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1 ÍNDICE ÍNDICE ............................................................................................................................ 1 SÍNTESE .......................................................................................................................... 3 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 5 CAPÍTULO 1: CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA, SOCIAL E POLÍTICA ......... 7 1.1. Ruína da Monarquia .................................................................................................. 8 1.2. Implantação da República ....................................................................................... 11 1.3. Ditadura Militar de 1926 ......................................................................................... 19 CAPÍTULO 2: O LIBERALISMO ................................................................................ 22 2.1. Marcos históricos .................................................................................................... 23 2.2. Conceções de liberdade ........................................................................................... 26 2.3. Liberalismo: conceito pluridimensional .................................................................. 28 2.4. Falsa antinomia: a liberdade e a autoridade ............................................................ 29 2.5. Igualdade Jurídica versus Igualitarismo .................................................................. 30 2.6. Individualismo, jusnaturalismo e contratualismo ................................................... 33 2.7. Estado: uma necessidade e/ou uma ameaça ............................................................ 35 2.8. Negação das posições libertária e estatista ............................................................. 38 CAPÍTULO 3: O LIBERALISMO EM RAÚL PROENÇA ......................................... 41 3.1. Liberdade, o valor supremo .................................................................................... 41 3.2. Primado do Indivíduo: no epicentro da visão liberal de Raúl Proença ................... 46 3.3. Proença e a análise crítica da conjuntura política ................................................... 47 3.4. Interpenetração das doutrinas individualista e solidarista ....................................... 51 3.5. A liberdade e a reciprocidade .................................................................................. 53 3.6. Falsa contradição: Liberdade/Autoridade ............................................................... 54 3.7. Liberdade e Igualdade: falsa dicotomia .................................................................. 55 3.8. Repúdio da conceção rousseauniana de democracia ............................................... 58 3.9. Articulação entre o Liberalismo e o Socialismo ..................................................... 61

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1

ÍNDICE

ÍNDICE ...................................................................................................................... ...... 1

SÍNTESE .......................................................................................................................... 3

INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 5

CAPÍTULO 1: CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA, SOCIAL E POLÍTICA ......... 7

1.1. Ruína da Monarquia .................................................................................................. 8

1.2. Implantação da República ....................................................................................... 11

1.3. Ditadura Militar de 1926 ......................................................................................... 19

CAPÍTULO 2: O LIBERALISMO ................................................................................ 22

2.1. Marcos históricos .................................................................................................... 23

2.2. Conceções de liberdade ........................................................................................... 26

2.3. Liberalismo: conceito pluridimensional .................................................................. 28

2.4. Falsa antinomia: a liberdade e a autoridade ............................................................ 29

2.5. Igualdade Jurídica versus Igualitarismo .................................................................. 30

2.6. Individualismo, jusnaturalismo e contratualismo ................................................... 33

2.7. Estado: uma necessidade e/ou uma ameaça ............................................................ 35

2.8. Negação das posições libertária e estatista ............................................................. 38

CAPÍTULO 3: O LIBERALISMO EM RAÚL PROENÇA ......................................... 41

3.1. Liberdade, o valor supremo .................................................................................... 41

3.2. Primado do Indivíduo: no epicentro da visão liberal de Raúl Proença ................... 46

3.3. Proença e a análise crítica da conjuntura política ................................................... 47

3.4. Interpenetração das doutrinas individualista e solidarista ....................................... 51

3.5. A liberdade e a reciprocidade .................................................................................. 53

3.6. Falsa contradição: Liberdade/Autoridade ............................................................... 54

3.7. Liberdade e Igualdade: falsa dicotomia .................................................................. 55

3.8. Repúdio da conceção rousseauniana de democracia ............................................... 58

3.9. Articulação entre o Liberalismo e o Socialismo ..................................................... 61

2

3.10. Renúncia do liberalismo económico ..................................................................... 62

3.11. Estado, um instrumento para a liberdade .............................................................. 63

CAPÍTULO 4: O SOCIALISMO .................................................................................. 67

4.1. O Socialismo e a sua intenção libertadora .............................................................. 67

4.2. Socialismo: as suas variantes .................................................................................. 70

4.3. Repúdio do individualismo económico, herdeiro do liberalismo ........................... 73

4.4. Objeções ao Socialismo .......................................................................................... 74

CAPÍTULO 5: O SOCIALISMO EM RAÚL PROENÇA ............................................ 76

5.1. Socialismo democrático-liberal ............................................................................... 76

5.2. Intervencionismo estatal: um postulado essencial .................................................. 79

5.3. A noção de propriedade privada ............................................................................. 81

5.4. Entrelaçamento entre o Socialismo e o Liberalismo ............................................... 82

CONCLUSÃO ............................................................................................................... 84

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................... 86

3

Porque, por mim, exijo absolutamente a

liberdade do meu inimigo e sinto-me capaz de

dar a minha vida por ela.

Raúl Proença, «Conversa com as Novidades»,

in Seara Nova, n.º 257, 13 de agosto de 1931,

p. 262.

SÍNTESE

Adversário feroz da débil monarquia dos finais do século XIX, Raúl Proença

destacou-se como um dos maiores obreiros e intérpretes da propaganda republicana.

Realçando a pretensa superioridade moral e política do regime republicano-parlamentar,

denunciou, em vários órgãos da imprensa da época, os vícios e perversidades que

conspurcavam o funcionamento do regime monárquico.

No entanto, não tardaria a reconhecer que muitos dos males de que padecia o

novo regime remontavam já à monarquia sua predecessora.

Assente na defesa dos direitos individuais, o seu Liberalismo traduziu-se

também na crítica frontal de algumas experiências governativas de nítido recorte

ditatorial, anticonstitucional ou autoritário (governos de João Franco, Pimenta de Castro

e de Sidónio Pais), que muito contribuíram para fazer precipitar a queda do regime

republicano. Retomando alguns dos mais elementares pressupostos da mundividência

iluminista e liberal, Raúl Proença, no seu persistente labor doutrinário, revelou-se um

democrata vigoroso, valorizando os princípios liberais da liberdade individual e da

igualdade de direitos, para além das instituições parlamentares e do necessário controlo

do poder político.

Numa relação intrínseca com o seu exercício doutrinário, a sua participação

cívica contra as insurreições monárquicas de Monsanto e da Monarquia do Norte (1919)

é bem ilustrativa do total apreço pelo idealismo republicano-liberal. Baseado em

fundamentos filosóficos, o seu heroísmo cívico dispensava a crença não só na existência

de Deus, como também na imortalidade da alma, considerando-a um elemento que inibe

4

uma moralidade pura e exigente, além de promover uma atitude de resignação e de

inferior empenho no combate pelos ideais que se defende.

Contrariando o antagonismo que os reacionários integralistas admitiam haver

entre a liberdade e a igualdade, Raúl Proença privilegiou, numa lógica de respeito

absoluto pelo valor da reciprocidade, o individualismo solidarista, assente na igualdade

de direitos individuais entre todos, ou seja, no direito igual que todos possuem de se

desenvolverem livremente.

Uma importante particularidade do seu Liberalismo é, sem dúvida, a negação de

uma suposta contradição entre a autoridade e a liberdade. Longe de ser a antítese, a

autoridade é condição da liberdade, sendo fundamental para assegurar que a liberdade

de uns não seja uma ameaça à dos outros. Ora, nesta defesa do princípio da autoridade,

está implícita não só a rejeição das teses de índole anarquista, como ainda a conceção de

Estado como meio e instrumento ao serviço do livre desenvolvimento individual.

Embora o intelectual republicano defendesse o Liberalismo stricto sensu, não se

absteve de impugnar a tese do Liberalismo económico, considerando-a responsável por

desencadear a anarquia e a opressão económicas. Para mitigar as suas funestas

consequências e estabelecer uma maior justiça distributiva, Raúl Proença acentuou a

necessidade do intervencionismo estatal. Modelado pela nítida influência do

trabalhismo britânico de Mac Donald e pela reflexão de Carlo Rosseli, de quem

apreendeu a noção de 'Socialismo Liberal', o Socialismo que o pensador adotou,

baseado na estreita articulação entre o individualismo liberal e o socialismo solidarista,

teve por finalidade assegurar uma repartição mais equitativa dos bens económicos,

condição fundamental para que a liberdade de todos os indivíduos pudesse florescer e

desenvolver-se.

Republicano socialista de vincado recorte individualista, Raúl Proença

comungou dos mesmos propósitos libertadores do Socialismo, embora não tivesse

consentido, ao invés de alguns socialistas, que os mesmos pudessem ser realizados à

custa da supressão dos direitos individuais, por meio de táticas e expedientes

revolucionários e violentos.

5

INTRODUÇÃO

Na presente dissertação, ocupámo-nos de uma das figuras mais proeminentes do

pensamento político português na primeira metade do século XX: Raúl Proença.

Várias foram as razões que nos deixaram fascinar por uma personalidade tão

singular. Entre as mais significativas, consideramos a sua elevada envergadura

intelectual, o seu arrojo polemista e crítico, a defesa vigorosa e resoluta do ideal

republicano-democrático, a ousadia no empenhamento cívico, além de outras que

poderíamos assinalar.

Embora os seus textos se encontrem dispersos por várias publicações e não

estejam sistematizados, o que torna a sua consulta de difícil acesso, isso não nos

demoveu da intenção de desenvolver um trabalho de investigação que permitisse

contribuir, de alguma maneira, para um maior conhecimento do autor.

Perante um pensador cuja reflexão se estendeu aos mais diversos domínios

disciplinares, especialmente à política, pedagogia, ética, antropologia e metafísica,

tivemos, naturalmente, de delimitar o âmbito temático deste trabalho, para evitarmos

incorrer em desnecessárias deambulações que nos fazem desviar do nosso objetivo.

Com o título «Raúl Proença, entre o Liberalismo e o Socialismo», o presente

trabalho teve por finalidade expor a confluência entre as perspetivas liberal e socialista

no pensamento de Raúl Proença, por entendermos serem estes os vetores fundamentais

do seu vasto e denso apostolado doutrinário.

No que concerne à estruturação interna do trabalho, decidimos organizá-lo em

cinco capítulos, cada um reunindo um conjunto de particulares subsecções. Mas se cada

um deles se debruça sobre um determinado tema, o que lhes confere certa identidade e

autonomia, não é menos verdade que existe entre todos eles um encadeamento lógico.

No primeiro capítulo, «Contextualização Histórica, Social e Política», foi nosso

intuito principal descrever o enquadramento subjacente ao exercício doutrinário e

militante de Raúl Proença. Com flagrante impacto na definição e evolução do universo

doutrinário deste intelectual republicano, as várias incidências da realidade política,

social, cultural e económica ajudaram, sobremaneira, a moldar e influenciar as suas

futuras opções políticas e doutrinárias.

No segundo capítulo, foi «O Liberalismo» o enfoque da nossa investigação. De

forma genérica, procurámos identificar e realçar os principais fundamentos teóricos do

6

Liberalismo considerado como fundador. Por óbvias exigências de rigor e clarificação,

procurámos complementar a reflexão desenvolvida com a preciosa invocação de alguns

dos mais representativos pensadores da tradição liberal.

A terceira parte, «O Liberalismo em Raúl Proença», teve como propósito focar a

conceção liberal do autor, explorando as possíveis afinidades/ruturas com o

entendimento clássico do Liberalismo. Na sua vasta produção literária, detetamos

flagrantes reminiscências da mundividência liberal (defesa de valores como a liberdade

e igualdade políticas), ainda que se verifique um particular distanciamento face ao

Liberalismo na sua aceção estritamente económica. Imprescindível se torna também

assinalar que, por detrás das opções políticas e éticas, houve a necessidade permanente

de lhes aprofundar os fundamentos filosóficos. Na reflexão filosófica, a sua atitude

perante a vida encontra justamente o arcaboiço perfeito.

Com o título «O Socialismo», no quarto capítulo, procurámos pôr em evidência

alguns dos pressupostos mais elementares do Socialismo.

Para encerrar, no quinto e último, intitulado «O Socialismo em Raúl Proença»,

tentámos explicitar a componente socialista do nosso autor, aflorando alguns dos

elementos da mundividência socialista da época com que Raúl Proença se identificava.

Realçámos, de igual modo, a confluência entre os vários pressupostos que o doutrinário

republicano assimila do Liberalismo e do Socialismo, vetores que dominam

invariavelmente a sua vasta reflexão política. Como poderá observar-se, o seu

Socialismo vincadamente liberal é a manifestação mais visível da simpatia que nutriu

pela social-democracia, fenómeno político implantado em algumas nações europeias da

época. Assente num assumido propósito liberal, é na liberdade e em ordem à liberdade

que o seu Socialismo se concretiza. A desejada repartição justa dos recursos

económicos não só era fundamental para garantir a todos uma maior liberdade, como

também só se tornaria possível sem a coação e opressão da liberdade individual.

Este é também o momento apropriado para dirigirmos os nossos encarecidos

agradecimentos à nossa orientadora Professora Doutora Celeste Natário pelo diligente

apoio que nos deu durante a realização deste trabalho. Estendo ainda o agradecimento à

Professora Doutora Susana Cadilha e ao José Domingos pelas suas sábias

recomendações, para além de outras pessoas que eu poderia, por certo, mencionar.

7

1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA, SOCIAL E POLÍTICA

Compreender a figura ímpar de Raúl Proença (1884-1941) no contexto do

pensamento português, nos princípios do século XX, não é tarefa fácil. Perante um

espírito verdadeiramente multifacetado (jornalista, doutrinário, polemista, crítico

político, bibliotecário, escritor e inflexível democrata), somos confrontados,

inevitavelmente, com um raciocínio que se encontra, não raras vezes, esparso e

aparentemente desconexo entre si. No entanto, é de um pensamento situado que se trata,

na medida em que surge vinculado às condições concretas da realidade, repercutindo as

suas tensões, dinamismos, pulsões e vicissitudes mais visíveis, mesmo que ainda hoje

algumas delas possam permanecer, em certa medida, atuais 1.

E, se todo o pensamento é situado, importa conhecer o enquadramento político,

social e histórico à luz do qual as ideias e atitudes do nosso autor ganharão maior

inteligibilidade.

Possuindo, todavia, algo de absolutamente originário e singular, a sua reflexão

insere-se naturalmente nos mais diversos condicionamentos epocais, referindo António

Reis que Raúl Proença é «Simultaneamente filho do seu tempo - doutrinário, político e

cultural - e em luta contra o seu tempo» 2.

Embora curta, a sua vida acompanhou o desenrolar de múltiplas transformações

da mais distinta natureza. Importa destacar que assistiu ao declínio e derrube da

monarquia liberal, à implantação e ulterior crise da 1.ª República, aos episódios de

interregno ditatorial (Ditadura de Pimenta de Castro e a experiência sidonista), à

1 O confronto entre a sua vida e as várias condicionantes históricas e epocais chegaria a atingir

dimensões tão heroicas quanto trágicas.

2 António Reis, Raúl Proença: Biografia de um Intelectual Político Republicano, vol. II,

Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Temas Portugueses, Lisboa, 2003, p. 231.

8

instauração da Ditadura Militar, à emergência do autoritarismo do Estado Novo e, por

último, à frustração das várias tentativas de reposição do regime republicano.

1.1. Ruína da monarquia

Uma vez que as aspirações, ideais e promessas (liberdade e justiça social)

trazidas pelo revolucionarismo liberal se haviam frustrado, o regime da monarquia

constitucional estava moribundo, sobretudo após a crise de 1890, ameaçando sucumbir

a curto prazo.

Alguns dos principais fatores que, nos finais do século XIX, vieram debilitar a

imagem da monarquia, incentivando a reação hostil da oposição, foram a descrença

tanto dos monárquicos como dos republicanos nas instituições monárquicas vigentes,

originando uma profunda instabilidade política e governamental, bem como tensão

social 3. Com a degradação crescente das condições de vida e de trabalho (insuficiência

salarial e acréscimo do custo de vida), o surto da emigração e das greves intensificou-se.

De igual modo, o pauperismo, a fome, a insatisfação das classes baixas, o deficiente

desenvolvimento industrial e endividamento interno e externo, as múltiplas bancarrotas

e défices orçamentais, bem como a censura à imprensa, favoreceram a decomposição

progressiva do regime.

Mas, além disto, outras razões relevantes se perfilavam. O

pseudoparlamentarismo reinante, ou seja, a subordinação servil dos parlamentares aos

interesses das oligarquias e clientelas reinantes que os patrocinavam, o personalismo

entendido como sobreposição das personalidades às ideias 4 , o esbanjamento, a

ineficácia governativa ou administrativa na realização dos programas políticos, as

conspirações, o obstrucionismo deliberado à ação governativa, o défice programático

dos partidos, as múltiplas dissoluções do Parlamento, o falseamento e manipulação dos

resultados eleitorais, o caciquismo, as dissidências partidárias, a corrupção política,

assim como a cedência governativa perante o episódio do «Ultimato Inglês», foram

3 Veja-se Douglas Lanphier Wheeler, História política de Portugal de 1910-1926, trad. de J.O.M.

e Cristina Correia, vol. 213, Publicações Europa-América, Estudos e Documentos, Mem Martins, 1978.

Ao longo deste capítulo, esta é a obra que mais nos orientará, parecendo-nos apresentar uma descrição

histórica fiável e rigorosa, não subestimando, claro está, outras obras que tivemos em real consideração.

4 Equivale a dizer que não se seguem os homens pelo programa que defendem, mas o oposto, ou

seja, segue-se o programa pelos homens que o defendem.

9

alguns dos fatores que suscitaram, de forma inequívoca, o descontentamento, o

pessimismo e a frustração face à monarquia, contribuindo para impulsionar o grupo dos

que apoiavam a causa republicana. O declínio ou colapso do regime monárquico estava

mais do que justificado e as consequências não tardariam.

Nos primeiros anos do século XX, as dissidências partidárias resultaram na

fragmentação dos principais partidos monárquicos. Neste âmbito, o partido Regenerador

cindira-se nos partidos Nacionalista e Regeneradores Liberais, ao passo que do grupo

dos Progressistas proveio o dos Progressistas Dissidentes.

A satirização, caricaturização ou ridicularização políticas foram fenómenos

suplementares que acentuaram a desilusão crescente face à política nacional.

No artigo «A reunião regeneradora», Raúl Proença fustigou o mencionado

personalismo que dominava o sistema partidário monárquico 5.

A infiltração progressiva do republicanismo na sociedade portuguesa ficou a

dever-se, sobremaneira, à campanha republicana de forte propaganda contra a

monarquia moribunda.

A rápida republicanização de certos setores da sociedade portuguesa terá sido,

assim, o resultado tanto do ativismo republicano como do fracasso da Monarquia 6.

Além disto, o desfasamento e desconfiança dos próprios monárquicos face à frágil

monarquia davam um forte impulso à disseminação do ideário republicano 7.

Ilustre colaborador na propaganda dos ideais republicanos, Raúl Proença

desenvolveu na imprensa republicana da época, como se pode constatar, grande parte da

sua intensa intervenção cívica e «militantismo republicano» 8.

Entre 1906 e 1908, o eminente jornalista de ideias tornara-se militante do Partido

Republicano. Aos ideais defendidos pela monarquia contrapôs a exigência de liberdade,

assim como as noções de direitos cívicos e políticos. As promessas monárquicas

frustradas e as consequências funestas de muitas experiências governativas acabaram

por lhe inspirar profunda desilusão, encorajando-o a enaltecer a República.

Não sendo possível aos republicanos assegurar uma imediata vitória eleitoral,

por causa do caciquismo reinante que promovia a manipulação dos resultados eleitorais,

eles optaram, a par do referido propagandismo republicano, por um republicanismo

5 Veja-se Vanguarda, 8 de fevereiro de 1909.

6 Veja-se Douglas Lanphier Wheeler, História política de Portugal de 1910-1926, p. 68.

7 Esta desconfiança e indiferença aparece sublinhada também em Jorge Morais, Os Últimos Dias

da Monarquia: 1908-1910: da esperança de tréguas à instauração da República, Zéfiro, Sintra, 2009.

8 António Reis, Raúl Proença: Biografia de um Intelectual Político Republicano, vol. I,

Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Temas Portugueses, Lisboa, 2003, p. 78.

10

radical e revolucionário. Em oposição aos processos eleitorais e evolutivos, a solução

golpista e conspirativa, que se tinha tornado a fórmula predominantemente aceite desde

o Congresso Republicano de Abril de 1909, estaria na origem de sucessivos

pronunciamentos e conspirações armadas para derrubar a monarquia. A Carbonária 9,

sob o impulso de Luz de Almeida, e a Maçonaria 10 deram um contributo decisivo para a

organização dos preparativos revolucionários.

Embora a experiência franquista (1906-1908) tivesse surgido, de início, imbuída

de um desígnio de inequívoco reformismo social, educativo e administrativo, bem como

de intenções liberais, plasmadas na promessa de liberdade de opinião e de imprensa,

foram inúmeros os fatores que, fazendo antever uma inflexão ditatorial, acabaram por

adensar o clima de agitação e hostilidade sociais, de animosidade e revolta dos

deputados republicanos oposicionistas 11 . A simpatia e o fascínio iniciais com que

muitos intelectuais e vários setores sociais a acolheram depressa começaram a esboroar-

se. Entre as múltiplas razões para o fracasso da experiência franquista 12, consideram-se:

a famosa questão dos adiantamentos feitos à família real a 30 de agosto de 1907, por

decreto ditatorial; a repressão política vigente; a aprovação, a 11 de abril de 1907, de

uma lei de imprensa que sujeitava também os diretores dos jornais (e não só os

jornalistas) à responsabilidade penal; a suspensão da Câmara dos Deputados, em 1907,

sem um prazo determinado para a sua reabertura; e, por último, a crise ou greve

académica coimbrã de março de 1907 13.

O apoio incondicional que D. Carlos dera a Franco, que ficou bem expresso

numa entrevista concedida a 11 de novembro de 1907, fizera dissipar, por completo, o

apoio dos dirigentes dos partidos monárquicos.

Devido aos inúmeros malefícios que se lhe reconheceu, a governação ditatorial

de João Franco acabou por beneficiar a causa da republicanização, sendo que muitos

dos monárquicos decidiram filiar-se no Partido Republicano.

9 Sociedade secreta com intuitos revolucionários, cujas origens remontam à segunda metade do

século XVIII, em França. Surgida em 1844 em Portugal, dela se serviu a Maçonaria para o assalto ao

poder, tendo desempenhado um papel fulcral no derrube da monarquia. 10 Sociedade secreta que surgiu historicamente eivada de fins altruístas, tendo, atualmente,

ramificações por todo o mundo.

11 Consulte-se António Reis, op. cit., vol. I, p. 77.

12 Observe-se como Douglas Lanphier Wheeler (Professor Emérito de História na Universidade

de New Hampshire, Durham) retrata a governação franquista: «censurou a imprensa, aprisionou os

oposicionistas e começou a pôr em prática as suas reformas por meio de decretos», tendo renunciado à

premissa elementar da aprovação parlamentar ou eleitoral (História política de Portugal de 1910-1926, p.

64).

13 Consulte-se António Reis, op. cit., vol. I, p. 76.

11

A agitação grevista operária em 1907 e o decreto de 20 de Junho desse mesmo

ano, de caráter mais repressivo que a lei de imprensa, provocaram duras reações. As

prisões arbitrárias de alguns dirigentes republicanos fizeram precipitar uma revolta

republicana a 28 de janeiro de 1908, que acabou por gorar-se. O decreto assinado por D.

Carlos a 31 de janeiro de 1908, que estipulava a deportação para as colónias dos que

comprometiam a ordem pública, descurando, deste modo, as imunidades parlamentares,

fez pressentir o regicídio. De igual modo, a politização das classes operárias urbanas,

que passaram a sentir-se estimuladas para a reivindicação da mudança política, teve

influência decisiva na eclosão da Revolução republicana 14.

Após o regicídio em 1908 e eliminado o franquismo, D. Manuel tentara

viabilizar uma solução governativa conciliatória, de timbre mais liberal, a que se

convencionou atribuir a designação de governo de acalmação 15 de Ferreira do Amaral.

Embora tivesse procurado assegurar a continuidade do regime monárquico, através de

determinadas concessões face às exigências dos republicanos, de modo a apaziguar

ânimos mais exaltados, esse esforço acabou por se revelar insuficiente.

1.2. Implantação da República

A 5 de outubro de 1910, o regime republicano sucedeu à decrépita monarquia.

Se bem que Raúl Proença tivesse feito a apologia do regime republicano,

assinalando a sua suposta superioridade moral e política, rebateu, no artigo «A Liga

Nacional de Instrução» 16, a tese do messianismo político, que, neste caso, consistia na

crença de que a República era a solução para todos os males, ideia veiculada pela

propaganda republicana.

