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índices para catálogo sistemático: 1. Teatro : Artes da representação 792 Todos os direitos para a língua portuguesa reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000 São Paulo SP Brasil Tel. (011)239-3677 Fax (OU) 3105-6867 e-mail: [email protected] http://www.martinsfontes.com

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índices para catálogo sistemático:1. Teatro : Artes da representação 792

Todos os direitos para a língua portuguesa reservados àLivraria Martins Fontes Editora Ltda.

Rua Conselheiro Ramalho, 330/34001325-000 São Paulo SP Brasil

Tel. (011)239-3677 Fax (OU) 3105-6867e-mail: [email protected]

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ÍNDICE

Prefácio: O teatro e a cultura 1

O teatro e a peste 9A encenação e a metafísica 31O teatro alquímico 49Sobre o teatro de Bali 55Teatro oriental e teatro ocidental 75Acabar com as obras-primas 83O teatro e a crueldade 95O teatro da crueldade (Primeiro Manifesto) 101Cartas sobre a crueldade 117Cartas sobre a linguagem 123O teatro da crueldade (Segundo Manifesto) 143Um atletismo afetivo 151Duas notas 161O teatro de Séraphin 167

PREFÁCIOO TEATRO E A CULTURA

Nunca como neste momento, quando é a própria vidaque se vai, se falou tanto em civilização e cultura. E háum estranho paralelismo entre esse esboroamento gene-ralizado da vida que está na base da desmoralização atuale a preocupação com uma cultura que nunca coincidiu coma vida e que é feita para reger a vida.

Antes de retornar à cultura, constato que o mundo temfome e que não se preocupa com a cultura; e que é de ummodo artificial que se pretende dirigir para a cultura pen-samentos voltados apenas para a fome.

O mais urgente não me parece tanto defender umacultura cuja existência nunca salvou qualquer ser huma-no de ter fome e da preocupação de viver melhor, mas ex-trair, daquilo que se chama cultura, idéias cuja força vivaé idêntica à da fome.

Acima de tudo precisamos viver e acreditar no quenos faz viver e em que alguma coisa nos faz viver - eaquilo que sai do interior misterioso de nós mesmos não

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deve perpetuamente voltar sobre nós mesmos numa preo-cupação grosseiramente digestiva.

Quero dizer que se todos nos importamos com comerimediatamente, importa-nos ainda mais não desperdiçarapenas na preocupação de comer imediatamente nossasimples força de ter fome.

Se o signo da época é a confusão, vejo na base dessaconfusão uma ruptura entre as coisas e as palavras, asidéias, os signos que são a representação dessas coisas.

O que falta, certamente, não são sistemas de pensa-mento; sua quantidade e suas contradições caracterizamnossa velha cultura européia e francesa; mas quando foique a vida, a nossa vida, foi afetada por esses sistemas?

Não diria que os sistemas filosóficos sejam coisaspara se aplicar direta e imediatamente; mas de duas, uma:

Ou esses sistemas estão em nós e estamos impregna-dos por eles a ponto de viver deles, e então que importamos livros? ou não estamos impregnados por eles, e nessecaso não mereciam nos fazer viver; e, de todo modo, oque importa que desapareçam?

É preciso insistir na idéia da cultura em ação e quese torna em nós como que um novo órgão, uma espéciede segundo espírito: e a civilização é cultura que se apli-ca e que rege até nossas ações mais sutis, o espírito pre-sente nas coisas; e é artificial a separação entre a civili-zação e a cultura, com o emprego de duas palavras parasignificar uma mesma e idêntica ação.

Julga-se um civilizado pelo modo como se compor-ta e ele pensa tal como se comporta; mas já quanto àpalavra civilizado há confusão; para todo o mundo, umcivilizado culto é um homem informado sobre sistemas e

PREFÁCIO 3

que pensa em sistemas, em formas, em signos, em repre-sentações.

É um monstro no qual se desenvolveu até o absurdoa faculdade que temos de extrair pensamentos de nossosatos em vez de identificar nossos atos com nossos pensa-mentos.

Se falta enxofre à nossa vida, ou seja, se lhe faltauma magia constante, é porque nos apraz contemplar nos-sos atos e nos perder em considerações sobre as formassonhadas de nossos atos, em vez de sermos impulsiona-dos por eles.

E essa faculdade é exclusivamente humana. Diriamesmo que é uma infecção do humano que nos estragaidéias que deveriam permanecer divinas; pois, longe deacreditar no sobrenatural, o divino inventado pelo homem,penso que foi a intervenção milenar do homem que aca-bou por nos corromper o divino.

Todas as nossas idéias sobre a vida devem ser retoma-das numa época em que nada adere mais à vida. E esta pe-nosa cisão é a causa de as coisas se vingarem, e a poesia quenão está mais em nós e que não conseguimos mais encon-trar nas coisas reaparece de repente, pelo lado mau das coi-sas; nunca se viram tantos crimes, cuja gratuita estranhezasó se explica por nossa impotência para possuir a vida.

Se o teatro é feito para permitir que nossos recalquesadquiram vida, uma espécie de poesia atroz expressa-seatravés dos atos estranhos em que as alterações do fatode viver demonstram que a intensidade da vida está in-tacta e que bastaria dirigi-la melhor.

Por mais que exijamos a magia, porém, no fundo te-mos medo de uma vida que se desenvolvesse inteiramentesob o signo da verdadeira magia.

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É assim que nossa ausência enraizada de cultura es-panta-se diante de certas grandiosas anomalias e é assimque, por exemplo, numa ilha sem qualquer contato com acivilização atual, a simples passagem de um navio con-tendo apenas pessoas sadias pode provocar o surgimentode doenças desconhecidas nessa ilha e que são especiali-dade de nossos países: zona, influenza, gripe, reumatismos,sinusite, polineurite, etc, etc.

E, também, se achamos que os negros cheiram mal,ignoramos que para tudo o que não é Europa somos nós,brancos, que cheiramos mal. Eu diria mesmo que exala-mos um odor branco, branco assim como se pode falarnum "mal branco".

Assim como o ferro em brasa é ferro branco, pode-sedizer que tudo o que é excessivo é branco; e, para um asiá-tico, a cor branca tornou-se a insígnia da mais extremadadecomposição.

Dito isso, pode-se começar a extrair uma idéia dacultura, uma idéia que é antes de tudo um protesto.

Protesto contra o estreitamento insensato que seimpõe à idéia da cultura ao se reduzi-la a uma espécie deinconcebível Panteão - o que resulta numa idolatria dacultura, assim como as religiões idolatras põem os deu-ses em seus Panteões.

Protesto contra a idéia separada que se faz da cultu-ra, como se de um lado estivesse a cultura e do outro avida; e como se a verdadeira cultura não fosse um meiorefinado de compreender e de exercer a vida.

Pode-se queimar a biblioteca de Alexandria. Acimae além dos papiros, existem forças: a faculdade de reen-

PREFÁCIO 5

contrá-las nos será tirada por algum tempo, mas não sesuprimirá a energia delas. E é bom que desapareçam al-gumas facilidades exageradas e que certas formas caiamno esquecimento; assim, a cultura sem espaço nem tempo,e que nossa capacidade nervosa contém, ressurgirá commaior energia. E é justo que de tempos em tempos seproduzam cataclismos que nos incitem a retornar à natu-reza, isto é, a reencontrar a vida. O velho totemismo dosanimais, das pedras, dos objetos carregados de energiafulminante, das roupas bestialmente impregnadas, em re-sumo tudo o que serve para captar, dirigir e derivar for-ças é, para nós, uma coisa morta da qual já não sabemosextrair senão um proveito artístico e estático, um proveitode fruidor e não um proveito de ator.

Ora, o totemismo é ator porque se mexe, e é feitopara atores; e toda verdadeira cultura apóia-se nos meiosbárbaros e primitivos do totemismo, cuja vida selvagem,isto é, inteiramente espontânea, quero adorar.

O que nos fez perder a cultura foi nossa idéia oci-dental da arte e o proveito que tiramos dela. Arte e cultu-ra não podem andar juntas, contrariamente ao uso que sefaz delas universalmente!

A verdadeira cultura age por sua exaltação e sua for-ça, e o ideal europeu da arte visa lançar o espírito numaatitude separada da força e que assiste à sua exaltação. Éuma idéia preguiçosa, inútil, e que, a curto prazo, engen-dra a morte. Se as múltiplas voltas da Serpente Quetzal-coatl são harmoniosas é porque expressam o equilíbrio eos desvios de uma força adormecida; e a intensidade dasformas existe apenas para seduzir e captar uma força que,na música, desperta um lancinante teclado.

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Os deuses que dormem nos museus: o deus do Fogocom seu incensador que lembra o tripé da Inquisição;Tlaloc, um dos múltiplos deuses das Águas, com sua mu-ralha de granito verde; a Deusa Mãe das Águas, a DeusaMãe das Flores; a expressão imóvel e que ressoa, sob acapa de várias camadas de água, da Deusa do vestido dejade verde; a expressão arrebatada e bem-aventurada, orosto crepitando de aromas, em que os átomos do sol giramem círculos, da Deusa Mãe das Flores; essa espécie deservidão obrigatória de um mundo em que a pedra seanima porque foi tocada como se deve, o mundo dos ci-vilizados orgânicos, quero dizer, cujos órgãos vitais tam-bém saem de seu repouso, esse mundo humano penetraem nós, participa da dança dos deuses, sem se voltar nemolhar para trás sob pena de se tornar, como nós mesmos,estátuas desagregadas.

No México, uma vez que se trata do México, nãoexiste arte e as coisas servem. E o mundo está em perpé-tua exaltação.

À nossa idéia inerte e desinteressada da arte umacultura autêntica opõe uma idéia mágica e violentamenteegoísta, isto é, interessada. É que os mexicanos captam oManas, as forças que dormem em todas as formas e quenão podem surgir de uma contemplação das formas porsi sós, mas que surgem de uma identificação mágica comessas formas. E os velhos Totens lá estão para apressar acomunicação.

Quando tudo nos leva a dormir, olhando com olhosatentos e conscientes, é difícil acordar e olhar como numsonho, com olhos que não sabem mais para que servem ecujo olhar está voltado para dentro.

PREFACIO 7

É assim que aparece a idéia estranha de uma açãodesinteressada, mas que mesmo assim é ação, e mais vio-lenta por estar ao lado da tentação do repouso.

Toda verdadeira efígie tem sua sombra que a duplica;e a arte sucumbe a partir do momento em que o escultorque modela acredita liberar uma espécie de sombra cujaexistência dilacerará seu repouso.

Como toda cultura mágica vertida por hieróglifosapropriados, também o verdadeiro teatro tem suas som-bras; e, de todas as linguagens e de todas as artes, é a úni-ca a ainda ter sombras que romperam suas limitações. Epode-se dizer que desde a origem elas não suportavamlimitações.

Nossa idéia petrificada do teatro vai ao encontro danossa idéia petrificada de uma cultura sem sombras emque, para qualquer lado que se volte, nosso espírito sóencontra o vazio, ao passo que o espaço está cheio.

Mas o verdadeiro teatro, porque se mexe e porque seserve de instrumentos vivos, continua a agitar sombrasnas quais a vida nunca deixou de fremir. O ator que nãorefaz duas vezes o mesmo gesto, mas que faz gestos, semexe, e sem dúvida brutaliza formas, mas por trás dessasformas, e através de sua destruição, ele alcança o quesobrevive às formas e produz a continuação delas.

O teatro que não está em nada mas que se serve detodas as linguagens - gestos, sons, palavras, fogo, gritos -encontra-se exatamente no ponto em que o espírito precisade uma linguagem para produzir suas manifestações.

E a fixação do teatro numa linguagem - palavras es-critas, música, luzes, sons - indica sua perdição a curtoprazo, sendo que a escolha de uma determinada lingua-

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gem demonstra o gosto que se tem pelas facilidades des-sa linguagem; e o ressecamento da linguagem acompa-nha sua limitação.

Para o teatro assim como para a cultura, a questãocontinua sendo nomear e dirigir sombras; e o teatro, quenão se fixa na linguagem e nas formas, com isso destróias falsas sombras mas prepara o caminho para um outronascimento de sombras a cuja volta agrega-se o verdadei-ro espetáculo da vida.

Romper a linguagem para tocar na vida é fazer ourefazer o teatro; e o importante é não acreditar que esseato deva permanecer sagrado, isto é, reservado. O impor-tante é crer que não é qualquer pessoa que pode fazê-lo,e que para isso é preciso uma preparação.

Isto leva a rejeitar as limitações habituais do homeme os poderes do homem e a tornar infinitas as fronteirasdo que chamamos realidade.

É preciso acreditar num sentido da vida renovadopelo teatro, onde o homem impavidamente torna-se o se-nhor daquilo que ainda não é, e o faz nascer. E tudo oque não nasceu pode vir a nascer, contanto que não noscontentemos em permanecer simples órgãos de registro.

Do mesmo modo, quando pronunciamos a palavravida, deve-se entender que não se trata da vida reconhe-cida pelo exterior dos fatos, mas dessa espécie de centrofrágil e turbulento que as formas não alcançam. E, se éque ainda existe algo de infernal e de verdadeiramente mal-dito nestes tempos, é deter-se artisticamente em formas,em vez de ser como supliciados que são queimados efazem sinais sobre suas fogueiras.

O TEATRO E A PESTE

Os arquivos da cidadezinha de Cagliari, na Sardenha,contêm o relato de um fato histórico e incrível.

Numa noite de fins de abril ou começo de maio de1720, cerca de vinte dias antes da chegada a Marselha donavio Grand-Saint-Antoine, cuja atracação coincidiu coma mais maravilhosa explosão de peste que tenha feito bor-bulhar as memórias da cidade, Saint-Rémys, vice-rei daSardenha, a quem as reduzidas responsabilidades de mo-narca talvez tivessem sensibilizado aos vírus mais perni-ciosos, teve um sonho particularmente aflitivo: viu-sepestífero e viu a peste arrasar seu minúsculo Estado.

Sob a ação do flagelo, os quadros da sociedade se li-qüefazem. A ordem desmorona. Ele assiste a todos os des-vios da moral, a todas as derrocadas da psicologia, escutaem si mesmo o murmúrio de seus humores, corroídos,em plena destruição, e que, num vertiginoso desperdíciode matéria, tornam-se densos e aos poucos metamorfo-seiam-se em carvão. Será tarde demais para conjurar oflagelo? Mesmo destruído, mesmo aniquilado e pulveri-

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zado organicamente, e queimado em suas entranhas, elesabe que não se morre nos sonhos, que neles a vontade atuaaté o absurdo, até a negação do possível, até uma espéciede transmutação da mentira com a qual se refaz a verdade.

Ele desperta. Saberá mostrar-se capaz de dissipar to-dos os boatos de peste que estão correndo e os miasmasde um vírus vindo do Oriente.

Um navio que partiu há um mês de Beirute, o Grand-Saint-Antoine, pede licença para atracar e desembarcar.E então ele dá a ordem louca, a ordem considerada deli-rante, absurda, imbecil e despótica pelo povo e por todoo seu círculo. Rapidamente manda para o navio, que pre-sume contaminado, a barca do piloto e alguns homens coma ordem para que o Grand-Saint-Antoine vire de bordoimediatamente e se faça à vela para longe da cidade, sobpena de ser afundado a tiros de canhão. A guerra contraa peste. O autocrata atacava de frente.

É preciso, de passagem, observar a força especial dainfluência que aquele sonho exerceu sobre ele, pois elalhe permitiu, apesar dos sarcasmos da multidão e do ceti-cismo de seu círculo, perseverar na ferocidade de suasordens, passando com isso não apenas por cima do direi-to das pessoas como também sobre o mais simples res-peito pela vida humana e sobre todos os tipos de conven-ções nacionais ou internacionais que, diante da morte,deixam de vigorar.

Seja como for, o navio continuou seu caminho, che-gou a Livorno e entrou no porto de Marselha, onde lhe foipermitido desembarcar.

Os serviços públicos de Marselha não guardaramlembrança do que aconteceu com sua carga de pestíferos.

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Sabe-se mais ou menos o que aconteceu com os mari-nheiros de sua tripulação, que não morreram todos depeste e se espalharam por diversos lugares.

O Grand-Saint-Antoine não levou a peste a Marselha.Ela já estava lá. E num período de particular recrudes-cência. Mas já se tinha conseguido localizar seus focos.

A peste trazida pelo Grand-Saint-Antoine era a pesteoriental, o vírus original, e é de sua chegada e de suadifusão pela cidade que datam o lado particularmente atroze o alastramento generalizado da epidemia.

E isso inspira alguns pensamentos.A peste, que parece reativar um vírus, era capaz de

provocar sozinha devastações sensivelmente igualitárias,pois, de toda a tripulação, o capitão foi o único a nãocontrair a peste e, por outro lado, parece que os pestífe-ros recém-chegados nunca estiveram em contato diretocom os outros, mantidos em zonas fechadas. O Grand-Saint-Antoine, que passa ao alcance da voz de Cagliari,na Sardenha, não deposita a peste nessa cidade, mas ovice-rei recebe, em sonho, algumas emanações dela. Nãose pode negar que entre ele e a peste tenha se estabeleci-do uma comunicação ponderável, embora sutil, e é muitofácil acusar, na comunicação de uma doença como essa,o contágio por simples contato.

Mas essas relações entre Saint-Rémys e a peste, bas-tante fortes para se liberarem em imagens em seu sonho,não são suficientemente fortes, no entanto, para provoca-rem nele o aparecimento da doença.

Seja como for, a cidade de Cagliari, sabendo algumtempo depois que o navio escorraçado de suas costas pelavontade despótica do príncipe míraculosamente ilumina-

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do tinha sido a causa da grande epidemia de Marselha,registrou o fato em seus arquivos, que qualquer um podeconsultar.

A peste de 1720 em Marselha ofereceu-nos as úni-cas descrições ditas clínicas que temos do flagelo.

Mas pode-se perguntar se a peste descrita pelos mé-dicos de Marselha era de fato a mesma de 1347 em Flo-rença, de onde saiu o Decamerão. A história, os livrossagrados, entre os quais a Bíblia, alguns antigos tratadosmédicos descrevem, do exterior, todos os tipos de peste,dos quais parecem ter retido menos as característicasmórbidas do que a impressão desmoralizante e fabulosaque elas deixaram nos espíritos. Talvez estivessem com arazão. A medicina teria mesmo muita dificuldade paraestabelecer uma diferença fundamental entre o vírus quematou Péricles às portas de Siracusa, se é que a palavravírus é de fato alguma coisa além de uma simples facili-dade verbal, e aquele que manifesta sua presença na pestedescrita por Hipócrates, que alguns tratados recentes citamcomo uma espécie de falsa peste. E, para esses mesmostratados, a única peste autêntica seria a que vem do Egito,proveniente dos cemitérios descobertos pelas secas doNilo. A Bíblia e Heródoto concordam em registrar a apa-rição fulgurante de uma peste que dizimou, numa noite,os cento e oitenta mil homens do exército assírio, comisso salvando o império egípcio. Sendo isso verdade, serianecessário considerar o flagelo como o instrumento dire-to ou a materialização de uma força inteligente em estrei-ta relação com o que chamamos de fatalidade.

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E isso com ou sem o exército de ratos que naquelanoite se lançou sobre as tropas assírias, cujos arreios eleroeu em algumas horas. Esse fato deve ser relacionadocom a epidemia que eclodiu no ano 660 a.C. na cidadesagrada de Mekao, no Japão, por ocasião de uma simplesmudança de governo.

A peste de 1502 na Provença, que deu a Nostrada-mus a oportunidade de exercer pela primeira vez suasfaculdades de curandeiro, coincidiu também na ordem po-lítica com as reviravoltas mais profundas, quedas ou mor-tes de reis, desaparecimento e destruição de províncias,terremotos, fenômenos magnéticos de todo tipo, êxodosde judeus, que precedem ou sucedem, na ordem políticaou cósmica, cataclismos e destruições que aqueles que osprovocam são estúpidos demais para prever e não sufi-cientemente perversos para desejar seus efeitos.

Sejam quais forem as divagações dos historiadoresou da medicina sobre a peste, creio que é possível con-cordar quanto à idéia de uma doença que seria uma espé-cie de entidade psíquica, e que não seria veiculada porum vírus. Se quiséssemos analisar de perto todos os fatosde contágio de peste que a história ou as Memórias nosapresentam, seria difícil isolar um único caso verdadeira-mente comprovado de contágio por contato, e o exemplocitado por Boccaccio, de porcos que teriam morrido porcheirar lençóis em que se envolveram pessoas empestadas,só serve para demonstrar uma espécie de afinidade mis-teriosa entre a carne de porco e a natureza da peste, o quetambém teria de ser analisado com muito rigor.

Não existindo a idéia de uma verdadeira entidademórbida, há formas que o espírito pode provisoriamente

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aceitar a fim de caracterizar alguns fenômenos, e pareceque o espírito pode concordar com uma descrição da pestetal como a que segue.

Antes de se caracterizar qualquer mal-estar físico oupsicológico, espalham-se pelo corpo manchas vermelhas,que o doente só percebe, de repente, quando se tornamescuras. Ele nem tem tempo de se assustar, e sua cabeçajá começa a ferver, a tornar-se gigantesca pelo peso, e elecai. Então, é tomado por uma fadiga atroz, a fadiga de umaaspiração magnética central, de suas moléculas cindidasem dois e atraídas para sua aniquilação. Seus humoresdescontrolados, revolvidos, em desordem, parecem galo-par através de seu corpo. Seu estômago se embrulha, ointerior de seu ventre parece querer sair pelo orifício dosdentes. Seu pulso, que ora diminui até tornar-se uma som-bra, uma virtualidade de pulso, ora galopa, segue a efer-vescência de sua febre interior, a turbulenta desordem deseu espírito. O pulso batendo através de golpes precipita-dos como seu coração, que se torna intenso, pleno, baru-lhento; o olho vermelho, incendiado e depois vítreo; alíngua que sufoca, enorme e grossa, primeiro branca, de-pois vermelha e depois preta, como que carbonífera erachada, tudo isso anuncia uma tempestade orgânica semprecedentes. Logo os humores trespassados como a terrapelo raio, como um vulcão trabalhado pelas tempestadessubterrâneas, procuram a saída para o exterior. No meiodas manchas criam-se pontos mais ardentes, ao redor des-ses pontos a pele se ergue em pelotas como bolhas de arsob a epiderme de uma lava, e essas bolhas são cercadaspor círculos, o último dos quais, como um anel de Satur-no ao redor do astro em plena incandescência, indica olimite extremo de um bubão.

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O corpo fica cheio de bubões. Mas, assim como osvulcões têm seus lugares eleitos sobre a terra, os bubõestambém têm lugares eleitos no corpo humano. A dois outrês dedos da virilha, sob as axilas, nos locais preciososonde glândulas ativas realizam fielmente suas funções,aparecem bubões, através dos quais o organismo descar-rega ou sua podridão interior ou, conforme o caso, suavida. Uma conflagração violenta e localizada num pontoindica na maioria das vezes que a vida central nada per-deu de sua força e que uma remissão do mal ou mesmosua cura é possível. Assim como o cólera branco, a pestemais terrível é a que não divulga suas feições.

Aberto, o cadáver do pestífero não mostra lesões. Avesícula biliar, encarregada de filtrar os dejetos entorpe-cidos e inertes do organismo, fica inflada, quase estou-rando, cheia de um líquido escuro e pegajoso, tão com-pacto que lembra uma matéria nova. O sangue das arté-rias, das veias, também é preto e pegajoso. O corpo ficaduro como pedra. Nas paredes da membrana estomacalparecem ter despertado inúmeras fontes de sangue. Tudoindica uma desordem fundamental das secreções. Mas nãohá nem perda nem destruição de matéria, como na lepraou na sífilis. Os próprios intestinos, lugar dos distúrbiosmais sangrentos, onde as matérias atingem um grau inu-sitado de putrefação e petrificação - os intestinos nãoestão organicamente atacados. A vesícula biliar, de ondeé preciso quase arrancar o pus endurecido, como em algunssacrifícios humanos, com uma faca afiada, um instru-mento de obsidiana, vítreo e duro - a vesícula biliar estáhipertrofiada e quebradíça em alguns lugares, mas intac-ta, sem lhe faltar nenhum pedaço, sem lesão visível, semmatéria perdida.

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No entanto, em certos casos os pulmões e o cérebrolesados ficam escuros e gangrenados. Os pulmões amo-lecidos, fragmentados, desfazem-se em pedaços de umamatéria preta qualquer e o cérebro está fundido, gasto, pul-verizado, reduzido a pó, desagregado numa espécie depó de carvão preto.

Daí, devem-se destacar duas observações importan-tes: a primeira é que as síndromes da peste dispensam agangrena dos pulmões e do cérebro, o pestífero não apre-senta apodrecimento de nenhum de seus membros. Semsubestimá-la, o organismo não requer a presença de umagangrena localizada e física para determinar sua própriamorte.

A segunda observação é que os dois únicos órgãosrealmente atingidos e lesados pela peste, o cérebro e ospulmões, são os que dependem diretamente da consciên-cia e da vontade. Podemos impedir-nos de respirar ou depensar, podemos precipitar nossa respiração, ritmá-la àvontade, torná-la voluntariamente consciente ou incons-ciente, introduzir um equilíbrio entre os dois tipos de res-piração: o automático, que está sob as ordens diretas do sis-tema simpático, e o outro, que obedece aos reflexos docérebro tornados conscientes.

Também podemos precipitar, tornar mais lento e rit-mar o pensamento. Podemos regulamentar o jogo incons-ciente do espírito. Não podemos dirigir a filtragem doshumores pelo fígado, a redistribuição do sangue atravésdo organismo pelo coração e pelas artérias, controlar adigestão, parar ou apressar a eliminação das matérias dointestino. A peste, portanto, parece manifestar sua presen-ça nos lugares, afetar todos os lugares do corpo, todas as

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localizações do espaço físico, em que a vontade humana,a consciência e o pensamento estão prestes e em via dese manifestar.

Em 1880 e poucos, um médico francês chamadoYersin, que estuda os cadáveres de indochineses mortosde peste, isola um desses cabeçudos de crânio arredonda-do, rabo curto, que só são visíveis com microscópio, echama aquilo de micróbio da peste. A meu ver, trata-seapenas de um elemento material menor, infinitamentemenor que surge num momento qualquer do desenvolvi-mento do vírus, mas que em nada explica a peste. E eupreferiria que esse doutor me dissesse por que todas asgrandes pestes, com ou sem vírus, têm uma duração decinco meses, após a qual sua virulência diminui, e comoaquele embaixador turco que passava pelo Languedoc,por volta do fim de 1720, conseguiu traçar uma espéciede linha que, passando por Avignon e Toulouse, chegavaa Nice e Bordeaux, como limite extremo do desenvolvi-mento geográfico do flagelo. Os acontecimentos mostra-ram que ele estava certo.

