e atenção”, ingredientes com que a ginástica insuflava o aluno (Vaz, 1956:

189). Por certo já se terá percebido o carácter ortopédico que esta área visava, o

quanto de posse de si, de domínio e vontade própria, de disciplina interior e de

regulação do corpo aqui habitam.

Aquilo que à partida pareceria um contrasenso, a utilização do som na

educação sensorial dos alunos surdos, constituía de facto, uma das fatias curriculares

do ensino na Casa Pia de Lisboa. Partia-se do princípio de que os “sons podem ser

percebidos sob a forma de sensação vibratória e sob a forma de ressonância” (Vaz,

1961:3). No fundo, outra coisa não era do que o treino de um desempenho semelhante

às vibrações sentidas pelo tactear do aluno no seu corpo ou no do mestre. As

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Prótese-ouvinte

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ressonâncias provocadas por tons mais altos ou mais baixos, teriam diferentes

resultados no aluno. Os tons mais baixos sentiam-se a um nível corporal, enquanto

que os mais altos ressoariam até aos ouvidos. Havia regras para direccionar a atenção

da criança para o sentir do seu corpo:

“Com o fim de fazer com que a criança só tenha atenção dirigida para a

percepção sonora no peito, garganta, estômago e cabeça, deve-se colocar debaixo

dos pés um isolador, como por exemplo um tapete de borracha, para não sentir as

vibrações do solo” (Vaz, 1961: 4).

As crianças treinadas através deste processo circulariam livremente pela sala

na execução dos movimentos rítmicos. Apesar de nestes exercícios se utilizar uma

base capaz de filtrar a vibração do som junto ao solo, a afinação sensorial nos pés e

nas mãos continuar-se-ia a fazer noutros momentos. Rousseau já havia lançado a

questão: “Como o tacto exercitado supre a vista, porque não haveria de também

suprir o ouvido”? No seu entender, os corpos sonoros emitiam vibrações,

estremecimentos que se sentiriam pelo toque. A experiência era fácil. Pousasse-se

“uma mão sobre o corpo de um violoncelo” e, “sem o auxílio dos olhos ou dos

ouvidos” distinguir-se-ia “unicamente pelo modo como a madeira vibra e freme, se o

som que emite é grave ou agudo, se é emitido pela prima ou pelo bordão”. O processo

proposto era o de ensinar a criança partindo das diferenças, habituando-a com o

tempo a perscrutar os sentidos, até ao ponto em que se tornasse possível “escutar uma

música inteira através dos dedos”. A sensibilidade de Rousseau permitia-lhe afirmar

que “facilmente se poderia falar aos surdos através da música”. Tons e tempos,

alturas, intensidades trariam combinações regulares que o surdo aprendia a interpretar

sensorialmente através do corpo. Para adquirir esta capacidade Rousseau acreditava

que apenas um tipo de exercícios seria útil. Os exercícios que necessitassem de muita

força ou que se baseassem num contacto contínuo com corpos de uma natureza dura,

fariam o tacto “obtuso”. Pelo contrário, os que variassem as sensações naturais,

alternando experiências através “de um tactear ligeiro e frequente” fariam um espírito

atento “a impressões incessantemente repetidas”, adquirindo “a facilidade de avaliar

todas as suas modificações”. Esta diferença de resto era evidente “na utilização dos

instrumentos de música: o toque duro e carregado do violoncelo, do contrabaixo, do

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Ginástica, ritmos e equilíbrios

285

próprio violino, torna os dedos mais flexíveis e sensíveis. Portanto, o cravo é

preferível para esses exercícios” (1990: 140, 141).

O treino do movimento rítmico era outra possibilidade oferecida na

exploração do som. Após a fase de materialização do som no corpo do aluno, chegava

o momento de o fazer utilizar o corpo em articulação com as sensações sonoras.

Geometrização do corpo e da alma. O método de Dalcroze fundamentava-se na

capacidade que a música teria para desenvolver as capacidades física e mental, pela

“utilização dos seus valores rítmicos”. Partindo da ideia de que todo o movimento

tem a sua raiz numa expressão rítmica do corpo, adestrando-se essa “capacidade

rítmica do indivíduo”, educar-se-ia “todo o ser, pois o sentido cinestésico constitui a

nossa experiência mais íntima” (Vasconcelos, 1935: 426). Ora, para este processo

existia a ginástica executada por meio do ritmo, dando à criança a noção de padrões

sonoros, uma consciência corpórea do som e levando-a a regularizar os seus

movimentos em ordem às cadências vibratórias. Decerto que a partir do momento em

que o aluno sentisse que por meio da vibração sonora se expressavam sentimentos ou

ideias, uma realidade nova se abria na aprendizagem da língua oral. Retomaria os

exercícios vezes sem conta pois o que estava um jogo era a sua vida, a sua liberdade.

Por meio do movimento do corpo domaria o movimento da alma. Os ritmos corporais

contaminariam os ritmos da fala: um corpo com gestos ordenados, controlados,

equilibrados, seria um corpo com uma articulação oral insuflada pelas mesmas

características.

“Educar o ritmo da criança é ordenar o seu ‘Eu’. Para se fazer esta educação

existe uma grande variedade de exercícios de ordem e de concentração da

atenção. Usam-se também as pautas rítmicas, as dramatizações, a música e as

danças rítmicas” (Amaral, 1956: 51).

As danças continham um grande potencial para a coordenação de movimentos

fazendo intervir partes ou a totalidade do corpo. Em causa estava também o interesse

da criança. A ginástica deveria ser percepcionada como “uma brincadeira”. Um saber

sobre a infância permitia descortinar técnicas de intervenção: “gosta de imitar este ou

aquele animal, planta ou objecto, de realizar um passeio, de executar um salto, de

transpor um obstáculo, onde julgue ver uma ponte ou um ribeiro, de fingir que

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Prótese-ouvinte

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rema”? Pois bem, seria esse o palco para o seu governo. A criança tomaria gosto pela

execução de exercícios baseados nestes interesses e, não só ela, mas a classe, tornar-

se-ia “alegre, disciplinada, atenta, obtendo-se por conseguinte a execução correcta

dos movimentos” (Vaz, 1956: 190, 191). Na ginástica por meio de ritmos era

fundamental que tanto o professor quanto os alunos marcassem as cadências pelo

batimento de palmas ou pelo batimento com as mãos no solo ou nas pernas.

Educando-se o sentido temporal interno do aluno surdo, poder-se-ia passar à

fase da ginástica pelo método sueco de Ling. Distinguiam-se aqui três tipos de

exercícios, os de movimentos preparatórios trabalhando à voz de uma ordem braços,

pernas, etc., os movimentos fundamentais, treinando-se capacidades de flexão, torção

ou equilíbrio, e por último, os movimentos finais, fazendo o aluno regressar do tempo

de esforço a um tempo mais lento, por meio de movimentos “calmantes” e “suaves”.

Estas práticas físicas faziam-se, à semelhança dos exercícios militares, à “voz de

comando” do mestre, podendo esta ser “voz de advertência”, de “pausa” ou “voz de

execução”. Na verdade, as técnicas utilizadas no governo dos alunos passam de uma

instância disciplinar sobre o corpo para uma aproximação à alma, num tempo muito

curto e, às vezes, sobrepõem-se. Sobre a utilização de voz de comando na prática da

ginástica, António Aurélio da Costa Ferreira, mostrava a sua importância tanto no

apuramento dos sentidos quanto na educação da atenção: “os alunos que na sua lição

de ginástica têm que executar os movimentos, mais ou menos difíceis, a vozes de

comando”, “regulam a vontade, exercitam a inteligência porque têm de interpretar”

essas vozes, “tornam-se decididos, precisos e prontos em suas respostas e reacções”.

Corpos eficientes num cenário que apresenta uma economia de meios para obter a sua

ordenação. Este método de domínio sobre o corpo do aluno fabrica-o como corpo

submisso, dócil, exercitado, todavia, um corpo que acumula capacidades: “disciplina,

atenção, vontade, método, ordem”, qualidades, vantagens e virtudes comandadas a

partir do interior do próprio sujeito (1922 a: 284, 285). A voz de advertência

explicaria ao aluno, “usando frases o mais curtas e claras possíveis”, substituindo

vocabulário técnico e rigoroso por expressões familiares ao surdo, o treino que se iria

seguir. O professor exemplificaria e, depois, seria um trabalho de imitação da figura

do mestre. As pausas justificavam-se por uma economia na eficiência da execução: se

havia pausa, esse vazio de ordem, era aviso de preparação para a série seguinte. A

voz de execução significava o assentimento do mestre para a realização do

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Ginástica, ritmos e equilíbrios

287

movimento ordenado, todavia, poderia ser traduzida não pela fala, mas por “sinais

luminosos” ou “batimento de palmas”, “dando deste modo aspecto recreativo ao

comando” (Vaz, 1956: 191).

A ginástica prestava-se a inúmeras explorações. Uma lição poder-se-ia basear

em contos, em gravuras ou em jogos. A vertente lúdica assumia a sua presença,

pedindo-se ao professor uma aproximação àquele que se sabia ser o mundo infantil.

Os corpos dos alunos surdos atingiam um estado máximo de utilidade. Exemplo de

um jogo na aula de ginástica, treinando fundamentalmente salto, marcha e equilíbrio:

primeiro, o professor desenharia no chão “um círculo com cerca de cinco metros de

diâmetro”, colocando os alunos no seu interior. Apontando para o quadro onde

previamente desenhara figuras, diria: “‘o soldado…’ eles diriam ‘marcha’… – e

marchavam. Depois, ‘o cavalo…’, diriam: ‘corre’… e corriam. O ‘coelho’…

‘salta’… e saltavam, etc.” (Vaz, 1956: 193). Ora, servindo-se de um elemento capaz

de estruturar uma aproximação ao aluno, o professor esculpia-o de modo a criar nele

uma vontade de execução da ordem. Michel Foucault explica esta transformação em

poucas palavras:

“As disciplinas são o conjunto das minúsculas invenções técnicas que permitiram

fazer crescer a extensão útil das multiplicidades fazendo diminuir os

inconvenientes do poder que, justamente para torná-las úteis, deve regê-las. Uma

multiplicidade, seja uma oficina ou uma nação, um exército ou uma escola, atinge

o limiar da disciplina quando a relação de uma para com a outra se torna

favorável” (2004: 181).

Acontecia isto na educação das crianças surdas. A base de resposta eficiente à

ordem possuía a plasticidade bastante para se traduzir numa disciplina interior, num

autogoverno assente numa relação de governamentalidade.

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Prótese-ouvinte

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Um manual com 600 imagens

289

UM MANUAL COM 600 IMAGENS

“Comecei a aprender no livro do 1º grau ou 1ª

classe, chamado 'O Português pela Imagem'

que era um 'Manual Prático' ilustrado com

600 gravuras para o primeiro ensino de

linguagem oral e escrita nas escolas de

surdos-mudos” (Carvalho,s/d: 38).

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O Português pela Imagem

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Páginas de O Português pela Imagem

(Trindade, 1906 a)

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Um manual com 600 imagens

291

Neste capítulo o convite dirige-se no sentido de percorrer algumas páginas dos

manuais utilizados no ensino dos alunos surdos da Casa Pia de Lisboa. Do ponto

de vista teórico, será este o momento em que de mais perto falarei dos conteúdos

curriculares, como tecnologia de formatação do educando a um modelo para ele

pensado. Claro está que o manual escolar não é o único objecto em que o

currículo se manifesta, mas era – e ainda o é sem dúvida –, um utensílio

privilegiado que tanto se usava nas aulas como estaria acessível ao aluno fora do

tempo das lições. No manual escolar figurava uma “‘selecção de conhecimento’”

que implicava obviamente “‘regras e padrões’” que guiariam o aluno na produção

de “‘conhecimento sobre o mundo’”. Popkewitz, citado por Correia, relembra-nos

que “‘o processo de escolarização incorpora estratégias e tecnologias que dirigem

a forma como os estudantes pensam sobre o mundo em geral e sobre o seu eu

nesse mundo’”(2000 :8). Na análise que faço tomando o manual escolar como

objecto pertencente a um currículo, analisarei a rede discursiva das relações de

poder/ saber, na produção da subjectividade do aluno.

“O saber da teoria do currículo torna calculável o próprio nexo entre saber e

subjectividade. A teoria do currículo tenta responder à pergunta: dado o

objectivo da produção de uma subjectividade determinada, quais saberes –

conhecimentos, atitudes, valores – são adequados para obtê-las? A teoria do

currículo é, assim, um saber especializado sobre os nexos entre o próprio

saber e a subjectividade. O currículo está envolvido na produção de sujeitos

particulares. A teoria do currículo está envolvida na busca da melhor forma

de produzi-los” (Silva, 1995: 192).

É como se pudéssemos conceber para o currículo uma arte de criação. A

perspectiva de governamentalidade que tenho vindo a considerar, baseia-se numa

racionalidade governativa e numa arte de governo e, a teoria do currículo,

aproxima-se desta arte de governo pelas relações que o saber sobre os sujeitos

trazem ao palco do poder.

Foram O Português pela Imagem, álbum com seis centos de ilustrações

legendadas e o livro de Exercícios de Observação e Linguagem conforme as

seiscentas gravuras do álbum, os manuais utilizados logo ao abrir do século XX,

no ensino dos alunos surdos da Casa Pia. Não é a documentação da instituição que

o afirma, mas a escrita autobiográfica de um ex-aluno casapiano da Secção de

surdos.

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O Português pela Imagem

292

Ao contrário do que o título deixa supor, a origem destes dois manuais

para uso dos alunos dos dois sexos, não é realmente portuguesa. Já se vê, que num

país em que o ensino dos surdos marcava presença pontual no Porto e em Lisboa,

não haveria decerto quem concebesse de raiz um tal projecto nem editor algum

que se abalançasse em tal empresa. Faltava-nos “um álbum de figuras

apropriadas, como Le Français par l'image”, que valia certamente pelo melhor

museu escolar que então se pudesse organizar com proveito na sala de aula. As

palavras eram de Joaquim José da Trindade, que o verteu para a língua portuguesa

no ano de 1906 – à data sub-inspector do ensino primário e professor-director do

Instituto de Surdos-mudos Araújo Porto –, juntando então ao compêndio ilustrado

o complementar livro de Exercícios de Observação e de Linguagem, cada um

deles numerado e direccionando constantemente o aluno para os desenhos do

álbum (Trindade, 1906: VI). E foi, de resto, também um professor do Porto,

Nicolau Pavão de Sousa que ao mudar-se do Instituto desta cidade para a Secção

de surdos da Casa Pia de Lisboa, trouxe consigo os dois manuais para ajudar no

ensino que então se reinaugurava. Parece certa a utilidade de tais compêndios,

visto que o par original seria merecedor de bravos elogios. Um dos seus autores,

Auguste Boyer, foi também copiado por Cruz Filipe que reconhecia nos cursos

deste mestre na arte de ensinar surdos, objecto “instrutivo” que “mais tarde” –

aquando do seu regresso à Casa Pia – o guiaria no ensino dos seus pupilos (1907:

4).

A utilidade da estampa, num ensino que se afirmava essencialmente por

um treino da atenção visual, era grande. Figuras e cores atraíam a atenção das

crianças e, portanto, teria a sua utilidade o mestre valer-se do conhecimento da

psicologia visual infantil nos métodos de ensino. Pela imagem, o aluno teria

acesso a uma panóplia de situações, juntando-se num nível representativo objectos

ou situações que não seria fácil reunir ou proporcionar numa sala de aula. As

imagens apresentadas ao educando obedeciam a uma selecção por parte do mestre

que haveria de determinar os elementos que lhe interessava trabalhar no aluno:

“Estampas há que sobretudo provocam a enumeração, outras a descrição e

outras a interpretação. [...] É necessário fixar, adoptar um determinado

material, estampas já ensaiadas, aferidas, e seguir uma técnica precisa”.

“Além disso” “o ensino deve ser feito sobre ou por medida, talhado em

atenção às possibilidades da criança, aos seus recursos naturais”, logo, o

melhor meio “para servir isso”, para “ver como a criança adquire

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Um manual com 600 imagens

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conhecimentos, os revela e os utiliza”, tem na estampa o seu objecto,

interrogando-se a partir delas “metodicamente” a criança. A estampa é um

objecto “que tanto a interessa, lhe agrada, lhe prende a atenção” (Ferreira,

1922: 16, 18).

A utilização de gravuras nos processos educativos com crianças surdas

possuía, além do mais, a vantagem de poder ser usada desde muito cedo,

familiarizando-a com sistemas de representação e interpretação da realidade. A

possibilidade de exploração deste meio visual estendia-se numa multiplicidade de

exercícios:

“No outro dia, com um chapéu de três bicos, imitará os soldados marchando;

com um bico de papel fará de pato, andando com as mãozitas na anca; com

uma canastra ou cesto à cabeça imitará a peixeira ou a vendedeira, andando

devagar. Há também para este exercício gravuras representativas do que a

criança terá de imitar. Segue a orientação do anterior e será para desenvolver

também o sentido do equilíbrio e ritmo” (Simões, 1961: 9).

Se havia material que se encaixava de modo perfeito neste princípio era

evidentemente o Manual das 600 gravuras e o seu auxiliar livro de perguntas

sobre as imagens. No prefácio do livro de Exercícios de Observação e de

Linguagem, esclarecia-se de imediato o leitor: este “livrinho de exercícios de

linguagem”, complementar ao álbum ilustrado, não constituía, “propriamente

falando, um curso de língua, mas antes uma colecção de exercícios

essencialmente práticos e intuitivos” que teriam como objectivo principal “pôr a

criança na posse do primeiro vocabulário e da linguagem elementar”. Seria então

uma espécie de dispositivo capaz de conduzir a uma assimilação quase

inconsciente dos saberes que expunha. Quando me refiro a dispositivo, falo de um

terreno em que se jogam forças e tal como Deleuze escreve relativamente ao

pensamento de Foucault, “o poder é uma relação de forças, ou melhor, qualquer

relação de forças é ‘uma relação de poder’”. Não concebo o currículo como um

objecto de dominação do aluno, a força joga-se com outras forças. No caso

presente, de um lado havia uma comunidade ouvinte feita de professores,

médicos, família e sociedade, do outro, crianças surdas que se tornaram alunos

tendo essa comunidade como referente.

“Um exercício de poder surge como uma afectação, porque a própria força

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O Português pela Imagem

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se define pelo seu poder de afectar outras forças (com as quais está em

relação) e de ser afectada por outras forças” (Deleuze, 2005: 97, 98, 99).

O currículo, manifestando-se num objecto como o manual escolar é uma

tecnologia de regulação e de autoregulação do aluno surdo. Nos compêndios de

apoio às lições, compaginava-se uma tecnologia complexa que se libertava

directamente em direcção ao educando, activando-lhe pontos específicos que

definiriam a sua forma de participação e acção na sociedade. O objectivo da

educação da criança surda era a sua normalização, realizável num processo que

implicasse um sentimento de liberdade, autonomia e inclusão. O papel dos

conteúdos curriculares num cenário como o que se expõe, figurava-se como

facilitador do encaixe do aluno no seu lugar da relação, para que se pudesse

pensar a si próprio a partir da relação activa que o currículo como dispositivo

despoletava. É claro que o currículo escolar enquanto tecnologia, opera

transformações nos sujeitos, mas estas são efeitos de um poder não soberano. A

governamentalidade que se joga na modernidade não deve ser entendida de um

ponto de vista repressivo. Popkewitz relembra-nos que a noção de “effects of

power” “concerns the productive actions for our participation” (1998: 5). A

questão aqui presente relacionava-se com o facto de a população surda fazer parte

das margens de uma estatística da população escolar e, sem se misturar com os

corpos produtivos e saudáveis dos ouvintes, desejaria caminhar para o núcleo

deste padrão de normalidade. A alteridade deficiente, considerada pela sua

contagem numérica como minoria, foi “produto de um processo histórico de

alterização que acaba por confundir o outro com a invenção que de esse outro foi

feita” (Skliar, 2003: 164).

O manual escolar – objecto da lição, de estudo e de consulta – exibia um

núcleo de saber fundamental para a construção da identidade do aluno. De facto,

este conjunto de livros – quase caixa mágica de comunicação – declarava a

ambição de fornecer à criança surda “sobre os seres e as coisas mais familiares” –

ou seja, sobre aquelas coisas que a visão lhe permitia conhecer e que os desenhos

do álbum recordavam –, “os termos indispensáveis para compreender as pessoas”

que se lhe dirigiam e para que ela exprimisse “também as suas sensações, as suas

necessidades, os seus desejos, os seus pensamentos” (Trindade, 1906: IX). Cabe

aqui dizer-se que o primeiro vocabulário e, aquele que permitiria ao aluno

expressar o seu íntimo, era objecto escolhido e planejado por uma comunidade

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Um manual com 600 imagens

295

educativa de tipo ouvinte. A oralidade, associada ao conjunto de conhecimentos

que interessava inscrever no aluno, patenteia a ideia de colonização do surdo pelo

ouvinte. Todavia, conforme antes se disse, este poder de colonizar o outro só se

efectua porque este ser outro é um ente activo da relação.

Não é tanto o conteúdo explícito descrito nos textos ou nas imagens que

compõem os manuais, mas o que deles emana e atinge a condução que cada um

realiza do seu comportamento, que mais gostaria de trazer até aos dias de hoje.

Um dos primeiros objectivos do programa enunciado seria, exactamente, trabalhar

as faculdades da alma da criança surda – sensibilidade, vontade e inteligência. Das

diferentes explorações que o professor decidisse empreender em cada domínio, o

tecido espiritual do aluno havia de ser meticulosamente cerzido, digamos,

afectado. Na longa panóplia de exercícios, o aluno haveria de incorporar as

práticas socializadoras. Certamente que o processo seria graduado numa escala de

progressiva complexidade, iniciando-se pelas coisas mais familiares, inteligíveis,

portanto, para os alunos. Esta é, manifestamente, uma das ideias que iria

caracterizar a escola por todo o século XX e sem a qual, a tarefa de

individualização da criança e o seu governo na homogeneidade do grupo, não

teria resultado.

Gostaria de fazer uma aproximação ao manual escolar como objecto que

exibe uma teoria do currículo, ela mesma essencial para a relação de poder/ saber

na educação dos alunos surdos. Já aqui se disse que este binómio conceitual de

Foucault é um dos pilares por excelência em que se apoia a prática da

governamentalidade. Ora, em contexto escolar, é cada vez menos pela coerção e

mais pela sugestão, que um poder de normalização atinge aqueles a quem se

dirige. É por demais evidente nos exercícios que compõem o livro de apoio ao

manual ilustrado, mecanismos de colonização da criança surda pelo ouvinte,

contudo, é a racionalidade inerente à construção dos conteúdos que permite, a

partir da própria escola criar os espaços de sucesso ou insucesso, de inclusão ou

de exclusão social. O que daqui resulta é a produção de um aluno surdo à imagem

daquele que se imaginou. Diríamos que na escola, cada criança surda teria de se

alicerçar no terreno de anormalidade reservado à surdez – não abandonando,

portanto o grupo estatístico e populacional a que pertencia –, mas subjectivando-

se sempre por comparação a um grupo de escolares ouvintes que vestia a farda da

norma.

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“ Poder e saber são mutuamente dependentes. Não existe saber que não seja a

expressão de uma vontade de poder”. Do mesmo modo, “não existe poder

que não se utilize do saber, sobretudo de um saber que se expressa como

conhecimento das populações e dos indivíduos submetidos ao poder”. A

transferência dessa lógica para o ensino das crianças surdas, conduz-nos a

uma consideração do tipo: os alunos surdos “recebem sua identidade a partir

dos aparatos discursivos e institucionais”, - entre os quais o currículo e, por

agora, o manual escolar -, “que os definem como tais”. Dir-se-ia que “o

sujeito é o resultado dos dispositivos que o constroem como tal” (Silva, 2000:

97).

Na educação do aluno surdo seria bastante, mas não suficiente, a prática da

oralidade. O aluno surdo seria construído na escola como aluno autónomo e livre,

– se aprendesse a comunicar pela fala oral –, todavia, revelava-se necessária e até

incontornável, a exposição a discursos de domínio oralista. São os próprios textos

e exercícios destes manuais que diferenciam e distinguem os alunos a quem se

dirigem. Torna-se evidente a necessidade que havia de inventar a surdez como

anormalidade para que estes alunos pudessem fazer parte de uma paisagem

escolar que já existia. Os conteúdos curriculares e as práticas na sala de aula que

O Português pela Imagem permitia, configuravam um campo no qual o aluno

surdo era convidado a construir a sua subjectividade através de uma intensificação

das relações a si, incorporando a imagem da falta, e a necessidade de recuperação

para que fosse parte da sociedade. O professor, ouvinte, ocupava na relação

pedagógica o lugar de exemplo, guia, amigo, terapeuta, confessor, enfim, aquele

que possibilitaria que o educando adquirisse autonomia e liberdade. São estes os

dois elementos característicos da modernidade que, também no ensino da criança

surda, pré-figuram como objectivos nos discursos e nas práticas educativas. Não

fosse pela perspectiva de autonomia e liberdade enquanto cidadão incluído, nunca

o aluno surdo inscreveria em si a necessidade da oralidade.

“The object of pedagogical reflection and action in modernity is an

individuality that is systematically calculated and rationalized in the name of

freedom”. Interessava ao Estado administrar o seu corpo de cidadãos através

de práticas de liberdade, fazendo de cada um, elemento activo e participante

no progresso da Nação. “The cultural representations and knowledge of the

child, teacher and teacher education fabricate, in the double sense of a fiction

and making, a `nation-ness’ that joins the many as one”. “Modern schooling

historically embodies the joining of the registers of social administration with

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Um manual com 600 imagens

297

those freedoms” (Popkewitz, 2001: 180).

A racionalidade política da modernidade foi trazida até à pedagogia

moderna, logo, a escola, naturalizada como espaço que de direito pertencia à

criança, teria de governar os seus alunos de tal modo que todos eles, apesar de

diferentes, tivessem como referente identitário, uma mesma comunidade. O

cidadão livre que a escola deveria formar teria de incorporar em si que o princípio

da sua liberdade residia nas capacidades e responsabilidade individuais. No olhar

que lançou ao aluno surdo, a escola precisou de constantemente o lembrar da sua

surdez enquanto deficiência que poderia ser colmatada com a assimilação da

língua dos ouvintes.

Os assuntos que compunham a verdadeira enciclopédia de sobrevivência

comunicativa eram dezassete, distribuídos pelas diversas áreas do saber, que se

julgavam de maior importância para o aluno surdo. Estes assuntos representavam ,

evidentemente, o conhecimento oficial que se oferecia e autorizava na educação

das crianças surdas:

“Por isso, é importante ver o currículo não apenas como sendo constituído de

‘fazer coisas’ como vê-lo como ‘fazendo coisas às pessoas’. O currículo é

aquilo que nós, professores/as e estudantes, fazemos com as coisas, mas é

também aquilo que as coisas que fazemos fazem a nós. O currículo tem de

ser visto em suas acções (aquilo que fazemos) e em seus efeitos ( o que ele

nos faz). Nós fazemos o currículo e ele nos faz. O currículo é, pois, uma

actividade produtiva nesses dois sentidos” (Silva, 1995: 194).

O currículo está envolvido na produção de sujeitos de um certo tipo. As

relações estabelecidas entre o saber e a subjectividade dos alunos facilitam as

relações de poder. Também o estímulo lançado a partir de práticas que apelam a

um auto-conhecimento, a uma auto-reflexão, direccionam a construção de

identidades para um campo calculável.