Mas alguns republicanos pensavam o contrário, julgando que a mudança política

preveniria não só a perda das colónias africanas, como uma possível perda da

14 Consulte-se Douglas Lanphier Wheeler, op. cit., p. 55.

15 Jorge Morais, na obra Os Últimos Dias da Monarquia: 1908-1910: da esperança de tréguas à

instauração da República, deu especial destaque a esta experiência governativa. Jorge Morais é um

escritor português nascido em 1955, com inúmeros estudos e ensaios produzidos acerca do período de

transição da Monarquia para a República.

16 Veja-se Raúl Proença, A República, 21 de abril de 1908.

12

independência a favor de Espanha e ainda uma maior degradação entre os estados

europeus 17.

Esta crença messiânica na República despertou, de início, um entusiasmo, uma

esperança, uma euforia imensos em muitos portugueses, não só os das classes baixas

urbanas que viam na República a garantia de melhores condições sociais e económicas,

como da baixa classe média, mas também de alguns setores da elite urbana 18.

Estes sentimentos iniciais haveriam, contudo, de esmorecer gradualmente, à

medida que as inúmeras vicissitudes e acontecimentos políticos vinham desmentindo as

mais nobres e lídimas aspirações da República.

O descontentamento, o protesto e a reivindicação dos operários por melhores

condições culminaram, efetivamente, na organização de imensas greves entre 1911 e

1912. Apesar da sua ambição, os movimentos laborais que surgiram com o propósito de

velar pela situação dos trabalhadores não tardaram a ser vítimas de violenta repressão

governamental e policial.

Se a República tivesse cumprido as justas reivindicações dos operários por

melhores condições de vida, considerados uma das suas principais bases de apoio no

desmembramento da precedente monarquia, teria conseguido, com maiores

probabilidades, superar a forte convulsão social existente.

O anticlericalismo radical e virulento, consubstanciado na legislação do Governo

Provisório e impulsionado justamente pela ânsia de uma total secularização da vida,

esteve na origem não só da polarização da nação política, como também da alienação de

algum do seu apoio político 19.

Este republicanismo radical, a que normalmente se atribuía a designação de

jacobinismo, reagia, em particular, contra uma eventual transigência perante a liberdade

religiosa. Embora o Governo Provisório tivesse introduzido «alguma legislação mais

progressiva nos campos da educação (...), reforma agrária...» 20 , resvalou para

procedimentos assumidamente arbitrários e opressivos. A ação legisladora por meio de

decretos, sem a necessária aprovação parlamentar, foi perfeitamente reveladora de uma

flagrante viragem ditatorial.

Em novembro de 1911, após a cisão no seio do primitivo Partido Republicano

Português (PRP), criou-se a União Nacional Republicana (UNR), organizada pelos

17 Veja-se Douglas Lanphier Wheeler, op. cit., p. 59.

18 Idem, p. 81.

19 Idem, pp. 90-110.

20 Idem, pp. 95-104.

13

deputados republicanos mais conservadores e moderados, avessos tanto à legislação

promulgada pelos deputados republicanos radicais como a muitos dos atos do seu

Governo Provisório. O grupo republicano radical passaria a designar-se, doravante, o

partido dos Democráticos.

Em fevereiro de 1912, a UNR, em resultado de evidentes divergências

programáticas e de opinião, mas também de ambições pessoais dos dirigentes - males

que remontavam já ao regime monárquico -, fragmentou-se, tendo dado origem a dois

novos partidos republicanos: os Unionistas de Brito Camacho e os Evolucionistas de

António José de Almeida.

Interessa ressaltar que, apesar do derrube da Monarquia, não ficara dissipada,

por completo, a ameaça restauracionista. Entre 1911 e 1914, os republicanos tiveram de

enfrentar várias insurreições monárquicas, como é o caso da primeira incursão de Paiva

Couceiro, a 5 de outubro de 1911. Pese embora todas estas tentativas tivessem

malogrado, o ímpeto dos monárquicos não desfaleceu totalmente. Na verdade, só com o

fracasso das sublevações de Monsanto e da Monarquia do Norte (despoletadas em 1919)

diante das forças republicanas, foi imposta a derradeira derrota das expetativas

restauracionistas.

Apesar do mérito alcançado no saneamento de alguns dos problemas financeiros

que há muito faziam vacilar o país, tendo apresentado um orçamento equilibrado, o

primeiro governo de Afonso Costa, instituído a 9 de janeiro de 1913, debateu-se com

inúmeras convulsões, agitações laborais e uma violência pública intensa 21. Perante esta

realidade, o governo eleito não hesitou em reprimir as greves sindicalistas que ocorriam.

Ainda que tenha pretendido garantir o equilíbrio orçamental através da célebre «lei-

travão», que impedia o Parlamento de aprovar leis que implicassem o aumento das

despesas do Orçamento, e tenha feito aprovar uma ambiciosa reforma fiscal, não se

absteve de enveredar pela ação repressiva 22. Devido à oposição feita ao movimento

sindical, vítima de violenta repressão, e à reação clerical, muitos monárquicos e alguns

setores republicanos começaram a insurgir-se.

Vários grupos militantes republicanos designados como «vigilância popular» 23

semearam o pânico, a violência pública e o terror republicano, sob a orientação, por

21 Idem, p. 121.

22 Ver António Reis, op. cit., vol. I, p. 204.

23 Douglas Lanphier Wheeler, op. cit., p. 270.

14

vezes, da Carbonária, combatendo eventuais opositores ou ameaças à ordem republicana

estabelecida 24.

Os governos democráticos posteriores sentiram idênticas dificuldades em

superar a agitação laboral, até porque a repressão que vitimou as organizações anarco-

sindicalistas, sob cuja direção os movimentos operários atuavam, fez recrudescer a

mesma animosidade laboral.

O «obstrucionismo político-parlamentar» do setor oposicionista face ao partido

dominante (o dos denominados Democráticos) permitia bloquear os projetos deste

último, bem como obstruir a execução e aprovação das suas legislações 25 . Os

oposicionistas ao predomínio parlamentar dos democráticos, tendo abandonado a

adesão às fórmulas eleitoral, parlamentar ou constitucional, preconizaram, por seu turno,

a insurreição militar e os pronunciamentos, ou seja, a adoção de métodos e processos

golpistas, enquanto expedientes mais eficazes para a captura do poder, mudança

governativa ou alteração do rumo dos acontecimentos.

A partir de 1912, vemos começar a apoderar-se de Raúl Proença um sentimento

de desilusão 26 e descrença moral na alegada capacidade e eficácia da República em

realizar os seus intuitos de renovação nacional, a par do que António Reis chama

também uma «desilusão relativamente ao comportamento prático dos dirigentes

republicanos, depois da euforia da vitória da República» 27 . A credibilidade da

República começou cedo a deteriorar-se, à medida que o descontentamento de alguns

setores recrudescia.

Apesar deste sentimento emergente, Proença considera, em «Carta a um Amigo

do Brasil», que os governos republicanos, mesmo com todas as suas falhas, fizeram

«mais do que os últimos vinte anos de anarquia» 28.

Por seu turno, também António Sérgio, em carta a Raúl Proença, de 31 de

agosto de 1913, reportava-se ao «terror republicano» associado aos atos da «Formiga

Branca» e à «apologia carbonária do recurso à bomba». A esta «violência - sistema - e -

24 Segundo Douglas Lanphier Wheeler, estes grupos «reprimiram brutalmente os trabalhadores

nos conflitos laborais de 1910-1912» (in História política de Portugal de 1910-1926, p. 88).

25 Consulte-se António Reis, op. cit., vol. I, p. 439.

26 O triunfo das nações democráticas na Grande Guerra, mas também a derrota do projeto

sidonista e do restauracionismo monárquico em Portugal, deram a Raúl Proença uma esperança e alento

momentâneos.

27 António Reis, op. cit., p. 196.

28 Raúl Proença, Águia, 2.ª série, nº 19, julho de 1913.

15

gosto», escrevia, contrapunha a bem distinta «violência - recurso extremo» 29, cujo uso

sanciona.

Em 1914, a crise das instituições republicanas recrudescia, para tal tendo

contribuído as rivalidades pessoais e as divergências partidárias baseadas mais «em

função de questões pessoais do que em função de correntes reais de opinião» 30.

A pretexto do «Movimento das Espadas» 31, de 24 de janeiro de 1915, Manuel de

Arriaga empossou Pimenta de Castro a formar um novo governo. Composta, na sua

maioria, por militares, a nova liderança política veio a denotar um cunho

assumidamente ditatorial, anticonstitucional e autoritário, patente numa atuação privada,

várias vezes, da necessária sanção parlamentar. Esta experiência governativa constituiu

um primeiro golpe desferido sobre o funcionamento democrático das instituições

republicanas, agudizando a conjuntura de crise e adensando, mais concretamente em

Proença, um estado de pessimismo face à situação, levando-o a condenar a repressão

que a governação de Pimenta de Castro infligiu à supremacia do poder civil 32.

Em 1917, a Europa foi abalada por um conflito bélico de proporções outrora

inimagináveis. Muitos republicanos portugueses justificavam a necessidade do país

intervir na 1.ª Guerra Mundial devido ao receio perante a ameaça alemã à segurança das

colónias nacionais.

Enquanto partidário da intervenção portuguesa no conflito, Raúl Proença

acreditava que a conservação não só da liberdade e da dignidade, como ainda da

independência nacional e do território colonial, mas também do regime republicano,

dependia do triunfo da fação democrática.

Os efeitos da participação militar de Portugal no conflito foram, porém,

devastadores. Os esforços económicos que o país teve de suportar fizeram despertar a

hostilidade e divergência de alguns setores ou grupos oposicionistas, que já, antes, se

haviam insurgido contra a deliberação dos Democráticos em intervir no mesmo. Em

termos económicos e financeiros, a nação ficou mais débil e vulnerável, tendo-se

agravado a inflação, a carestia de géneros alimentícios e a dívida nacional. Todas estas

consequências acabaram por ter um papel relevante no agravamento da crise e no

posterior advento da Ditadura Militar de 28 de maio de 1926.

29 Citado por António Reis, op. cit., vol. I, p. 207.

30 Idem, p. 217. 31 Designação pela qual ficou conhecido um protesto de oficiais contra a transferência de um seu

camarada, o major monárquico Craveiro Lopes, por razões supostamente de natureza política.

32 Ver António Reis, op. cit., vol. I, p. 222.

16

Em 1917, a conjuntura social caraterizava-se pela agitação social, repressão de

greves, censura à imprensa, elevado número de mortes e baixas humanas na frente de

guerra, mas também pela carestia de vida e atuação do movimento operário e sindical.

Paralelamente, sobrevieram outras ameaças ou perigos para as instituições

republicanas ou democracias liberais. O fortalecimento do movimento sindical nas

principais nações industriais e a consolidação eleitoral dos partidos das classes

trabalhadoras criaram receio nas classes conservadoras, tendo impulsionado a

emergência do movimento fascista.

Além das baixas humanas na frente bélica e da frustração das classes médias

fragilizadas pela crise económica e financeira, a Grande Guerra promoveu o

recrudescimento dos nacionalismos e do impulso militarista, cuja valorização,

pressentida no Sidonismo 33, estaria na origem do trágico desfecho da 1.ª República 34.

Os nacionalismos extremos e o militarismo surgidos no pós-guerra

representaram uma ameaça à solidez e consolidação das democracias liberais e suas

instituições. Em reação, vários movimentos filosóficos despertaram na Europa (o

idealismo, personalismo 35, existencialismo) acentuando o valor e dignidade da pessoa

humana.

Abominando o estado de desordem e instabilidade social e política que imperava

na sociedade portuguesa, diversos setores da intelectualidade republicana e da juventude

universitária deixaram-se seduzir pelas ideologias e regimes autoritários que se vinham

implantando na Europa, como é o caso do fascismo italiano 36.

A grande imprensa portuguesa mostrava-se fascinada pelos aparentes sucessos

materiais e administrativos da governação de Mussolini, descurando, contudo, o pendor

assumidamente ditatorial de que esta última se revestira.

Organizado por Sidónio Pais, o golpe militar de 5 de dezembro de 1917 trouxe

consigo o forte desejo de derrubar o predomínio ou monopólio parlamentar e eleitoral

dos democráticos, que se revelavam cada vez mais impotentes para introduzir as

necessárias reformas para a resolução dos problemas nacionais.

33 Sob a liderança de Sidónio Pais, uma Junta Revolucionária, que integrou Machado Santos e

contou com o apoio dos unionistas e a importante colaboração do movimento sindical operário, tomou

posse do governo a 5 de dezembro de 1917, suspendendo o Congresso e demitindo o Presidente da

República Bernardino Machado.

34 Ver António Reis, op. cit., vol. I, p. 292.

35 Divergentemente da aceção antes veiculada, o personalismo é entendido, neste caso, como a

dimensão da pessoa humana.

36 Esta situação levou Raúl Proença a reiterar a censura ao défice ideológico do republicanismo

dominante.

17

Em vigor desde 7 de dezembro do mesmo ano até 14 de dezembro de 1918, o

Sidonismo, apelidado de «República Nova» 37, cedo resvalou para pretensões de teor

presidencialista e autoritário, com as quais não contemporizavam, de maneira alguma,

os republicanos mais convictos e inflexíveis. A partir de certa altura, a experiência

sidonista 38 passou a atuar com base em decretos legislativos que ignoravam a

necessidade de aprovação parlamentar.

Embora a 'República Nova' tivesse surgido com o propósito de renovar a

República vigente, foi incapaz de expurgá-la dos seus vícios ditos orgânicos. A

desordem civil e política, a elevada criminalidade, as diversas tentativas golpistas e as

greves continuavam a ser situações recorrentes.

Enquanto a nova geração de oficiais militares enaltecia a figura de Sidónio Pais

e aplaudia a experiência ditatorial do riverismo em Espanha, irrompiam, na Europa, as

ideologias ou vagas antiliberais e antidemocráticas 39.

De igual modo, a politização do exército foi um fator decisivo para a falência da

República. Descontente com as condições em que vivia e com a péssima reputação do

Congresso, este setor procurou tomar o poder e imiscuir-se nos assuntos políticos,

extrapolando, assim, o seu congénito papel de defesa da ordem e segurança nacionais.

Em resultado disto, a política tornou-se mais militarizada 40.

À crise do funcionamento das instituições republicano-liberais e às dificuldades

económicas e sociais resultantes da guerra somava-se a crise dos valores ideológicos e

ético-estéticos 41 . A crise do sistema de representação parlamentar impulsionou a

afirmação de correntes políticas e doutrinárias extremistas, tanto à esquerda como à

direita, com destaque para o movimento anarco-sindicalista, de um lado, e o Centro

Católico, a Cruzada Nun'Álvares e o Integralismo Lusitano 42, do outro. Apesar de

37 Assim se batizou o novo regime que Sidónio Pais pretendeu ver institucionalizado.

38 Convém realçar que, a partir do Sidonismo, considerado um dos episódios históricos que mais

fizeram abalar a República e que serviu de inspiração ao que veio a ser a Ditadura do Estado Novo, o

Exército passou a exercer uma maior influência sobre os dirigentes políticos e a sociedade. 39 Ver Douglas Lanphier Wheeler, op. cit., p. 225.

40 Idem, p. 278.

41 Interessa destacar que às investidas críticas lançadas por Raúl Proença, na segunda década do

século XX, ao mau funcionamento das instituições e aos comportamentos dos políticos seguiu-se a

censura à ofensiva doutrinária e estético-cultural que punha em causa os valores que defendia e promovia

o aparecimento das mais perigosas doutrinas antidemocráticas.

42 Importa ressaltar que a doutrinação do Integralismo Lusitano começara, a partir de 1915, a

infiltrar-se nos meios estudantis e militares, tendo desempenhado uma influência decisiva no desenrolar

dos acontecimentos políticos.

18

diferenças óbvias, todas estas correntes de direita proclamavam a «superioridade

política de uma alternativa autoritária e antiparlamentar» 43.

Ora, o período pós-guerra viu emergir, no campo estético-cultural, as ruturas

estéticas e culturais. O vanguardismo estético, consubstanciado no modernismo e

futurismo, inclinou-se para a adesão a «alternativas político-sociais extremistas, à direita

e à esquerda» 44 , que, estando inspiradas num vitalismo amoralizante, negavam os

valores racionalistas, naturalistas e humanistas, inerentes ao idealismo republicano-

liberal.

A partir de 1919, o espetro partidário alterou-se. Cisões partidárias deram

origem a novos partidos 45.

À medida que se pressentia o desfecho da República, as correntes integralista,

tradicionalista 46 e fascista alastravam-se a um maior número de setores da sociedade.

No grupo Seara Nova, fundado em 1921, grande parte do labor doutrinário de Raúl

Proença centrou-se no combate às doutrinas ou ideologias reacionárias antidemocráticas.

Depois do combate inicial contra o Integralismo Lusitano, voltou-se para o ataque ao

fascismo.

As sucessivas revoltas ou pronunciamentos reacionários (de 18 de abril e 19 de

julho de 1925), de claro pendor direitista, fizeram prenunciar o pior. Mesmo tendo

fracassado, estes episódios foram a expressão notória do descontentamento existente nas

Forças Armadas, bem como nas hostes nacionalistas e monárquicas, face à governação

vigente. O clima conspirativo, propício a uma solução ditatorial, crescera

profundamente. O descontentamento e desilusão não só dos setores operários,

desprezados nas suas reivindicações, como também das classes médias, privadas do seu

inicial poder de compra e desejosas de estabilidade e segurança, fizeram antever a

eclosão da Ditadura Militar.

43 António Reis, op. cit., vol. I, p. 296.

44 Idem, p. 293. 45 Numa penetrante denúncia da conjuntura política, Raúl Proença, em «A situação política»,

verberou o fracionamento e a indisciplina existentes no seio de cada agrupamento partidário: «já não há

partidos, mas partidos de partidos, facções de facções» (in Obra Política de Raúl Proença, vol. III,

Páginas de Política (3), Seara Nova, Lisboa, 1974, p. 74). No artigo «A Crise», já havia denunciado o

sectarismo partidário (O Norte, n.º 139, 11 de dezembro de 1914).

46 Os tradicionalistas preconizavam, em oposição à tradição liberal e ao demoliberalismo, a

restauração da monarquia como era antes de 1820, contrapondo às noções de individualismo e soberania

do povo as de autoridade, hierarquia e tradição. Ver Douglas Lanphier Wheeler, op. cit., p. 31.

19

1.3. Ditadura Militar de 1926

Em 28 de maio de 1926, um golpe militar derrubou a Primeira República

parlamentar, instalando uma Ditadura Militar.

Resultante do descontentamento face ao funcionamento do parlamentarismo

republicano, este regime autoritário emergente acabou por culminar na implantação do

Estado Novo Salazarista, o qual, vigorando de 1933 a 1974, fez triunfar as tendências

mais conservadoras, tendo dissolvido muitas das liberdades cívicas por que havia zelado

o precedente regime parlamentar.

No intuito de restaurar uma democracia republicana reformada, a oposição

republicana sobrevivente apoiou a via revolucionária, ou seja, a estratégia de derrube

violento da Ditadura, atitude que ficou conhecida como reviralhismo republicano. Mas,

se a Revolução de 3 de Fevereiro de 1927 e a Revolução do Castelo, a 20 de julho de

1928, não tiveram êxito, a Ditadura procurou reforçar os setores antiliberais e

fascizantes da sociedade, de modo a dissipar, por completo, qualquer intuito de

reposição democrática.

Compelido pelo regime persecutório e repressor da Ditadura Militar, o

panfletário Raúl Proença chegou ao exílio em 1927 47, tendo, aí, prosseguido o seu

combate doutrinário contra o novo regime. Colaborou na Liga de Paris (1927-1929),

protagonista da oposição republicana no exílio, e interveio, politicamente, no seu órgão

de difusão 'A Revolta'. Na série de artigos «Para um evangelho de uma acção idealista

no mundo real», dedicados à análise do livro de Julien Benda intitulado «La Trahison

des Clercs», iniciada a partir dos começos de 1928, o eminente republicano haveria de

retomar o seu labor doutrinário.

Entre 1927 e 1931, a conjuntura internacional transmitia sinais demasiado

ambivalentes. Os sucessivos desaires do reviralhismo haviam suscitado certa descrença

e pessimismo nos republicados mais convictos. Para o refluxo da oposição republicana

registado em 1929, contribuíra, em grande medida, o sucesso governativo de Salazar,

mas também a tendência aparentemente transicionista para um regime constitucional-

republicano dos governos de Vicente de Freitas e Ivens Ferraz.

A partir dos anos 30, assistiu-se ao triunfo e consolidação gradual das ditaduras

na Península Ibérica (Estado Novo em Portugal) e Europa (Mussolinismo e Nazismo).

47 Depois de um período de 60 dias em Madrid, rumou a Paris.

20

Com o governo de Domingos de Oliveira, começou a anunciar-se, em Portugal, a

viragem para a orientação cada vez mais antiliberal e autoritária da Ditadura, linha que

Salazar haveria de preconizar.

Embora fragilizada diante dos setores antiliberais e fascizantes que começavam

a impor-se no interior da Ditadura portuguesa, a oposição republicana recuperou algum

otimismo e esperança quanto a uma possível reposição do regime republicano, tendo

para tal contribuído a dissolução da ditadura riverista espanhola em 1930 e consequente

implantação da República no ano seguinte 48 . Além disto, a afirmação da corrente

trabalhista ou social-democrata nos países germânicos e escandinavos permitia reforçar

esse sentimento.

No entanto, a gorada revolta de 26 de Agosto de 1931 fez vacilar ainda mais a

oposição republicana, contribuindo, por conseguinte, para consolidar o setor antiliberal

da Ditadura. Mas se a França, a Inglaterra e os países escandinavos se erigiam em

baluartes democráticos, o Estado Novo salazarista, instituído em 1933, reforçava-se,

acelerando o desfalecimento absoluto da ofensiva reviralhista, o que acabou por suceder

com o fracasso do Plano Lusitânia de 1938.

Apesar de todas as ambições iniciais, a Ditadura Militar acabou por agravar a

instabilidade governativa, a incompetência e as despesas públicas, além de ter

fomentado a indisciplina militar e a corrupção.

Em novembro de 1931, a doença psíquica, que faria Raúl Proença sucumbir à

morte, apossou-se dele, tendo sido já antevista por alguns episódios passados de

excitação, todos eles fortemente marcados por um temperamento irascível, colérico e

impulsivo.

Faleceu a 20 de maio de 1941, em pleno auge do fenómeno salazarista, enquanto

o nazismo alemão avançava na Europa.

Apesar de breve, a sua vida foi uma das mais autênticas e fervilhantes

manifestações de ativismo republicano-democrático e empenhamento cívico, tendo no

alistamento como voluntário para o Corpo Expedicionário Português na primeira

Grande Guerra e na participação contra as sublevações de Monsanto e a Monarquia do

Norte (1919) uma das suas expressões mais visíveis.

48 Ver António Reis, op. cit., vol. II, p. 12.

21

De um heroísmo 49 e robustez moral 50 ímpares, Raúl Proença combinou, na

perfeição, a «ética do intelectual com a ética do cidadão consciente dos seus direitos e

disposto a bater-se, fisicamente se necessário, por eles» 51. Se a reflexão acerca do

Eterno Retorno foi fundamental para reforçar a crença na autonomia humana, o estudo

em torno da questão de Deus permitiu a Proença assumir um agnosticismo ético,

adequado a uma atitude viril e heroica perante a vida, incompatível com a ideia de um

Deus que premeia e sanciona os atos humanos. Nos artigos «A filosofia de Epicuro e a

concepção heróica da vida» e «Sobre a existência de Deus e a lealdade de consciência»

52, considera inconciliáveis a sua conceção heroica da vida e as ideias da existência de

Deus e da imortalidade da alma, sendo estas últimas dissuasoras de toda a auto-

exigência e dedicação éticas 53.

49 Porque assente na exaltação do sentido heroico da vida, a filosofia vitalista de Nietzsche, que

havia seduzido, durante as duas primeiras décadas do século XX, alguns meios intelectuais e até

anarquistas em Portugal, serviu ao ilustre democrata para condenar o pessimismo e decadentismo

reinantes nos finais do século XIX. 50 José Rodrigues Miguéis não se coibiu de realçar a robustez moral e mental de Raúl Proença (in

Uma Flor na Campa de Raúl Proença, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1985, p. 9).

