ÍNDICE - Comprar livros online | Editorial Presença · passar o mal que lhe foi feito, ou se...

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ÍNDICE Introdução: Rumo à Integridade .................................................... 11 Primeira Parte: COMPREENDER O PERDÃO ........................... 21 Capítulo 1 Porquê Perdoar? ................................................... 23 Capítulo 2 O Que o Perdão Não É ....................................... 39 Capítulo 3 Compreender o Caminho dos Quatro Passos .... 51 Segunda Parte: O CAMINHO DOS QUATRO PASSOS ............ 71 Capítulo 4 Contar a História ................................................ 73 Capítulo 5 Dar Voz ao Sofrimento ....................................... 99 Capítulo 6 Perdoar ................................................................. 125 Capítulo 7 Reatar a Relação ou Libertá‑la ........................... 151 Terceira Parte: TUDO PODE SER PERDOADO ........................ 167 Capítulo 8 Necessitar de Perdão ........................................... 169 Capítulo 9 Perdoar‑se a Si Mesmo ........................................ 199 Capítulo 10 Um Mundo de Perdão ......................................... 219 Fontes ............................................................................................... 231 Agradecimentos ............................................................................... 233

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ÍNDICE

Introdução: Rumo à Integridade .................................................... 11

Primeira Parte: COMPREENDER O PERDÃO ........................... 21

Capítulo 1 Porquê Perdoar? ................................................... 23

Capítulo 2 O Que o Perdão Não É ....................................... 39

Capítulo 3 Compreender o Caminho dos Quatro Passos .... 51

Segunda Parte: O CAMINHO DOS QUATRO PASSOS ............ 71

Capítulo 4 Contar a História ................................................ 73

Capítulo 5 Dar Voz ao Sofrimento ....................................... 99

Capítulo 6 Perdoar ................................................................. 125

Capítulo 7 Reatar a Relação ou Libertá ‑la ........................... 151

Terceira Parte: TUDO PODE SER PERDOADO ........................ 167

Capítulo 8 Necessitar de Perdão ........................................... 169

Capítulo 9 Perdoar ‑se a Si Mesmo ........................................ 199

Capítulo 10 Um Mundo de Perdão ......................................... 219

Fontes ............................................................................................... 231

Agradecimentos ............................................................................... 233

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INTRODUÇÃO

RUMO À INTEGRIDADE

«Ele tinha múltiplos ferimentos.» Ela explicou tudo com a pre‑

cisão de um médico legista. «Apresentava três ferimentos na parte

superior do abdómen, indiciadores de terem sido usadas diferentes

armas para o ferir, ou de ter sido golpeado por um grupo de pessoas.»

A senhora Mhlawuli prosseguiu o seu pungente depoimento perante

a Comissão para a Verdade e Reconciliação, descrevendo o desapa‑

recimento e homicídio de Sicelo, o seu marido. «Na parte inferior,

também tinha ferimentos. Ao todo, eram quarenta e três. Atiraram‑

‑lhe ácido para a cara. Deceparam ‑lhe a mão direita logo abaixo do

pulso. Não faço ideia do que fizeram com a sua mão.» Invadiu ‑me

uma onda de horror e náusea.

Chegou depois a vez de Babalwa, de dezanove anos. Tinha oito

anos quando o pai morreu e o irmão tinha apenas três. Descreveu

o sofrimento profundo, a perseguição policial e as privações por que

passaram nos anos que se seguiram à morte do pai. Depois, acres‑

centou: «Eu e o meu irmão bem gostaríamos de saber quem matou

o nosso pai.» As suas palavras seguintes deixaram ‑me estupefacto

e sem fôlego. «Queremos perdoar ‑lhes. Queremos perdoar, mas não

sabemos a quem nos devemos dirigir para o fazer.»

Na qualidade de presidente da Comissão para a Verdade e Re‑

conciliação, é frequente perguntarem ‑me como é possível o povo

sul ‑africano ter perdoado as atrocidades e as injustiças que sofreu

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durante o apartheid. O caminho que percorremos na África do Sul

foi bastante longo e traiçoeiro. Hoje é difícil acreditar que, até às

primeiras eleições democráticas em 1994, o nosso país institucio‑

nalizava o racismo, as desigualdades e a opressão. Na África do Sul

do apartheid, apenas os brancos podiam votar, só eles mereciam

ter uma educação de nível superior e podiam aspirar ao progresso

e às oportunidades. Decorreram décadas de protesto e violência.

Muito sangue foi derramado durante a nossa longa marcha rumo

à liber dade. Quando finalmente os nossos líderes foram postos em

liberdade, receava ‑se que a nossa transição para a democracia se

transformasse num banho de sangue, vingança e retaliação. Mila‑

grosamente, optámos por ter outro futuro. Escolhemos o perdão.

Naquele momento, percebemos que contarmos a verdade e sarar‑

mos a nossa história era a única maneira de salvar o nosso país da

destruição certa. Não sabíamos até onde nos levaria esta escolha.

O processo em que embarcámos com a ajuda da Comissão para a

Verdade e Reconciliação foi, como qualquer verdadeiro crescimen‑

to, incrivelmente doloroso e profundamente belo.

Também costumam perguntar ‑me o que aprendi sobre o perdão

com essa experiência e com as viagens que fiz ao longo da minha vida

a muitos lugares em conflito e onde as pessoas sofriam, da Irlanda do

Norte ao Ruanda. Este livro é uma resposta a esta pergunta, e a outra,

não formulada, que lhe está subjacente: «Como perdoamos nós, de

facto?» Este livro é dirigido a todos aqueles que necessitam de per‑

dão, seja por quererem perdoar, seja por precisarem de ser perdoados.