De tudo isso resulta a fisionomia espiritual de um malcujas leis não é possível determinar cientificamente e cujaorigem geográfica seria tolice tentar determinar, pois apeste do Egito não é a do Oriente, que não é a de Hipó-crates, que não é a de Siracusa, que não é a de Florença,a Peste Negra, à qual a Europa da Idade Média deve seuscinqüenta milhões de mortos. Ninguém pode dizer por quea peste atinge o covarde que foge e poupa o dissoluto quese satisfaz sobre os cadáveres. Por que o afastamento, acastidade, a solidão nada podem fazer contra os efeitosdo flagelo e por que um certo grupo de debochados que

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se isolou no campo, como Boccaccio com dois compa-nheiros bem equipados e sete devotas libertinas, pode es-perar tranqüilamente pelos dias quentes, quando a pestese retira; e por que num castelo próximo, transformadoem cidadela fortificada com um cordão de homens arma-dos impedindo a entrada, a peste transforma toda a guar-nição e os ocupantes em cadáveres e poupa os homensarmados, os únicos expostos ao contágio. E quem podeexplicar o fato de os cordões sanitários estabelecidos comgrandes reforços de tropas, por Mehmet Ali, ao final doséculo passado, por ocasião de uma recrudescência dapeste egípcia, terem se mostrado eficazes na proteçãodos conventos, escolas, prisões e palácios; e por que mui-tos focos de uma peste que tinha todas as característicasda peste oriental puderam irromper de repente na Europada Idade Média em lugares sem qualquer contato com oOriente.

É com essas estranhezas, esses mistérios, contradi-ções e aspectos que se deve compor a fisionomia espiri-tual de um mal que corrói o organismo e a vida até a rup-tura e o espasmo, como uma dor que, à medida que cresceem intensidade e se aprofunda, multiplica seus acessos esuas riquezas em todos os círculos da sensibilidade.

Mas dessa liberdade espiritual com a qual a peste sedesenvolve, sem ratos, sem micróbios e sem contatos,pode-se extrair o jogo absoluto e sombrio de um espetá-culo que tentarei analisar.

Estabelecida a peste numa cidade, seus quadros re-gulares desmoronam, não há mais limpeza pública, nemexército, nem polícia, nem prefeitura; acendem-se foguei-ras para queimar os mortos, conforme a disponibilidade

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de braços. Cada família quer ter sua fogueira. Depois amadeira, o lugar e o fogo escasseiam, há lutas entre famí-lias ao redor das fogueiras, logo seguidas por uma fugageral, pois os cadáveres já são em número excessivo. Osmortos já atravancam as ruas, em pirâmides instáveis queanimais roem aos poucos. Seu mau cheiro sobe pelo arcomo uma labareda. Ruas inteiras são bloqueadas peloamontoamento dos mortos. É então que as casas se abrem,que pestíferos delirantes, com os espíritos carregados deimaginações pavorosas, espalham-se gritando pelas ruas.O mal que lhes corrói as vísceras, que anda por seu orga-nismo inteiro, libera-se em jorros através do espírito. Outrospestíferos que, sem bubões, sem dores, sem delírios e semsangramentos, observam-se orgulhosamente em espelhos,sentindo-se explodir de saúde, caem mortos, com a bacianas mãos, cheios de desprezo pelos outros pestíferos.

Sobre os riachos sangrentos, espessos, nauseabun-dos, cor de angústia e de ópio que brotam dos cadáverespassam estranhas personagens vestidas de cera, com na-rizes compridos, olhos de vidro e montadas em uma espé-cie de sandálias japonesas, feitas com um arranjo duplode tabuinhas de madeira, uma horizontal em forma desola e a outra vertical, que as isolam dos humores infec-tos; elas passam salmodiando litanias absurdas, cuja vir-tude não as impede de submergir por sua vez no brasei-ro. Esses médicos ignaros só mostram seu medo e suapuerilidade.

Nas casas abertas, a ralé imunizada, ao que parece,por seu cúpido frenesi, penetra e rouba riquezas que elasente que lhe serão inúteis. E é então que se instala o tea-tro. O teatro, isto é, a gratuidade imediata que leva a atosinúteis e sem proveito para o momento presente.

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Os últimos vivos se exasperam: o filho, até entãosubmisso e virtuoso, mata o pai; o casto sodomiza seusparentes. O libertino torna-se puro. O avarento joga seuouro aos punhados pela janela. O herói guerreiro incen-deia a cidade por cuja salvação outrora se sacrificou. Oelegante se enfeita e vai passear nos ossários. Nem a idéiada ausência de sanções nem a da morte próxima bastampara motivar atos tão gratuitamente absurdos por parte depessoas que não acreditavam que a morte fosse capaz deacabar com tudo. E como explicar esse aumento de febreerótica entre pestíferos curados que, em vez de fugir, fi-cam onde estão, tentando extrair uma volúpia condená-vel de moribundos ou mesmo mortos, meio esmagadospelo amontoado de cadáveres onde o acaso os alojou.

Mas se é preciso um flagelo maior para provocar osurgimento dessa gratuidade frenética e se esse flagelochama-se peste, talvez se pudesse procurar saber, em re-lação à nossa personalidade total, a que eqüivale essa gra-tuidade. O estado do pestífero que morre sem destruiçãoda matéria, tendo em si todos os estigmas de um malabsoluto e quase abstrato, é idêntico ao estado do ator in-tegralmente penetrado e transtornado por seus sentimentos,sem nenhum proveito para a realidade. Tudo no aspectofísico do ator, assim como no do pestífero, mostra que avida reagiu ao paroxismo e, no entanto, nada aconteceu.

Entre o pestífero que corre gritando em busca de suasimagens e o ator que persegue sua sensibilidade; entre ovivo que se compõe das personagens que em outras cir-cunstâncias nunca teria pensado em imaginar, e que asrealiza no meio de um público de cadáveres e de aliena-dos delirantes, e o poeta que inventa personagens intem-

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pestivamente e as entrega a um público igualmente iner-te ou delirante, há outras analogias que explicam as únicasverdades que importam e que põem a ação do teatro e ada peste no plano de uma verdadeira epidemia.

Enquanto as imagens da peste em relação com umpoderoso estado de desorganização física são como osderradeiros jorros de uma força espiritual que se esgota,as imagens da poesia no teatro são uma força espiritualque começa sua trajetória no sensível e dispensa a reali-dade. Uma vez lançado em seu furor, é preciso muito maisvirtude ao ator para impedir-se de cometer um crime doque coragem ao assassino para executar seu crime, e éaqui que, em sua gratuidade, a ação de um sentimento noteatro surge como algo infinitamente mais válido do quea ação de um sentimento realizado.

Diante do furor do assassino que se esgota, o furordo ator trágico permanece num círculo puro e fechado. Ofuror do assassino realizou um ato, ele se descarrega eperde contato com a força que o inspira mas que não maiso alimentará. Esse furor assumiu agora uma forma, a doator, que se nega à medida que se libera, se funde na uni-versalidade.

Se quisermos admitir agora a imagem espiritual dapeste, consideraremos os humores perturbados do pestí-fero como sendo a face solidificada e material de um dis-túrbio que, em outros planos, eqüivale aos conflitos, àslutas, aos cataclismos e débâcles que os acontecimentosnos trazem. E, assim como não é impossível que o deses-pero inútil e os gritos de um alienado num asilo causema peste, por uma espécie de reversibilidade de sentimen-tos e de imagens, do mesmo modo pode-se admitir que

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os acontecimentos exteriores, os conflitos políticos, oscataclismos naturais, a ordem da revolução e a desordemda guerra, ao passarem para o plano do teatro, se descar-reguem na sensibilidade de quem os observa com a forçade uma epidemia.

Santo Agostinho em A Cidade de Deus acusa essasemelhança de ação entre a peste que mata sem destruirórgãos e o teatro que, sem matar, provoca no espírito nãoapenas de um indivíduo, mas de um povo, as mais miste-riosas alterações.

"Sabei", diz ele, "vós que o ignorais, que esses jogoscênicos, espetáculos de torpezas, não foram estabeleci-dos em Roma pelos vícios dos homens, mas por ordemde vossos deuses. Seria mais razoável prestar homena-gens divinas a Cipião* do que a deuses assim; claro, elesnão valiam o pontífice que tinham!...

Para apaziguar a peste que matava os corpos, vossosdeuses exigem em sua honra esses jogos cênicos, e vossopontífice, querendo evitar a peste que corrompe as almas,opõe-se à construção do próprio palco. Se ainda vos res-tam alguns lampejos de inteligência para preferirdes aalma ao corpo, escolhei quem merece vossas adorações;pois a astúcia dos Espíritos maus, prevendo que o contá-gio cessaria nos corpos, aproveitou alegremente a ocasiãopara introduzir um flagelo muito mais perigoso, pois atin-ge não os corpos, mas os costumes. De fato, tal é a ce-gueira, tal é a corrupção produzida pelos espetáculos naalma que, mesmo nestes últimos tempos, aqueles que têm

* Cipião Nasica, grande pontífice, que ordenou que os teatros deRoma fossem nivelados e seus porões aterrados.

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essa paixão funesta, que escaparam ao saque de Roma ese refugiaram em Cartago, passavam o dia no teatro, de-lirando, cada um mais que o outro, pelos histriões."

É inútil dar as razões exatas desse delírio comunica-tivo. Mais valeria procurar as razões pelas quais o orga-nismo nervoso esposa, ao fim de algum tempo, as vibra-ções da música mais sutil até extrair delas uma espécie demodificação durável. Antes de mais nada, importa admi-tir que, como a peste, o jogo teatral seja um delírio e queseja comunicativo.

O espírito acredita no que vê e faz aquilo em queacredita: esse é o segredo do fascínio. E santo Agostinhonão coloca em dúvidas nem por um instante, em seutexto, a realidade desse fascínio.

No entanto, há certas condições a serem buscadaspara fazer nascer no espírito um espetáculo que o fasci-ne; e esta não é uma simples questão de arte.

Ora, se o teatro é como a peste, não é apenas porqueele age sobre importantes coletividades e as transtornano mesmo sentido. Há no teatro, como na peste, algo devitorioso e de vingativo ao mesmo tempo. Sente-se queesse incêndio espontâneo que a peste provoca por onde pas-sa não é nada além de uma imensa liquidação.

Um desastre social tão completo, um tal distúrbioorgânico, esse transbordamento de vícios, essa espéciede exorcismo total que aperta a alma e a esgota indicama presença de um estado que é, por outro lado, uma forçaextrema em que se encontram em carne viva todos ospoderes da natureza no momento em que ela está prestesa realizar algo essencial.

A peste toma imagens adormecidas, uma desordemlatente e as leva de repente aos gestos mais extremos; o

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teatro também toma gestos e os esgota: assim como apeste, o teatro refaz o elo entre o que é e o que não é, entrea virtualidade do possível e o que existe na natureza ma-terializada. O teatro reencontra a noção das figuras e dossímbolos-tipos, que agem como se fossem pausas, sinaisde suspensão, paradas cardíacas, acessos de humor, aces-sos inflamatórios de imagens em nossas cabeças brusca-mente despertadas; o teatro nos restitui todos os conflitosem nós adormecidos com todas as suas forças, e ele dá aessas forças nomes que saudámos como se fossem sím-bolos: e diante de nós trava-se então uma batalha de símbo-los, lançados uns contra os outros num pisoteamento im-possível; pois só pode haver teatro a partir do momentoem que realmente começa o impossível e em que a poe-sia que acontece em cena alimenta e aquece símbolos rea-lizados.

Esses símbolos que são signos de forças maduras,mas até então subjugadas e sem uso na realidade, explo-dem sob o aspecto de imagens incríveis que dão direitode cidadania e de existência a atos hostis por natureza àvida das sociedades.

Uma verdadeira peça de teatro perturba o repousodos sentidos, libera o inconsciente comprimido, leva a umaespécie de revolta virtual e que aliás só poderá assumirtodo o seu valor se permanecer virtual, impõe às coleti-vidades reunidas uma atitude heróica e difícil.

Assim é que em Annabella, de Ford, vemos, paranossa perplexidade, e desde que as cortinas se levantam,um ser lançado numa insolente reivindicação de incesto,e que emprega todo o seu vigor de ser consciente e jovempara proclamá-la e justificá-la.

O TEA TRO E A PESTE 25

Ele não vacila nem por um momento, não hesita nemum minuto; e com isso mostra o quanto contam poucotodas as barreiras que lhe poderiam ser opostas. É crimi-noso com heroísmo e é heróico com audácia e ostentação.Tudo o força nesse sentido e o exalta, nada tem a seu fa-vor, a não ser a força de sua paixão convulsiva, à qual nãodeixa de corresponder a paixão também rebelde e igual-mente heróica de Annabella.

"Choro", diz ela, "não por remorso, mas por medode não conseguir saciar minha paixão." São ambos fal-sos, hipócritas, mentirosos pelo bem de sua paixão so-bre-humana, que é reprimida e contida pelas leis mas queeles colocarão acima das leis.

Vingança por vingança e crime por crime. Quandoos acreditamos ameaçados, encurralados, perdidos e es-tamos prestes a lamentar sua condição de vítimas, reve-lam-se prontos para devolver ao destino ameaça por amea-ça e golpe por golpe.

Caminhamos com eles de excesso em excesso e deexigência em exigência. Annabella é presa, condenada poradultério, incesto, humilhada, insultada, arrastada peloscabelos, e é grande nosso estupor ao ver que, longe de pro-curar uma escapatória, ela provoca ainda mais seu car-rasco e canta numa espécie de heroísmo obstinado. É oabsoluto da revolta, o amor sem tréguas e exemplar quenos faz, a nós espectadores, sufocar de angústia diante daidéia de que nada a conseguirá deter.

Se procuramos um exemplo da liberdade absoluta narevolta, a Annabella de Ford nos oferece esse poéticoexemplo ligado à imagem do perigo absoluto.

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E quando acreditamos ter chegado ao paroxismo dohorror, do sangue, das leis ultrajadas, da poesia enfim con-sagrada pela revolta, somos obrigados a ir ainda mais longenuma vertigem que nada pode deter.

Mas no final, dizemo-nos, é a vingança, é a mortepor tanta audácia e por um crime tão implacável.

Pois bem, não. Giovanni, o amante, inspirado por umgrande poeta exaltado, coloca-se acima da vingança, aci-ma do crime, através de uma espécie de crime indescritívele apaixonado, acima da ameaça, acima do horror atravésde um horror ainda maior que desnorteia ao mesmo tem-po as leis, a moral e os que ousam ter a audácia de se eri-girem em justiceiros.

Trama-se engenhosamente uma armadilha, prepara-seum banquete em que, entre os convidados, estarão ocultosespadachins e esbirros, prontos a se jogarem sobre ele aomenor sinal. Mas esse herói acuado, perdido, e inspiradopelo amor, não deixará ninguém justiçar esse amor.

Vocês querem, ele parece dizer, a pele de meu amor,pois sou eu quem lhes jogará esse amor na cara, sou euquem os aspergirá com o sangue desse amor a cuja altu-ra vocês são incapazes de se elevar.

E ele mata sua amante e lhe arranca o coração, comoque para se nutrir dele no meio de um banquete em que eraa ele mesmo que os convivas esperavam poder devorar.

E, antes de ser executado, mata também seu rival, omarido da irmã, que ousou levantar-se contra esse amor,e o executa numa última luta que surge assim como seupróprio espasmo de agonia.

Como a peste, o teatro é portanto uma formidávelconvocação de forças que reconduzem o espírito, pelo

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exemplo, à origem de seus conflitos. E o exemplo passio-nal de Ford nada mais é, percebe-se isso muito bem, doque o símbolo de um trabalho mais grandioso e absoluta-mente essencial.

A aterradora aparição do Mal que nos Mistérios deElêusis se dava em sua forma pura, e era verdadeiramen-te revelada, corresponde ao tempo negro de certas tragédiasantigas que todo teatro verdadeiro deverá reencontrar.

Se o teatro essencial é como a peste, não é por sercontagioso, mas porque, como a peste, ele é a revelação,a afirmação, a exteriorização de um fundo de crueldadelatente através do qual se localizam num indivíduo ounum povo todas as possibilidades perversas do espírito.

Assim como a peste, ele é o tempo do mal, o triunfodas forças negras que uma força ainda mais profunda ali-menta até a extinção.

Há nele, como na peste, uma espécie de estranho sol,uma luz de intensidade anormal em que parece que o difí-cil e mesmo o impossível tornam-se de repente nosso ele-mento normal. E Annabella de Ford, como todo teatro ver-dadeiramente válido, está sob a luz desse estranho sol. Elase parece com a liberdade da peste em que, passo a passo,de degrau em degrau, o agonizante infla sua personagem,em que o ser vivo torna-se aos poucos um ser grandioso eexpandido.

Pode-se dizer agora que toda verdadeira liberdade énegra e se confunde infalivelmente com a liberdade dosexo, que também é negra, sem que se saiba muito bempor quê. Pois há muito tempo o Eros platônico, o sentidosexual, a liberdade de vida, desapareceu sob o revestimen-to escuro da Libido, que se identifica com tudo o que há

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de sujo, de abjeto, de infame no fato de viver, de se pre-cipitar com um vigor natural e impuro, com uma forçasempre renovada, na direção da vida.

É assim que todos os grandes Mitos são negros e éassim que não se pode imaginar fora de uma atmosferade carnificina, tortura, de sangue vertido, todas as magní-ficas Fábulas que narram para as multidões a primeiradivisão sexual e a primeira carnificina de espécies que sur-gem na criação.

O teatro, como a peste, é feito à imagem dessa car-nificina, dessa essencial separação. Desenreda conflitos,libera forças, desencadeia possibilidades, e se essas pos-sibilidades e essas forças são negras a culpa não é dapeste ou do teatro, mas da vida.

Não consideramos que a vida tal como é e tal comoa fizeram para nós seja razão para exaltações. Parece queatravés da peste, e coletivamente, um gigantesco abscesso,tanto moral quanto social, é vazado; e, assim como a pes-te, o teatro existe para vazar abscessos coletivamente.

Pode ser que o veneno do teatro lançado no corposocial o desagregue, como diz santo Agostinho, mas entãoele o faz como uma peste, um flagelo vingador, uma epi-demia salvadora na qual épocas crédulas pretenderamver o dedo de Deus e que nada mais é do que a aplicaçãode uma lei da natureza em que todo gesto é compensadopor outro gesto e toda ação por sua reação.

O teatro, como a peste, é uma crise que se resolvepela morte ou pela cura. E a peste é um mal superior por-que é uma crise completa após a qual resta apenas a morteou uma extrema purificação. Também o teatro é um malporque é o equilíbrio supremo que não se adquire sem

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destruição. Ele convida o espírito a um delírio que exaltasuas energias; e para terminar pode-se observar que, doponto de vista humano, a ação do teatro, como a da peste,é benfazeja pois, levando os homens a se verem comosão, faz cair a máscara, põe a descoberto a mentira, atibieza, a baixeza, o engodo; sacode a inércia asfixianteda matéria que atinge até os dados mais claros dos senti-dos; e, revelando para coletividades o poder obscuro delas,sua força oculta, convida-as a assumir diante do destinouma atitude heróica e superior que, sem isso, nunca assu-miriam.

E a questão que agora se coloca é saber se nestemundo em declínio, que está se suicidando sem perceber,haverá um núcleo de homens capazes de impor essa no-ção superior do teatro, que devolverá a todos nós o equi-valente natural e mágico dos dogmas em que não acredi-tamos mais.

A ENCENAÇÃO E A METAFÍSICA

No Louvre há uma pintura de um primitivo, conhe-cido ou desconhecido, não sei, mas cujo nome nunca serárepresentativo de um período importante da história daarte. Esse primitivo chama-se Lucas van den Leyden e ameu ver ele torna inúteis e abortados os quatrocentos ouquinhentos anos de pintura que vieram depois dele. A telade que estou falando intitula-se As filhas de Loth, temabíblico em moda na época. Claro que, na Idade Média, aBíblia não era entendida como a entendemos hoje, e estequadro é um exemplo estranho das deduções místicas quepodem ser extraídas dela. Em todo caso, seu patético évisível mesmo de longe, impressiona o espírito com umaespécie de harmonia visual fulminante, ou seja, cuja acui-dade age inteira e é apanhada num único olhar. Mesmoantes de poder ver do que se trata, sente-se que ali estáacontecendo algo grandioso, e os ouvidos, por assim dizer,emocionam-se ao mesmo tempo que os olhos. Um dramade alta importância intelectual, ao que parece, é captadocomo uma brusca reunião de nuvens que o vento, ou uma

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fatalidade muito mais direta, tivesse levado a colocar seusrelâmpagos em confronto.

Com efeito, o céu do quadro é escuro e carregado,mas mesmo antes de conseguir distinguir que o dramanasceu no céu, se passa no céu, a particular iluminaçãoda tela, o emaranhado das formas, a impressão que setem de longe, tudo isso anuncia uma espécie de drama danatureza, cujo equivalente eu desafio qualquer pintor dosPeríodos Áureos da pintura a nos propor.

Uma tenda ergue-se à beira-mar, diante da qual Loth,sentado com sua couraça e uma barba do mais lindo ver-melho, observa a evolução de suas filhas, como se assis-tisse a um festim de prostitutas.

E, de fato, elas se exibem, umas como mães de família,outras como guerreiras, penteiam os cabelos e se para-mentam, como se nunca tivessem tido outro objetivo alémde agradar ao pai, servir-lhe de brinquedo ou instrumento.Surge assim o caráter profundamente incestuoso do velhotema que o pintor desenvolve aqui em imagens apaixona-das. Prova de que ele compreendeu perfeitamente comoum homem moderno, ou seja, assim como nós podería-mos compreendê-la, a profunda sexualidade do tema. Pro-va de que seu caráter de sexualidade profunda mas poé-tica não lhe escapou, como não nos escapa.

À esquerda da tela, e um pouco em segundo plano,eleva-se a alturas prodigiosas uma torre preta, apoiada nabase por todo um sistema de rochedos, plantas, caminhossinuosos delimitados por marcos, pontilhados por casasaqui e ali. E, por um feliz efeito de perspectiva, um des-ses caminhos de repente se destaca do emaranhado atra-vés do qual se infiltrava, atravessa uma ponte, para final-

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mente receber um raio dessa luz de tempestade que trans-borda das nuvens, aspergindo toda a região de modo irre-gular. O mar ao fundo da tela é extremamente alto e, alémdisso, extremamente calmo, considerando-se o emara-nhado de fogo que fervilha num canto do céu.

De repente, no crepitar de fogos de artifício, atravésdo bombardeio noturno das estrelas, dos raios, das bom-bas solares, vemos de repente revelar-se a nossos olhos,numa luz de alucinação, em relevo sobre a noite, algunsdetalhes da paisagem: árvores, torre, montanhas, casas,cuja iluminação e cuja aparição permanecerão para sem-pre ligadas em nosso espírito à idéia desse dilaceramen-to sonoro; não é possível exprimir melhor esta submissãodos diversos aspectos da paisagem ao fogo manifestadono céu do que dizendo que, embora tenham luz própria,permanecem relacionados ao fogo como espécies de ecosamortecidos, como pontos de referência vivos, nascidosdo fogo e ali colocados para permitir que ele exerça todaa sua força de destruição.

Existe aliás no modo pelo qual o pintor descreveesse fogo alguma coisa de terrivelmente enérgico e per-turbador, como um elemento ainda em ação e móvel numaexpressão imobilizada. Pouco importa o meio pelo qualesse efeito é alcançado, ele é real; basta ver o quadro paraconvencer-se disso.

Seja como for, esse fogo, que emana uma impressãode inteligência e de maldade que ninguém poderia negar,serve, por sua própria violência, de contrapeso no espíri-to para a estabilidade material e densa do resto.

Entre o mar e o céu, mas à direita e no mesmo planoem perspectiva da Torre Negra, avança uma delgada lín-gua de terra coroada por um mosteiro em ruínas.

34 OTEA TRO E SEU DUPLO

Essa língua de terra, por mais próxima que pareçada margem em que se ergue a tenda de Loth, abre espaçopara um golfo imenso no qual parece ter havido um desas-tre marítimo sem precedentes. Barcos cortados ao meio eque não chegam a afundar apóiam-se no mar como emmuletas, enquanto ao lado flutuam seus mastros arranca-dos e suas vergas.

Seria difícil dizer por que é tão total a impressão dedesastre que provém da observação de apenas um ou doisnavios despedaçados.

Parece que o pintor conhecia alguns segredos relati-vos à harmonia linear e os meios de fazê-la atuar direta-mente sobre o cérebro, como um reagente físico. Em todocaso, essa impressão de inteligência espalhada pela natu-reza exterior, e sobretudo no modo de representá-la, évisível em vários outros detalhes do quadro, como teste-munha a ponte da altura de uma casa de oito andares quese ergue sobre o mar e onde personagens em fila desfi-lam como as Idéias na caverna de Platão.

Pretender que são claras as idéias que se depreen-dem desse quadro seria falso. Em todo caso, são de umagrandeza da qual a pintura que só sabe pintar, ou seja,toda a pintura de vários séculos, nos desacostumou com-pletamente.

Acessoriamente, ao lado de Loth e de suas filhas, háuma idéia sobre a sexualidade e a reprodução, com Lothque parece ter sido colocado ali para aproveitar-se abusi-vamente de suas filhas, como um zangão.

É quase a única idéia social que a pintura contém.Todas as outras são idéias metafísicas. Lamento pro-

nunciar essa palavra, mas é o nome delas; e eu diria até que

A ENCENA ÇÃO E A METAFÍSICA 3 5

sua grandeza poética, sua eficácia concreta sobre nós,provém do fato de serem metafísicas, e que sua profundi-dade espiritual é inseparável da harmonia formal e exteriordo quadro.

Há ainda uma idéia sobre o Devir que os diversosdetalhes da paisagem e o modo pelo qual foram pintados,pelo qual seus planos se aniquilam ou se correspondem,introduzem-nos no espírito tal como a música o faria.

Há uma outra idéia sobre a Fatalidade, expressa me-nos pelo aparecimento desse fogo brusco do que pelomodo solene como todas as formas se organizam ou sedesorganizam abaixo dele, umas como que curvadas pelovento de um pânico irresistível, outras imóveis e quaseirônicas, todas obedecendo a uma harmonia intelectualpoderosa, que parece o próprio espírito da natureza, exte-riorizado.

Há também uma idéia sobre o Caos, outra sobre oMaravilhoso, sobre o Equilíbrio; há até uma ou duas sobreas impotências da Palavra, cuja inutilidade essa pinturaextremamente material e anárquica parece nos demonstrar.

Em todo caso, digo que essa pintura é o que o teatrodeveria ser, se soubesse falar a linguagem que lhe pertence.

E faço uma pergunta:Como é que no teatro, pelo menos no teatro tal como

o conhecemos na Europa, ou melhor, no Ocidente, tudo oque é especificamente teatral, isto é, tudo o que não obe-dece à expressão através do discurso, das palavras ou, sepreferirmos, tudo que não está contido no diálogo (o pró-prio diálogo considerado em função de suas possibilida-des de sonorização na cena, e das exigências dessa sono-rização) seja deixado em segundo plano?