51 António Reis, op. cit., vol. I, p. 468.

52 Cf. Seara Nova, n.º 40, janeiro de 1925.

53 Consultar Anais das Bibliotecas e Arquivos, vol. I, n.º 4, outubro/dezembro de 1920.

22

2. O LIBERALISMO

Na sua génese, o Liberalismo assenta, acima de tudo, no elogio da liberdade. Se

dúvidas subsistissem quanto à sua suposta veracidade, bastaria uma breve incursão

pelos escritos de alguns dos mais ilustres pensadores liberais para desfazê-las de

imediato. John Locke é um dos insignes representantes da tradição liberal que

estabelecem os principais fundamentos ideológicos do Liberalismo. A liberdade, vista

como o "fundamento de tudo o mais que um homem possa ser ou ter» 54, é o valor

político que mais aplaude.

A doutrina liberal revela-se, entre outras coisas, no «intêresse pela livre

manifestação do pensamento» 55, pela liberdade de exame e de crítica. Em sintonia com

esta atitude de autêntica renúncia a fórmulas dogmáticas e impositivas, ela advoga o

respeito recíproco e tolerância perante a diversidade de opiniões e crenças.

Apesar da primazia atribuída à liberdade, há outros pressupostos axiológicos

com extensa relevância. Dentro deste domínio, a igualdade é, sem dúvida, uma das

tónicas dominantes em toda a perspetiva liberal 56. A par da fraternidade, estas duas

categorias políticas básicas são constitutivas da 'trilogia' reguladora e inspiradora da

Revolução Francesa de 1789.

Embora possa passar-nos despercebido, muitos dos pressupostos que orientam a

política contemporânea são herdeiros diretos da mundividência liberal: a primazia da

54 John Locke, Segundo Tratado Do Governo, Fundação Calouste Gulbenkian, Coimbra, 2008, p.

46.

55 Theodore Meyer Greene Liberalismo: teoria e prática, trad. de Leonidas Gontijo de Carvalho,

vol. 5, Ibrasa, Coleção Clássicos da Democracia, São Paulo, 1963, p. 31. Theodore Meyer Greene (1897-

1969) foi professor de Filosofia, tendo inúmeras obras e artigos de jornal escritos. Além disto, foi

conferencista.

56 Adiante, teremos a oportunidade de desenvolver a questão da nítida correlação entre ambos os

conceitos.

23

liberdade; a igualdade encarada como idêntica dignidade e liberdade; a posse de direitos

individuais; a noção de acordos, pactos ou contratos como elementos decisivos na

resolução dos conflitos resultantes da confrontação entre as liberdades dos indivíduos,

entre muitos outros.

2.1. Marcos históricos

Para uma maior compreensão acerca da herança, alcance e impacto do

Liberalismo, importa que sejam enunciados alguns dos seus mais relevantes e

significativos antecedentes históricos. Como podemos constatar a seguir, são diversas as

circunstâncias que ajudaram a impulsionar a sua concreta afirmação.

As aspirações liberais tiveram eco em múltiplos acontecimentos históricos. Na

verdade, episódios como a 'Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão'

e as primitivas constituições americana e francesa, bem como as diversas e sucessivas

revoluções liberais que despontaram ao longo do século XIX, foram o reflexo visível da

profunda ânsia de disseminação do ideal liberal.

De certo modo, a origem do Liberalismo político parece remontar à Reforma

Protestante e às revoluções liberais ulteriores. Antes disto, numa altura em que

começava a despontar, na Europa, o surto absolutista, a Magna Carta (documento que os

barões feudais ingleses impuseram ao rei João, em 1215, de forma a limitar o seu poder)

foi um dos primeiros prenúncios das futuras exigências liberais.

De inegável importância, o movimento de secularização, ocorrido no fim da

Idade Média, promoveu a dissolução do imperialismo religioso, reivindicando, ao invés,

a «soberanía del individuo» 57.

A Reforma Protestante perfila-se, com efeito, entre os acontecimentos mais

importantes no longo percurso de consolidação das ideias liberais. Este acontecimento

promoveu, na esfera religiosa e espiritual, a valorização da liberdade de consciência,

tendo rompido, por conseguinte, com a tradição, a superstição, a rigidez, a hierarquia, a

autoridade e o dogma religiosos, todas elas noções que o catolicismo havia hipertrofiado

57 André Vachet, La ideología liberal, trad. de Pablo Fernández Albaladejo, Valentina Fernández

Vargas, Manuel Pérez Ledesma, vol. 22, Editorial Fundamentos, Colección Ciencia, Série Historia,

Madrid, 1972, p. 59.

24

58 . Tendo desintegrado a função totalizadora e organicista da Igreja, favoreceu o

atomismo individualista.

Para além destes, destacam-se muitos outros agentes que deram um contributo

decisivo para a ascensão gradual da doutrina liberal.

No plano intelectual, o cartesianismo, à semelhança do que a Reforma

Protestante tinha feito, insurgiu-se contra as noções de tradição, autoridade e dogma,

contrapondo-lhes, em alternativa, os conceitos de livre exame e livre-pensamento.

O individualismo, que apareceu após a dissolução da conceção organicista da

sociedade nos finais da Idade Média, e o racionalismo foram, indiscutivelmente, dois

dos movimentos que anunciaram o liberalismo.

No âmbito moral, Kant inaugurou uma moral fundada na estrita autonomia

individual. A origem da lei moral, à qual os indivíduos devem submeter-se, radica na

autonomia humana. Demarcando-se do princípio da heteronomia, isto é, a sujeição a

obrigações e imperativos oriundos do plano exterior, o pensador alemão declarou que

«uma vontade livre e uma vontade submetida a leis morais são, por conseguinte, uma só

e mesma coisa» 59.

No domínio social, o desencanto, a repugnância e o descontentamento populares

face ao absolutismo régio foram sentimentos que fizeram acelerar o advento do

Liberalismo, do parlamentarismo e do constitucionalismo. Todos estes movimentos

trouxeram consigo a vontade firme de conter e refrear os ímpetos absolutistas,

autocráticos e despóticos inerentes a um poder político que se encontrava destituído de

qualquer fiscalização e controlo populares.

Dominantes na Europa, as monarquias absolutas dirigiam o destino coletivo dos

povos de forma arbitrária. Secundadas, em certa medida, na conceção medieval da

origem divina do poder (o poder provém de Deus), elas não tinham de se justificar

perante os súbditos e nem estavam dependentes da sua contínua legitimação ou

aprovação. De facto, uma das principais caraterísticas do Liberalismo primitivo foi o

inicial impulso para a resistência contra um poder assaz opressor e ameaçador.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a Declaração de

Direitos da Virgínia (1776) e a Declaração de Independência Americana foram cruciais,

58 Consulte-se André Vachet, op. cit.

59 Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, trad. de Filipa Gottschalk, Lisboa Editora,

Lisboa, 1998, p. 122.

25

na medida em que consagram a liberdade e a igualdade de direitos. Fazem referência,

concretamente, a direitos inalienáveis e imprescritíveis dos indivíduos.

De acordo com Fernando Valera, a 'Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão' é o documento que constitui o «principio, fundamento y origen del liberalismo

político» 60. Trata-se, com efeito, do depositário mais completo dos direitos liberais,

condensando, de modo embrionário, os valores e as premissas que haveriam de ser

melhor desenvolvidas e teorizadas nas várias constituições liberais em vigor nos países

democráticos.

Num dos seus artigos, o referido documento proclama que «Todos nascemos e

permanecemos iguais em direitos», vincando a já mencionada igualdade de direitos.

Desta forma, o Liberalismo emergente representava a contestação da controversa noção

de privilégios políticos.

Com repercussões avassaladoras ao nível da dissolução dos privilégios políticos,

a Revolução Francesa foi um dos acontecimentos mais marcantes na história da doutrina

em estudo. Considerando o impacto decisivo que teve ao nível da mentalidade e vida

social e política de então, o seu ideário converteu-se rapidamente na «esencia y

inspirácion de todas las constituciones redactadas por los parlamentos de las modernas

democracias» 61. No entanto, na sua ação, não se absteve de recorrer a um radicalismo

revolucionário, responsável por ter cometido, não raras vezes, as maiores crueldades. A

fase do Terror, dirigida por Robespierre, foi disso perfeitamente ilustrativa 62.

A introdução da representatividade política foi um facto histórico de importância

incalculável, na medida em que veio a favorecer a expressão da vontade e soberania

populares, vistas como um dos pressupostos essenciais das correntes liberal e

democrática. Despojada do cariz autocrático e arbitrário, por meio do qual o

absolutismo régio visava submeter os indivíduos, a lei tornou-se a expressão da vontade

geral.

Para a doutrina de que nos ocupamos agora, a soberania política, retirada ao

monarca absoluto, pertence ao povo. Somente dele poderá provir a necessária

legitimação de todo o exercício governativo. Embora continue a pertencer à autoridade

60 Fernando Valera, Liberalismo, vol. IV, Gonzalo Julián, Cuadernos de Cultura, Valencia, 1930,

p. 9. Em termos metodológicos, optámos por manter, nas múltiplas transcrições efetuadas, a aparência do

texto original.

61 Ibidem.

62 No momento de focarmos as principais caraterísticas da conceção liberal de Raúl Proença,

iremos notar a sua aversão face ao radicalismo virulento e feroz do jacobinismo republicano.

26

política a função de reger a comunidade, só lhe é reconhecida total legitimidade para

fazê-lo se ela tiver sido consentida e outorgada previamente pelos súbditos. Portanto,

mesmo não governando diretamente, é o povo, enquanto conjunto dos súbditos, que

entrega a função executiva a indivíduos a quem caberá representar e defender os seus

interesses.

Como afirmava Montesquieu, a divisão da soberania em poderes distintos tinha

o propósito de limitar e fiscalizar o exercício político. Reconhecendo que «todo o

homem que possui poder é levado a dele abusar», este pensador recomendou que, «para

que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder

limite o poder» 63.

2.2. Conceções de liberdade

O termo liberdade pode ser encarado de diversas formas 64. Georges Burdeau,

por exemplo, enuncia duas conceções fundamentais de liberdade: a «liberdade-

autonomia» e a «liberdade-participação» 65.

A primeira, bem próxima do registo liberal, identifica-se com a autonomia e

resistência face à prepotência e exacerbamento do poder político. A segunda, por sua

vez, diz respeito à participação dos cidadãos no poder político, a fim de «o impedir de

lhes impor medidas arbitrárias» 66, reconhecendo a enorme fragilidade da primeira das

noções.

A este respeito, Maurice Duverger fez especial alusão à distinção estabelecida

por Benjamin Constant, que pôs em contraste, justamente, a conceção moderna de

63 Montesquieu, O Espírito das Leis, trad. de Cristina Murachco, Martins Fontes, São Paulo,

1993, p. 170.

64 No capítulo «O Socialismo», a questão das várias conotações alegadamente implicadas no

conceito de liberdade será, de novo, retomada. Nessa ocasião, insistiremos na liberdade como sinónimo

de libertação face, especificamente, aos diversos constrangimentos económicos e à situação de carência

material.

65 Consulte-se Georges Burdeau, O Liberalismo, trad. de J. Ferreira, vol. 22, Publicações Europa-

América, Colecção Biblioteca Universitária, 1979.

66 Idem, p. 10.

27

liberdade («As liberdades são resistências») e o que ele denominava de noção antiga

(«participação activa no poder colectivo» 67, nas decisões coletivas).

Relativamente à conceção que faz repousar a liberdade sobre o direito de

participação na vontade geral, André Vachet considera que ela «implica la socialización

del individuo y el estatismo» 68.

Importa realçar que às duas anteriores vem somar-se uma terceira aceção: a

noção de libertação, mais concretamente face à opressão económica. Quando a

iniciativa individual se mostra impotente para eliminar as desigualdades e servidões

económicas existentes, é comum exigir ao poder político que intervenha a fim de

libertar os indivíduos e estabelecer a justiça e a liberdade efetivas. Se o Liberalismo,

num primeiro momento, desconfia e reage contra a autoridade estatal, numa fase

subsequente, transforma-a em «instrumento de criação de uma liberdade efectiva» 69.

Maurice Duverger é também um dos autores que dão destaque à liberdade como

libertação e «supressão das alienações (..) das penúrias...» 70. Interessa sublinhar que,

também para o Socialismo, é ao Estado que compete esse papel libertador. Para além

desta, Duverger ressalta uma outra noção de liberdade: a «liberdade-florescimento» 71.

Significa esta que todos estarão em condições de desenvolverem a sua individualidade,

desde que disponham de todas as condições materiais necessárias.

Reinhold Zippelius, na obra «Teoria Geral do Estado», alerta para a necessidade

de não identificar o conceito de liberdade do Liberalismo com o conceito democrático

de liberdade. Se o primeiro «designa a liberdade do status negativus, ou seja, o espaço

de liberdade de actuação individual face ao Estado», o segundo, por seu turno, diz

respeito ao «status activus, ou seja, à liberdade de participação na formação da vontade

comum» 72. Acrescenta que ambas «as liberdades não convergem necessariamente»,

uma vez que a «maioria democrática pode exercer uma tirania muito pouco liberal» 73.

67 Maurice Duverger, Introdução à Política, trad. de Mário Delgado, vol. 1, Editorial Estúdios Cor, Colecção Ideias e Formas, 1964, p. 290.

68 André Vachet, op. cit., p. 172.

69 Georges Burdeau, op. cit., p. 13.

70 Maurice Duverger, op. cit., p. 291.

71 Idem, p. 291.

72 Reinhold Zippelius, Teoria Geral do Estado, trad. de Karin Praefke-Aires Coutinho, 3ª Edição,

Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997, p. 375. Reinhold Zippelius foi Professor Emérito de

Filosofia do Direito e Direito Público na Universidade de Erlangen-Nuremberg, APemanha.

73 Ibidem.

28

2.3. Liberalismo: conceito pluridimensional

É comum associar ao Liberalismo três grandes dimensões: política, económica e

religiosa. Todas elas constituem, em boa verdade, espaços de desenvolvimento e

afirmação individuais.

Do ponto de vista político, o Liberalismo procurou pôr em marcha uma

liberalização, a fim de derrubar o absolutismo e o imperialismo dos poderes políticos.

Professando uma atitude de resistência e desconfiança perante um governo que excede

os limites das suas funções, encara a «libertad como la afirmación de la autonomía y de

la independencia del individuo en relación a la autoridad política y social» 74.

Neste contexto, importa recordar Montesquieu, para quem o abuso do poder era

a tendência natural do exercício governativo.

Ultrapassando a dimensão estritamente política, o Liberalismo estendeu-se,

igualmente, ao âmbito económico, tendo desaguado, conforme indica Theodore Greene,

num «libertismo econômico do laissez-faire» 75 . Exigiu, acima de tudo, a máxima

liberdade para as iniciativas económicas, mas com o mínimo de controlo e intervenção

governamentais. Sob a orientação do critério da livre concorrência, impulsionador da

iniciativa ou empresa individual, fez da busca do lucro o seu valor mais elevado.

Em todo o caso, apesar de ter privilegiado a liberdade de iniciativa no campo

económico, esta segunda variante acabou por dar azo, conforme é referido na obra

"Teoria Geral do Estado", à «formação de concentrações de capital e de empresas bem

como cartéis» 76 , constituindo verdadeiros adversários do princípio básico da

concorrência. Como explica o seu autor, a «liberdade foi utilizada para limitar a

liberdade» 77.

Com base na conhecida máxima «laissez faire, laissez passer», a doutrina liberal

repudia inteiramente a noção de protecionismo económico, que interfere na livre

concorrência, para além do mercantilismo, que propunha a regulamentação da vida

económica por parte do Estado.

Para além das referidas variantes política e económica, é possível destrinçar uma

terceira categoria: o Liberalismo religioso. Distinta das restantes, esta modalidade

74 André Vachet, op. cit., p. 193.

75 Theodore Greene, op. cit., p. 218.

76 Reinhold Zippelius, op. cit., p. 380.

77 Ibidem.

29

procurou levar a cabo a secularização, com a finalidade de dissipar o domínio e o

império da transcendência.

Com o advento do Liberalismo, é inaugurada uma nova antropologia, baseada na

promoção da emancipação humana face à teologia e transcendência. Proclamando a

soberania absoluta do indivíduo, esta última variante visa libertá-lo de uma ética da

dependência e obediência ao sobrenatural.

2.4. Falsa antinomia: a liberdade e a autoridade

Para o Liberalismo, as noções de liberdade e autoridade/lei não são antitéticas,

mas complementares. Distanciando-se do raciocínio que crê, erradamente, que ambos os

conceitos são inconciliáveis e se excluem mutuamente, ele acentua a sua profunda

correlação. De facto, o respeito pela liberdade e direitos recíprocos dos outros

indivíduos requer a intervenção da autoridade para disciplinar e conter os impulsos

predatórios e arbitrários das liberdades individuais. Segundo André Vachet, «la ley y la

igualdad ante la ley, constituyen la condición de liberdad en el Estado» 78. Em total

divergência com o entendimento libertário, para o Liberalismo, «la libertad no puede

confundirse con la licencia y la anarquia, sino que exige la sumisión armoniosa a un

orden» 79. Na génese desta ideia, John Locke afirma, na obra «Segundo Tratado do

Governo», que «um estado de liberdade não é um estado de licenciosidade» 80.

Contrariamente ao que poderia presumir-se de início, a ênfase posta na noção de

liberdade não pressupõe a assunção das convicções e interpretações anarquistas. Na

sequência do raciocínio anterior, a doutrina liberal exige a aplicação de leis que

determinem restrições a uma liberdade desenfreada e desvairada 81.

Relativamente a esta problemática, Montesquieu, na obra «O Espírito das Leis»,

esclarece que a «liberdade política não consiste em se fazer o que se quer»,

78 André Vachet, op. cit., p. 172.

79 Idem, p. 102.

80 John Locke, op. cit., p. 36.

81 Como veremos adiante, é a preocupação com a reciprocidade e intersubjetividade que constitui

a razão principal para a proposta de uma liberdade que «supone, necesariamente, una disciplina» (in

André Vachet, La ideología liberal, p. 170).

30

acrescentando, em complemento, que a «liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis

permitem» 82.

Importa assinalar, todavia, que a premissa da autoridade jamais se confunde com

o autoritarismo, considerado «a própria antítese do liberalismo» 83. Segundo Fernando

Valera, ela própria está condicionada por determinados constrangimentos legais, pelo

que «debe emanar de la nácion y actuar dentro de ciertos límites» 84.

Assim sendo, a recusa de um determinismo implacável, que mutila a

espontaneidade, a criatividade, a liberdade ou a própria responsabilidade humana, bem

como de uma espontaneidade ilimitada, está incluída entre as caraterísticas mais

determinantes do Liberalismo.

2.5. Igualdade Jurídica versus Igualitarismo

A tentativa de conciliação entre a liberdade e a igualdade envolve, em teoria,

muitas dificuldades. Se «la igualdad supone identidad y cierta conformidad asegurada

por una reglamentación general», a liberdade implica, por seu turno, «la diferenciación

y a la afirmación de particularismos» 85 . Esta suposta ambivalência é meramente

aparente, porque «la igualdad liberal aparece tan inseparable de la libertad» 86. Dito de

forma análoga, a igualdade liberal é ela mesma condição e garantia de liberdade.

A este respeito, Rousseau afirma, na obra «O Contrato Social», que a «liberdade

não pode subsistir sem» 87 a igualdade.

Em total desacordo com o pressuposto do igualitarismo social e económico, que

preconiza uma semelhante condição social, bem como uma repartição completa e

idêntica dos recursos materiais disponíveis, a igualdade definida pelos liberais reside,

principalmente, na noção de posse de uma semelhante «dignidade e valor intrínsecos,

qualquer que seja sua raça ou credo, sua capacidade inata ou adquirida, sua formação e

82 Montesquieu, op. cit., p. 170.

83 Theodore Meyer Greene, op. cit., p. 78.

84 Fernando Valera, op. cit., p. 13.

85 André Vachet, op. cit., p. 203.

86 Idem, p. 176.

87 Jean-Jacques Rousseau, O Contrato Social, trad. de Leonaldo Manuel Pereira Brum, vol. 95,

3.ª ed., Publicações Europa-América, Colecção «Livros de Bolso Europa-América», Mem Martins, p. 57.

31

actual posição social» 88 . Neste sentido, André Vachet afirma expressamente que a

«concepción liberal de la igualdad supone la ausencia de cualquier igualitarismo social

y justifica el individualismo» 89.

Do mesmo modo que condena o igualitarismo social e económico, devido às

suas pretensões declaradamente uniformizantes, a doutrina liberal reprova a completa

uniformidade de opiniões.

Definida como igualdade de direitos, especialmente no direito à liberdade, a

igualdade liberal não visa anular as diferenças individuais provenientes do exercício

diferenciador da liberdade. Com efeito, a desigualdade em termos de capacidades,

virtudes, méritos pessoais e papéis sociais mantém-se totalmente legítima.

Em consonância com as afirmações anteriores, Bernard Crick esclarece que a

igualdade que a Revolução Francesa consagrara «não era uma igualdade económica,

mas uma igualdade de estatuto enquanto cidadãos» 90.

Rousseau, um dos ilustres representantes da corrente liberal, embora admita que

as desigualdades físicas e intelectuais entre os indivíduos sejam naturais, realça a

igualdade jurídica. Na obra «Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade

entre os homens», o proeminente pensador político refere conceber «na espécie humana

duas formas de desigualdade: uma, a que chamo natural ou física, porque estabelecida

pela natureza, e que consiste na diferença de idades, saúde, de forças do corpo e de

qualidades do espírito ou da alma; a outra, que pode denominar-se desigualdade moral

ou política(...)» 91 . Acrescenta, ainda, que esta última «consiste nos diferentes

privilégios de que gozam alguns em prejuízo dos outros, como o ser-se mais rico, mais

honrado, mais poderoso(...)» 92.

Pela importância atribuída à igualdade jurídica, o Liberalismo é uma doutrina

que não se coíbe de condenar, de forma veemente, alguns dos elementos que ameaçam

fazer ruir aquele princípio: os privilégios políticos e os monopólios económicos. Uma

vez consagrada a existência de direitos iguais para todos, o princípio da igualdade

jurídica traduz-se numa feroz reação contra todo e qualquer privilégio. A apologia de

88 Theodore Meyer Greene, op. cit., p. 164.

89 André Vachet, op. cit., p. 181.

90 Bernard Crick, A Democracia, trad. de Carla Hilário Quevedo, 1.ª edição, Edições Quasi, Vila

Nova de Famalicão, 2006, p. 58.

91 Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os

homens, trad. e prefácio de José Pecegueiro, vol. 1, Livraria Athena, Colecção Devir, Porto, 1964, p. 25.

92 Ibidem.

32

uma igualdade de oportunidades para todos é, em si mesma, a clara contestação do

regime de privilégios 93.

Ciente das debilidades de uma liberdade meramente formal, Theodore Greene

assinala «que as liberdades civis e políticas pouco significam se se divorciam da

segurança e das oportunidades de ordem econômica» 94. Sem um mínimo de bem-estar,

as pessoas dificilmente conseguem fruir as mais elementares liberdades políticas e civis.

A este respeito, Maurice Duverger assinalou a 'alienação política', manifesta na

privação de direitos políticos: «As liberdades políticas, reais para uma burguesia que

tinha meios para as exercer, eram formais para o proletariado» 95.

Para além de tudo quanto se disse, a problemática da igualdade jurídica faz

intervir as noções de reciprocidade, alteridade e intersubjetividade, pressupondo uma

exigência de profundo respeito pela liberdade de todos 96. Em total sintonia com a

valorização destes três conceitos, Theodore Greene declara expressamente que «não há

direitos humanos sem respeito aos correspondentes deveres do homem» 97.

De igual modo, Fernando Valera sustenta que, para o Liberalismo, a «libertad

consiste en hacer todo lo que no perjudique a otro; por lo tanto, el ejercicio de los

derechos naturales de cada uno no tiene más límite que los límites que afianzan a los

demás miembros de la colectividad el goce de iguales derechos» 98.

Se «La teoría política liberal culmina en el famoso laissez faire, laissez passer

de Gournay», que visa assegurar o «máximo de libertad al individuo» 99, não deixa,

porém, de adotar uma conceção de Estado que procura impedir que os indivíduos se

prejudiquem mutuamente.

93 A respeito do tema dos 'privilégios', interessa assinalar a inflexão oligárquica e plutocrática

que o Estado liberal sofreu na sua evolução histórica. Ela foi, de facto, uma das maiores contradições em

que o Liberalismo burguês se viu envolvido.

Se, no plano dos objetivos, este tipo de organização social e política desejava a eliminação dos

privilégios políticos, proporcionando a todos iguais direitos e liberdades políticas e civis, a realidade

haveria, contudo, de o desmentir. Como se verificou, a liberdade de uns foi beneficiada em detrimento da

de outros. Com o favorecimento exclusivista dos interesses burgueses em prejuízo de outros, fazendo

também depender o exercício dos direitos políticos da posse e riqueza material, a referida organização

acabou por desembocar num conservantismo flagrante, avesso a todo e qualquer intuito de transformação da estrutura social vigente.