No capítulo da Saúde e da doença, o aluno iria aprender que “ao médico

também se chama doutor”, “que medicamentos é sinónimo de remédios” e que

“os medicamentos servem para curar”. Também, que o doente que “não é

obediente”, que “não é dócil”, “não se curará depressa”, “que é preciso tomar os

remédios, que é preciso ser dócil, que é preciso ser paciente para se curar

depressa”. E os exercícios de linguagem chegavam mesmo a penetrar o âmago das

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práticas do aluno levando-o a esparzi-las em discurso. Da boca do professor para

os olhos do aluno, dirigia-se a pergunta: “Tu vais ao lavatório de manhã ou à

noite?”, “Tu foste ao lavatório esta manhã?”, “Vais lá todos os dias?”, “O que é

que tu fazes todas as manhãs no lavatório?”. Os princípios de higiene e asseio lá

estavam. Era o aluno incitado a repetir ao colega “que é preciso todas as manhãs

lavarmo-nos, limparmo-nos e pentearmo-nos com o maior cuidado, a fim de

andarmos limpos e de evitarmos as doenças”. Quase confessionalmente, o aluno

ou a aluna, haveria de contar se gostava ou não de se “ver ao espelho”. Logo de

seguida, lhe seria dito “que não é bonito ver-se muitas vezes ao espelho” e mais,

“que se chamam paralvilhos e também vaidosos” aos que “se vêm muitas vezes ao

espelho”. Ser paralvilho “é um defeito”, bloqueado certamente, pela conjugação

dos verbos “não dever ver-se muitas vezes ao espelho, não ser paralvilho, no

imperativo e no presente do indicativo” (Trindade, 1906: 33, 35, 38, 40).

Nos excertos seleccionados, não ao acaso claro está, sobressai um

conjunto de saberes estritamente ligado ao quotidiano íntimo do aluno. As

definições e as questões apresentadas implicam uma interiorização daquilo que é

suposto fazer ou aceitar. O campo da medicina é abordado na relação de confiança

do doente relativamente à palavra do médico pois este detém o conhecimento que

cura. O mecanismo que faz funcionar a relação é pacífico, porque se o médico

detém o saber sobre a patologia de que o doente padece, tem, igualmente, o poder

de lhe prescrever uma terapêutica eficaz. Não parece subsistir qualquer dúvida

quanto à aceitação passiva da receita. Na própria sala de aula, a criança surda

aprende a posicionar-se na relação terapêutica em que a inseriram. Uns saberes

cruzam-se com os outros e a docilidade implicada na relação descrita, facilmente

atinge outras relações: professor/aluno; ouvinte/ surdo, havendo uma primazia do

primeiro sobre o segundo termo.

E não avanço mais sem antes trazer à superfície as palavras que se podem

ler no prefácio do livro de Exercícios:

“Falando inteiramente aos sentidos e à inteligência das nossas crianças, nós

nos dirigimos igualmente ao seu coração. Em toda a ocasião propicia

procurámos fazer nascer neles bons sentimentos, esforçando-nos por destacar

de cada lição a ideia moral que ela comporta. Além disso julgámos

conveniente espalhar pelos exercícios noções essenciais de civilidade e de

higiene. A extrema simplicidade da fraseologia empregada neste livro não

surpreenderá ninguém, se se atender a que ele é destinado a crianças que

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ignoram mesmo os primeiros balbuciamentos da nossa língua e às quais

convém ensinar, primeiro que tudo, o que se poderia chamar a linguagem das

necessidades quotidianas” (Trindade, 1906 : XIII).

Ora, é o próprio discurso da pedagogia que revela as estratégias para

alcançar os objectivos. O professor deveria saber reconhecer o momento propício

para imbuir o aluno de bons sentimentos e destacar sobre tudo o resto, a ideia

moral de cada lição. Isto, claro está, sem esquecer os princípios de civilidade e de

higiene, indispensáveis a qualquer sujeito. Tendo em conta estes objectivos, ao

aluno deveriam ser apresentados referentes evidentes, suficientemente presentes

na sua vivência visual e capazes, portanto, de estimular as suas faculdades e de o

fazer participar de forma activa no processo de aprendizagem da língua.

O ensino é direccionado para o que de mais interior há na criança surda,

governando a sua sensibilidade, pensamento e vontade, impulsionando nesta

acção de governar o desenvolvimento de uma consciência de si, ponto central e

indispensável na construção de um aluno autónomo, livre e responsável, capaz de

se conduzir a si próprio. Foucault lembra que o poder assenta menos na

dominação e mais nas relações que o sujeito estabelece consigo próprio. Longe de

serem as proibições a determinar as condutas, o autor da História da Sexualidade

mostra-nos que “é a insistência sobre a atenção que é conveniente dedicar a si

próprio”, “a modalidade, a amplitude, a permanência, a exactidão da vigilância

que é solicitada” e “a inquietação a propósito de todas as perturbações do corpo e

da alma que é necessário evitar através de um regime austero” (Foucault, 1994:

51). O domínio que o aluno surdo teria de ter sobre si próprio, implicava um labor

estritamente relacionado com a terapêutica em que estava envolvido. Mas para

que este domínio se transformasse em verdadeira soberania de si próprio, era

necessário considerar que o aluno deveria ser localizado num campo de patologia,

quer dizer, da surdez como deficiência. A prática de si implica, como já vimos,

que o sujeito tenha de si a imagem de um ser imperfeito e que numa situação de

institucionalizado se construa como membro de uma relação com um outro,

médico ou professor, capaz de lhe prestar auxílio. A escola seria uma espécie de

dispensário da alma.

A importância que o manual adquiria no contexto escolar era enorme. No

ensino da língua ao surdo era provavelmente o recurso didáctico mais prático e

acessível ao aluno. Livro único, perfeito, portanto, para definir os limites e a

amplitude dos saberes educativos, controlando, mais a mais, num regime de

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O Português pela Imagem

300

internato, a fabricação da realidade e identidade da criança de acordo com o

figurino previsto. Popkewitz afirma que “the formal texts of school subjects”

combinados com outras “discursive practices” concorrem para o processo de

normalização e regulação da produtividade e competências do aluno (1988:

99,100).

“The teaching of grammar, spelling, and mathematics, for example, can be

understood as inscribing certain norms about individual responsability

through the distinctions applied”. A criança era caracterizada como estando

em falta, necessitada de um núcleo de saberes que a escola identifica

perfeitamente. O currículo era elaborado, ainda segundo Thomas Popkewitz,

segundo pequenas parcelas que seriam transmitidas linearmente ao aluno. O

propósito parece óbvio: “When knowledge is considered to be stable and

hierarchical, the purpose of schooling becomes to orde and re-order how

children think and reason” (Popkewitz, 1988: 99,100).

Cada capítulo deveria ser entendido como “um centro de associação

analógica” em volta do qual se distribuíam “os principais termos e expressões que

se referem a uma ideia-mãe” (Trindade, 1906: 205). A observação dos conteúdos

permite verificar que a criança era educada no sentido de organizar

comportamentos, posturas, respostas e ideias. A rede de analogias possíveis a

partir da ideia central determinava exactamente o que o aluno deveria saber, o

que, afinal, o aproximaria da ideia de incluído na comunidade ouvinte.

Julgo que seria interessante analisar cada secção referenciada neste livro e

ilustrada no Português pela Imagem pois do que estamos a falar é de um currículo

de estudos pensado para a construção da subjectividade do aluno surdo. Este é

talvez um dos primeiros registos – embora apropriado de um contexto francês –

de um programa de ensino especial existente em Portugal. Parece-me evidente que

sendo o objectivo maior da educação da criança surda o seu resgate para a

sociedade, fornecendo-lhe a oralidade como ferramenta de comunicação, estaria

implícita a inculcação de princípios de ordem moral e ética – com que a criança

passaria a construir a sua subjectividade – que sobressaem deste programa e

destes exercícios. O princípio da disciplina e normalização do aluno surdo que

temos vindo a mostrar, evidencia-se de forma exemplar nestes exercícios. Aos

poucos o aluno deveria ir incorporando princípios normativos que num processo

de transformação, influenciariam de modo directo o seu comportamento. Logo, o

currículo de estudos seria uma área privilegiada e uma das tecnologias utilizadas

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Um manual com 600 imagens

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na transformação e construção dos educandos, regulando o seu comportamento, e,

simultaneamente, accionando mecanismos morais de condução da sua própria

conduta.

O que pretendo mostrar é que o plano de estudos foi – e continua a sê-lo

hoje – uma técnica de normalização destinada a formatar as ideias do educando e

regular o seu comportamento. Diz assim Popkewitz:

“The alchemy of school subjects fixed the content of school subjects and thus

enables the fabrication of the soul who operates through the fixed rules of

reason. The struggle for the soul was a disciplining practice through an

inscription of the rules of reason that was to master uncertainty in the name

of democracy, liberty and the actor who has agency as the modern citizen.

Reason disciplines the future through its rules that discipline the individuality

of the present” (Popkewitz, 2001: 202).

Um aspecto que importa compreender é o dos conteúdos curriculares, que

embora se dirigissem ao aluno, lhe escapavam totalmente no que às suas

finalidades dizia respeito. Popkewitz refere-se aos objectos que são feitos matéria

de ensino como resultando de uma alquimia curricular. Pois bem, o que

interessaria era um núcleo de saber capaz de modelar a criança ao arquétipo

previamente desenhado para si.

O que se passou no ensino do aluno surdo não foi certamente diferente –

podendo até ter atingido um alcance maior – pois toda a matéria a ensinar era

simultaneamente a palavra e o objecto, até então fora do campo de nomeação do

aluno. Portanto, como se pela primeira vez fosse mostrada a imagem e a sua

significação. A aprendizagem da língua acontecia desembaraçada de significados

paralelos, da imagem à nomenclatura o caminho era directo. A legenda faria

corresponder o mundo das coisas ao mundo das ideias. O processo, esse, era de

acrescento constante e quase inconsciente para o aluno, que assimilaria o miolo

das coisas pela forma de ensino activa em que se via envolvido. Este princípio não

é alheio aos discursos proferidos pelos educadores modernos, que, então iam

ganhando projecção em Portugal e na Europa. O interessante é que no domínio da

educação especial não é necessário caminharmos até aos finais de oitocentos para

ouvir os testemunhos de médicos ou pedagogos, já empenhados na tarefa de

individualização da criança.

Os ano de 1801 e de 1806 são, respectivamente, os anos em que Itard

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escreve dos mais circunstanciados testemunhos do que viria a ser o núcleo de

preocupações do ensino especial. O modo como descreveu os métodos utilizados

com Victor para lhe ensinar a usar a palavra, são semelhantes aos que cerca de

cem anos adiante, foram utilizados na grande maioria das Instituições para surdos.

A sua herança vinha, aliás, do mestre Sicard e do trabalho por ele desenvolvido no

Instituto de surdos de Paris. O método de fazer compreender as palavras pelo

recurso à sua representação visual descreve o caminho de correspondência entre

ideia e objecto:

“ Je commençai donc par les premiers procédés usités dans cette célèbre

école, et dessinai sur une planche noire la figure linéaire de quelques objets

dont un simple dessin pouvait le mieux représenter la forme ; tels qu’une clef,

des ciseaux et un marteau”.Este, reconhecia-o o autor, decerto seria um

método particularmente útil na educação de crianças surdas. De todas as

crianças, “ les plus attentifs et les plus observateurs”, eram as surdas,

habituadas que estavam “ à parler par les yeux” e a ter uma experiência visual

dos acontecimentos (Itard, 2003: 38, 39).

Resta-nos agora cruzar a existência e utilização do manual escolar e dos

seus conteúdos com a prática na sala de aula. O ensino, muito embora se dirigisse

a alunos surdos, processava-se – como anteriormente se fez referência – pelo

método oral. Mostrarei agora fragmentos significativos do texto que prefacia o

livro de Exercícios de Observação e de Linguagem, e no que nele se espelha da

pedagogia moderna e da crescente importância concedida à criança. O mestre

deveria descer do pedestal e tratar a classe como um composto de seres

individuais. Claro está que o elemento de comunicação então usado era mais a

fala oral do que a gestual, mas porque se acreditava que a língua dos ouvintes

daria ao surdo a hipótese de inclusão social, era neste movimento a um tempo

disciplinador e regulado que o aluno surdo se concebia como ser autónomo e

livre.

O método aqui preconizado não era o “expositivo”, no qual só o professor

“operava”, reduzindo-se o aluno a “receptor passivo”. Até porque, diziam os

autores, a lição oral do professor iria contra a “natureza” – surda, digo eu – do

aluno (Trindade, 1906: IX, X). A aula deveria ser um palco em movimento em

que se o aluno surdo não poderia ouvir, pelo menos, não estava impedido de falar.

Ora, o que se experimentava nos exercícios que compunham o livro era

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Um manual com 600 imagens

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precisamente blocos de fala que poderiam acontecer num espaço ouvinte. As 600

imagens do manual mimetizavam cenas e objectos comuns no dia-a-dia e os

exercícios do livro criavam uma mancha de interpretação em redor da cena

observada. Os conteúdos abordados eram assimilados pelo aluno, passando a

compor a sua visão da realidade, criando um manto de interpretação colado à

elaboração da sua individualidade. Para melhor o ilustrar, apresentarei agora ao

leitor um exercício completo. Trata-se de um razoável número de perguntas que

têm como mote a imagem abaixo representada. Desta lição o aluno ficaria a saber

o que era uma sala de aula, o que aí se fazia e quais eram os seus actores. Que

cada um deles teria um nome e lembrar-se-ia também, que ele próprio teria um

nome que se dizia com os lábios. Que há comportamentos específicos para cada

lugar, a sala de aula não seria, decerto, espaço para distracções e desatenções. Que

o seu papel ali, naquele momento em que estava a ser questionado, era o de um

aluno que precisava de aprender a falar, a ler sobre os lábios, a ler, escrever e

contar. Nunca seria demais lembrar o pequeno pupilo do seu estado de ignorância

antes de frequentar as aulas. Também, evidentemente, da persistência e amor ao

trabalho para que se alcançassem progressos.

Gravura de O Português pela Imagem

(Trindade, 1906 a)

“1. O que representa o nº 403? - 2. Nesta sala de aula há um professor? - 3.

Esse professor está sentado? - 4. Sabes como se chama o professor? - 5.

Sabes como se chama o professor, sabes o nome do professor? - 5. Como se

chama o teu professor? - 6. No nº 403, há alunos na sala de aula, há uma

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classe na sala de aula? - 7. São rapazes ou raparigas? - 8. Conheces o nome

desses alunos? - 9. Qual é o teu nome? Qual é o teu sobrenome? Como te

chamas tu? - 10. No nº 403, sobre o que estão sentados os alunos? - 11. Eles

estão agora a escrever? - 12. O que tem cada um na mão? - 13. Tu crês que

estejam ocupados a ler ou a ver estampas? - 14. Esses alunos parecem estar

atentos ou têm ar de distraídos, desatentos? - 15. Quantos alunos tem a tua

classe? - 16. Mostra-me a tua carteira. - 17. Mostra-me o lugar do/da X. - 18.

Gostas do teu lugar? - 19. A tua carteira tem divisões como a do nº 410? - 20.

O que é que tu pões dentro da tua carteira? - 21. Os teus livros e utensílios

estão bem arrumados dentro da tua carteira? - 22. Na sala de aula deve-se

brincar, rir e tagarelar? - 23. Em que lugar se pode brincar, rir e tagarelar,

palrar livremente? - 24. Diz ao/ à X que vós vindes à aula para aprender a

falar, a ler sobre os lábios, a escrever, a ler e a contar, - que vós vindes à aula

para vos instruires. - 25. Diz-lhe que os vossos pais desejam que faleis bem,

que escrevais bem, que estudeis bem as vossas lições e que façais bem os

vossos exercícios e as vossas obrigações. - 26. Quando eras pequeno/a eras

ignorante ou era instruído/a? - 27. Agora, presentemente estás já um pouco

instruído/a? - 29. Diz ao/à X que é preciso ter amor ao estudo para vir a ser

instruído/a, para fazer progressos” (Trindade, 1906: 147, 148).

As perguntas 24, 25, 26, 27, 28 e 29 interiorizavam no aluno surdo a

representação da surdez como deficiência que exigia a aprendizagem da língua

para que o aluno pudesse participar das relações sociais. O professor deveria

tornar consciente ao educando essa sua falta, apontando-lhe que o único caminho

para a corrigir seria a disciplina da vontade, fazendo todos os exercícios e

obrigações, amando o trabalho o que, mutatis mutandis, o faria ser amado pelos

pais e sair do lugar de excluído. Neste ponto, gostaria de tornar clara a ideia de

que o poder de normalização da criança na escola deixa de lado o corpo e centra-

se na alma. É certo que aos alunos são prescritos exercícios disciplinadores do

corpo. A fala inibe o desenvolvimento da linguagem dos gestos, própria do surdo,

contudo, estes exercícios de articulação inscrevem-se no aluno como necessários

para uma conquista de autonomia e liberdade individuais. Seria o domínio da

língua dos ouvintes, lida e falada, que determinaria a imagem que a criança e os

outros construiriam sobre si.

Um outro exercício ainda contido neste livro, evidencia de forma atroz a

focalização do ensino da criança surda de acordo com um modelo ouvinte, tendo

por base aquele que é o elemento inexistente no estado surdo. Perguntava-se ao

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Um manual com 600 imagens

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aluno:

“1. O que representa o nº 6? - 2. Quantas orelhas tens tu?-3. Mostra a tua

orelha esquerda.-4. Qual é o aluno/a aluna que tem orelhas pequenas?-5.

Observa no número 253 se as orelhas do burro são curtas ou compridas.- 6.

As tuas são tão compridas como as do burro?- 7. Manda o /a X puxar

brandamente as orelhas ao /à X.- 8. Diz ao/à X que as orelhas e os ouvidos

servem para ouvirmos.-9. Tu ouves? - 10. Diz, ao /à X que, quando o

professor fala, é preciso olhar para a sua boca, é preciso ouvir.- 11. Diz ao/à

X que olhar para a boca do professor é sinónimo de escutar, ouvir o

professor.- 12. Quando o professor fala, tu ouve-lo com os teus ouvidos ou

com os teus olhos?- 13. Diz ao/à X que é preciso escutar bem o que diz o

professor, que é preciso estar atento.- 14. Conjuga os verbos escutar as lições,

estar atento, no presente, na forma afirmativa” (Trindade, 1906: 19, 20).

Não há forma mais explícita para fazer entender ao aluno surdo a

supremacia da língua dos ouvintes. A opressão ao estado surdo evidencia-se pela

obsessão do ouvir que era, afinal, a falta que se diagnosticava ao aluno surdo. Era

na dinâmica do ensino na sala de aula que a criança surda se via obrigada a olhar-

se e a narrar-se como se fosse ouvinte. Primeiro, havia que fazê-la apontar as

orelhas e os ouvidos. Depois, fazê-la observar que, no seu corpo, esses elementos

estavam inoperantes. Mesmo assim, era necessário ouvir o professor, “escutar

bem”, sinónimo de “estar atento” aos seus movimentos labiais. A repetição –

tantas vezes utilizada no ensino do aluno ouvinte através da escrita – desenvolvia-

se oralmente com o aluno surdo repetindo, neste caso, algo que lhe era

organicamente impossível: eu escuto, tu escutas, ele escuta, nós escutamos, vós

escutais, eles escutam. Uma lição que daqui se extrai é que só se pode normalizar,

se se introduzir estruturalmente uma carência.

“Produzida por autores com autoridade para escrever, fixada e codificada

pelos gramáticos e pelos professores, encarregados, também, de inculcar o seu

domínio, a língua é um código, no sentido do algarismo que permite estabelecer

equivalências entre sons e sentidos, mas também no sentido de sistema de normas

reguladoras das práticas linguísticas” (Bourdieu, 1998: 24). Colonizar o surdo

com a oralidade e com uma oralidade especialmente concebida para si,

condicionava, por um lado, os sentidos do som que o surdo produzia porque

nunca os havia ouvido nem nunca os iria ouvir e, por outro, interferia com a

possibilidade de desenvolver a sua língua de natureza visual. A imposição da

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O Português pela Imagem

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oralidade tinha, certamente, o poder de inibição da gestualidade, pois a língua oral

impunha-se como a língua da lei. E situar o início das práticas oralistas no ensino

das crianças surdas, no Congresso de Milão, realizado em 1880, não é senão,

encontrar-lhe uma “legitimação oficial”. O método oralista permitia enquadrar a

criança surda na paisagem escolar dos ouvintes. Nesse espaço, o surdo seria

sempre um hóspede ao qual se oferecia a possibilidade de se aproximar da

normalidade e, para tal, contou-se com “o consentimento e a cumplicidade da

medicina, dos profissionais da área de saúde, dos pais e familiares dos surdos” e

dos “professores” (Skliar, 2001: 16).

Pierre Bourdieu admite a existência de uma língua oficial que “ tem parte

com o Estado”, “tanto na sua génese como nos seus usos sociais”. A dominância e

unificação dessa língua acontece na obrigatoriedade do seu uso em “espaços

oficiais”, como a escola, transformando-a em “ norma teórica pela qual todas as

práticas linguísticas são objectivamente medidas” (1998:24). É neste campo que

considero que a imposição do método oral puro no ensino da criança surda, ocupa

o lugar de excelência quando se pensa que poderia ter existido outra possibilidade

para o ensino destas crianças. Todavia, esta possibilidade exigia um olhar outro

para a surdez que, ainda hoje está ausente da escola.

“Ninguém pode ignorar”, escreve Bourdieu, que “a lei linguística que tem

o seu corpo de juristas, os gramáticos, e os seus agentes de imposição e de

controlo, os mestres do ensino, investidos do poder de submeter universalmente

ao exame e à sanção jurídica do título escolar, a performance linguística dos

sujeitos falantes”. Vemos, então, os sujeitos surdos a serem representados a partir

de uma característica específica do seu estado surdo - enquanto característica

negativa - e a serem medidos, avaliados, classificados pela sua capacidade

performativa na hospedagem de uma língua que não é a sua. A integração social

do surdo representa-se como “ a integração numa mesma ‘comunidade

linguística’, que é um produto do domínio político reproduzido incessantemente

por instituições capazes de impor o reconhecimento universal da língua

dominante”, e é, simultaneamente, “a condição da instauração de relações de

domínio linguístico” (1998: 24, 25).

Pois bem, no caso específico do ensino dos surdos funcionou “um sistema

ouvintista de valores” (Skliar, 2001: 20). Procuravam os autores explicar – ainda

no prefácio ao livro de exercícios que nos tem acompanhado – quais as palavras

que interessariam o aluno surdo.

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Um manual com 600 imagens

307

“Em presença de cada gravura do álbum, simplesmente perguntámos, por

um lado, o que na vida familiar poderia ser dito à criança, e, por outro, o que a

criança poderia ter necessidade de dizer por sua vez” (Trindade, 1906: X). Tendo

à sua frente uma representação de uma língua, um dos exercícios propunha que se

perguntasse ao aluno se sem língua, poderia falar. Qual era o aluno da classe que

melhor falava e primeiro realizava os exercícios de composição de palavras e,

inquiria-se ainda o aluno relativamente ao gosto pessoal de “fazer uso da palavra”.

E os que dela não se serviam, eram os mudos (Trindade, 1906: 22).

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O Português pela Imagem

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Objectos, jogos e lições de coisas

309

7.A SALA DE AULA COMO LABORATÓRIO…:

7.1. OBJECTOS, JOGOS E LIÇÕES DE COISAS

Fragmentos de gravuras de O Português pela Imagem

(Trindade, 1906 a)

Ainda não chegara a década de quarenta do século XIX e já Crispim da Cunha

afirmava que não seria pela pronúncia dos vocábulos que o entendimento do “surdo-

mudo” haveria de atingir o “grau de desenvolvimento” de que era susceptível e

“absolutamente necessário para se tornar útil a si e à sociedade” (1835: 8, 9).

Porquanto o surdo pronunciasse um elevado número de palavras, se não lhes

conhecesse o significado, de pouca valia elas lhe seriam nas relações sociais. O que

este professor de alunos surdos queria dizer era que a tarefa de ensinar a língua oral

ao surdo, se mostrava possível, mas vazia de significado caso acontecesse em

abstracto. Não abordou directamente, todavia, deixou transparecer que no ensino das

crianças surdas a especificidade da sua experimentação visual da realidade, teria de

ser considerada. Por isso mesmo, resgata a figura do Abade de l'Epée que, no século

XVIII, utilizava a língua de sinais como primeiro idioma da criança surda, através da

qual lhe seria ensinada a língua oral. De uma forma ainda muito subtil, começava a

desenhar-se uma metodologia que articulava o desenvolvimento da criança numa

simbiose entre vida prática e aprendizagem escolar.

Já aqui foi dito que a educação sensorial, pensada como forma de preparação

do aluno para receber a língua oral, articulava o corpo à realidade como meio de

ancorar ao primeiro o espírito. Seria no contacto directo com os objectos,

observando-os, explorando-os, que o surdo construiria sobre eles um conhecimento.

Ao aluno teria de ser dado a ver e perceber a materialidade dos objectos. De forma

evidente, este período preparatório partindo de um saber sobre uma intrínseca

natureza da criança em se relacionar experimentalmente com as coisas, vendo e

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A sala de aula como laboratório…

310

tocando, teria por fim proporcionar-lhe a realidade do som. Gostaria de deixar clara a

ideia de que estas práticas orientavam-se discursivamente para a actividade

construtora da subjectividade do aluno. A presença das actividades sensoriais,

artísticas ou dos trabalhos manuais no espaço escolar, encontram justificativa racional

na possibilidade que oferecem de libertar o aluno para uma relação directa com o seu

eu, tornando-o autor de um projecto pessoal de construção da sua identidade. O aluno

haveria de ser capaz de atingir um estado de autonomia tal que se governasse a si

mesmo. Todavia, este autogoverno enquadrava-se na perspectiva de

governamentalidade aqui referida e seria tão mais realizado quanto a arte de governar

se cobrisse com um manto de invisibilidade. Esta arte de governo dos escolares

estaria presente nas técnicas e nas práticas que vinculavam o aluno à escola e estas,

eram disciplinadoras e reguladoras do eu do sujeito. A questão do interesse, do jogo,

da ligação permanente à vida, assume uma importância capilar neste projecto de

articulação dócil ao dispositivo escolar. No caso específico das crianças surdas, a

geografia já efectuada dos males e características do seu estado, antevia que,

obviamente, seria a naturalidade própria do seu corpo a ditar as regras de vinculação

ao processo de aprendizagem. Os discursos que fixaram os seus planos de estudos

construíam-se progressivamente sobre bases científicas em torno da natureza

biológica do aluno, agilmente se percebendo que o domínio da visualidade e da

apalpação seriam filões a escavar.

A resposta ao problema que Crispim da Cunha expunha em 1835, vamos

encontrá-la em Simões Raposo duas décadas adiante, ainda que não relacionada com

o ensino da língua às crianças surdas. Todavia, no discurso do Provisor de Estudos da

Casa Pia anunciava-se já o que viria a ser âncora na educação desses alunos. Pois

bem, “a fim de que aprendendo a leitura e a pronunciação duma palavra”, as crianças

“ficassem logo senhores da ideia” aí representada, havia o autor organizado “umas

tabelas de leitura” com palavras escolhidas a dedo e que representassem ideias

“intuitiva ou analogicamente” fáceis de fazer compreender à criança. A definição

rigorosa da palavra seguir-se-ia ao conhecimento objectivo do objecto ou da acção

que a palavra representasse. Era, portanto, esta proposta de Raposo, totalmente

contrária a um ensino livresco. Que o mestre transmitisse o saber aos discípulos, mas

que o fizesse servindo-se “da análise directa, figurativa ou analógica”. “Isto é”,

continuava Raposo, “mostrando, desenhando ou descrevendo o objecto”. E eis que,

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Objectos, jogos e lições de coisas

311

para além de um aluno sabedor do sentido da palavra, ter-se-ia um aluno empenhado

para achar por ele “a verdade”. Naturalmente que só se conseguiria vincular o

educando a uma tarefa escolar, se o professor dominasse a técnica de conduzir o seu

pupilo a assuntos do seu interesse. Ensaiava-se o fim do “professor dogmático e

casuísta” e da escola entediante e aborrecida que tinha por função “a inacção das

faculdades do espírito”. O autor do Relatório dirigido à Administração da Casa Pia

em 1869, sistematizava aquilo que seria a humanidade da escola moderna. Qualquer

que fosse a prática amovida destes princípios seria tudo, menos aquilo que deveria ser

“a escola do século XIX – a escola do futuro” (Raposo, 1869: 17, 18, 19).