Há dias em que gostaria de poder apagar todos os horrores que

testemunhei e que ainda guardo na memória. Parece inesgotável a

criatividade humana para fazermos mal uns aos outros, tal como não

têm fim as razões que consideramos justificáveis para agirmos desse

modo. Também é inesgotável a faculdade humana para curar. Existe

em cada um de nós uma capacidade inata para retirar alegria do sofri‑

mento, para encontrar esperança na situação mais deses perada e para

sarar qualquer relação que esteja a necessitar de ser sarada.

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Gostaria de partilhar consigo duas verdades muito simples: não

há nada que não possa ser perdoado e não há ninguém que não me‑

reça perdão. Quando conseguir ver e compreender que todos esta mos

ligados uns aos outros — quer seja pelo nascimento, pelas circuns‑

tâncias ou simplesmente pela nossa humanidade partilhada —,

então, saberá que isto é verdade. Foram muitas as vezes em que eu

disse que na África do Sul não existiria futuro sem perdão. A nossa

raiva e a nossa busca de vingança seriam a nossa destruição. Isto é

verdade tanto para cada um de nós, em termos individuais, como

para todos nós, em geral.

Houve alturas em que cada um de nós sentiu necessidade de

per doar. Também houve momentos em que todos precisámos de

ser perdoados. E todos esses momentos voltarão a repetir ‑se. De

uma maneira muito particular, todos nos destroçamos e todos nós

magoamos outras pessoas. O perdão é a viagem que empreendemos

para sarar as partes destroçadas. É assim que reconquistamos a

nossa integridade.

Quer tenha sido o algoz que me torturou com a maior das bru‑

talidades, o companheiro que me traiu, o patrão que me preteriu

numa promoção ou um condutor que me barrou a passagem

durante a minha deslocação matinal, deparo ‑me sempre com as

mesmas possibilidades de escolha: perdoar ou perseguir a vingança.

Ponderamos esta opção de perdoar ou não como os indivíduos, as

famílias, as comunidades e o mundo profundamente conexo que

somos.

A qualidade da vida humana no nosso planeta não é mais

do que a súmula das interações diárias que temos uns com os

outros. Sempre que auxiliamos e sempre que fazemos mal, provo‑

ca mos um impacto drástico no nosso mundo. Como somos

humanos, algumas das nossas interações correrão mal, e então

magoaremos alguém, saíremos magoados, ou ambas as coisas.

Isso faz parte da natureza do ser humano e é uma inevitabilidade.

O perdão é o meio que temos de voltar a repor essas interações

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no bom caminho. É a nossa maneira de remendar o tecido social.

É a forma eficaz de evitarmos que a nossa comunidade humana

se desmorone.

Já perdemos a conta aos estudos que referem os benefícios do

perdão em termos sociais, espirituais, psicológicos e até fisiológi‑

cos. No entanto, o próprio processo do perdão foi com frequência

votado ao desconhecimento e olhado como um mistério. Sim, é

bom e ajuda muito atirarmos o ressentimento para trás das costas,

mas como conseguimos fazê ‑lo quando fomos magoados? Claro

que o melhor é não retribuirmos na mesma moeda, mas como

conseguimos esquecer esse olho por olho, dente por dente, quando

aquilo que nos foi tirado não nos pode ser restituído? E, será mesmo

possível perdoar e ainda assim tentar que se faça justiça? Que pas‑

sos temos de dar para conseguirmos perdoar? Como conseguimos

sarar todas as brechas que se abriram nos nossos corações e que

advêm do facto de sermos criaturas frágeis?

O caminho do perdão não é fácil de percorrer. Quando segui‑

mos por ele, temos de passar pelo meio dos baixios lamacentos

do ódio e da raiva, de avançar pelo meio do sofrimento e da perda

para encontrar a aceitação que é o marco do perdão. Claro que seria

muito mais fácil percorrermos esse caminho se a estrada estivesse

claramente delineada, mas não está. A linha divisória que separa

aqueles que causaram o mal dos que foram maltratados também

não é clara. Num determinado momento, todos nos encontramos

na posição daquele que foi magoado para, no momento seguinte,

sermos aquele que magoou alguém. E, pouco depois, transpomos os

limites e avançamos na dor e na raiva. Todos cruzámos já muitas

vezes essas linhas divisórias. Onde quer que se encontre, seja o que

for que tenha feito ou o que lhe tenha sido feito, este livro é ‑lhe

dirigido a si e temos esperança de que o ajude.

Em conjunto, analisaremos cada um dos aspetos do Caminho

dos Quatro Passos do perdão: Contar a História, Dar Voz ao Sofri‑

mento, Conceder o Perdão e Renovar a Relação ou Libertá ‑la.

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15D E S M O N D M . T U T U E M P H O A . T U T U

Convidamo ‑lo a juntar ‑se a nós nesta viagem de cura e transfor‑

mação. Não importa se tem dificuldade em avançar e em ultra‑

passar o mal que lhe foi feito, ou se precisa de coragem para

admitir o mal que você mesmo fez. Perdoar não é nem mais

nem menos do que a maneira como conseguimos sarar o mundo.

Saramos o mundo sarando ‑nos a nós mesmos e a tudo o que nos

vai na alma. O processo é simples, mas a sua concretização não

é fácil.

Escrevo este livro com a minha filha, Mpho, que é sacerdote

anglicana e trabalhou muito intensamente com paroquianos e pere‑

grinos em busca de perdão e de cura. Neste momento, encontra‑

‑se a fazer uma tese de doutoramento sobre o perdão, trazendo

valiosos conhecimentos para este livro. E dá um valioso contributo

com a história da sua própria viagem pelo Caminho dos Quatro

Passos e com a luta que travou para compreender e perdoar outras

pessoas.