94 Theodore Greene, op. cit., p. 219.

95 Maurice Duverger, op. cit., p. 290.

96 Como veremos adiante, Raúl Proença destacou-se por abraçar uma conceção de Liberalismo

que combina as noções de liberdade individual e reciprocidade, erigindo o conceito de 'Cada Um'.

97 Theodore Greene, op. cit., p. 192.

98 Fernando Valera, op. cit., p. 12.

99 André Vachet, op. cit., p. 199.

33

Apesar da valorização primária da liberdade, a doutrina liberal procura conciliar

a defesa das liberdades ou direitos individuais, intrínsecos à natureza humana, com as

exigências de vida comunitária e, particularmente, com o respeito dos direitos dos

outros indivíduos e a definição de interesses comuns imprescindíveis à convivência

humana.

2.6. Individualismo, jusnaturalismo e contratualismo

As filosofias individualista, jusnaturalista e contratualista são referências

correntes na teorização liberal. Torna-se impossível ter uma perceção clara acerca do

significado do Liberalismo, se o desligarmos dos laços íntimos que mantém com elas.

Sendo uma das premissas fundamentais da ideologia liberal, o individualismo,

que aparece após a dissolução da conceção organicista da sociedade, nos finais da Idade

Média, proclama a «afirmación del individuo y su superioridad sobre todo mecanismo

colectivo, lo cual justifica la preferencia dada a la libertad individual sobre las

estructuras colectivas» 100 . No entanto, para o Liberalismo, isto não significa que a

sociedade seja uma realidade meramente atomística.

Do jusnaturalismo há a destacar a noção de direitos naturais, prévios a todo e

qualquer pacto social. Os indivíduos, pelo simples facto de o serem, possuem um

conjunto específico de direitos (liberdade, igualdade, propriedade, direito à vida, entre

outros). Em virtude das pretensas inviolabilidade e sacralidade reconhecidas aos direitos

naturais, a doutrina liberal conferia permissão ao soberano de poder dispor deles

somente se os seus titulares o consentissem.

Para além da liberdade e igualdade, um dos direitos com ampla ressonância na

mundividência liberal é o direito à propriedade. Conforme é possível constatar, a

'Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão' consagra o direito natural de todos os

cidadãos à propriedade, contrariando, implicitamente, a noção de monopólios.

Para John Locke, um dos pilares do Liberalismo, o fundamento histórico da

propriedade privada recai sobre o trabalho exercido sobre as coisas da natureza. É o

trabalho que, retirando as coisas do estado comum em que a natureza as havia colocado,

100 Idem, p. 73.

34

«faz com que se transformem em propriedade daquele que o exerceu» 101. Uma breve

incursão pela obra «Segundo Tratado Do Governo» iria, por certo, diluir possíveis

dúvidas.

Do contratualismo há a realçar a noção de pacto social. Por uma necessidade

imperiosa de defesa e proteção dos seus direitos naturais, os indivíduos decidiram unir-

se. Como ordem artificial, a sociedade civil é o resultado do consentimento dos

indivíduos.

Em clara alusão a John Locke, para quem o poder político era «oriundo de um

pacto ou contrato social, firmado por homens naturalmente livres» 102, Eduardo Soveral

reitera que a finalidade do contrato social para os indivíduos consistiu em «ver

defendidas a sua liberdade e a sua fazenda...» 103. John Locke insiste, na obra «Segundo

Tratado Do Governo», que «a origem das sociedades políticas está no consentimento

daqueles que a ela aderem e a constituem» 104.

Na obra «O Contrato Social», Jean-Jacques Rousseau, um dos autores que

melhor personificam a corrente contratualista, refere que os «homens atingiram aquele

ponto em que os obstáculos que prejudicam a sua conservação no estado de natureza

levam a melhor(...)», acrescentando que «não dispõem de outro meio para se conservar

que não seja o de formarem, por agregação, uma soma de forças que possa levá-los a

vencer(...)» 105. Sublinha, em seguida, que o «encontrar uma forma de associação que

defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado(...)»

constitui «o problema fundamental de que o contrato social dá a solução» 106.

Na medida em que funda a origem do Estado na referida necessidade de

conservação dos direitos naturais, o contratualismo consagra, com efeito, a

anterioridade, precedência e preeminência do individual sobre o coletivo.

101 John Locke, op. cit., p. 58.

102 Eduardo Soveral, Sobre os valores e pressupostos da vida política contemporânea e outros

ensaios, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Colecção Estudos Gerais. Série Universitária, Lisboa, 2005,

p. 37.

103 Idem, p. 381.

104 John Locke, op. cit., p. 125.

105 Jean-Jacques Rousseau, O Contrato Social, p. 23.

106 Ibidem.

35

2.7. Estado: uma necessidade e/ou uma ameaça

Contrariamente ao que seria de supor, a doutrina liberal põe em relevo a noção

de imprescindibilidade do Estado 107. Segundo ela, compete à entidade estatal permitir

que cada um possa «desenvolver sus infinitas potencias creadoras en un medio

armónico de paz y justicia» 108.

Em estreita conexão, o individualismo, o jusnaturalismo e o contratualismo são

filosofias políticas absolutamente indissociáveis da mundividência liberal, conforme

tivemos oportunidade de sublinhar. Na verdade, foi o desejo de proteger os direitos

naturais que conduziu os indivíduos à criação da sociedade civil. A este respeito, é

digno de atenção o Artigo 2.º da 'Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão': o

«objectivo de toda a sociedade política é a conservação dos direitos naturais e

imprescindíveis do homem, a saber: a liberdade, a segurança, a propriedade e a

resistência à opressão».

No preâmbulo à constituição de 1793, refere-se que o Estado deve assegurar

proteção e segurança aos indivíduos, aos seus direitos e propriedades. É justamente a

impotência dos esforços individuais para assegurar a paz, a proteção da vida, da saúde e

dos bens individuais que conduz ao reconhecimento da necessidade do poder político.

Para John Locke, figura tutelar do Liberalismo, o «governo civil é o remédio

adequado para os inúmeros e graves inconve-nientes do estado de natureza(...)» 109.

Noutro passo, este autor explica que o «principal fim que conduziu à união dos homens

em sociedade e à sua submissão a um governo, foi a preservação das suas

propriedades» 110.

A respeito da mesma problemática, Theodore Greene afirma que o governo deve

empenhar-se em promover o bem-estar público, «sem recorrer a uma arregimentação

iliberal e sem entregar-se a um paternalismo que, afinal, desencoraja a iniciativa privada

e, por isso mesmo, adversa ao interêsse do liberal pela responsabilidade individual» 111.

A discussão em torno da questão do paternalismo e assistencialismo estatais não

é completamente descabida. Nos dias de hoje, em que o tema da austeridade económica

107 A noção de necessidade do Estado será retomada mais adiante, quando pusermos em foco a

doutrinação de Proença.

108 Fernando Valera, op. cit., p. 68.

109 John Locke, op. cit., p. 42.

110 Idem, pp.143 e 144.

111 Theodore Greene, op. cit., p. 221.

36

marca os ritmos e rotinas diárias das pessoas, para além de dominar a agenda política de

diversos governos nacionais, o debate em torno dos benefícios sociais concedidos pelo

'Estado Social' adquire particular relevância e foco de interesse.

Surgido para proporcionar aos mais necessitados e carenciados condições

mínimas de vida, esta entidade tende a promover uma situação em que as pessoas, sob a

sua tutela e amparo, se demitem das suas responsabilidades individuais. Apesar das

múltiplas prestações sociais asseguradas pela referida organização, são muitos os

críticos que reprovam as suas políticas assistencialistas por incrementarem uma certa

preguiça e inércia individuais.

Embora se reconheça a importância do Estado, está-se longe de admitir que isso

pressupõe a negação da constante necessidade de repensar e fiscalizar os seus

procedimentos e práticas.

Uma das problemáticas nucleares em toda a reflexão de ordem política diz

respeito às permanentes tensões entre as tendências liberais e as tendências totalitárias

dos Estados. As sociedades contemporâneas debatem-se com desafios vários, mais

concretamente com a tentativa de encontrar o equilíbrio perfeito entre posições mais

permissivas e abstencionistas, por um lado, e mais autoritárias e estatistas, por outro.

Esforçam-se, continuamente, por encontrar o «justo meio entre uma tutela totalitária por

um lado e, por outro, uma liberalização excessiva» 112 focada no egoísmo individual. Se,

por um lado, pretendem proporcionar a cada um «o máximo de desenvolvimento

individual e empresarial, bem como restringir e controlar a acção do Estado» 113, por

outro, reconhecem a necessidade de intervir, de forma a restringir o egoísmo individual

e harmonizar os interesses em conflito.

Num Estado que tudo permite, é razoável admitir que a liberdade individual fica

vulnerável e mais exposta a ameaças externas. No caso de um Estado de pendor

autoritário, a liberdade individual torna-se, provavelmente, objeto de opressão e coação.

Relativamente à questão do Estado, André Vachet ressalta as «actitudes

contradictorias del liberalismo, que vacilan entre el temor y la necesidad del Estado...»

114. Paradoxalmente, a «sociedad y el Estado pueden ser concebidos como instrumentos

de liberacion», sendo, assim, «complementarios de la libertad», ao mesmo tempo que

constituem «un posible peligro para esta libertad (...), su límite necesario» 115. O mesmo

112 Reinhold Zippelius, op. cit., p. 381.

113 Idem, p. 380.

114 André Vachet, op. cit., p. 201.

115 Ibidem.

37

autor prossegue: «Así, dialécticamente, el Estado aparece como la condición y la ruina

de la libertad» 116.

Marcado por esta ambiguidade fundamental, o pensamento político liberal

procura proteger e assegurar a independência dos indivíduos face às permanentes

ameaças de invasão e coação, proclamando, em simultâneo, a necessidade do Estado

para proteger o indivíduo da agressividade e conflitualidade.

Os direitos naturais do indivíduo, que John Locke e Montesquieu defendem

como limite à atuação ou intervencionismo estatal, são, paradoxalmente, «los que, en el

pensamiento de Hobbes y Rousseau, exigen la creación de la sociedad, y en el de Locke,

el establecimiento del Estado» 117. Em «O Contrato Social», Rousseau afirma, com toda

a clareza, que a associação civil surge para assegurar a segurança e a paz, elementos que,

no estado de natureza, eram precários e incertos, devido a uma situação de permanente

guerra e rivalidade entre os homens.

Apesar da finalidade individualista da sociedade, porque resultante da

necessidade de conservação dos interesses individuais, que estão sob constante ameaça

no estado de natureza, os indivíduos continuam a procurar restringir e delimitar a sua

ação.

A despeito das assumidas intenções individualistas subjacentes ao contrato

social, André Vachet adverte para o facto de Jean-Jacques Rousseau ter precipitado a

emergência de «una concepción orgánica de la sociedad que supera ampliamente el

individualismo» 118. Tendo promovido a socialização do indivíduo e a tentação estatista,

«se ha podido acusar a Rousseau, con bastante exactitud, de presagiar, pese a su

individualismo, los regímenes colectivos masificados» 119.

116 Ibidem.

117 Idem, p. 124.

118 Idem, p. 131.

119 Idem, p. 172.

38

2.8. Negação das posições libertária e estatista

A par de tantas outras caraterísticas já assinaladas, o Liberalismo rejeita

perspetivas diametralmente opostas como o abstencionismo estatal e o estatismo 120. A

este respeito, Fernando Valera adianta que a «libertad económica no se logrará, en

opinión de los individualistas, ni ausentándose el Estado de su deber, como pretenden

los abstencionistas, ni socializando - en realidad estatificando - la tierra y la riqueza;

antes bien, es misión del Estado velar por que cada hombre sea libre de poseer y

desfrutar lo que con su esfuerzo...» 121.

Em bom rigor, a filosofia liberal demarca-se quer do capitalismo cego, que causa

miséria e deteriora a dignidade humana, quer de uma socialização integral de todos os

bens, que potenciaria a emergência de um novo despotismo.

Deve-se desfazer a presunção de que o Liberalismo consagra a existência de

uma dicotomia irresolúvel entre o indivíduo e a sociedade. No entanto, é possível

antever, à partida, um dilema na tentativa de conciliar a iniciativa privada e a exigência

de cooperação social, uma vez que se a busca da primeira poderá desembocar num

individualismo implacável e extremo (que, alheio a restrições de qualquer ordem,

potencia a exploração, opressão e escravidão humanas), a procura da segunda poderá

conduzir à suspensão, ainda que, na melhor das hipóteses, temporária, das liberdades.

No seu cerne, a doutrina liberal assenta, fundamentalmente, no repúdio quer das

doutrinas libertárias, quer das estatistas ou comunitaristas excessivas.

Distancia-se, portanto, da aceitação de uma liberdade totalmente egoísta e

anárquica, derivada de um individualismo libertário, cujo exercício teria como corolário

mais imediato a violação da liberdade alheia. Uma liberdade e iniciativa privada assim

concebidas colidiriam com as exigências de solidariedade, cooperação, responsabilidade

e colaboração sociais, inerentes à própria vivência dentro de uma qualquer coletividade.

Considera-se, com efeito, que um individualismo exagerado conduz, irreversivelmente,

ao isolamento e desfaz a solidariedade.

120 Na conceção liberal de Raúl Proença, são notórias as semelhanças e afinidades com esta

posição. Em antecipação ao que será dito em momento oportuno, interessa reter, para já, que o ilustre

republicano recusou-se a aderir ao abstencionismo estatal e ao estatismo. As suas convicções liberais

impediram-no de transigir quer com um Estado que se abstém de intervir na regulação e arbitragem dos

conflitos entre os indivíduos, não garantindo a todos a necessária proteção dos seus direitos, quer com

uma entidade que tudo regula e coordena, sem escrúpulo algum em retirar iniciativa e liberdade aos seus

cidadãos.

121 Fernando Valera, op. cit., p. 66.

39

Simultaneamente à condenação da posição libertária, a perspetiva liberal afasta-

se do princípio da socialização extrema e do totalitarismo. Consubstanciada numa

integração ou absorção totais do indivíduo na sociedade, a socialização extrema

culminaria, inevitavelmente, na amputação e repressão da individualidade.

Geralmente, é comum associar ao Liberalismo a proposta de um minimalismo

estatal, que determina uma ação estatal exígua ou restrita, confinada praticamente a

funções de preservação e defesa dos direitos e liberdades, bem como de criação de uma

ordem jurídica que lhes possa servir de baluarte. Segundo Eduardo Soveral, no Estado

Liberal, o «campo da sua actuação é mínimo», enquanto que, no totalitário, é

indisfarçável a tentação de «alargar ao máximo a esfera política, levando ao limite o

direito de intervenção do Estado na vida social» 122. Em conformidade com a teoria do

'estado mínimo', «o sinal distintivo do liberalismo é restringir as competências estatais»,

conferindo-se «primazia à liberdade individual» 123.

Na verdade, a polaridade entre as noções de «Estado mínimo» e «Estado

máximo» é um dos temas centrais em toda a reflexão política. A primeira designa uma

postura relativamente abstencionista, limitada praticamente à função de garantia da

segurança e propriedades dos cidadãos, ao passo que a segunda diz respeito a uma ação

estatal assumidamente intervencionista e reguladora. No primeiro dos casos, a livre

iniciativa individual seria, claro está, a grande protagonista. Em estreita articulação, o

conceito de Estado como «mal necessário» 124 é perfeitamente revelador da lógica do

Estado minimalista. Em relação à noção de «Estado máximo», o Estado-Providência,

com intuitos assumidamente paternalistas, assistencialistas e eudemonistas (garantia de

felicidade para todos), é uma realidade histórica que nela tende a filiar-se.

Referindo-se à defesa que os liberais fazem da necessidade de o Estado interferir

no âmbito económico, A. J. Brito explica que o «grau de intervenção que preconizam é

muito mais restrito que o do socialismo e cingido ao indispensável» 125.

No esforço de compatibilização entre as referidas posições extremistas, a

doutrina liberal proclama, ao mesmo tempo, que o indivíduo possui liberdade individual

e está inserido numa determinada comunidade, à qual jamais poderá renunciar. A rutura

122 Eduardo Soveral, op. cit., p. 85.

123 Georges Burdeau, op. cit., p. 56.

124 Ruggiero Romano, Enciclopédia Einaudi, vol. 14, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989,

p. 271.

125 «Liberalismo», in Logos - Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 3, Editora Verbo,

Lisboa/São Paulo, 1991, pp. 331-342.

40

dos vínculos sociais ameaça seriamente a sobrevivência dos indivíduos, uma vez que

estes carecem da sociedade para prover às suas necessidades mais elementares, bem

como para promover o desenvolvimento das suas capacidades individuais. Conforme

refere Theodore Greene, o «homem é um ser social porque (...) depende de seus

semelhantes para atender a suas necessidades físicas» 126. Como ser sociável que é, o

indivíduo jamais poderá viver imune a determinadas obrigações e laços sociais. A este

propósito, convém realçar que o Liberalismo está em total desacordo com a corrente

clássica do Cinismo, que acusa a sociedade de, ao invés de proporcionar a satisfação das

necessidades humanas, as fazer proliferar. Ressalve-se, no entanto, que a integração na

sociedade não deve conduzir ao sufoco integral da liberdade individual.

Ainda que a vivência individual dentro de uma determinada coletividade deva

estar orientada para a realização de um bem geral, isso não significa uma repressão dos

interesses individuais e particulares. A promoção de um bem comum que subjugaria

totalmente os interesses particulares culminaria, inevitavelmente, na emergência de um

regime tirânico.

126 Theodore Greene, op. cit., p. 150.

41

3. O LIBERALISMO EM RAÚL PROENÇA

Raúl Proença é um dos mais insignes representantes do Liberalismo no contexto

do pensamento português da primeira metade do século XX.

Com notórias reminiscências do Liberalismo clássico, o seu múnus doutrinário

assenta, fundamentalmente, na valorização de algumas das mais básicas premissas da

axiologia iluminista: Liberdade e Igualdade.

Como teremos oportunidade de observar em seguida, diversas são as

manifestações textuais de apreço por esses valores.

3.1. Liberdade, o valor supremo

À semelhança dos mais notáveis teóricos da doutrina liberal, Raúl Proença

realçou a preeminência da liberdade face a todos os restantes valores. O tema da

liberdade é, sem dúvida, um dos que mais permeiam a sua reflexão de ordem metafísica,

antropológica e, acima de tudo, ética e política.

No âmbito da apologia da renovação cultural e espiritual das elites, Raúl Proença

condenou, no artigo «Educação e jesuitismo» 127 , o jesuitismo mental e as práticas

pedagógicas dominantes, em virtude de se mostrarem castradoras da liberdade de

raciocínio, da criatividade e da responsabilidade pessoais. Para além disto, o grande

apreço que nutria pela liberdade serviu também de justificação para a sua adesão a uma

moral conjugal que autorizava o divórcio, o adultério e a união livre.

127 Veja-se A República, 27 de maio de 1911.

42

Apesar do seu republicanismo convicto, os seus preconceitos quanto à condição

feminina, que consagravam a subserviência da mulher, beliscam o seu pretenso

liberalismo, já que inibem a materialização da igualdade política, um dos valores

transversais à mundividência republicana.

A respeito deste tema, o ilustre intelectual político conservou uma posição

ambivalente. Por um lado, proclamou o direito da mulher à liberdade no amor, o que é

demonstrativo de um inequívoco progressismo. Por outro, reagiu contra a igualdade de

direitos no empenhamento político, considerando-a inconciliável com o ideal de pureza

feminina. Na verdade, não deixa de ser revelador de um flagrante conservadorismo que

ele tenha sugerido que a mulher devesse manter-se privada da participação política,

ficando confinada a tarefas de âmbito estritamente doméstico.

De particular importância, a série de artigos «Os grandes tipos humanos»

ressalta algumas das figuras que mais contribuíram para definir a tradição liberal, como

é o caso de Descartes e Marco Aurélio 128.

Apesar das óbvias divergências ideológicas, o jornalista de ideias nunca se

absteve de exigir a liberdade de expressão mesmo para os seus adversários políticos.

Neste sentido, ele denunciou, em «Carta a um Amigo do Brasil», «as práticas

repressivas dos democráticos contra o direito à livre expressão de opinião dos

monárquicos...» 129.

A este respeito, Daniel Pires põe em relevo, em «Cronologia da vida e obra de

Raúl Proença» 130, que, apesar da recusa absoluta do vanguardismo literário de António

Ferro, bem patente no artigo «Combates» 131, o confesso liberalismo de Raúl Proença

levou-o a subscrever o abaixo-assinado de 17 de julho de 1923 em protesto contra a

interdição da peça daquele autor, intitulada Mar Alto, mesmo tratando-se de um

adversário seu.

No artigo «Liberdade», embora tivesse fustigado os maus jornalistas, Proença

não se coibiu, porém, de exigir «ainda para esses, liberdade, liberdade e liberdade» 132,

tendo condenado, assim, a censura da imprensa. Em complemento, no artigo «Ecos», o

128 Veja-se A República, entre 12 de abril e 4 de julho de 1909.

129 A Águia, 2.ª série, n.º 19, julho de 1913.

130 Veja-se Polémicas, p. 54.

131 Veja-se Seara Nova, n.º 44, abril de 1925.

132 in Obra Política de Raúl Proença, vol. IV, Páginas de Política (4), Seara Nova, Lisboa, 1975,

p. 225.

43

intelectual político pôs em relevo que ser liberal implica ser «capaz de defender, mais

ainda do que a própria liberdade, a liberdade do adversário» 133.

Em «Conversa com as Novidades», artigo inscrito na longa polémica travada

com este jornal católico, Raúl Proença, contrariamente aos católicos portugueses, exigiu

liberdade para todos, independentemente de serem ou não seus inimigos. É nestes

termos que se expressa: «exijo absolutamente a liberdade do meu inimigo e sinto-me

capaz de dar a minha vida por ela» 134. A despeito das divergências ideológicas e

doutrinárias que o separavam dos seus adversários, ele manteve-se intransigente na

defesa da liberdade para todos.

O vasto apreço pela liberdade de expressão é, claramente, uma das marcas mais

distintivas da sua conceção liberal. No artigo «Independência», enalteceu o respeito da

liberdade de opinião individual 135. Na mesma direção, em «Liberdade, fim supremo»,

encarou a liberdade como pressupondo o «respeito de tôdas as oposições, de tôdos as

minorias, de tôda a heresia política ou religiosa, de todo o pensamento discordante» 136.

Irredutível na apologia da liberdade e adversário de «tôdas as formas de

ditadura» 137, como chegou a admitir, o vigoroso combatente de ideias acentuou, no

artigo «Unidos pela Pátria», o seu posicionamento pró-intervencionista na 1.ª Grande

Guerra, reconhecendo que o triunfo do imperialismo militar e antidemocrático alemão

representaria uma clara ameaça para «a liberdade das pequenas nações» 138.

Personificando esplendidamente a máxima nietzschiana do «viver

perigosamente», Raúl Proença jamais abdicou de bater-se pelos valores correlativos da

liberdade e tolerância, considerados, no artigo «A educação moral em Portugal», os

mais altos princípios da vida moderna 139. A expressão «a fé que pus na liberdade» 140,

que surge enunciada no segundo dos seus Panfletos, é perfeitamente reveladora da sua

defesa incondicional da liberdade.

133 Seara Nova, n.º 250, 11 de junho de 1931, p. 152.

134 Seara Nova, n.º 257, 13 de agosto de 1931, p. 262. 135 Veja-se A República, 11 de maio de 1908.

136 Seara Nova, n.º 239, 19 de fevereiro de 1931, p. 364.

137 «Réplica dum monstro de egolatria a um monstro de modéstia», Seara Nova, n.º 240, 26 de

fevereiro de 1931, p. 382.

138 in Obra Política de Raúl Proença, vol. IV, Páginas de Política (4), pág. 273. Consulte-se

ainda Marieta Dá Mesquita, Selecção, Prefácio e Notas a A Águia, direcção de António Reis, vol. 27, Alfa,

Testemunhos Contemporâneos, Lisboa, 1989, p. 238.

139 Veja-se Alma Nacional, n.º 6, 17 de março de 1910.

140 in Obra Política de Raúl Proença, vol. III, Páginas de Política (3), p. 286.

44

No artigo «O voto obrigatório» 141, insurgiu-se contra a proposta de lei eleitoral

de Veiga Beirão, que, consagrando o voto obrigatório, prefigurava, sem dúvida, uma

clara violação da liberdade individual.