“A escola moderna é família – é sociedade, – é jardim, – é oficina, – é campo, – é

cidade, – é finalmente uma sociedade democrática popular em miniatura, onde o

aluno pratica em especimen, e para assim o dizer, a retalho, tudo quanto a família,

a pátria e a sociedade tem de lhe fazer praticar depois por atacado” (Raposo,

1869: 19).

O que Simões Raposo antecipava, era um regime semelhante ao que Dewey

viria a propor de uma escola análoga a uma sociedade em miniatura. A escola, dizia o

autor de A Escola e a Sociedade no ano de 1900, deveria relacionar-se “com a vida de

forma a que a experiência que a criança” adquiria “de uma maneira familiar e

natural” fosse para aí “transportada e utilizada”. Do mesmo modo, fosse qual fosse o

saber que o aluno aprendesse na escola, deveria “ser devolvido e aplicado na vida

quotidiana”. Além disso, se “a escola como um todo” estivesse relacionada “com a

vida como um todo”, os diversos “domínios de estudo” ficariam decerto

“correlacionados”. A experiência, afirmava o autor, compunha-se de elementos

vários, desde os geográficos a artísticos e literários, científicos e históricos e, todos

eles estavam “inexoravelmente relacionados”. A criança deveria, pois, viver numa

relação “variada”, “mas concreta e activa” com este mundo (Dewey, 2002: 78, 79).

“Não me tenho cansado de expor livremente e em toda a parte a minha crença

e a minha esperança de que a nossa instrução há-de um dia tornar-se prática, real, e de

uma constante aplicação imediata e útil”. Poderia ser ainda de Dewey esta frase, mas,

na verdade, saiu da pena de Simões Raposo. E continuava, o então Provisor da Casa

Pia, dizendo que todas as faculdades da alma – que se manifestavam nos modos de

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A sala de aula como laboratório…

312

ser “sensível”, “inteligente” e “livre”-, mereciam “igual cuidado”. A cargo do

professor postava a empreitada de, mantendo-se “a par com os progressos da ciência

pedagógica”, guiar os pupilos em ensinamentos com “aplicação imediata nos usos da

vida e de reconhecida utilidade”( Raposo, 1869: 12, 13 ).

Esta ideia estava, de resto, ligada à necessidade que havia de motivar o aluno

e de o manter mentalmente receptivo durante toda a lição. Em 1907, José da Cruz

Filipe aconselhava para um primeiro ano de aprendizagem oral nas classes de surdos,

um vocabulário de aproximadamente cem palavras, “curtas e fáceis” que deveriam

corresponder a “nomes de objectos existentes na classe e os mais usados” (1907: 36).

O interesse da criança iria condicionar o grau de motivação para aprender e o ensino

centrado no aluno era uma linguagem que ia marcando presença nos modernos

discursos da pedagogia. No ano de 1915, Palyart Pinto Ferreira, questionava-se

acerca das diferenças entre “os métodos e processos empregues com as crianças

anormais dos empregues com as normais”. No seu entender, “a diferença deveria ser

nula”. Se não o era, devia-se a que “na maioria das classes de normais, como a

criança é dócil, maleável, moldando-se perfeitamente ao ensino livresco, fastidioso,

mas cómodo para o professor, os métodos e processos da moderna pedogogia” não

eram postos em uso. “Mas não suportando o anormal o mesmo ensino”, necessário se

tornava “ a aplicação dos modernos princípios” (Ferreira, 1915 a: 536, 537).

Palyart desenhava aquilo que seria a sua actuação:

“Dar-lhes-ei jogos e exercícios apropriados para educação dos sentidos, e

principalmente modelação segundo tema ou livre, e desenho empregando lápis de

cores, aguarelas, e já livre, já de memória, de ilustração, etc.; ministrarei noções

de cálculo prático, e por meio de brinquedos e jogos ; iniciarei o estudo da língua,

a escrita e a leitura, e os exercícios de linguagem, tendendo a corrigi-la, aumentar

o vocabulário, etc.; pô-las-ei, sempre que possa, em contacto com a natureza, e

dar-lhes-ei plantas e animais a tratar. Isto com os mais atrasados, aos de

mentalidade mais inferior, com menos soma de conhecimentos; que com os

restantes, que já sofreram a iniciação, só parte deste programa será aplicado, e a

outra substituída pelo que mais e como melhor convier, segundo as suas

características, segundo as suas exigências mentais”. O ensino da aritmética seria

tanto quanto possível “prático”, com “jogos”, um pequeno balcão até, em que a

“criança” faria “de caixeiro e de comprador, recebendo e pagando com moeda

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Objectos, jogos e lições de coisas

313

bem imitada, alguns exemplos falsos de 50 ctvs, 20ctvs, e 100 reis e 500 reis”

(Ferreira, 1915 a: 537, 538).

A aprendizagem deveria estar intimamente ligada à vida prática. Jogos e

exercícios que estimulassem o desenvolvimento dos sentidos, trabalhos manuais e

desenho como actividades orientadas por um tema ou totalmente livres, deixando o

aluno expressar-se. Brinquedos e jogos que permitissem a articulação à realidade,

respeitando o tempo e o intelecto de cada aluno. “O sujeito seria assim conduzido

pela prática lúdica à interiorização do sentido da substância ontológica, da reflexão e

do julgamento e sempre de uma forma progressiva” (Ó, 2003: 143). O que se situava

no núcleo desta abordagem era a questão do interesse e, aqui, a criança adquiria uma

importância máxima. O educador, munido dos conhecimentos da psicologia e

pedagogia modernas, saberia exactamente o que o seu pupilo desejava. Nas suas

Lições de Pedologia, António Aurélio da Costa Ferreira (1920 a: 31), procurava

mostrar aos professores em formação, o alargado leque de vantagens que a Pedologia

lhes traria. Para além de “servir excelentemente para fazer a sua educação científica”,

era instrumento que os ensinava a “observar”, “descrever”, “medir”, “experimentar”,

“analisar” e “criticar”, “para aperfeiçoar o bom senso, que é a mesma coisa que o

espírito científico, que permite sentir e descobrir a realidade e medir a possibilidade”.

A preparação do mestre e a transformação da escola, deveriam ocorrer em

simultâneo. Um eixo fundamental da pedagogia científica, afirmavam pedagogos

como Maria Montessori, residia na existência de uma escola que permitisse o

desenvolvimento de todas as manifestações espontâneas e da vivacidade individual da

criança. O que então se delineava era o estudo individual do aluno, para que este se

pudesse construir como ser autónomo e livre. Pelo programa anunciado por Palyart,

especificamente concebido para o ensino daqueles que se afastavam dos padrões

normativos, percebe-se que os princípios de autonomia e liberdade da escola

moderna, contaminavam todos os que eram trazidos até à arena educativa. Os

anormais eram objecto de salvação de uma pedagogia que se concebia como especial,

porque cada vez mais detinha sobre aqueles a que se aplicava um saber, possibilitador

de poder. Nos discursos até aqui trazidos lêem-se conceitos fulcrais, – activo,

espontâneo, livre –, que haveriam de marcar a pedagogia ao longo do século XX e, de

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A sala de aula como laboratório…

314

forma muito acentuada o perfil das actividades artísticas a dois níveis: um que

justifica a sua presença por uma natureza específica da criança que era necessário que

se desenvolvesse naturalmente, que desenhasse, pintasse, modelasse, corresse, que se

movimentasse e nesse processo, jogar-se-ia o outro trunfo. Para além do saber que se

ia constituindo na observação do desenvolvimento infantil, a criança aprenderia a

ganhar sobre si uma consciência racional, desenvolveria um domínio sobre o seu

corpo, sobre o seu espírito e, logo, sobre a sua vontade. A natureza do aluno segurava

a tessitura dos programas que lhe iam sendo propostos. Herbert Spencer, no século

XIX, dizia-o assim:

“The truths of number, of form, of relationship in position, were all originally

drawn from objects; and to present these truths to the child in the concrete is to let

him learn them as the race learnt them. By and by, perhaps, it will be seen that he

cannot possibly learn them in any other way; for that if he is made to repeat them

as abstractions, the abstractions can have no meaning for him, until he finds that

they are simply statements of what he intuitively discerns.[...] The system of

object-lessons shows this. The teaching of the rudiments of science in the

concrete instead of the abstract, shows this. And above all, this tendency is shown

in the variously-directed efforts to present knowledge in attractive forms, and so

to make the acquirement of it pleasurable. For, as it is the order of Nature in all

creatures that the gratification accompanying the fulfillment of needful functions

serves as a stimulus to their fulfillment—as, during the self-education of the

young child, the delight taken in the biting of corals and the pulling to pieces of

toys, becomes the prompter to actions which teach it the properties of matter; it

follows that, in choosing the succession of subjects and the modes of instruction

which most interest the pupil, we are fulfilling Nature's behests, and adjusting our

proceedings to the laws of life” (Spencer, 2005: s/p).

A apologia estava lançada. Era o contacto directo com a realidade que faria a

criança apossar-se de um conhecimento efectivo. Adolfo Lima considerava as

“faculdades activas” como as “primeiras” a serem proporcionadas à criança. “Os

estudos que” contivessem “um elemento de actividade” deveriam “vir antes”, em

tempo de ensino, dos que o não tivessem. Colocava a interrogação que tanto

preocupava psicólogos e educadores: “Qual a época em que a criança está apta a

ocupar-se de cada um” dos “estudos, sem esforço demasiado para a sua idade?”

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Objectos, jogos e lições de coisas

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(1927: 249, 250). O problema da ordem didáctica estaria directamente articulado com

a formulação dos programas aplicados ao estado físico e mental do aluno.

Lições de coisas…

(Amaral, 1954)

Por oposição a um ensino dito tradicional, que parecia considerar, nas palavras de

Binet, a criança como um homem em miniatura, um homunculus, os discursos da

pedagogia nova apelavam à centração do ensino na criança e nos seus interesses. Vale

a pena ouvir as palavras de Adolfo Lima que, entre nós, terá sido um dos pedagogos

com mais impacto no movimento da escola moderna:

“‘Não basta conhecer um bom método, possuir excelentes processos de ensino; é

indispensável, é condição prévia, - como dissemos algures - que estabeleçamos e

fixemos o princípio de que ‘só deve ensinar-se às crianças o que elas podem

compreender, ver’”. O ensino não poderia ser mais “um chapéu de igual

dimensão que numas crianças entrava pela cabeça abaixo, tapando-lhes os olhos,

os ouvidos, o nariz, a boca, e mal deixando-as respirar, ouvir, ver e cheirar, e que,

noutras, por inadaptação, ficava no alto da cabeça e só à força e dolorosamente,

qual coroa de espinho, se enterrava no crânio da martirizada criança” (1927: 251,

268).

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A sala de aula como laboratório…

316

Continuarei a seguir de perto a escrita de Adolfo Lima. Este educador era

totalmente favorável ao ensino da criança através da intuição sensível ou sensorial.

Recuava até Coménio para relembrar que o ensino se deveria dirigir totalmente às

capacidades sensoriais da criança pois conhecimento algum, ideia ou objecto,

passaria para um domínio do consciente se não fosse gerado na sensação e, citava o

autor do século XVII: “‘não devemos contentar-nos com descrever os objectos aos

alunos, mas é preciso também mostrá-los; não deve fazer-se aprender definições e

regras abstractas, mas fazê-las praticar por exemplos’”. Nenhum processo substituiria

o contacto directo com “ a própria realidade das coisas, dos fenómenos, cujo

conhecimento é necessário, e fá-la entrar na inteligência pelos sentidos, sob a forma

de factos ou de exemplos rigorosos” (Lima, 1927: 446).

É evidente que a escola trabalharia a realidade a oferecer ao aluno. Outra

coisa não são, de resto, os programas curriculares. Todavia, estruturam-se sobre uma

necessidade de articulação prática. Spencer refere o sistema das object-lessons. As

lições de coisas teriam a sua génese nos princípios da educação intuitiva, mas

distinguiam-se desta. Poderiam existir ou não num processo de educação intuitivo,

muito embora a sua presença fosse exemplo prático de aplicação dos métodos

intuitivos na prática de ensino. Seriam um método especial de ensino. Sobre as lições

de coisas, dizia que eliminavam as inconvenientes abstracções, substituindo-as pelas

palavras e realidades objectivas, num primeiro exercício do pensamento. A lição de

coisas consistiria “em tirar todos os ensinamentos possíveis da observação directa de

um objecto ou fenómeno” (Lima, 1927: 458). Sobre a coisa poder-se-ia traçar uma

história, decalcar características, treinar a capacidade de atenção e observação do

aluno. Os objectos e ideias mais facilmente assimiláveis pela criança e aqueles que

mais entusiasmo despoletariam, eram com toda a certeza os objectos mais familiares,

aqueles que incorporavam já a experiência de vida do aluno. Mas sobre estes o

educando era convidado na lição a descobrir qualidades que antes não via. Poder-se-

ia transportar o próprio objecto para a sala de aula ou então, referenciá-lo pelo recurso

às imagens.

“As lições de coisas carecem de um plano previamente traçado em que os

assuntos se escalonem, e se liguem numa natural e biológica associação de ideias

e factos. As ideias, as noções de coisas devem girar em volta dos centros de

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Objectos, jogos e lições de coisas

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interesses, formando ‘um todo complexo’ concentrado e convergente” (Lima,

1932: 104).

De facto, um ensino centrado sobre os próprios objectos a conhecer, para além

de possibilitar uma construção própria de cada aluno, tinha ainda a importante função

de treino da atenção. Um exercício de treino da atenção e simultaneamente de

desenvolvimento do sentido cromático, utilizado por Montessori, era “o processo das

lãs de Holmgren”. Consistia este exercício em dar “uma amostra de lã ou de retrós” à

criança, “de uma certa cor e tom” e pedir-lhe que procurasse uma igual, “entre muitas

outras de diversas cores e tons”. Mostrava-se “duas ou três cores” e mandava-se,

depois, que a criança as procurasse, “de cor, de memória”. Ensinava-se, por fim, o

nome de cada cor, mostrando e nomeando, dizendo “os nomes por forma a atrair a

sua atenção, usando de tom e maneiras que” seduzissem o aluno (Ferreira, 1920a:

83). Mas era essencialmente em Decroly que principalmente se inspiravam os

processos e os métodos utilizados com as classes de alunos anormais da Casa Pia de

Lisboa. Decroly procurava organizar o princípio de associação de ideias através da

própria acção da criança com o material, fosse nos jogos, trabalhos manuais ou

procura de novos objectos. As lições de coisas enquadravam-se neste modelo e nos

materiais criados pelo pedagogo. As paredes da sala de aula teriam pendurados

inúmeros sobrescritos com a respectiva legenda correspondendo a um centro de

associação de ideias como os que aqui referimos existirem no Português pela

Imagem. “Este ‘material’ é constituído não só por produtos, amostras, exemplares,

mas também por estampas que se encontram à venda no mercado, e ainda por bilhetes

postais, bonecos de caixas de fósforos, de tampas, de invólucros de chocolate, de

jornais ilustrados, de anúncios, de catálogos industriais, agrícolas, comerciais,

artísticos, bibliográficos” (Lima, 1932: 70). Deste modo organizava-se um museu

escolar.

Em As novas concepções educativas e sua verificação pela experiência,

Édouard Claparède definia as novas concepções da educação, focalizadas

essencialmente em três pontos. Em torno da criança, substituindo a “obediência

passiva” pela sua “actividade e iniciativa”, quer dizer, em lugar de “reprimir

sistematicamente os instintos e os gostos naturais da criança”, neles o educador

encontraria a matéria que daria origem ao “ensino”. Ao nível da instrução, Claparède

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A sala de aula como laboratório…

318

falava em substituir “os métodos baseados na lógica do adulto, pelos métodos

fundados na psicologia da criança” e, por último, no campo da educação, o caminho

apontado preconizava mais a implementação de um trabalho colectivo do que

individual, uma “organização das escolas segundo o tipo de instituições democráticas,

pondo em jogo os instintos sociais: self-government, substituição da doutrina exterior

pela interior”. Em poucas palavras, diria o educador que “em vez de ser educada, a

criança” estaria “colocada em condições tais que” se educasse, “ela mesma, o mais

possível” (1959 a: 165). Seria o mestre um estimulador de interesses. Não viria ao

mundo mal algum por a criança fazer tudo quanto desejasse:

“não há mal em deixar a criança fazer tudo o que quer, se tudo o que quiser

estiver certo! A questão é dispor as coisas de modo tal que a criança seja atraída

pelas ocupações (jogos ou trabalhos, pouco importa como se lhes chame,

contanto que suscitem esforço e sejam educativos), que estimulem seu

desenvolvimento intelectual, moral e social; - enfim, que tudo o que queira lhe

seja ocasião de progresso. Prefiro, porém, inventar uma fórmula, e dizer que, na

Casa dos Pequeninos, deseja-se que as crianças queiram tudo o que fazem.

Deseja-se que elas actuem e não que sejam actuadas” (Claparède, 1959 a: 168,

169).

Como mostrarei no próximo capítulo, Claparède reconhecia nos trabalhos

manuais uma capacidade de socialização da criança pela preparação para uma futura

integração na sociedade. Os trabalhos manuais ocupavam, também, lugar de destaque

quando se pensava numa educação vocacionada para a individualidade de cada

escolar e para a sua autonomia. Quando John Dewey lhes consagra no campo teórico

um lugar fundamental na paisagem educativa, afastava-se do trabalho manual

enquanto actividade ocupacional e defendia princípios educativos que o professor

saberia alcançar. Os impulsos naturais da criança, bem como os seus instintos eram

reconhecidos pelo educador que, deveria, no entanto, saber conduzi-los “para um

plano mais elevado de percepção e raciocínio”. E como exemplo, Dewey apontava os

trabalhos de “construção” em oficinas escolares. Estes, dever-se-iam iniciar “com o

impulso” do aluno, todavia, “o professor atento” saberia ler e descodificar no seu

pupilo quais “os seus instintos e qual o seu significado”, podendo dessa forma sugerir

e estimular o desenvolvimento da actividade em consonância com os “desejos e

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Objectos, jogos e lições de coisas

319

ideias” do aluno (2002: 110, 111, 112).

A ocupação dada à criança na escola, não será demais insistir, não teria como

primeiro objectivo mantê-la simplesmente ocupada para a afastar da indisciplina ou

da preguiça. As actividades que o professor propunha eram o trampolim para o

alcance da autonomia e liberdade. Uma e outra conquistavam-se por um hábito

quotidiano de trabalho que haveria de inscrever na alma do aluno um autodomínio

sobre o seu corpo e sobre a sua vontade, quer dizer, o aluno passaria a jogar consigo

mesmo o exercício da disciplina.

Através do jogo relacionado com as actividades manuais, o educando adquiria

o hábito do trabalho, uma disciplina interior ao mesmo tempo que lhe iam sendo

incutidos conhecimentos ou ideias morais.

“On comprend ainsi que la plupart des écoles actives aient mis à l’horaire,

comme une de leurs branches importantes, les travaux manuels récréatifs, c’ est-

à-dire ceux ou l’ enfant confectionne des objets intéressants en réduction et

d’autres qu’il peut utiliser dans la vie pratique. Il satisfait ainsi au goût du jeu

grâce à la fantaisie qu’il peut y manifester et à la marge de liberté et de possibilité

de création qu’on lui laisse; il subit d’ailleurs l’influence de ses camarades, et

apprend à travailler en collaboration pour un but commun. Mais le jeu peut

intervenir d’une manière plus directe encore dans les exercices scolaires

proprement dits, comme moyen de faciliter l’acquisition et la répétition de

certaines connaissances indispensables, grâce à des procédés d’autoéducation et

d’individualisation” (Decroly et Monchamp, 1937 : 20, 21).

Num capítulo do livro L’initiation a l’activité intellectuelle et motrice par les

jeux éducatifs, Decroly et Monchamp propunham para os “petits” e para os

“arrièrres”, jogos educativos com as seguintes características:

“Les jeux éducatifs répondent aux caractéristiques suivantes : Les jeux éducatifs

ne constituent qu’une des multiples formes que peut prendre le matériel des jeux,

mais ils ont pour but dominant de fournir à l’enfant des objets susceptibles de

favoriser le développement de certaines fonctions mentales, l’initiation à

certaines connaissances et aussi de permettre des répétitions fréquentes en rapport

avec les capacités attentives, rétentives et intellectuelles de l’ enfant, grâce aux

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A sala de aula como laboratório…

320

facteurs stimulants empruntés à la psychologie du jeu. Le plus souvent ils

s’exécutent individuellement, mais il en est qui servent à de petits et de grands

groupes” (1937 : 39, 40) .

Quanto aos jogos de tipo individual, os autores explicam os objectivos

principais: “l’intérêt est soutenu souvent par le fait que l’enfant peut vérifier lui-

même son résultat, faire son exercice en même temps que d’autres enfants et être

influencé jusqu’à un certain point par l’émulation, qu’il peut tirer au sort l’ exercice à

effectuer, etc”(Decroly et Monchamp, 1937: 42). Traduzindo as suas palavras, a

criança seria confrontada com a tarefa a realizar – sozinha -, ao mesmo tempo,

contudo, que todos os outros companheiros da classe o que obviamente permitiria ao

educador uma avaliação individual de cada educando, comparando cada um, com

todos os outros. Facto relevante, a emulação não manifestaria grandemente a sua

presença, na medida em que o que era pedido ao aluno era a realização por si, a partir

dos seus conhecimentos e do seu interior, da tarefa proposta.

Para os jogos de natureza sensorial, insistiam:

“encore sur le fait que nous ne voulons pas, par les exercices sensoriels, arriver à

ce que l’enfant devienne un virtuose dans la distinction des différences infinies de

qualités diverses, telle, 'par exemple', la couleur. Notre but est de préparer

l’attention volontaire en nous servant de l’attention spontanée; dans les exercices,

nous nous sommes efforcés d’en graduer la dose” (Decroly et Monchamp, 1937:

56).

Haveria diversos jogos de treino da atenção voluntária do aluno relativamente

às qualidades cromáticas dos objectos. A notícia de um dos que, inspirado nos jogos

de Decroly, era utilizado na Casa Pia de Lisboa chega-nos pela voz do seu director:

“um dominó curioso que muito interessa os pequeninos [...], um jogo de dominó

constituído por uma série de pequenos cartões, aproximadamente do tamanho das

pedras do dominó vulgar, cartões a cada um dos quais estão, num dos lados, colados,

lado a lado, dois papéis, cada um de sua cor. Joga-se como se joga o dominó. O

aspecto, que a série dos cartões toma no fim do jogo, interessa muito as crianças”

(Ferreira, 1920a: 85).

Entre nós, Alves dos Santos, criador do Laboratório de Psicologia

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Objectos, jogos e lições de coisas

321

Experimental da Universidade de Coimbra, foi um dos autores que também dedicou

parte dos seus escritos à importância do jogo na educação. Afirmava que “os jogos

são agentes naturais e instintivos do crescimento físico e do desenvolvimento mental,

sendo por virtude da sua eficiência que a hipertrofia do organismo se realiza com

eficiência e eficácia”. Sem querer arriscar qualquer conceito definitivo em torno da

natureza da actividade lúdica, considerava a hipótese de o jogo ser “um efeito natural

das leis biológicas, a que todos os organismos se submetem, nas suas relações com o

meio, em que carecem de subsistir”. Decerto seria uma actividade que permitia a

adaptação da criança à realidade, uma espécie de “pré-exercício” ou “ensaio” para a

vida. Eram cinco as funções primordiais que Alves dos Santos atribuía ao jogo: o

desenvolvimento de “actividades novamente adquiridas”, a estimulação do

“‘crescimento’”, a sua influência para a redução e canalização de “tendências

nocivas”, a criação e manutenção de “hábitos sociais” e, finalmente, o contributo

“para corrigir a fadiga e regenerar energias, gastas pelo trabalho orgânico”

(Santos,1919: 120,121). Alves dos Santos distinguiu seis tipos de jogos, “motores”,

“sensoriais”, “experimentais”, “afectivos”, “inibitórios” e “estéticos”. A cada um dos

tipos, sua definição: motores, “porque desenvolvem o organismo”, sensoriais “porque

educam os sentidos e promovem a destreza e precisão dos movimentos”,

experimentais “porque aperfeiçoam a inteligência e satisfazem o instinto de

curiosidade das crianças”, afectivos “ porque fomentam a cultura da sensibilidade”,

inibitórios “porque despertam a atenção e educam a vontade”, estéticos “ porque

estimulam os sentimentos desinteressados da criança” (1919: 122). Em suma, o jogo

potenciava uma aprendizagem empírica. Respeitava a natureza da criança e ajudava o

educador a melhor a conhecer, bem como aos seus interesses e aptidões.

“O jogo [...] oferece ocasião para cada um mostrar o que é. Diz-se que, à mesa e

ao jogo, as pessoas mostram a educação que têm. O jogo é revelador da posse dos

nervos e domínio das impulsões. Não é o jogo que faz a educação, é o jogo que a

revela e, porventura, consolida, porque fornece mais uma ocasião de cada um se

exercitar no domínio de si mesmo e é, neste sentido, que se pode chamar ao jogo

educativo” (Silva, 1938: 373, 374).

Uma escola por medida, como a propunha Claparède, era uma escola

“adaptada à mentalidade de cada um, uma escola que se” acomodava “tão

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A sala de aula como laboratório…

322

perfeitamente aos espíritos, quanto uma roupa ou um calçado sob medida o fazem

para o corpo ou para o pé” (Claparède, 1959: 157). O importante era diferenciar as

crianças. Na Portaria nº 14 de 1894, sendo Provedor José Simões Margiochi pode ler-

se que “um dos cuidados que deve preocupar seriamente” em matéria de educação,

“deve ser a pesquisa cuidada e solícita, das aptidões que possam manifestar-se nas

crianças educandas, acabando com a rotina tão inexplicável quanto absurda, de

distribuir alunos pelo aprendizado de diferentes ofícios e artes liberais, sem uma

indagação sistemática das suas aptidões” (1894a: 24). Detectar em cada uma

interesses e aptidões. Seria “preciso levar em conta as diferenças de aptidões, porque

ir contra o tipo individual é ir contra a natureza. E ir contra a natureza tem duplo

inconveniente: em primeiro lugar, como já vimos, não há rendimento, ou só um

rendimento não proporcional ao esforço despendido. E, em seguida – é preciso

insistir – repugnância. Este fenómeno da repugnância, muito descuidado pela

pedagogia corrente, tem imensa importância moral e social. Importa, com efeito, que

a ideia do trabalho não esteja associada à da repugnância, mas, ao contrário, à da

satisfação” (Claparède, 1959: 149). Condição sine qua non, dizia-o Claparède, “é

preciso obedecer à natureza da criança, se dela queremos fazer alguma coisa” (1959:

147). Trabalhos manuais e desenho enquadravam-se no tronco das necessidades

individuais e centros de interesse dos alunos e por isso, para além das suas múltiplas

vantagens para o funcionamento do governo dos alunos, integraram as práticas

curriculares na paisagem educativa casapiana. E à dúvida, “muitas vezes formulada”

de que partindo-se “das ideias, impulsos e interesses da criança, sendo estes tão

incipientes, tão aleatórios e dispersos, tão pouco refinados ou espiritualizados”, como

é que se levaria a criança a adquirir a “necessária disciplina, cultura e informação”,

pedagogos como John Dewey responderiam que: possuindo “equipamentos e

materiais devidamente organizados, passamos a dispor duma terceira alternativa” que

não o ignorar ou reprimir essas tendências. “Podemos dirigir as actividades da

criança, exercitando-a de acordo com determinados vectores, e conduzindo-a assim a

objectivos que são o corolário lógico da via escolhida” (Dewey, 2002: 42). Na

verdade, a Casa Pia funcionou como laboratório em que se realizaram as mais

modernas experiências pedagógicas. E disso havia clara consciência:

“Tem sido a Casa Pia vasto campo experimental onde se tem ensaiado muito

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Objectos, jogos e lições de coisas

323

método e onde se tem praticado muita acção cuja larga influencia no meio

pedagógico do país ninguém pode contestar. Na Casa Pia se iniciou a pratica da

vacina nas escolas, na Casa Pia se montou a principal aula de ensino mútuo, na

Casa Pia fez a sua melhor época a instrução militar preparatória, no tempo dos

batalhões escolares, da Casa Pia saiu o primeiro ‘team’ escolar de ‘foot-ball’ e foi

a Casa Pia uma das instituições em cuja instrução primária mais cedo se

introduziu o trabalho manual” (Ferreira, 1914: 304, 305).