Este livro é um convite que lhe fazemos para percorrer connosco

o caminho do perdão. Partilharemos consigo as nossas histórias pes‑

soais, as histórias de outros que nos inspiraram e ainda aquilo que

aprendemos acerca do processo de perdoar. Vimos como a prática

deste processo permitiu transformar situações e reatar em igual

medida relações entre pessoas de família, amigos, estranhos e ini‑

migos. Vimos como foi possível eliminar o veneno de ligeiros atos

de desprezo que podemos, sem dar por isso, infligir uns aos outros

e trazer a cura na sequência dos atos de crueldade mais brutais que

se pode imaginar. É nossa profunda convicção que não há ninguém

incorrigível, nenhuma situação expurgada de esperança e nenhum

crime que não possa ser perdoado.

Se procura uma maneira de perdoar, temos esperança de conse‑

guir indicar ‑lhe o caminho para a liberdade. Mostrar ‑lhe ‑emos de

que forma pode fazer com que aquele que o prejudicou o deixe em

paz e se liberte das mordaças e das algemas do rancor e da raiva que

o mantêm preso à experiência por que passou.

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Se precisa de ser perdoado, temos esperança de que este livro

lhe mostre um caminho esclarecedor e sem obstáculos para que se

liberte dos grilhões do seu passado, que o impedem de construir

a sua vida. Quando nos tornamos testemunhas da angústia e do

mal que causámos, quando pedimos aos outros para nos perdoa‑

rem e para nos retribuírem da mesma forma, quando perdoamos e

reatamos as nossas relações, regressamos à nossa própria natureza

intrínseca.

A bondade faz parte da nossa natureza. Sim, fazemos muitas coi‑

sas más, mas na sua essência a nossa natureza é boa. Se não fosse

assim, não ficaríamos chocados nem consternados quando fazemos

mal uns aos outros. Quando alguém faz algo abominável, essa

notícia enche as parangonas dos jornais, porque é a exceção à regra.

Vivemos rodeados de tanto amor, bondade e confiança que nos

esquecemos de quão notável isso é. O perdão é a nossa maneira de

reavermos o que nos foi tirado e de reabilitarmos o amor, a bondade

e a confiança perdidas. Após cada ato de perdão, seja ele pequeno ou

grande, avançamos rumo à integridade. O perdão é muito simples‑

mente a maneira como trazemos paz a nós mesmos e ao mundo.

O Livro do Perdão foi escrito, antes de mais, para aqueles que

precisam de perdoar. Fizemo ‑lo, porque até aqueles que precisam

de ser perdoados precisam de perdoar o mal que lhes foi feito. Não

se trata de uma desculpa, nem de uma justificação para aquilo que

fizemos, apenas o reconhecimento do mal que foi passando de mão

em mão e de uma geração para outra. Ninguém nasce criminoso;

ninguém nasce cruel. Cada um de nós nasce íntegro, mas essa inte‑

gridade pode facilmente ser desfeita.

Na África do Sul, optámos por procurar o perdão em vez de per‑

seguirmos a vingança. Essa escolha evitou um banho de sangue.

Foi uma escolha que esteve por detrás de cada injustiça. Como já

referimos, pode escolher o perdão ou a vingança, mas escolher a vin‑

gança implica sempre um preço demasiado elevado a pagar. Optar

pelo perdão em vez da retaliação serve, em última instância, para

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17D E S M O N D M . T U T U E M P H O A . T U T U

nos tornar pessoas mais fortes e mais livres. A paz chega sempre

àqueles que escolhem perdoar. Eu e Mpho comprovámos de perto

não só os efeitos de se beber o veneno mais amargo da raiva e do

rancor — vimos como ele corrói e destrói de dentro para fora —,

mas também como o doce bálsamo do perdão suaviza e transforma

as situações mais virulentas. É por esta razão que podemos afirmar

que existe esperança.

Não entramos no caminho do perdão despreocupadamente, nem

o percorremos sem alguma trepidação, que pode levar a um afas‑

tamento do plano traçado. Perdoar é conversar, e, como a maior

parte das conversas importantes, necessita de uma linguagem clara,

honesta e sincera. Este livro ajudá ‑lo ‑á a aprender a linguagem do

perdão. Ao longo dos diversos capítulos, disponibilizamos exercí‑

cios vários, meditação e rituais que o guiarão e ajudarão a percorrer

esse caminho. Temos esperança de que alguns dos exercícios lhe

proporcionem conforto e alívio, e que também lhe inspirem com‑

paixão. Acreditamos que alguns dos exercícios também possam

apresentar ‑se aos seus olhos como um desafio.

Seríamos acusados de demagogia se não lhe disséssemos que,

à semelhança de qualquer conversa, o resultado do processo de

perdoar não pode ser conhecido de antemão. Este livro não é uma

cura para todos os males, nem uma panaceia. No entanto, é nossa

convicção de que estas páginas o guiarão até ao resultado que pre‑

tende alcançar. Acreditamos que a leitura destas páginas o levará

a adquirir as aptidões e a disponibilidade necessárias para compor

as suas relações e, de uma forma significativa, contribuir para con‑

sertar o nosso mundo.

Na África do Sul, ubuntu é uma maneira de dizer que o mundo

tem um sentido. A palavra significa literalmente «humanidade».

Prende ‑se com a filosofia e a crença de que uma pessoa só é pes‑

soa através de outra. Por outras palavras, somos humanos apenas

quando nos relacionamos com outros seres humanos. A nossa

humanidade mantém ‑nos ligados uns aos outros, e qualquer rasgão

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no tecido de ligação entre nós tem de ser remendado para que todos

formemos um conjunto íntegro. Esta interligação é a verdadeira

essência de quem somos.

Percorrer o caminho do perdão é reconhecer que os seus pecados

lhe causam tanto sofrimento a si quanto a mim. Percorrer o cami‑

nho do perdão é reconhecer que a minha dignidade está profunda‑

mente relacionada com a sua dignidade e que cada erro nos atinge

a todos negativamente.

Mesmo quando reconhecemos a nossa interligação, o per‑

dão pode, ainda assim, ser um caminho difícil de percorrer.