Apesar do seu repúdio perante o revolucionarismo golpista impensado e

improvisado, Proença, no artigo «A Revolução e a Declaração dos Direitos», pôs em

evidência a legitimidade e a necessidade do recurso à revolução «quando são

suprimidas as liberdades» 142, isto é, como resistência à opressão e tirania, conforme

aparece devidamente consagrado na Declaração dos Direitos do Homem.

Com particular enfoque na liberdade de natureza eminentemente política, o

presente capítulo não ignora, porém, a reflexão de Proença em torno do tema do

retornismo. Iniciado em 1916, este estudo ajudou à fundamentação ética e filosófica das

suas futuras opções políticas.

Pondo a tónica nas objeções morais, Raúl Proença alegou que esta doutrina

introduz o determinismo e o necessitarismo mecanicista, avessos à liberdade humana.

Em objeção ao artigo de Sant'Anna Dionísio intitulado «Uma dificuldade preliminar do

pensamento de Raúl Proença», o nosso arguto polemista, no artigo «Sôbre a teoria do

Eterno Retôrno», considerou que ela «rebaixaria a personalidade a (...) máquina sem

liberdade» 143.

Inspirado na moral kantiana, o espiritualismo proenciano, que começara a

esboçar-se desde 1910, aquando da sua colaboração na Alma Nacional, contrariava as

pretensões determinístico-mecanicistas inerentes ao mencionado retornismo.

Recusando o retornismo da filosofia nietzschiana, dela apenas «retém (...) o

sentido da liberdade e autonomia do indivíduo» 144, vetor que haveria de moldar o seu

vitalismo.

Sob a inspiração de Nietzsche, a sua componente vitalista, que começara a

aflorar na referida revista, ajudou a diluir a sua anterior filiação ao positivismo cientista

e intelectualista, patente no seu estudo «Esboço do Positivismo (Monismo Positivista)».

No entanto, este seu vitalismo estava longe de desaguar num pretenso romantismo

libertário. Aliás, a lógica libertária implícita à filosofia voluntarista de Nietzsche

inspirara-lhe profunda repulsa.

141 Veja-se Alma Nacional, n.º 10, 14 de abril de 1910.

142 Veja-se Seara Nova, n.º 53, 15 de setembro de 1925.

143 Seara Nova, n.º 555, 2 de abril de 1938, p. 193. Interessa referir que António Braz Teixeira,

em Ética, Filosofia e Religião, destaca esta mesma recusa da teoria do Eterno Retorno por parte de Raúl

Proença (Ética, Filosofia e Religião, Editor Pendor, Coleção Razão Animada - 1, Évora, 1997, p. 34).

144 António Reis, op. cit., vol. I, p. 250.

45

Com uma atitude heterodoxa perante o paradigma republicano, Raúl Proença é

definido como «Republicano crítico, mas republicano» 145, porque sempre fiel ao ideal

republicano. Apegado, de modo particular, à componente iluminista do sobredito

paradigma, demarcou-se, por via do seu espiritualismo vitalista e voluntarista, para o

qual terá sido estimulado, como vimos, pela descoberta da filosofia de Nietzsche, de

outras componentes básicas dominantes do republicanismo português, a saber: o

romantismo, o cientismo, o positivismo, o nacionalismo e o materialismo.

Depois de ter vincado, sob a inicial influência da ortodoxia teofiliana

republicana e de Heliodoro Salgado, a «indissociabilidade do republicanismo e do

ateísmo» 146, Proença opôs-se, no artigo «O Partido Republicano e as crenças religiosas»,

à «lamentável confusão» 147 entre opções políticas e opções religiosas ou filosóficas.

Num elogio da tolerância, deplorou todas as formas de dogmatismo existentes (político,

religioso, filosófico, científico), consideradas opressoras para a liberdade de pensamento

e de crítica, bem como para a própria tolerância religiosa e ideológica. No fundo, como

ele próprio sugeriu em «A salvação nacional e os movimentos revolucionários», elas

despojam-nos da «liberdade de sermos nós próprios» 148.

Com a viragem de um ateísmo cientista e anti-religioso para um laicismo plural

e tolerante, filiado num democratismo assente na garantia dos direitos de todos os

indivíduos e no respeito sagrado dos direitos das minorias, a tese da ortodoxia

republicana segundo a qual o livre-pensamento se identificava com o ateísmo e o

sectarismo anti-religioso emergentes fora rejeitada por parte do notável republicano. O

livre-pensamento baseava-se, pelo contrário, na tolerância, sinónimo do respeito

absoluto por todas as crenças e opiniões de natureza religiosa e filosófica 149.

Numa breve incursão histórica, importa destacar que o anticlericalismo e o

laicismo anti-religioso e anticatólico inerentes ao republicanismo português retomaram

e prolongaram a tentativa, tanto do regalismo pombalino como do primeiro liberalismo

português, de operar uma cisão entre a Igreja e o Estado.

145 António Reis, op. cit., vol. II, p. 247.

146 António Reis, op. cit., vol. I, p. 121.

147 Veja-se Alma Nacional, n.º 21, 30 de junho de 1910. Este artigo está também reunido em

Obra Política de Raúl Proença, vol. IV, Páginas de Política (4), Seara Nova, Lisboa, 1975, pp. 239-246.

148 Seara Nova, janeiro de 1923.

149 Na obra O Pensamento especulativo e agente de Raúl Proença, Sant'Anna Dionísio põe em

acentuado destaque, de igual forma, a adesão de Raúl Proença à noção liberal da tolerância (O

Pensamento especulativo e agente de Raúl Proença, Seara Nova, Porto, 1949, p. 64).

46

Em coerência com a proposta da tolerância, Proença contrapôs a defesa do

Estado e Escola neutros à dos chamados Estado e Escola republicanos. Só os primeiros

seriam impulsionadores do tão desejável pluralismo de doutrinas e de opiniões,

impedindo uma possível deriva para uma conceção confessional. Entendia, na verdade,

que um Estado que possuísse uma doutrina, uma moral e uma escola únicas, «porque

pretensamente científicas» 150 , seria o prenúncio do advento do totalitarismo, que

promove a subordinação integral do indivíduo e a dissolução da democracia.

3.2. Primado do Indivíduo: no epicentro da visão liberal de Raúl

Proença

Em concordância com a matriz individualista intrínseca ao Liberalismo, Raúl

Proença instituiu o Indivíduo como categoria fulcral. Como teremos oportunidade de

observar, muitos são os excertos que permitem corroborá-lo. No artigo «Solidariedade»,

afirmou explicitamente que a sua doutrina enaltece o Indivíduo, visando o seu integral

desenvolvimento 151.

Em Carta a Bernardino Machado de maio de 1930, o corajoso republicano

insistiu na valorização do indivíduo: «Há uma ditadura das maiorias como há uma

ditadura das minorias. Sempre que há opressão - de um contra muitos, como de muitos

contra um - há ditadura. Só não há ditadura quando há o respeito pelo Indivíduo».

150 António Reis, op. cit., vol. II, p. 244.

151 Veja-se Alma Nacional, n.º 30, 1 de setembro de 1910.

47

3.3. Raúl Proença e a análise crítica da conjuntura política

Entre as mais distintas facetas de Raúl Proença, a crítica à conjuntura política foi

uma daquelas em que ele mais se notabilizou 152. Sob a inspiração permanente do valor

da liberdade 153, denunciou os vários acontecimentos e vicissitudes políticas que foram

funestas, de alguma maneira, para a liberdade e direitos individuais.

No artigo ironicamente intitulado «Liberalismo franquista», censurou o falso

liberalismo da governação franquista 154.

De igual modo, no artigo «Da Ditadura à Suspensão dos Direitos Políticos»,

exprobou o interregno ditatorial (governo de Pimenta de Castro), em que a opinião

liberal e democrática fora absolutamente negligenciada e desrespeitada 155.

Para além disto, o Sidonismo foi também objeto da sua crítica incisiva e mordaz.

No artigo «O problema das bibliotecas em Portugal», opôs-se-lhe ferozmente,

reprovando a sua deriva conservadora, autoritária e anticonstitucional 156.

Os movimentos reacionários do Grupo da Cruzada Nun'Álvares e do

Integralismo Lusitano (chefiado por António Sardinha), cujas ideias, de nítido recorte

autoritário-conservador, começaram, a partir de certa altura, a seduzir as elites

intelectuais e militares, foram alvos também do seu intenso combate ideológico e

doutrinário. Ora, foi precisamente na série de artigos intitulada «Acerca do Integralismo

Lusitano» 157 que a sua reação doutrinária ao movimento integralista atingiu o auge.

152 José Gama, num dos artigos que integram o catálogo A Águia e a Renascença Portuguesa no contexto da República, projetado para assinalar o centenário da revista A Águia, faz alusão à intervenção

de Raúl Proença «na leitura crítica e independente que fazia da situação caótica da vida nacional» («No

centenário de A Águia e da Renascença Portuguesa, no contexto da República: o projecto educativo-

pedagógico», A Águia e a Renascença Portuguesa no contexto da República. 1910-2010, organização de

Arnaldo de Pinho e Celeste Natário, Universidade do Porto - Faculdade de Letras e Universidade Católica

Portuguesa - Centro Regional do Porto, Porto, 2011, p. 53).

153 Em «Carta a um Amigo do Brasil», o eminente intelectual republicano define-se nestes

termos: «como sumamente liberal que sou...» (A Águia, 2.ª série, n.º 19, julho de 1913).

Este trecho poderá ser consultado ainda em Marieta Dá Mesquita, Selecção, Prefácio e Notas a A

Águia, direcção de António Reis, vol. 27, Alfa, Testemunhos Contemporâneos, Lisboa, 1989, p. 218.

Se a isto adicionarmos o trecho em que Raúl Proença refere que nas «democracias os valores máximos são constituídos pelos direitos individuais», incluído no artigo «Unidos pela Pátria» (in A Águia,

2.ª série, n.º 52, 53, 54, abril, maio, junho de 1916), ficamos, com certeza, mais esclarecidos quanto ao

seu tão proclamado Liberalismo (Marieta Dá Mesquita, Selecção, Prefácio e Notas a A Águia, direcção de

António Reis, p. 239).

154 Veja-se Democracia do Sul, de 8 de dezembro de 1906.

155 Veja-se A Águia, 2.ª série, n.º 43, julho de 1915. Assinale-se que este artigo está compilado

em Obra Política de Raúl Proença, vol. IV, Páginas de Política (4), Seara Nova, Lisboa, 1975.

156 Veja-se Pela Grei, n.º 3, julho de 1918.

157 Esta série encontra-se publicada na revista Seara Nova.

48

No artigo «O programa do Dr. Gomes da Costa: 'integralista por sugestão' - a

opinião do sr. Raúl Proença do Grupo Seara Nova», a orientação do movimento do 28

de Maio é descrita como ultraconservadora, evidenciando uma deriva reacionária 158.

Com a suspensão da Seara Nova, imposta pela censura prévia e decretada em 23

de junho de 1926, o insigne republicano teve de prosseguir o seu labor polemista através

do recurso à derradeira arma do panfleto, refugiando-se na clandestinidade. Só a 14 de

abril de 1927 é que a Seara Nova haveria de retomar a sua publicação.

Nos Panfletos de Raúl Proença, a tónica dominante recai sobre a condenação da

censura, da repressão política, da proscrição e supressão de alguns dos direitos

individuais, especialmente a liberdade de discussão e de crítica, que a Ditadura Militar

tinha levado a efeito. Entre outros malefícios, a subversão dos objetivos originários do

movimento do 28 de Maio foi um dos inúmeros visados. Em «Revelação duma alma»,

Raúl Proença afirmou incluir-se entre os «adversários intransigentes da ditadura» 159.

Depois da análise lúcida dos erros da Ditadura, desenvolvida no primeiro dos

seus Panfletos, intitulado «A Ditadura Militar: História e Análise de um Crime», o

escritor de ideias, feroz contestatário do insurrecionismo permanente e crónico, não só

sublinhou a legitimidade como também a necessidade do «recurso extremo a essa forma

violenta de combate» que é a revolução, «inteiramente justificada quando um governo

suprime os direitos políticos, e estabelece, em vez dum regime de direito, um simples

regime de opressão» 160 . Esta é justamente uma das condições legitimadoras da

revolução, para além da exigência de um largo movimento prévio de opinião pública

que a apoie. Para uma melhor compreensão, interessa ressaltar, porém, que a ditadura

transitória que o grupo seareiro chegou a propor em certos casos diverge da solução

autoritária, anti-socialista e antiliberal da ditadura sugerida pelas diversas correntes de

extrema-direita.

Com um pensamento em constante tensão com o real, em «Resposta ao Sr.

Afonso Lucas, 'ci-devant' homem livre», Raúl Proença hostilizou as ofensivas

crescentes do bolchevismo e do fascismo, resistindo «aos caprichos da moda e o êxito

das fórmulas sociais, venham da Itália de Mussolini ou da Rússia dos Sovietes» 161.

158 Veja-se A Tarde, 15 de junho de 1926.

159 Seara Nova, n.º 95, 15 de julho de 1926, p. 444.

160 in Obra Política de Raúl Proença, vol. III, Páginas de Política (3), p. 216.

161 idem, p. 69.

49

No primeiro dos seus Panfletos, repudiou também a «onda de barbarismo

antiliberal e intolerante que invadira a Europa» 162 , bem como as modas do

mussolinismo e do riverismo, por todas elas terem contribuído para a queda da

República.

Em relação ao mesmo tema, o doutrinário político denunciou, no artigo «O

fascismo e as suas repercussões em Portugal», a falsa Ordem e o falso Progresso sobre

os quais a corrente fascista supostamente se estriba: uma Ordem que reside na

«supressão de tôdas as liberdades», na arregimentação e homogeneização do

pensamento, impostas através do «terrorismo mais violento» 163, sem o qual não seria

capaz de subsistir; e um Progresso confinado à dimensão de uma prosperidade e

felicidade estritamente materialistas e hedonistas. Em primeiro lugar, para Raúl Proença,

a autoridade, longe de se confundir com o autoritarismo, é concebida não como um fim

em si mesmo, mas como um meio ao serviço da liberdade.

Em «Uma apologia do fascismo», fustigou a ideologia fascista por escamotear o

idealismo ético, subalternizando-o à prosperidade material. Segundo o ilustre democrata,

a Liberdade é, em bom rigor, a «condição essencial do desenvolvimento da Cultura e do

próprio progresso material do mundo» 164.

A 9 de fevereiro de 1928, Raúl Proença retomou o seu apostolado doutrinário na

Seara Nova, justamente no n.º 115, iniciando a série de artigos intitulada «Para um

evangelho de uma acção idealista no mundo real», consagrada ao livro 'La Trahison des

Clercs', da autoria de Julien Benda.

Mesmo após a malograda Revolução de 3 de Fevereiro de 1927, em que

participou ativamente, o doutrinário republicano não abandonou o seu papel de «lutador

intransigente contra todos os atentados à liberdade» 165.

Em «Liga de Defesa da República. Nota enviada aos jornais e aos ditadores

desmentindo uma calúnia», a Liga de Paris, protagonista da oposição republicana no

exílio, na qual Raúl Proença foi um dos seus colaboradores mais ilustres, afirmou a sua

inteira demarcação face ao bolchevismo, devido não só à defesa de ideias opostas, como

ainda à recusa de processos violentos e terroristas 166.

162 idem, p. 186.

163 Seara Nova, n.º 77, 6 de março de 1926, p. 84.

164 Seara Nova, n.º 87, 13 de maio de 1926, p. 285.

165 António Reis, op. cit., vol. II, p. 10.

166 Veja-se A Revolta, 26 de julho de 1927.

50

Em bom rigor, a doutrina bolchevista contrariava não só as convicções e

princípios doutrinários da Seara Nova, como também os métodos e estratégias por ela

preconizados.

No documento «La lutte pour la liberté au Portugal. Sa portée universelle. Ce

que veulent les libéraux portugais» 167, de 5 de outubro de 1928, o combatente de ideias

tinha censurado o facto de a Ditadura ter desenvolvido a sua obra à custa dos mais

ignóbeis atos, como a supressão de todas as liberdades, a censura, as prisões, as

deportações e torturas.

A partir dos anos 30, as teses marxistas e bolchevistas começaram a exercer

crescente fascínio sobre a nova geração, a juventude republicana progressista e as elites,

alastrando-se até aos setores oposicionistas. Em «A Rússia ao léu. II - Algumas

considerações para uso dos portugueses», Raúl Proença manifestou a sua inteira repulsa

perante os «métodos bolchevistas, violentamente expeditivos, revoltantemente atrozes»

168 e violentos, a que contrapôs, em alternativa, uma estratégia baseada na adoção dos

métodos lentos, naturalmente persuasivos. Reagiu ao pretenso «liberalismo novo» de

que essas teses se arvoravam em defensoras, acusando-as de serem, com efeito, «o

contrário de liberalismo» 169.

Em Carta a Bernardino Machado de 3 de outubro de 1931, o intelectual político,

perante a situação de haver «Dum lado uma ditadura opressiva, do outro uma massa

semi-bolchevizada...» 170, reivindicou, como em outras tantas ocasiões, a propaganda

democrática.

Em novembro de 1931, a doença psíquica acometeu-o. A sua reclusão no

hospital psiquiátrico impedi-lo-ia de continuar a fazer da liberdade uma paixão vital.

167 Este documento encontra-se reunido na obra Jaime Cortesão, Raúl Proença - Catálogo da

Exposição Comemorativa do Primeiro Centenário (1884-1984), coordenação de Jacinto Baptista,

Biblioteca Nacional, Lisboa, 1985, pp. 266 e 267.

168 Seara Nova, n.º 243, de 19 de março de 1931, p. 39.

169 Idem, p. 40.

170 Cf. Arquivo Bernardino Machado, Vila Nova de Famalicão.

51

3.4. Interpenetração das doutrinas individualista e solidarista

Entre o seu vasto repertório literário, os artigos «Individualismo e etatismo» 171 e

«Solidariedade» 172 constituem duas das expressões mais fulgurantes da correlação entre

o individualismo liberal e o solidarismo socialista. Neles exibiu, efetivamente, o seu

singular democratismo. Em contraposição com a noção de democracia fundada no

princípio da tirania do maior número, a sua conceção democrática traduziu-se no

respeito pelos direitos sagrados do indivíduo, dos quais que se destacam o direito de

livre pensamento e o direito à diferença, enunciados anteriormente no artigo «O que é a

tolerância» 173.

Coerente com uma atitude de ecletismo doutrinário, o jornalista de ideias

combinou, simultaneamente, a doutrina individualista e solidarista. Por um lado,

rejeitou o individualismo exacerbado, hipertrofiado, delirante e anarquista, que,

desenvolvido sob a inspiração doutrinária de Stirner, é responsável não só por eximir a

iniciativa individual de qualquer restrição legal, mas também por fazer sobrepor o Eu à

Sociedade. Por outro, renegou ao gregarismo dogmático e ao mais exagerado

sociocratismo, que, sendo herdeiros de Augusto Comte, impõem, por meio de métodos

coercitivos, a sujeição do indivíduo à coletividade, do Um ao Todo. Distanciou-se tanto

do anarquismo, embora não estivesse agradado com o funcionamento perverso das

instituições republicanas, como do comunismo e bolchevismo 174, pelo que estes últimos

ostentavam de opressor para a liberdade individual.

Segundo Sant'Anna Dionísio, Raúl Proença refuta «a hipertrofia da pessoa (que,

no limite, dera, por exemplo, a concepção do irresponsável Único de Stirner), como a

absolutização do Estado que Rousseau (...) irreflectidamente e paradoxalmente havia

preparado» 175.

No artigo «Individualismo e etatismo», Raúl Proença esclareceu que «para o

etatista o indivíduo só vale na medida em que se subordina à sociedade, para o

individualista a sociedade só vale na medida em que serve o indivíduo» 176 . Aí,

171 Alma Nacional, n.º 29, de 25 de agosto de 1910.

172 Alma Nacional, n.º 30, de 1 de setembro de 1910.

173 Veja-se A República, 14 de julho de 1909.

174 Numa breve alusão histórica, importa relembrar que a rápida ascensão do comunismo,

bolchevismo e fascismo no panorama europeu ficou a dever-se, sobremaneira, ao clima reinante de

descontentamento e desilusão sociais.

175 in O Pensamento especulativo e agente de Raúl Proença, p. 78.

176 Alma Nacional, n.º 29, de 25 de agosto de 1910.

52

concebeu a democracia «à moderna», isto é, inspirada na Revolução Francesa, a qual

«não pode ser senão o acordo de todos para garantir a liberdade de cada um» 177. No

artigo «Solidariedade», asseverou, por seu turno, de forma perentória: «nós não

defendemos o Eu, esta hipertrofia que quando se afirma oprime; mas o Cada um» 178.

Deste modo, o ilustre republicano mostrou-nos como a noção de 'Eu' pode desembocar

no impulso libertário, ao passo que a categoria do 'Cada Um' é a que dá real ênfase à

natural exigência de reciprocidade 179.

Paralelamente, Raúl Proença não se coibiu, segundo António Reis, de denunciar

os riscos inerentes ao «ideal altruísta-solidarista, de inspiração comunitarista, da moral

republicana» 180. Admitiu que esse mesmo ideal, ao privilegiar a dimensão social do

indivíduo por oposição a uma conceção abstrata do mesmo, poderia vir, eventualmente,

a impedir um saudável individualismo liberal, assente, em boa verdade, na recusa da

subordinação do indivíduo à sociedade.

Em todo o caso, o seu credo individualista é também solidarista, porque, no

artigo «Solidariedade», demarcou-se quer do falso individualismo burguês, que explora

o trabalho dos outros, quer do amoralismo estético e da rutura niilista operada pelo

individualismo aristocrático de Nietzsche face à axiologia iluminista (Bem, Liberdade,

Justiça), sobre a qual se estribavam o individualismo, vitalismo, espiritualismo e

heroísmo moral do corajoso democrata liberal 181. Apesar da crítica àquela rutura niilista,

Raúl Proença, de modo inverso, enaltecia a apologia nietzschiana da expansão da vida

individual.

É de destacar que uma das grandes objeções ao pretenso Liberalismo do

individualismo burguês consiste no facto de este ter tornado o exercício dos direitos

cívicos dependente da posse de certas condições económicas. Os direitos não passavam,

em muitos casos, de mera formalidade. Na longa história da conquista dos direitos

cívicos, o sufrágio universal, por exemplo, foi uma conquista relativamente tardia.

Sucedendo ao sufrágio censitário e restrito, impeditivo de uma igualdade jurídica dos

indivíduos, o sufrágio universal representou um travão ao ímpeto oligárquico-burguês

inerente ao Estado liberal primitivo.

177 idem.

178 Alma Nacional, n.º 30, de 1 de setembro de 1910.

179 Conforme fizemos referência no capítulo precedente, o Liberalismo postula a conjugação

entre a liberdade individual e o respeito pela reciprocidade.

180 António Reis, op. cit., vol. II, p. 237.

181 Consulte-se Alma Nacional, n.º 30, de 1 de setembro de 1910.

53

No artigo manuscrito «II - Questões Sociais», Raúl Proença assumiu o

«solidarismo individualista» inerente à «democracia moderna», realçando a «noção

suprema da liberdade individual e da solidariedade universal», numa reação implícita

contra o militarismo belicista 182.

No artigo «Para um evangelho... - II. Da política e das suas paixões», o pensador

assinalou a concordância íntima entre a Democracia e o Cristianismo, fenómenos que,

embora de âmbitos distintos, convergem na valorização do conceito de indivíduo e dos

valores da liberdade e da igualdade 183. No sétimo artigo da série, intitulado «Para um

evangelho... - VII. Da necessidade prévia de defender a democracia das suas

aberrações», Raúl Proença indicou que a Democracia repousa sobre as «tendências

espirituais e individualistas que caracterizam verdadeiramente o cristianismo» 184 ,

inconciliáveis com a tentativa do fascismo e nacionalismo de absolutização ou

deificação de «Entes colectivos» como o Estado ou a Nação, conforme revela em

«Conversa com as Novidades» 185, artigo de réplica surgido no contexto da polémica

travada com o diário católico Novidades.

3.5. A liberdade e a reciprocidade

Este binómio é um dos elementos que reluzem com maior fulgor na doutrina

liberal. A profunda vontade de tornar a liberdade extensível a todos foi disso

sintomática.