Ora, bastaria a análise deste pequeno fragmento para reportar as inúmeras

presenças no laboratório educativo casapiano que dizem das transformações e

desenvolvimentos da pedagogia na transição do século XIX para o século XX. Desde

princípios de uma medicina, antropometria ou psicologia incorporadas no tecido

escolar, a práticas administrativas, de organização ou de contabilização dos escolares,

à disciplina dos batalhões, à educação física, aos regimes associativos ou à presença

da educação artística para todos os alunos.

Como forma de sintetizar algumas das ideias que têm sido escritas quando se

fala nos princípios preconizados pela escola nova, primeiro há que dizer que as

propostas dos pedagogos deste movimento não são mais do que actualizações ou

desenvolvimentos de muitas das ideias de uma escola que era dita tradicional. Os

princípios de disciplina, fortemente associados a um ensino tradicional que têm na

figura do professor uma imagem de poder, começam a ser princípios que, ao

contrário de um apagamento, se inscrevem nos discursos como exercícios que se

dirigem ao corpo e à alma da criança, levando-a a adquirir uma autonomia no

governo de si mesma. A liberdade, a espontaneidade, a natureza da criança são,

portanto, elementos que emergem para a construção de uma identidade que não deixa

de ser regulada. É que essa mesma liberdade e espontaneidade são agora peças de

análise dos mestres que dominam um saber psi que lhes permite interpretar os gestos,

comportamentos, performances dos seus alunos. “O professor que se queixa do seu

aluno”, escrevia um dos principais representantes da escola nova, Adolphe Ferrière,

“acusa-se a si próprio”. Não era a criança que teria de acusar. “Observai-a. Apalpai o

terreno. Quase fatalmente, acabareis por descobrir-lhe ao menos um ponto em que

coordena as suas forças para agir espontaneamente, em que um interesse bem vivo a

impulsiona”. Chegado este momento, estava encontrada “a força motriz que fará

mover o moinho”. Não se poderia exigir do aluno mais do que ele poderia fornecer.

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A sala de aula como laboratório…

324

“Assim, partir das actividades espontâneas das crianças, partir das suas actividades

manuais e construtivas, partir das suas actividades mentais, das suas afeições, dos

seus interesses, dos seus gostos dominantes, partir das suas manifestações morais ou

sociais, tal como se apresentam na vida livre e natural de todos os dias, segundo as

circunstâncias, os acontecimentos previstos ou imprevistos - eis o ponto de partida da

educação” (Ferrière, 1965: 76,77). No meio deste cenário, quem era o professor? Era

aquele que tinha por fim conduzir o seu aluno para o que era o melhor caminho. E

este governo da criança não era mais do que o exercício de um poder pastoral que não

pretendia simplesmente produzir bons trabalhadores ou alunos dóceis, mas antes,

indivíduos que por um trabalho exercido sobre a sua alma, se tornassem auto-

regulados. Nas palavras de Hunter: “it was to form the capacities required for

individuals to comport themselves as self-reflective and self-governing persons” (Ó,

2003: 110).

Ora, é inserida nesta perspectiva que consideramos o desenvolvimento da

educação artística dos alunos surdos da Casa Pia de Lisboa. As expressões artísticas,

fossem elas numa área mais escolar e rigorosa de trabalhos manuais ou de desenho,

fosse numa área de livre expressão, a verdade é que, num e noutro caso, eram

entendidas como um movimento interior do indivíduo, projectando-se para o exterior.

Seriam um meio de expressão do self do aluno que simultaneamente se oferecia como

objecto de leitura aos olhos do mestre. O processo artístico, em si mesmo, no sentido

de uma auto-expressão, estaria conectado à ideia de expressão do eu, o que

implicaria, evidentemente, a análise dessa expressão. “A arte”, qualquer que fosse a

manifestação adoptada, “é uma necessidade, mas uma grande necessidade, absoluta,

para o bom, para o harmonioso desenvolvimento da alma infantil, alguma coisa de

que carece o intelecto do pequenino ser para a sua completa e mais rápida evolução”.

Útil para o espírito e para a educação porque era conforme às leis da psicologia. A

arte em muitos aspectos se assemelhava ao jogo e o “prazer estético”repousava

“numa espécie de imitação interior que não é senão um jogo” (Ferreira, 1920 a: 333).

Seria esta uma ideia já partilhada por Almeida Garrett quando nas suas Cartas

dirigidas a uma senhora ilustre encarregada da ilustração de uma jovem princesa,

enquadrava no elenco de objectivos de uma educação global, as artes como “gentil

ornato” ou “elemento necessário” “de toda a educação”. Sendo inseparáveis a

educação física, a moral e a intelectual, em nenhum período da vida do aluno uma

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Objectos, jogos e lições de coisas

325

seria excluída pela outra, “mas cada qual por sua vez obtém a precedência segundo o

estado do educando na respectiva época” (1829: 15, 16). Garrett introduz aqui uma

tópica essencial para a produção da subjectividade dos sujeitos e à qual os discursos e

as práticas pedagógicas estiveram atentas: a questão do tempo. Novamente se poderia

falar na questão da individualização da criança e da sua natureza específica, todavia,

gostava de marcar mais profundamente a estreita ligação que as tecnologias artísticas,

especificamente desenho e trabalhos manuais, definiram nas relações entre sujeito e

objectos. É no envolvimento com o fazer, nos tempos disponíveis para as tarefas, nas

prescrições para a execução ou nas regras de liberdade que a subjectividade dos

alunos se vai construindo num complexo processo de transformações. Evidentemente

que os discursos disciplinares de cada área do saber se foram adaptando ao

conhecimento físico e psíquico do aluno, garantindo uma relação de

governamentalidade. Nos tipos de propostas dirigidas aos educandos, ora se

trabalhavam questões estritamente disciplinares de adestramento da mão, da vista, do

corpo, ora questões de autogoverno, que não eram aliás substancialmente diferentes

das disciplinares. O domínio da criança sobre si mesma, implicava o domínio da

vontade e um poder sobre o seu corpo.

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A sala de aula como laboratório…

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Os trabalhos manuais

327

7.2.O CORPO, A ALMA E O OFÍCIO: OS TRABALHOS MANUAIS

Aulas nas oficinas Aulas nas oficinas

(Arquivo Fotográfico de Lisboa) (A Ilustração Portuguesa de 8 de Abril de 1907)

Deixando de lado muitas das actividades que a escola explorou como forma de se

conectar directamente à alma do aluno, irei analisar de que modo, os trabalhos

propostos aos educandos no campo dos trabalhos manuais, constituíam das

tecnologias mais poderosas na produção de sujeitos alinhados com o modelo

desejado. Aquilo que por meio dos exercícios ou dos trabalhos manuais, procurava

responder à exigência de manter o aluno permanentemente ocupado, não foi tarefa

unicamente dirigida aos alunos da Secção de surdos da Casa Pia. Neste capítulo,

mostrarei que embora o programa para ensino dos alunos surdos contemplasse várias

áreas do saber e a aprendizagem da língua oral e leitura labial ocupassem um espaço

privilegiado para a colonização ouvinte e normalização do surdo, a verdade é que a

educação sensorial, os trabalhos manuais e o desenho tinham uma posição central na

educação destes escolares. Certamente que estas áreas canalizariam o surdo para a

acção e para uma autoconstrução, tornando-o agente activo no processo de

aprendizagem. Deverei desde já advertir os leitores relativamente ao carácter

abrangente em que aqui se considera a área de trabalhos manuais. Não é somente

recorte e colagem, mas toda a panóplia de actividades que exigiam uma participação

activa do fazer pela manualidade. Significa, portanto, que as tarefas propriamente

oficinais (marcenaria, carpintaria, gravura, encadernação, etc.) podem entroncar neste

campo, mas também os trabalhos femininos de corte e de costura e, igualmente, os

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O corpo, a alma e o ofício

328

exercícios de recorte e de colagem, de pequenas construções na sala de aula.

Tenho como ideia organizadora da minha visão sobre o ensino dos surdos –

ocorrido no tempo e no espaço aqui traçados – que, as áreas curriculares do desenho e

dos trabalhos manuais foram verdadeiras tecnologias no processo de normalização do

aluno surdo. Tecnologias produtivas porque potenciaram e implicaram um

envolvimento activo do aluno, no processo de transformação em que estava inserido.

Eram, aliás, constituintes na construção da sua identidade. Permitiam o exercício de

um poder que se fundamentava num saber específico sobre a surdez – consagrando a

experienciação visual do mundo – de um poder que se multiplicava, através de

práticas discursivas, em efeitos sobre as pessoas e as relações entre as pessoas. Os

discursos sobre os trabalhos manuais e a sua integração nos planos curriculares da

escola filiam-se nos princípios da Educação Nova, nos seus ideais de diferenciação de

cada criança, de liberdade e respeito pela sua natureza intrínseca. Já se sabe que as

práticas discursivas ao invés de descreverem, agem sobre a realidade e sobre os

sujeitos a que se dirigem. Ao querer diferenciar, a escola moderna encontrou as

aptidões de cada criança, de que nos falou Claparède, serviu-se dos tests que

identificavam anormais nas salas de aula, para determinar vocações e para apontar

possíveis cenários de adaptação dos indivíduos ao meio. Foram tecnologias que se

construíram como autênticos dispositivos de poder. Segundo as ciências psicológicas,

qualquer manifestação da criança seria passível de ser interpretada, quer dizer, vertida

em discurso. A acção do aluno era reflexo visível, exteriorizado da sua vida interior.

Logo, seria de todo aceitável abordar as produções gráficas, construções, modelações,

enfim, objectos produzidos pelo aluno como expressão directa do seu eu. Agora,

chegar-se-ia à alma pelos caminhos da aptidão. “Depois do desenho”, observava

Palyart Pinto Ferreira, “vem o trabalho manual como melhor elemento de

contribuição ao estudo de conhecimento do psiquismo infantil” (1930b:9, 10). O

professor de trabalhos manuais apresentava exemplos da sua prática enquanto

educador na Casa Pia de Lisboa:

“Todos nós os que temos ensinado trabalho manual, temos notado quão diferente

é de aluno para aluno o segurar na tesoura, o recorte a colagem, o segurar no

canivete, a disposição da mão no corte da madeira, etc. [...] Nós professores

podemos determinar, ou antes distinguir, de um modo rápido, o normal e o

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Os trabalhos manuais

329

anormal” (Ferreira, 1930b: 9,10).

A produção deste saber estava à distância de um olhar enformado por teorias

psicológicas. Era possível antecipar um retrato da criança e da sua conduta, do que

esta teria de imprevisível ou desadequado face à norma, mesmo antes de lhe dar

tempo para se manifestar. Bastava, para tal, uma observação atenta dos seus mínimos

gestos. Mas era também possível um movimento num outro sentido, confirmar a

rotulagem que se fixava ao indivíduo partindo dos seus desempenhos: a partir do

recorte, por exemplo, que era uma actividade vulgar nos trabalhos manuais,

Claparède havia organizado um test, aproveitando o contexto de desenvolvimento da

aprendizagem para confirmar cientificamente a classificação dos escolares. O aluno

estaria permanentemente debaixo de um olho observador e tradutor das suas

capacidades e comportamentos numa linguagem científica e verdadeira. “Fazer seguir

um contorno, ou dentro de uma zona para tal fim traçada ou junto de uma linha ou

figura dada, e observar as mordeduras no traço, na figura, ou saídas da zona; observar

atentamente a maneira por que a tesoura é tomada e se o recorte se faz com a

extremidade das folhas desta, com a parte mediana ou com a mais interna; notar o

esforço para a execução, e os trejeitos da face, da boca, etc., que acompanham, por

vezes, o movimento dos dedos: são curiosíssimas e importantíssimas observações,

atinentes a uma determinação não só das aptidões motrizes mas ainda das

mentalidades que submetemos a este interessante exame” (Ferreira, 1930b: 10). A

avaliação do desempenho seria condicionada pelo tempo e pelas falhas cometidas

pelo educando. “Afinal”, concluía Palyart, “a alma da criança” “estuda-se com a

maior simplicidade e facilidade, devendo acentuar-se que ‘não há questão psicológica

que não possa abordar-se nem estudar-se experimentalmente usando apenas os meios

de que toda a gente dispõe’ como disse Larguier de Bancels e Costa Ferreira

corroborou” (Ferreira, 1930b:9, 10, 11). O professor dominava uma gramática que

lhe proporcionava um saber sobre o aluno que tinha à sua frente. E mais, sobre a

interioridade e a alma do seu educando. Os discursos que tinham o aluno como

objecto, centravam-se e orientavam-se segundo aquilo que se queria que fossem os

seus desejos e necessidades. Neste sentido, ter-se-ia de respeitar a natureza da

criança, não impondo ou inibindo gestos, o que não significava obviamente que não

se criassem as situações em que convinha colocar o aluno em acção. Porque, a partir

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O corpo, a alma e o ofício

330

deste momento, a participação do aluno passa a ser condição necessária ao processo

de construção do saber. Era aliás a linguagem da psicologia, já instalada na escola,

que ditava regras de contacto, o engendramento de formas de aproximação ou de

técnicas de trabalho sobre o sujeito. Se o jogo assumia uma centralidade nova no

dispositivo escolar, já vimos também que as actividades de carácter manual vinham

sendo associadas de forma sistemática, pelo menos desde Froebel, aos impulsos vitais

da criança. Dependendo, portanto, da sua performance gráfica ou construtiva, o

educando via-se colocado numa grelha que lhe associava competências, ausências ou

excessos. O cenário é, evidentemente, propício ao binómio saber-poder, mas também

a um querer pois que, os trabalhos manuais e o desenho surgiam como actividades

que qualquer criança desejava. Desenhava-se então uma topografia apta à inscrição

de coordenadas de disciplina e de liberdade. À produção de uma subjectividade do

aluno surdo, numa dinâmica de representações.

“O trabalho manual escolar entrou, por aqui e por ali, a ser considerado um meio

de representação dos apetites e das actividades interessadas da criança, bem como

um óptimo auxiliar do ensino prático e utilitário. Na escola infantil iniciou-se o

reinado do boneco livre e nas suas superiores o do pequeno instrumento

experimental” (Soares, 1937: 27).

Uma primeira abordagem do trabalho manual de carácter educativo seria

condicente com formas particulares de actividade que tinham como elemento central

o desenvolvimento natural da criança e os seus focos de interesse. A regra interviria

“quando o desenvolvimento da aptidão manual” o solicitasse, mas, sobretudo, no

exacto momento em que “a capacidade psíquica, espiritual da criança” chamasse por

ela (Soares, 1937: 28). Se possível, a regra deveria ser descoberta ou criada pela

própria criança no relacionamento empírico com as matérias. Diz Lígia Penim, na sua

obra sobre as disciplinas de Desenho e Trabalhos Manuais, que os trabalhos manuais

surgiam nos discursos republicanos da educação, transportando um “projecto de

recuperação da escola”. Seriam “‘o instrumento dos instrumentos’ para a educação de

crianças muito jovens”. Como ponto de apoio na defesa da presença dos trabalhos

manuais nos currículos escolares surgia o “prazer lúdico, pois ‘brincando, a criança se

irá educando e instruindo’. Os trabalhos manuais adequar-se-iam às necessidades de

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Os trabalhos manuais

331

construção da criança, na condição de esta ‘ter sempre a impressão da mais inteira

liberdade’, lançando ‘mão de objectos materiais’ para estimular a observação. A

educação ‘disciplina os seus instintos, disciplina todos os seus actos, mas

suavemente, insensível mas despreocupadamente’”(2003: 95).

Era esta a imagem quanto à aula de trabalho manual, publicada em 1908 em O

Occidente, a propósito de uma visita à Real Casa Pia de Lisboa:

“A aula de ensino manual foi a primeira que visitámos. É dela professor o sr.

Tiago Nazareth que todo se tem dedicado ao ensino dos rapazinhos, que

principiam com um simples círculo de papel a formar, por meio de dobras, várias

figuras geométricas, que depois se desenvolvem em motivos decorativos simples

até à formação de sólidos, com prismas, pirâmides, cones, cilindros, etc. Nesta

aula se aplicam ainda os rapazes a produzirem artefactos de arame e de madeira,

com fins já utilitários e em que revelam suas aptidões. De madeira vimos ali feito

um tearzinho completo, invenção de um aluno, e que tecia uma fitinha de

algodão” (Alberto, 1908: 139).

O momento de entrada no internato significa uma transformação completa do

indivíduo. De uma vida desprovida de utilidade e de uma ausência de competências,

estas crianças são conduzidas, passo por passo, a um nível cada vez mais elevado de

utilidade, começando nos recortes e chegando a uma invenção, quanto mais dóceis os

seus corpos se tornam e menos visível é a manifestação do poder disciplinar. Foucault

escreveu que “o poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar

e retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se

apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-

las para multiplicá-las e utilizá-las num todo” (Foucault, 2004: 143). Por isso mesmo

o poder disciplinar é um poder positivo porque produtivo. Os trabalhos manuais, pela

temporalidade e destinação do aluno a uma tarefa com códigos específicos e

repetitivos, engendram um mecanismo de relação do aluno consigo próprio, uma

espécie de entrega de si a si, mergulho na intimidade pessoal do indivíduo que se

sente tanto mais confortável com essa intimidade tão nova para o seu pensamento

quanto mais perfeição, isto é, conformidade aos códigos técnicos, conseguir alcançar.

O resultado é a produção de corpos dóceis, treinados, adestrados, modelados a um

ideal de aluno previamente sabido. A disciplina viveu sempre por baixo, nos

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interstícios dos discursos e das práticas que se diziam, cada vez mais, à medida de

cada aluno. E disciplina foi sempre qualidade ou estado associado à liberdade. Os

discursos da Educação Nova clamavam pela liberdade de expressão, possível pelas

experiências artísticas, pelos trabalhos manuais, por uma aprendizagem ligada à

realidade e em consonância com a natureza física e psicológica da criança. Estes

discursos, longe de romperem com discursos pedagógicos que se diziam tradicionais,

situaram-se na sua continuidade, constituindo um dispositivo de autogoverno dos

alunos. “Afirma-se, e com razão, que a educação não é um adestramento. Mas se é

verdade que a autonomia pessoal é o objectivo final que o educador visa, não é menos

verdade que o condicionamento puro e simples da conduta não pode ser

absolutamente banido. Ele não será um fim, mas um meio” (Planchard, 1982: 130).

Fixando a criança a um estado que lhe era próprio, regulava-se a construção da sua

subjectividade, preparando-a para uma futura inserção no mundo social.

Pois bem, questionava-se Claparède, qual seria o tipo de actividade que

melhor se adequaria ao trabalho em comum, quer dizer, não só à vida em internato,

na classe, mas, igualmente à futura vida em sociedade? A resposta encontrava-a em

Dewey. Afinal, a mesma de tantos outros pedagogos da escola nova:

“C'est évidemment le travail manuel; c'est lui que Dewey voudrait placer au

centre de la vie scolaire, et la plupart des autres enseignements, en endevenant les

auxiliaires, tireraient de cette situation un grand profit pour eux-mêmes, car cela

leur conférerait de ce fait cette valeur fonctionnelle, cette valeur instrumentale

propre à leur donner une signification aux yeux des enfants” (Claparède, 1931 a:

29).A atmosfera da vida em sociedade impregnaria a escola por intermédio dos

trabalhos manuais, permitindo uma “collaboration active des éleves comme sur

un des moyens les plus propres à leur apprendre leur futur rôle

d'hommes”(Claparède, 1931 a: 31).

Adolfo Lima defendia a incorporação dos trabalhos manuais no sistema

educativo, tendo por objectivo “transformar o pensamento em acção”, “desenvolver o

poder da imaginação criadora”, “inventiva e reconstrutiva” (1932: 356). Os trabalhos

manuais surgiam como a disciplina capaz de exprimir de forma concreta as ideias,

conhecimentos e até sentimentos dos alunos. E Faria de Vasconcelos batia-se pela

presença dos trabalhos manuais na escola, adaptados ao crescimento físico e

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mentalidade dos educandos, criando uma oportunidade que fornecia “ às forças

interiores a ocasião e o meio de realizar-se” (1935: 108). Claro que funcionavam em

redor do interesse do aluno, disciplinando-o na viagem até à conquista dos seus

objectivos. Os trabalhos manuais orquestrados como base de todos os outros saberes

escolares davam corpo à ideia de uma educação integral. Tudo isto construído sobre

uma ideia basilar de autoeducação, ou seja, o educando seria o principal colaborador

na sua educação:

“O educador não deve fazer o que o educando pode fazer. [...] O educador deve

provocar no educando o interesse, despertar-lhe a iniciativa, inspirar-lhe a

confiança de si próprio, impulsioná-lo a experimentar e avaliar as suas forças,

habilidades, de modo que crie em cada educando a necessidade de ser activo, de

ser trabalhador, de ser perito. ‘A grande tarefa do mestre consiste, não em falar,

mas em fazer falar’ e em observar, julgar, discorrer, pensar, em fazer trabalhar”

(Lima, 1932: 19, 20).

Ensino centrado na criança, na sua liberdade e iniciativa, mas no qual

interesse e esforço não se excluíam. A lição que Rousseau já havia deixado no ar: sob

a aparência da liberdade, até a vontade se submeteria. Nada mais simples e eficaz do

que partir dos impulsos naturais do aluno, das suas tendências para se expressar e

construir a partir da experiência vivida. Os trabalhos manuais surgiam num

continuum de aprendizagens fundadas no interesse. Em 1912 o jornal A Pátria

publicava um artigo que traçava o perfil do ensino seguido na Casa Pia:

“Desde as aulas infantis, especialmente nas classes de desenho, modelação e

trabalhos manuais, dá-se à fantasia da pequenada e à sua observação a mais

completa liberdade. O sr. Alfredo Soares, ilustre sub-director da Casa Pia, que

amavelmente nos acompanhou na nossa visita, mostrou-nos curiosos exemplares

de modelação em barro e desenhos do natural em que se revelam interessantes

qualidades de imaginação e pitorescos modos de ver. Depois de concluída a

instrução primária, os alunos são distribuídos pelos diversos cursos profissionais

ou vão para o curso comercial, conforme as aptidões que desde as primeiras

classes vêm demonstrando” (Anuário 1913: 143).

Todavia, Palyart Pinto Ferreira, contratado como regente de uma classe de

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trabalhos manuais na Casa Pia pela mesma altura, dizia ter-se deparado com um

método pouco de acordo com os princípios preconizados pela escola nova. Era o

sistema Dela-Voss na sua apropriação francesa. A individualidade da criança e a sua

autonomia – um dos princípios mais marcantes da modernidade – encontravam-se

abafados por um servilismo apoiado apenas na técnica. O ensino dos trabalhos

manuais só se tornaria proveitoso se, baseando-se na vida prática e experiências do

aluno, as pudesse incorporar e aplicar-se numa espécie de circularidade produtiva,

novamente à vida da criança – escolar, familiar, social. Era assim que Palyart traçava

a imagem do que na sua opinião deveria enquadrar a prática dos trabalhos manuais na

escola e, essencialmente, da sua extrema importância na educação dos anormais:

“O trabalho manual, como pelo menos deve ser hoje compreendido, tende ao

desenvolvimento das operações psíquicas, por meio dos exercícios sensoriais. Ele

não é, actualmente, só para educar a vista, a mão, etc., mas o excitante por

excelência das faculdades intelectuais, e tanto assim que na educação dos

anormais desempenha um papel importantíssimo” (Ferreira, 1915: 526).

Esta é, aliás, uma ideia muito comum nesta tribo de autores que defendem

uma escola activa. O método de Maria Montessori, tal como as ideias de Dewey ou

de Ferrière, encontram na Casa Pia um reconhecido acolhimento, pelo menos, ao

nível da prática dos trabalhos manuais e do desenho. É certo que, em Portugal, não

existiu nenhuma escola-modelo que seguisse inteiramente a forma de praticar o

ensino e a aprendizagem, tal qual Adolphe Ferrière prescrevia nos trinta pontos que

caracterizavam a Escola Nova. Contudo, em 1927, discursando no Congresso de

Locarno da Liga Internacional Pró-Educação Nova, Álvaro Viana de Lemos,

apontava 13 instituições portuguesas próximas das ideias da Educação Nova. Entre

elas tem lugar a Casa Pia de Lisboa (Nóvoa, 1995: 34, 35).

Palyart defendia que tal como “papel e lápis” não bastariam “para o desenho”,

também não eram “madeira, papel, cartão, tesoura” que bastariam aos trabalhos

manuais. É a eterna questão de que não é a cola que faz a colagem. Reclamava pela

moderna pedagogia aplicada aos trabalhos manuais, aquela que repousando sobre o

“princípio froebeliano”, da educação pela acção, possuía um modelo capaz de

“despertar um interesse máximo no aluno, originando o esforço voluntário, e pondo

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em trabalho todas as suas faculdades”. Ora, o método que mais se adequaria a estes

princípios era o método sueco, o slojd. Esta prática que quer dizer trabalho manual

caseiro, teve as suas origens nas ocupações que reuniam as famílias nas grandes

noites de Inverno dos países do Norte. Inicialmente os trabalhos “eram muito

simplesmente a decoração dos móveis, a prática da planiscultura” (1914 a: 312). Terá

sido modificado por Otto Salomão que o aplicou na escola de Naas e o transformou

num sistema definido capaz de despertar o interesse do aluno. Investia-se na

estimulação da criança, na expressão do seu eu interior, numa acção educativa

voltada para a orientação individual. Os benefícios do método seriam inúmeros, para

lá da destreza manual ou da autonomia do aluno. O slojd permitia uma total emersão

do consciente no inconsciente do aluno através da acção, desenvolvia “o espírito de

observação e precisão, criando os chamados reflexos inconscientes”, contribuía para a

cultura estética do educando porque “os acabamentos” “têm uma grande importância

no sistema”. Dizia Palyart que “‘o nosso prazer provém de que constatamos no

objecto uma qualidade, isto é, um certo grau de perfeição’” (Ferreira, 1914 a: 313,

314). O segredo estava, como se vê, em saber encontrar o que decerto iria de encontro

ao interesse do aluno, despoletando um esforço voluntário. Pelo discurso de Pinto

Ferreira facilmente se percebe um conjunto de características que, na prática,

constituíam matéria para a construção da subjectividade do aluno. A liberdade

resultante do respeito pelo interesse da criança era bem regulada o que não

significava, obviamente, uma neutralização de forças, mas antes uma activação. Os

movimentos concentravam-se em torno de um autogoverno, estabeleciam-se como

quase sinónimos uma perfeição e domínio técnicos com um aperfeiçoamento do self

por um domínio de si. Quantos aos princípios do método, sintetizava-os da seguinte

forma o professor da Casa Pia:

“O trabalho manual deve ser ministrado por um professor, e nunca por um

operário. O ensino deve ser sistematicamente progressivo, por meio de

exercícios, indo dos mais fáceis para os mais difíceis, e tanto quanto possível

individual. - Os exercícios devem ser objectos simples, mas atraentes, cuja

aplicação e utilidade sejam facilmente compreendidas pelo aluno. - Qualquer

trabalho concluído deve ser resultante do esforço do aluno e só dele” (Ferreira

1914 a: 315).