Haverá dias em que teremos a sensação de que por cada passo

dado em frente recuamos dois. É uma viagem. E, antes de iniciar

qualquer nova via gem, grande ou pequena, tem de haver a predis‑

posição para dar esse tímido primeiro passo em frente. Sem predis‑

posição, será impossível realizar esta viagem. Antes da compaixão,

vem a predisposição para sentir compaixão. Antes da transforma‑

ção, tem de existir a crença de que essa transfor mação é possível,

bem como a predisposição para tal transformação. Antes do per‑

dão, tem de existir a predisposição para considerar a possibilidade

de perdoar.

Iremos acompanhá ‑lo nesta viagem. Mesmo que pense que não

existe a mínima hipótese de alguma vez conseguir vir a perdoar,

ou que acredite que o que fez é tão hediondo que nunca poderá

ser perdoado, nós caminharemos ao seu lado. Se tiver medo ou se

se sentir inseguro, ou se duvidar que a sua situação possa sofrer

alguma mudança, convidamo ‑lo a experimentar fazê ‑lo. Se já per‑

deu a esperança, se se sente paralisado pela culpa, submerso na

mágoa e na tristeza, ou cheio de raiva, convidamo ‑lo a vir connosco.

Percorreremos este caminho consigo, porque acreditamos que é um

caminho que trará a cura e a transformação. Convidamo ‑lo a fazer

esta viagem connosco, não por ser fácil, mas porque o caminho do

perdão acabará por ser o único que valerá a pena percorrer.

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A Prece antes da Oração

Quero estar disposto a perdoar

Mas não me atrevo a pedir a vontade de perdoar

Caso ma dês

E eu ainda não esteja preparado

Ainda não estou preparado para que o meu coração se

torne mais brando

Ainda não estou preparado para voltar a ser vulnerável

Nem para ver que existe humanidade nos olhos daquele

que me atormenta

Ou que aquele que me magoa também pode ter chorado

Ainda não estou preparado para a viagem

Ainda não estou interessado nesse caminho

Faço uma prece antes da oração do perdão

Concede ‑me a vontade de querer perdoar

Concede ‑ma, não já, mas em breve

Conseguirei sequer formular as palavras

Perdoa ‑me?

Atrever ‑me ‑ei sequer a olhar?

Será que me atrevo a ver o sofrimento que causei?

Posso vislumbrar todos os estilhaços dessa coisa frágil

Essa alma que tentou erguer ‑se com as asas da

esperança partidas

Mas só de relance

Tenho medo de o fazer

E se tenho medo de ver

Como posso não ter medo de dizer

Perdoa ‑me?

Há algum sítio onde possamos encontrar ‑nos?

Tu e eu

O sítio a meio caminho

Na terra de ninguém

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20 O L I V R O D O P E R D Ã O

Onde possamos passar além das linhas

Onde tu tens razão

E onde eu também tenho razão

E onde nós os dois estamos errados e errámos

Podemos encontrar ‑nos aí?

E procurar o sítio onde começa o caminho

O caminho que termina quando perdoarmos

O que deve levar na viagem

Todas as viagens necessitam de provisões. A sua viagem

requer dois objetos necessários à sua cura:

Arranje, por favor, um diário pessoal, que usará como

complemento dos exercícios apresentados em cada capí‑

tulo. Será o seu «livro do perdão» pessoal. Pode ser um

simples bloco de apontamentos, ou um diário especial

que adquira para esse fim específico. Apenas você o lerá,

devendo sentir ‑se livre e seguro para registar nele os seus

pensamentos, emoções, ideias e a sua progressão ao longo

do Caminho dos Quatro Passos.

Saia e procure uma pedra que lhe agrade, seja em que

aspeto for. Pode ser bonita ou feia, mas não deve ser um

seixo nem um pedregulho. Procure uma pedra com algum

peso. Deve ser suficientemente pequena para poder ser

transportada na palma da sua mão, mas suficientemente

grande para que não a perca. Anote no seu diário o sítio

exato onde a encontrou e o que lhe pareceu que ela tinha

de apelativo.

Seja bem ‑vindo. Acabou de iniciar o Caminho dos Quatro

Passos.

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CAPÍTULO 1

PORQUÊ PERDOAR?

Em criança, foram muitas as noites em que, impotente, tive de

assistir ao meu pai a agredir verbal e fisicamente a minha mãe.

Ainda me recordo do cheiro a álcool, do medo estampado nos

seus olhos e do desespero impotente que sentimos quando vemos

pessoas que amamos magoarem ‑se umas às outras de forma

incompreen sível. Desejo que ninguém passe por essa experiên‑

cia, sobretudo uma criança. Quando volto a essas memórias,

sinto vontade de agredir o meu pai, como ele fazia à minha mãe,

e de forma que eu não era capaz em criança. Vejo o rosto da minha

mãe e recordo aquele ser humano gentil que eu amava tanto e que

não fazia nada para merecer a dor e o sofrimento que lhe eram

infligidos.

Quando me recordo desta história, apercebo ‑me de como o pro‑

cesso de perdoar é tão difícil. Racionalmente, sei que o meu pai cau‑

sou sofrimento, porque ele próprio estava a sofrer. Espiritualmente,

sei que a minha fé me diz que o meu pai merece ser perdoado como

Deus nos perdoou a todos. Apesar disso, continua a ser difícil fazê‑

‑lo. Os traumas que testemunhámos ou que vivenciámos continuam

vivos na nossa memória. Até mesmo anos mais tarde, eles podem

reavivar a dor dentro de nós sempre que os recordamos.