Entre a vasta produção literária de Raúl Proença, há um excerto que sobressai,

de facto, por ilustrar perfeitamente esta correlação. No artigo «Liberdade, fim supremo»,

o autor proclamou que «o que limita a liberdade de todos é a liberdade de cada um e o

que limita a liberdade de cada um é a liberdade de todos» 186 . De igual forma, as

referências anteriores à categoria do 'Cada um' são também reveladoras da insistente

preocupação com a reciprocidade e intersubjetividade. O Liberalismo político do arguto

182 Raúl Proença, in II - Questões Sociais, 1 fl. ms., B. N. Esp. E7/cx. 29.

183 Consulte-se Seara Nova, n.º 117, 12 de abril de 1928, p. 406.

184 Seara Nova, n.º 158, 25 de abril de 1929, p. 211.

185 Seara Nova, n.º 257, de 13 de agosto de 1931, p. 261.

186 Seara Nova, n.º 239, 19 de fevereiro de 1931, p. 363.

54

polemista está, sem dúvida, em convergência ética com o personalismo, pondo a tónica

na noção de dignidade humana.

Dando especial ênfase ao tema da reciprocidade, Eduardo Soveral refere que,

«havendo uma pluralidade de liberdades legítimas, elas terão como limite inevitável o

respeito mútuo, igualmente garante de que nenhuma delas possa ser aniquilada» 187.

De igual modo, Luís de Araújo, na sua obra «Ética. Uma Introdução», acentua,

«por motivo da inexorável intersubjectividade, a dimensão da liberdade alheia que

impõe respeito...» 188.

3.6. Falsa contradição: Liberdade/Autoridade

Em analogia com as teorizações clássicas do Liberalismo, o doutrinário

republicano concebeu a liberdade e a autoridade como duas categorias complementares,

tendo eliminado toda e qualquer suposição de antinomia entre elas. Como prova disto,

afirmou, no artigo «O problema da ordem - 'Oxalá a acção do sr. Cunha Leal esteja à

altura da sua boa vontade' são os votos do sr. Raúl Proença, que crê não ter o chefe do

governo expresso bem o seu pensamento àcerca do 'mandar e obedecer'», não haver

antagonismo entre a liberdade, por um lado, e a ordem e a regra, por outro, dado que a

ordem e a obediência à regra constituem a condição da liberdade 189 . No capítulo

anterior, tivemos oportunidade de demonstrar que John Locke foi um dos mais

proeminentes teóricos do Liberalismo a subscrever este mesmo entendimento.

No artigo «Para um evangelho... - X. Da defesa da democracia (3.ª parte)» 190, o

autor das Páginas de Política retomou a teoria contratualista do Estado, fazendo alusão à

necessidade do controlo democrático como fórmula de prevenção contra o poder

absoluto e os abusos decorrentes do exercício político. Pelo contrato que o fundou, o

Estado está obrigado a agir em defesa dos direitos de todos os indivíduos ao seu integral

desenvolvimento espiritual, do interesse geral ou bem comum, ao invés de um pretenso

interesse exclusivo do governante ou finalidade providencial.

187 Eduardo Soveral, op. cit., p. 132.

188 Luís de Araújo, Ética. Uma Introdução, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2005, p.

18.

189 Veja-se O Século, 6 de janeiro de 1922.

190 Seara Nova, n.º 225, de 6 de novembro de 1930.

55

Em concordância com a articulação preconizada entre as referidas noções, Raúl

Proença considerou, em «Para um evangelho... - IX. Ainda a defesa da Democracia»,

que é no «justo equilíbrio entre a Autoridade e a Liberdade (que não só não são

incompatíveis, como, realmente, a condição uma da outra), entre a obediência aos

poderes e o contrôle dos poderes» 191 que se afasta as ameaças quer do despotismo, quer

da anarquia. Aliás, terá sido certamente com o intuito de evitar que o controlo sobre os

governantes pudesse ser deficiente e ilusório que o vemos refutar a doutrina clássica da

independência total dos poderes, teorizada historicamente pelo ilustre pensador

Montesquieu.

Em «Algumas palavras de proémio», o intelectual republicano acentuou, de

novo, a imprescindibilidade do princípio da autoridade, vista como condição e não

«qualquer coisa de contrário à liberdade» 192.

3.7. Liberdade e Igualdade: falsa dicotomia

Remontando já ao tempo em que Raúl Proença colaborava na revista Alma

Nacional, a sua conceção assumidamente individualista da democracia baseava-se na

complementaridade e implicação mútua entre os valores da liberdade e da igualdade, e

não, como poderia presumir-se, na sua exclusão e contraposição.

No artigo «Acêrca do Integralismo Lusitano - IV. Liberdade e Igualdade», Raúl

Proença exprobou a corrente integralista, a qual declarava haver uma antinomia entre

uma «igualdade essencialmente antiliberal» e uma «liberdade essencialmente anti-

igualitária» 193 . A este respeito, Sant'Anna Dionísio explicou que, para a corrente

integralista, «os homens não podem ser considerados juridicamente iguais; que a

liberdade não é, de resto, conciliável com a igualdade» 194.

Como réplica às posições integralistas, o doutrinário republicano alegou, no

mesmo artigo, que a liberdade não é «o regímen da licença ou do arbítrio», elementos

funestos para a liberdade dos outros, mas «produto da regulamentação» social, que

191 in Páginas de Política, 1.ª série, com prefácio de Câmara Reis, Seara Nova, Lisboa, 1938, pp.

306 e 307.

192 in Páginas de Política, 2.ª série, Seara Nova, Lisboa, p. 40.

193 in Páginas de Política, 1.ª série, p. 71.

194 Sant'Anna Dionísio, O Pensamento especulativo e agente de Raúl Proença, p. 71.

56

consagra a reciprocidade dos direitos, ao mesmo tempo que a igualdade também não

pode ser definida como o puro absurdo da «igualdade intelectual e moral dos homens»,

consistindo, antes, na simples igualdade de direitos através da qual se procura «eliminar,

como ilegítimas e anti-naturais, tôdas as diferenças resultantes de considerações

exteriores ao valor próprio dos indivíduos» 195.

Eis como Alfredo Ribeiro dos Santos nos descreve Raúl Proença: o

«extraordinário polemista Raul Proença foi o maior adversário do Integralismo» 196.

Fica demonstrado, de novo, como as exigências de respeito face à

intersubjetividade e reciprocidade de direitos impediram Proença de condescender com

o exercício de uma liberdade manifestamente desregulada e desenfreada, potenciadora,

em última instância, da violação dos direitos alheios. O Liberalismo que defende

pressupõe, no seu âmago, a estreita correlação entre as noções de direitos e deveres.

Embora assente também na igualdade de direitos, o seu credo liberal insurgiu-se

contra toda e qualquer pretensão de igualização, homogeneização e uniformização

completas dos indivíduos, causadoras de supressão óbvia da liberdade de iniciativa.

Em complemento, o escritor de ideias acrescentou ainda que a igualdade que

anula «o direito de desenvolver a própria personalidade» é uma falsa igualdade, da

mesma forma que a liberdade que concede «o direito de ser livre sem o poder de o ser»,

isto é, privada das condições concretas de igualdade que tornam possível o seu real

exercício, é uma liberdade ilusória 197. Conforme declarou, «a condição necessária da

igualdade dos direitos é a igualdade dos poderes: tanto monta dizer que a liberdade é

um ideal inteiramente vão na medida em que não marcha de par com a igualdade» 198.

Nestes dois últimos excertos, estão condensados alguns dos mais fundamentais

pressupostos de todo o seu universo doutrinário: a recusa quer de uma igualdade como

sinónimo de aniquilação do livre desenvolvimento individual, quer de uma liberdade

que, sendo meramente formal e abstrata, aparece despojada das mínimas condições

materiais necessárias para o seu efetivo e concreto exercício.

António Reis sugere que, no artigo «Solidariedade», Raúl Proença, sem ter

descurado o que de injusto poderia discernir-se no individualismo burguês e de

195 in Páginas de Política, 1.ª série, pp. 73-75. É conveniente ressaltar que este texto aparece

reunido na antologia de artigos que versam o tema da liberdade, intitulada A ideia da liberdade no

pensamento português (Romeu de Melo, seleção e prefácio de A ideia da liberdade no pensamento

português, Direcção-Geral da Comunicação Social, Colecção Breviários de Cultura, Lisboa, 1985).

196 Alfredo Ribeiro dos Santos, in A Renascença Portuguesa, um Movimento Cultural Portuense,

Fundação Eng. António de Almeida, com prefácio de José Augusto Seabra, Porto, 1990, p. 107.

197 in Páginas de Política, 1.ª série, p. 77.

198 Ibidem.

57

opressivo no individualismo aristocrático de Nietzsche, inclinou-se para «um

individualismo solidarista que pressupõe a igualdade nos direitos individuais de todos e

cada um no seio da sociedade e exige a solidariedade sem conformismo nem opressão»

199. Coerente com o Liberalismo, Proença concebeu a igualdade como a liberdade ao

alcance de todos e de cada um dos indivíduos. Em sintonia com a sua adesão à conceção

individualista da sociedade e consequente crítica da tentação organicista, o insigne

intelectual político «retoma, assim, a inspiração igualitária do republicanismo radical,

mas sempre atento ao perigo da dinâmica jacobino-estatista que aquele transportava

potencialmente no seu seio» 200.

Numa descrição sumária, interessa destacar que o jacobinismo constituiu uma

das facções que despontaram da Revolução Francesa. Filiado à tradição republicana,

pôs a tónica no valor do civismo e cidadania, acentuando, por conseguinte, o dever de

participação ativa na gestão e decisões públicas. Uma vez levada ao extremo, esta

valorização da soberania popular não deixaria de colidir, inevitavelmente, com a

exigência de liberdade individual. A respeito deste mesmo movimento, Proença chegou

a expressar, em alguns dos seus trechos, uma aversão pelos excessos persecutórios que

o jacobinismo republicano cometeu durante a 1.ª República.

Na tentativa de prevenir os riscos antagónicos inerentes ao comunitarismo e

libertarismo, o individualismo solidarista de Raúl Proença, ao erigir a categoria do Cada

Um entre o Eu e o Todo, buscou alcançar uma conciliação entre o valor da liberdade

individual e a exigência da reciprocidade social.

No artigo «Solidariedade», o doutrinário republicano esclarece-nos nestes

termos: «não defendemos o Um contra todos os outros. Defendemos cada um. E porque

defendemos cada um, defendemos todos. Não é o regime da liberdade animal. É o

regime da igualdade na liberdade, da liberdade em sociedade» 201.

Retomando a teorização que levara a cabo na série «Acerca do Integralismo

Lusitano», o autor das Páginas de Política, no artigo «Para um evangelho... - VIII. Da

defesa da democracia (1.ª parte)», opôs-se aos principais argumentos das doutrinas

reacionárias, que procuravam invalidar o princípio da igualdade. Na esteira de Kant,

proclamou, aí, a igualdade e o «igualitarismo», concebendo este último como a doutrina

que visa que «os homens sejam tratados como iguais pelo que nêles há de igual; como

199António Reis, op. cit., vol. II, p. 237.

200 Idem, p. 238.

201 Alma Nacional, n.º 30, de 1 de setembro de 1910.

58

diferentes pelo que nêles há de diferente», sem qualquer consideração pelos critérios da

fortuna e nascimento 202. Além disto, acrescentou que o «Igualitarismo nunca pretendeu

a supressão de tôda a diferença, antes, pelo contrário, o respeito de tôdas as identidades

reais e de tôdas as diferenças reais» 203.

Em «A Rússia ao léu. Algumas considerações para uso dos portugueses - II»,

acentuou, novamente, a conexão entre a liberdade e igualdade: «(...) se não podem opor

liberdade e igualdade (...) ser liberal é já ser igualitário de certa maneira, pois que

nenhum liberal pode pretender senão a liberdade de todos os homens. Ser igualitário,

por sua vez, é querer o bem-estar, a dignidade, a cultura, a liberdade de todos os

homens» 204.

3.8. Repúdio da conceção rousseauniana de democracia

Em função da sua apologia da liberdade individual, Raúl Proença denunciou a

dinâmica jacobina-estatista subjacente à conceção rousseauniana de democracia.

Dominada por uma constante ambiguidade, a conceção republicana de

democracia não se fixava simplesmente «na linha do liberalismo individualista vintista

enquanto regime de garantias das liberdades e direitos individuais dos cidadãos» 205,

tendo rapidamente enveredado também por um comunitarismo organicista. Neste

sentido, é razoável afirmar que, em contraste com a doutrina da tolerância e liberdade

individual de Voltaire, a doutrina da Vontade Geral e maioritária de Rousseau foi a que

mais permeou a conceção democrática do republicanismo português.

Em total desacordo com Rousseau, o doutrinário republicano discordou que a

essência da democracia repousasse sobre a noção de vontade maioritária, ao invés da

liberdade individual. Deste modo, ele preferiu escolher Voltaire como o autêntico

profeta do individualismo que servira de inspiração à Revolução de 1789.

Desde a sua colaboração na Alma Nacional que Raúl Proença tinha abraçado

uma visão da democracia divergente da perspetiva republicana, de nítido recorte

rousseauniano e jacobino. Segundo António Reis, a democracia, para o nosso insigne

202 Seara Nova, n.º 182, 10 de outubro de 1929, p. 212.

203 Idem, p. 215.

204 Seara Nova, n.º 243, 19 de março de 1931, p. 39.

205 António Reis, op. cit., vol. II, p. 240.

59

pensador, radica no princípio do respeito pelos «direitos sagrados do indivíduo, a

começar pelo direito de cada um a ser diferente e a pensar o contrário dos outros (...)» 206.

Em «Para um evangelho... - VII. Da necessidade prévia de defender a

democracia das suas aberrações», Proença insistiu que «é no direito individual, e não no

direito do número, que reside a essência da democracia» 207. Nada melhor do que a

seguinte descrição de António Reis para compreender realmente a conceção

democrática do ilustre republicano: «Entre a categoria individualista-liberal do Eu e a

categoria comunitarista-republicana do Todo, Proença institui, assim, uma nova

categoria fundadora da democracia - a categoria do Cada um, livre e igual em direitos e

deveres. Deste modo, a democracia é, antes de mais, o regime que garante ao máximo

os direitos de todos os indivíduos, daqui decorrendo o seu carácter a um tempo liberal e

igualitário (...) E implica, por outro lado, tanto o direito à liberdade de opinião como o

direito à revolta contra a maioria quando esta se atreve a violar direitos essenciais do

indivíduo» 208.

Paralelamente, Raúl Proença, ainda no sétimo artigo acerca do livro de Julien

Benda, condenou Rousseau por ter favorecido a aceitação do contrato como

correspondendo à «alienação total de cada associado com todos os seus direitos a tôda a

comunidade», assim como ao «dom incondicional e total» de cada vontade individual à

vontade geral 209 . A este respeito, assinalou que «esta abdicação pura e simples da

vontade individual perante a vontade geral» fomenta a violação e opressão da liberdade

e autonomia do indivíduo pela ditadura da maioria, podendo «constituir-se em razão

justificativa de tôda a espécie de tirania» 210.

O fervoroso democrata rebateu o pretenso individualismo do autor do Contrato

Social, considerando-o, na verdade, precursor do estado totalitário moderno e não, como

seria de supor, da ideia democrática. Adiantou ainda que a perversão rousseauniana do

conceito de democracia, além de ter conduzido ao regime do Terror de 1793, acabou por

estar na génese das experiências bolchevista e fascista 211.

Na sequência das afirmações anteriores, Raúl Proença, em «Algumas palavras

de proémio», apodou o Rousseau do Contrato Social de ser o profeta da «democracia

206 Ibidem.

207 Seara Nova, n.º 158, 25 de abril de 1929, p. 211.

208 António Reis, op. cit., vol. II, p. 240.

209 Seara Nova, n.º 158, 25 de abril de 1929, p. 213.

210 Seara Nova, n.º 158, 25 de abril de 1929, p. 214.

211 Se bem nos recordamos, André Vachet insistira, de igual modo, numa idêntica repulsa face à

preeminência da vontade maioritária.

60

que hoje poderemos chamar totalitária, a que pertencem o maximalismo russo, o

fascismo italiano, o nazismo e o nacional-socialismo germânico, o republicanismo

autoritário» turco e polaco, e com a qual Sidónio se identificara 212. De igual modo, não

deixou de assinalar como a emergência, a partir dos anos 30, na Europa, do

nacionalismo, reacionarismo, nazismo, bolchevismo e totalitarismo veio desmentir as

suas mais íntimas convicções iluministas. Com uma expressão de relativa desolação,

interrogou-se se era «esta a Europa da Justiça e da Liberdade» 213.

Neste último artigo, vejamos como Raúl Proença, de uma forma sucinta, mas

muito explícita, se define: «Eu, a-pesar-de tudo, era democrata, liberal, republicano e

socialista, antiliberalista-económico e antiplutocrático» 214.

No prefácio ao 1.º volume das Páginas de Política, publicado em maio de 1938,

Câmara Reis apresenta-nos também um retrato impressivo de Raúl Proença,

descrevendo, entre múltiplos aspetos, o seu perfil moral, intelectual e doutrinário.

No artigo «Uma opinião...», o implacável polemista, insurgindo-se contra a

leitura deturpada que o jornal ultra-reacionário Voz fizera de um artigo seu, distinguiu

entre a conceção individualista, que respeita a liberdade individual, e a que procura que

o indivíduo seja «absorvido inteiramente pelo grupo» 215.

Embora tivesse declarado, no artigo «O cancro», que «O parlamento (...) é a

única expressão legítima que conheço da democracia» 216, continuava, como sempre foi,

um adepto acérrimo da soberania do indivíduo e dos direitos individuais, reagindo

contra a conceção rousseauniana da soberania popular 217.

212 in Páginas de Política, 2.ª série, p. 38.

213 Idem, p. 75.

214 Idem, p. 42.

215 Seara Nova, n.º 260, 3 de setembro de 1931, p. 311.

216 in Obra Política de Raúl Proença, vol. III, Páginas de Política (3), p. 81.

217 Na discussão em torno de noções como direitos individuais e maiorias, é inevitável a

referência a Tocqueville. Dentro da tradição liberal, este foi, sem dúvida, um dos pensadores que melhor

anteviram os perigos e ameaças da tirania da maioria para a liberdade individual.

61

3.9. Articulação entre o Liberalismo e o Socialismo

De acordo com António Reis, Raúl Proença não se limitou a distanciar-se da

«tónica totalizante do comunitarismo republicano», tendo-se demarcado, igualmente, do

liberalismo económico, que considerou ser responsável por dissipar as condições

imprescindíveis à concretização da «igualdade de direitos entre todos os indivíduos» 218.

Adiante, teremos a oportunidade de verificar, com maior detalhe, que a

correlação estabelecida entre o Liberalismo e o Socialismo é um dos elementos mais

singulares do pensamento proenciano.

No artigo «Dos batráquios e de outros animais», o doutrinário republicano

advertiu aqueles que elogiavam o bolchevismo para a impossibilidade de verem

materializar-se o Socialismo, a «única solução possível das dificuldades do tempo

presente», se desprezassem o «instrumento essencial, que é a liberdade!» 219. Em total

desacordo com a doutrina bolchevista, negou que o Socialismo pudesse concretizar-se

graças à opressão.

Antes ainda, em «A Rússia ao léu. II - Algumas considerações para uso dos

portugueses», Raúl Proença tinha já manifestado a sua reprovação face à experiência

soviética russa ou bolchevismo russo por terem pretendido concretizar o Socialismo à

custa da opressão. Realçando a estreita dependência entre o Individualismo e o

Socialismo, o democrata republicano depressa clarificou que este último só se realizaria

através da garantia de «libertação do indivíduo - de todos os indivíduos», insurgindo-se,

assim, contra o engrandecimento estatal ou «Fins de expansão do Estado» 220.

A respeito ainda da articulação entre o Liberalismo e o Socialismo, Proença fez

notar, em «Algumas palavras de proémio», que os «postulados da democracia liberal e

socialista», que ele julgava ver «gradualmente realizada nas sociedades mais evoluídas,

na Inglaterra, nos países escandinavos, na Austrália» 221, constituíam o substrato do seu

fulgurante magistério seareiro (1921-1931) 222.

218António Reis, op. cit., vol. II, p. 241. 219 Seara Nova, n.º 266, 8 de outubro de 1931, pp. 21 e 22.

220 Seara Nova, n.º 243, 19 de março de 1931, p. 36.

221 in Páginas de Política, 2.ª série, pp. 8-30.

222 Com a finalidade de recordar o centenário de dois dos mais importantes dinamizadores da

vida cultural e intelectual que despontou no seio da Biblioteca Nacional nas primeiras décadas do século

XX, a obra Jaime Cortesão Raúl Proença - Catálogo da Exposição Comemorativa da Primeiro

Centenário (1884-1984) reúne o artigo «Apresentação feita por ele próprio», onde surge transcrita, na p.

35, a passagem do Proémio em que Raúl Proença anunciou os postulados que pautaram a sua campanha

na Seara Nova.

62

3.10. Renúncia do liberalismo económico

Embora nunca tivesse abandonado a noção de liberdade, Raúl Proença não se

coibiu de impor-lhe variadas restrições ao nível estritamente económico.

Aliás, no artigo «Para um evangelho... - VII. Da necessidade prévia de defender

a democracia das suas aberrações», rejeitou o liberalismo económico por considerá-lo

«uma das formas mais revoltantes do privilégio e do despotismo» 223. Demarcando-se do

que afirmou ser a «liberdade que têm alguns indivíduos de se oporem, em nome dos

interesses criados, à liberdade de todos os outros», impedindo-os, aliás, de acederem à

sua independência material e criando um regime de privilégio, esclareceu que o

«liberalismo económico não é uma consequência necessária do liberalismo

democrático, antes está em contradição com ele» 224.

Para demonstrar que as modalidades política e económica do Liberalismo,

embora historicamente vinculadas, não implicavam uma aceitação conjunta dos seus

pressupostos 225, Proença deixou bem claro, no artigo «Liberdade, fim supremo», que é

possível «ser partidário do liberalismo político sem partilhar o liberalismo económico»

226 . Daqui decorrendo, assinalou que o liberalismo democrático ou político «leva

logicamente ao intervencionismo económico, pois que não pode haver liberdade para

todos os homens se nem todos têm garantido um mínimo de independência» 227 .

Ressurge, aqui, a questão da importância de haver um mínimo de independência

material para a garantia de uma liberdade efetiva.

No artigo «A Rússia ao léu. II - Algumas considerações para uso dos

portugueses», o democrata liberal, depois de ter realçado a correlação entre os conceitos

de liberdade e igualdade, adiantou que «a igualdade económica é a condição essencial

223 Seara Nova, n.º 158, 25 de abril de 1929, p. 216.

224 Ibidem.

225 A. J. Brito, num artigo reunido na Enciclopédia Logos, esclarece que o «L. político nem

sempre se concilia com o L. económico», sendo que muitos liberais «julgam que a pura liberdade

económica acaba por conduzir à escravidão real e que, nessa altura, a proclamação de direitos não passa de uma ironia» (in «Liberalismo», Logos - Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 3, Editora

Verbo, Lisboa/São Paulo, 1991, p. 335). Na mesma linha, Sant'Anna Dionísio refere, em O Pensamento

especulativo e agente de Raúl Proença, que no ilustre republicano «existia a agudíssima consciência da

distinção (infelizmente ignorada por tantos republicanos!) de que uma coisa é a liberdade económica e

outra a liberdade política», sendo que a «primeira pode e deve ser combatida, a ponto de ser

possìvelmente suprimida» e a «segunda deve ser intangível» (O Pensamento especulativo e agente de

Raúl Proença, p. 98).

226 Seara Nova, n.º 239, 19 de fevereiro de 1931, p. 363.

227 Ibidem.

63

da perfeita liberdade intelectual e política» 228. Já muito antes, no artigo «O poder das

leis», o escritor de ideias tinha lançado a seguinte interrogação: «Não chegarão um dia a

reconhecer quási todos os homens que a supressão de certas liberdades (as económicas,

por exemplo) é a garantia da verdadeira liberdade?» 229.

Convém destacar, porém, que são vários os excertos que contrariam a alegada

defesa de uma total igualização económica. Devido à sua defesa do direito à

propriedade privada, cremos que a sua única intenção foi valorizar, pelo contrário, a

necessidade de garantir uma maior equidade na distribuição dos bens económicos.

3.11. Estado, um instrumento para a liberdade

A necessidade do Estado é um dos pressupostos doutrinários com maior

relevância para Raúl Proença.

Eduardo Soveral é um dos autores que sublinharam que, para a democracia

individualista, a comunidade política é um «mal necessário», devido à necessidade de

defesa dos direitos individuais 230.