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336

Palyart falava a linguagem da pedagogia nova: individualidade da criança,

respeito pelas suas características, conhecimento profundo de cada fase de

desenvolvimento, premonição dos seus interesses. O espaço em que decorriam as

lições deveria ser apropriado e agradável aos que aí se movimentavam. A sala onde

este educador da Casa Pia regia a sua classe de anormais tinha mesas e bancos, sendo

cada uma das mesas para “quatro ou cinco bancos e cada banco para um aluno”.

Numa das paredes, um grande armário “onde os próprios alunos guardam o material

escolar dos jogos, trabalhos manuais, etc.”. À volta, inúmeras prateleiras “sobre as

quais aparecem objectos de uso comum, todos com o seu rótulo móvel, que servem

para as lições de coisas, para o desenho, para a leitura”. Junto à janela, “um piano

harmonium, floreiras com vasos em vários pontos, e jarras com flores nas mesas e nas

prateleiras”. As paredes, que de início estavam nuas, a pouco e pouco foram sendo

ornamentadas “pelos trabalhos dos próprios alunos, com pequenos motivos

decorativos em cartão ou em papel recortado”. Era esta uma sala em que tanto o

professor quanto o aluno se sentiam “bem” (Ferreira, 1917: 292,293). A sala de aula

começava a tornar-se um verdadeiro laboratório de experimentação. A orientação do

ensino defendida por Palyart encontrava nos trabalhos manuais ponto de apoio. O

trabalho manual para a educação dos sentidos, no ensino da leitura e da escrita, nas

lições de coisas, nos exercícios de observação, no desenvolvimento da atenção, da

imaginação e como meio para disciplinar a criança. Todos estes exercícios seriam

agradáveis à criança se executados com os tempos e intensidades adaptadas.

No prefácio à obra de Faria de Vasconcelos, Une école nouvelle en Bélgique

(1915), Adolphe Ferrière, publicou os 30 princípios que deveriam caracterizar uma

escola nova. A análise destes princípios, permite retirar o modelo de aluno que a

modernidade pretende construir: autónomo e responsável. Estes 30 princípios são

também a ilustração do que deveria acontecer para se passar das teorias pedagógicas à

prática.

Nos dois primeiros pontos dizia-se que, a escola nova seria uma espécie de

“laboratório de pedagogia prática”. O seu papel era de explorar e manter-se atenta à

“corrente da psicologia moderna”. Só desta forma, se poderia conhecer em

profundidade a criança e ajudá-la no desenvolvimento das suas aptidões. O melhor

modelo para a construção de um saber sobre o aluno, não é novidade, seria o de

“internato”. Apesar da influência da família ser dita como “sã”, a verdade é que,

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Os trabalhos manuais

337

vivendo e crescendo num mesmo local, a criança estaria permanentemente sob a

vigilância de experts, ávidos por conhecer as suas inclinações naturais e, a salvo,

também, de influências nefastas ao seu pleno desenvolvimento (Gomes, 1996: 201).

O sexto e sétimo princípios da proposta de Ferrière eram exclusivamente

dedicados aos trabalhos manuais. No ponto seis, informava o pedagogo que, na

escola nova, os trabalhos manuais eram para “todos os alunos”, durante, pelo menos,

“ hora e meia por dia, em geral das 2 às 4 horas”. No núcleo destas actividades,

obrigatórias, deveria contemplar-se “um objectivo profissional” com o fim de “

utilidade individual ou colectiva”. Afinal, a ideia de aluno autónomo e livre, não se

desligava do princípio da disciplina e responsabilidade individuais, entrando em

consonância com aquilo que os discursos do século XIX, vinham propondo da

educação ao serviço da formação do cidadão útil à nação. E, entre todas as

possibilidades de desenvolvimento manual, “a marcenaria” - praticada na Casa Pia –

era aquela que merecia figurar no topo da lista, pois desenvolvia não só a “ habilidade

e a firmeza manuais”, como, também, potenciava um “sentido da observação exacta”.

Todavia, este ofício parecia oferecer muito mais à criança: a “ sinceridade e o

domínio de si” (Gomes, 1996: 201-204).

Os trabalhos manuais, no caso das crianças surdas, eram uma tecnologia que

potenciava o saber que o professor poderia construir sobre o aluno. Se a

aprendizagem da técnica assumia a sua importância na disciplinarização dos corpos, o

trabalho de temas livres era uma porta de acesso à alma do educando. Por isso,

reclamava igualmente este pedagogo que, lado a lado com os trabalhos

regulamentados, haveria cabimento para os trabalhos ditos “livres” que,

desenvolviam “os gostos da criança”, despertavam “o seu espírito inventivo e o seu

engenho” (Gomes, 1996: 201-204). Temas e técnicas, eram traçados num currículo

cuja função principal seria a construção moral e subjectiva do aluno, de acordo com

um modelo que o mestre (pré-) sabia. A autonomia e a responsabilidade do aluno

jogavam-se de forma perfeita nos trabalhos manuais, desenhando-se em pequena

escala, um laboratório do que poderia acontecer fora da instituição, de modo que,

quando o aluno surdo fosse devolvido à sociedade, a pudesse servir, a bem da nação.

Os trabalhos manuais deveriam detectar as aptidões e vocações dos alunos, trabalhá-

las, no caso dos alunos surdos, num sentido de dotar o aluno de um ofício. A esta

vertente se dava o nome de trabalhos manuais aplicados porque consistiam,

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O corpo, a alma e o ofício

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precisamente, na “aplicação dos conhecimentos adquiridos e do desenvolvimento

sensorial”, conseguidos numa fase anterior mais metódica. “Os trabalhos de

aplicação” seriam “a transição do trabalho de classe para o trabalho caseiro, para as

necessidades da vida, inclusivamente para a oficina”. Seria o início, nas palavras de

Pinto Ferreira, de uma “valorização do braço e do cérebro” (Ferreira, 1914a: 530). No

interior desta vertente, desenvolveu-se na Casa Pia a técnica fotográfica e a

encadernação.

Eram inúmeras as vantagens apontadas para a presença dos trabalhos manuais

no elenco das outras disciplinas. A este propósito vale a pena ouvir o que tinha a

dizer Adolfo Lima:

“Criam hábitos de asseio, de limpeza das mãos, do fato, do mobiliário.

Educam a mão, tornando-a hábil ferramenta de imaginação criadora da

criança. Educam todos os orgãos das sensações, tornando-os afinados,

apurados, de grande susceptibilidade e fieis criadores de percepções

verdadeiras. Criam e desenvolvem a imaginação criadora, inventiva e

construtora pela grande variedade de actividades que estimulam e de

obras que podem ser realizadas, como, por exemplo com os trabalhos de

papel e cartonagem. Educam o gosto artístico ou o senso estético, ‘pelas

formas belas e perfeitas, pela decoração e pelo bem matizado e harmonia

das cores, das linhas, das figuras, etc.’. Criam e educam o gosto pela

perfeição, pela precisão e bom acabamento na execução dos trabalhos.

‘Satisfazem e cultivam a tendência da criança para a acção: alimentam

esta tendência e orientam-no para o que é belo e útil’(Roberto Seidel).

‘Despertam um interesse vivíssimo, assim como o prazer pelo trabalho e

pelos frutos do trabalho; levam deste modo a criança a satisfazer, pelo seu

esforço próprio, esse interesse e esse prazer’ [...] Moralizam, porquanto

evitam todos os vícios que nascem da ociosidade ou desocupação” (1932:

357, 358).

Ora, face a estas palavras só nos cabe afirmar o papel que os trabalhos

manuais teriam no governo dos alunos. Seriam uma técnica que permitia à escola ir

de encontro aos desejos do aluno, à sua interioridade, calculando de antemão a

produção de subjectividades. Ao educador competia dar, promover ou sugerir ao

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Os trabalhos manuais

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aluno uma proposta de trabalho que considerasse corresponder à individualidade do

mesmo. O professor reconheceria o aluno antes mesmo de este se conhecer a si

próprio e por isso se poderia exercer um poder que teria em conta os elementos que

preexistem no íntimo do educando. O verdadeiro trabalho projectava-se de dentro

para fora, dando oportunidade à livre expressão criadora do aluno. Todavia, cabia ao

professor garantir aprendizagens, controlar o grau de dificuldade dos exercícios, indo

do simples para o mais complexo, usar de uma certa disciplina na organização das

actividades. “Umas vezes” seria dado o “tema” e a forma seria livre, “de modo que”

havia “um princípio determinado a observar”. A criança não se afastaria do elemento

prescrito, mas não se deveria também esquecer de uma “parte secundária”, “não de

menos importância”, que trataria “consoante a sua vontade”. Outras vezes seriam

fornecidos ambos os elementos, de forma a exigir-se “precisão na execução”. Uma

terceira variação consistia em tema e forma livres “dependendo exclusivamente do

aluno” (Ferreira, 1915: 527). Há, portanto, elementos que indiciam uma forte

presença disciplinar sob a forma de princípios adestrantes da mão e do pensamento,

do corpo e dos sentidos. Mas também de uma liberdade obrigatória, levando a criança

a exprimir-se, a falar de si, a produzir sobre si um discurso, uma confissão contínua

que parte do interior e se manifesta na realização de objectos, de construções, etc. A

desenvolver um sentido de autogoverno.

O governo dos alunos no espaço das disciplinas manuais viveu da prescrição

de um vasto conjunto de regulações (observar, comparar, ser exacto e rigoroso),

balanceado por uma outra série não menos reguladora (imaginar, expressar-se

livremente, ser criativo). O governo dos alunos filiava-se por completo na

necessidade de um autogoverno:

“A criança precisa, quer, exige, por lhe ser indispensável à sua compreensão,

mexer nas coisas, modificá-las, alterar-lhes a forma, desviar-lhes a finalidade,

fazer, fabricar coisas, criar coisas!” (Lima, 1932: 95). Era nesta dinâmica de uma

compreensão tendo por base o aluno como autor e receptáculo do conhecimento,

que se fundamentava a base de uma autoeducação.

As práticas encontravam justificação nas necessidades internas do sujeito que,

no caso dos alunos surdos, seriam igualmente necessidades de futura integração

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O corpo, a alma e o ofício

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social. Nesta fase, parece-me consensual afirmar que só se poderia exigir dos alunos

uma conduta autoregulada, de acordo com comportamentos padrão, se se pudesse

influenciar essa conduta. Agir sobre o educando revelava-se produtivo e eficaz

apenas e só se se considerasse a natureza da criança, os seus desejos que, não por

acaso seriam coincidentes com os que a instituição previra. Acções sobre acções de

que as actividades propostas, como os trabalhos manuais, não se ausentam. Tomaz

Tadeu da Silva defende a ideia de que “o currículo” não é apenas constituído de

“‘fazer coisas’”, ele também se instala nas práticas, “‘fazendo coisas às pessoas’”. “O

currículo tem de ser visto em suas acções (aquilo que fazemos) e em seus efeitos (o

que ele nos faz). Nós fazemos o currículo e ele nos faz. O currículo é, pois, uma

actividade produtiva nesses dois sentidos” (Silva, 1995: 194). No processo de

transformação das coisas, também o aluno estaria sendo transformado.

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O desenho

341

7.3.O DESENHO

Exercício de desenho – Inícios do século XX

(Arquivo Fotográfico de Lisboa)

“ Que os alunos contornem um objecto, e saibam

manejar uma régua, um esquadro, um compasso e

um lápis, riscando mapas, contas correntes, etc.,

etc.; que saibam praticar os mais elementares

problemas de desenho linear, sobre ângulos, linhas,

polígonos, etc., é a quanto se reduz na escola

primária o desenho linear ”

(Raposo, 1869: 166).

Mas a ligação das disciplinas à vida não se esgotava nos trabalhos manuais. O

desenho desempenhou desde os inícios da Casa Pia um elemento fundamental. Em

1818 era criada uma aula de Desenho e Arquitectura e antes, se havia já iniciado uma

outra aula de desenho que “passou a ser denominada academia do nu”. Como o

próprio nome indica, nessa aula exercitava-se a mão com base em “modelos vivos”

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A sala de aula como laboratório…

342

e, o que a partir de finais de novecentos, se tornou prática corrente nas Escolas de

Belas-Artes, à época terá constituído “uma inovação de tal modo arrojada” que era

aventurança apenas para Pina Manique. A esta lição de observação e de prática

acorriam – como, de resto, foi comum até à década de 60 do século XIX – muitos

estudantes exteriores ao internato. Ter-se-á por esta altura iniciado um estudo mais

“racional do desenho e da pintura” (Silva, 1896: 19, 20). Joaquim Machado de

Castro, no seu Discurso sobre as utilidades do desenho, dava conta da necessidade

que em Portugal se fazia sentir da prática do ensino do desenho e, louvando a figura

de Pina Manique, anunciava a criação da dita aula a partir do natural:

“Conhecendo os proveitos deste exercício, seguiu-se afeiçoar-se dele; e sabendo

que Portugal, entre as potências civilizadas era a que unicamente carecia de uma

aula onde se desenhasse pela natureza nua, se deliberou a fundar uma sociedade

para este fim; e teve o zelo de ir pessoalmente buscar os artistas que julgou

poderiam regular estes estudos, e convidá-los para directores. Não parou aqui o

seu desvelo: enquanto se preparava casa para este congresso, sacrificou a sua

própria residência a ser o primeiro seminário deste estudo. [...] Enquanto na sua

casa se fizeram estes exercícios, ele mesmo assistiu todas as noites, tratando, e

brindando os aplicados com afabilidade, e familiaridade não vulgar em pessoas

de seu carácter” (1787: 9, 10).

Neste mesmo discurso, lido a 24 de Dezembro de 1787, na Casa Pia do

Castelo de S. Jorge, Machado de Castro apontava as inúmeras virtudes do desenho e

das possibilidades desta arte no estudo das outras ciências. Fundava-se uma

justificativa para a presença do desenho em qualquer tipo de ensino ou ramo

científico. O escultor da Casa Real esboçava uma imagem:

“A experiência tem mostrado, a meditação tem desenvolvido as utilidades que

destes estudos resultam ao civil, até mesmo no económico. Para mostrar pois com

individuação estas utilidades, permita-se-me uma paridade, que verse em geral

neste discurso, comparando o desenho a uma frondosa árvore, cujos vigorosos

ramos, viçosas folhas, e falutiferos frutos, se espalham em benefício de todas as

ciências, e artes”. “Das instruções desta faculdade, absolutamente depende o

conhecer da configuração, e beleza de todos os corpos; e ainda de muitas coisas

puramente espirituais, ou intelectuais, quando estas se querem expor aos sentidos

em imagens sensíveis”. “Na matemática estende o desenho um dos seus ramos,

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O desenho

343

onde tem não pequena parte; pois que a geometria, a óptica, a perspectiva, e

outras com figuras delineadas se aprendem e se praticam. E se com esta ciência

sublime tem tanta união, quem lhe poderá negar com a física, e história natural?

Considerando a individual aplicação que fazem tão formosas irmãs, sobre

objectos, que a imitação do desenho mais facilmente familiariza; e sem cujo

socorro se não poderiam conhecer, nem estudar-lhes os seus predicados sem um

descómodo inexplicável?” (Castro, 1787: 25, 26).

E o seu discurso continuava pelas outras ciências: medicina, geografia e até

jurisprudência. Estavam ditas as palavras que mais de um século depois seriam

repetidas sob outras formas, para explicar a importância do desenho numa educação

integral do indivíduo. Na década de vinte do século XX, Pedro Guedes, professor de

desenho na Casa Pia, citando outro autor dizia que “‘il y a des gens qui écrivent bien

et d'autres qui écrivent mal, mais il faut que tout le monde écrive. En bien il faut aussi

que toute le monde dessine’”(1921: 393). O mesmo Pedro Guedes afirmava com

convicção que “o desenho, “é a escrita da forma”, “meio de expressão por excelência,

útil em todas as artes e profissões” (1928:6). À discussão sobre a importância do

desenho juntou-se também outro professor da Casa Pia, Palyart Pinto Ferreira. A voz

deste era de lamento face ao lugar que o desenho ia ocupando em pleno século XX,

nos currículos escolares. Surgia “considerado como mero acidente”, como “disciplina

secundária, quando muito mediocremente subsidiária”. Era portanto muito frequente

encontrar quem saísse “das universidades não sabendo pegar num lápis”. Haveria até,

“mercê do mau ensino, uma certa vaidade em não saber desenhar, um certo snobismo

da incompetência neste ramo” (Ferreira, 1920: 341).

No ano de 1885, o Director de estudos da Casa Pia de Lisboa, Simões Raposo,

dirigia ao Provedor um relatório dando conta do desenvolvimento das práticas de

ensino na Instituição. Um dos pontos que considerou interessante chamar a atenção

foi precisamente relativo ao ensino do desenho. Dizia assim:

“‘Noto apenas, que logo na 1ª cadeira não se comecem a ensinar às crianças os

primeiros e rudimentares elementos do desenho, que nos países mais adiantados e

cultos se aprendem conjuntamente com o abecedário’” (Almeida, 1886: 49).

Para colmatar esta grave falta propunha “que o estudo do desenho” fosse

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A sala de aula como laboratório…

344

“dividido em 3 grupos: preparativo, industrial elementar e aplicado”. O primeiro

estudar-se-ia na 1ª e 2ª cadeiras, o segundo na 3ª, 4ª e 5ª cadeiras e o terceiro na 6ª

cadeira. Desta nova organização do plano de estudos resultariam pelos menos duas

vantagens. Quando os alunos passassem a frequentar a aula de desenho elementar, já

teriam pelo menos dois anos de “alguma firmeza de vista e de mão”, sendo por isso

“notável o seu adiantamento”. A segunda vantagem era que de “futuro nenhum

aluno” sairia da Casa Pia “inteiramente estranho a esta disciplina, que lhes é tão útil

nas artes e ofícios a que se destinem” (Almeida, 1886: 68, 70).

Todavia, sempre os alunos surdos tiveram nos seus currículos na Casa Pia de

Lisboa, a disciplina de desenho. Num quadro de distribuição dos alunos pelas

diferentes aulas e oficinas referente a 1839, encontra-se em frequência de aulas de

desenho, dezasseis alunos internos da Casa Pia e 15 alunas orfãs. No primeiro grupo,

dos dezasseis, cinco seriam surdos. No segundo, eram quatro as meninas surdas

entregues à prática de desenhar. O desenho era “um dos ramos profissionais a que de

preferência se dedicavam os surdos-mudos na Casa Pia” (Silva, 1896: 119, 123). Esta

era, aliás, uma imagem padrão das ocupações para que tendia o aluno surdo. Num

compêndio para o ensino dos surdos-mudos, dado à estampa em 1881 no Rio de

Janeiro, pode ler-se que uma disposição particular que notabilizava o surdo era a sua

inclinação “em imitar tudo” o que visse “fazer”. Além da emulação, os surdos

distinguiam-se mais do que os ouvintes “nos trabalhos” que dependessem “da vista”.

Era assim, por exemplo, que aprendiam “com facilidade a traçar todas as espécies de

caracteres e a desenhar” (Leite, 1881: 6).

O saber que se ia constituindo sobre o aluno surdo espelhava-se nos discursos

da pedagogia, considerando-se então que estes alunos, estando privados do ouvir e

vivendo essencialmente pela visão, seriam mais facilmente governados a partir de um

treino intenso do sentido visual. A utilização do desenho permitiria ao aluno

evidenciar um sentido das coisas a partir do reconhecimento sensível que delas teria.

Desenhava o que compreendia pela observação atenta de objectos. O desenho como

forma de apreensão da realidade e compreensão dos objectos ou fenómenos não era,

obviamente, uma novidade. Antes do aparecimento da fotografia, já Leonardo da

Vinci demonstrava a importância da fabricação da imagem para o desenvolvimento

do pensamento: para saber era preciso ver, sendo que desenhar sem saber ou saber

sem ver eram estados infrutíferos. Aprender a observar para captar a verdade dos

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objectos continha em si múltiplas potencialidades disciplinares. Os discursos de

governo dos indivíduos encontraram, no elenco de disciplinas de carácter manual e

artístico, um vasto conjunto de possibilidades de regulação adestrante, mas

simultaneamente a possibilidade de um campo de liberdade também ela regulada. Tal

como o campo dos trabalhos manuais, também o de desenho se constituía como

instrumento de um poder que antecipava a autoconstrução do aluno. Para além de que

o desenho funcionava como instrumento de interpretação da criança. Palyart

afirmava veementemente que “o desenho” era, “sem dúvida”, “a forma mais simples

e talvez mais segura de investigar a mentalidade infantil”. E não só “a forma de o

fazer”, mas “a maneira de segurar no lápis, o desenvolvimento do traço, o

acabamento do próprio desenho”. Era evidente que nem todas as crianças segurariam

no lápis de igual modo. “Umas tomam-no muito levemente, com as extremidades dos

dedos; outras seguram-no simplesmente entre o meio do indicador todo dobrado e a

parte mais interna do polegar, apertando-o violentamente; algumas entre o médio e o

indicador, repousando a parte superior do lápis na ligação do indicador com o

polegar”. Ora, havia que interpretar estas formas divergentes de relação do eu da

criança com o material riscador. O lápis não era um qualquer objecto, com o qual a

forma de pegar não tivesse qualquer influência: um lápis produz um efeito sobre a

superfície em que desliza, logo, apercebendo-se da intervenção provocada sobre uma

superfície, a criança decerto insuflaria de vontades o seu gesto. “O traço seguido, o

traço falhado, o traço tremido são indícios de normalidade ou anormalidade, são

seguras determinantes de mentalidades e aptidões”. O desenho assumia portanto um

papel importante como fonte de investigação para o médico e educador. Não seria,

então, também o desenho “um meio de avaliar” a “vontade” do aluno, fosse normal

ou anormal, “o seu poder de querer, de volição? ‘Querer é escolher para agir’, como

diz Ribot: quando a impulsão falta (caso dos apáticos) nenhuma tendência a agir se

produz; quando a impulsão é muito rápida ou intensa (caso dos instáveis, dos

excitados), a escolha, por impedimento, não se realiza: - e em qualquer dos casos é o

desenho incompleto, com os elementos mal dispostos, braços mal implantados, pés

virados para o mesmo lado com o boneco de frente, falta de boca, nariz, braços, etc.”.

(Ferreira, 1930b:8, 9). O desenho livre deveria ser cultivado principalmente junto dos

mais novos, desenvolvendo as faculdades de imaginação e sendo material útil de

observação do professor.

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Por certo o desenho se enquadrava no princípio que Maria Montessori

defendia de um sistema educativo “filosófico-físico-psíquico, tendo por objecto o

corpo, o espírito e o coração da criança, a quem se pretende preparar para uma

autoeducação que vise o quádruplo ponto de vista físico, intelectual, social e moral”

(Rosa y Alberty, 1917: 313). E a disciplina de desenho caminharia próximo do

interesse do aluno surdo, configurando-se como uma tecnologia útil do ponto de vista

da vinculação e adesão voluntária da criança à actividade escolar, como também

enquanto estratégia utilizada pelo professor noutros domínios:

“Os alunos mostram logo grande interesse por um desenho bem acabado e não só

procuram reproduzi-lo, mas ainda se exercitam a fazer outros”. Como elementos

bem programados de uma máquina de fazer. Aproveitasse-se este ensejo natural

do aluno como auxiliar na sua educação. O recurso ao desenho era prática

constante entre os professores de surdos “não só para lembrar um objecto ou

facto ausentes do alcance da vista, mas ainda para dar noção exacta de uma acção

ou de uma série de acções, de cenas complicadas” (Fusillier, 1893 397).

Se o aluno se esquecesse do significado de ilha, paisagem, ou qualquer outro

conceito, em vez de “longos períodos explicativos” o professor executaria “a traços

largos na pedra ou no caderno” o desenho respectivo. Progredindo cada vez mais na

assimilação da realidade, o próprio aluno poderia “recapitular sumariamente pelo

desenho um facto, ou uma série de factos estudados na aula”. Além do auxílio no

estudo, “o desenho tem ainda para o surdo-mudo uma importância não menor”:

“proporciona-lhe distracções muito agradáveis e assegura-lhe um futuro certo

preparando-o vantajosamente para a pintura, a escultura e a gravura”, artes que de

resto “os surdos-mudos ilustraram e ilustram brilhantemente” (Fusillier, 1893: 398).

As vantagens da cadeira de desenho eram evidentes do ponto de vista

profissional e, claro está, contribuiriam para o desenvolvimento da sensibilidade e do

intelecto do educando. No cerne dos objectivos da disciplina, marcaria sempre

presença o desenvolvimento de um habitus de observação, de vinculação a uma tarefa

e de superação constante das dificuldades de representação por um empenhamento

ainda maior do aluno. De facto, não se pode negar o proveito que o restante elenco de

disciplinas poderia grangear com o trabalho que o educando dispendia na cadeira de

desenho. No artigo número nove das Instruções Escolares da Real Casa Pia de

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Lisboa, de 1869, aparece de forma explícita que “ os Srs. Professores ” desta Casa

deveriam “ compenetrar-se bem de que os alunos ”, “ destinados pela maior parte às

artes e ofícios ”, precisavam “ duma instrução real e não aparatosa ”. Mais se dizia:

“ que o fim exclusivo do ensino neste estabelecimento ” deveria ser “ mais praticar

que definir – mais compreender que decorar ” (Raposo, 1869: 28, 29). Poucos anos

antes, o grande reformador da Casa Pia, José Maria Eugénio de Almeida,

compreendia o desenho num contexto prático “‘mas congruente com as aplicações

que deve ter nas futuras aplicações dos alunos’”. A educação literária, defendia-a

“‘tão extensa e perfeita’”, quanto fosse possível. Uma educação primária seria o

“‘melhor meio de educar’” “‘mancebos, que tenham aptidão e préstimo para todas as

carreiras laboriosas e modestas, que possam aceitar sem desdém, logo que” da Casa

Pia saíssem. Deveriam ser “cidadãos prestantes nas artes, ofícios e indústria,

regenerando pelo seu exemplo a sociedade, engrandecendo-se a si, e dando honrosa

memória à casa, que lhes servira de amparo” (Almeida, 1886: 54). Desviar o ensino

da Casa Pia de uma vertente prática e que possibilitava aos alunos uma preparação de

base para diversas artes e indústrias, “pretender engendrar doutores […] em lugar de

operários distintos e famosos”, gastar somas avultadas para o proveito de muito

poucos, seria “falsear a natureza desta benéfica instituição, e preparar um futuro

infeliz àqueles, a quem na melhor intenção se desejava proteger” (Almeida, 1886:

62).