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Como é que o teatro ocidental (digo ocidental por-que felizmente há outros, como o teatro oriental, que sou-beram conservar intacta a idéia de teatro, ao passo que noOcidente esta idéia - como todo o resto - se prostituiu),como é que o teatro ocidental não enxerga o teatro sobum outro aspecto que não o do teatro dialogado?

O diálogo - coisa escrita e falada - não pertence es-pecificamente à cena, pertence ao livro; a prova é que nosmanuais de história literária reserva-se um lugar para oteatro considerado como ramo acessório da história dalinguagem articulada.

Digo que a cena é um lugar físico e concreto quepede para ser preenchido e que se faça com que ela falesua linguagem concreta.

Digo que essa linguagem concreta, destinada aossentidos e independente da palavra, deve satisfazer antesde tudo aos sentidos, que há uma poesia para os sentidosassim como há uma poesia para a linguagem e que a lin-guagem física e concreta à qual me refiro só é verdadei-ramente teatral na medida em que os pensamentos queexpressa escapam à linguagem articulada.

Perguntar-me-ão que pensamentos são esses que apalavra não pode expressar e que, muito melhor do queatravés da palavra, encontrariam sua expressão ideal nalinguagem concreta e física do palco.

Responderei a esta pergunta um pouco mais tarde.Mais urgente me parece determinar em que consiste essalinguagem física, essa linguagem material e sólida atra-vés da qual o teatro pode se distinguir da palavra.

Ela consiste em tudo o que ocupa a cena, em tudoaquilo que pode se manifestar e exprimir materialmente

A ENCENAÇÃO EA METAFÍSICA 37

numa cena, e que se dirige antes de mais nada aos senti-dos em vez de se dirigir em primeiro lugar ao espírito,como a linguagem da palavra. (Sei muito bem que tam-bém as palavras têm possibilidades de sonorização, modosdiversos de se projetarem no espaço, que chamamos deentonações. E, aliás, haveria muito a dizer sobre o valorconcreto da entonação no teatro, sobre a faculdade quetêm as palavras de criar, também elas, uma música se-gundo o modo como são pronunciadas, independentemen-te de seu sentido concreto, e que pode até ir contra essesentido - de criar sob a linguagem uma corrente subter-rânea de impressões, de correspondências, de analogias;mas esse modo teatral de considerar a linguagem já é umaspecto da linguagem acessória para o autor dramático,que ele já não leva em conta, sobretudo atualmente, aoestabelecer suas peças. Portanto, deixemos isso de lado.)

Essa linguagem feita para os sentidos deve antes demais nada tratar de satisfazê-los. Isso não a impede de,em seguida, desenvolver todas as suas conseqüências in-telectuais em todos os planos possíveis e em todas asdireções. E isso permite a substituição da poesia da lin-guagem por uma poesia no espaço que se resolverá exa-tamente no domínio do que não pertence estritamente àspalavras.

Sem dúvida seria bom que tivéssemos, para melhorcompreender o que quero dizer, alguns exemplos dessapoesia no espaço, capaz de criar como que imagens ma-teriais equivalentes às imagens das palavras. Esses exem-plos serão vistos mais adiante.

Essa poesia muito difícil e complexa reveste-se demúltiplos aspectos: em primeiro lugar, os de todos os meios

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de expressão utilizáveis em cena*, como música, dança,artes plásticas, pantomima, mímica, gesticulação, ento-nações, arquitetura, iluminação e cenário.

Cada um desses meios tem uma poesia própria, intrín-seca, e depois uma espécie de poesia irônica que provémdo modo como ele se combina com os outros meios deexpressão; e é fácil perceber as conseqüências dessas com-binações, de suas reações e de suas destruições recíprocas.

Mais adiante voltarei a essa poesia, que só poderá sertotalmente eficaz se for concreta, isto é, se produzir obje-tivamente alguma coisa através de sua presença ativa emcena - se um som como no Teatro de Bali eqüivale a umgesto, e em vez de servir de cenário, de acompanhamen-to de um pensamento, faz com que ele evolua, o dirige, odestrói ou o transforma definitivamente, etc.

Uma forma dessa poesia no espaço - além daquelaque pode ser criada com combinações de linhas, formas,cores, objetos em estado bruto, como acontece em todasas artes - pertence à linguagem através dos signos. E medeixarão falar um instante, espero, deste outro aspecto dalinguagem teatral pura, que escapa à palavra, da lingua-gem por signos, gestos e atitudes que têm um valor ideo-gráfico tal como existem ainda em certas pantomimas nãopervertidas.

* Na medida em que se revelam capazes de aproveitar as possibili-dades físicas imediatas que a cena lhes oferece para substituir as formasimobilizadas da arte por formas vivas e ameaçadoras, através das quais osentido da velha magia cerimonial pode reencontrar, no plano do teatro,uma nova realidade; na medida em que cedem àquilo que se poderia cha-mar de tentação física da cena.

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Por "pantomima não pervertida" entendo a pantomi-ma direta em que os gestos, em vez de representarem pa-lavras, corpos de frases, como em nossa pantomima euro-péia, que tem apenas cinqüenta anos, e que não passa demera deformação das partes mudas da comédia italiana,representam idéias, atitudes do espírito, aspectos da na-tureza, e isso de um modo efetivo, concreto, isto é, evo-cando sempre objetos ou detalhes naturais, como a lin-guagem oriental que representa a noite através de umaárvore na qual um pássaro que já fechou um olho come-ça a fechar o outro. E uma outra idéia abstrata ou atitudede espírito poderia ser representada por alguns dos inú-meros símbolos das Escrituras; exemplo: o buraco da agu-lha pelo qual o camelo é incapaz de passar.

Vê-se que esses signos constituem verdadeiros hie-róglifos, em que o homem, na medida em que contribuipara formá-los, é apenas uma forma como outra qual-quer, à qual, em virtude de sua dupla natureza, ele acres-centa no entanto um prestígio singular.

Essa linguagem que evoca ao espírito imagens deuma poesia natural (ou espiritual) intensa dá bem a idéiado que poderia ser no teatro uma poesia no espaço inde-pendente da linguagem articulada.

Seja o que for essa linguagem e sua poesia, observoque em nosso teatro, que vive sob a ditadura exclusiva dapalavra, essa linguagem de signos e de mímica, essa pan-tomima silenciosa, essas atitudes, esses gestos no ar, essasentonações objetivas, em suma, tudo o que considerocomo especificamente teatral no teatro, todos esses ele-mentos, quando existem fora do texto, constituem paratodo o mundo a região baixa do teatro, são chamados negli-

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gentemente de "arte", e confundem-se com aquilo que seentende por encenação ou "realização"; e ainda é sortequando não se atribui à palavra encenação a idéia de umasuntuosidade artística e exterior, que pertence exclusiva-mente às roupas, à iluminação e ao cenário.

E em oposição a esse modo de ver, modo que meparece bem ocidental, ou antes latino, isto é, obstinado,diria que na medida em que essa linguagem parte da cena,onde extrai sua eficácia de sua criação espontânea emcena, na medida em que se defronta diretamente com a cenasem passar pelas palavras (e por que não imaginar umapeça composta diretamente em cena, realizada em cena?),o teatro é a encenação, muito mais do que a peça escritae falada. Pedir-me-ão, sem dúvida, que explique o que háde latino nesta visão oposta à minha. O que existe de lati-no é esta necessidade de utilizar as palavras para expres-sar idéias que sejam claras. Para mim, no teatro como emtoda parte, idéias claras são idéias mortas e acabadas.

A idéia de uma peça feita diretamente em cena, es-barrando nos obstáculos da realização e da cena, impõe adescoberta de uma linguagem ativa, ativa e anárquica, emque sejam abandonadas as delimitações habituais entreos sentimentos e as palavras.

Em todo caso, e apresso-me em dizê-lo desde já, umteatro que submete ao texto a encenação e a realização,isto é, tudo o que é especificamente teatral, é um teatro deidiota, louco, invertido, gramático, merceeiro, antipoeta epositivista, isto é, um teatro de ocidental.

Sei muito bem, por outro lado, que a linguagem dosgestos e das atitudes, que a dança, a música são menoscapazes de elucidar um caráter, de relatar os pensamen-

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tos humanos de uma personagem, de expor os estados daconsciência claros e precisos do que a linguagem verbal,mas quem disse que o teatro é feito para elucidar umcaráter, para resolver conflitos de ordem humana e pas-sional, de ordem atual e psicológica, coisas de que nossoteatro contemporâneo está repleto?

Sendo o teatro tal como o vemos aqui, dir-se-ia quea única coisa que importa na vida é saber se vamos tre-par direito, se faremos a guerra ou se seremos suficiente-mente covardes para fazer a paz, como nos arranjamoscom nossas pequenas angústias morais e se tomaremosconsciência de nossos "complexos" (isto dito em lingua-gem erudita) ou se nossos "complexos" acabarão por nossufocar. É raro aliás que o debate se eleve ao plano sociale que se critique nosso sistema social e moral. Nosso tea-tro nunca chega ao ponto de perguntar se por acaso essesistema social e moral não seria iníquo.

Digo que o estado social atual é iníquo e deve serdestruído. E, se cabe ao teatro preocupar-se com isso, cabeainda mais à metralhadora. Nosso teatro nem é capaz decolocar essa questão do modo ardoroso e eficaz que serianecessário, mas, mesmo que o fizesse, estaria saindo deseu objeto, que para mim é algo superior e mais secreto.

Todas as preocupações enumeradas acima infestamo homem de um modo inverossímil, o homem provisórioe material, diria mesmo, o homem-carcaça. No que mediz respeito, essas preocupações me repugnam, me re-pugnam no mais alto grau, assim como quase todo o tea-tro contemporâneo, tão humano quanto é antipoético eque, com exceção de três ou quatro peças, me parece tero fedor da decadência e do pus.

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O teatro contemporâneo está em decadência porqueperdeu, por um lado, o sentido da seriedade e, por outro,o do riso. Porque rompeu com a seriedade, com a eficá-cia imediata e perniciosa - em suma, com o Perigo.

Porque perdeu, por outro lado, o sentido do humorverdadeiro e do poder de dissociação física e anárquicado riso.

Porque rompeu com o espírito de anarquia profundaque está na base de toda poesia.

É preciso admitir que tudo na destinação de umobjeto, no sentido ou na utilização de uma forma natural,tudo é questão de convenção.

Quando a natureza deu a uma árvore a forma de ár-vore, podia muito bem lhe ter dado a forma de um animalou de uma colina, teríamos pensado árvore ao ver um ani-mal ou uma colina, e pronto.

Entende-se que uma mulher bonita tem uma voz har-moniosa; se desde que o mundo é mundo tivéssemos ouvi-do todas as mulheres lindas nos chamarem com toques detrompa e nos cumprimentarem com barridos, por toda aeternidade teríamos associado a idéia do barrido com aidéia de mulher bonita, e com isso parte de nossa visãointerior do mundo teria sido radicalmente transformada.

Compreende-se assim que a poesia é anárquica namedida em que põe em questão todas as relações entre osobjetos e entre as formas e suas significações. É anárqui-ca também na medida em que seu aparecimento é a con-seqüência de uma desordem que nos aproxima do caos.

Não darei outros exemplos disso. Poderíamos multi-plicá-los ao infinito, e não apenas com exemplos humo-rísticos como os que acabo de utilizar.

A ENCENAÇÃO E A METAFÍSICA 43

Teatralmente, essas inversões de forma, esses deslo-camentos de significações poderiam tornar-se o elemen-to essencial dessa poesia humorística e no espaço que éexclusivamente da encenação.

Num filme dos Irmãos Marx, um homem, que acre-dita estar abraçando uma mulher, abraça uma vaca, que dáum mugido. E, por um concurso de circunstâncias em queseria muito longo insistir, esse mugido, naquele momen-to, assume uma dignidade intelectual igual à de qualquergrito de mulher.

Uma situação como essa, possível no cinema, não émenos possível no teatro: bastaria pouca coisa, como porexemplo substituir a vaca por um boneco animado, umaespécie de monstro dotado de fala, ou por um ser huma-no disfarçado de animal, e com isso se reencontraria osegredo de uma poesia objetiva com base no humor e àqual o teatro renunciou, que ele abandonou pelo music-hall e que depois o cinema aproveitou.

Há pouco falei em perigo. Ora, o que me parece me-lhor realizar em cena essa idéia de perigo é o imprevistoobjetivo, o imprevisto não nas situações mas nas coisas,a passagem intempestiva, brusca, de uma imagem pensadapara uma imagem verdadeira; por exemplo, um homemque blasfema vê materializar-se bruscamente à sua frente,com traços reais, a imagem de sua blasfêmia (mas com acondição, acrescento, de que essa imagem não seja intei-ramente gratuita, de que ela provoque o aparecimento, porsua vez, de outras imagens da mesma veia espiritual, etc).

Outro exemplo seria o aparecimento de um Ser in-ventado, feito de pano e de madeira, inteiramente artifi-

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ciai, não correspondendo a nada, e no entanto inquietan-te por natureza, capaz de reintroduzir em cena um peque-no sopro do grande medo metafísico que é a base de todoo teatro antigo.

Os balineses, com seu dragão inventado, como todosos orientais, não perderam o sentido desse medo miste-rioso que sabem ser um dos elementos mais atuantes (ealiás essencial) do teatro, quando colocado em seu verda-deiro plano.

É que a verdadeira poesia, quer queiramos ou não, émetafísica, e é seu próprio alcance metafísico, eu diria,seu grau de eficácia metafísica, que constitui todo o seuverdadeiro valor.

Essa é a segunda ou terceira vez que falo aqui emmetafísica. Ainda há pouco, a respeito da psicologia, eufalava de idéias mortas e sinto que muitos se veriam ten-tados a dizer-me que, se existe no mundo uma idéia inu-mana, uma idéia ineficaz e morta e que pouco diz, mes-mo ao espírito, essa idéia é exatamente a da metafísica.

Isso está ligado, como diz René Guénon, "a nossomodo puramente ocidental, a nosso modo antipoético etruncado de considerar os princípios (fora do estado es-piritual enérgico e maciço que lhes corresponde)".

No teatro oriental de tendências metafísicas, opostoao teatro ocidental de tendências psicológicas, todo esseamontoado compacto de gestos, signos, atitudes, sons, queconstitui a linguagem da realização e da cena, essa lin-guagem que desenvolve todas as suas conseqüências físicase poéticas em todos os planos da consciência e em todosos sentidos, leva necessariamente o pensamento a assu-mir atitudes profundas que são o que poderíamos chamarde metafísica em atividade.

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Logo retomarei esse ponto. No momento, voltemosao teatro conhecido.

Há alguns dias, eu assistia a uma discussão sobre oteatro. Vi uma espécie de homens-serpentes, também cha-mados de autores dramáticos, explicar-me o modo de in-sinuar uma peça a um diretor, como as pessoas da históriaque insulavam veneno no ouvido de seus rivais. Tratava-se,creio, de determinar a orientação futura do teatro e, emoutras palavras, seu destino.

Não se determinou coisa alguma e em momentoalgum se falou do verdadeiro destino do teatro, isto é,daquilo que, por definição e por essência, o teatro estádestinado a representar, nem dos meios de que ele dispõepara isso. Em compensação, o teatro me foi apresentadocomo uma espécie de mundo gelado, com artistas encer-rados em gestos que doravante já não lhes servirão paranada, com entonações sólidas já caindo aos pedaços, commúsicas reduzidas a uma espécie de enumeração cifradacujos signos começam a se apagar, com uma espécie delampejos luminosos, como que solidificados, que corres-pondem a esboços de movimentos - e em torno de tudoisso um borboletear de homens vestidos de preto que dis-putam em torno do braseiro os ferros incandescentes paramarcar sua posse. Como se a máquina teatral estivessedoravante reduzida àquilo que a cerca. E é por estar redu-zida ao que a cerca e por estar o teatro reduzido a tudo oque não é mais teatro que essa atmosfera fede para as na-rinas de pessoas de bom gosto.

Para mim, o teatro se confunde com suas possibili-dades de realização quando delas se extraem as conse-qüências poéticas extremas, e as possibilidades de reali-

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zação do teatro pertencem totalmente ao domínio da en-cenação, considerada como uma linguagem no espaço eem movimento.

Ora, extrair as conseqüências poéticas extremas dosmeios de realização é fazer a metafísica desses meios, ecreio que ninguém se oporá a este modo de considerar aquestão.

E fazer a metafísica da linguagem, dos gestos, dasatitudes, do cenário, da música sob o ponto de vista tea-tral é, ao que me parece, considerá-los com relação atodas as formas que eles podem ter de se encontrar como tempo e com o movimento.

Dar exemplos objetivos dessa poesia consecutiva àsdiversas formas que podem ter um gesto, uma sonoridade,uma entonação ao se apoiar com maior ou menor insis-tência nesta ou naquela parte do espaço, neste ou naquelemomento, parece-me tão difícil quanto comunicar compalavras o sentimento da qualidade particular de um somou do grau e da qualidade de uma dor física. Isso depen-de da realização e só pode ser determinado em cena.

Eu deveria agora passar em revista todos os meiosde expressão que o teatro (ou a encenação que, no siste-ma que acabo de expor, confunde-se com ele) contém.Isso me levaria longe demais; ficarei apenas com um oudois exemplos.

Primeiro, a linguagem articulada.Fazer a metafísica da linguagem articulada é fazer

com que a linguagem sirva para expressar aquilo quehabitualmente ela não expressa: é usá-la de um modo novo,excepcional e incomum, é devolver-lhe suas possibilidadesde comoção física, é dividi-la e distribuí-la ativamente no

A ENCENAÇÃO E A METAFÍSICA 47

espaço, é tomar as entonações de uma maneira concretaabsoluta e devolver-lhes o poder que teriam de dilacerare manifestar realmente alguma coisa, é voltar-se contra alinguagem e suas fontes rasteiramente utilitárias, poder-se-ia dizer alimentares, contra suas origens de animalacuado, é, enfim, considerar a linguagem sob a forma doEncantamento.

Tudo neste modo poético e ativo de considerar a ex-pressão em cena nos leva a nos afastarmos da acepçãohumana, atual e psicológica do teatro para reencontrar suaacepção religiosa e mística, cujo sentido nosso teatro per-deu completamente.

Aliás, o fato de bastar alguém pronunciar as palavrasreligioso ou místico para ser confundido com um sacris-tão ou um bonzo profundamente iletrado e alienado de umtemplo budista, que serve no máximo para girar as ma-tracas das preces, mostra nossa incapacidade de extrairde uma palavra todas as suas conseqüências e nossa pro-funda ignorância do espírito de síntese e de analogia.

Isso talvez signifique que no ponto em que estamosperdemos qualquer contato com o verdadeiro teatro, jáque o limitamos ao domínio do que o pensamento cotidia-no pode alcançar, ao domínio conhecido ou desconhecidoda consciência. E se nos dirigimos teatralmente ao incons-ciente é apenas para lhe arrancar o que ele conseguiurecolher (ou ocultar) da experiência acessível e cotidiana.

Por outro lado, o fato de se afirmar que uma das ra-zões da eficácia física sobre o espírito, da força de atuaçãodireta e representada em imagens de certas realizaçõesdo teatro oriental como as do Teatro de Bali é que esseteatro apóia-se em tradições milenares, que ele conser-

48 O TEA TRO E SEU DUPLO

vou intactos os segredos de utilização dos gestos, dasentonações, da harmonia, em relação aos sentidos e emtodos os planos possíveis - isso não condena o teatrooriental mas condena a nós e, conosco, este estado decoisas em que vivemos e que deve ser destruído, destruí-do com aplicação e maldade, em todos os planos e emtodos os níveis em que ele atrapalha o livre exercício dopensamento.

O TEATRO ALQUÍMICO

Entre o princípio do teatro e o da alquimia há umamisteriosa identidade de essência. É que o teatro, assimcomo a alquimia, quando considerado em seu princípio esubterraneamente, está vinculado a um certo número debases, que são as mesmas para todas as artes e que visam,no domínio espiritual e imaginário, uma eficácia análogaàquela que, no domínio físico, permite realmente a pro-dução de ouro. Mas entre o teatro e a alquimia há aindauma semelhança maior e que metafisicamente leva muitomais longe. É que tanto a alquimia quanto o teatro sãoartes por assim dizer virtuais e que carregam em si tantosua finalidade quanto sua realidade.

Enquanto a alquimia, através de seus símbolos, é comoum Duplo espiritual de uma operação que só tem eficá-cia no plano da matéria real, também o teatro deve serconsiderado como o Duplo não dessa realidade cotidianae direta da qual ele aos poucos se reduziu a ser apenasuma cópia inerte, tão inútil quanto edulcorada, mas de umaoutra realidade perigosa e típica, em que os Princípios,

50 OTEA TRO E SEU DUPLO

como golfinhos, assim que mostram a cabeça, apressam-sea voltar à escuridão das águas.

Ora, essa realidade não é humana mas inumana, e nelao homem, com seus costumes ou com seu caráter, contamuito pouco, é preciso que se diga. E é como se do ho-mem pudesse restar apenas a cabeça, uma espécie de cabe-ça absolutamente desnuda, maleável e orgânica, em quesobraria apenas matéria formal suficiente para que osprincípios pudessem aí desenvolver suas conseqüênciasde uma maneira sensível e acabada.

Antes de continuar, aliás, é preciso notar a estranhaafeição que todos os livros dedicados à matéria alquimicaprofessam pelo termo teatro, como se seus autores tives-sem sentido desde logo tudo o que existe de representa-tivo, ou seja, de teatral, na série completa dos símbolosatravés dos quais se realiza espiritualmente a Grande Obra,enquanto ela se realiza real e materialmente, e tambémnos desvios e digressões do espírito mal informado, emtorno dessas operações e na enumeração "dialética", porassim dizer, de todas as aberrações, fantasias, miragens ealucinações pelas quais não podem deixar de passar os quetentam essas operações com meios puramente humanos.

Todos os verdadeiros alquimistas sabem que o sím-bolo alquímico é uma miragem assim como o teatro éuma miragem. E esta perpétua alusão às coisas e ao prin-cípio do teatro que se encontra em quase todos os livrosalquímicos deve ser entendida como o sentimento (doqual os alquimistas tinham a maior consciência) da iden-tidade que existe entre o plano no qual evoluem as perso-nagens, os objetos, as imagens, e de um modo geral tudoo que constitui a realidade virtual do teatro, e o plano

O TEA TRO ALQUÍM1CO 5 1

puramente suposto e ilusório no qual evoluem os símbo-los da alquimia.

Esses símbolos, que indicam o que se poderia cha-mar de estados filosóficos da matéria, já colocam o espí-rito no caminho da purificação ardente, da unificação e daemaciação num sentido horrivelmente simplificado e purodas moléculas naturais; no caminho da operação que per-mite, à força de despojamento, repensar e reconstituir ossólidos segundo a linha espiritual de equilíbrio em queenfim voltam a se tornar ouro. As pessoas não costumamperceber como esse simbolismo material que serve paradesignar esse misterioso trabalho corresponde, no espíri-to, a um simbolismo paralelo, a uma ativação de idéias eaparências através das quais tudo o que no teatro é teatralse designa e pode ser distinguido filosoficamente.

Explico. E talvez já se tenha compreendido que ogênero de teatro a que nos referimos nada tem a ver comesse tipo de teatro social ou de atualidade, que muda com asépocas e onde as idéias que originalmente animavam oteatro só podem ser encontradas em caricaturas de ges-tos, irreconhecíveis de tanto que tiveram seu sentido alte-rado. Acontece com as idéias do teatro típico e primitivo omesmo que acontece com as palavras, que, com o tempo,deixaram de produzir imagem e que, em vez de seremum meio de expansão, já não são mais do que um becosem saída e um cemitério para o espírito.

Talvez antes de continuar nos seja solicitada uma de-finição do que entendemos por teatro típico e primitivo.E com isso entramos no âmago do problema.

De fato, se colocarmos a questão das origens e darazão de ser (ou da necessidade primordial) do teatro,

52 OTEA TRO ESEU DUPLO

encontraremos de um lado, e metafisicamente, a materia-lização ou antes a exteriorização de uma espécie de dramaessencial que conteria de um modo simultaneamente múl-tiplo e único os princípios essenciais de todo drama, jáorientados e divididos, não o suficiente para perderem suanatureza de princípios, mas o suficiente para conteremde modo substancial e ativo, isto é, cheio de descargas,infinitas perspectivas de conflitos. Analisar filosoficamen-te um drama assim é impossível, e é apenas poeticamente,e arrancando dos princípos de todas as artes o que podemter de comunicativo e magnético, que podemos, atravésde formas, sons, músicas e volumes, evocar, passando portodas as semelhanças naturais das imagens e das similitu-des, não direções primordiais do espírito, que nosso inte-lectualismo lógico e abusivo reduziria a inúteis esque-mas, mas espécies de estados de tão intensa acuidade, deuma argúcia tão absoluta, que é possível sentir atravésdos estremecimentos da música e da forma as ameaçassubterrâneas de um caos tão decisivo quanto perigoso.

E sente-se perfeitamente que esse drama essencialexiste, e é à imagem de algo mais sutil do que a própriaCriação, que se deve representar como o resultado de umaVontade una - e sem conflito.

É preciso acreditar que o drama essencial, aqueleque estava na base de todos os Grandes Mistérios, espo-sa o segundo momento da Criação, o da dificuldade e doDuplo, o da matéria e do adensamento da idéia.

Parece que onde reinam a simplicidade e a ordem nãopode haver nem drama nem teatro, e o verdadeiro teatronasce, aliás como a poesia mas por outras vias, de umaanarquia que se organiza, após lutas filosóficas que são olado apaixonante dessas primitivas unificações.

O TEA TRO ALQUÍMICO 5 3

Ora, esses conflitos que o Cosmos em ebulição nosoferece de uma maneira filosoficamente alterada e impu-ra são os que a alquimia nos propõe em todo seu intelec-tualismo rigoroso, uma vez que ela nos permite reatingiro sublime, mas com drama, após a destruição minuciosae exacerbada de toda forma insuficientemente apurada,insuficientemente madura, uma vez que faz parte do pró-prio princípio da alquimia só permitir que o espírito seimpulsione depois de passar por todas as canalizações,todas as fundações da matéria existente e de ter refeitoesse trabalho em dobro nos limbos incandescentes dofuturo. Pois dir-se-ia que, para merecer o ouro material, oespírito deve primeiro provar a si mesmo que é capaz dooutro e que só conquistou este, só o alcançou, aquiescen-do a ele, considerando-o como um símbolo segundo daqueda que teve de realizar para reencontrar de maneirasólida e opaca a expressão da própria luz, da raridade eda irredutibilidade.

A operação teatral de fazer ouro, pela imensidão dosconflitos que provoca, pela quantidade prodigiosa de for-ças que ela lança uma contra a outra e que convulsiona,pelo apelo a uma espécie de remistura essencial transbor-dante de conseqüências e sobrecarregada de espirituali-dade, evoca enfim ao espírito uma pureza absoluta e abs-trata, após a qual nada mais existe e que poderíamos con-ceber como uma espécie de nota-limite, apanhada empleno vôo, e que seria como a parte orgânica de uma in-descritível vibração.