Com uma preocupação incessante pela liberdade, Raúl Proença afastou-se da

tendência para aceitar, de forma errada, que se devesse polarizar a atuação estatal entre

uma atitude ora açambarcadora, ora nula. No artigo «Liberdade, fim supremo»,

apresentou, de forma explícita, a proposta de um Estado que deveria velar pelo livre

desenvolvimento dos indivíduos. Admitindo que só pela liberdade é que o indivíduo

poderia aspirar à sua integral realização, considerou ser missão do Estado «o garantir-

lhe essa liberdade» 231. No caso de a subordinar a fins mais elevados, estará, por certo, a

fomentar o despotismo.

Partidário de uma conceção individualista de democracia, o insigne democrata

deseja um Estado que, bem distinto não só do liberal-burguês, como também do

absoluto ou totalitário, assuma como seu fim supremo a garantia daquilo que é a

verdadeira essência da democracia, isto é, a liberdade individual.

228 Seara Nova, n.º 243, 19 de março de 1931, p. 39.

229 in Páginas de Política, 2.ª série, p. 201.

230 Eduardo Soveral, op. cit., p. 180.

231 Seara Nova, n.º 239, 19 de fevereiro de 1931, p. 362.

64

Peça essencial na célebre polémica com o jornal Novidades, o artigo «Conversa

com as Novidades» é fundamental para compreender a renúncia de Raúl Proença à

conceção anarquista e libertária de Estado. Como adversário feroz de um individualismo

anárquico e libertário, retomou a censura ao anarquismo que levara a efeito desde os

tempos da sua colaboração na Alma Nacional. Se o anarquista «concebe o Estado como

um entrave» a eliminar, Raúl Proença, pelo contrário, encarou-o como «instrumento de

libertação» 232. Uma semelhante repulsa face ao anarquismo está bem patente no artigo

«Para um evangelho... - IX. Ainda a defesa da Democracia»: «Se o anarquismo é, como

ideal, a máxima liberdade para o indivíduo e, como modo de realização, a supressão do

Estado, creio que há contradição inevitável entre o ideal e o método imaginado para o

realizar» 233.

Se dúvidas ainda restassem quanto à aversão pela perspetiva anarquista, bastaria

relembrar a sua afirmação de que a autoridade é condição da liberdade. Na polémica

travada com Fernão Botto Machado, deparamo-nos com uma primeira clarificação do

seu entendimento perante o anarquismo da altura. Excluindo, de forma categórica, a tese

do anarquismo, mas sem anuir com uma qualquer doutrina que imponha uma

dependência e submissão excessivas do indivíduo ao Estado, considerou-se «partidario

do estado á maneira da Suissa, grandioso na sua pequenez» 234. Além do centralismo

administrativo, que tende a desembocar num «socialismo de Estado», bem distinto do

seu ulterior socialismo liberal, Raúl Proença contestou também a excessiva dependência

a que o indivíduo é sujeito perante o «Estado-Providencia» 235.

Não estando circunscrita às posições anarquistas, a sua crítica estende-se

também à conceção absolutista e totalitária de Estado. No artigo «Liberdade, fim

supremo», que constitui uma peça central na polémica travada com Carlos Bana, o

intelectual político deixou bem vincado o desejo de um Estado «não como amo, mas

como servidor», concebido como «Estado-instrumento», em vez de «Estado fim e razão

última» 236.

No artigo «Do Estado absoluto e do Estado liberal», elemento que integra a

referida polémica, opôs às duas conceções mencionadas o conceito de «Estado liberal -

o Estado que se limita (...) que admite fronteiras inultrapassáveis para além das quais

232 Seara Nova, n.º 257, 13 de agosto de 1931, p. 259.

233 in Páginas de Política, 1.ª série, p. 306.

234 in Polémicas, p. 190.

235 Idem, p. 180.

236 Seara Nova, n.º 239, 19 de fevereiro de 1931, p. 366.

65

lhe é vedado fazer uso da sua autoridade e do seu poder (...) o Estado como meio, e não

como fim; o Estado que existe para o indivíduo (...), o Estado instrumento de que (...)

lançamos mão para nos aperfeiçoarmos em espírito, aumentarmos em liberdade,

defendermos a nossa vida, os nossos direitos, a nossa legítima fazenda» 237. Para reforçar

a noção de Estado como meio e instrumento ao serviço do livre desenvolvimento dos

direitos e capacidades individuais, imprescindível se torna sublinhar a advertência que

Raúl Proença dirige, no artigo «Unidos pela Pátria», para que «o papel do Estado seja

permitir o livre exercício dos direitos individuais e não manietá-los!» 238.

O escritor de ideias deixou bem claro, no sétimo artigo da série consagrada ao

livro de Julien Benda, que «nunca um verdadeiro democrata pode reconhecer ao Estado

qualquer poder absoluto sôbre o indivíduo» 239.

Dada a insistente ênfase posta na noção de indivíduo, Raúl Proença condenou,

igualmente, o Estado coletivista e o Estado-instrumento servil dos interesses

económicos privados, pelo que ambos significavam de opressivo para os indivíduos.

Com especial destaque para a crítica do primeiro, fixemo-nos nos termos em que a

executa, no artigo «A Rússia ao léu. II - Algumas considerações para uso dos

portugueses»: «Eu pregunto se o incremento da importância e do papel dirigente das

formas colectivistas da economia em detrimento do sector privado e capitalista é todo o

socialismo. Eu pregunto finalmente se não é o Indivíduo que é o fim e a Colectivização

o meio, se as formas colectivas de produção não são apenas um instrumento posto ao

serviço da humanidade, para que ela se torne cada vez mais livre, mais digna, mais

humana e mais consciente. Se não podemos deixar de ser explorados pelo Capitalismo

senão para ser espoliados pelo Estado socialista, que ganhamos nós com a troca?» 240.

As «formas colectivas de produção» somente adquirem legitimidade desde que

não se transformem em instrumentos de opressão do indivíduo pelo Estado 241.

Além das múltiplas denúncias anteriores, o doutrinário republicano rebateu a

conceção exclusivamente produtivista de Estado, que, predominante tanto no campo

237 in Polémicas, p. 834. Este artigo está compilado em Obra Política de Raúl Proença, vol. IV,

Páginas de Política (4), Seara Nova, Lisboa, 1975, pp. 93-105.

238 in Obra Política de Raúl Proença, vol. IV, Páginas de Política (4), p. 278. Consulte-se ainda

Marieta Dá Mesquita, op. cit., p. 239.

239 in Páginas de Política, 1.ª série, p. 229.

240 Seara Nova, n.º 243, 19 de março de 1931, pp. 37 e 38.

241Raúl Proença jamais consentiria com o que Eduardo Soveral denomina de «colectivismo

integral», que visa imiscuir-se na esfera mais privada das pessoas (in Sobre os valores e pressupostos da

vida política contemporânea e outros ensaios, p. 52).

66

liberal-burguês como no fascista e bolchevista, faz subordinar o Estado ao fim supremo

da prosperidade ou progresso materiais.

Depois da censura, em «Para um evangelho...- IV. Os letrados e a democracia

(1.ª parte)», ao materialismo contemporâneo reinante, incentivado pelo «prodigioso

progresso material do século XIX» 242, no artigo «Para um evangelho...- V. Os letrados e

a democracia (2.ª parte)», Raúl Proença denunciou a sobreposição da matéria,

prosperidade e facto ao espírito, liberdade e direito, para a qual as novas correntes

filosóficas e culturais (vanguardismo futurista, positivismo, utilitarismo, romantismo,

nietzschianismo, pragmatismo e bergsonismo) tinham dado um importante impulso 243.

242 Seara Nova, n.º 120, 24 de maio de 1928, p. 469.

243 Consulte-se Seara Nova, n.º 126, 9 de agosto de 1928.

67

4. O SOCIALISMO

4.1. O Socialismo e a sua intenção libertadora

Na sua génese, o Socialismo despontou com o objetivo de assegurar, entre outras

coisas, a libertação económica dos indivíduos e a abolição das desigualdades

económicas excessivas. Para se compreender, de forma objetiva, o fenómeno socialista,

não é possível dissociá-lo de um enquadramento histórico específico.

Com o advento da industrialização, multiplicaram-se, a um ritmo vertiginoso, os

progressos e as inovações técnicas. Apesar do intenso florescimento industrial, a

deterioração das condições de vida e de trabalho das pessoas foi uma das consequências

que não tardaram a implantar-se. O pauperismo, a fome e a miséria começaram, desde

cedo, a propagar-se a um número cada vez maior de indivíduos. Foi a partir deste

preciso contexto que a corrente em estudo surgiu, animada por um firme desejo de

restituir às pessoas toda a dignidade perdida.

Embora a igualdade jurídica de direitos estivesse já consagrada em moldes

constitucionais, para a qual tinha contribuído, sobremaneira, a consolidação da matriz

liberal, a privação económica e todo um conjunto de constrangimentos laborais

impediam que as pessoas pudessem ter uma fruição plena dos seus direitos. A este

respeito, convém acentuar que não basta que a regulamentação da igualdade jurídica

esteja instituída para que ela se torne algo de efetivo e concreto.

Neste sentido, o Socialismo, principalmente o de distinto recorte democrático,

consentâneo com a doutrinação proenciana, prima por não se contentar nem se resignar

à mera apologia dos direitos políticos. Projetando-se abertamente na definição e defesa

de direitos sociais, passíveis de superarem o caráter predominantemente formal e

68

abstrato dos primeiros, a doutrina de que agora nos ocupamos transparece uma atitude

de maior hostilidade perante a indiferença face às condições concretas das pessoas.

Segundo Marín Civera 244 , o Socialismo visa concretizar «los derechos que

teóricamente son admitidos por todos como bienes inalienables», promovendo a sua

transição do «dominio de la ficción jurídica al de la realidad» 245

.

Do mesmo modo que o Liberalismo, o Socialismo enaltece também o valor da

liberdade. De entre as várias aceções de liberdade mencionadas previamente no capítulo

«O Liberalismo», a que diz respeito à libertação de ordem económica é possivelmente

uma das que melhor identificam a perspetiva socialista.

Avessa completamente aos abusos decorrentes de um capitalismo cego,

obstinado e inclemente, mas, ao mesmo tempo, sensível aos que são mais

desfavorecidos economicamente e vivem uma situação de insegurança económica

desesperante, a corrente em análise faz da justiça e equidade sociais duas das suas

aspirações mais cruciais.

Para Perillo Gomes, existe uma clara convergência entre o Socialismo e o

Liberalismo, manifesta, principalmente, no intuito libertador e emancipador, isto é, no

desejo de garantir a «autonomia do indivíduo» 246

. Na mesma linha, Eduardo Soveral

esclarece, na obra «Sobre os valores e pressupostos da vida política contemporânea e

outros ensaios», que, para além da «colectivização da actividade económica» e da

«justiça igualitária» no gozo dos bens coletivos, o Socialismo visa «libertar cada

homem da servidão económica» 247

.

Embora as correntes liberal e socialista compartilhem de finalidades comuns,

nomeadamente o ideal de desenvolvimento e florescimento das capacidades individuais,

conseguimos vislumbrar entre elas uma oposição inequívoca. Com especial enfoque nas

questões de índole estritamente social e económica, o Socialismo, enquanto sistema de

organização económica, condena, de forma virulenta, o Liberalismo económico. É, pois,

seu firme desejo mitigar a anarquia económica, considerada o corolário lógico do

Liberalismo económico no seu auge.

Um dos movimentos históricos que mais acompanharam a disseminação dos

ideais socialistas foi o sindicalismo. Entre as suas principais aspirações, figurou a

244 Marín Civera (1900-1975) destacou-se dentro do movimento libertário espanhol dos anos 30.

245 Marín Civera, Socialismo, vol. 1, 2.ª edição, Redacción y Administración Embajador Vich,

Colecção Cuadernos de Cultura, Valencia, 1931, p. 6.

246 Perillo Gomes, O Socialismo, Editorial Império, Lisboa, 1939, p. 50.

247 Eduardo Soveral, op. cit., p. 209.

69

garantia real de melhores condições laborais e de vida para os trabalhadores, de maior

segurança e bem-estar económicos. Oriundo das fileiras socialistas, G. Sorel foi um dos

seus representantes mais emblemáticos.

De forma sumária, a doutrina socialista representa o protesto veemente contra

todas as formas de opressão, servidão, alienação, exploração e dominação económicas e

laborais, às quais contrapõe uma exigência de maior justiça e igualdade nas relações

económicas. Como doutrina que despontou em pleno século XIX, distingue-se por

censurar os antagonismos de classe 248

prevalecentes na sociedade da altura, que

opunham a classe possidente e capitalista (burguesia) à classe trabalhadora

(proletariado).

Marín Civera acentua aquilo que é uma das premissas fundamentais da doutrina

socialista: a vontade de «suprimir la explotácion del hombre por el hombre» 249

. Para

além disto, acrescenta que o Socialismo entronca, de igual modo, na «negación pura y

simple de la propriedad privada» 250

, visando instituir uma suposta igualdade económica,

ambição que o comunismo terá exacerbado e radicalizado.

Na obra «Manuscritos Económico-Filosóficos», Karl Marx, em especial alusão

ao conceito de propriedade privada, encarou o comunismo como «a abolição positiva da

propriedade privada, da auto-alienação humana (...)» 251

.

Presente na afirmação anterior, a noção de alienação, extraída justamente da

filosofia hegeliana, assume particular destaque dentro da obra sobredita. Para Marx, ela

manifestava-se, por exemplo, na «relação com os produtos» resultantes do trabalho dos

operários, bem como no próprio «processo da produção» 252

.

248 O conceito de antagonismos de classe está muito presente em Karl Marx.

249 Marín Civera, op. cit., p. 12.

250 Idem, p. 8. 251 Karl Marx, Os Manuscritos Económico-Filosóficos, Introdução, Tradução e Notas de César

Oliveira, vol. 12, Brasília Editora, Série 'Estudos Sociais e Filosóficos', Porto, 1971, p. 73.

252 Idem, p. 33.

70

4.2. Socialismo: as suas variantes

À semelhança de outras, a doutrina socialista encerra múltiplas matizes e

cambiantes. A análise das suas distintas variantes justifica-se pela necessidade de

determinar com qual delas se terá identificado, total ou parcialmente, Raúl Proença.

No itinerário doutrinário do Socialismo, é possível discernir o distanciamento do

Socialismo dito científico, associado ao Marxismo, face ao chamado Socialismo utópico,

seu predecessor. Embora assentes nos mesmos propósitos, notavam-se entre eles

disparidades irresolúveis ao nível dos métodos e processos admitidos para a consecução

da desejada transformação social.

Deplorando o recurso à violência e revolução, o socialismo dito utópico,

encabeçado por individualidades como Saint-Simon, Robert Owen, Fourier e Proudhon,

confiava na eficácia da ação filantrópica e da persuasão junto dos empresários

burgueses para assegurar uma maior equidade. Ignorando o conceito de luta de classes,

preconizava a solidariedade e colaboração interclassistas.

À crença na evolução gradual e pacífica o socialismo marxista contrapunha a

ação ou via revolucionária (a luta de classes) como fórmula e método imprescindíveis à

instauração de um regime de maior justiça.

Termos como luta de classes, revolução e ditadura do proletariado compõem,

efetivamente, a nomenclatura básica do socialismo de orientação marxista. Com

enfoque na luta política e social, a nova tática socialista surge exposta no 'Manifesto do

Partido Comunista' de Marx e Engels, tendo sido acolhida pela 'Terceira Internacional'

253.

Como esclarece o marxismo, a noção de luta de classes, que é um pressuposto

incontornável do Socialismo, advém da existência manifesta de antagonismos

profundos entre o proletariado e os capitalistas. Para Marx, a luta de classes era a

solução para a supressão da exploração laboral e dominação classista. Para além disto,

era concebida ainda, tal como fora admitido, pela primeira vez, na revista «Anais

Franco-Alemães», como o motor da História.

Importa destacar que, numa etapa posterior da trajetória socialista, deu-se uma

cisão no seio do Socialismo de orientação marxista, tendo daí resultado a divisão entre

os partidários da solução mais revolucionária e os adeptos da solução reformista. Se os

253 Nome atribuído à terceira associação socialista de trabalhadores oriundos de vários países.

71

primeiros impunham a transformação abrupta e radical da organização social vigente,

através da ditadura necessária do proletariado, os segundos, pelo contrário, exigiam

somente a introdução gradual de reformas políticas e procedimentos legais e

democráticos. Foi este segundo grupo que antecipou justamente o que veio a

denominar-se, numa fase ulterior, de social-democracia. Neste âmbito, Bernstein foi

uma das figuras mais representativas do reformismo socialista, o qual prima, como é

sabido, pela apologia da ação eleitoral, legal e parlamentar.

Não é despiciendo assinalar que a propensão para o método revolucionário não

foi exclusiva do Socialismo. Conforme fora referido no capítulo precedente, alguns dos

partidários iniciais do Liberalismo recorreram ao radicalismo revolucionário para fazer

triunfar os seus ideais, tendo causado, porém, danos devastadores sobre o espírito liberal

(respeito pela diversidade e liberdade dos outros, tolerância, entre outros valores).

A par de outras perspetivas, Civera sublinhou o Socialismo centralista, que,

fazendo depender do concurso do Estado a necessária transformação social, impõe, por

seu turno, uma «disciplina de hierro», que seria potencialmente opressora e

sacrificadora da liberdade individual 254

. Levando a centralização até ao expoente, o

comunismo haveria de assumir uma declarada pretensão e impulso uniformizadores face

às condutas de ordem pessoal. Para quem erige em ideal supremo «el libre desarrollo de

la personalidad humana» 255

, a proposta de um comunismo centralista é perfeitamente

inadmissível.

Depois da alusão ao contraste existente entre as correntes reformista e

revolucionária, interessa dar especial ênfase a muitas outras que se perfilam com

idêntica preponderância. Neste sentido, mencionemos, por exemplo, a que não abdica

do papel do Estado para a consecução dos seus objetivos originários e aquela que, ao

invés, repele essa entidade ou qualquer outro princípio de governo.

Dentro desta última, Pedro Kropotkine, um dos mais ilustres representantes da

corrente anarquista, considerou que a «garantia material da existencia de todos os

membros da communidade» deve efetuar-se «não pelo Estado, mas completamente fóra

do Estado e sem a sua intervenção» 256

. Ele foi, sem dúvida, uma das figuras a

254 Marín Civera, op. cit., pp. 26-27.

255 Idem, p. 30.

256 Pedro Kropotkine, A Anarchia, A sua philosophia - O seu ideal, trad. de V. da Fonseca,

Editor Gomes de Carvalho, Lisboa, 1908, p. 36.

72

encabeçar a falange dos que advogavam a abolição do Estado e ressaltavam a

«importancia minima da coerção» estatal 257

.

Relembremos, a este propósito, a tese marxista do perecimento e deterioração do

Estado, segundo a qual, uma vez eliminados todos os antagonismos de classe, a

continuidade daquela entidade e sua coação deixaria de fazer sentido 258

.

Segundo Georges Burdeau, para o marxismo, o Estado é a expressão da classe

dominante ou, como ele próprio refere, o «aparelho de coerção da classe dominante» 259

.

Era, de facto, um instrumento ao serviço dos interesses da classe que dominava e dirigia

as relações do sistema de produção vigente.

Em relação ao modo de tomar posse do poder, Perillo Gomes insiste ser possível

discernir correntes alternativas e contrastantes: de um lado, a que advoga o emprego da

violência; do outro, a que faz a apologia dos métodos persuasivos.

Este autor destaca, ainda, a modalidade do «Socialismo de Estado», de acordo

com a qual incumbe à entidade estatal, no processo de socialização da produção, pôr em

marcha as tarefas de coordenação, direção e controlo da produção, bem como a posse de

todos os bens e a distribuição dos recursos provenientes do ato produtivo 260

. Esta via

faz erguer, contudo, o estatismo. A este respeito, Perillo Gomes afirma que o

Socialismo acaba por conduzir «fatalmente ao despotismo» 261

, alegando que, quando se

assenhoreia despoticamente dos bens das pessoas, está a exercer uma clara coação e

opressão sociais e económicas.

Feita a denúncia dos antagonismos classistas existentes entre o grupo

possidente/explorador e o operário, a corrente socialista procurou restituir a liberdade

aos explorados por via da expropriação e socialização. No entanto, interessa reiterar, de

novo, que a apropriação dos bens dos proprietários à custa da opressão revela a atitude

despótica em que o Socialismo parece, em alguns casos, ter desembocado. Crer na

expropriação dos bens a favor do Estado como solução pretensamente libertadora

esconde evidentes impulsos totalizadores.

Pondo-a em marcha, o Socialismo acabará, de forma irremediável, por subjugar

e sacrificar a liberdade, submetendo os indivíduos ao grupo.

257 Idem, p. 45.

258 Convém recordar que, para a análise marxista, a existência de antagonismos classistas era um

atributo transversal a todas as sociedades prévias ao Socialismo.

259 Georges Burdeau, op. cit., p. 85.

260 Veja-se Perillo Gomes, op. cit., p. 56.

261 Idem, p. 53.

73

A par das já mencionadas, sobressaem, de igual forma, as modalidades

antagónicas do Socialismo democrático e Socialismo autoritário. Assente na

compatibilidade entre o Socialismo e a democracia, a primeira delas exibe o seu cunho

democrático quer na «tomada de decisões bem como nos seus objectivos igualitários» 262.

4.3. Repúdio do individualismo económico, herdeiro do Liberalismo

De modo genérico, o Socialismo combate quer os princípios sobre os quais se

estriba o liberalismo económico, quer as instituições que o suportam. No fundo, visa

refrear os abusos decorrentes do individualismo económico inerente ao sistema

capitalista, dando especial ênfase ao «sentido social da riqueza» 263.

Convém recordar que, para o capitalismo, o lucro representa o critério exclusivo,

ainda que promovido à custa possivelmente do sacrifício dos operários.

Privilegiando a transformação da ordem social existente, a corrente socialista

advoga a abolição ou socialização da propriedade particular, considerada o fundamento

da desigualdade económica.

Sendo um dos principais alvos da crítica socialista, a propriedade privada é vista,

segundo Marx, como um instrumento de opressão, constituindo a sua eliminação um

dos intuitos subjacentes à luta de classes.

Sobejamente conhecida, a máxima proudhoniana segundo a qual a «propriedade

é um roubo» impregna profundamente a conceção coletivista da sociedade, justificando

a completa aversão face à propriedade privada 264 . Com a socialização dos bens

particulares, que é uma das mais fortes exigências socialistas, a intervenção estatal

ganharia, contudo, proporções extremas.

262 Bernard Crick, O Socialismo, trad. por M. F. Gonçalves de Azevedo, Editorial Estampa,

Colecção Ciências Sociais Temas, n.º 6, Lisboa, 1988, p. 77.

263 Perillo Gomes, op. cit, p. 204.

264 No capítulo seguinte, será interessante observarmos como é que Raúl Proença equaciona a

questão da propriedade privada. Apesar da condenação feroz da anarquia e egoísmo económicos

resultantes da livre concorrência, o escritor republicano não admite a sua eliminação.

74

Censurando o minimalismo estatal inscrito na doutrina do liberalismo

económico, o Socialismo propõe a intervenção do Estado na vida económica, através

também da promulgação de legislação social e laboral que proteja o trabalhador.

4.4. Objeções ao Socialismo

Apesar de louvável nos seus fins originários, o Socialismo não ficou imune a

críticas.

É indiscutível que um dos principais méritos que se lhe reconhecem diz respeito

à exigência de concretização de muitos dos direitos individuais menosprezados pelo

chamado individualismo liberal. Ele procurou, de facto, eliminar o que se lhe afigurava

ser uma falsa e ilusória liberdade individual, instituída pelo Liberalismo.

Para Perillo Gomes, se o individualismo desvairado inerente ao Liberalismo

«mutila o homem em seu ser social», o Socialismo, à semelhança de «todos os credos

colectivistas, o mutila em sua existência individual» 265

. Na denúncia tanto de um

individualismo implacável como de um coletivismo desordenado, ele distancia-se,

simultaneamente, do que diz ser o «isolamento liberal e o aniquilamento socialista» 266

.

Se boas razões existem para que nos solidarizemos com o diagnóstico socialista

acerca das injustiças causadas pela organização económica da sociedade e com o desejo

de restituir às pessoas os direitos aniquilados, alguma relutância teremos de ter, todavia,

quanto aos métodos socialistas de natureza revolucionária, que conduzem, não raras

vezes, ao aniquilamento dos bens económicos.

Embora possa elogiar-se a nobreza e legitimidade das reivindicações socialistas,

é fundamental alertar para o facto de o Socialismo, na tentativa de as fazer triunfar, ter

empregue meios coercitivos e violentos, atentatórios dos direitos sagrados dos

indivíduos 267

.