Na Casa Pia de Lisboa podemos perceber diferentes posicionamentos

relativamente à prática do desenho durante o século XIX e primeira metade do século

XX. Todavia, não me parece que existam grandes rupturas, apenas transformações

que no seu âmago transportam as mesmas tópicas: o governo e o autogoverno dos

alunos, um adestramento da mão e do olho por um domínio de uma vontade interior,

uma autoconstrução do conhecimento. Visitaremos de seguida alguns processos de

fazer o gesto de debuxar.

O professor começaria por traçar “ linhas rectas no quadro preto ” e a classe

teria de lhe copiar o gesto nas ardósias pessoais. Este exercício seria reproduzido até

que nos traços dos meninos não se notasse hesitação alguma. A assertividade da linha

e a execução “ regular ” ditariam a passagem à aplicação prática. Já se vê, que o que

estava em causa era a incorporação inconsciente de uma vontade de superação

individual. A tarefa mimética do aluno em relação ao mestre fazia o pequeno pupilo

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aplicar-se afincadamente, pois os resultados obtidos, mais do que fruto do génio

artístico, eram-no do trabalho de concentração em face do modelo. Todavia, não

julgue o leitor ou a leitora, que o aluno concentrado na matéria de observação,

haveria desde cedo conseguir desenhar qualquer objecto. A graduação e

complexidade dos exercícios, de acordo com o que as ciências psicológicas viriam a

afirmar veementemente em inícios de 1900, teria de se adaptar ao desenvolvimento

mental dos educandos. Da classe, é claro, mas também de cada um, individualmente.

A jornada iniciava-se do fácil para o difícil, do mais simples para o mais complexo,

das formas conhecidas para formas novas. Era evidente que se “ todos os caminhos ”

iriam “ dar a Roma ”, o mais curto, porém, era só um: “do fácil para o difícil ”

(Raposo, 1869: 165). Anunciava-se aqui uma preocupação crescente com um ensino

individualizado, que tomava a criança na sua identidade individual, com

características, desenvolvimento e capacidades diferentes das restantes crianças da

classe.

O pedagogo José Miguel de Abreu, no manual de Exercícios de desenho

segundo os programas de 18 de Outubro de 1902, propunha para o 1º grau e 1ª classe

um programa da seguinte forma organizado: “cópia nas ardósias, quadriculadas ou

ponteadas, ou em papel a lápis comum, dos exemplares formados por linhas rectas

em diferentes posições, horizontais, verticais, oblíquas, cruzadas em diagonal, etc.

Exercícios caligráficos”. Igualmente para o 1º grau, mas agora para a 2ª classe

desenvolvia-se assim o programa: “Os mesmos exercícios da 1ª classe, com relação a

desenhos formados pela combinação de linhas rectas e curvas ou só de linhas curvas.

Cópia de estampas representando objectos de uso comum. Exercícios de caligrafia”

(1903:4).

Em 1873, o ensino do Desenho industrial na Casa Pia de Lisboa organizava-se

em três anos. O programa do 1º ano compreendia “ problemas geométricos e de

curvas ” e a sua exploração na aplicação prática. Estas construções poderiam originar

“ balaustres, balaustradas, mosaicos, molduras simples ” ou “ compostas ”,

representações enquadradas na “ ordem toscana ”, projectos para o espaço “ entre

colunas ”, “ pórticos, ornatos ” ou “ contornos ”. O 2º ano deveria acontecer como

aprofundamento do primeiro. Desenhos de elementos de acordo com a “ ordem

dórica ”, espaços “ entre colunas ”, “ pórticos, projecções, intersecções, perspectiva,

hélice ”, “ portas interiores ” e porta Batarda ”, “ janela de volta ”, “ madeiramentos

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O desenho

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de diferentes géneros ” e aguadas quer nas “ molduras compostas ”, quer nos

“ entablamentos da ordem Toscana ”. No último ano, exigia-se que o aluno aplicasse

o desenho industrial à “ cinemática ” e que se dedicasse ao estudo das engrenagens

com “ haste dentada ”, “ de duas rodas ”, “ interior ”, “ cónica ” e às “ engrenagens de

uma roda e de um parafuso sem fim ”. O conteúdo curricular abrangia ainda o saber

dos “ orgãos principais de uma máquina de vapor ”, a observação e representação

gráfica de elementos diversos: “ roldana, cone de transmissão, manivelas, excêntrico,

biellas, pendulo, junção das chapas de ferro (tole), cavilhas de diferentes tipos ” e

“ chumaceiras ”. A representação de sombras produzidas por diversos sólidos, era um

exercício comum e que ajudaria o aluno no momento de observação de outros

modelos. Do terceiro ano, o educando não deveria sair sem experimentar a realização

de uma “ aguada sobre um parafuso de rosca quadrada ” e sobre “ uma roldana com

moufle ”, sem perceber o que era uma “ bomba de esgoto ”, “ uma máquina

locomotiva ” ou a “ junção de um locomóvel com um moinho portátil ”. As lições

incorporavam, portanto, uma componente prática de aplicação directa em futuros

ofícios. A verdade é que, um programa com a especificidade do que era apresentado,

contava com arranjos temporais e físicos devidamente organizados. De outra forma,

não seria possível formar os “ hábeis desenhadores ” que saíam da instituição (Neves,

1873: 10, 11, 12, 17).

O programa de ensino de desenho industrial da Casa Pia de Lisboa de 1886

compreendia, para o primeiro ano, desenho à vista e conhecimento geral das figuras e

sólidos geométricos. No desenho à vista era considerada a representação “a simples

contorno” de “sólidos geométricos pelo gesso”. Também a partir de modelos de

gesso, o “ornato” com “indicação de sombra” e “objectos de uso comum”. O segundo

ponto do programa desenvolvia-se tendo por base “lições orais e desenho gráfico

sobre linhas, ângulos, triângulos, quadriláteros, polígonos, círculo e circunferência,

óvulo espiral, prismas, pirâmides, cilindros e esfera”. Após um treino intensivo desta

panóplia de formas o aluno estaria apto a ingressar no segundo ano e a estudar

problemas geométricos mais complexos. O discurso curricular entrelaçava-se por

entre traçados rigorosos de “linhas perpendiculares e paralelas”, “ângulos” e “divisão

de rectas”, “divisão dos ângulos e divisão da circunferência”, “tangentes”, “polígonos

regulares inscritos e circunscritos”, “planificações”, etc. As projecções entravam

também no plano de estudos e lá se via o educando a braços com a imaginação para

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A sala de aula como laboratório…

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determinar “o ponto no espaço”, para visualizar as projecções da recta e a sua posição

relativamente aos planos de projecção, o mesmo para figuras e para sólidos, bem

como para as “secções e penetrações dos sólidos”. Do primeiro para o segundo ano

de desenho industrial os objectivos tornavam-se mais rigorosos, exigindo do

educando uma aplicação profunda. O seu pensamento era direccionado para a

tradução da realidade por meio dos sistemas rigorosos de representação geométrica.

Contava ainda com a perspectiva cavaleira, linear rigorosa e decerto o seu intelecto

começaria a estar preparado para receber mais “noções”: “quadro, ponto de vista,

raios visuais, plano geometral, linha de terra, linha do horizonte, pontos de distância,

ponto principal, plano perspectivo e escala de fuga”. Os exercícios tornavam-se

essenciais no treino desta nova linguagem gráfica com tantas vantagens para a futura

profissão do aluno. Contudo, não se reduzia a preparação no desenho industrial a uma

monocromia de intersecção de linhas e de pontos sobre o papel nem a um repetitivo

abrir de compasso e ajustes na marcação de ângulos. As “aguadas, tons, cores e tintas

convencionais” lá estavam sob a forma de “regras”, de “estudos” e de “exercícios”,

“conhecimento das cores e suas combinações”, “representações de diversos

materiais” pelo recurso exclusivo à cor. O ornato prescrevia-se “pelo relevo”,

devendo resultar pelo desenho à vista em composições de “claro-escuro, empregando

o lápis conté branco e preto” e igualmente “por meio de aguadas”. O terceiro ano

completava-se com elementos de arquitectura, de máquinas, novamente estudo de

ornato devendo agora o mestre proporcionar a representação de “folhas, flores e

frutos empregados na ornamentação”, treinando estilizações, reproduzindo os temas

mais usados na arquitectura e sugerindo novas combinações “de linhas e

interpretação de esbocetos”. De novidade, o programa apresentava ao aluno a

topografia e a agrimensura. A tudo isto o quarto ano acrescentava a modelação,

“exercícios com modelo à vista, exercícios de invenção” (Almeida, 1886: 92-94).

Tantas vezes o aluno se teria treinado na reprodução que, ao saber fazer igual, se

pedia o saber fazer diferente, quer dizer, por si, sem muletas auxiliares de cópia.

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Uma classe de desenho elementar

(A Ilustração Portuguesa de 8 de Abril de 1907)

Nenhuma aula nos devolve uma imagem de participação activa da criança na

elaboração dos seus próprios conhecimentos como a de desenho. No ensino especial,

“o desenho” teria a “maior importância” e deveria ser “praticado em larga escala e

com particular atenção”. Seria, evidentemente, um precioso auxiliar do professor no

processo de interpretação e constituição de um saber sobre o aluno e, para as crianças,

“um meio favorável à exteriorização dos seus pensamentos e dos seus

conhecimentos”. Sendo reduzido o vocabulário inicial de um aluno surdo, a

expressão gráfica e simbólica de ideias através de figuras esboçadas constituía-se

como uma forma universal de comunicação. O desenho constituía mesmo “uma

necessidade na vida das crianças surdas. Todas” desenhavam “muito” e sentiam

“prazer nessa actividade”. À escola exigia-se, portanto, que estimulasse

“constantemente esse interesse levando estas crianças a desenharem em todas as

oportunidades” (Amaral, 1954: 56).

Todavia, será também difícil achar códigos disciplinares tão incrustados na

pele dos alunos como os que são necessários para a participação nestas lições. A

imagem acima apresentada, de uma classe da Casa Pia num exercício de desenho à

vista, é reveladora de corpos e espíritos disciplinados. Na postura e na atenção. O

grupo é composto por alunos de idades semelhantes, uma classe, portanto. Cada

criança ocupa disciplinadamente um espaço e um tempo que lhe destinaram.

Materiais necessários seriam, segundo Abreu e para a 1ª classe e 1º grau, “caderno de

desenho”, “lápis comum, que deve ser o de nº 2”, devidamente afiado, “canivete, que

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A sala de aula como laboratório…

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basta ter uma folha, devendo esta estar bem afiada” e “goma elástica (borracha), que

deve ser macia”. “Os exercícios” poderiam “ser feitos primeiramente nas ardósias,

que” deveriam “ser quadriculadas como o caderno de desenho. Para a execução dos

exercícios na ardósia” deveria “empregar-se o giz, ou a pena de ardósia artificial. A

pena de ardósia natural é imprópria para exercícios de desenho” (1903: 5, 6). Na

imagem acima, a tarefa seria desenhar um conjunto de sólidos devendo a

representação estar concluída no final da lição. O espaço em que ocorre a aula, na

qual se mostra a ausência do mestre, é semelhante a um laboratório ou a uma oficina,

com uma grande mesa de trabalho que homogeneiza o espaço. A não presença do

professor sublinha a disciplina e autonomia dos alunos casapianos que, sozinhos,

manifestavam a capacidade de cumprir os exercícios propostos. Parece ser essa a

aparência de verdade a que a imagem dá acesso.

Vale a pena aclarar a experiência iniciática de um aluno da Casa Pia com a

disciplina de desenho elementar, durante a segunda metade do século XIX. Os

primeiros dias seriam atribuídos às “ noções gerais de desenho ”, à técnica de

observar os corpos, de lhes medir as distâncias, as grandezas, o aspecto, a forma e a

posição. Estes princípios iriam reger qualquer esboço, tornando-se tão presentes e tão

familiares, que se diria quase colados à visão do aluno. Contudo, esta racionalização

demorava o seu tempo. Havia a fase da ardósia quadriculada, destinada a “ fazer a

mão ” do educando, que não poderia ser de longa duração não fosse este habituar-se a

“ ter a mão pesada ”. Era este, também, o momento do professor desenhar na ardósia

grande e preta, as linhas ou os desenhos mais fáceis, analisando-os e descrevendo-os

para que o aluno fosse incorporando e fixando as regras. De seguida, era o momento

do “ papel mui delgado ”, que impedia o pupilo “ de apagar por muitas vezes, com a

borracha ”. Nem tudo, no entanto, se poderia exigir a um novo praticante da arte de

desenhar e, era assim que se facultava aos alunos “ umas pautas quadriculadas em

proporção com os modelos ”, com a finalidade de as colocarem sob a folha de

trabalho ” (Neves, 1873: 9). Havia uma série de preceitos que o aluno aprenderia a

aos poucos dominar:

“Posição do caderno de desenho. - O caderno de desenho deve ficar com os lados

mais pequenos voltados para o aluno. Esses lados deverão ficar na direcção das

bordas da mesa, como se mostra na fig. 2ª. O caderno de desenho (C, na fig.)

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O desenho

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nunca deve deixar de ocupar a posição indicada. O aluno observará que a posição

do caderno de desenho é diferente da do caderno de escrita” (Abreu, 1903: 6).

A posição do caderno Modo de afiar o lápis

(Abreu, 1903) (Abreu, 1903)

Já Palyart, no século XX, esboçava o seu método introdutório com crianças

anormais. Começaria o ensino do desenho pelo “calque e contorno de figuras

geométricas simples”, a primeira de entre elas seria o círculo pela sua facilidade. Por

último viriam as figuras não geométricas como a “representação de figuras de

animais, plantas, etc.”. A estes exercícios haveria que juntar outras actividades que

não eram estanque dos trabalhos manuais, ou seja, o recorte e a colagem. O aluno

recebia do professor “desenhos simples, bonecos semelhantes aos que a criança

normal executa livremente” e que deveria observar e copiar (Ferreira, 1917: 294).

Estes elementos seriam referência para aqueles a quem faltava a capacidade de à

primeira, fazer igual aos outros. A cópia “que muitos desdenham mas ninguém

substitui”, tinha o seu fundamento “no alto princípio da imitação, a grande, e talvez

única, alavanca de toda a educação”. O esforço do aluno na execução do projecto

seria reclamado como um “apelo ao seu amor próprio, à sua combatividade”

(Ferreira, 1917: 296).

A necessidade do desenho quase me apetece dizer que era universal. Todos,

“homens e mulheres, têm necessidade do Desenho, todos dele se utilizam”. A ligação

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A sala de aula como laboratório…

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desta disciplina aos restantes saberes tornava-se evidente e só não a via, quem não

queria. “O carpinteiro”, “o pedreiro”, “o alfaiate”, “o negociante”, “o proprietário”,

“o matemático”, “o sábio de toda a espécie” teria no desenho uma ferramenta

essencial. Impunha-se mostrar ao aluno o alcance da prática de debuxar e, para isto,

nada mais eficaz do que colocar à sua vista as imagens.

“Desenhos simplicíssimos deverão estar na aula, tais como: modelos de objectos

artísticos, janelas, portas, bancos, mesas, e muitos outros objectos em que

somente se empreguem as linhas rectas, e todos do conhecimento das crianças.

Linhas curvas. Imitação de pequenos desenhos que podem ser feitos, ao princípio

como exercício de calcar” (Raposo, 1869: 165, 166, 167).

A propósito de um conjunto de desenhos de alunos da Casa Pia enviados em

1873 a uma Exposição em Viena de Áustria, a Administração fez acompanhar os

trabalhos, de esclarecimentos sobre a natureza do ensino do desenho na instituição.

Embora se verificasse uma preocupação com o fazer da mão e com a representação

realista de objectos, a verdade é que, se falava já em adestrar a mão e afinar o olho,

“sem fadiga demasiada” e com “modelos bem graduados”, num trabalho progressivo

de conquista das formas que haveria de resultar exactamente nas “dimensões dos

objectos que os modelos” representavam. E quanto a estes modelos que serviriam à

aprendizagem do desenho na instrução primária, logo no 1º grau, eram

propositadamente concebidos para serem observados e esboçados pelos alunos. Nesta

medida, ajuizava-se a importância de exercícios graduados de acordo com o grau da

classe e da vocação eminentemente prática do ensino desta cadeira. Os modelos, que

se contabilizavam em 89, compunham-se de “diferentes linhas e figuras geométricas,

de objectos de uso geral, de ferramentas de diversos ofícios”, entre os quais os de

“carpinteiro, marceneiro, canteiro, serralheiro” ou “hortelão” (Neves, 1873: 6, 7).

As lições de desenho, e isto passava-o para a escrita já na década de vinte do

século XX, o professor Pedro Guedes da Casa Pia de Lisboa, estavam longe de

representar um “fardo” para professores ou alunos se, – e aqui viria a fórmula mágica

do pensamento da escola moderna –, constituíssem “ um agradável exercício ” no

menu de disciplinas apresentado ao educando. Quanto a métodos de ensino da

disciplina, não adiantava este autor, nenhum que fosse ideal. O importante é que fosse

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O desenho

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“ pedagogicamente orientado ” e “ baseado nas tendências naturais da criança ”. Na

escola primária o desenho seria “ a vida do ensino ” (Guedes, 1928: 3, 8).

Apresentado nesta perspectiva, pode dizer-se que o desenho, tal como vimos com os

trabalhos manuais, chegou à escola e bateu-se sempre pelas suas vantagens

educativas no desenvolvimento de cada aluno e, também, pela sua particular

maleabilidade interdisciplinar. Para as lições de coisas, a sua utilidade era imensa,

suprindo as insuficiências de uma explicação verbal ou, no caso das crianças surdas,

conectando directamente ao mundo de outras imagens que constituíam a sua

experienciação visual do mundo.

“ É por isso que o bom professor apresenta primeiro o objecto que representa a

ideia, que deseja transmitir aos seus discípulos, se isto não é possível mostra-lhes

em relevo em estampa, ou desenhada no quadro preto a sua imagem; se ainda isto

lhe não é possível recorre à analogia que esse ser tem com outros, e faz nestes

notar quanto há de semelhante, e, substitui, se lhe é possível, o que é

dissemelhante; e só quando nenhuma destas intuições pode empregar é que

recorre à descrição; a qual ainda assim faz com que seja revestida de mil imagens

vivas, de mil comparações apropriadas. Eis aqui a utilidade do desenho para os

alunos, e como nas mãos do professor se torna um instrumento poderoso da arte

espinhosa e difícil de ensino ” (Raposo, 1869: 165).

Em 1920, o ensino do desenho continuava a ser obrigatório no percurso

escolar das crianças surdas da Casa Pia. A relação desta disciplina com a vida prática

desenvolvia-se agora de forma mais acentuada. Os alunos deveriam frequentar não

apenas as aulas de desenho elementar mas, também, as de desenho industrial. Estas

duas vertentes da cadeira de desenho estavam já traçadas em pleno século XIX. O

nosso olhar será agora direccionado para os primeiros trinta anos do século XX e

conduzido pelos discursos sobre o desenho de dois professores da Casa Pia de Lisboa.

Tanto Pedro Guedes quanto Palyart Pinto Ferreira lutaram pela presença do desenho

nos currículos escolares, desde a entrada da criança em qualquer instituição de

ensino. Discorreram sobre vantagens e métodos a empregar, por vezes manifestaram-

se contra processos de ensino anteriores e mesmo os do seu tempo que, ao invés de

aproximarem o aluno desta prática, o afastavam pelo desinteresse que gravavam nas

suas metodologias. Era assim que o passava para o plano da escrita Palyart:

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“São as consequências do emprego da quadrícula e do papel estigmografado, há

muito imperando entre nós, o uso da estampa de traços incompreensíveis,

representando objectos que a criança não pode ver. É o desinteresse, o

aborrecimento natural e, daí, a convicção de que o desenho necessita um esforço

enorme que não merece, e é falho de utilidade” (1920: 341).

No seu tempo, reflectia o professor, ensinava-se o desenho “como nos meados

do século passado”, isto quando não se ensinava muito pior. Os traços originais de

Ravaisson ou de Dupuis apagavam-se e davam origem a sucedâneos de má qualidade

e “deficientes”. Tal como nas restantes áreas do saber, também no desenho a “base

fundamental” “deveria encontrar-se no estudo completo da psicologia infantil”

(Ferreira, 1920: 341, 342). Só mapeando o interior do aluno, o mestre saberia

exactamente o que lhe propor e o que esperar do seu desempenho. A autoconstrução

do educando estruturava-se a partir do seu núcleo de interesses, mas também das

disposições naturais, mentais ou físicas, para a execução de tarefas num determinado

período do seu crescimento. As palavras deste autor acabam por confluir na mesma

temática disciplinar daqueles que tinham na rede stigmográfica a orientação das suas

práticas, o que era sujeito a um zoom, era a figura do aluno, por dentro e por fora,

dividindo-o agora entre o seu nível e capacidade de acção espontânea e as práticas

adestrantes. Trata-se, obviamente, de produzir sobre o aluno um saber que permita o

seu governo e o seu autogoverno.

Quanto a metodologias a adoptar, os dois professores da Casa Pia não se

centravam em nenhuma em particular, antes viam na sua utilização simultânea um

caminho a explorar. Cópia pelo natural, desenho geométrico ou desenho a partir da

estampa não seriam necessariamente excludentes uns dos outros. O bom senso ditava

que a melhor opção era a que retirava de cada um, os aspectos mais positivos e mais

de acordo com o espírito da criança e com a sua formação para o futuro. Palyart

considerava a geometria, “só por si”, “insuficiente, fatigante, desinteressante”, mas “a

cópia excessiva da estampa” seria de “um servilismo baixo e sem valor de maior” e

quanto à cópia do natural, “simplesmente, não basta”. Ligadas as três formas atingir-

se-ia um ponto de equilíbrio, “um conjunto harmonioso e de perfeito acordo com a

curiosidade e actividade infantil” (1920:342). O que interessava afinal no desenho?

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O desenho

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Ora, segundo Pinto Ferreira era “o adestramento das células motrizes, e a educação da

emotividade que as sensações estéticas originam” (1920: 345). A satisfação completa

destes dois pontos não seria nunca obtida pela consideração mónada de cada uma das

perspectivas. O segredo estava na sua união perfeita. O aluno seria levado, sem

coacções, a produzir tal como se pretendia que produzisse:

“É preciso adestrar a célula, levá-la a produzir como é necessário que produza,

quando excitada convenientemente, fazê-la trabalhar de uma forma determinada,

consoante o seu estado de desenvolvimento ou atraso, e em harmonia com o

funcionamento da célula sensível respectiva” (Ferreira, 1920: 345).

Visitaremos agora um Relatório de 1921 dirigido por Pedro Guedes à

administração da Casa Pia, que funcionava como um “esboço de revisão dos

programas do ensino de desenho geral e profissional”. O professor de desenho falava

em atingir “resultados mais práticos e menos fictícios”. Ao distribuir os programas

pelas diferentes classes não era sua intenção adoptar um método único. Quanto ao

método geométrico, Pedro Guedes não se manifestava contra, dizia aliás que, quando

os elementos da geometria fossem “estudados pela forma atraente e verdadeiramente

intuitiva que nos apresenta Mme L. Artus Perrelet no seu livrinho ‘Le dessin au

service de l'éducation’”, poderiam e deveriam “constituir um dos primeiros

componentes de um bom programa do ensino de desenho, mormente quando esse

ensino tende a seguir uma orientação acentuadamente profissional”. Corroborando a

sua ideia, colocava uma citação de um outro autor que dizia: “‘Il semble tout d'abord

nécessaire de discipliner l'imagination de l'enfant, en lui donnant les premières

notions de la géometrie tout en lui laissant la faculté de reproduire des choses et

objets trés simples”, em cujas faces o aluno deveria inscrever uma figura geométrica

igualmente simples: “‘triangles, carrés, circonferences, etc.’” (1921:391-393).

Também Palyart juntava argumentos defendendo a presença do método geométrico

entre as crianças. Tudo o que haveria a fazer era animar “convenientemente” a figura

geométrica de modo a esta agradar ao aluno. Um aluno motivado seria absorvido no

trabalho, autodisciplinando-se na execução gradual de tarefas, e encontrando no seu

aperfeiçoamento e domínio técnicos o motor de conexão ao desenho. Para mostrar o

quanto o método geométrico estaria de acordo com a natureza infantil, Palyart

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A sala de aula como laboratório…

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lembrava os “primeiros desenhos”, os “primeiros bonecos” da criança que tanto

possuíam de geométrico (1920: 342, 343).

E do ponto de vista profissional, também o desenho cotado merecia especial

atenção e cuidado:

“Ao ‘desenho cotado’, que é o desenho industrial por excelência, deve dar-se o

máximo desenvolvimento e aplicação, iniciando-se nas classes elementares,

porque, diz Réné Leblanc: ‘savoir exécuter un dessin industriel et le livre

intelligemment, constitue une des parties fondamentales du bagage technique du

bon ouvrier, l'ouvrier d'élite moderne’”(Guedes, 1921:393).

Porém, nada substituiria o desenho de imitação ou desenho à vista ou ainda os

desenhos de memória, “esboçados rapidamente”, de grande alcance em termos

educativos, “porque assim” os alunos se iriam “habituando ao traçado de ‘croquis’,

tão necessários em todas as profissões” (Guedes, 1921: 393). Ir-se-iam habituando

igualmente a prestar atenção aos diversos pormenores dos objectos, educavam a vista

e desenvolviam as suas capacidades intelectuais, de análise e de síntese. Já se vê que

o desenho enquadra por completo na perspectiva de governamentalidade. O método

stimográfico como um treino intensivo e rigoroso, implicando por parte do aluno

grande aplicação ao trabalho em execução, começava agora a ser posto em causa, mas

mesmo esta rede, composta por linhas traçadas horizontal e verticalmente nos

cadernos de desenho ou nas ardósias, “sustentava” já “o desejo de criar um ensino de

tipo intuitivo”. É como se uns métodos apontassem circularmente para outros em

termos disciplinares. Libertava-se agora o aluno da quadrícula do papel e pedia-se-lhe

que a incorporasse na visão, quando se lhe dava a rede era para que fizesse tantas

“vezes igual até começar a fazer diferente” (Ó, 2003: 249). Os desenhos de memória

ou os esboços rápidos conduziam a um cenário de autogoverno do aluno,

manifestando o educando nos poucos minutos que lhe eram cedidos para a realização

de croquis todas as suas virtualidades manuais. A mão haveria de obedecer à vontade.

Neste Relatório, Pedro Guedes expressava ainda a impossibilidade de uma

boa aula de desenho sem o recurso a bons modelos. As inúmeras deficiências “quanto

a exemplares de flora e de fauna”, poder-se-iam remediar “ criando um jardim (ou

viveiro?) especialmente destinada a fornecer elementos para os exercícios de desenho

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e modelação, e organizando-se um pequeno ‘museu de história natural’, anexo à aula

de desenho, para onde passariam desde já alguns exemplares, devidamente escolhidos

do ‘Museu escolar’ deste estabelecimento” (1921: 393). Outros modelos poderiam ser

obtidos pela Casa Pia, por oferta ou por requisição, junto de outras instituições como

o Museu da Antiga Escola Politécnica ou o Museu de Etnologia. O que estava então

em causa era o desenho pelo natural. Nesta área, encontramos um forte apologista do

método, em Rousseau. Como ensinar a uma criança o modo de “bem avaliar o

comprimento e a grandeza dos corpos”, se não se lhe ensinasse “a conhecer as figuras

destes e mesmo a desenhá-las”? Não era decerto a aparência dos objectos que

proporcionava ao aluno as faculdades de o conhecer. “Porque, no fundo, esse desenho

só pode ser feito segundo as leis das perspectivas; e não se pode avaliar o

comprimento pelas aparências se não se tiverem algumas ideias sobre essas leis”.