Sente ‑se magoado e em sofrimento? Trata ‑se de uma dor nova

ou de uma ferida antiga ainda por sarar? Lembre ‑se de que aquilo

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que lhe foi feito foi errado, injusto e imerecido. Você tem razão

para se sentir indignado. E é perfeitamente natural que queira

reta liar, magoando a outra pessoa se ela também o magoou. No

entanto, respondermos dessa forma raramente nos satisfaz. Pen‑

samos que sim, mas a verdade é que não. Se eu lhe der uma bofe‑

tada depois de você me ter dado uma a mim, isso não atenua a

dor do que ainda sinto na cara, nem diminui a minha tristeza pelo

facto de você me ter agredido. Na melhor das hipóteses, o que a

retaliação faz é muito simplesmente permitir um breve período

de acalmia da dor emocional que sentimos. A única maneira de

vivermos a experiência da cura e da paz é perdoarmos. Enquanto

não formos capazes de perdoar, permaneceremos fechados na nossa

própria dor e afastados da possibilidade de vivermos a experiência

da cura e da liberdade, privados da possibilidade de nos sentirmos

em paz.

Sem o perdão, ficamos prisioneiros da pessoa que nos fez mal.

Ficamos ligados a ela por grilhões de amargura, presos a ela e

encur ralados. Enquanto não perdoarmos, ela será a guardiã da

chave da nossa felicidade; será o nosso carcereiro. Quando per‑

doamos, reassumimos o controlo do nosso próprio destino, bem

como dos nossos sentimentos. Tornamo ‑nos os nossos próprios

libertadores. Não perdoamos para ajudar a outra pessoa. Não

perdoamos pelos outros. Perdoamos por nós mesmos. Por outras

palavras, o perdão é a melhor forma de manifestarmos interesse

por nós próprios. Isto é verdade tanto em termos espirituais como

científicos.

A CIÊNCIA DO PERDÃO

Na última década, verificou ‑se um incremento dos trabalhos

científicos sobre o perdão. Enquanto outrora a discussão sobre

este tema estava reservada aos religiosos, agora está a despertar

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25D E S M O N D M . T U T U E M P H O A . T U T U

a atenção como disciplina académica, estudada não só por filó­

sofos e teólogos, mas também por psicólogos e médicos. Exis­

tem centenas de projetos de investigação sobre o perdão em curso

nas universidades do mundo inteiro. Só a Campanha de Pesquisa

do Perdão, financiada pela Fundação Templeton, tem quarenta e

seis projetos de investigação diferentes sobre esta mesma temá­

tica.1 Existem até neurocientistas que, neste momento, estu­

dam a biologia do perdão e avaliam barreiras evolutivas no cérebro

que impedem o ato de perdoar. Alguns deles estão até a tentar

perceber se existe a possibilidade de haver no nosso ADN um

gene do perdão.

À medida que a investigação científica moderna vai evoluindo,

as descobertas mostram claramente que perdoar transforma as pes­

soas em termos mentais, emocionais, espirituais e físicos. Em For-

give for Good: A Proven Prescription for Health and Happiness,

o psicólogo Fred Luskin escreve: «Ficou demonstrado em estudos

científicos fidedignos que o treino do perdão diminui a depres­

são, aumenta a esperança, faz decrescer a irritabilidade, melhora

o contacto espiritual [e] aumenta a autoconfiança emocional.»2

Estes são apenas alguns dos benefícios psicológicos muito reais

e concretos. A investigação científica também revela que as pes­

soas que se mos tram mais dispostas a perdoar apresentam menos

problemas de saúde física e mental, bem como menos sintomas

físicos de stresse.

À medida que cada vez mais cientistas documentam o poder

curativo do perdão, vão também olhando para os efeitos corrosivos,

em termos físicos e mentais, de não se perdoar. Mantermo ­nos

agarrados à cólera e ao ressentimento e vivermos em permanente

estado de stresse são aspetos que podem estar na origem de com­

plicações cardíacas e espirituais. Na verdade, diversos estudos

1 http//www.forgiving.org/campaign/research.asp.2 Frederic Luskin, Forgive for Good: A Proven Prescription for Health and Hap-

piness, HarperCollins, Nova Iorque, 2002.

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26 O L I V R O D O P E R D Ã O

mos traram que o facto de alguém não perdoar pode ser um fator

potenciador de risco de doenças cardíacas, aumento da tensão arte‑

rial e de uma diversidade de outras doenças crónicas relacionadas

com o stresse.3 Estudos levados a cabo em medicina e psicologia

também têm demonstrado que uma pessoa que permaneça agarrada

à raiva e ao ressentimento corre o risco aumentado de sofrer de

ansiedade, depressão, stresse e insónia, sendo muito provável que

sofra de hipertensão arterial, úlceras, enxaquecas, dores nas costas,

ataques cardíacos e mesmo de cancro. O inverso também é verda‑

deiro. O perdão genuíno pode transformar estas doenças. Quando o

stresse, a ansiedade e a depressão são reduzidos, os distúrbios físicos

que deles decorrem também o são.

Os estudos continuarão a aferir os batimentos cardíacos, a ten‑

são arterial e a longevidade daqueles que perdoam e dos que não

o fazem. Mais artigos de jornal serão escritos e a ciência acabará

por demonstrar aquilo que as pessoas já sabem há milhares de anos

— que perdoar nos faz bem. Os benefícios para a saúde são apenas

o princípio. Perdoar também é libertarmo ‑nos de quaisquer traumas

e dificuldades que tenhamos vivido e reclamarmos a nossa vida

como sendo apenas nossa.

SARAR O TODO

Aquilo que a investigação realizada nos campos da medicina

e da psicologia não consegue estudar, quantificar ou analisar com

toda a minúcia é a ligação profunda que temos uns com os outros

e a von tade que existe em cada um de nós de conseguirmos viver

em harmonia.

3 Everett L. Worthington, Charlotte Van Oyen Witvliet, Pietro Pietrini e Andrea J. Miller, «Forgiveness, Health, and Well ‑Being: A Review of Evidence for Emotional Versus Decisional Forgiveness, Dispositional Forgivingness, and Reduced Unfor‑giveness», Journal of Behavioral Medicine 30, n.o 4, pp. 291 ‑302, agosto de 2007.