Os Mistérios Órficos que subjugavam Platão deviamter, no plano moral e psicológico, um pouco desse aspec-to transcendente e definitivo do teatro alquímico e, com

54 O TEATRO E SEU DUPLO

elementos de uma extraordinária densidade psicológica,evocar em sentido inverso símbolos da alquimia, que for-necem o meio espiritual para decantar e transfundir a ma-téria, evocar a transfusão ardente e decisiva da matériapelo espírito.

Dizem-nos que os Mistérios de Elêusis limitavam-sea encenar um certo número de verdades morais. Creio,antes, que deviam encenar projeções e precipitações deconflitos, lutas indescritíveis de princípios, vistas sob oângulo vertiginoso e escorregadio em que toda verdade seperde ao realizar a fusão inextrincável e única do abstra-to e do concreto, e penso que, através de músicas de ins-trumentos e de notas, de combinações de cores e formasde que até perdemos a idéia, eles deviam, por um lado,satisfazer a nostalgia da beleza pura cuja realização com-pleta, sonora, límpida e despojada Platão deve ter encon-trado pelo menos uma vez neste mundo; por outro lado,deviam resolver através de conjunções inimagináveis eestranhas para nossos cérebros de homens ainda desper-tos, resolver ou mesmo aniquilar todos os conflitos pro-duzidos pelo antagonismo entre a matéria e o espírito, aidéia e a forma, o concreto e o abstrato, e fundir todas asaparências em uma expressão única que devia ser seme-lhante ao ouro espiritualizado.

SOBRE O TEATRO DE BALI

O primeiro espetáculo do Teatro de Bali, que tem tra-ços de dança, canto, pantomima, música, e muito poucodo teatro psicológico tal como o entendemos aqui naEuropa, recoloca o teatro em seu plano de criação autô-noma e pura, sob o ângulo da alucinação e do medo.

É notável que a primeira das pequenas peças quecompõem o espetáculo, e que nos faz assistir às admoes-tações de um pai à filha que se insurge contra as tradi-ções, comece com a entrada em cena de fantasmas ou, sequiserem, que as personagens, homens e mulheres, queservirão ao desenvolvimento de um tema dramático masfamiliar, sejam mostradas primeiro em seu estado espec-tral de personagens, sejam vistas sob o ângulo da aluci-nação, próprio de toda personagem teatral, antes de se per-mitir que as situações dessa espécie de esquete simbólicoevoluam. Aqui, aliás, as situações são apenas um pretex-to. O drama não evolui entre sentimentos mas entre esta-dos de espírito, ossificados e reduzidos a gestos - esque-mas. Em suma, os balineses realizam, com o maior rigor,

56 O TEATRO E SEU DUPLO

a idéia do teatro puro, onde tudo, tanto concepção comorealização, só vale, só existe por seu grau de objetivaçãoem cena. Demonstram vitoriosamente a preponderânciaabsoluta do diretor cujo poder de criação elimina as pa-lavras. Os temas são vagos, abstratos, extremamente gerais.Só lhes dá vida é o desenvolvimento complicado de todosos artifícios cênicos que impõem a nosso espírito comoque a idéia de uma metafísica extraída de uma nova uti-lização do gesto e da voz.

O que há de curioso, de fato, em todos aqueles gestos,atitudes angulosas e brutalmente interrompidas, modula-ções sincopadas do fundo da garganta, frases musicais queacabam logo, vôos de élitros, ruídos de galhos, sons decaixas ocas, rangidos de autômatos, danças de bonecosanimados, é que, através desse labirinto de gestos, atitudes,gritos lançados ao ar, através das evoluções e das curvasque não deixam inutilizada nenhuma porção do espaçocênico, surge o sentido de uma nova linguagem físicabaseada nos signos e não mais nas palavras. Esses atorescom suas roupas geométricas parecem hieróglifos ani-mados. E até a forma dessas roupas, deslocando o eixodo porte humano, cria, ao lado das indumentárias dessesguerreiros em estado de transe e de guerra perpétua, umaespécie de roupa simbólica, de segunda roupa, que inspirauma idéia intelectual e que se relaciona, através de todosos cruzamentos de suas linhas, com todos os cruzamen-tos das perspectivas do ar. Estes signos espirituais têmum sentido preciso, que nos atinge apenas intuitivamen-te mas com violência suficiente para tornar inútil todatradução numa linguagem lógica e discursiva. E para osamantes do realismo a qualquer preço, que se cansariam

SOBRE O TEA TRO DE BALI 5 7

dessas eternas alusões a atitudes secretas e distanciadasdo pensamento, resta o jogo eminentemente realista doDuplo que se assusta com as aparições do Além. Os tre-mores, a gritaria pueril, o salto que bate no chão em ca-dência seguindo o próprio automatismo do inconscientedesencadeado, o Duplo que, num dado momento, se ocultaatrás de sua própria realidade, eis uma descrição do medoque vale para todas as latitudes e que mostra que com res-peito ao humano tanto quanto ao sobre-humano os orien-tais estão à nossa frente em matéria de realidade.

Os balineses, que têm gestos e uma variedade de mí-micas para todas as circunstâncias da vida, devolvem àconvenção teatral seu valor superior, demonstram a efi-cácia e o valor superiormente atuante de um certo númerode convenções bem aprendidas e, sobretudo, magistral-mente aplicadas. Uma das razões de nosso prazer diantedesse espetáculo sem excessos reside justamente na utili-zação por esses atores de uma quantidade precisa de ges-tos seguros, de mímicas experimentadas e adequadas mas,acima de tudo, no invólucro espiritual, no estudo profun-do e matizado que presidiu a elaboração dos jogos deexpressão, dos signos eficazes e cuja eficácia nos dá aimpressão de não se ter esgotado ao longo dos milênios.O revirar mecânico de olhos, os trejeitos com os lábios, adosagem das crispações musculares, de efeitos metodica-mente calculados e que eliminam qualquer recurso à im-provisação espontânea, as cabeças que fazem um movi-mento horizontal parecendo rolar de um ombro ao outrocomo se estivessem encaixadas em trilhos, tudo isso, queresponde a necessidades psicológicas imediatas, respondealém disso a uma espécie de arquitetura espiritual, feita

58 OTEA TRO ESEU DUPLO

por gestos e mímicas mas também pelo poder evocadorde um ritmo, pela qualidade musical de um movimentofísico, pelo acorde paralelo e admiravelmente fundido deum tom. É possível que isso choque nosso sentido euro-peu da liberdade cênica e da inspiração espontânea, masque não se diga que essa matemática cria secura e unifor-midade. A maravilha é que uma sensação de riqueza, defantasia, de generosa prodigalidade emana desse espetá-culo dirigido com uma minúcia e uma consciência per-turbadoras. E as correspondências mais imperiosas difun-dem-se continuamente da vista ao ouvido, do intelecto àsensibilidade, do gesto de uma personagem à evocação dosmovimentos de uma planta através do grito de um instru-mento. Os suspiros de um instrumento de sopro prolongamas vibrações de cordas vocais, com tal senso de identida-de que não sabemos se é a própria voz que se prolongaou o sentido que, desde os primórdios, absorveu a voz.Um jogo de juntas, o ângulo musical que o braço formacom o antebraço, um pé que cai, um joelho que se dobra,dedos que parecem se desprender da mão, tudo isso épara nós como um eterno jogo de espelhos em que osmembros humanos parecem enviar-se ecos, músicas emque as notas da orquestra, em que a respiração dos ins-trumentos de sopro evocam a idéia de um intenso viveirocujo borboletear são os próprios atores. Nosso teatro, quenunca teve idéia dessa metafísica de gestos, que nunca sou-be fazer a música servir a fins dramáticos tão imediatos,tão concretos, nosso teatro puramente verbal e que igno-ra tudo o que constitui o teatro, ou seja, tudo o que estáno ar do palco, que se mede com e se cerca de ar, quetem uma densidade no espaço - movimentos, formas,

SOBRE O TE A TRO DE BALI 59

cores, vibrações, atitudes, gritos -, poderia, diante do quenão se mede e que se relaciona com o poder de sugestãodo espírito, pedir ao Teatro de Bali uma lição de espiri-tualidade. Esse teatro puramente popular, e não sagrado,nos dá uma idéia extraordinária do nível intelectual deum povo, que toma por fundamento de seus júbilos cívi-cos as lutas de uma alma presa das larvas e dos fantas-mas do Além. Pois, em suma, é mesmo de uma luta pura-mente interior que se trata na última parte do espetáculo.E de passagem é possível observar o grau de suntuosida-de teatral que os balineses foram capazes de dar ao espe-táculo. O sentido das necessidades plásticas da cena quese pode ver só é igualado por seu conhecimento do medofísico e dos meios de desencadeá-lo. E no aspecto verda-deiramente aterrador de seu diabo (provavelmente umdiabo tibetano) há uma semelhança impressionante como aspecto de um certo fantoche de nossa recordação, comas mãos aumentadas por uma gelatina branca, unhas de fo-lhas verdes e que era o mais belo ornamento de uma dasprimeiras peças encenadas pelo Teatro Alfred Jarry.

** *

Esse espetáculo que nos assalta com uma superabun-dância de impressões, uma mais rica que a outra, masnuma linguagem cuja chave parecemos não ter mais, éalgo que não podemos abordar de frente. E essa espéciede irritação criada pela impossibilidade de achar o fio, desegurar o animal, de aproximar o instrumento do ouvidopara melhor escutar é, no ativo desse espetáculo, um encan-

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to a mais. E por linguagem não entendo o idioma à pri-meira vista incompreensível, mas exatamente essa espé-cie de linguagem teatral exterior a toda linguagem faladae na qual parece residir uma imensa experiência cênicaao lado da qual nossas realizações, exclusivamente dialo-gadas, parecem balbucios.

De fato, o que há de mais impressionante nesse es-petáculo - que desnorteia nossas concepções ocidentaisdo teatro a ponto de muitos lhe negarem qualquer quali-dade teatral, quando se trata na verdade da mais bela ma-nifestação de teatro que nos é dado ver aqui -, o que háde impressionante e de desconcertante, para nós, euro-peus, é a intelectualidade admirável que se sente crepitarem toda a trama cerrada e sutil dos gestos, nas modula-ções infinitamente variadas da voz, nessa chuva sonora,como uma imensa floresta que transpira e resfolega, e noentrelaçado também sonoro dos movimentos. De um gestoa um grito ou a um som não há passagem: tudo acontececomo que através de estranhos canais cavados no próprioespírito!

Há toda uma profusão de gestos rituais cuja chavenão temos e que parecem obedecer a determinações mu-sicais extremamente precisas, com alguma coisa a maisque não pertence em geral à música e que parece destina-da a envolver o pensamento, a persegui-lo, a conduzi-loatravés de uma malha inextricável e certa. Tudo nesseteatro, de fato, é calculado com uma minúcia adorável ematemática. Nada é deixado ao acaso ou à iniciativa pes-soal. É uma espécie de dança superior, na qual os dança-rinos seriam antes de tudo atores.

A todo momento podemos vê-los efetuando uma es-pécie de lento restabelecimento. Quando acreditamos esta-

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rem perdidos no meio de um labirinto inextricável de me-didas, quando os sentimos prestes a mergulhar na confu-são, têm uma maneira própria de restabelecer o equilíbrio,um apoio especial do corpo, as pernas torcidas, dando aimpressão de um pano muito molhado que será torcidopouco a pouco; e em três passos finais, que sempre osconduzem inelutavelmente para o meio da cena, o ritmosuspenso se completa, a medida se esclarece.

Tudo neles, assim, é regrado, impessoal; não há umjogo de músculos, um revirar de olhos que não pareçapertencer a uma espécie de matemática refletida que tudoconduz e pela qual tudo passa. E o estranho é que nessadespersonalização sistemática, nesses jogos de fisionomiapuramente musculares, aplicados sobre os rostos comose fossem máscaras, tudo produz o efeito máximo.

Uma espécie de terror nos assalta quando vemos essesseres mecanizados, aos quais nem suas alegrias nem suasdores parecem pertencer propriamente, mas nos quais tudoparece obedecer a ritos conhecidos e como que ditadospor inteligências superiores. Afinal, é essa impressão deVida Superior e ditada que nos impressiona mais nesseespetáculo semelhante a um rito que estaríamos profa-nando. De um rito sagrado ele tem a solenidade; o hiera-tismo das roupas dá a cada ator como que um duplo corpo,duplos membros - e em sua roupa o artista embrulhadoparece ser apenas a efígie de si mesmo. Há ainda o ritmoamplo, fragmentado, da música - música extremamenteinsistente, murmurante e frágil, em que parece que se tri-turam os metais mais preciosos, em que se desencadeiam,como em estado natural, fontes de água, progressões am-pliadas de enfiadas de insetos através da vegetação, em que

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acreditamos ver captado o próprio som da luz, em que osruídos das solidões espessas parecem reduzir-se a vôos decristais, etc, etc.

Todos esses ruídos estão, aliás, ligados a movimen-tos, são como o acabamento natural de gestos que têm amesma qualidade que eles; e isso com tal sentido da ana-logia musical, que o espírito acaba sendo obrigado a con-fundir, a atribuir à gesticulação articulada dos artistas aspropriedades sonoras da orquestra, e vice-versa.

Uma impressão de inumanidade, de divino, de reve-lação milagrosa se desprende ainda da requintada belezados penteados das mulheres: da série de círculos lumino-sos sobrepostos, feitos de combinações de plumas ou pé-rolas multicoloridas, de cores tão belas que sua reuniãotem o ar de revelação, e cujas arestas tremem ritmada-mente, parecem responder com espírito aos tremores docorpo. E há ainda os outros penteados de aspecto sacer-dotal, na forma de tiaras e encimados por penachos deflores rígidas, cujas cores se opõem aos pares e se casamestranhamente.

Este conjunto lancinante, cheio de feixes, fugas, ca-nais, desvios em todos os sentidos da percepção externae interna, compõe uma idéia soberana do teatro, idéia quenos parece conservada através dos séculos para nos ensi-nar aquilo que o teatro nunca deveria ter deixado de ser.E essa impressão é duplicada pelo fato de que esse espetá-culo - popular em Bali, ao que parece, e profano - é comoo pão elementar das sensações artísticas daquela gente.

Pondo de lado a prodigiosa matemática desse espe-táculo, aquilo que parece feito para mais nos surpreendere espantar é o aspecto revelador da matéria que parece

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de repente se disseminar em signos para nos ensinar aidentidade metafísica do concreto e do abstrato, e ensiná-loatravés de gestos feitos para durar. O aspecto realista nósencontramos em nosso país, mas, aqui, elevado à enési-ma potência, e definitivamente estilizado.

Neste teatro, toda criação provém da cena, encontrasua tradução e suas origens num impulso psíquico secre-to que é a Palavra anterior às palavras.

É um teatro que elimina o autor em proveito daquiloque em nosso jargão ocidental do teatro chamaríamos dediretor; mas aqui o diretor é uma espécie de ordenadormágico, um mestre de cerimônias sagradas. E a matériasobre a qual ele trabalha, os temas que faz palpitar nãosão dele mas dos deuses. Eles provêm, ao que parece, dasjunções primitivas da Natureza que um Espírito duplofavoreceu.

Ele mexe com o MANIFESTADO.É uma espécie de Física primeira, da qual o Espírito

nunca se afastou.

Num espetáculo como o do Teatro de Bali existe algoque suprime a diversão, um aspecto de jogo artificial inú-til, de jogo de uma noite, que é a característica de nossoteatro. Suas realizações são talhadas em plena matéria,em plena vida, em plena realidade. Há nelas algo do ceri-monial de um rito religioso, no sentido de que extirpam

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do espírito de quem as observa toda idéia de simulação,de imitação barata da realidade. Essa gesticulação densaque presenciamos tem um objetivo, um objetivo imedia-to para o qual ela tende através de meios eficazes e cujaeficácia somos capazes de sentir de imediato. Os pensa-mentos que ela visa, os estados de espírito que procuracriar, as soluções místicas que propõe são mobilizados,levantados, alcançados sem demora e sem rodeios. Tudoisso parece um exorcismo para fazer nossos demôniosAFLUÍREM.

Há um ressoar grave das coisas do instinto nesse tea-tro, mas levadas a tal ponto de transparência, inteligên-cia, ductibilidade, em que parecem nos proporcionar deum modo físico algumas das percepções mais secretas doespírito.

Os temas propostos partem, por assim dizer, da cena.Eles são tais, estão num tal ponto de materialização obje-tiva, que não podemos imaginá-los, por mais que nosaprofundemos, fora da perspectiva densa, do globo fecha-do e limitado do palco.

Esse espetáculo nos oferece uma maravilhosa com-posição de imagens cênicas puras, para cuja compreen-são toda uma nova linguagem parece ter sido inventada:os atores com suas roupas compõem verdadeiros hiero-glifos que vivem e se movem. E esses hieroglifos de trêsdimensões são, por sua vez, sobrebordados por um certonúmero de gestos, signos misteriosos que correspondema uma certa realidade fabulosa e obscura que nós, oci-dentais, definitivamente recalcamos.

SOBRE O TEA TRO DE BALI 65

Há algo que participa do espírito de uma operaçãomágica nessa intensa liberação de signos, primeiro reti-dos e depois repentinamente lançados ao ar.

Um fervilhar caótico, cheio de referências, e às vezesestranhamente ordenado, crepita nessa efervescência deritmos pintados, em que a pausa funciona o tempo todo eintervém como um silêncio bem calculado.

Desta idéia de um teatro puro que entre nós é apenasteórica, e à qual ninguém jamais tentou dar a menor reali-dade, o Teatro de Bali nos propõe uma realização estupefa-ciente, no sentido de que ela suprime toda possibilidade derecurso às palavras para elucidar os temas mais abstratos -e inventa uma linguagem de gestos feitos para evoluir noespaço e que não podem ter significado fora dele.

O espaço da cena é utilizado em todas as suas di-mensões e, por assim dizer, em todos os planos possíveis.Pois ao lado de um agudo senso da beleza plástica essesgestos sempre têm por objetivo final a elucidação de umestado ou de um problema do espírito.

Pelo menos, é assim que os vemos.Não se perde nenhum ponto do espaço e, ao mesmo

tempo, nenhuma sugestão possível. E há um sentido comoque filosófico do poder que impede a natureza de, subi-tamente, precipitar-se no caos.

Sente-se no Teatro de Bali um estado anterior à lin-guagem e que pode escolher sua linguagem: música, ges-tos, movimentos, palavras.

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Não há dúvida de que esse aspecto de teatro puro,essa física do gesto absoluto que é idéia e que obriga asconcepções do espírito a passar, para serem percebidas,pelos dédalos e meandros fibrosos da matéria, tudo issonos dá como que uma idéia nova do que pertence pro-priamente ao domínio das formas e da matéria manifes-tada. Aqueles que conseguem dar um sentido místico àsimples forma de uma roupa, que, não contentes em co-locar ao lado do homem seu Duplo, atribuem a cadahomem vestido o duplo de suas roupas; aqueles que atra-vessam essas roupas ilusórias, essas roupas número dois,com um sabre que lhes dá o aspecto de grandes borboletasatingidas em pleno ar, essas pessoas, muito mais do quenós, têm o sentido inato do simbolismo absoluto e mágicoda natureza e nos dão uma lição que nossos técnicos deteatro certamente não serão capazes de aproveitar.

Esse espaço de ar intelectual, esse jogo psíquico, essesilêncio pleno de pensamentos que existe entre os mem-bros de uma frase escrita é traçado, aqui, no ar cênico,entre os membros, o ar e as perspectivas de um certo nú-mero de gritos, cores e movimentos.

Nas realizações do Teatro de Bali, o espírito tem osentimento de que a concepção primeiro se defrontou comos gestos, instalou-se no meio de toda uma fermentaçãode imagens visuais ou sonoras, pensadas como no estadopuro. Em resumo e para ser mais claro, deve ter havidoalgo muito semelhante ao estado musical para essa ence-

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nação em que tudo o que é concepção do espírito é apenasum pretexto, uma virtualidade cujo duplo produziu essaintensa poesia cênica, essa linguagem espacial e colorida.

O jogo perpétuo de espelhos que vai de uma cor a umgesto e de um grito a um movimento nos conduz sem ces-sar através de caminhos abruptos e duros para o espírito,mergulha-nos no estado de incerteza e angústia inefávelque é próprio da poesia.

Desses estranhos jogos de mãos voadoras como in-setos na tarde verde emana uma espécie de horrível obses-são, de inesgotável raciocínio mental, como que de umespírito incessantemente ocupado a se situar no dédalo deseu inconsciente.

Aliás, o que esse teatro nos torna palpáveis e circuns-creve com signos concretos são menos as coisas do sen-timento que as da inteligência.

E é através de caminhos intelectuais que ele nos in-troduz à reconquista dos signos do que é.

Desse ponto de vista é altamente significativo o gestodo dançarino central que sempre toca o mesmo ponto desua cabeça, como se quisesse localizar o lugar e a vida deum certo olho central, qual um ovo intelectual.

Aquilo que é uma alusão colorida a impressões físi-cas da natureza é retomado no plano dos sons e o própriosom nada mais é que a representação nostálgica de outracoisa, de uma espécie de estado mágico em que as sensa-ções tornaram-se tais e tão sutis que podem ser visitadas

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pelo espírito. E mesmo as harmonias imitativas, o ruídoda serpente de guizo, o estalar das carapaças de insetosuma contra a outra evocam a clareira de uma formigantepaisagem prestes a precipitar-se no caos. - E os artistasvestidos com roupas brilhantes e cujos corpos sob as ves-tes parecem envoltos em cueiros! Há algo de umbilical, delarvar em suas evoluções. E é preciso observar ao mesmotempo o aspecto hieroglífico de suas roupas, cujas linhashorizontais ultrapassam o corpo, em todos os sentidos.São como grandes insetos cheios de linhas e de segmen-tos feitos para religá-los a não se sabe que perspectiva danatureza, da qual parecem ser apenas uma geometria des-tacada.

As roupas que delimitam seus deslocamentos abstra-tos quando caminham, e seus estranhos entrecruzamentosde pés!

Cada um de seus movimentos traça uma linha noespaço, completa não se sabe qual figura rigorosa, de umhermetismo bem calculado - e, nesta, um gesto impre-visto da mão põe um ponto.

E as roupas de curvas mais altas do que as nádegas eque as mantêm como que suspensas no ar, como que pre-gadas no fundo do teatro, e que prolongam cada um deseus saltos como um vôo.

Os gritos das entranhas, os olhos que reviram, a abs-tração contínua, os ruídos de galhos, os ruídos de cortare arrastar madeira, tudo isso no espaço imenso dos sonsespalhados e que são vomitados por várias fontes, tudoisso concorre para fazer levantar-se em nosso espírito,para cristalizar como que uma nova concepção, concreta,eu ousaria dizer, do abstrato.

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E deve-se notar que essa abstração, que parte de ummaravilhoso edifício cênico para retornar ao pensamento,quando encontra em vôo impressões do mundo da natu-reza agarra-as sempre no ponto em que dão início a seuagrupamento molecular; isto significa que apenas umgesto ainda nos separa do caos.

A última parte do espetáculo, diante de tudo de imun-do, brutal, infamante, que se tritura em nossos palcos eu-ropeus, é de um adorável anacronismo. Não sei que teatroousaria encerrar assim e como que ao natural as agoniasde uma alma nas garras dos fantasmas do Além.

Eles dançam, e esses metafísicos da desordem natu-ral que nos restituem cada átomo de som, cada percepçãofragmentária como que prestes a retornar a seu princípio,souberam criar entre o movimento e o ruído conexõestão perfeitas que os ruídos de madeira oca, de caixas so-noras, de instrumentos vazios parecem ser executadospor dançarinos de cotovelos vazios, com seus membrosde madeira oca.

De repente nos vemos em plena luta metafísica e olado endurecido do corpo em transe, retesado pelo reflu-xo das forças cósmicas que o assediam, é admiravelmen-te traduzido por essa dança frenética e ao mesmo tempocheia de rigidez e ângulos em que se pode sentir repenti-namente que começa a queda livre do espírito.

Dir-se-ia que são ondas de matéria que curvam comprecipitação suas cristas umas sobre as outras e que açor-

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rem de todos os lados do horizonte para se inserirem nu-ma porção ínfima de frêmito, de transe - e recobrir o va-zio do medo.

Existe um absoluto nessas perspectivas construídas,uma maneira de verdadeiro absoluto físico que apenas osorientais são capazes de sonhar - é nisso, é na altura e naaudácia refletida de seus objetivos, que essas concepçõesopõem-se a nossas concepções européias do teatro, muitomais do que pela estranha perfeição de suas realizações.

Os adeptos da divisão e da compartimentação dosgêneros podem fingir que vêem apenas dançarinos nosmagníficos artistas do Teatro de Bali, dançarinos encar-regados de figurar não se sabe muito bem que Mitos, cujaelevação torna o nível de nosso teatro ocidental modernode uma grosseria e de uma puerilidade inomináveis. A ver-dade é que o Teatro de Bali nos propõe e nos traz monta-dos temas do teatro puro aos quais a realização cênicaconfere um denso equilíbrio, uma gravitação inteiramen-te materializada.

Tudo isso se banha numa intoxicação profunda quenos restitui os próprios elementos do êxtase, e no êxtasereencontramos o fervilhar seco e o roçar mineral dasplantas, dos vestígios, das ruínas de árvores iluminadasnas copas.

Toda a bestialidade, toda a animalidade são reduzidasa seu gesto seco: sons da terra que se racha, geada dasárvores, bocejos dos animais.

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Os pés dos dançarinos, no gesto de afastar as roupas,dissolvem e reviram pensamentos, sensações em estadopuro.

E sempre a confrontação da cabeça, o olho de Ciclo-pe, o olho interior do espírito que a mão direita procura.

Mímica de gestos espirituais que escandem, podam,fixam, afastam e subdividem sentimentos, estados de alma,idéias metafísicas.

Esse teatro de quintessência onde as coisas realizamestranhas meias-voltas antes de voltar à abstração.

Seus gestos caem tão a propósito sobre o ritmo demadeira, de caixas ocas, escandem-no e o captam no arcom tal segurança e, ao que parece, em tais arestas, queparece que é o próprio vazio de seus membros ocos quea música escande.

O olho estratificado, lunar também das mulheres.O olho de sonho que parece nos absorver e diante do

qual nós mesmos parecemos fantasmas.

Satisfação integral dos gestos de dança, dos pés gi-ratórios que misturam estados de alma, das mãozinhasvoadoras, das palmadas secas e precisas.

Assistimos a uma alquimia mental que de um estadode espírito faz um gesto, o gesto seco, despojado, linear,

72 OTEA TRO ESEU DUPLO

que todos os nossos atos poderiam ter se tendessem parao absoluto.

Às vezes esse maneirismo, esse hieratismo excessivo,com seu alfabeto rolante, com seus gritos de pedras quese fendem, com seus ruídos de galhos, seus ruídos de cortee rolar de madeira, compõe no ar, no espaço, tanto visualquanto sonoro, uma espécie de sussurro material e anima-do. E num instante dá-se a identificação mágica: SABE-MOS QUE SOMOS NÓS QUE ESTAMOS FALANDO.