Como “grandes imitadoras”, “todas as crianças” gostariam “de desenhar”, mas esta

era uma arte que o perceptor de Emílio não haveria de deixar que se desenvolvesse

“em si”. Alguns fundamentos deveriam construir o desenvolvimento da técnica de

representação, a “vista” tornar-se-ia “justa” e a “mão flexível”. Não era tanto a

execução de tal ou de tal exercício que contava, mas a aquisição da “agudeza do

sentido e o bom hábito do corpo que se consegue através deste exercício” (Rousseau,

1990: 148). Por único mestre Emílio haveria de ter a natureza e por modelos os

objectos que esta lhe oferecesse à vista:

“Quero que tenha, sob os olhos, o próprio original e não o papel que o

representa; que esboce uma casa vendo uma casa, que esboce uma árvore vendo

uma árvore, que esboce um homem vendo um homem, a fim de que se acostume

a bem observar os corpos e as suas aparências, e não a considerar como

verdadeiras imitações aquelas que são falsas e convencionais. Na ausência dos

objectos, impedi-lo-ei, mesmo, de desenhar de memória, até ao momento em que,

através de frequentes observações, as suas figuras exactas se imprimam bem na

sua imaginação. [...] Adquirirá, certamente, um golpe de vista mais justo, uma

mão mais segura, o conhecimento das verdadeiras relações de grandeza e de

aspecto, que existem entre os animais, as plantas, os corpos naturais, e uma

experiência mais rápida do jogo da perspectiva” (Rousseau, 1990: 148).

Jean Jacques era, portanto, adepto do desenho pelo natural mas antagonista

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A sala de aula como laboratório…

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completo do desenho pela estampa. A isto diria Palyart, como mais à frente terei

oportunidade de pormenorizar, que era impossível “contradizer a necessidade da

estampa […] e do desenho geométrico ao lado da cópia do natural”. A razão

apresentada era simples: “só faz quem sabe ver, e ‘só vê’, empregando uma frase de

Ernest Legouvé, ‘quem aprende a ver’. Mas para aprender a ver é necessário aprender

com quem sabe ver… e aprender fazendo – learning by doing”. Novamente insistia

de que a cópia do natural sem mais nada, dificilmente surtiria resultados dignos de

registo. Sem a “acção benéfica” da estampa “nunca, ou só tardíssimo e muito

imperfeitamente, qualquer criança poderia adquirir as mais rudimentares noções

sobre arte” (1920: 344). Era pela conjugação da estampa com a geometria e com a

cópia pelo natural que o ensino do desenho deveria evoluir. À criação dos museus de

objectos propostos por Pedro Guedes para uso nas lições de desenho, Palyart também

dava a sua sugestão. O seu kit, que servindo para a cópia pelo natural, deveria estar

intimamente ligado à realidade do espaço geográfico. O ritmo que imprime ao seu

discurso revela magicamente o conteúdo da sua colecção:

“Colecções de penas de várias formas, de várias dimensões, de diferentes

coloridos, procedentes, consequentemente, de vários géneros, de várias espécies,

de vários indivíduos; colecções de conchas, terrestres ou marítimas, variando

também na grandeza, no feitio e na sua decoração; folhas de vários exemplares,

folhas grandes e folhas pequenas, folhas inteiras e também de recortes mais ou

menos profundos, e simples e compostas, etc.; insectos ou seus fragmentos, como

asas de borboletas (cores, formas e grandezas), de besouros, escaravelhos,

gafanhotos, libélulas, etc,; cristais de quartzo (tão abundante em certas regiões do

nosso país), de calcite, etc.; objectos usuais na localidade, de emprego doméstico

ou na escola, utilizados na lavoura, etc., etc.: eis o importante material para o

ensino do desenho: eis o grande compêndio, o mais sublime de todos, o livro da

Natureza” (Ferreira, 1920: 354).

O professor que preparasse a série, que ordenasse elementos tão dispersos e

que os usasse como motivo de desenhos.

Num outro documento, O Desenho primário Racional. Elucidário para o

professor, Pedro Guedes falava das vantagens educativas da disciplina de desenho na

escola, desde as primeiras classes. O seu fim seria “desenvolver na criança as suas

qualidades naturais do gosto, da invenção e da observação”. Deveria ser “evolutivo,

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O desenho

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como adaptação; realista, como inspiração; geral, como aplicação; espontâneo, como

execução e estético, como educação” (Guedes, 1928: 4). Ora, esta perspectiva conflui

nas ideias da escola moderna, pela graduação do ensino, adaptado a cada criança,

pelos métodos naturais, pela aplicação prática do saber, pela espontaneidade e pelos

valores estéticos aprendidos pelo aluno no acto de ver e de fazer. Com a presença do

professor, mas tanto quanto possível com um trabalho intenso do próprio aluno,

definia-se um caminho de autonomia, de autoconstrução, de autocorrecção pelo

acumular da experiência e do hábito de muito fazer. Nas instruções pedagógicas,

Guedes, considerando que seria necessário “levar todos os alunos a conhecer

intuitivamente as propriedades elementares das figuras geométricas e a praticar com a

possível correcção as diferentes modalidades do desenho”. Observava porém que,

seria “indispensável estudar atentamente as tendências de cada um e delas tirar o

melhor partido para a orientação do respectivo ensino”. Era certo que nem todos os

alunos teriam “aptidão natural bastante para que” pudessem “vir a ser pintores de arte

ou escultores”, todavia, era tarefa da escola provar, “realizando”, que todos os

indivíduos “trabalhando” poderiam “desenhar e modelar em barro com suficiente

correcção”. Quanto aos materiais necessários prescrevia “papel liso, muito limpo e

bem conservado”, sem o qual não se poderia exigir do aluno “a boa apresentação do

trabalho”, “desgostando-se” então os educandos “por culpas que não são suas”. O

papel quadriculado, aquele que constituía a base do método stimográfico,

desaconselhava-o o autor, “excepto para a realização de certos exercícios de

geometria e a execução de projectos de decoração” (1928: 12-15).

Também o Programa de desenho de 1928, apresentava diferenças

relativamente ao de 1902 há pouco referido. Pedro Guedes traduzi-as naquilo que de

essencial nos interessa trazer até esta escrita. “O desenho é um factor cultural e actua

como estimulante no desenvolvimento normal da imaginação e da sensibilidade”,

contribuindo, portanto, “para os fins gerais da educação”. De ora em diante a lição de

desenho haveria de dividir-se em duas partes:”1ª de observação; 2ª de execução”

(1928: 29). Estipulavam-se os tempos e os ritmos, prescreviam-se as tarefas.

Primeiramente, a criança era convidada a olhar, a analisar e a medir. Depois, teria de

executar, passar ao papel o que lhe ditava a razão. Para tal:

“A criança deve ter diante de si o objecto, que nunca se desenhará

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antecipadamente no quadro preto, porque, então seria um modelo a copiar”

(Guedes, 1928: 29).

Seria igualmente um modelo a copiar, mas a partir de um original

tridimensional e não a partir da sua simplificação num plano bidimensional. A

escolha dos objectos teria “em conta a conveniência”, e embora estes fossem “usuais”

ao imaginário do aluno, deveriam apresentar “um valor estético, ainda que pequeno”

(Guedes, 1928: 29). As questões levantadas em relação ao desenho geométrico, ao

desenho pelo natural e à estampa, nunca se resolveram por completo. Os métodos

defendidos por uns educadores tendiam a privilegiar umas áreas em detrimento de

outras. No entanto, a sensibilidade de Palyart levava-o a defender os três métodos em

simultâneo. A presença da estampa junto da existência da cópia do natural era uma

“necessidade”. “E tanto assim que, embora a sua exclusão da sala da classe, embora a

guerra que certos lhe movem, ela desempenha o seu papel a ocultas” (1920: 343). Na

verdade, o que adiantaria proibir o uso da estampa quando o aluno a ela tinha acesso

e lhe dava uso nos seus desenhos fora da classe? A imagem começava em inícios do

século XX, em Portugal, a cumprir o fado de que falou Walter Benjamin: “o

processo de reprodução de imagens foi tão extraordinariamente acelerado” que pôde

“colocar-se a par da fala” e à mão de qualquer um(1992: 76). “A criança lança-lhe a

mão onde a encontra, e sobre ela se exercita, copiando-a, apropriando-a, utilizando-a

por completo ou parcialmente” (Ferreira, 1920: 343). Não só fotografias, como

postais, gravuras, jornais humorísticos, tudo isto andava “nas mãos de todos os

alunos, principalmente dos melhores desenhadores”. Verdadeiramente sensato e

produtivo era, conhecendo esta predilecção pela estampa, fazer dela um centro de

interesse e oferecê-la nas propostas escolares ao aluno. Procurar, todavia, “estampas

boas, artísticas, que as crianças compreendam e sintam” (Ferreira, 1920: 344).

Para representar um qualquer objecto por meio de traços era condição

essencial exercitar o aluno a desenvolver uma aptidão, a habituar o corpo a uma

postura e a uma atenção, a fixar demoradamente a atenção no todo e nas partes do

objecto, a compará-las entre si e face a outros objectos. Assim se deveria começar por

encarar o ensino do desenho. O desenvolvimento desta diciplina viajaria em

companhia dos gostos da criança e do seu sentir. A tão discutida estampa seria dada

ao aluno, adaptada a si, mas de acordo com o que o saber psicológico sobre a infância

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O desenho

363

ditava:

“A criança prefere a estampa. Dêmos-lhe a estampa, mas que represente bonecos

como os seus, e cada vez mais perfeitos, bonecos em que ela viva e se exercite,

onde trabalhem simultaneamente mãos e cérebro. E dêmos-lhe como primeiro

modelo o homem. Na escola foge-se ordinariamente à figura humana. Mas é ela

que a criança primeiro tenta representar: sobre o homem recaem os seus

primeiros trabalhos gráficos. É difícil desenhar a figura, é certo: mas eu não

penso também em levar a criança a fazê-lo com correcção. Pretendo,

simplesmente, leves esquiços, pretextos para exercitar o aluno a entrar noutros

trabalhos” (Ferreira, 1920: 348, 349).

A modelagem do corpo do aluno seguiria um desenvolvimento gradual e

contínuo. A par do adestramento, um conhecimento sobre o indivíduo adquiria

contornos fiáveis e que permitia induzir a modos de comportamento e à aquisição de

técnicas de fazer. “A actividade gráfica”, afirmaria já na década de cinquenta o

educador João dos Santos, “faz parte das funções sociais do homem, isto é, das

funções que lhe permitem relacionar-se com os outros”, para além de que “tomando

consciência do gesto que define o corpo próprio ou um outro corpo, a criança pode-o

prolongar pelo traço desenhando e este pode conduzir ao sinal, que se transforma em

símbolo” (Santos, 1966: 51, 52). A um poder sobre o corpo juntava-se a

produtividade desse mesmo poder. O aluno desenvolvia aptidões, habilidades que lhe

permitiam, mais a mais sendo surdo, habitar terrenos onde encontrasse uma porta

para a sua integração na sociedade. O desenho, tal como os trabalhos manuais,

convertia-se num grande dispositivo disciplinar: um campo onde se cruzavam

práticas discursivas e relações entre actores, um campo de sujeição do corpo e

conhecimento da alma. Por isso as estampas entregues às mãos das crianças deveriam

“ser em harmonia com a evolução dos seus interesses, constatados já presentemente,

e muitíssimo bem, pelos estudos sobre a psicologia do desenho” e assim

progressivamente pela segunda e terceira classes. Primeiro, “umas escalas de

bonecos, desde a simples rodela com dois traços paralelos daí saindo, até ao homem

de braços abertos, mãos espalmadas e dedos desmedidamente grandes; do boneco nu

ao boneco vestido; do esquema inferior do homem, às distinções dos sexos pelas suas

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características mais aparentes, etc.”, até estampas”de diferentes animais, mas animais

que a criança conheça, e objectos de uso comum e, se não minuciosamente tratados

ou por maneira larga que a criança não compreenda, representados a tintas lisas,

devidamente contornados”. Sempre estampa boa, aliciando visualmente o aluno. Nas

classes seguintes, “as formas anteriores devidamente ampliadas, e os traçados

geométricos de aplicação. Nas terceiras classes ainda o desenho sem instrumentos, à

mão livre; na quarta mais técnica, e introdução de instrumentos como o compasso e a

régua” (Ferreira, 1920: 349). A estampa prestava-se a três tipos de utilização: para

cópia, como auxiliar da cópia pelo natural ou como base para composições

inventadas pelo educando. Este último fim, para além dos objectivos marcadamente

disciplinares, faria a criança desenvolver “o gosto artístico, induzindo a concepções

mais levantadas, criando a personalidade” (Ferreira, 1920: 350). Sem dúvida que foi

na área da invenção que a escola encontrou acessos directos à alma dos educandos. O

governo dos alunos está em actuação constante servido por um poder-saber ágil a

engendrar técnicas de comunicação com o interior dos pupilos: “a estampa” “para

este último caso” seria “a própria caricatura, essa deliciosa arte cómica, que a criança

adora e com tanto gosto cultiva” (Ferreira, 1920: 350). Alunos cada vez mais donos

de si mesmos, mais hábeis. Eis como o desenho se tornaria muito mais do que uma

obrigação, um elemento de desejo, proporcionador de uma disciplina interior, de um

domínio sobre o real e de uma vinculação necessária.

Havia mais um elemento que foi trabalhado pela escola e que tem que ver

com a exposição do aluno, através do trabalho. Embora a finalidade última da

produção na disciplina de desenho não fosse a organização de exposições escolares, a

verdade é que, quando estas se realizassem deveriam apresentar “devidamente

seriados, todos os trabalhos de cada aluno”, o que permitiria “avaliar a acção da

escola no seu desenvolvimento”. Mais do que os trabalhos de um único ano, os

trabalhos de todos os anos escolares ficariam conservados em arquivo, esboçando-se

então, para lá das fichas biográficas, um novo núcleo de saber sobre os alunos.”Um

trabalho isolado, por muito perfeito que seja, não tem significado; só uma série

extensa permite a formação legítima de uma opinião” (Guedes, 1928: 15, 16).

Será agora o momento de fazer um pequeno desvio, muito breve,

apresentando o cenário em que se desenvolvia a disciplina de Desenho. Pretendo

neste ponto, mostrar aos leitores que todos os elementos, desde os conteúdos

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O desenho

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programáticos, aos horários ou os espaços em que decorriam as acções eram

fortemente prescritivos de determinados comportamentos. Inconscientemente o aluno

haveria de adquirir hábitos de vinculação às tarefas exercendo-as livremente, de

forma disciplinada e responsável. O regime disciplinar do internato, era pensado em

diversas frentes e a ligação entre elas, concorrendo para a formação de sujeitos auto-

regulados, fazia-se pela articulação de elementos que eram constantes em diversos

campos. Ao espaço, bem como ao tempo, foram associados princípios de saúde física

e higiénicos que, claro está, teriam a sua influência na formação do carácter dos

educandos.

Em 1873, era assim: a sala de desenho, atendendo às condições de higiene,

tinha “ luz suficiente e bem distribuída ”, capacidade para 66 alunos e para cada um

“ quase 12 metros cúbicos de ar , com a circunstância favorável de que o ar ” era

“ renovado constantemente, por meios apropriados ”. Os alunos trabalhavam “ sobre

carteiras ”, “ sentados em bancos fixados nas carteiras ”, dezasseis das quais tinham

lugar para quatro alunos e uma, para dois. O espaço era suficiente para que cada um

estivesse bem “ à sua vontade ”. Cada aluno da classe de Desenho industrial tinha

ainda direito a uma gaveta onde deveria guardar a sua “ prancha de madeira ”, “ o

estojo de compassos ”, “ dois esquadros ”, “ uma régua ”, “ duas tijelinhas ”, “ uma

esponja ”, “ um canivete ”, “ dois pincéis ”, “ um pão de tinta da China ” e “ sete pães

de cores ”. Os alunos de Desenho elementar não tinham gaveta e todo o material

necessário lhes era distribuído pelo professor ou monitores (Neves, 1873: 14, 15, 16).

Cada um em seu lugar, a cada um seus materiais, condições neutras que não

interferissem com a fixação da atenção no objecto a debuxar.

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A sala de aula como laboratório…

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Sala de desenho da Casa Pia de Lisboa

Inícios do século XX

(Arquivo Fotográfico de Lisboa)

Sala de desenho da Casa Pia de Lisboa. A perspectiva central da fotografia

acentua a presença de imagens nas três paredes. Duas bandas horizontais acima do

olhar dos alunos constituem frisos de estampas, talvez trabalhos dos próprios

educandos. Mesas com amplos tampos de trabalho, bancos diferentes. Grandes rasgos

de luz em ambas as paredes. A sala de aula assume um carácter laboratorial, não no

sentido de uma assepsia, mas no de uma experimentação. A sala encontra-se vazia de

personagens, à excepção do fotógrafo que a captou. Todavia, constitui-se como uma

paisagem por onde já passaram e irão passar mais pessoas. Os bancos, alinhados,

sublinham essa necessidade de alunos para que o cenário ganhe um sentido. Pelas

paredes, poder-se-ia dizer dos métodos seguidos pelos habitantes deste espaço.

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A arte da escrita: caligrafia

367

7.4.A ARTE DA ESCRITA: CALIGRAFIA

Lições

(Amaral, 1954)

“‘Escritura; dibujo. De nuevo tengo dudas

acerca de la diferencia entre las dos cosas. En la

antiguedad, las letras estaban muy próximas a las

pinturas. Eran casi indistintas’”.

Takiguchi, 1942

(Molina, 2003:355)

Uma das tarefas mais importantes destinada ao professor de surdos seria ensinar ao

aluno a língua escrita. “É preciso ensinar-lhe tudo, absolutamente tudo” e a ordem a

seguir, na opinião de Fusillier “era completamente diferente da do ensino primário”.

Ao “surdo-mudo principiante”, nenhuma “gramática serve nem pode servir”. O

começo do ensino não poderia ser outro que não o “estudo de palavras soltas, nomes

concretos que se explicam imediatamente pela apresentação do objecto que

designam”. Só deste modo se evitaria “a confusão e a falsidade num cérebro tenro,

mas quase vazio de ideias claras e exactas” (1893: 396). Depois viriam então os

adjectivos ligados aos substantivos, os artigos, os primeiros nomes de números, os

principais tempos verbais, etc. Todavia, esta era uma fase posterior a um domínio

manual da arte da escrita. O ensino das crianças surdas contemplava diversas áreas

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que se queriam interligadas, trabalhando-se e desenvolvendo-se numas, aspectos úteis

às outras. Seria o caso da caligrafia e do desenho para a apropriação de uma mecânica

de escrita. “A síntese da escrita implica a utilização de gestos, palavras verbalizadas e

desenho” (Santos, 1966: 52). Para João dos Santos, “ensinar a escrever, antes de

permitir que a criança” experimentasse “os materiais e as superfícies plásticas, antes

de desenhar e pintar”, seria “tão absurdo como ensinar uma criança a ler antes que

ela” falasse (1966: 67).

No sistema educativo Montessoriano, o desenho surgia como exercício com o

fim principal de preparar os movimentos da criança para a escrita. Haveria que treinar

essencialmente dois gestos: “um que consiste no pegar do instrumento da escrita ou

seja o domínio do lápis ou da pena”, outro “que consiste no desenho ou contorno da

letra”. Os primeiros movimentos deveriam respeitar a individualidade de cada

criança, a sua forma de se relacionar com os objectos, todavia, os segundos, seriam

“comuns a todos os que escrevem porque todos” teriam “de contornar as mesmas

letras”. Individualização, mas simultaneamente alargamento a toda a classe. Ora,

estes exercícios estavam dependentes de um kit de materiais, muito simples,

constituído apenas por quadrados de metal, cada um deles com um espaço em aberto

onde se poderiam encaixar diferentes figuras geométricas. A atitude exigida perante

estas figuras metálicas não era muito diferente daquela que no século XIX se

propunha frente às pautas caligráficas. O aluno percorreria com os dedos os

contornos dessas figuras e, só depois de as sentir, as colocaria sobre uma folha de

papel para lhes traçar o contorno. “Ficando assim debuxada a forma geométrica de

cada uma dessas figuras”, seria altura de “preencher esse debuxo ou contorno com

lápis de outra cor, tendo em mira que os traços” feitos seriam limites da forma, a

respeitar. Com estes exercícios que decerto agradariam às crianças, a sua mão

aprenderia “a mover-se dentro de limites certos, segundo um molde, firmando-se,

educando-se, ajustando os seus movimentos desordenados, e preparando-se para

escrever” (Rosa Y Alberty, 1917: 355). Esta seria uma forma de preparação para a

prática manual da escrita em que se treinava o corpo e o espírito: a mão, a vista pelo

domínio progressivo de diversas formas, pelo apurar das diferenças entre umas e

outras, entre tamanhos e cores. Pela combinação de modelos diversos e de cores

diferentes, o gosto artístico da criança também se iria formando e uma outra

preparação se encontrava em estado de gestação, a da cópia fiel pelo natural. Os

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exercícios do desenho prolongavam-se para os da escrita até que chegasse o momento

de substituir por “hastes e curvas”, os preenchimentos a cor e os contornos das

formas das figuras geométricas. “A princípio”, os traços com que os alunos passavam

a “encher os debuxos” seriam “grossos, desiguais, desordenados no seu comprimento,

saindo para fora das respectivas linhas limitatórias”, mas depressa os traços se

tornariam “mais finos e paralelos”. A mão do aluno, “educada a executar livremente

movimentos, amplos ou curtos”, pela “diversidade de moldes com que trabalhou”,

estaria apta “ a fazer todas as categorias de letras firmes e segundo o papel e os

modelos” que lhe apresentassem. Viriam então as lições sobre letras, com uma

panóplia de materiais tão vulgar quanto uns cartões soltos, “em papel de lixa”, com

uma letra em cada um, “cujo corpo” mediria 8 centímetros de altura, com hastes ou

traços de 6 milímetros. À observação da criança colocar-se-iam duas letras diferentes

e pronunciar-se-iam clara e pausadamente os seus nomes. Depois, o mestre propunha

ao seu pupilo que seguisse os contornos das letras “segundo a direcção usual da

escrita”, repetindo o movimento por “duas ou três vezes seguidas”, “apalpando-os

levemente com as polpas dos dedos indicador e médio” e assim se conseguiriam

associar diferentes sensações corporais. A fase seguinte, de reconhecimento, baseava-

se numa prática muito próxima do jogo: “’Dá-me o i’. ‘Dá-me o a’, tornando a

criança a apalpá-las de olhos abertos ou de olhos fechados”. Por último, a reprodução

ou a nomenclatura: “’Qual é esta?’ ‘E esta?’”. “E com uma rapidez pasmosa aprende

todas as letras, desenhando-as, surgindo nela, como por milagre, a escrita

espontânea” (Rosa y Alberty, 1917: 358). A metodologia aqui descrita, utilizada por

Montessori nas suas Case dei Bambini, era conhecida na Casa Pia de Lisboa, pelo

menos a partir de 1916, todavia Fernando Palyart, que se serviria do método das

“letras móveis recortadas” para o ensino da escrita e da leitura nas suas classes de

anormais, juntamente com o método das lições de coisas, diz ser este um processo

que Montessori pretenderia “dar como seu”, quando na verdade seria “de antiga data”

(1917: 294).

A articulação do desenho e da escrita era evidente independentemente dos

métodos utilizados pelo professor. Freinet, que defende o Método Natural para a

aprendizagem da escrita, diria que a preocupação essencial não era em “saber quais

são as palavras ou letras que a criança vai aprender a desenhar em primeiro lugar”. O

texto escrito seria tradução directa do pensamento infantil, pelo que havia de

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considerar a forma como a “criança desenha esse texto tal como desenha as

personagens com as quais, daí a pouco, vai ornamentar as páginas” (Freinet, 1977:

104).

E é pelo mesmo tipo de lógica que apresento a caligrafia como uma variante

da arte de desenhar. Era assim que era vista na Casa Pia de Lisboa e certamente se

adivinham as riquezas que daí poderiam ser extraídas na produção de alunos

disciplinados e autoregulados. No Livro de Exercícios de Observação e de

Linguagem – utilizado no ensino dos surdos – os assuntos da escrita não deixaram de

marcar presença:

“Manda-lhe escrever o seu nome na capa do seu caderno”. “Manda-lhe segurar

bem a pena e escrever bem, fazer boa letra”. “Diz-lhe que escreve muito fino, que

escreve muito grosso, que escreve muito miudo”. “Tu escreves bem ou escreves

mal?” (Trindade, 1906: 152).

Desde logo, é sublinhado um processo de auto-identificação do aluno com o

registo escrito, sendo que os códigos de escrita deveriam ser seguidos. Em simultâneo

com o desenvolvimento do sentido da vista, comparando comprimentos, alturas,

larguras e posições relativas de objectos, era proposto agora ao aluno que se

concentrasse no caderno diário e o fosse construindo ao longo das lições com um

desenho de escrita. A imitação de exemplares de caligrafia era um exercício proposto

pelo mestre. E aqui, a escrita tomava duas direcções. Uma, em que o professor

distribuía pela classe “quartos de papel” com palavras escritas por si e que o pupilo

teria de “calcar”. Depois de apreender o movimento da palavra escrita pelo mestre,

deveria treiná-la na ardósia pessoal. Só depois, as palavras figurariam no caderno

diário (Raposo, 1869: 95). A ardósia ilustra bem o princípio de exercitação do aluno

pela repetição da tarefa, até a dominar tão bem que pudesse passar a um suporte onde

a eliminação do erro não seria fácil de apagar. É que nas pedras pretas os exercícios

repetem-se, os gestos treinam-se e com um movimento de limpeza, elimina-se o rasto

do que se fez. Espaço de ensaio útil até à assimilação da coreografia. A outra forma

de exercitar a mão seria calcando e imitando as “pautas de caligrafia elementar”.

Reza assim o sumário de um exercício da 3ª classe, do dia 16 de Março de 1867,

segunda-feira da parte da manhã: “Calcar e imitar as pautas de caligrafia elementar de

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José Joaquim Serra (nºs 12 -13) e cópia de dez linhas do Ramalhetinho da puerícia de

Luiz Filipe Leite a páginas 49. Preceitos higiénicos” (Raposo, 1869: 97). E vemos

juntar-se aqui a escrita desenhada da arte caligráfica com a cópia de um texto para o

caderno diário. Era esta a segunda direcção que tomava a escrita na sala de aula.

Pauta caligráfica

(Abreu, 1903)

Os exemplares de caligrafia continuariam, todavia, a marcar presença na sala

de aula. Como exercício mais do que como aprendizagem da escrita. O

desenvolvimento da prática de escrita correspondia, claramente, a uma tecnologia que

a escola soube aproveitar. Nas aulas de caligrafia, à semelhança das de desenho, –

contudo, num movimento de introspecção próprio dos monges na execução de

iluminuras –, o aluno debatia-se com a superação das barreiras que o impediam de

apresentar um exemplar de caligrafia semelhante ao que lhe servia de modelo. No

exercício de caligrafia o corpo total era solicitado para a execução da tarefa. Um

corpo disciplinado, económico, autoregulado, eficiente.

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“Uma boa caligrafia, por exemplo, supõe uma ginástica – uma rotina cujo

rigoroso código abrange o corpo por inteiro, da ponta do pé à extremidade do

indicador. […] Um corpo bem disciplinado é a base de um gesto eficiente. […] A

disciplina define cada uma das relações que o corpo deve manter com o objecto

que manipula. Ela estabelece cuidadosa engrenagem entre um e outro. […]

Temos aí um exemplo do que se poderia chamar a codificação instrumental do

corpo” (Foucault, 2004: 130).