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27D E S M O N D M . T U T U E M P H O A . T U T U

É possível que a ciência esteja a começar a reconhecer aquilo

que em África há muito se sabe, que somos verdadeiramente inter‑

dependentes, embora ainda não se consiga explicar em absoluto a

necessidade que temos uns dos outros. A doutora Lisa Berkman,

presidente do Departamento de Sociedade, Desenvolvimento

Humano e Saúde da Harvard School of Public Health, estudou sete

mil homens e mulheres. De acordo com as conclusões a que che‑

gou, as pessoas que se encontravam socialmente isoladas tinham

três vezes mais probabilidades de morrerem prematuramente do

que as que faziam parte de uma forte rede social. Ainda mais espan‑

toso para os cientistas foi o facto de os indivíduos com um círculo

social forte e um estilo de vida pouco saudável (como fumadores,

obesos e pessoas que não praticavam exercício físico), na verdade,

viverem mais tempo do que outros que se inseriam num círculo

social fraco, mas com um estilo de vida sau dável.4 Um artigo avulso

publicado na revista Science concluiu que a solidão era um fator de

risco para as doenças e a morte superior ao tabagismo.5 Por outras

palavras, a solidão pode matar mais depressa do que o tabaco. Esta‑

mos profundamente ligados uns aos outros, quer o reconheçamos,

quer não. Precisamos uns dos outros. Evoluímos dessa forma, e a

nossa sobrevivência ainda depende disso.

Quando não recebemos cuidados nem atenção, quando senti‑

mos falta de solidariedade por nós, quando não somos perdoados,

acabamos sempre por pagar um preço por isso. No entanto, não

somos só nós que sofremos. Toda a nossa comunidade sofre, e, em

última análise, todo o nosso mundo sofre. É suposto existirmos

numa delicada rede de interdependências. Somos irmãos e irmãs,

quer queiramos quer não. Tratarmos alguém como se essa pessoa

fosse menos do que humana, menos do que um irmão ou uma

4 Lisa F. Berkman e Lester Breslow, Health and Ways of Living: The Alameda County Study, Oxford University Press, Nova Iorque, 1983.

5 Greg Miller, «Why Loneliness Is Hazardous to Your Health», Science, 14, vol. 331, n.o 6014, pp. 138 ‑40, janeiro de 2011.

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28 O L I V R O D O P E R D Ã O

irmã, independentemente do que tenha feito, é contrariarmos

as próprias leis da nossa humanidade. E aqueles que quebram a

corrente da interligação não conseguem escapar às consequências

dos seus atos.

Na minha própria família, as zangas entre irmãos propagaram‑

‑se até criarem distanciamentos intergeracionais. Quando irmãos

adultos se recusam a falar uns com os outros por causa de uma

qualquer ofensa, recente ou antiga, os seus filhos e netos podem ser

penalizados por não viverem a alegria dos relacionamentos familia‑

res fortes. Os seus filhos e netos podem nunca saber o que esteve na

origem do corte daquelas relações. Sabem apenas que «Não vamos

visitar aquela tia», ou «Não conhecemos bem aqueles primos».

O perdão entre os membros das gerações mais velhas pode abrir

a porta a rela cionamentos saudáveis e solidários entre as gerações

mais novas.

Se o seu próprio bem ‑estar — a sua saúde física, emocional e

mental — não for suficiente, se a sua vida e o seu futuro não forem

suficientes, então talvez venha a perdoar para o bem daqueles que

ama, da família que lhe é muito querida. A raiva e a amargura não

só o envenenam como envenenam todos os seus relacionamentos,

incluindo os que tem com os seus filhos.

A LIBERDADE DO PERDÃO

O perdão não está dependente das ações dos outros. Sim, não

há dúvida de que é mais fácil perdoar quando o responsável pelo

sofrimento manifesta remorsos e apresenta uma qualquer espécie

de reparação do dano ou de restituição. Nesse caso, poderá sentir‑

‑se como se, de alguma forma, tivesse sido compensado pelo que

lhe fizeram. Pode dizer: «Estou na disposição de te perdoar por me

teres roubado a caneta e por depois ma teres devolvido; perdoo ‑te.»

Este é o padrão do perdão mais comum. Nesta linha de raciocínio,

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29D E S M O N D M . T U T U E M P H O A . T U T U

o perdão é algo que concedemos uns aos outros, uma dádiva que

fazemos a alguém, mas é uma dádiva que tem cordões a ela atados.

O problema é que os cordões que prendemos a essa dádiva de

perdão se transformam nas grilhetas que nos prendem à pessoa que

nos magoou. Essas são as grilhetas cuja chave se encontra na posse

do autor da ofensa que sofremos. Podemos definir as condições para

conceder o perdão, mas a pessoa que nos ofendeu decide se aquelas

condições são ou não demasiado onerosas para serem cumpridas.

Continuamos a ser vítimas daquela pessoa. «Não falo contigo

enquanto não disseres que estás arrependida!», gritava a minha

neta, Onalenna, quando era pequena. A irmã mais velha, achando

aquela exigência injusta e injustificada, recusava ‑se a pedir ‑lhe des‑

culpa. As duas permaneciam encerradas numa batalha de vontades,

unidas pelo ressentimento mútuo. Existem dois caminhos para

sair deste impasse: Nyaniso, a mais velha, pode pedir desculpa, ou

Onalenna pode decidir esquecer o pedido de desculpa e perdoar ‑lhe

sem quaisquer condições.