Quem, após a formidável batalha entre Adeorjanacom o Dragão, ousará dizer que o teatro inteiro não estáem cena, ou seja, fora das situações e das palavras?

As situações dramáticas e psicológicas passarampara a própria mímica do combate, que é função do jogoatlético e místico dos corpos - e da utilização, ouso dizer,ondulatória da cena, cuja enorme espiral se revela planoa plano.

Os guerreiros entram na floresta mental com ribom-bos de medo; um imenso arrepio, uma volumosa rotaçãocomo que magnética apodera-se deles, em quem senti-mos que se precipitam meteoros animais ou minerais.

É mais do que uma tempestade física, é um tritura-mento do espírito significado pelo tremor esparso de seusmembros e de seus olhos que se reviram. A freqüênciasonora de sua cabeça eriçada é, por vezes, atroz; e a mú-sica por trás deles oscila e ao mesmo tempo alimenta nãose sabe muito bem que espaço onde pedregulhos físicosacabam de rolar.

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E atrás do Guerreiro, eriçado pela formidável tem-pestade cósmica, aparece o Duplo que se empertiga, en-tregue à puerilidade de seus sarcasmos de escolar e que,erguido pelo contragolpe da ruidosa tormenta, passa in-consciente em meio a encantamentos dos quais nada en-tendeu.

TEATRO ORIENTALE TEATRO OCIDENTAL

A revelação do Teatro de Bali foi nos fornecer doteatro uma idéia física e não verbal, na qual o teatro estácontido nos limites de tudo o que pode acontecer numacena, independentemente do texto escrito, ao passo que oteatro tal como o concebemos no Ocidente está ligado aotexto e por ele limitado. Para nós, a Palavra é tudo no tea-tro e fora dela não há saída; o teatro é um ramo da litera-tura, uma espécie de variedade sonora da linguagem, e,se admitimos uma diferença entre o texto falado em cenae o texto lido pelos olhos, se encerramos o teatro noslimites daquilo que aparece entre as réplicas, não conse-guimos separar o teatro da idéia do texto realizado.

Essa idéia da supremacia da palavra no teatro estátão enraizada em nós, e o teatro nos aparece de tal modocomo o simples reflexo material do texto, que tudo o queno teatro ultrapassa o texto, que não está contido em seuslimites e estritamente condicionado por ele parece-nosfazer parte do domínio da encenação considerada comoalguma coisa inferior em relação ao texto.

76 O TEATRO E SEU DUPLO

Considerando-se essa sujeição do teatro à palavra, épossível perguntar se o teatro por acaso não possuiria sualinguagem própria, se seria absolutamente quimérico con-siderá-lo como uma arte independente e autônoma, assimcomo a música, a pintura, a dança, etc, etc.

Em todo caso, constata-se que essa linguagem, se exis-te, confunde-se necessariamente com a encenação consi-derada:

1?) Por um lado, como a materialização visual eplástica da palavra.

2?) Como a linguagem de tudo o que se pode dizer esignificar numa cena independentemente da palavra, detudo o que encontra sua expressão no espaço, ou quepode ser atingido ou desagregado por ele.

Quanto à linguagem da encenação considerada comoa linguagem teatral pura, trata-se de saber se ela é capazde atingir o mesmo objeto interior que a palavra; se, doponto de vista do espírito e teatralmente, ela pode preten-der a mesma eficácia intelectual que a linguagem articula-da. Em outras palavras, é possível perguntar se ela pode,não precisar pensamentos, mas fazer pensar, se pode levaro espírito a assumir atitudes profundas e eficazes de seupróprio ponto de vista.

Numa palavra, colocar a questão da eficácia intelec-tual da expressão pelas formas objetivas, da eficácia in-telectual de uma linguagem que utilizaria apenas as for-mas, ou o som, ou o gesto, é colocar a questão da eficáciaintelectual da arte.

Se chegamos ao ponto de atribuir à arte apenas umvalor de recreação e repouso, mantendo-a na utilização pu-ramente formal das formas, na harmonia de certas rela-

TEA TRO ORIENTAL E TEA TRO OCIDENTAL 77

ções exteriores, isso em nada diminui seu valor expressivoprofundo; mas a enfermidade espiritual do Ocidente, queé o lugar por excelência onde se pôde confundir a artecom o estetismo, está em pensar que poderia existir umapintura que só servisse para pintar, uma dança que seriaapenas plástica, como se desejássemos cortar as formasda arte, romper seus vínculos com todas as atitudes místi-cas que podem assumir ao se confrontarem com o absoluto.

Compreende-se portanto que o teatro, na própria me-dida em que permanece encerrado em sua linguagem,em que fica em correlação consigo mesmo, deve rompercom a atualidade; que seu objetivo não é resolver confli-tos sociais ou psicológicos e servir de campo de batalhapara paixões morais, mas expressar objetivamente verda-des secretas, trazer à luz do dia através de gestos ativos aparte de verdade refugiada sob as formas em seus encon-tros com o Devir.

Fazer isso, ligar o teatro à possibilidade da expres-são pelas formas, e por tudo o que for gestos, ruídos,cores, plasticidades, etc, é devolvê-lo à sua destinaçãoprimitiva, é recolocá-lo em seu aspecto religioso e meta-físico, é reconciliá-lo com o universo.

Mas, dirão muitos, as palavras têm faculdades meta-físicas, não é proibido conceber a palavra como o gesto noplano universal, e é nesse plano aliás que ela adquire suamaior eficácia, como força de dissociação das aparênciasmateriais, de todos os estados em que o espírito se esta-bilizou e teria tendência a repousar. É fácil responder queesse modo metafísico de considerar a palavra não é aque-le em que o teatro ocidental a emprega, que ele a usa nãocomo uma força ativa e que parte da destruição das apa-

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rências para chegar até o espírito mas, pelo contrário,como um grau terminado do pensamento que se perde aose exteriorizar.

A palavra no teatro ocidental sempre serve apenaspara expressar conflitos psicológicos particulares ao ho-mem e à sua situação na atualidade cotidiana da vida.Seus conflitos são nitidamente justificáveis pelo discursoarticulado, e, quer eles permaneçam no domínio psicoló-gico ou saiam dele para voltar ao domínio social, o dramacontinuará sendo sempre de interesse moral pela manei-ra como seus conflitos atacarão e desagregarão as perso-nalidades. E será sempre um domínio em que as resoluçõesverbais da palavra conservarão sua melhor parte. Masesses conflitos morais, por sua própria natureza, absolu-tamente não precisam da cena para se resolver. Fazer alinguagem articulada dominar a cena ou a expressão pe-las palavras predominar sobre a expressão objetiva dosgestos e de tudo o que atinge o espírito através dos sentidosno espaço é voltar as costas às necessidades físicas dacena e insurgir-se contra suas possibilidades.

O domínio do teatro, é preciso que se diga, não é psi-cológico mas plástico e físico. E não se trata de saber sea linguagem física do teatro é capaz de chegar às mesmasresoluções psicológicas que a linguagem das palavras, seconsegue expressar sentimentos e paixões tão bem quantoas palavras, mas de saber se não existe no domínio do pen-samento e da inteligência atitudes que as palavras sejamincapazes de tomar e que os gestos e tudo o que participada linguagem no espaço atingem com mais precisão doque elas.

TEA TRO ORIENTAL E TEA TRO OCIDENTAL 79

Antes de dar um exemplo das relações do mundo fí-sico com estados profundos do pensamento, que nos sejapermitido citar a nós mesmos:

"Todo verdadeiro sentimento é na verdade intraduzí-vel. Expressá-lo é traí-lo. Mas traduzi-lo é dissimulá-lo.A expressão verdadeira esconde o que ela manifesta. Opõeo espírito ao vazio real da natureza, criando por reaçãouma espécie de cheia no pensamento. Ou, se preferirem,em relação à manifestação-ilusão da natureza ela cria umvazio no pensamento. Todo sentimento forte provoca emnós a idéia do vazio. E a linguagem clara que impedeesse vazio impede também que a poesia apareça no pen-samento. É por isso que uma imagem, uma alegoria, umafigura que mascare o que gostaria de revelar têm maissignificação para o espírito do que as clarezas proporcio-nadas pelas análises da palavra.

Assim, a verdadeira beleza nunca nos impressionadiretamente. E um pôr-do-sol é belo por tudo aquilo quenos faz perder."

Os pesadelos da pintura flamenga nos impressionampela justaposição, ao lado do mundo verdadeiro, daquiloque é apenas uma caricatura desse mundo; oferecem-noslarvas que poderíamos sonhar. Originam-se nos estadossemi-sonhados que provocam os gestos falhos e os en-graçados lapsos da linguagem. E ao lado de uma criançaesquecida erguem uma harpa que pula; ao lado de umembrião humano nadando em torrentes subterrâneas, mos-tram, sob uma temível fortaleza, o avanço de um verda-deiro exército. Ao lado da incerteza sonhada, a marcha dacerteza, e, para além da luz amarelada de uma caverna, orelâmpago alaranjado de um grande sol de outono pres-tes a se retirar.

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Não se trata de suprimir a palavra do teatro, mas defazê-la mudar sua destinação, e sobretudo de reduzir seulugar, de considerá-la como algo que não um meio deconduzir caracteres humanos a seus fins exteriores, umavez que, no teatro, a questão é sempre o modo pelo qualos sentimentos e as paixões se opõem uns aos outros e dehomem para homem, na vida.

Ora, mudar a destinação da palavra no teatro é ser-vir-se dela num sentido concreto e espacial, na medidaem que ela se combina com tudo o que o teatro contémde espacial e de significação no domínio concreto; é ma-nipulá-la como um objeto sólido e que abala coisas, pri-meiro no ar e depois num domínio infinitamente mais mis-terioso e secreto mas cuja extensão ele mesmo admite, enão é muito difícil identificar esse domínio secreto e ex-tenso com o domínio da anarquia formal, por um lado,mas também, por outro, com a criação formal contínua.

É assim que essa identificação do objeto do teatrocom todas as possibilidades da manifestação formal eextensa faz surgir a idéia de uma certa poesia no espaço,que se confunde com a bruxaria.

No teatro oriental de tendências metafísicas, opostoao teatro ocidental de tendências psicológicas, as formasapoderam-se de seu sentido e de suas significações emtodos os planos possíveis; ou, se quisermos, suas conse-qüências vibratórias não são tiradas num único plano,mas em todos os planos do espírito ao mesmo tempo.

E é por essa multiplicidade de aspectos sob os quaisas podemos considerar que elas assumem seu poder deabalar e de encantar, que são uma contínua excitação parao espírito. É por não se deter nos aspectos exteriores das

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coisas num único plano que o teatro oriental não se limitaao simples obstáculo e ao encontro sólido desses aspec-tos com os sentidos; é por não parar de considerar o graude possibilidade mental de que se originaram que eleparticipa da poesia intensa da natureza e conserva suasrelações mágicas com todos os graus objetivos do mag-netismo universal.

É sob esse ângulo de utilização mágica e de bruxa-ria que se deve considerar a encenação, não como o re-flexo de um texto escrito e de toda a projeção de duplosfísicos que provém do texto escrito, mas como a projeçãoardente de tudo o que pode ser extraído, como conseqüên-cias objetivas, de um gesto, uma palavra, um som, umamúsica e da combinação entre eles. Essa projeção ativasó pode ser feita em cena e suas conseqüências encontra-das diante da cena e na cena; e o autor que usa exclusiva-mente palavras escritas não tem o que fazer e deve cedero lugar a especialistas dessa bruxaria objetiva e animada.

ACABAR COM AS OBRAS-PRIMAS

Uma das razões da atmosfera asfixiante, na qualvivemos sem escapatória possível e sem remédio - e pelaqual somos todos um pouco culpados, mesmo os maisrevolucionários dentre nós -, é o respeito pelo que é es-crito, formulado ou pintado e que tomou forma, como setoda expressão já não estivesse exaurida e não tivessechegado ao ponto em que é preciso que as coisas arreben-tem para se começar tudo de novo.

É preciso acabar com a idéia das obras-primas reser-vadas a uma assim chamada elite e que a massa não en-tende; e admitir que não existe, no espírito, uma zonareservada, como para as ligações sexuais clandestinas.

As obras-primas do passado são boas para o passa-do, não para nós. Temos o direito de dizer o que foi ditoe mesmo o que não foi dito de um modo que seja nosso,imediato, direto, que responda aos modos de sentir atuaise que todo o mundo compreenda.

É idiotice censurar a massa por não ter o senso dosublime, quando se confunde o sublime com uma de suas

84 OTEA TRO E SEU DUPLO

manifestações formais que são, aliás, e sempre, manifes-tações mortas. E se, por exemplo, a massa de hoje já nãocompreende Édipo rei, ouso dizer que a culpa é de Édiporei e não da massa.

Em Édipo rei há o tema do Incesto e a idéia de quea natureza zomba da moral; e que em algum lugar há for-ças errantes com as quais seria bom tomar cuidado; quese dê a essas forças o nome de destino ou outro qualquer.

Além disso, há a presença de uma epidemia de pesteque é uma encarnação física dessas forças. Mas tudo issosob disfarces e numa linguagem que perderam qualquercontato com o ritmo epiléptico e grosseiro deste tempo.Sófocles talvez fale alto, mas com modos que já não sãodesta época. Ele fala fino demais para esta época, e pare-ce que ele fala de lado.

No entanto, a massa que as catástrofes de estradasde ferro fazem tremer, que conhece os terremotos, a peste,a revolução, a guerra; que é sensível às agonias desorde-nadas do amor, consegue alcançar todas essas elevadasnoções e só pede para tomar consciência delas, mas coma condição de que se saiba falar sua própria linguagem ede que a noção dessas coisas não lhe chegue através dedisfarces e palavras adulteradas, pertencentes a épocasmortas que nunca mais poderão ser retomadas.

A massa, hoje como antigamente, é ávida de misté-rio; ela pede apenas para tomar consciência das leis se-gundo as quais o destino se manifesta e, talvez, adivinharo segredo de suas aparições.

Deixemos aos peões a crítica de textos, aos estetas acrítica de formas e reconheçamos que o que já foi ditonão está mais por dizer; que uma expressão não vale duas

ACABAR COMAS OBRAS-PRIMAS 85

vezes, não vive duas vezes; que toda palavra pronuncia-da morre e só age no momento em que é pronunciada,que uma forma usada não serve mais e só convida a quese procure outra, e que o teatro é o único lugar do mundoonde um gesto feito não se faz duas vezes.

Se a massa não vai às obras-primas literárias é por-que essas obras-primas são literárias, isto é, fixadas; efixadas em formas que já não respondem às necessida-des do tempo.

Longe de acusar a massa e o público, devemos acusaro anteparo formal que interpomos entre nós e a massa, eessa forma de idolatria nova, essa idolatria das obras-pri-mas fixadas, que é um dos aspectos do conformismoburguês.

Esse conformismo que nos faz confundir o sublime,as idéias, as coisas com as formas que tomaram atravésdo tempo e em nós mesmos - em nossas mentalidades deesnobes, de preciosos e estetas que o público já não com-preende.

Nisso tudo, será inútil acusar o mau gosto do públi-co que se deleita com insanidades, enquanto não se mos-trar ao público um espetáculo válido; e desafio a que meseja mostrado aqui um espetáculo válido, e válido nosentido supremo do teatro, depois dos últimos grandesmelodramas românticos, isto é, há cem anos.

O público que toma o falso por verdadeiro tem osenso do verdadeiro e sempre reage diante do verdadeiroquando colocado à sua frente. Não é porém em cena quese deve procurá-lo hoje, mas na rua; e, ofereça-se à massadas ruas uma ocasião para mostrar sua dignidade huma-na, que ela a mostrará.

86 O TEATRO E SEU DUPLO

Se a massa se desacostumou de ir ao teatro; se aca-bamos todos por considerar o teatro como uma arte infe-rior, um modo de distração vulgar, e por utilizá-lo comoexutório para nossos maus instintos, foi por tanto nosdizerem que isso era teatro, ou seja, mentira e ilusão. Foipor nos habituarem desde há quatrocentos anos, desde aRenascença, a um teatro puramente descritivo e narrati-vo, que narra a psicologia.

Foi porque se empenharam em fazer viver, em cena,seres plausíveis mas desligados, com o espetáculo de umlado e o público do outro - foi por se mostrar à massaapenas o espelho daquilo que ela é.

O próprio Shakespeare é responsável por esta aber-ração e degradação, por essa idéia desinteressada do tea-tro que quer que uma representação teatral deixe o públi-co intacto, sem que uma imagem lançada provoque qual-quer abalo no organismo, imprimindo nele uma marcaque não mais se apagará.

Se em Shakespeare o homem às vezes se preocupacom aquilo que o ultrapassa, trata-se sempre, definitiva-mente, das conseqüências dessa preocupação no homem,isto é, a psicologia.

A psicologia que se empenha em reduzir o desco-nhecido ao conhecido, ou seja, ao cotidiano e ao comum,é a causa dessa diminuição e desse desperdício assusta-dor de energia, que me parece ter chegado ao último grau.E me parece que tanto o teatro como nós mesmos deve-mos acabar com a psicologia.

Creio, aliás, que a esse respeito estamos todos deacordo e que não é preciso descer até o repugnante teatromoderno e francês para condenar o teatro psicológico.

ACABAR COMAS OBRAS-PRIMAS 87

Histórias de dinheiro, de angústias por causa de dinhei-ro, de arrivismo social, de agonias amorosas em que o al-truísmo nunca interfere, de sexualidades polvilhadas de umerotismo sem mistérios não são do domínio do teatro quan-do são psicologia. Essas angústias, esse estupro, esses ciosdiante dos quais somos apenas voyeurs que se deleitam,acabam em revolução e em azedume: é preciso percebê-lo.

O mais grave, porém, não é isso.Se Shakespeare e seus imitadores nos insinuaram atra-

vés dos tempos uma idéia da arte pela arte, com a arte deum lado e a vida do outro, podíamos ficar tranqüilos coma idéia ineficaz e preguiçosa enquanto a vida lá fora semantinha. Mas agora vemos muito bem os sinais indica-dores de que o que nos mantinha vivos já não se mantém, deque estamos todos loucos, desesperados e doentes. E eunos convido a reagir.

Esta idéia de arte desligada, de poesia-encantamentoque só existe para encantar o lazer, é uma idéia de deca-dência e demonstra claramente nossa força de castração.

Nossa admiração literária por Rimbaud, Jarry, Lau-tréamont e alguns outros, que levou dois homens ao sui-cídio mas que para os outros se reduz a papinhos de bar,faz parte da idéia da poesia literária, da arte desligada, daatividade espiritual neutra, que nada faz e nada produz; econstato que foi no momento em que a poesia individual,que só compromete aquele que a faz e no momento emque a faz, grassava da maneira mais abusiva que o teatrofoi mais desprezado por poetas que nunca tiveram o sensonem da ação direta e em massa, nem da eficácia, nem doperigo.

É preciso acabar com a superstição dos textos e dapoesia escrita. A poesia escrita vale uma única vez e,

88 OTEA TRO E SEU DUPLO

depois, que seja destruída. Que os poetas mortos cedamlugar aos outros. E poderíamos mesmo assim ver que énossa veneração diante do que já foi feito, por mais beloe válido que seja, que nos petrifica, que nos estabiliza enos impede de tomar contato com a força que está porbaixo, quer ela seja chamada energia pensante, forçavital, determinismo das trocas, menstruação da lua ou oque bem se entender. Sob a poesia dos textos existe apoesia tout court, sem forma e sem texto. E, tal como seesgota a eficácia das máscaras que servem às operaçõesde magia de certos povos - e então essas máscaras só ser-vem para serem jogadas nos museus -, do mesmo modose esgota a eficácia poética de um texto, e a poesia e aeficácia do teatro é a que se esgota mais lentamente, umavez que admite a ação do que se gesticula e se pronunciae que nunca se reproduz uma segunda vez.

Trata-se de saber o que queremos. Se estamos pron-tos para a guerra, a peste, a fome e o massacre, nem pre-cisamos dizer nada, basta continuar. Continuar nos com-portando como esnobes e a nos locomover em massapara ver este ou aquele cantor, este ou aquele espetáculoadmirável e que não ultrapassa o domínio da arte (e osbales russos mesmo no momento de seu esplendor nuncaultrapassaram o domínio da arte), esta ou aquela exposi-ção de pintura de cavalete em que explodem aqui e ali al-gumas formas impressionantes mas casuais e sem umaconsciência verídica das forças que poderiam acionar.

É preciso parar com esse empirismo, esse acaso, esseindividualismo e essa anarquia.

Basta de poemas individuais e que servem muitomais a quem os faz do que a quem os lê.

ACABAR COMAS OBRAS-PRIMAS 89

Basta, de uma vez por todas, de manifestações de artefechada, egoísta e pessoal.

Nossa anarquia e nossa desordem espiritual são fun-ção da anarquia do resto - ou melhor, é o resto que é funçãodessa anarquia.

Não sou dos que acreditam que a civilização devamudar para que o teatro mude; mas creio que o teatro uti-lizado num sentido superior e o mais difícil possível tema força de influir sobre o aspecto e a formação das coi-sas: e a aproximação em cena de duas manifestações pas-sionais, de dois núcleos vivos, de dois magnetismos ner-vosos é algo de tão integral, tão verdadeiro, tão determi-nante mesmo quanto, na vida, a aproximação entre duasepidermes num estupro sem amanhã.

É por isso que proponho um teatro da crueldade. Comesta mania de rebaixar tudo o que hoje pertence a nós to-dos, "crueldade", quando pronunciei esta palavra, foi en-tendida por todo o mundo como sendo "sangue". Mas"teatro da crueldade" quer dizer teatro difícil e cruel an-tes de mais nada para mim mesmo. E, no plano da repre-sentação, não se trata da crueldade que podemos exerceruns contra os outros despedaçando mutuamente nossoscorpos, serrando nossas anatomias pessoais ou, como cer-tos imperadores assírios, enviando-nos pelo correio sacosde orelhas humanas, de narizes ou narinas bem cortadas,mas trata-se da crueldade muito mais terrível e necessá-ria que as coisas podem exercer contra nós. Não somoslivres. E o céu ainda pode desabar sobre nossas cabeças.E o teatro é feito para, antes de mais nada, mostrar-nos isso.

Ou seremos capazes de retornar, através dos meiosmodernos e atuais, à idéia superior da poesia e da poesia

90 O TEA TRO E SEU DUPLO

pelo teatro que está por trás dos Mitos contados pelosgrandes trágicos da antigüidade, e capazes mais uma vezde suportar uma idéia religiosa do teatro, isto é, sem me-diação, sem contemplação inútil, sem sonhos esparsos, dechegar a uma tomada de consciência e também de possede certas forças dominantes, de certas noções que tudodirigem; e, como as noções, quando efetivas, trazem con-sigo suas energias, capazes de reencontrar em nós essasenergias que afinal criam a ordem e fazem aumentar osíndices da vida, ou só nos resta nos abandonarmos semreação e imediatamente, e reconhecer que só servimosmesmo para a desordem, a fome, o sangue, a guerra e asepidemias.

Ou trazemos todas as artes de volta a uma atitude ea uma necessidade centrais, encontrando uma analogiaentre um gesto feito na pintura ou no teatro e um gestofeito pela lava no desastre de um vulcão, ou devemosparar de pintar, de vociferar, de escrever e de fazer seja láo que for.

No teatro, proponho a volta à idéia elementar mági-ca, retomada pela psicanálise moderna, que consiste, paraconseguir a cura de um doente, em fazê-lo tomar a atitu-de exterior do estado ao qual o queremos conduzir.

Proponho a renúncia ao empirismo das imagens queo inconsciente carrega ao acaso e que também lançamosao acaso chamando-as de imagens poéticas, portanto her-méticas, como se essa espécie de transe que a poesia sus-cita não repercutisse em toda a sensibilidade, em todosos nervos, e como se a poesia fosse uma força vaga e quenão varia seus movimentos.

ACABAR COM AS OBRAS-PRIMAS 91

Proponho a volta, através do teatro, a uma idéia doconhecimento físico das imagens e dos meios de provo-car transes, assim como a medicina chinesa conhece, emtoda a extensão da anatomia humana, os pontos que devemser tocados e que regem até as funções mais sutis.

Para quem se esqueceu do poder comunicativo e domimetismo mágico de um gesto, o teatro pode reensiná-lo, porque um gesto traz consigo sua força e porque dequalquer modo há no teatro seres humanos para manifes-tar a força do gesto feito.

Fazer arte é privar um gesto de sua repercussão noorganismo, e essa repercussão, se o gesto é feito nas con-dições e com a força necessárias, convida o organismo e,através dele, toda a individualidade a tomar atitudes con-formes ao gesto feito.

O teatro é o único lugar do mundo e o último meiode conjunto que nos resta para alcançar diretamente oorganismo e, nos momentos de neurose e baixa sensuali-dade como este em que estamos mergulhados, para ata-car essa baixa sensualidade através dos meios físicos aosquais ela não resistirá.

Se a música age sobre as serpentes, não é pelas no-ções espirituais que ela lhes traz, mas porque as serpen-tes são compridas, porque se enrolam longamente sobrea terra, porque seu corpo toca a terra em sua quase tota-lidade; e as vibrações musicais que se comunicam à terrao atingem como uma sutil e demorada passagem; poisbem, proponho agir para com espectadores como paracom as serpentes que se encantam e fazer com que retor-nem, através do organismo, até as noções mais sutis.

92 O TEA TRO E SEU DUPLO

Primeiro através de meios grosseiros e que, com otempo, tornam-se mais sutis. Esses meios grosseiros ime-diatos prenderão sua atenção de início.

É por isso que no "teatro da crueldade" o espectadorfica no meio, enquanto o espetáculo o envolve.

Nesse espetáculo a sonorização é constante: os sons,os ruídos, os gritos são buscados primeiro por sua quali-dade vibratória e, a seguir, pelo que representam.

Nesses meios que se sutilizam, a luz, por sua vez,intervém. A luz que não é feita apenas para colorir ouiluminar e que traz consigo sua força, sua influência,suas sugestões. E a luz de uma caverna verde não colocao organismo nas mesmas disposições sensuais que a luzde um dia de ventania.

Depois do som e da luz vem a ação, e o dinamismoda ação: é aqui que o teatro, longe de copiar a vida, põe-se em comunicação, quando pode, com as forças puras.E, quer as aceitemos ou neguemos, há um modo de falarque chama de forças o que faz nascer no inconscienteimagens enérgicas e, no exterior, o crime gratuito.

Uma ação violenta e densa é uma similitude do liris-mo: invoca imagens sobrenaturais, um sangue de imagens,e um jorro sangrento de imagens tanto na cabeça do poetaquanto na do espectador.

Sejam quais forem os conflitos que assombram amente de uma época, desafio um espectador ao qual cenasviolentas tenham passado seu sangue, que tenha sentidoem si a passagem de uma ação superior, que tenha visto derelance em fatos extraordinários os movimentos extraordi-nários e essenciais de seu pensamento - a violência e o san-gue colocados a serviço da violência do pensamento -, de-

A CABAR COM AS OBRAS-PRIMAS 93

safio esse espectador a entregar-se, exteriormente, às idéiasde guerra, revolta e assassinato temerário.