265 Perillo Gomes, op. cit., p. 93.

266 Idem, p. 151.

267 Como teremos oportunidade de constatar adiante, o Socialismo que Raúl Proença adotou é

uma versão mitigada, uma vez que, para além de ter excluído a adesão à célebre tese da luta de classes,

não deixou de enaltecer o direito à propriedade privada.

75

Se o Socialismo faz da coação e da expropriação dois importantes expedientes

no combate à ditadura e despotismo económicos, é inevitável que contra «um

imperialismo se levanta outro imperialismo, em via de regra mais tirânico» 268

.

Adicionalmente, interessa sublinhar que o igualitarismo subjacente à matriz

socialista esconde uma pretensão niveladora, incompatível com a lógica do

individualismo liberal.

Reagindo à acusação de ilegalidade que os socialistas dirigem à noção de

propriedade privada, os liberais realçam a anterioridade do direito à propriedade face à

constituição do Estado.

Embora o Socialismo condene o excedente material aplicado em benefício

próprio, mantém a propriedade circunscrita a uma finalidade social, orientada, acima de

tudo, para a promoção do bem-coletivo. No entanto, ao fazê-lo, omite a face individual

da propriedade. Note-se que, previamente à questão do uso da propriedade, deve

colocar-se a questão da posse individual da mesma.

268 Perillo Gomes, op. cit., p. 203.

76

5. O SOCIALISMO EM RAÚL PROENÇA

Embora dispersos, são vários os excertos onde é notória a adesão de Raúl

Proença a alguns dos pressupostos inerentes à mundividência socialista. Em todos eles,

transparece uma profunda sensibilidade perante as questões sociais, consideradas o

tópico nuclear para o Socialismo. Por diversas ocasiões, o pensador põe em relevo a

noção de bem coletivo.

Artigos como o prefácio ao volume de poemas «O Elogio da Vida» e «Palavras

de um vencido» 269

, em que o autor fustiga a exploração económica, assumem especial

importância para a compreensão da evolução das suas posições políticas e doutrinárias.

Neles, de facto, começaram a fazer-se notar os primeiros indícios da sua progressiva

aproximação ao Socialismo.

Em «À margem das palavras e dos factos», excluindo o grupo seareiro a que

pertencia, Raúl Proença considerou os socialistas o grupo com quem teve maiores

«aproximações doutrinárias» 270

.

5.1. Socialismo democrático-liberal

Em coerência com o seu célebre democratismo, o doutrinário republicano adotou

uma conceção socialista que não se compadecia, de modo algum, dos meios

revolucionários preconizados e empregues, de modo especial, pelo bolchevismo russo.

269 Consulte-se Alma Nacional, n.º 23, 14 de julho de 1910.

270 Seara Nova, n.º 70, 16 de janeiro de 1926, p. 195.

77

Só um Socialismo que, assente no princípio do reformismo gradual, se desenrolasse

dentro da ordem e dos métodos democráticos e parlamentares lhe parecia concebível.

Neste sentido, a sua simpatia doutrinária inclinou-se, claramente, para os programas

reformistas dos partidos trabalhistas e sociais-democratas europeus.

É justamente nos artigos «Individualismo e Etatismo» 271

e «Solidariedade» 272

,

onde o individualismo liberal e o solidarismo socialista se combinam, que vemos

anunciar-se o seu futuro Socialismo Liberal 273

, o qual viria a ser preconizado, de forma

resoluta, durante a sua colaboração na Seara Nova. No âmbito da defesa desta particular

perspetiva, o pensador valorizou, na esfera política, o liberalismo político, mas

postulando, ao nível económico, o necessário intervencionismo estatal.

Da leitura atenta dos textos onde expôs a sua conceção socialista, ressalta um

Socialismo assumidamente liberal, imprescindível para garantir a concretização do

conceito de democracia como soberania assente no indivíduo enquanto sujeito livre e

igual aos outros em direitos. Para a conjugação entre o individualismo liberal e o legado

socialista terá contribuído, de forma decisiva, a experiência do trabalhismo britânico de

Mac Donald e a reflexão de Carlo Rosseli.

No âmbito da polémica travada com Carlos Bana em 1931, Raúl Proença, a fim

de realçar a confluência entre o Liberalismo e o Socialismo, citou Carlo Rosseli nestes

termos: «O Socialismo fez-se liberal? O liberalismo fez-se socialista? Uma coisa e

outra» 274

.

Fazendo da matriz democrática uma exigência fundamental da sua perspetiva

socialista, à Rússia se refere, em «No álbum da senhora democracia» 275

, como exemplo

flagrante do menosprezo pelo princípio democrático. Diferentemente do bolchevismo, o

seu Socialismo não só não se afirma à custa da supressão e atropelo dos direitos

individuais, como, pelo contrário, é impulsionador da sua expansão. Entre várias coisas

de que jamais se afasta, a defesa obstinada do liberalismo político é das que se revestem

de maior relevância.

271 Consulte-se Alma Nacional, n.º 29, 25 de agosto de 1910.

272 Consulte-se Alma Nacional, n.º 30, 1 de setembro de 1910.

273 Socialismo Liberal é o termo com que Raúl Proença chega a designar a sua perspetiva

socialista, sob a notória influência da reflexão de Carlo Rosseli. De seguida, tentaremos clarificar esta

noção com maior detalhe.

274 «Liberdade, fim supremo», Seara Nova, n.º 239, 19 de fevereiro de 1931, p. 363.

275 Seara Nova, n.º 246, 16 de abril de 1931.

78

No seu profundo ardor liberal, demarcou-se, pois, dos socialistas autoritários,

que, pondo a ênfase na sociedade, tendiam a menosprezar o indivíduo, reduzindo-o a

uma mera abstração.

Embora não aprofunde, Norberto Bobbio, na obra «O Futuro da Democracia»,

fala-nos do «socialismo liberal» como se fosse uma solução de compromisso, isto é,

uma fórmula conciliatória entre uma conceção individualista da sociedade, avessa à

tentação organicista, e um «princípio de justiça distributiva» 276

, inerente ao próprio

Socialismo.

Sendo Raúl Proença um dos mais assíduos colaboradores e principais artífices da

Seara Nova, é fácil reconhecer a sua identificação com as posições por ela assumidas.

Em termos de opções político-ideológicas, a Seara Nova, conforme aparece

descrito em «Apresentação da «Seara Nova»», declarou ter assumido uma preferência

pela «extrema-esquerda da República», numa posição que, «radical, sem ser jacobina»,

estava orientada para «a transformação do regimen no sentido das mais avançadas

aspirações» 277

, perfeitamente consubstanciadas no Socialismo. Realizando-se «dentro

da ordem, dos métodos democráticos», este Socialismo corresponderia a «uma maior

justiça social».

Importa assinalar que, para a sua adesão explícita a este Socialismo de recorte

democrático, não foi alheia a influência de determinados fenómenos na Europa, como é

o caso da «ofensiva geral dos movimentos de trabalhadores, o triunfo do bolchevismo

na Rússia e os significativos avanços dos principais partidos socialistas e sociais-

democratas da Europa Ocidental...» 278

.

Sem questionar os princípios democráticos elementares da República, a

agremiação seareira, que não punha de parte o desejo de implantar um republicanismo

socialista democrático, assumiu a necessidade de renovação do regime republicano,

orientando-o, porém, para «opções de esquerda democrática, reformista e antijacobina»

279.

O «Programa Mínimo» 280

, que aglutinava as diversas reformas estruturais que o

grupo elaborou, dirigidas ao sistema constitucional, à organização económico-social e

276 Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia, trad. por Miguel Serras Pereira, vol. 38,

Publicações Dom Quixote, Colecção Viragem, Lisboa, 1988, p. 169.

277 in Páginas de Política, 2.ª série, p. 91.

278 António Reis, op. cit., vol. I, p. 315.

279 Ibidem.

280 Consulte-se Seara Nova, n.º 12, 15 de abril de 1922.

79

ao plano pedagógico, continha um conjunto de propostas de natureza social que

evidenciavam uma nítida opção marcadamente esquerdista.

De igual modo, a Seara Nova, no texto programático não assinado «Seara Nova»,

reafirmou, em termos doutrinários, a sua adesão a um republicanismo de «tendência

socialista», com a aceitação do «princípio da intervenção do Estado na regulamentação

das actividades, para pôr termo (...) à anarquia económica, e estabelecer

progressivamente a maior justiça distributiva», para além da «necessidade de coarctar os

abusos da riqueza» em reação ao «laissez faire, laissez passer do liberalismo

económico» 281

, aludindo, por último, à subordinação do direito de propriedade a um

conjunto de restrições que o impedissem de afrontar o bem comum 282

.

Relativamente à solução da ditadura transitória de governação excecional

preconizada, de forma ostensiva, pelo grupo seareiro, Raúl Proença, no artigo «A

Ditadura», incluiu a existência de uma elite «de figurino e tendências antes

trabalhistas» entre as suas condições básicas, visto que os «problemas fundamentais são

os da justiça, repartição, da ordem moral e do trabalho» 283

.

5.2. Intervencionismo estatal: um postulado essencial

Atendendo a diversos excertos, não restam dúvidas de que Raúl Proença

acentuou a necessidade de conservação do Estado, divergindo, assim, das teses

anarquistas, que advogam a proscrição definitiva da autoridade.

Em todo o caso, convém recordar, todavia, que o seu Liberalismo levou-o a

negar ao Estado a legitimidade para exercer um poder desmedido e discricionário sobre

os súbditos. Estando o indivíduo no cerne da sua doutrina política, é fácil intuir as

razões subjacentes à recusa da noção de estatolatria e da vontade-geral de Rousseau.

Dispensando, conforme indicámos atrás, o recurso aos meios violentos e

abruptos para dissolver a anarquia económica e estabelecer uma distribuição mais

equitativa dos bens materiais, a conceção socialista de Proença requeria, essencialmente,

281 in Páginas de Política, 2.ª série, pp. 256-258.

282 Sottomayor Cardia, na antologia dedicada ao grupo Seara Nova, transcreve, de resto, este

mesmo trecho. Consulte-se, portanto, Sottomayor Cardia, Seara Nova: Antologia/organização, prefácio e

notas de Sottomayor Cardia, vol. 12, Alfa, Testemunhos Contemporâneos, Lisboa, 1990, p. 48.

283 in Obra Política de Raúl Proença, vol. III, Páginas de Política (3), p. 16.

80

uma crescente intervenção estatal, capaz de proceder eficazmente à regulamentação das

atividades económicas e à eliminação das desigualdades extremas, para além de atenuar

os abusos e excessos engendrados pelo sistema capitalista.

Assegurado um mínimo de independência material a todos os indivíduos, a

liberdade intelectual e política de cada um poderia, assim, exercer-se plenamente.

Recusando conformar-se com uma pretensa liberdade abstrata e genérica, Raúl Proença

pôs o enfoque numa liberdade ao alcance de todos os indivíduos.

Descontente com a influência e predomínio progressivos das oligarquias e

plutocracias reinantes, acentuou, de igual modo, a necessidade de as combater através

de uma maior intervenção do Estado no domínio económico. No artigo «Combates...»,

lançou o protesto contra a União dos Interesses Económicos, devido à sua «resistência

contra tudo o que representa um maior equilíbrio da riqueza e uma maior justiça social»

284.

Embora o primado do indivíduo (herança do Liberalismo) esteja entre os

principais enunciados do seu rico e denso universo doutrinário, teve a perfeita noção de

que era imprescindível assegurar determinadas condições mínimas para que todos

pudessem fruir, concreta e efetivamente, dos direitos cívicos e constitucionais

proclamados.

Joel Serrão considerava, a propósito, que a justiça social equivale a «criar as

condições, todas as condições que permitam a todos idêntica liberdade» 285

. Implícito a

esta consideração está, sem dúvida alguma, o tão propalado contraste entre uma

liberdade nominal e uma liberdade real.

Em «Algumas palavras de proémio» 286

, vemos ressoar, novamente, a adesão do

destacado doutrinário político à tese do intervencionismo estatal. Sem pactuar com a

proposta de completa coletivização da produção, este intervencionismo corretor do

liberalismo económico está em sintonia programática com o trabalhismo inglês e o

reformismo social-democrata, ambos entusiastas da implementação de políticas

assistenciais e de mecanismos fiscais como fórmula de redistribuição. Neste artigo, Raúl

Proença defendeu, entre várias coisas, «uma política socialista no domínio da

economia», que pressupõe o «refreamento e regulamentação do chamado liberalismo

284 Idem, pág. 41.

285 Joel Serrão, Antologia do Pensamento Político Português/1, Liberalismo, Socialismo,

Republicanismo, Selecção, introdução e notas de Joel Serrão, vol. 7, Editorial Inova Limitada, Colecção

Civilização Portuguesa, Porto, 1970, p. 52.

286 in Páginas de Política, 2.ª série.

81

económico, que eu não via solidário do liberalismo político (...) um mínimo de

regulamentação económica, que pusesse têrmo ou, pelo menos, restringisse o laissez-

aller da fórmula de Bastiat, a desorganização, o regime da anarquia individual no

mundo da economia» 287

.

Para melhor compreender a posição do ilustre escritor de ideias em relação ao

papel do Estado, interessa ressaltar o acentuado diferendo que existiu entre Proença e o

seu grande amigo e companheiro António Sérgio.

Colocando-os em confronto, António Reis sugere que ambos convergem

doutrinariamente quando ambicionam uma «orientação declaradamente socialista a

imprimir na organização social» 288

, alcançada por meio da intervenção estatal. Para

além disto, une-os, claramente, a tentativa de estabelecer uma simbiose entre «os

valores do individualismo liberal e os da justiça socialista» 289

.

Apesar desta confluência estratégica e doutrinária, estabeleceu-se entre eles uma

discrepância de posições no que concerne ao papel do Estado. Se Sérgio manifestou

uma maior desconfiança perante a intervenção estatal, assumindo as posições

anarquistas, Raúl Proença manteve-se, por seu turno, crente nas instituições políticas e

na eficácia da sua ação.

Pese embora a defesa do intervencionismo estatal na economia, com vista à

promoção da justa repartição da riqueza, o autor das Páginas de Política não adiantou

pormenores quanto ao modo como aquele deveria realmente processar-se.

5.3. A noção de propriedade privada

O tema da propriedade privada é um dos elementos constitutivos da doutrina

liberal. Incluído no conjunto das prerrogativas liberais consideradas co-naturais aos

indivíduos, este direito consta da teorização de alguns dos principais representantes da

tradição liberal.

No respeitante a Raúl Proença, as suas convicções liberais levaram-no a

reconhecer a ilegitimidade para se proceder à supressão definitiva do direito de

287 Idem, p. 40.

288 António Reis, op. cit., vol. I, p. 211.

289 Idem, p. 212.

82

propriedade, estando implícito que isso, a suceder, constituiria uma inequívoca violação

de um dos mais imprescritíveis direitos individuais. Em contrapartida, não se eximiu de

lhe retirar o caráter alegadamente absoluto e soberano de que alguns autores o haviam

dotado. Neste sentido, ele advogou, em «Seara Nova», a necessidade de o submeter a

restrições que o impedissem de «colidir com o maior bem da comunidade» 290

, para

além de sublinhar a importância de circunscrever ao estritamente necessário o direito de

herança.

Em todo o caso, ainda que tenha reconhecido que a livre iniciativa poderia

ocasionar, no limite, a anarquia e o egoísmo económicos, não manifestou qualquer

contemporização para com a pretensão coletivista de despojar os proprietários de seus

bens particulares. O seu liberalismo democrático, tendo exigido uma organização

socialista da economia, não se coadunava, contudo, com a proposta de uma socialização

integral da propriedade.

Na mesma linha, Eduardo Soveral insistiu também na necessidade de impor

restrições ao direito de propriedade em nome do bem comum, quando aquele excede «a

insubstituível função de garantir o bem-estar e a autonomia dos indivíduos» 291

.

5.4. Entrelaçamento entre o Socialismo e o Liberalismo

Em Raúl Proença, o Socialismo e o Liberalismo são conceitos perfeitamente

interligados. Conforme temos oportunidade de constatar, o seu peculiar Socialismo visa,

acima de tudo, o florescimento e desabrochamento das capacidades individuais.

Para nos elucidar nesta questão, retomemos a transcrição que o democrata

republicano fez de Carlo Rosseli no artigo «Liberdade, fim supremo»: «O socialismo

fez-se liberal? O liberalismo fez-se socialista? Uma coisa e outra (...)» 292

. Em

complemento, socorreu-se ainda da conhecida definição de Jaurès acerca do Socialismo,

entendido como o «individualismo lógico e completo», assim como de um excerto de

290 in Páginas de Política, 2.ª série, p. 258.

291 Eduardo Soveral, op. cit. p. 53.

292 Seara Nova, n.º 239, 19 de fevereiro de 1931, p. 363.

83

Liebknecht, em que se considera «o desenvolvimento mais completo do indivíduo» 293

o

objetivo supremo que rege a doutrina socialista.

Se é óbvio que o insigne combatente de ideias retomou as principais premissas

do individualismo liberal, não é menos verdade que procurou também complementá-las

com as exigências socialistas.

Possibilitando uma mais justa distribuição dos bens materiais ou uma maior

independência económica para todos, o Socialismo torna-se condição essencial do

desenvolvimento das diferentes capacidades e aptidões individuais. Confirma-se, assim,

a articulação efetiva entre o individualismo e o Socialismo.

Excelente exemplo para demonstrar a associação entre o Socialismo e a matriz

liberal é o artigo «A Rússia ao léu. Algumas considerações para uso dos portugueses -

II», onde se assinala que o primeiro só se concretizaria por «uma árdua tarefa - exercida

na liberdade, pela liberdade, para maior triunfo da liberdade» 294

. Entre vários aspetos, a

irredutibilidade do valor da liberdade foi uma das mais significativas componentes do

Socialismo democrático de Proença.

Em clara contraposição ao liberalismo económico, o seu liberalismo

democrático, que está bem patente no artigo «Para um evangelho... - VII. Da

necessidade prévia de defender a democracia das suas aberrações», articula-se com o

Socialismo tal como foi esboçado pelo trabalhismo inglês de Mac Donald, que visa que

o «individu puisse être libéré de l'oppression et jouir de la liberté de se devélopper» 295

.

293 Ibidem.

294 Seara Nova, n.º 243, 19 de março de 1931, p. 41.

295 Seara Nova, n.º 158, 25 de abril de 1929, p. 216.

84

CONCLUSÃO

Apesar do trágico desfecho que o privou prematuramente do convívio terreno,

Raúl Proença deixou às gerações ulteriores um importante legado de autênticos

testemunhos de uma integridade intelectual e moral inauditas.

Volvidos mais de 70 anos sobre a sua morte, os seus artigos continuam a

conservar muito de atual, constituindo, para quem assim o deseje, uma fonte de

inspiração no combate a todos os atentados e ameaças às liberdades e direitos

individuais.

Apesar da sua importante reflexão em torno da teoria do retornismo e das

questões de Deus e da morte, as problemáticas éticas e políticas foram as que

concentraram a maior parte dos seus escritos, estando patentes, de modo concreto, na

apologia da renovação das mentalidades e na crítica dos comportamentos perversos dos

dirigentes políticos.

Com a viragem para o espiritualismo idealista, após o abandono da sua anterior

filiação positivista, a defesa vigorosa dos valores da liberdade individual, justiça e

dignidade, enquanto substrato fundamental do seu Liberalismo, tornou-se num

importante vetor não só do seu vasto múnus doutrinário, como também do seu trajeto

existencial e cívico.

Embora o aparecimento de correntes de acentuado perfil antidemocrático, como

é o caso do fascismo e do bolchevismo, agudizasse em Raúl Proença o sentimento de

pessimismo e desilusão, mais ingente se tornava o seu desejo de defender

doutrinariamente os ideais democráticos. Quanto mais adversa se lhe afigurava a

conjuntura política, fosse ela nacional ou internacional, mais se lhe impunha a

propaganda feroz da democracia. Modelo de heroísmo cívico, Raúl Proença jamais se

recusou a indagar e aprofundar os fundamentos filosóficos para a sua atitude viril e

empenhada perante a vida.

Ultrapassando a mera adesão ao Liberalismo político, a sua defesa

desassombrada da liberdade exigiu o intervencionismo estatal por forma a combater os

abusos decorrentes da economia capitalista. Sem transigir com direitos políticos

meramente formais, aderiu ao que denominou de 'socialismo liberal'. Assente na

conjugação entre os ideais liberal e socialista, esta doutrina visa garantir a todos uma

maior igualdade económica, no sentido de lhes proporcionar um gozo mais completo e

85

efetivo da liberdade, dispensando, para o efeito, o recurso à opressão dos direitos

individuais.

Acima de tudo, importa reter do pensador, julgamos nós, a defesa intransigente e

pertinaz dos valores liberais numa conjuntura política demasiado adversa e instável, a

proclamação da incompatibilidade entre o Liberalismo político e o Liberalismo

económico, bem como a adesão ao mencionado Socialismo Liberal.

A despeito da distanciação temporal que nos separa de Raúl Proença, os seus

discursos conservam uma notável atualidade. Por um lado, conforme se pode verificar,

muitos dos atuais discursos parlamentares repercutem os mesmos desafios e

inquietações políticas deste pensador, e, por outro lado, é crível que muitas das críticas

que o intelectual político fez ao funcionamento do regime político da época poderiam

ser hoje retomadas. Apesar de naturais diferenças, decorrentes da própria evolução

temporal que lhe é inerente, grande parte dos vícios políticos identificados por Raúl

Proença persiste nos tempos de hoje.

Ao concluir este trabalho, esperámos ter assinalado, tanto quanto as nossas

finitas capacidades nos permitiram, o elevado apreço do ilustre doutrinário republicano

pelos valores da liberdade, individualidade, justiça e dignidade.

86

BIBLIOGRAFIA

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«O Partido Nacionalista», Vanguarda, n.º 4341, de 10 de fevereiro de 1909.

«O Parlamento», Vanguarda, n.º 4369, de 11 de março de 1909.

«A crise moral», A República, n.º 311, de 31 de março de 1909.

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«O que é a tolerância», A República, n.º 395, de 14 de julho de 1909.

«O voto obrigatório», Alma Nacional, n.º 10, de 14 de abril de 1910.

«A Tolerância», Alma Nacional, n.º 12, de 28 de abril de 1910.

«Nós somos religiosos», Alma Nacional, n.º 19, de 16 de junho de 1910.

«O Partido Republicano e as crenças religiosas», Alma Nacional, n.º 21, de 16 de

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«Dos batráquios e de outros animais», Seara Nova, n.º 266, 8 de outubro de 1931.

«Sôbre a teoria do Eterno Retôrno», Seara Nova, n.º 555, 2 de abril de 1938.

3. Obras sobre o autor

DIONÍSIO, Sant'Anna, O Pensamento especulativo e agente de Raúl Proença,

Seara Nova, Porto, 1949.

MIGUÉIS, José Rodrigues, Uma Flor na Campa de Raúl Proença, Biblioteca

Nacional, Lisboa, 1985.

NATÁRIO, Maria Celeste Lopes, O pensamento filosófico de Raúl Proença,

Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Temas Portugueses, Lisboa, 2005.

REIS, Câmara, As Questões Morais e Sociais na Literatura - VI. Raúl Proença,

Seara Nova, Lisboa, 1943.

REIS, António, Raúl Proença - Estudo e antologia, n.º 19, Publicações Alfa,

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REIS, António, Raúl Proença: biografia de um intelectual político republicano,

vol. I, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Temas Portugueses, Lisboa, 2003.

REIS, António, Raúl Proença: biografia de um intelectual político republicano,

vol. II, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Temas Portugueses, Lisboa, 2003.

4. Artigos sobre o autor

DIONÍSIO, Sant'Anna, «Uma dificuldade preliminar do pensamento de Raul

Proença», Seara Nova, n.º 550, 26 de fevereiro de 1938.

REIS, António, «Raúl Proença: uma ética vitalista e espiritualista da liberdade»,

in História do Pensamento Filosófico Português, direcção de Pedro Calafate, vol.

V, Tomo 1, Editorial Caminho, Lisboa, 2000.

TEIXEIRA, A. BRAZ, «Raúl Proença», in Logos - Enciclopédia Luso-Brasileira

de Filosofia, vol. 4, Editora Verbo, Lisboa/São Paulo, 1992.

5. Obras/Artigos com referências ao autor e obra

PINHO, Arnaldo de / NATÁRIO, Celeste, organização de A Águia e a

Renascença Portuguesa no contexto da República. 1910-2010, Universidade do

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TEIXEIRA, António Braz, Ética, Filosofia e Religião, Editor Pendor, Coleção

Razão Animada - 1, Évora, 1997.

6. Bibliografia geral

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