O perdão incondicional é um modelo de perdão diferente da

dádiva com cordões. É um perdão concedido como um gesto benevo‑

lente, uma oferta gratuita feita sem qualquer constrangimento. Neste

modelo, o perdão liberta aquele que ofendeu do peso da von tade

da vítima — seja o que for que a vítima possa exigir para con ceder

o perdão — e da sua ameaça de vingança. Mas ele também liberta

aquele que perdoa. Quem concede o perdão num gesto benevolente é

imediatamente libertado do jugo que o mantém preso à pessoa causa‑

dora do mal. Quando você perdoa, fica livre para prosseguir com a sua

vida, para crescer e para deixar de ser vítima. Quando você perdoa,

liberta ‑se do jugo e o seu futuro separa ‑se do seu passado.

Na África do Sul, a lógica do apartheid criou inimizade entre as

raças. Alguns dos efeitos perniciosos desse sistema ainda perduram,

no entanto, o perdão abriu ‑nos a porta para um futuro diferente,

que não se regerá pela lógica do nosso passado. No início deste ano,

sentei ‑me ao sol a desfrutar dos gritinhos de satisfação de um grupo

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30 O L I V R O D O P E R D Ã O

de meninas de sete anos que festejavam o aniversário da minha

neta. Elas representavam todas as raças da nossa Nação do Arco‑

‑Íris. O futuro delas não é determinado pela lógica do apartheid.

A raça não condiciona a escolha daqueles que terão como amigos,

com quem constituirão as suas famílias, das suas carreiras, nem

a escolha do sítio onde irão viver. O seu futuro está a ser traçado

segundo a lógica de uma África do Sul nova e do perdão como um

gesto benevolente. A nova África do Sul é um país em construção

porque, depois de se desfazerem do pesado fardo de anos de precon‑

ceito, opressão, brutalidade e tortura, algumas pessoas comuns mas

extraordinárias têm a coragem de perdoar.

A NOSSA HUMANIDADE PARTILHADA

Em última instância, o perdão é uma escolha que fazemos, e

a capacidade para perdoarmos os outros advém do reconhecimento

de que todos temos defeitos e todos somos humanos. Já todos come‑

temos erros e magoámos outras pessoas, e voltaremos a fazê ‑lo.

Sabemos que é mais fácil perdoar quando conseguimos reconhecer

que os papéis poderiam ter sido invertidos. Cada um de nós poderia

ter sido o autor da ofensa, em vez da vítima. Cada um de nós é per‑

feitamente capaz de cometer contra outras pessoas os mesmos erros

que tenham sido cometidos contra nós. Embora possamos dizer:

«Eu nunca o faria...», a humildade genuína responderia: «Nunca

digas nunca.» Antes dizer: «Espero que, perante o mesmo tipo de

circunstâncias, eu não o fizesse...» Mas, alguma vez o saberemos?

Como explicámos na introdução, escrevemos este livro porque, na

verdade, isto não é uma dicotomia. Não há ninguém que vista sempre

a pele do autor da ofensa, como nunca ninguém será sempre a vítima.

Em determinadas situações, fomos magoados, enquanto noutras

situações fomos nós que magoámos alguém. E, por vezes, ocupamos

os dois campos, como quando, no calor de uma dis cussão conjugal,

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31D E S M O N D M . T U T U E M P H O A . T U T U

trocamos ofensas com os nossos companheiros. Nem sempre as

agres sões têm um grau equivalente, mas também não é isso que pre‑

tendemos analisar aqui. Os que gostam de comparar o mal que fize‑

ram com o mal de que foram vítimas acabarão por se ver atolados

num turbilhão de vitimização e negação. Os que se consideram acima

de qualquer reparo não olharam honestamente para o espelho.

As pessoas não nascem a odiar ‑se umas às outras, nem com von‑

tade de fazer mal aos outros. Essa é uma condição a que se chega

pela aprendizagem. As crianças não sonham crescer para serem

violadores ou assassinos, no entanto, todos os violadores e assassi‑

nos foram um dia crianças. Há alturas em que olho para alguns

daqueles que são descritos como «monstros» e acredito sincera‑

mente que ninguém sabe o que lhe está reservado. Não digo isto por

pensar que sou uma espécie de santo. Digo ‑o porque já me sentei

com homens que estão no corredor da morte, já falei com antigos

agentes da polícia que admitiram ter infligido a tortura mais cruel,

já visitei crianças usadas como soldados que cometeram atos de

uma perversidade repugnante e, em cada um deles, reconheci uma

profunda humanidade, em muito semelhante à minha.

O perdão é, na verdade, o gesto benevolente pelo qual permiti‑

mos que outra pessoa se levante, e que o faça com dignidade, para

começar tudo de novo. Não perdoar conduz à amargura e ao ódio.

À semelhança do ódio e do desprezo por si próprio, sentir ódio pelos

outros corrói aquilo que para o próprio é vital. Quer o ódio seja pro‑

jetado para fora quer seja dirigido para dentro, é sempre corrosivo

para o espírito humano.

O PERDÃO NÃO É UM LUXO

O perdão não é algo que pertence ao mundo da fantasia. Tem que

ver com o mundo real. A cura e a reconciliação não pertencem à

cate goria dos feitiços. Elas não apagam a realidade de uma ofensa.

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Perdoar não é fingir que o que aconteceu não se passou. Curar não

lança um véu sobre a ferida. Mais do que isso, a cura e a reconci‑

liação têm de ser consideradas com honestidade. Para os cristãos,

Jesus Cristo estabeleceu o padrão do perdão e da reconciliação. Ele

perdoou os que o traíram. Jesus, o Filho de Deus, conseguiu apagar

os sinais da lepra, conseguiu curar aqueles que eram diminuídos

em termos físicos, mentais ou espirituais e conseguiu devolver

a visão aos cegos. Também conseguiria apagar os sinais da tortura

e da morte a que foi sujeito. Todavia, optou por não apagar essas

marcas tão evidentes. Depois da ressurreição, apareceu aos seus

discípulos. Na maior parte dos casos, mostrou ‑lhes os ferimentos e

as cicatrizes que tinha no corpo. É isto o que exige a cura. O com‑

portamento que é ofensivo, vergonhoso, abusivo ou humilhante

tem de ser trazido à intensa e temível luz da verdade. E a verdade

pode ser brutal. De facto, a verdade pode exarcebar o sofrimento;

pode até piorar a situação. Todavia, se quisermos perdoar e curar

realmente, temos de nos confrontar com o sofrimento.