Dita desta maneira, essa idéia parece apressada e pue-ril. E muitos dirão que exemplo chama exemplo, que aatitude da cura convida à cura e a do assassinato, ao as-sassinato. Tudo depende do modo e da pureza com que sefazem as coisas. Há um risco. Mas que ninguém esqueçaque um gesto teatral é violento, porém desinteressado; eque o teatro ensina exatamente a inutilidade da ação que,uma vez feita, não está mais por ser feita, e a utilidadesuperior do estado inutilizado pela ação mas que, volta-do, produz a sublimação.

Proponho assim um teatro em que imagens físicasviolentas triturem e hipnotizem a sensibilidade do espec-tador, envolvida no teatro como num turbilhão de forçassuperiores.

Um teatro que, abandonando a psicologia, narre oextraordinário, ponha em cena conflitos naturais, forçasnaturais e sutis, e que se apresente antes de mais nadacomo uma excepcional força de derivação. Um teatroque produza transes, como as danças dos Derviches eAissauas, e que se dirija ao organismo com meios preci-sos e com os mesmos meios que as músicas curativas decertos povos, que admiramos em discos mas que somosincapazes de fazer nascer entre nós.

Há um risco, mas acho que nas circunstâncias atuaisvale a pena corrê-lo. Não creio que consigamos reavivaro estado de coisas em que vivemos e nem creio que valhaa pena aferrar-se a isso; mas proponho alguma coisa parasair do marasmo, em vez de continuar a reclamar dessemarasmo e do tédio, da inércia e da imbecilidade de tudo.

O TEATRO E A CRUELDADE

Perdeu-se uma idéia do teatro. E, na medida em queo teatro se limita a nos fazer penetrar na intimidade dealguns fantoches e em que transforma o público em voyeur,compreende-se que a elite se afaste dele e que o grossoda massa procure no cinema, no music-hall ou no circosatisfações violentas, cujo teor não a decepciona.

No ponto de desgaste a que chegou nossa sensibili-dade, certamente precisamos antes de mais nada de umteatro que nos desperte: nervos e coração.

Os danos do teatro psicológico oriundo de Racinenos desacostumaram da ação violenta e imediata que oteatro deve ter. O cinema, por sua vez, que nos assassinacom reflexos, que, filtrado pela máquina, não conseguemais alcançar nossa sensibilidade, mantém-nos há dezanos num entorpecimento ineficaz, no qual parecem so-çobrar todas as nossas faculdades.

No período angustiante e catastrófico em que vive-mos, sentimos a necessidade urgente de um teatro que os

96 O TEA TRO E SEU DUPLO

acontecimentos não superem, cuja ressonância em nós sejaprofunda, domine a instabilidade dos tempos.

O longo hábito dos espetáculos de distração nos fezesquecer a idéia de um teatro grave que, abalando todasas nossas representações, insufle-nos o magnetismo ar-dente das imagens e acabe por agir sobre nós a exemplode uma terapia da alma cuja passagem não se deixará maisesquecer.

Tudo o que age é uma crueldade. É a partir dessaidéia de ação levada ao extremo que o teatro deve se re-novar.

Penetrado pela idéia de que a massa pensa primeirocom os sentidos, e que é absurdo, como no teatro psico-lógico comum, dirigir-se primeiro ao entendimento daspessoas, o Teatro da Crueldade propõe-se a recorrer aoespetáculo de massas; propõe-se a procurar na agitação demassas importantes, mas lançadas umas contra as outrase convulsionadas, um pouco da poesia que se encontranas festas e nas multidões nos dias, hoje bem raros, emque o povo sai às ruas.

Tudo o que há no amor, no crime, na guerra ou naloucura nos deve ser devolvido pelo teatro, se ele preten-de reencontrar sua necessidade.

O amor cotidiano, a ambição pessoal, as agitaçõesdiárias só têm valor enquanto reação a essa espécie deterrível lirismo que existe nos Mitos aos quais coletivida-des imensas aderiram.

É por isso que, em torno de personagens famosas,crimes atrozes, afetos sobre-humanos, tentaremos concen-trar um espetáculo que, sem recorrer às imagens expira-das dos velhos Mitos, se revele capaz de extrair as forçasque se agitam neles.

O TEATRO EA CRUELDADE 97

Em suma, acreditamos que há, no que se chama poe-sia, forças vivas, e que a imagem de um crime apresentadanas condições teatrais adequadas funciona para o espíri-to como algo infinitamente mais temível do que o própriocrime, realizado.

Queremos fazer do teatro uma realidade na qual sepossa acreditar, e que contenha para o coração e os sen-tidos esta espécie de picada concreta que comporta todasensação verdadeira. Assim como nossos sonhos agemsobre nós e a realidade age sobre nossos sonhos, pensa-mos que podemos identificar as imagens da poesia comum sonho, que será eficaz na medida em que será lança-do com a violência necessária. E o público acreditará nossonhos do teatro sob a condição de que ele os considerede fato como sonhos e não como um decalque da realida-de; sob a condição de que eles lhe permitam liberar aliberdade mágica do sonho, que ele só pode reconhecerenquanto marcada pelo terror e pela crueldade.

Daí o apelo à crueldade e ao terror, mas num planovasto, e cuja amplidão sonda nossa vitalidade integral, noscoloca diante de todas as nossas possibilidades.

É para apanhar a sensibilidade do espectador por to-dos os lados que preconizamos um espetáculo giratório que,em vez de fazer da cena e da sala dois mundos fechados,sem comunicação possível, difunda seus lampejos visuaise sonoros sobre toda a massa dos espectadores.

Além disso, saindo do domínio dos sentimentos ana-lisáveis e passionais, pensamos fazer com que o lirismodo ator sirva para manifestar forças externas - e com issofazer a natureza voltar ao teatro, tal como queremos rea-lizá-lo.

98 OTEA TRO E SEU DUPLO

Por mais vasto que seja esse programa, ele não ultra-passa o próprio teatro, que nos parece identificar-se, emsuma, com as forças da antiga magia.

Praticamente, queremos ressuscitar uma idéia do es-petáculo total, em que o teatro saiba retomar ao cinema,ao espetáculo de variedades, ao circo e à própria vidaaquilo que sempre lhe pertenceu. Esta separação entre oteatro de análise e o mundo plástico parece-nos uma estu-pidez. Não se separa o corpo do espírito, nem os sentidosda inteligência, sobretudo num domínio em que a fadigaincessantemente renovada dos órgãos precisa ser brusca-mente sacudida para reanimar nosso entendimento.

Portanto, por um lado, a massa e a extensão de umespetáculo que se dirige a todo o organismo; por outro,uma mobilização intensiva de objetos, gestos, signos,utilizados dentro de um espírito novo. A participação re-duzida do entendimento leva a uma compressão enérgicado texto; a participação ativa da emoção poética obscuraobriga a signos concretos. As palavras pouco falam aoespírito; a extensão e os objetos falam; as imagens novasfalam, mesmo que feitas com palavras. Mas o espaçoatroador de imagens, repleto de sons, também fala, se sou-bermos de vez em quando arrumar extensões suficientesde espaço mobiliadas de silêncio e imobilidade.

A partir desse princípio, pensamos fazer um espetá-culo em que esses meios de ação direta sejam utilizadosem sua totalidade; portanto, um espetáculo que não receieir tão longe quanto necessário na exploração de nossasensibilidade nervosa, com ritmos, sons, palavras, resso-nâncias e trinados, cuja qualidade e surpreendentes mesclasfazem parte de uma técnica que não deve ser divulgada.

O TEATRO EA CRUELDADE 99

Quanto ao resto e falando claramente, as imagens decertas pinturas de Grünewald ou de Hieronymus Boschdizem bem o que pode ser um espetáculo em que, comono cérebro de um santo qualquer, as coisas da naturezaexterior surgem como se fossem tentações.

É aí, nesse espetáculo de uma tentação em que avida tem tudo a perder, e o espírito tudo a ganhar, que oteatro deve reencontrar seu verdadeiro significado.

Demos um programa, aliás, que deve permitir quecertos meios de encenação pura, encontrados no própriolugar do ato, organizem-se em torno de temas históricosou cósmicos, conhecidos por todos.

E insistimos no fato de que o primeiro espetáculo doTeatro da Crueldade se fará sobre preocupações de mas-sas, bem mais urgentes e inquietantes do que as de qual-quer indivíduo.

Trata-se agora de saber se em Paris, antes dos cata-clismos que se anunciam, será possível encontrar os meiosfinanceiros e outros para essa realização, que permitamque um teatro como esse viva - e este se sustentará dequalquer modo, porque é o futuro. Ou se será preciso, deimediato, um pouco de sangue verdadeiro para que essacrueldade se manifeste.

Maio de 1933

O TEATRO DA CRUELDADE(Primeiro Manifesto)

Não é possível continuar a prostituir a idéia de tea-tro, que só é válido se tiver uma ligação mágica, atroz,com a realidade e o perigo.

Assim colocada, a questão do teatro deve despertar aatenção geral, ficando subentendido que o teatro, por seulado físico, e por exigir a expressão no espaço, de fato aúnica real, permite que os meios mágicos da arte e da pa-lavra se exerçam organicamente e em sua totalidade comoexorcismos renovados. De tudo isso conclui-se que não se-rão devolvidos ao teatro seus poderes específicos de açãoantes de lhe ser devolvida sua linguagem.

Isso significa que, em vez de voltar a textos conside-rados como definitivos e sagrados, importa antes de tudoromper a sujeição do teatro ao texto e reencontrar a noçãode uma espécie de linguagem única, a meio caminho entreo gesto e o pensamento.

Essa linguagem só pode ser definida pelas possibili-dades da expressão dinâmica e no espaço, em oposiçãoàs possibilidades da expressão pela palavra dialogada. E

102 O TEA TRO E SEU DUPLO

aquilo que o teatro ainda pode extrair da palavra são suaspossibilidades de expansão fora das palavras, de desen-volvimento no espaço, de ação dissociadora e vibratóriasobre a sensibilidade. É aqui que intervém as entonações,a pronúncia particular de uma palavra. É aqui que inter-vém, fora da linguagem auditiva dos sons, a linguagemvisual dos objetos, movimentos, atitudes, gestos, mas coma condição de que se prolonguem seu sentido, sua fisio-nomia, sua reunião até chegar aos signos, fazendo dessessignos uma espécie de alfabeto. Tendo tomado consciên-cia dessa linguagem no espaço, linguagem de sons, degritos, de luzes, de onomatopéias, o teatro deve organizá-la,fazendo com as personagens e os objetos verdadeiros hie-róglifos, servindo-se do simbolismo deles e de suas cor-respondências com relação a todos os órgãos e em todosos planos.

Trata-se portanto, para o teatro, de criar uma metafí-sica da palavra, do gesto, da expressão, com vistas a tirá-lode sua estagnação psicológica e humana. Mas nada dissoadiantará se não houver por trás desse esforço uma espé-cie de tentação metafísica real, um apelo a certas idéiasincomuns, cujo destino é exatamente o de não poderemser limitadas, nem mesmo formalmente esboçadas. Essasidéias, que se referem à Criação, ao Devir, ao Caos, e quesão todas de ordem cósmica, fornecem uma primeira no-ção de um domínio do qual o teatro se desacostumou to-talmente. Elas podem criar uma espécie de equação apai-xonante entre o Homem, a Sociedade, a Natureza e osObjetos.

A questão não é fazer aparecer em cena, diretamen-te, idéias metafísicas, mas criar espécies de tentações, de

O TE A TRO DA CR UELDADE 103

atmosferas propícias em torno dessas idéias. E o humorcom sua anarquia, a poesia com seu simbolismo e suasimagens fornecem como que uma primeira noção dosmeios para canalizar a tentação dessas idéias.

É preciso falar agora do lado unicamente materialdessa linguagem. Isto é, de todas as maneiras e de todosos meios que ela tem para agir sobre a sensibilidade.

Seria inútil dizer que essa linguagem apela para amúsica, a dança, a pantomima ou a mímica. É evidenteque ela utiliza movimentos, harmonias, ritmos, mas ape-nas enquanto podem contribuir para uma espécie de ex-pressão central, sem proveito para uma arte particular. Oque também não significa que essa linguagem não se servede fatos comuns, paixões comuns, mas apenas como deum trampolim, assim como o HUMOR-DESTRUIÇÃO,através do riso, pode servir para conciliá-la com os hábi-tos da razão.

Mas com um sentido totalmente oriental da expres-são, essa linguagem objetiva e concreta do teatro servepara cercar, encerrar órgãos. Ela circula na sensibilidade.Abandonando as utilizações ocidentais da palavra, ela fazdas palavras encantações. Ela impele a voz. Utiliza vibra-ções e qualidades de voz. Faz ritmos baterem loucamente.Martela sons. Visa exaltar, exacerbar, encantar, deter asensibilidade. Destaca o sentido de um novo lirismo dogesto, que, por sua precipitação ou sua amplitude no ar,acaba por superar o lirismo das palavras. Rompe enfim asujeição intelectual à linguagem, dando o sentido de umaintelectualidade nova e mais profunda, que se oculta sobos gestos e sob os signos elevados à dignidade de exor-cismos particulares.

104 O TEA TRO E SEU DUPLO

Todo esse magnetismo e toda essa poesia e essesmeios de encantamentos diretos nada seriam se não colo-cassem o espírito fisicamente no caminho de alguma coisa,se o verdadeiro teatro não pudesse nos dar o sentido deuma criação da qual possuímos apenas uma face e cujarealização completa está em outros planos.

E pouco importa que esses outros planos sejam real-mente conquistados pelo espírito, isto é, pela inteligên-cia; isso é diminuí-los e não interessa, não tem sentido.Importa é que, através de meios seguros, a sensibilidadeseja colocada num estado de percepção mais aprofundadae mais apurada, é esse o objetivo da magia e dos ritos, dosquais o teatro é apenas um reflexo.

TÉCNICA

Trata-se portanto de fazer do teatro, no sentido pró-prio da palavra, uma função; algo tão localizado e precisoquanto a circulação do sangue nas artérias, ou o desen-volvimento, aparentemente caótico, das imagens do so-nho no cérebro, e isso através de um encadeamento eficaz,uma verdadeira escravização da atenção.

O teatro só poderá voltar a ser ele mesmo, isto é,voltar a constituir um meio de ilusão verdadeira, se for-necer ao espectador verdadeiros precipitados de sonhos,em que seu gosto pelo crime, suas obsessões eróticas,sua selvageria, suas quimeras, seu sentido utópico da vidae das coisas, seu canibalismo mesmo se expandam, numplano não suposto e ilusório, mas interior.

Em outras palavras, o teatro deve procurar, por todosos meios, recolocar em questão não apenas todos os aspec-

O TE A TRO DA CR UELDADE 105

tos do mundo objetivo e descritivo externo, mas tambémdo mundo interno, ou seja, do homem, considerado meta-fisicamente. Só assim, acreditamos, poderemos voltar a fa-lar, no teatro, dos direitos da imaginação. Nem o Humornem a Poesia nem a Imaginação significam qualquer coisase, por uma destruição anárquica, produtora de uma prodi-giosa profusão de formas que serão todo o espetáculo, nãoconseguem questionar organicamente o homem, suas idéiassobre a realidade e seu lugar poético na realidade.

Mas considerar o teatro como uma função psicoló-gica ou moral de segunda mão e acreditar que os pró-prios sonhos não passam de uma função de substituiçãoé diminuir o alcance poético profundo tanto dos sonhosquanto do teatro. Se o teatro, assim como os sonhos, ésanguinário e desumano, é, muito mais do que isso, pormanifestar e ancorar de modo inesquecível em nós a idéiade um conflito eterno e de um espasmo em que a vida écortada a cada minuto, em que tudo na criação se levan-ta e se exerce contra nosso estado de seres constituídos, épor perpetuar de um modo concreto e atual as idéias me-tafísicas de algumas Fábulas cuja própria atrocidade eenergia bastam para desmontar a origem e o teor em prin-cípios essenciais.

Sendo assim, vê-se que, por sua proximidade dosprincípios que lhe transferem poeticamente sua energia,essa linguagem nua do teatro, linguagem não virtual masreal, deve permitir, pela utilização do magnetismo nervo-so do homem, a transgressão dos limites comuns da artee da palavra para realizar ativamente, ou seja, magica-mente, em termos verdadeiros, uma espécie de criação to-tal, em que não reste ao homem senão retomar seu lugarentre os sonhos e os acontecimentos.

106 O TEA TRO E SEU DUPLO

OS TEMAS

Não se trata de assassinar o público com preocupa-ções cósmicas transcendentes. O fato de existirem cha-ves profundas do pensamento e da ação para se ler todoo espetáculo não diz respeito ao espectador em geral, quenão se interessa por isso. Mas de todo modo é precisoque essas chaves existam e isso nos diz respeito.

** *

O ESPETÁCULO:

Todo espetáculo conterá um elemento físico e obje-tivo, sensível a todos. Gritos, lamentações, aparições, sur-presas, golpes teatrais de todo tipo, beleza mágica dasroupas feitas segundo certos modelos rituais, deslumbra-mento da luz, beleza encantatória das vozes, encanto daharmonia, raras notas musicais, cor dos objetos, ritmofísico dos movimentos cujo crescendo e decrescendo acom-panharão a pulsação de movimentos familiares a todos,aparições concretas de objetos novos e surpreendentes,máscaras, bonecos de vários metros, mudanças bruscas daluz, ação física da luz que desperta o calor e o frio, etc.

A ENCENAÇÃO:

É em torno da encenação, considerada não como osimples grau de refração de um texto sobre a cena, mas

O TE A TRO DA CR UELDADE 107

como o ponto de partida de toda criação teatral, que seráconstituída a linguagem-tipo do teatro. E é na utilizaçãoe no manejo dessa linguagem que se dissolverá a velhadualidade entre autor e diretor, substituídos por uma es-pécie de Criador único a quem caberá a dupla responsa-bilidade pelo espetáculo e pela ação.

A LINGUAGEM DA CENA:

Não se trata de suprimir o discurso articulado, masde dar às palavras mais ou menos a importância queelas têm nos sonhos.

Quanto ao resto, é preciso encontrar novos meios deanotar essa linguagem, quer esses meios sejam aparen-tados com os da transcrição musical, quer se faça uso deuma espécie de linguagem cifrada.

No que diz respeito aos objetos comuns, ou mesmoao corpo humano, elevados à dignidade de signos, é evi-dente que se pode buscar inspiração nos caracteres hie-roglíficos, não apenas para anotar esses signos de umamaneira legível e que permita sua reprodução conformea vontade, mas também para compor em cena símbolosprecisos e legíveis diretamente.

Por outro lado, essa linguagem cifrada e essa trans-crição musical serão preciosas como meio de transcre-ver as vozes.

Uma vez que faz parte da base dessa linguagem umautilização particular das entonações, essas entonações de-vem constituir uma espécie de equilíbrio harmônico, dedeformação secundária da palavra, que deve poder serreproduzida à vontade.

108 OTEA TRO E SEU DUPLO

Do mesmo modo, as dez mil e uma expressões dorosto consideradas em estado de máscaras poderão serrotuladas e catalogadas, com o objetivo de participarem di-retamente e simbolicamente dessa linguagem concreta dacena; e isto além de sua utilização psicológica particular.

Além disso, os gestos simbólicos, as máscaras, as ati-tudes, os movimentos particulares ou de conjunto, cujasinúmeras significações constituem uma parte importanteda linguagem concreta do teatro, gestos evocadores, ati-tudes emotivas ou arbitrárias, marcação desvairada deritmos e sons se duplicarão, serão multiplicados porespécies de gestos e atitudes reflexos, constituídos peloacúmulo de todos os gestos impulsivos, de todas as atitu-des falhas, de todos os lapsos do espírito e da língua atra-vés dos quais se manifesta aquilo que se poderia chamarde impotências da palavra, e existe nisso uma prodigio-sa riqueza de expressão, à qual não deixaremos de re-correr ocasionalmente.

Além disso, existe uma idéia concreta da música emque os sons intervém como personagens, em que harmo-nias são cortadas ao meio e se perdem nas intervençõesprecisas das palavras.

Entre um e outro meio de expressão criam-se cor-respondências e níveis; e até mesmo a luz poderá ter umsentido intelectual determinado.

OS INSTRUMENTOS MUSICAIS:

Serão usados em sua condição de objetos e como sefizessem parte do cenário.

O TEATRO DA CRUELDADE 109

Além disso, a necessidade de agir diretamente epro-fundamente sobre a sensibilidade pelos órgãos convida,do ponto de vista sonoro, a que se procurem qualidadese vibrações de sons absolutamente incomuns, qualidadesque os instrumentos musicais atuais não possuem, e quelevam ao uso de instrumentos antigos e esquecidos, ou acriar novos instrumentos. Elas também levam a que seprocurem, além da música, instrumentos e aparelhos que,baseados em fusões especiais ou em novas combinaçõesde metais, possam atingir um novo diapasão da oitava,produzir sons ou ruídos insuportáveis, lancinantes.

A LUZ - AS ILUMINAÇÕES:

Os aparelhos luminosos atualmente em uso nos tea-tros já não podem ser suficientes. Entrando em jogo aação particular da luz sobre o espírito, devem-se buscarefeitos de vibração luminosa, novos modos de difundir ailuminação em ondas, ou por camadas, ou como uma fu-zilaria de flechas incendiárias. A gama colorida dos apa-relhos atualmente em uso deve ser revista de ponta aponta. Afim de produzir qualidades de tons particulares,deve-se reintroduzir na luz um elemento de sutileza, den-sidade, opacidade, com o objetivo de produzir calor, frio,raiva, medo, etc.

A ROUPA:

Com respeito à roupa, e sem pensar que possa haveruma roupa uniforme para o teatro, a mesma para todas

110 O TEA TRO E SEU DUPLO

as peças, deve-se procurar evitar o mais possível a roupamoderna, não por um gosto fetichista e supersticioso peloantigo, mas porque surge como absolutamente evidenteque certas roupas milenares, de uso ritual, mesmo tendosido de época num certo momento, conservam uma belezae uma aparência reveladoras, em virtude da proximida-de que mantêm com as tradições que lhes deram origem.

A CENA - A SALA:

Suprimimos o palco e a sala, substituídos por umaespécie de lugar único, sem divisões nem barreiras dequalquer tipo, e que se tornará o próprio teatro da ação.Será restabelecida uma comunicação direta entre o es-pectador e o espetáculo, entre ator e espectador, pelo fatode o espectador, colocado no meio da ação, estar envol-vido e marcado por ela. Esse envolvimento provém daprópria configuração da sala.

Assim, abandonando as salas de teatro existentes,usaremos um galpão ou um celeiro qualquer, que recons-truiremos segundo os procedimentos que resultaram naarquitetura de certas igrejas e certos lugares sagrados,de certos templos do Alto Tibete.

No interior dessa construção reinarão proporçõesparticulares em altura e profundidade. A sala será fecha-da por quatro paredes, sem qualquer espécie de orna-mento, e o público ficará sentado no meio da sala, naparte de baixo, em cadeiras móveis que lhe permitirão se-guir o espetáculo que se desenvolverá à sua volta. Comefeito, a ausência de palco, no sentido comum da pala-

O TEA TRO DA CR UELDADE 111

vra, convidará a ação a desenvolver-se nos quatro can-tos da sala. Lugares especiais serão reservados para osatores e para a ação, nos quatro pontos cardeais da sala.As cenas serão representadas diante de fundos de pare-des pintadas a cal e destinadas a absorver a luz. Alémdisso, no alto, correrão galerias por toda a sala, comoem certos quadros de Primitivos. Essas galerias permiti-rão aos atores, toda vez que a ação exigir, caminhar deum ponto a outro da sala, e também que a ação se desen-role em todos os níveis e em todos os sentidos da pers-pectiva em altura e profundidade. Um grito emitido numcanto poderá se transmitir de boca em boca com ampli-ficações e modulações sucessivas até o outro canto dasala. A ação romperá seu círculo, estenderá sua trajetó-ria de nível em nível, de um ponto a outro, paroxismos nas-cerão de repente, acendendo-se como incêndios em pontosdiferentes; e o caráter de ilusão verdadeira do espetáculo,assim como a influência direta e imediata da ação sobreo espectador, não serão palavras vazias. E que esta difu-são da ação por um espaço imenso obrigará a iluminaçãode uma cena e as iluminações diversas de uma represen-tação que deve abranger tanto o público quanto as per-sonagens — e a várias ações simultâneas, a várias fasesde uma ação idêntica em que as personagens agarradasumas às outras como num enxame suportarão todos osassaltos das situações, e os assaltos exteriores dos ele-mentos e da tempestade, corresponderão meios físicosde iluminação, de trovão ou vento, cujo contragolpe o es-pectador sentirá.

No entanto, será reservado um lugar central que, semservir propriamente de palco, deverá permitir que o tododa ação se reúna e se organize sempre que necessário.

112 OTEA TRO E SEU DUPLO

OS OBJETOS - AS MÁSCARAS - OS ACESSÓRIOS:

Bonecos, máscaras enormes, objetos de proporçõessingulares aparecerão na mesma condição das imagensverbais, insistirão no lado concreto de toda imagem e detoda expressão - com a contrapartida de que as coisasque geralmente exigem uma figuração objetiva serão es-camoteadas ou dissimuladas.

O CENÁRIO:

Não haverá cenário. Para essa função bastarão per-sonagens-hieróglifos, roupas rituais, bonecos de dez me-tros de altura representando a barba do Rei Lear na tem-pestade, instrumentos musicais da altura de um homem,objetos com formas e destinação desconhecidas.

A ATUALIDADE:

Mas, muitos dirão, um teatro tão longe da vida, dosfatos, das preocupações atuais... Da atualidade e dos acon-tecimentos, sim! Das preocupações, no que têm de profun-do e que é o apanágio de alguns, não! No Zohar, a históriade Rabi-Simeão, que arde como fogo, é atual como o fogo.

AS OBRAS:

Não representaremos peças escritas mas, em tornode temas, fatos ou obras comuns, tentaremos uma ence-

O TEATRO DA CRUELDADE 113

nação direta. A própria natureza e disposição da salaexigem o espetáculo e não há tema, por mais amplo queseja, que nos seja interdito.

ESPETÁCULO:

Há uma idéia do espetáculo integral que devemosfazer renascer. O problema é fazer o espaço falar, alimen-tá-lo e mobiliá-lo; como minas introduzidas numa mura-lha de rochas planas que de repente fizessem nascer gêi-seres e ramos de flores.

O ATOR:

O ator é ao mesmo tempo um elemento de primeiraimportância, pois é da eficácia de sua interpretação quedepende o sucesso do espetáculo, e uma espécie de ele-mento passivo e neutro, pois toda iniciativa pessoal lhe érigorosamente recusada. Este é, aliás, um domínio em quenão há regras precisas; e, entre o ator a quem se pedeuma simples qualidade de soluço e aquele que deve pro-nunciar um discurso com suas qualidades de persuasãopessoais, há toda a distância que separa um homem deum instrumento.