O corpo tomado como objecto e alvo de poder. Todavia, um corpo produtivo,

disciplinado, com domínio sobre si. Nas regras de Caligrafia para se aprender a

escrever com método, composto por Luiz Gonçalves Coutinho em 1817, propunha-se

que se pegasse “na pena com os três dedos da mão esquerda, a saber: o polegar,

indico, e o maior debaixo dela, ficando o lombo para cima” (Lima, 1932:253). E o

saber fazer era resultado de um trabalho disciplinar: “o papel só exige

concomitantemente tinteiro, aparo e caneta, quando o aluno já está bem adestrado na

escrita, quando já sabe escrever”. E quem já sabia escrever não sujaria “de tinta o

papel, os dedos e o fato”. Enquanto tal não sucedesse usar-se-ia “o lápis que não tem

os perigos da tinta” (Lima, 1932: 258). Tratava-se, em boa verdade, de um domínio

de si – do corpo e do espírito – entregando-se o aluno àquela tarefa como a qualquer

outra rotina que lhe fosse prescrita pela instituição. Havia obviamente o outro lado da

questão. Todos os professores deveriam pedir a apresentação de “uma prova

caligráfica no 1º domingo de cada mês”, a qual, “depois de vista pelo Director”, seria

devolvida ao aluno para se gloriar perante a família (Raposo, 1869: 29). Esta era,

portanto, uma tarefa que ultrapassava os muros da escola e entrava directamente na

casa da família, que nestas coisas de letras desenhadas havia de depositar as maiores

crenças no futuro do seu educando.

Capturando de novo a ideia de que o exercício de caligrafia posicionava o

aluno numa batalha contra os seus próprios limites, situando num mesmo plano

características individuais do educando e o seu aproveitamento produtivo na obtenção

de uma hexis corporal e espiritual, poder-se-iam propor inúmeros exercícios:

“L'oeil apprend à reconnaitre ces mots par l'image labiale qu'ils présentent sans

les décomposer en leurs parties. Enfin, nous inculquons à ces petits, dont l'esprit

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A arte da escrita: caligrafia

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s'est entr'ouvert, des principes de calligraphie”. “Nous a demandé d'apprendre aux

enfants à écrire des deux mains. Tous ces exercices améliorent l'élève

physiquement et moralement en l'habituant à l'obéissance at à la discipline, en

ouvrant son intelligence à l'esprit d'attention, d'ordre et d'observation. C'est là tout

ce qu'on peut arriver à faire dans une classe préparatoire” (Weindel, 1907: 10).

As crianças surdas reconheceriam nos lábios do mestre a palavra falada e

fariam dela o retrato gráfico. A escrita com ambas as mãos seria uma prática com

vantagens disciplinares evidentes sobre o corpo da criança, mas simultaneamente

uma vitória do pupilo sobre si mesmo conseguindo, com uma e com outra mão,

performance semelhante. Todavia, outras práticas de escrita estavam disponíveis para

exercitar a disciplina e treinar a atenção. O ditado oral:

“A présent, à voix haute, le professeur déclare:

- Nous allons faire une dictée.

Tous les enfants se saisissent de leur plume. Le professeur commence à dicter:

'Le cheval...'

Et les plumes, quand les yeux ont 'entendu' la phrase, se mettent à courir sur le

papier.

- Voyez, me dit le professeur, en me tendant un cahier au hasard, quand le dictée

est finie.

Rien n'est omis. Et c'est presque sans fautes” (Weindel, 1907: 14).

A uma só voz, vista, as crianças surdas executariam a tarefa. Corpos

disciplinados, treinados, corpos úteis que iam dominando na execução e vinculação a

uma tarefa de escrita a língua oral. Gostaria agora de fazer um breve apontamento

sobre a importância do caderno diário e da ritualização da escrita na sala de aula.

Qualquer que seja a técnica, só pode ser dominada pelo indivíduo se for treinada por

exercícios contínuos. A escrita, particularmente a escrita na sala de aula, envolve o

aluno num movimento circular. “ A meditação que precede as notas, que permitem a

releitura, que, por sua vez, revigora a meditação ” (Foucault, 2004d: 147). Mas este

elemento que serve de suporte à cópia das notas que o professor vai tomando no

quadro ou aos exercícios individuais que o aluno vai concretizando, é conector e

impulsionador de uma pose activa na aprendizagem da lição. No mesmo dia 16 de

Março de 1867, a 2ª classe via-se a mãos com uma cópia para os cadernos “ das

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seguintes frases explicadas na lição educativa antecedente e escritas pelo professor no

quadro preto: o pombo tem asas, o pombo tem penas, o pombo tem rabo, o pombo

tem cabeça, o pombo tem bico, o pombo tem olhos, o pombo tem pernas ” e o pombo

teria também “ unhas ”, seria “ bonito ”, “ manso ” e “ voador ”. Copiar-se-ia ainda

com todo o cuidado que “ o pombo nasce , cresce, vive, sente, voa, arrulha, envelhece

e morre ” (Raposo, 1869: 96).

Todavia, nem só de cópias viveria a escrita no caderno do aluno. Na 5ª cadeira

e no mesmo dia 16 de Março, as classes anteriormente referidas, fariam uma redacção

sobre a fábula de Bocage Os dois gatos. Depois de lido e explicado este texto, “que

prende e convence ao menos versado em argumentações silogísticas”, escritos que

estavam no quadro preto “ os pontos capitais”, chegara a altura de propor ao aluno a

escrita de um texto “segundo as impressões que a leitura e as explicações lhe haviam

deixado no espírito” (Raposo, 1869: 103). Ora, tratava-se já de um exercício de

meditação, que exigia do aluno fixar em si sentimentos e ideias vindos de um texto

escolhido pelo mestre, mas tendo uma margem de liberdade, própria do exercício

individual.

A escrita no caderno diário constituía-se como um documento daquilo que

seria a lição dada pelo mestre, um discurso auxiliar que mantinha o aluno em

actividade durante a aula. Um work in progress que convinha manter organizado,

com caligrafia exemplar, pronto a ser consultado pelo aluno, pela família ou avaliado

pelo professor. O importante é que este objecto e o acto de o preencher se

encaixavam eficazmente na arte de governar os escolares. Não só era o educando

obrigado a desenvolver métodos de trabalho sistemáticos na aula, como acabava por

se envolver nos conteúdos curriculares. Da mesma forma, também o professor se via

envolvido na prática do registo. Primeiro, porque o que constasse no caderno do

aluno, correspondia à matéria leccionada na aula, depois, porque também ele - como

de resto tivemos oportunidade de ler nos sumários - teria de registar todos as

actividades da lição. No cruzamento do caderno diário com o livro de ponto, ter-se-ia

o movimento da classe com a letra de dois actores. O livro de ponto é, também, uma

das tecnologias da pedagogia moderna no sentido de normalização e vigilância das

práticas do professor. Atempadamente, o mestre preparava o plano da lição, de

acordo com o programa previsto para os alunos, e este deveria ser cumprido na aula.

O registo do sumário mais não era do que a prova do acontecimento de uma aula

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A arte da escrita: caligrafia

375

marcada.

A escola moderna pretendia fazer do caderno do aluno um elemento com

vida. O caderno seria um elemento mais na produção de saber sobre o educando, pois

como “obra” sua, deveria “revelar” o seu “psiquismo”. “O aluno é solicitado a ilustrar

todos os seus cadernos, a enchê-los profusamente de desenhos, de bonecos, de

apropriadas alegorias”. Dar “largas à sua imaginação imitadora e criadora”. O

caderno diário viria substituir o tradicional compêndio, nele, o aluno iria acumulando

registos, organizando as lições, estudando fora do tempo destas. Se o melhor processo

“de aprender uma língua é escrevendo, redigindo, compondo”, pois este objecto

“obriga o aluno a escrever, a redigir, a compor, a toda a hora, em todas as aulas”

(Lima, 1932: 275). Pela escrita se criariam hábitos de reflexão. O aluno estaria

entregue a si mesmo na elaboração do seu caderno e todo o tempo lectivo se

encontrava orquestrado em torno deste elemento.

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A sala de aula como laboratório…

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Algumas palavras finais…

377

ALGUMAS PALAVRAS FINAIS…

Chegou o momento de encerrar esta escrita. Todavia, mais do que repetir o que ao

longo dos capítulos foi sendo dito, parece-me pertinente reconstruir um percurso,

articulando-o com as minhas motivações pessoais na abordagem dos momentos que

se sucedem.

Esta escrita surgiu com uma orientação que era a de mostrar a construção do

surdo enquanto aluno, num arco temporal estabelecido e tentar traçar, nessa viagem,

uma possível história do aluno surdo na Casa Pia de Lisboa. Ora, desde logo se

impunha a necessidade de explicar, primeiro, a questão da surdez como uma

construção, derivando o surdo dessa formação discursiva que se ia instalando como

anormalidade do corpo. Tornava-se necessário abordar os objectos a partir de uma

posição flexível, de modo a poder questioná-los naquilo que parece ser a sua pele

natural. Esta atitude, que se baseou sempre que pude na abordagem das práticas e dos

discursos dos sujeitos envolvidos nos processos educativos, quer com surdos, quer

com outras tipologias de escolares, permitiu-me desocultar num cenário como a Casa

Pia de Lisboa, princípios de uma modernidade educativa que se estendem até aos dias

de hoje e que, por isso, nos dá ver processos históricos da nossa própria constituição

enquanto sujeitos.

Os objectos, sejam eles disciplinas, sejam indivíduos, adquirem os seus

contornos nas formações discursivas que os enlaçam como conteúdo. Foi-nos

possível ao longo deste trabalho detectar a presença de um modelo e de uma

gramática escolares que se têm mantido relativamente estáveis desde, pelo menos, os

últimos anos do século XIX. Falo, evidentemente, do tempo e do espaço trabalhados

na arena educativa, mas igualmente dos sujeitos que aí dão corpo às diversas

relações. A centralidade do sujeito criança no processo educativo vem marcar as

práticas e as técnicas que regem o governo dos escolares.

A modernidade educativa tem também de ser abordada num olhar que abarque

o conjunto de especialistas que se instalam em torno da criança e que tecem os

discursos que vão constituindo a infância como um tempo e um espaço no contexto

populacional. A produção de um saber sobre a criança permite a operacionalidade de

um poder, voltado para o desejo de governo de um grupo que está em fase de

aquisição de uma nova identidade. A infância que é objecto deste estudo é uma

infância anormal, portadora de surdez, que é acolhida numa instituição que promete

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Prótese-ouvinte

378

transformá-la, por meio de técnicas normalizadoras que encontram na incorporação

da oralidade a justificativa necessária à intervenção ortopédica que propõem. Foi

importante perceber através da escrita de Michel Foucault, Erving Goffman, Jacques

Derrida e Zygmunt Bauman conceitos que, aplicados como instrumentos sobre aquilo

que era o objecto desta escrita, permitiram estabelecer redes de articulações,

arbitrárias porque tantas outras seriam possíveis, no interior de relações naturais num

determinado processo de acolhimento e educação.

No projecto e na construção deste percurso, o conceito de governamentalidade

funciona como eixo orientador de um olhar. O governo dos indivíduos vê-se apoiado

em tecnologias biopolíticas que sublinham o corpo do sujeito como objecto

individualizado, recortado de um corpo maior, o corpo de múltiplas cabeças que é a

população, e trabalhado de acordo com princípios reguladores que têm na norma o

elemento orientador que se deverá alastrar ao homem-espécie. O movimento de

institucionalização de uma infância anormal, é precedido pelo olhar médico que

detecta as falhas do corpo, o que justifica a presença desse grupo de especialistas na

paisagem educativa que então passará a detectar mais falhas, elaborando-se um jogo

de verdades entre o que é visto e o que é dito. O poder de governar, quer na escola,

quer noutros cenários sociais passa a estar dependente de um saber sobre os sujeitos.

Este movimento traz em si os elementos para a construção de um corpo,

necessariamente social, mas inscrevendo-se numa esfera privada que conduz para um

plano principal a relação que o sujeito passa a estabelecer consigo mesmo.

A hospitalidade concedida ao surdo retira-o de uma posição inventada nas

margens da sociedade e promete-lhe uma inclusão através de práticas e técnicas de

regeneração. Ao longo deste trabalho procurei mostrar que estas práticas e estas

técnicas, fixadas numa perspectiva de governo do aluno surdo, são direccionadas para

a alma da criança, incitando-a a uma transformação de si mesma. Foi possível

verificarmos que, as técnicas adoptadas nos espaços escolares, se afastam de regimes

coercivos e adquirem visibilidade pelos mecanismos de governo que despoletam no

próprio sujeito. Se por um lado identifiquei o processo de acolhimento do aluno numa

instituição de carácter total, com uma hospitalidade condicional, foi no sentido de

trazer à superfície a impossível incondicionalidade na relação com o Outro, no

interior de uma racionalidade governativa moderna. Não será demais lembrar que ao

produzir a diferença do Outro, a modernidade constrói a identidade do Mesmo, num

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Algumas palavras finais…

379

terreno preparado para nivelar e anular esse estado-Outro.

Neste sentido, foram observadas as técnicas disciplinares presentes na

paisagem educativa, como sejam os horários, os prémios, os castigos, os exercícios,

mas a sua abordagem foi, sempre que possível, considerada num quadro que não é

feito de meras oposições mas antes no interior de uma complexidade em que

disciplina se articula com liberdade e autonomia da criança. É assim que os discursos

modernos de controlo disciplinar se constroem sob um outro grupo de tecnologias,

aquelas que, noutro contexto, Michel Foucault designou por tecnologias do eu, que

atingem o sujeito em pontos estratégicos que despoletam em si ímpetos para a acção

de transformação de si próprio, da sua alma, da sua conduta, activando princípios de

inspecção e reflexão pessoais, numa tentativa de adequação constante aos princípios

morais que estruturam o pensamento da época. A apropriação e instrumentalização

deste conceito, manifesta-se no acto de observar a presença destas técnicas no interior

das propostas e das práticas actuantes no tecido escolar: o modelo de oralidade como

lugar de normalidade, as técnicas confessionais, os conteúdos explorados no manual

escolar, etc.

Um outro aspecto que me parece pertinente considerar nesta fase conclusiva

tem que ver com o tipo de actividades de que a escola fez uso para trabalhar a criança

a partir da sua especificidade e natureza próprias. Refiro-me, claro está, às actividades

de carácter manual e artístico que, no caso do surdo, facilitaram a sua transformação

em aluno pela não violentação do seu estado surdo, naquilo que foi a sua participação

consentida nas actividades que a escola lhe propunha. O desenho, os trabalhos

manuais, as actividades de carácter lúdico, a aprendizagem assente sobre dinâmicas

de visualidade ou de exploração sensorial, vincularam o surdo às tarefas que

estruturam o sistema escolar, transformando-o, progressivamente num indivíduo útil

e dócil à instituição. Lembremos as palavras de Dewey no início do século XX

dizendo que “ao analisarmos a escola, verificamos que uma das tendências mais

marcantes do presente é a introdução do chamado treino manual, dos trabalhos

oficinais e das artes domésticas” e isto, “depois de várias experiências terem revelado

que esse tipo de ensino cativa imenso os alunos e dá-lhes algo que não poderiam

obter de nenhuma outra forma” (2002: 22). Este tipo de propostas foi trabalhado em

dois domínios: um que fazia apelo a uma auto-expressão da criança, levando-a a

registar os movimentos da sua alma nos objectos que produzia e que, depois, eram

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Prótese-ouvinte

380

lidos por um olhar enformado por teorias psicológicas, outro, que acontecia

simultaneamente, apontando para o domínio de si mesmo, pela incorporação de

práticas adestrantes que estruturavam as relações do corpo no espaço, no tempo e no

contacto com os outros, surdos ou ouvintes.

Quanto à organização desta escrita, cumpre-me explicar a sua divisão binária

e o transporte recorrente de temas e conceitos entre capítulos e entre a primeira e a

segunda parte. A agenda proposta na primeira parte pretende contextualizar os

leitores com uma série de conceitos, essencialmente filiados em Michel Foucault,

mas trabalhados por um núcleo de autores já apresentados na introdução e que

necessitavam, sob o meu ponto de vista e por uma questão de construção do meu

próprio pensamento, de uma primeira abordagem, ainda que composta por imagens

não muito detalhadas. A principal diferença entre este primeiro momento da escrita e

o segundo, é o alcance da visão que, na segunda parte, se focaliza sobre cenários mais

empíricos onde se dá corpo, através das práticas, a princípios enunciados e

contextualizados na primeira parte do texto. Por outro lado, esta recorrência de

conceitos justifica-se pela necessidade de construir uma narrativa que está assente

numa perspectiva de governamentalidade, que funciona como um núcleo que se

estende como uma rede que é interface entre o olhar e os espaços, as práticas e os

actores. Uns conceitos articulam-se com os outros e não existem isoladamente.

Gostaria novamente de assumir a minha relação com a escrita destes autores

que foram marcando a produção da minha própria escrita, para dizer que a sua

presença aqui ultrapassa o âmbito autoral, para habitar um domínio em que os autores

são os sujeitos da escrita e esta existe pelos jogos, pelas articulações e viagens por

entre outras escritas, por aquilo que pode significar noutros espaços. Em suma, cada

texto é já uma multiplicação de outros textos e assim deverá continuar o processo,

para lá da mais recente escrita. Cumpre-se a ideia de Derrida de dar a ler como quem

deixa desejar, no sentido de oferecer a escrita à (re)construção pelo Outro.

Para o fim deixo uma análise daqueles que enunciei como sendo os riscos

desta dissertação. Um deles, o da ambivalência desta escrita, creio que não se

dissipou, antes adquiriu corpo ao longo dos capítulos da tese. Foram essas matizes

que conferiram interesse às paisagens construídas, resultando de um olhar que não

pretende circunscrever-se num ponto fixo em que se adopta uma única forma de

abordar os objectos. Aquilo que desde o início marcou um certo afastamento

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Algumas palavras finais…

381

relativamente às práticas educativas de carácter oralista, que me levou a falar da

existência dos estranhos, da hospitalidade condicional, foi também o que alimentou a

produção do surdo enquanto aluno e do surdo enquanto autor da sua identidade. A

violentação pela não consideração do estado surdo a não ser num campo da patologia,

foi acompanhada de uma produtividade própria das relações de poder e constitutiva

dos sujeitos, sejam eles sujeitados ou não. Relembro que o conceito de poder que se

desenvolve nesta escrita, derivado dos escritos de Michel Foucault, não é mais um

poder linear, executado verticalmente, mas, isso sim, um poder que opera de baixo

para cima, que se reparte socialmente, um poder produtivo que na sua acção não visa

já o espectáculo da punição, antes se preocupa com os efeitos de transformação que

provoca naqueles que envolve.

Outro risco assumido logo de início era o de mostrar o quanto as práticas de

inclusão teriam de exclusão. Parece-me que esta problemática terá ficado clara ao

longo de todo o trabalho, mas essencialmente nos momentos em que se fala da

produção do Outro, da sua construção e domesticação no interior de um quadro de

racionalidade governativa. Julgo que a abordagem realizada em torno da nomeação e

classificação terá tornado explícita a acção de circunscrever os espaços reservados

aos estranhos, mantendo-os sob um olhar vigilante e de controlo permanente quer

pelo esboço de todas as actividades a realizar ao longo dos dias, quer pela própria

aprendizagem do ser e do estar numa instituição de carácter total. Falava de

considerar um quadro de acção e não um quadro de inculcação e, na verdade, penso

ter mostrado que um dos princípios da modernidade educativa se fixou no

incitamento do sujeito para uma autoeducação, para uma autoconstrução, um

autogoverno de si mesmo conseguido por uma soberania da vontade do sujeito, de um

triunfo de um querer e de um domínio da sua interioridade. Não é outro o cenário em

que me parece possível ler-se a aceitação de práticas oralistas e a participação do

aluno surdo na sua narração enquanto deficiente auditivo.

A terminar, sublinharei o título desta dissertação, expressando uma vez mais

aquilo que foi minha intenção e aquilo que, deliberadamente não o foi. Prótese-

ouvinte, pretende ser uma visão possível, mas não a única, do que terá sido e

possibilitado a construção do aluno surdo na Casa Pia de Lisboa. Embora toda esta

narração se inscreva num contexto e num momento histórico precisos, a verdade é

que não é o elemento temporal de sequencialidade de acções que organiza e encaixa

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Prótese-ouvinte

382

os capítulos. É antes o que se quer contar que captura os cenários e traz os discursos e

as práticas de uma história para a superfície destas páginas. Da produção desta escrita

ficou-me o agrado de habitar fronteiras, aproximando espaços tantas vezes mantidos

em isolamento.

Como última imagem apresento uma fotografia. A sua presença aqui é decisão

dos últimos dias quando, ao ver a História da Imagem Fotográfica em Portugal, de

António Sena, reconheci uma imagem que nunca tinha visto. Como qualquer outra

fotografia dos espaços escolares, também esta se abre a uma leitura e construção de

sentidos.

A vida, 1922

(Sena, 1998)

O título da fotografia é A vida, sabe-se que a imagem foi captada em 1922, em

Lisboa, sendo de autor desconhecido. O espaço parece semelhante ao cenário em que

Teixeira Gomes assistiu à exibição performativa de um surdo da Casa Pia de Lisboa,

pela mesma altura. De resto, são surdos os alunos representados. Fixam pelo olhar o

professor que aponta algo com o lápis ao aluno que, em pé, está junto de si. No

quadro negro, cinzento pelos múltiplos registos que vai recebendo, numa caligrafia

escolar de letras minúsculas de grandes dimensões, a vida, talvez título da lição. No

lado esquerdo do quadro, alguém desenhou frutos. A imagem era o recurso utilizado

nos processos de aprendizagem dos alunos surdos. Ainda no quadro, mas por

sobreposição, a colocação de uma gravura, enquadrada numa superfície branca,

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Algumas palavras finais…

383

levanta alguma curiosidade. Poderia tratar-se da ilustração de uma cena relacionada

com a lição. Todavia, é Jacob Rodrigues Pereira que aí figura, no seu laborioso

trabalho de ensinar a palavra a uma menina surda. A síntese desta fotografia está

contida neste pequeno elemento, um pouco à direita do seu centro. Está aqui figurado,

também, o sentido de prótese-ouvinte de que esta escrita foi falando e, se prótese

aponta para um suplemento que supera uma falta, – a do aluno surdo –, pretendeu

sempre sublinhar a sua própria ipseidade: “o poder de um ‘eu posso’, mais originário

do que o ‘eu’, numa cadeia em que o ‘pse’ de ipse não se deixa mais dissociar do

poder, do domínio ou da soberania do hospes”. O hospes, aquele que é plasticamente

trabalhado na “cadeia semântica que trabalha no corpo a hospitalidade tanto quanto a

hostilidade” (Derrida, 2001: 27).

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Prótese-ouvinte

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Índice de imagens

387

ÍNDICE DE IMAGENS

………….. pág. 1 (fragmento de A vida)

……… pág. 383 (fragmento de A vida)

pág. 381….. A Vida, 1922 ……. (Sena, 1998)

…. pág. 28 (fragmento de Aulas nas oficinas) …pág. 275 Aulas nas oficinas (Arquivo Fotográfico de Lisboa)

…… pág. 31

Observação psicológica pela prova de Rey

(Amaral, 1954)

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Prótese-ouvinte

388

…. pág. 47 (fragmento de 1ª cadeira de instrução

primária da Casa Pia de Lisboa)

(Arquivo Fotográfico de Lisboa)

pág. 49 …. Aula da 4ª cadeira da Casa Pia de Lisboa

(Arquivo Fotográfico de Lisboa)

pág. 73 e pág. 191 ………… Ficha individual do aluno (Arquivo da Casa Pia de Lisboa)

…. pág. 72 (fragmento de O recreio) (Amaral, 1954)

pág. 89… O professor Pavão ensinando a um surdo-mudo as letras pela ‘vibração no alto da cabeça’ (A Ilustração Portuguesa de 6 de Maio de 1907)

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Índice de imagens

389

pág.105…………. …. Exercícios de vocalização ao espelho …….(Ferreira, 1922 b)

pág. 123 (fragmento) e pág. 272 Exercícios de articulação (Amaral, 1954) pág. 135 ………… ….. Refeitório da Casa Pia de Lisboa (Arquivo Fotográfico de Lisboa) pág. 148 …………………………………………….. (fragmento de gravura) ……………………………... (Coguillot, 1889) …………………………………………..

…..pág. 151 (fragmento de Aula na Casa Pia de Lisboa) (A Ilustração Portuguesa de 8 de Abril de 1907)

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Prótese-ouvinte

390

pág. 169…………………………………… Aula de treino auditivo e rítmico (Amaral, 1954)

pág. 175…………………. O Sr. Presidente da República assistindo a um

dos exercícios no Instituto de Surdos-mudos

(Anuário, 1924)

……………………………………… pág. 189 (fragmento de aula de trabalhos manuais na secção de surdos da Casa Pia) (Amaral, 1954)

pág. 191 Correcção da respiração (Amaral, 1954) pág. 191 ………………. Observação audiométrica (Amaral, 1954)

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Índice de imagens

391

pág. 201…………………… Observação psicológica pela Escala de Weschler

(Amaral, 1954)

pág. 211……………………………. Alunos vestindo-se depois do banho

(A ilustração Portuguesa de 8 de Abril de 1907)

pág. 235 (fragmentos de gravuras)

……… (Coguillot, 1889)

pág. 238 …………………………………………………….

Estudo de pronunciação pelo movimento dos lábios diante

de um espelho ……………………

(A Ilustração Portuguesa de 6 de Maio de 1907)

pág. 253

Exercício de treino táctil

(Ferreira, 1922 b)

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Prótese-ouvinte

392

pág. 259 ………………………………………………… (fragmentos de gravuras) (Coguillot, 1889)

pág.262……………………… (fragmento de aula de

treino sensorial)

(Amaral,1954)

pág. 263 ……. Exercícios ………….(Ferreira, 1924)

pág. 264………………… Exercício de respiração no aparelho de compressão

(A Ilustração Portuguesa de 6 de Maio de 1907)

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Índice de imagens

393

pág. 266 (Coguillot, 1889)

pág. 267

Exercício de sopro na régua graduada

(A Ilustração Portuguesa de 6 de Maio de 1907)

pág. 271 ……………………..

Exercício de provocação da voz (A Ilustração Portuguesa de 6 de

Maio de 1907)

pág.279

Exercícios de equilíbrio e exercícios de ritmo (Amaral, 1954)

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Prótese-ouvinte

394

pág. 289 e 290

Páginas de O Português pela Imagem

pág. 303…………. gravura de O Português pela Imagem

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Índice de imagens

395

pág. 308 (fragmento de gravura de O Português pela Imagem)

pág. 309…………………….(fragmentos de

gravuras de O Português pela Imagem)

pág. 315

Lições de coisas… (Amaral, 1954)

pág. 327……. Aulas nas Oficinas (A Ilustração

Portuguesa de 8 de Abril de 1907)

pág. 341……………………….

Exercício de desenho

(Arquivo Fotográfico de Lisboa)

pág. 351

Uma classe de desenho elementar

(A Ilustração Portuguesa de 8 de Abril de 1907)

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Prótese-ouvinte

396

pág. 353

A posição do caderno

Modo de afiar o lápis ……………………. (Abreu, 1903)

pág. 366 ….. ………………………Sala de desenho da Casa Pia de Lisboa

(Arquivo Fotográfico de Lisboa)

pág.367 ……… (fragmento de aula na secção de surdos da Casa Pia)

(Amaral, 1954)

pág. 371 pág. 376

Pauta caligráfica (Abreu, 1903) (fragmentos de gravuras de O Português pela Imagem)

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Índice de imagens

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