O CONVITE AO PERDÃO

Nos capítulos seguintes, analisaremos o perdão em profundi‑

dade. Veremos o que ele não é e o que é na verdade. Entretanto,

importa dizer que o convite ao perdão não é um convite ao esque‑

cimento, nem é um convite à alegação de que uma ofensa é menos

dolorosa do que realmente é, nem é um pedido para se dissimular

a fissura aberta numa relação, dizer que está tudo bem quando não

está. Não é de somenos importância ser ofendido. Não é de some‑

nos importância ser abusado. Não é de somenos importância ser

violado. Não é de somenos importância ser traído.

O convite ao perdão é um convite para se encontrar a cura e a

paz. No meu dialeto nativo, o Xhosa, uma pessoa pede desculpa

dizendo: Ndicel’ uxolo (peço paz). A locução é muito bonita e de

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uma profunda perspicácia. O perdão abre a porta à paz e à concór‑

dia entre as pessoas e cria espaço para a paz interior de cada um.

A vítima não pode ter paz sem perdão. O agente da ofensa não terá

uma paz genuína enquanto não for perdoado. Não poderá haver paz

entre a vítima e o agente da ofensa enquanto o dano se interpuser

entre os dois. O convite para perdoarmos é um convite para chegar‑

mos à humanidade do autor do dano. Quando perdoamos, reconhe‑

cemos a realidade de que ninguém sabe o que lhe está reservado.

Se eu e o meu pai trocássemos de vidas, se eu tivesse experimen‑

tado viver as pressões e os momentos de grande tensão por que ele

passou, se eu tivesse de suportar todos os fardos que ele teve de

carregar, ter ‑me ‑ia comportado como ele? Não sei. Gostaria de ser

diferente, mas não sei se seria.

Há muito que o meu pai morreu, mas, se pudesse falar com ele

hoje, gostaria de lhe dizer que lhe perdoei. O que lhe diria? Começa‑

ria por lhe agradecer tudo o que de maravilhoso fez por mim como

pai, mas depois dir ‑lhe ‑ia que houve algo que me magoou imenso.

Dir ‑lhe ‑ia o quanto aquilo que ele fez à minha mãe me afetou,

o quanto aquilo me custou.

Pode ser que me ouvisse, ou talvez não. Ainda assim, perdoar‑

‑lhe ‑ia. Como já não podia falar com ele, tive de lhe perdoar no

meu íntimo. Se o meu pai aqui estivesse hoje, quer ele me pedisse

desculpa quer não, e mesmo que se recusasse a admitir que era

errado o que fez ou que não conseguisse explicar a razão pela qual

agiu daquela maneira, mesmo assim, eu perdoar ‑lhe ‑ia. E por que

razão havia eu de fazer semelhante coisa? Percorreria o caminho

do perdão com ele, porque sei que é a única maneira de sarar a dor

que senti no meu coração jovem. Perdoar ao meu pai é para mim

libertador. Quando eu deixar de o recriminar pelas ofensas que

cometeu, a memória que tenho dele deixará de exercer qualquer

controlo sobre o meu estado de espírito ou sobre a minha dispo‑

sição. A sua violência e a minha incapacidade de proteger a minha

mãe já não me definem. Já não sou o menino pequenino que se

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acocorava com medo da sua cólera ébria. Tenho uma história nova

e diferente. O perdão libertou ‑nos aos dois. Somos livres.

O perdão implica prática, honestidade, abertura de espírito e dis‑

ponibilidade (ainda que seja uma disponibilidade frágil) para tentar.

Esta viagem de cura não é uma cartilha — um livro que tenhamos

de ler e compreender. Esta viagem de cura é uma prática — algo

em que temos de participar. É o nosso próprio caminho para o per‑

dão. Para perdoarmos verdadeiramente, temos de ter uma melhor

compreensão do perdão mas, antes de mais, temos de compreender

aquilo que o perdão não é. Isso é o que analisaremos no próximo

capítulo.

Antes de prosseguirmos, façamos uma pausa para escutarmos

aquilo que o nosso coração ouve.

Perdoar ‑te ‑ei

As palavras são tão pequenas

Mas existe um universo oculto no seu interior

Quando eu te perdoar

Todas aquelas amarras de rancor, dor e tristeza que se

enrolaram em volta do meu coração desaparecerão

Quando eu te perdoar

Não mais me definirás

Me aferirás, me avaliarás, nem

decidirás que podes magoar ‑me

Eu não contei

Mas perdoar ‑te ‑ei

Porque conto mesmo

Sou importante

Sou maior do que a imagem que tu tens de mim

Sou mais forte

Sou mais belo

E sou infinitamente mais valioso do que tu me

consideraste

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Perdoar ‑te ‑ei

O meu perdão não é um presente que te dou

Quando te perdoar

O meu perdão será um presente que se oferece a mim

Em Síntese

Porquê Perdoar

• Operdãoébenéficoparaanossasaúde.

• Operdãopossibilitaalibertaçãodopassado,alibertação

de um res ponsável pela ofensa e a libertação da futura

vitimização.

• Operdãosarafamíliasecomunidades.

• Perdoamosparanãosofrermos,nemfísicanemmental­

mente, os efeitos corrosivos de nos agarrarmos à raiva

e ao ressentimento.

• Estamostodosinterligadoseanossahumanidadeépar­

tilhada.

• Operdãoéumpresentequedamosanóspróprios.