A INTERPRETAÇÃO:

O espetáculo será cifrado do começo ao fim, comouma linguagem. Com isso não haverá movimentos perdi-dos, todos os movimentos obedecerão a um ritmo; e, cada

114 OTEA TRO E SEU DUPLO

personagem sendo tipificada ao extremo, sua gesticula-ção, sua fisionomia, suas roupas surgirão como outrostantos traços de luz.

O CINEMA:

A visualização grosseira daquilo que existe, o teatro,através da poesia, opõe as imagens daquilo que não exis-te. Aliás, do ponto de vista da ação não se pode compa-rar uma imagem de cinema que, por mais poética que seja,é limitada pela película, com uma imagem de teatro queobedece a todas as exigências da vida.

A CRUELDADE:

Sem um elemento de crueldade na base de todo espe-táculo, o teatro não é possível. No estado de degeneres-cência em que nos encontramos, é através da pele quefaremos a metafísica entrar nos espíritos.

O PUBLICO:

Primeiro, é preciso que haja esse teatro.

O PROGRAMA:

Encenaremos, sem levar o texto em consideração:

O TE A TRO DA CR UELDADE 115

1?) Uma adaptação de uma obra da época de Shakes-peare, totalmente adaptada ao atual estado de perturba-ção espiritual, quer se trate de uma peça apócrifa deShakespeare, como Arden of Feversham, ou de qualqueroutra peça da mesma época.

2?) Uma peça de extrema liberdade poética de Léon-Paul Fargue.

3o) Algo do Zohar: A história de Rabi-Simeão, que tema força e a violência sempre presentes de um incêndio.

4?) A história de Barba Azul reconstituída segundoos arquivos e com uma nova idéia do erotismo e da cruel-dade.

5o) A Tomada de Jerusalém, segundo a Bíblia e a His-tória; com a cor vermelho-sangue que daí decorre e como sentimento de abandono e pânico dos espíritos visívelaté na luz; e, por outro lado, com as disputas metafísicasdos profetas, com a incrível agitação intelectual que elascriam e cujo contragolpe recai fisicamente sobre o Rei, oTemplo, o Populacho e os Acontecimentos.

6?) Um conto do marquês de Sade, em que o erotismoserá transposto, alegoricamente figurado e vestido, no sen-tido de uma exteriorização violenta da crueldade, e deuma dissimulação do resto.

7?) Um ou vários melodramas românticos em que ainverossimilhança se tornará um elemento ativo e con-creto de poesia.

8?) O Woyzeck de Buchner, por espírito de reaçãocontra nossos princípios, e a título de exemplo do que sepode extrair cenicamente de um texto preciso.

9o) Obras do teatro elisabetano despojadas de seustextos e das quais só serão mantidos os atavios de época,as situações, as personagens e a ação.

CARTAS SOBRE A CRUELDADE

Primeira carta

Paris, 13 de setembro de 1932

AJ.P.

Caro amigo,

Não lhe posso dar sobre meu Manifesto esclarecimen-tos que correriam o risco de deflorar sua ênfase. Tudo oque posso fazer é comentar provisoriamente o título Teatroda Crueldade e tentar justificar sua escolha.

Não se trata, nessa Crueldade, nem de sadismo, nemde sangue, pelo menos de modo exclusivo.

Não cultivo sistematicamente o horror. A palavracrueldade deve ser considerada num sentido amplo e nãono sentido material e rapace que geralmente lhe é atribuí-do. E com isso reivindico o direito de romper o sentido

118 OTEA TRO E SEU DUPLO

usual da linguagem, de romper de vez a armadura, arreben-tar a golilha, voltar enfim às origens etimológicas da lín-gua que, através dos conceitos abstratos, evocam sempreuma noção concreta.

Pode-se muito bem imaginar uma crueldade pura, semdilaceramento carnal. E, aliás, filosoficamente falando,o que é a crueldade? Do ponto de vista do espírito, a cruel-dade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis, de-terminação irreversível, absoluta.

O determinismo filosófico mais comum é, do ponto devista de nossa existência, uma das imagens da crueldade.

Atribui-se erroneamente à palavra crueldade um sen-tido de rigor sangrento, de busca gratuita e desinteressa-da do mal físico. O Rás etíope que arrasta os príncipesvencidos e lhes impõe a escravidão não o faz por um amordesesperado ao sangue. De fato, crueldade não é sinôni-mo de sangue derramado, de carne martirizada, de inimi-go crucificado. Essa identificação da crueldade com ossuplícios é um aspecto muito pequeno da questão. Nacrueldade que se exerce há uma espécie de determinismosuperior ao qual está submetido o próprio carrasco supli-ciador, e o qual, se for o caso, deve estar determinado asuportar. A crueldade é antes de mais nada lúcida, é umaespécie de direção rígida, submissão à necessidade. Nãohá crueldade sem consciência, sem uma espécie de cons-ciência aplicada. É a consciência que dá ao exercício detodo ato da vida sua cor de sangue, sua nuance cruel, poisestá claro que a vida é sempre a morte de alguém.

CAR TAS SOBRE A CR UELDADE 119

Segunda carta

Paris, 14 de novembro de 1932

A IP

Caro amigo,

A crueldade não foi acrescentada a meu pensamen-to, ela sempre viveu nele; mas eu precisava tomar cons-ciência dela. Uso a palavra crueldade no sentido de ape-tite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacá-vel, no sentido gnóstico de turbilhão de vida que devoraas trevas, no sentido da dor fora de cuja necessidade ine-lutável a vida não consegue se manter; o bem é desejado,é o resultado de um ato, o mal é permanente. Quandocria, o deus oculto obedece à necessidade cruel da cria-ção que lhe é imposta a ele mesmo, e não pode deixar decriar, portanto não pode deixar de admitir no centro doturbilhão voluntário do bem um núcleo de mal cada vezmais reduzido, cada vez mais corroído. E o teatro, nosentido de criação contínua, de ação mágica inteira, obe-dece a essa necessidade. Uma peça em que não houvesseessa vontade, esse apetite de vida cego, capaz de passarpor cima de tudo, visível em cada gesto e em cada ato, edo lado transcendente da ação, seria uma peça inútil e fra-cassada.

120 OTEA TRO E SEU DUPLO

Terceira carta

Paris, 16 de novembro de 1932

A M.R. de R.

Caro amigo,

Confesso que não compreendo nem admito as obje-ções que foram feitas contra meu título. Parece-me que acriação e a própria vida só se definem por uma espéciede rigor, portanto de crueldade básica que leva as coisasao seu fim inelutável, seja a que preço for.

O esforço é uma crueldade, a existência pelo esfor-ço é uma crueldade. Saindo de seu repouso e se disten-dendo até o ser, Brahma sofre, talvez de um sofrimentoque fornece harmônicos de alegria mas que, na últimaextremidade da curva, só se expressa por uma terrível tri-turação.

No fogo de vida, no apetite de vida, no impulso irra-cional para a vida há uma espécie de maldade inicial: odesejo de Eros é uma crueldade, pois passa por cima dascontingências; a morte é crueldade, a ressurreição é cruel-dade, a transfiguração é crueldade, pois em todos os sen-tidos e num mundo circular e fechado não há lugar paraa verdadeira morte, pois uma ascensão é um dilacera-mento, pois o espaço fechado é alimentado de vidas e cadavida mais forte passa através das outras, portanto as de-vora num massacre que é uma transfiguração e um bem.No mundo manifesto, e metafisicamente falando, o malé a lei permanente, e o que é bem é um esforço e já umacrueldade acrescida a outra.

CARTAS SOBRE A CRUELDADE 121

Não compreender isso é não compreender as idéiasmetafísicas. E não me venham dizer depois que meu títu-lo é limitado. É com crueldade que se coagulam as coisas,que se formam os planos do criado. O bem está semprena face externa, mas a face interna é um mal. Mal queserá reduzido com o tempo, mas no instante supremo emque tudo o que existiu estiver prestes a retornar ao caos.

CARTAS SOBRE A LINGUAGEM

Primeira carta

Paris, 15 de setembro de 1931

AM.B.C.

Senhor,

O senhor afirma num artigo sobre a encenação e oteatro "que ao se considerar a encenação como uma arteautônoma corre-se o risco de cometer os piores erros",

e que:"a apresentação, o lado espetacular de uma obra dra-

mática não devem agir isoladamente e determinar-se demodo totalmente independente".

E diz ainda que essas são verdades primordiais.O senhor tem mil vezes razão quando considera a en-

cenação apenas como uma arte menor e subordinada, àqual aqueles mesmos que a utilizam com o máximo de

124 O TEA TRO E SEU DUPLO

independência negam qualquer originalidade básica. En-quanto a encenação continuar sendo, mesmo no espíritodos diretores mais livres, um simples meio de apresenta-ção, um modo acessório de revelar obras, uma espécie deintervalo espetacular sem significado próprio, ela só terávalor na medida em que conseguir se dissimular por trásdas obras a que pretende servir. E isso durará enquanto ointeresse maior de uma obra representada residir em seutexto, enquanto no teatro, arte de representação, a litera-tura estiver acima da representação impropriamente cha-mada de espetáculo, com tudo o que essa denominaçãotem de pejorativo, de acessório, de efêmero e de exterior.

Isto, ao que me parece, é uma verdade primordial,mais do que qualquer outra coisa: o teatro, arte indepen-dente e autônoma, para ressuscitar ou simplesmente paraviver, deve marcar bem o que o distingue do texto, dapalavra pura, da literatura e de todos os outros meios es-critos e fixos.

Pode-se muito bem continuar a conceber um teatrobaseado na preponderância do texto, e de um texto cadavez mais verbal, difuso e entediante, ao qual a estética dacena se submeteria.

Mas essa concepção, que consiste em fazer persona-gens se sentarem numa certa quantidade de cadeiras oupoltronas enfileiradas e contarem-se mutuamente algu-mas histórias, por mais maravilhosas que sejam, talvez nãoseja a negação absoluta do teatro, que de modo algumprecisa do movimento para ser o que deve ser, mas seriaa sua subversão.

O fato de o teatro ter-se tornado algo essencialmen-te psicológico, alquimia intelectual de sentimentos, e de

CARTAS SOBRE A LINGUAGEM 125

que o máximo da arte em matéria dramática tenha acaba-do por consistir num certo ideal de silêncio e imobilida-de, nada mais é do que a perversão, em cena, da idéia deconcentração.

Mas essa concentração do jogo utilizada entre tantosmeios de expressão, pelos japoneses, por exemplo, valeapenas como um meio entre outros. E fazer disso umobjetivo em cena é abster-se de utilizar a cena, como al-guém que dispusesse das pirâmides para nelas alojar ocadáver de um faraó e que, sob o pretexto de que o cadáverdo faraó cabe num nicho, se contentasse com o nicho,arrebentando as pirâmides.

Ele estaria arrebentando ao mesmo tempo todo osistema filosófico e mágico do qual o nicho é apenas oponto de partida e o cadáver, a condição.

Por outro lado, o diretor que cuida do cenário emdetrimento do texto está errado, menos errado talvez doque o crítico que incrimina sua preocupação exclusivacom a encenação.

É que, cuidando da encenação, que numa peça de tea-tro é a parte verdadeira e especificamente teatral do es-petáculo, o diretor permanece na linha verdadeira do tea-tro, que é a realização. Mas uns e outros estão jogandocom palavras; pois, se o termo encenação acabou assu-mindo com o uso um sentido depreciativo, isso se deve ànossa concepção européia do teatro que coloca a lingua-gem articulada à frente de todos os outros meios de re-presentação.

Não está provado, de modo algum, que a linguagemdas palavras é a melhor possível. E parece que na cena,que é antes de mais nada um espaço a ser ocupado e um

126 OTEA TRO E SEU DUPLO

lugar onde alguma coisa acontece, a linguagem das pala-vras deve dar lugar à linguagem por signos, cujo aspectoobjetivo é o que mais nos atinge de imediato.

Considerado sob esse ângulo, o trabalho objetivo daencenação reassume uma espécie de dignidade intelec-tual através do desvanecimento das palavras por trás dosgestos e pelo fato de a parte plástica e estética do teatroabandonar seu caráter de interlúdio decorativo para tor-nar-se, no sentido próprio da palavra, uma linguagemdiretamente comunicativa.

Em outras palavras, se é verdade que numa peça feitapara ser falada o diretor não deve se perder em efeitos decenários mais ou menos sabiamente iluminados, em jogosde grupos, em movimentos furtivos, todos efeitos epi-dérmicos por assim dizer e que só sobrecarregam o texto,fazendo isso ele está muito mais perto da realidade con-creta do teatro do que o autor que poderia restringir-se aolivro, sem recorrer à cena cujas necessidades espaciaisparecem escapar-lhe.

Pode-se objetar lembrando o alto valor dramático detodos os grandes trágicos nos quais é o lado literário, ouem todo caso o lado falado, que parece dominar.

A isso responderei que, se hoje nos mostramos tãoincapazes de dar de Esquilo, Sófocles, Shakespeare umaidéia digna deles, é porque, ao que parece, perdemos osentido da física de seu teatro. É porque o aspecto direta-mente humano e atuante de uma dicção, de uma gesticula-ção, de todo um ritmo cênico, nos escapa. Aspecto esseque deveria ter tanto ou mais importância do que a admi-rável dissecação falada da psicologia de seus heróis.

É através desse aspecto, através dessa gesticulaçãoprecisa que se modifica com as épocas e que atualiza os

CARTAS SOBRE A LINGUAGEM 127

sentimentos, que se pode reencontrar a profunda huma-nidade de seu teatro.

Mas, mesmo que fosse assim e que essa física exis-tisse realmente, eu ainda afirmaria que nenhum dessesgrandes trágicos é o próprio teatro, que é uma questão dematerialização cênica e que vive apenas de materializa-ção. Digam, se quiserem, que o teatro é uma arte inferior- o que deve ser demonstrado! -, mas o teatro reside numcerto modo de mobiliar e animar a atmosfera da cena, poruma conflagração, num determinado ponto, de sentimen-tos, de sensações humanas, criadores de situações sus-pensas mas expressas em gestos concretos.

E, mais do que isso, esses gestos concretos devemser de uma eficácia bastante grande para levar ao esque-cimento até da necessidade da linguagem falada. Se alinguagem falada existe, ela deve ser apenas um meio deretomada, uma parada do espaço agitado; e o cimento dosgestos deve, através de sua eficácia humana, atingir o va-lor de verdadeira abstração.

Em suma, o teatro deve tornar-se uma espécie dedemonstração experimental da identidade profunda entreo concreto e o abstrato.

É que ao lado da cultura pelas palavras há a culturapelos gestos. Há no mundo outras linguagens além denossa linguagem ocidental que optou pelo despojamento,pela secura das idéias e na qual as idéias nos são apresen-tadas em estado inerte, sem comover, de passagem, todoum sistema de analogias naturais como nas linguagensorientais.

É justo que o teatro continue sendo o lugar de passa-gem mais eficaz e mais ativo das imensas comoções ana-

128 OTEA TRO E SEU DUPLO

lógicas em que se detêm as idéias em pleno vôo e numponto qualquer de sua transmutação no abstrato.

Não pode haver teatro completo que não leve emconta essas transformações cartilaginosas de idéias; que,a sentimentos conhecidos e já prontos, não acrescente aexpressão de estados de espírito pertencentes ao domínioda semiconsciência, e que as sugestões dos gestos expres-sarão sempre com mais felicidade do que as determinaçõesprecisas e localizadas das palavras.

Parece enfim que a mais elevada idéia de teatro é aque nos reconcilia filosoficamente com o Devir, que nossugere através de todos os tipos de situações objetivas aidéia furtiva da passagem e da transmutação das idéiasem coisas, muito mais que a da transformação e do cho-que dos sentimentos nas palavras.

Parece ainda, e é de uma vontade assim que surgiu oteatro, que ele só deve fazer o homem e seus apetites in-tervirem na medida e sob o ângulo em que magnetica-mente ele se encontra com seu destino. Não para subme-ter-se a esse destino, mas para enfrentá-lo.

Segunda carta

Paris, 28 de setembro de 1932

A IP

Caro amigo,

Não creio que, tendo lido meu Manifesto, você pos-sa perseverar em sua objeção, a não ser que não o tenha

CARTAS SOBRE A LINGUAGEM 129

lido ou o tenha lido mal. Meus espetáculos não terãonada a ver com as improvisações de Copeau. Por mais quemergulhem no concreto, no exterior, que tomem pé nanatureza aberta e não nas câmaras fechadas do cérebro,nem por isso se entregarão ao capricho da inspiração in-culta e irrefletida do ator; sobretudo do ator moderno que,fora do texto, mergulha e não sabe mais nada. Não entre-garei a esse acaso a sorte de meus espetáculos e do tea-tro. Não.

Eis o que na verdade acontecerá. Trata-se de nada me-nos do que mudar o ponto de partida da criação artística ede subverter as leis habituais do teatro. Trata-se de substi-tuir a linguagem articulada por uma linguagem de naturezadiferente, cujas possibilidades expressivas eqüivalerão à lin-guagem das palavras, mas cuja fonte será buscada num pontomais recôndito e mais recuado do pensamento.

A gramática dessa nova linguagem ainda está por serencontrada. O gesto é sua matéria e sua cabeça; e, se qui-serem, seu alfa e seu ômega. Ele parte da NECESSIDADEda palavra mais do que da palavra já formada. Mas, en-contrando na palavra um beco sem saída, ele volta ao gestode modo espontâneo. De passagem ele roça algumas dasleis da expressão material humana. Mergulha na necessi-dade. Refaz poeticamente o trajeto que levou à criação dalinguagem. Mas com uma consciência multiplicada dosmundos revolvidos pela linguagem da palavra e que elefaz reviver em todos os seus aspectos. Ele traz novamen-te à luz as relações incluídas e fixadas nas estratificaçõesda sílaba humana e que esta, ao se fechar sobre elas, ma-tou. Todas as operações pelas quais a palavra passou afim de significar o Acendedor de incêndios de que o

130 O TEA TROESEU DUPLO

Fogo Pai nos protege como que com um escudo e que setorna aqui, sob a forma de Júpiter, a contração latina doZeus-Pater grego, todas essas operações através de gritos,onomatopéias, sinais, atitudes e modulações nervosas,lentas, abundantes e apaixonadas, plano a plano, termo atermo, ele as refaz. Tenho por princípio que as palavrasnão pretendem dizer tudo e que por natureza e por causade seu caráter determinado, fixado de uma vez para sem-pre, elas detêm e paralisam o pensamento em vez de per-mitir e favorecer seu desenvolvimento. E por desenvolvi-mento entendo verdadeiras qualidades concretas, extensas,estando nós num mundo concreto e extenso. Esta lingua-gem visa, portanto, encerrar e utilizar a extensão, isto é,o espaço, e, utilizando-o, fazê-lo falar; pego os objetos,as coisas da extensão como as imagens, as palavras, quereúno e faço responderem-se uma à outra segundo as leisdo simbolismo e das analogias vivas. Leis eternas que sãoas de toda poesia e de toda linguagem viável; e, entre outrascoisas, as dos ideogramas da China e dos velhos hierógli-fos egípcios. Portanto, longe de restringir as possibilidadesdo teatro e da linguagem, sob o pretexto de que não en-cenarei peças escritas, amplio a linguagem da cena, mul-tiplico suas possibilidades.

Acrescento à linguagem falada uma outra linguageme tento tornar mágica sua antiga eficácia, sua eficáciasedutora, integrante da linguagem da palavra cujas mis-teriosas possibilidades esquecemos. Quando digo que nãoencenarei peças escritas, quero dizer que não encenareipeças baseadas na escrita e na palavra, que haverá nosespetáculos que montarei uma parte física preponderante,que não poderia ser fixada e escrita na linguagem habi-

CARTAS SOBRE A LINGUAGEM 131

tual das palavras; e que mesmo a parte falada e escrita oserá num sentido novo.

O teatro, ao contrário do que se pratica aqui - ouseja, na Europa, ou melhor, no Ocidente -, não se basearámais no diálogo, e o próprio diálogo, o pouco que sobrardele, não será redigido, fixado a priori, mas em cena;será feito em cena, criado em cena, em correlação com aoutra linguagem - e com as necessidades -, das atitudes,dos signos, dos movimentos e dos objetos. Mas todasessas tentativas produzindo-se sobre a matéria, onde aPalavra surgirá como uma necessidade, como o resultadode uma série de compressões, choques, atritos cênicos,evoluções de todo tipo (com isso o teatro voltará a seruma operação autêntica viva, conservará essa espécie depalpitação emotiva sem a qual a arte é gratuita), todasessas tentativas, essas buscas, esses choques resultarãonuma obra, numa composição inscrita, fixada em seusmenores detalhes, e anotada com novos meios de notação.A composição, a criação, em vez de se fazer no cérebrode um autor, se farão na própria natureza, no espaço real,e o resultado definitivo será tão rigoroso e determinadoquanto o de qualquer obra escrita, acrescido de uma imen-sa riqueza objetiva.

P. S. - O que pertence à encenação deve ser retoma-do pelo autor, e o que pertence ao autor deve igualmenteser devolvido ao autor, mas transformado também emdiretor, de modo a se acabar com a absurda dualidade queexiste entre diretor e autor.

Um autor que não atinge diretamente a matéria cêni-ca, que não evolui em cena orientando-se e submetendoo espetáculo à força de sua orientação, na verdade traiu

132 O TEATRO ESEUDUPLO

sua missão. E é justo que o ator o substitua. Mas quemperde é o teatro, que só pode sofrer com essa usurpação.

O tempo teatral que se apoia na respiração ora se pre-cipita numa vontade de expiração maior, ora se retrai e sereduz a uma inspiração feminina e prolongada. Um gestosuspenso faz correr uma agitação furiosa e múltipla, eesse gesto traz em si mesmo a magia de sua evocação.

Mas, se nos agrada dar sugestões sobre a vida enérgi-ca e animada do teatro, não temos a intenção de fixar leis.

A respiração humana, sem dúvida, tem princípios quese apoiam em inúmeras combinações das tríades cabalís-ticas. Há seis tríades principais, mas inúmeras combina-ções ternárias, pois é delas que se origina toda vida. E oteatro é exatamente o lugar onde essa respiração mágicase reproduz à vontade. Se a fixação de um gesto maiorexige à sua volta uma respiração precipitada e múltipla,esta mesma respiração aumentada pode fazer suas ondasdesdobrarem-se lentamente em torno de um gesto fixo.Há princípios abstratos mas não uma lei concreta e plás-tica; a única lei é a energia poética que vai do silêncioestrangulado à pintura precipitada de um espasmo, e dafala individual mezza você à tempestade pesada e amplade um coro que lentamente se reúne.

Mas o importante é criar níveis, perspectivas quevão de uma linguagem para a outra. O segredo do teatrono espaço é a dissonância, a distinção entre os timbres eo desligamento dialético da expressão.

Aquele que tiver idéia do que é uma linguagem sa-berá nos compreender. Escrevemos apenas para ele. Da-mos além disso alguns esclarecimentos suplementares quecompletam o Primeiro Manifesto do Teatro da Crueldade.

CARTAS SOBRE A LINGUAGEM 133

Como o essencial foi dito no Primeiro Manifesto, osegundo visa apenas esclarecer certos pontos. Dá umadefinição da Crueldade utilizável e propõe uma descriçãodo espaço cênico. Veremos a seguir o que fazemos dissotudo.

Terceira carta

Paris, 9 de novembro de 1932

A IP

Caro amigo,

As objeções que lhe fizeram e que me fizeram con-tra o Manifesto do Teatro da Crueldade dizem respeito,umas, à crueldade que não se vê muito bem o que vemfazer em meu teatro, pelo menos como elemento essen-cial, determinante; e, outras, ao teatro tal como o concebo.

Quanto à primeira objeção, dou razão aos que a le-vantam, não com relação à crueldade, nem ao teatro, mascom relação ao lugar que essa crueldade ocupa em meuteatro. Eu deveria ter especificado o uso muito particularque faço dessa palavra e dizer que a emprego não numsentido episódico, acessório, por gosto sádico e perver-são de espírito, por amor dos sentimentos estranhos e dasatitudes malsãs, portanto de modo nenhum num sentidocircunstancial; não se trata de modo algum da crueldadevício, da crueldade erupção de apetites perversos e quese expressam através de gestos sangrentos, como excres-

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cências doentias numa carne já contaminada; mas, pelocontrário, de um sentimento desprendido e puro, um ver-dadeiro movimento do espírito, que seria calcado sobre ogesto da própria vida; e na idéia de que a vida, metafisi-camente falando e pelo fato de admitir a extensão, a es-pessura, o adensamento e a matéria, admite, por conse-qüência direta, o mal e tudo o que é inerente ao mal, aoespaço, à extensão e à matéria. Tudo isso levando à cons-ciência e ao tormento e à consciência no tormento. E, ape-sar de algum cego rigor que estas contingências todas tra-gam consigo, a vida não poderá deixar de se exercer, casocontrário não seria vida; mas esse rigor e esta vida quecontinuam e se exercem na tortura e no espezinhamentode tudo, esse sentimento implacável e puro, é a crueldade.

Portanto eu disse "crueldade" como poderia ter dito"vida" ou como teria dito "necessidade", porque quero in-dicar sobretudo que para mim o teatro é ato e emanaçãoperpétua, que nele nada existe de imóvel, que o identificocom um ato verdadeiro, portanto vivo, portanto mágico.

E procuro tecnicamente e praticamente todos osmeios de aproximar o teatro da idéia superior, talvez ex-cessiva, mas de qualquer modo viva e violenta, que façodele.

Quanto à própria redação do Manifesto, reconheçoque é abrupta e em parte falha.

Afirmo princípios rigorosos, inesperados, de aspec-to rebarbativo e terrível, e, no momento em que se esperaque os justifique, passo ao princípio seguinte.

Em suma, a dialética do Manifesto é fraca. Pulo semtransição de uma idéia para outra. Nenhuma necessidadeinterior justifica a disposição adotada.

CARTAS SOBRE A LINGUAGEM 135

No que diz respeito à última objeção, pretendo que odiretor, transformado numa espécie de demiurgo, tendona cabeça a idéia de uma pureza implacável, de chegar aum resultado a qualquer preço se ele realmente pretendeser diretor, portanto um homem de matéria e de objetos,deve cultivar no domínio físico uma pesquisa do movi-mento intenso, do gesto patético e preciso, que eqüivaleno plano psicológico ao rigor moral mais absoluto e ínte-gro e, no plano cósmico, ao desencadeamento de certasforças cegas, que acionam o que devem acionar e que tri-turam e queimam à sua passagem o que devem triturar equeimar.

E eis a conclusão geral.O teatro não é mais uma arte; ou é uma arte inútil. É

sob todos os pontos conforme à idéia ocidental de arte.Estamos fartos de sentimentos decorativos e inúteis, deatividades sem objetivo, unicamente devotadas ao agra-dável e ao pitoresco; queremos um teatro que aja, mas jus-tamente num plano a ser definido.

Precisamos de uma ação verdadeira, mas sem con-seqüência prática. Não é no plano social que a ação doteatro se desenvolve. E menos ainda no plano moral epsicológico.

Vê-se então que o problema não é simples; mas quepelo menos nisso nos seja feita justiça: por mais caótico,impenetrável e rebarbativo que seja nosso Manifesto, elenão se esquiva da verdadeira questão, pelo contrário, ata-ca-a de frente, o que há muito tempo nenhum homem deteatro ousou fazer. Ninguém até aqui abordou o próprioprincípio do teatro, que é metafísico; e, se há tão poucaspeças de teatro válidas, não é por falta de talento ou deautores.

136 OTEA TRO E SEU DUPLO

Deixando-se de lado a questão do talento, há no tea-tro europeu um erro fundamental de princípio; e este erroestá ligado a toda uma ordem de coisas em que a ausên-cia de talento surge como conseqüência e não simplesacidente.

Se esta época se desvia e se desinteressa do teatro éporque o teatro deixou de representá-la. Ela já não espe-ra que ele lhe forneça os Mitos em que poderia se apoiar.

Vivemos uma época provavelmente única na históriado mundo, em que o mundo passado pela peneira vê des-moronarem seus velhos valores. A vida calcinada dissol-ve-se pela base. E isso, no plano moral ou social, traduz-sepor um monstruoso desencadear de apetites, uma libera-ção dos mais baixos instintos, um crepitar de vidas quei-madas e que se expõem prematuramente ao fogo.

O interessante nos acontecimentos atuais não são osacontecimentos em si, mas o estado de ebulição moralem que eles fazem os espíritos caírem, o grau de extrematensão. É o estado de caos consciente em que não paramde nos mergulhar.

E tudo isso que abala nosso espírito sem o fazer per-der o equilíbrio é para ele um meio patético de traduzir apalpitação inata da vida.

Pois bem, é dessa atualidade patética e mítica que oteatro se desviou: e é com justa razão que o público seafasta de um teatro que ignora a tal ponto a atualidade.

Podemos portanto repreender o teatro, tal como é pra-ticado, por uma terrível falta de imaginação. O teatro deveigualar-se à vida, não à vida individual, ao aspecto indi-vidual da vida em que triunfam as PERSONALIDADES,mas uma espécie de vida liberada, que varre a individua-

CARTAS SOBRE A LINGUAGEM 137

lidade humana e em que o homem nada mais é que umreflexo. Criar Mitos, esse é o verdadeiro objetivo do tea-tro, traduzir a vida sob seu aspecto universal, imenso, eextrair dessa vida imagens em que gostaríamos de nosreencontrar.

E com isso chegar a uma espécie de similitude gerale tão poderosa que produza instantaneamente seu efeito.

Que ela nos libere, a nós, num Mito que tenha sacri-ficado nossa pequena individualidade humana, como Per-sonagens vindas do Passado, com forças reencontradasno Passado.

Quarta carta

Paris, 28 de maio de 1933

AJ.P.

Caro amigo,

Eu não disse que queria agir diretamente sobre aépoca; disse que o teatro que queria fazer pressupunha,para ser possível, para ser aceito pela época, uma outraforma de civilização.

Mas sem representar sua época ele pode levar àtransformação profunda das idéias, dos costumes, das cren-ças, dos princípios sobre os quais repousa o espírito dotempo. Em todo caso, isso não me impede de fazer o quequero fazer e de fazê-lo rigorosamente. Farei aquilo comque sonhei, ou não farei nada.

138 O TEA TRO ESEU DUPLO

Quanto à questão do espetáculo, não me é possíveldar esclarecimentos suplementares. E por duas razões:

1?) A primeira é que, por uma vez, o que quero fazeré mais fácil de fazer do que de dizer.

2?) A segunda é que não quero correr o risco de serplagiado, como já me aconteceu várias vezes.

Para mim, só tem o direito de se dizer autor, isto é,criador, aquele a quem cabe o manejo direto da cena. E éexatamente aqui que se situa o ponto vulnerável do tea-tro tal como é considerado não apenas na França mas naEuropa e mesmo em todo o Ocidente: o teatro ocidentalsó reconhece como linguagem, só atribui as faculdades evirtudes de uma linguagem, só permite que se chame lin-guagem, com essa espécie de dignidade intelectual que emgeral se atribui a essa palavra, a linguagem articulada,articulada gramaticalmente, ou seja, a linguagem da pala-vra, e da palavra escrita, que, pronunciada ou não pronun-ciada, não tem mais valor do que se fosse apenas escrita.

No teatro tal como o concebemos aqui, o texto étudo. É entendido, é definitivamente aceito e isso passoupara os costumes e para o espírito, tem condição de valorespiritual o fato de a linguagem das palavras ser a lingua-gem maior. Ora, mesmo do ponto de vista do Ocidente épreciso admitir que a palavra se ossificou, que as pala-vras, todas as palavras, se congelaram, se enfurnaram emseu significado, numa terminologia esquemática e restrita.Para o teatro, tal como é praticado aqui, uma palavra es-crita vale tanto quanto a mesma palavra pronunciada. Oque leva alguns amantes do teatro a dizer que uma peçalida proporciona alegrias mais precisas, maiores do que amesma peça representada. Tudo o que diz respeito à

CARTAS SOBRE A LINGUAGEM 139

enunciação particular de uma palavra, à vibração que elapode difundir no espaço escapa-lhes, assim como tudo oque, por isso, é capaz de acrescentar ao pensamento. Umapalavra assim entendida só tem um valor discursivo, ouseja, de elucidação. E, nessas condições, não é exagerodizer que, dada sua terminologia bem definida e bemacabada, a palavra existe para deter o pensamento, ela ocerca mas o termina; é, em suma, um resultado.

Não é por nada, como se vê, que a poesia se retiroudo teatro. Não é por simples acaso que, há tanto tempo,qualquer poeta dramático deixou de se manifestar. A lin-guagem da palavra tem suas leis. Habituamo-nos nos úl-timos quatrocentos anos ou mais, principalmente na França,a só usar as palavras no teatro num sentido de definição.Fez-se com que a ação girasse demais em torno de temaspsicológicos cujas combinações essenciais não são inú-meras, longe disso. O teatro foi muito habituado à faltade curiosidade e de imaginação.

O teatro, assim como a palavra, tem necessidade deser deixado livre.

A obstinação em fazer que as personagens dialo-guem sobre sentimentos, paixões, apetites e impulsos deordem estritamente psicológica, em que uma palavra subs-titui inúmeras mímicas, uma vez que estamos no domí-nio da precisão, foi por causa dessa obstinação que o tea-tro perdeu sua verdadeira razão de ser e que estamos de-sejando um silêncio em que possamos ouvir melhor avida. É no diálogo que a psicologia ocidental se expres-sa; e a obsessão pela palavra clara que diga tudo leva aoressecamento das palavras.

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O teatro oriental soube conservar um certo valor ex-pansivo das palavras, uma vez que na palavra o sentidoclaro não é tudo, mas sim a música da palavra, que faladiretamente ao inconsciente. Assim, no teatro oriental nãoexiste linguagem da palavra, mas uma linguagem de ges-tos, atitudes, signos que, do ponto de vista do pensamentoem ação, têm tanto valor expansivo e revelador quanto aoutra. No Oriente coloca-se essa linguagem de signos aci-ma da outra, atribui-se a essa linguagem de signos poderesmágicos imediatos. Convida-se essa linguagem a dirigir-senão apenas ao espírito, mas também aos sentidos, e a atin-gir, através dos sentidos, regiões ainda mais ricas e fe-cundas da sensibilidade em pleno movimento.

Portanto, se aqui o autor é aquele que dispõe da lin-guagem da palavra e se o diretor é seu escravo, o queexiste é uma simples questão de palavras. Há uma confu-são quanto aos termos, devida ao fato de, para nós, e con-forme o sentido que em geral se atribui ao termo diretor,este ser apenas um artesão, um adaptador, uma espéciede tradutor eternamente dedicado a fazer uma obra dra-mática passar de uma linguagem para outra; e esta con-fusão só será possível, e o diretor só será obrigado a seapagar diante do autor, enquanto se entender que a lin-guagem das palavras é superior às outras, enquanto o tea-tro não admitir outra linguagem além dela.

Mas, se voltarmos, por pouco que seja, às fontes res-piratórias, plásticas, ativas da linguagem, se relacionar-mos as palavras aos movimentos físicos que lhes deramorigem, se o aspecto lógico e discursivo da palavra desa-parecer sob seu aspecto físico e afetivo, isto é, se as pala-vras em vez de serem consideradas apenas pelo que dizem

CARTAS SOBRE A LINGUAGEM 141

gramaticalmente falando forem ouvidas sob seu ângulosonoro, forem percebidas como movimentos, e se essesmovimentos forem assimilados a outros movimentos di-retos e simples tal como os temos em todas as circuns-tâncias da vida e como os autores não os têm suficientesem cena, a linguagem da literatura se recomporá, se tor-nará viva; e ao lado disso, como nas telas de alguns velhospintores, os próprios objetos começarão a falar. Em vezde fazer parte do cenário, a luz assumirá a aparência deverdadeira linguagem e as coisas da cena, palpitantesde significação, se ordenarão, mostrarão figuras. E dessalinguagem imediata e física o diretor é o único a dispor.E essa é, para ele, a ocasião de criar numa espécie deautonomia completa.

De qualquer modo, seria singular que, num domíniomais próximo da vida do que o outro, aquele que é senhornesse domínio, isto é, o diretor, devesse em todas as oca-siões ceder a primazia ao autor que, essencialmente, tra-balha no abstrato, ou seja, no papel. Mesmo que nãohouvesse no ativo da encenação a linguagem dos gestos,que iguala e supera a das palavras, qualquer encenaçãomuda deveria, como seu movimento, suas múltiplas per-sonagens, suas iluminações, seus cenários, rivalizar como que existe de mais profundo em pinturas como As filhasde Loth, de Lucas de Leiden, como certos Sabás de Goya,certas Ressurreições e Transfigurações de El Greco, co-mo a A tentação de Santo Antão de Bosch e a inquietantee misteriosa Dulle Griet de Brueghel, o Velho, em que umclarão torrencial e vermelho, embora localizado em cer-tas partes da tela, parece surgir de todos os lados e, atravésde um certo procedimento técnico, bloquear a um metro

142 O TEA TRO E SEU DUPLO

da tela o olho perplexo do espectador. E aí por todos oslados fervilha o teatro. Uma agitação de vida interrompi-da por uma auréola de luz branca se precipita de repentesobre submundos inomináveis. Um ruído lívido e rangen-te eleva-se dessa bacanal de larvas em que equimoses depele humana nunca têm a mesma cor. A verdadeira vidaé móvel e branca; a vida oculta é lívida e fixa, possui to-das as atitudes possíveis de uma inumerável imobilidade.É teatro mudo, mas que fala muito mais do que se tivesserecebido uma linguagem para se expressar. Todas essaspinturas têm duplo sentido, e além de seu aspecto pura-mente pictórico comportam um ensinamento e revelam as-pectos misteriosos ou terríveis da natureza e do espírito.

Mas, felizmente para o teatro, a encenação é muitomais do que isso. Pois, além de uma representação commeios materiais e espessos, a encenação pura contém, atra-vés de gestos, de jogos fisionômicos e atitudes móveis,através de uma utilização concreta da música, tudo o quea palavra contém, e além disso dispõe da própria palavra.Repetições rítmicas de sílabas, modulações particularesda voz envolvendo o sentido exato das palavras, precipi-tam em maior número as imagens no cérebro, em favorde um estado mais ou menos alucinatório, e impõem àsensibilidade e ao espírito uma maneira de alteração or-gânica que contribui para tirar da poesia escrita a gratui-dade que geralmente a caracteriza. E é em torno dessa gra-tuidade que se concentra todo o problema do teatro.

O TEATRO DA CRUELDADE(Segundo Manifesto)

Confesso ou não-confesso, consciente ou inconscien-te, o estado poético, um estado transcendente de vida, éno fundo aquilo que o público procura através do amor,do crime, das drogas, da guerra ou da insurreição.

O Teatro da Crueldade foi criado para devolver ao tea-tro a noção de uma vida apaixonada e convulsa; e é nestesentido de rigor violento, de condensação extrema doselementos cênicos, que se deve entender a crueldade sobrea qual ele pretende se apoiar.

Essa crueldade, que será, quando necessário, sangren-ta, mas que não o será sistematicamente, confunde-se por-tanto com a noção de uma espécie de árida pureza moralque não teme pagar pela vida o preço que deve ser pago.

1?) DO PONTO DE VISTA DO CONTEÚDOou seja, dos assuntos e temas tratados:

O Teatro da Crueldade escolherá assuntos e temas querespondam à agitação e à inquietude características de nos-sa época.

144 O TEA TRO E SEU DUPLO

Pretende não abandonar para o cinema a tarefa deproduzir os Mitos do homem e da vida modernos. Masfará isso de um modo que lhe é próprio, isto é, em oposi-ção à tendência econômica, utilitária e técnica do mundo,voltará a pôr em moda as grandes preocupações e as gran-des paixões essenciais que o teatro moderno cobriu como verniz do homem falsamente civilizado.

Esses temas serão cósmicos, universais, interpretadossegundo os textos mais antigos, tirados das velhas cos-mogonias mexicana, hindu, judaica, iraniana, etc.

Renunciando ao homem psicológico, ao caráter e aossentimentos bem nítidos, é ao homem total e não ao ho-mem social, submetido às leis e deformado pelas religiõese pelos preceitos, que esse teatro se dirigirá.

E no homem ele fará entrar não apenas o reto mastambém o verso do espírito; a realidade da imaginação edos sonhos aparecerá nele em igualdade de condiçõescom a vida.

Além disso, as grandes transformações sociais, osconflitos de povo com povo e de raça com raça, as forçasnaturais, a intervenção do acaso, o magnetismo da fatali-dade manifestar-se-ão nesse teatro quer indiretamente, soba agitação e os gestos de personagens ampliadas à dimen-são de deuses, de heróis, ou monstros, às dimensões míti-cas, quer diretamente, sob a forma de manifestações mate-riais obtidas por meios científicos novos.

Esses deuses ou heróis, esses monstros, essas forçasnaturais e cósmicas serão interpretadas segundo as ima-gens dos textos sagrados mais antigos e das velhas cos-mogonias.

O TEA TRO DA CRUELDADE 145

2?) DO PONTO DE VISTA DA FORMAAlém disso, essa necessidade do teatro de se reabas-

tecer nas fontes de uma poesia eternamente apaixonante,e sensível para as porções mais afastadas e dispersas dopúblico, sendo realizada através do retorno aos velhos Mi-tos primitivos, pediremos que a encenação e não o textose encarregue de materializar e sobretudo atualizar essesvelhos conflitos, ou seja, esses temas serão transportadosdiretamente para o teatro e materializados em movimen-tos, expressões e gestos antes de se transferirem para aspalavras.

Com isso, renunciaremos à superstição teatral do textoe à ditadura do escritor.

E assim reencontraremos o velho espetáculo populartraduzido e sentido diretamente pelo espírito, sem as de-formações da linguagem e os escolhos do discurso e daspalavras.

Pretendemos basear o teatro antes de mais nada noespetáculo, e no espetáculo introduziremos uma nova noçãodo espaço utilizado em todos os planos possíveis e emtodos os graus da perspectiva, em profundidade e em altu-ra, e a essa noção virá se somar uma idéia particular dotempo acrescida à do movimento:

Num tempo dado, ao maior número possível de mo-vimentos acrescentaremos o maior número possível deimagens físicas e de significações ligadas a esses movi-mentos.

As imagens e os movimentos empregados não existi-rão apenas para o prazer exterior dos olhos e dos ouvidos,mas para o prazer mais secreto e proveitoso do espírito.

146 O TEATRO E SEU DUPLO

Assim, o espaço teatral será utilizado não apenas emsuas dimensões e em seu volume mas, por assim dizer,em seus subterrâneos.

O encavalamento das imagens e dos movimentos le-vará, através de conluios de objetos, silêncios, gritos e rit-mos, à criação de uma verdadeira linguagem física combase em signos e não mais em palavras.

É preciso que se entenda que, nessa quantidade demovimentos e de imagens tomados num tempo determi-nado, introduzimos tanto o silêncio e o ritmo quanto umacerta vibração e uma certa agitação material, compostapor objetos e gestos realmente feitos e realmente utiliza-dos. E pode-se dizer que o espírito dos mais antigos hie-róglifos presidirá a criação dessa linguagem teatral pura.

Todos os públicos populares sempre se mostraramávidos por expressões diretas e imagens; e o discurso arti-culado, as expressões verbais explícitas intervirão em todasas partes claras e nitidamente elucidadas da ação, nas partesem que a vida repousa e em que a consciência intervém.

Mas, ao lado desse sentido lógico, as palavras serãotomadas num sentido encantatório, verdadeiramente má-gico - por sua forma, suas emanações sensíveis e já nãoapenas por seu sentido.

As aparições efetivas de monstros, as bacanais de he-róis e de deuses, as manifestações plásticas de forças, asintervenções explosivas de uma poesia e de um humor en-carregados de desorganizar e de pulverizar as aparências,segundo o princípio da anarquia, analogia de toda verda-deira poesia, só terão sua verdadeira magia numa atmos-fera de sugestão hipnótica em que o espírito é atingidoatravés de uma pressão direta sobre os sentidos.

O TEA TRO DA CR UELDADE 147

Se, no teatro digestivo de hoje, os nervos, ou seja,uma certa sensibilidade fisiológica, são deixados delibe-radamente de lado, entregues à anarquia individual do es-pectador, o Teatro da Crueldade pretende voltar a usar todosos velhos meios experimentados e mágicos de ganhar asensibilidade.

Esses meios, que consistem em intensidades de cores,de luzes ou de sons, que utilizam a vibração, a trepidação,a repetição quer de um ritmo musical, quer de uma frasefalada, que fazem intervir a tonalidade ou o envolvimen-to comunicativo de uma iluminação, só podem ter seupleno efeito através da utilização das dissonâncias.

Mas essas dissonâncias, em vez de se limitarem aodomínio de um único sentido, nós as faremos cavalgar deum sentido a outro, de uma cor a um som, de uma pala-vra a uma luz, de uma trepidação de gestos a uma tonali-dade plana de sons, etc, etc.

O espetáculo, assim composto, assim construído, seestenderá, por supressão do palco, à sala inteira do teatroe, a partir do chão, alcançará as muralhas através de levespassarelas, envolverá materialmente o espectador, man-tendo-o num banho constante de luz, imagens, movimentose ruídos. O cenário será constituído pelas próprias perso-nagens, ampliadas ao tamanho de gigantescos bonecos, epor paisagens de luzes móveis incidindo sobre objetos emáscaras em contínuo deslocamento.

E, assim como não haverá intervalo, nem lugar deso-cupado no espaço, não haverá intervalo nem lugar vaziono espírito ou na sensibilidade do espectador. Isto é, en-tre a vida e o teatro já não haverá uma separação nítida,já não haverá solução de continuidade. E quem já viu ser

148 OTEA TRO E SEU DUPLO

rodada uma cena de filme entenderá perfeitamente o quequeremos dizer.

Queremos dispor, para um espetáculo de teatro, dosmesmos meios materiais que, em iluminação, em figura-ção, em riquezas de todo tipo, são diariamente desperdiça-dos por películas em que tudo o que há de ativo, de mágicoem semelhante aparato, fica perdido para sempre.

** *

O primeiro espetáculo do Teatro da Crueldade se in-titulará:

A conquista do México

Porá em cena acontecimentos e não seres humanos.Os seres humanos terão seu lugar com sua psicologia esuas paixões, mas considerados como a emanação de cer-tas forças e sob o ângulo dos acontecimentos e da fatali-dade histórica em que representaram seus papéis.

Este tema foi escolhido:1?) Por causa de sua atualidade e pelas alusões que

permite a problemas de interesse vital para a Europa e parao mundo.

Do ponto de vista histórico, A conquista do Méxicocoloca a questão da colonização. Faz reviver, de modobrutal, implacável, sangrento, a fatuidade persistente daEuropa. Permite esvaziar a idéia que a Europa tem de suaprópria superioridade. Opõe o cristianismo a religiões mui-

O TE A TRO DA CR UELDADE 149

to mais antigas. Faz justiça às falsas concepções que oOcidente possa ter tido do paganismo e de certas religiõesnaturais e ressalta de maneira patética, ardorosa, o esplen-dor e a poesia sempre atuais da velha base metafísica so-bre a qual essas religiões foram constituídas.

2?) Ao colocar a questão terrivelmente atual da coloni-zação e do direito que um continente acredita ter de subju-gar outro, essa peça coloca a questão da superioridade, estareal, de certas raças sobre outras e mostra a filiação internaque liga o gênio de uma raça a formas precisas de civiliza-ção. Ela opõe a tirânica anarquia dos colonizadores à pro-funda harmonia moral dos futuros colonizados.

Depois, diante da desordem da monarquia européiada época, baseada nos princípios materiais mais injustose grosseiros, ela lança luz sobre a hierarquia orgânica damonarquia asteca estabelecida em indiscutíveis princí-pios espirituais.

Do ponto de vista social, ela mostra a paz de umasociedade que sabia dar de comer a todo o mundo e na quala Revolução sempre se realizou, desde as origens.

Deste choque entre a desordem moral e a anarquiacatólica com a ordem paga, essa peça pode fazer jorrarconflagrações inéditas de forças e imagens, salpicadasaqui e ali por diálogos brutais. E isso através de lutas dehomem a homem, que carregam em si, como estigmas,as idéias mais opostas.

O conteúdo moral e o interesse de atualidade de talespetáculo estando suficientemente destacados, insistire-mos no valor espetacular dos conflitos que ele pretendeencenar.

150 O TEATRO E SEU DUPLO

Primeiro, há as lutas interiores de Montezuma, o reidilacerado, sobre cujos móbeis a história não conseguiunos esclarecer.

Serão mostradas, de modo pictórico, objetivo, suaslutas e sua discussão simbólica com os mitos visuais daastrologia.

Enfim, além de Montezuma, há a multidão, as diversascamadas da sociedade, a revolta do povo contra o desti-no, representado por Montezuma, os clamores dos incré-dulos, as argúcias dos filósofos e dos sacerdotes, as la-mentações dos poetas, a traição dos comerciantes e dosburgueses, a duplicidade e a covardia sexual das mulheres.

O espírito das multidões, o sopro dos acontecimen-tos se deslocarão em ondas materiais sobre o espetáculo,fixando aqui e ali certas linhas de força, e sobre essasondas, a consciência diminuída, revoltada ou desespera-da de alguns sobrenadará como uma casca de arroz.

Teatralmente, o problema é determinar e harmonizaressas linhas de força, concentrá-las e delas extrair melo-dias sugestivas.

Essas imagens, esses movimentos, essas danças, essesritos, essas músicas, essas melodias truncadas, esses diá-logos que se interrompem serão cuidadosamente anota-dos e descritos tanto quanto possível com palavras e,principalmente, nas partes não dialogadas do espetáculo,sendo que o princípio é conseguir anotar ou cifrar, comonuma partitura musical, o que não é descrito através daspalavras.

UM ATLETISMO AFETIVO

É preciso admitir, no ator, uma espécie de musculatu-ra afetiva que corresponde a localizações físicas dos sen-timentos.

O ator é como um verdadeiro atleta físico, mas coma ressalva surpreendente de que ao organismo do atletacorresponde um organismo afetivo análogo, e que é para-lelo ao outro, que é como o duplo do outro embora nãoaja no mesmo plano.

O ator é como um atleta do coração.Também para ele vale a divisão do homem total em

três mundos; e a esfera afetiva lhe pertence propriamente.Ela lhe pertence organicamente.Os movimentos musculares do esforço são como a

efígie de um outro esforço duplo, e que nos movimentosdo jogo dramático se localizam nos mesmos pontos.

Enquanto o atleta se apoia para correr, o ator se apoiapara lançar uma imprecação espasmódica, mas cujo cursoé jogado para o interior.

152 O TEATRO E SEU DUPLO

Todas as surpresas da luta, da luta-livre, dos cemmetros, do salto em altura encontram no movimento daspaixões bases orgânicas análogas, têm os mesmos pontosfísicos de sustentação.

Cabe ainda a ressalva de que aqui o movimento é in-verso e, com respeito à respiração, por exemplo, enquantono ator o corpo é apoiado pela respiração, no lutador, noatleta físico é a respiração que se apoia no corpo.

A questão da respiração é de fato primordial, ela éinversamente proporcional à importância da representa-ção exterior.

Quanto mais a representação é sóbria e contida, maisa respiração é ampla e densa, substancial, sobrecarregadade reflexos.

E a uma representação arrebatada, volumosa e quese exterioriza corresponde uma respiração de ondas curtase comprimidas.

Não há dúvida de que a cada sentimento, a cada mo-vimento do espírito, a cada alteração da afetividade huma-na corresponde uma respiração própria.

Ora, os tempos da respiração têm um nome, comonos mostra a Cabala; são eles que dão forma ao coraçãohumano e sexo aos movimentos das paixões.

O ator não passa de um empírico grosseiro, um curan-deiro guiado por um instinto mal conhecido.

No entanto, por mais que se pense o contrário, nãose trata de ensiná-lo a delirar.

Trata-se de acabar com essa espécie de ignorânciadesvairada em meio à qual avança todo o teatro contem-porâneo, como em meio a uma sombra, em que ele nãopára de tropeçar. - O ator dotado encontra em seu instinto

UM A TLETISMO AFETIVO 153

o modo de captar e irradiar certas forças; mas essas for-ças, que têm seu trajeto material de órgãos e nos órgãos,ele se espantaria se lhe fosse revelado que elas existem,pois nunca pensou que pudessem existir.

Para servir-se de sua afetividade como o lutador usasua musculatura, é preciso ver o ser humano como umDuplo, como o Kha dos Embalsamados do Egito, comoum espectro perpétuo em que se irradiam as forças daafetividade.

Espectro plástico e nunca acabado cujas formas oator verdadeiro imita, ao qual impõe as formas e a imagemde sua sensibilidade.

É sobre esse duplo que o teatro influi, essa efígie es-pectral que ele modela, e como todos os espectros esseduplo tem uma grande memória. A memória do coraçãoé durável e, sem dúvida, o ator pensa com o coração, masaqui o coração é preponderante.

Isso significa que no teatro, mais do que em qual-quer outro lugar, é do mundo afetivo que o ator deve tomarconsciência, mas atribuindo a esse mundo virtudes quenão são as de uma imagem, e que comportam um senti-do material.

Quer a hipótese seja correta ou não, o importante éque ela seja verificável.

Pode-se fisiologicamente reduzir a alma a um nove-lo de vibrações.

É possível ver esse espectro de alma como intoxica-do pelos gritos que ele propaga; se não fosse assim, a quecorresponderiam os mantras hindus, as consonâncias, asacentuações misteriosas, em que o subterrâneo materialda alma, acuado em seus covis, vem contar seus segredosà luz do dia.

154 O TEA TRO E SEU DUPLO

A crença em uma materialidade fluídica da alma éindispensável ao ofício do ator. Saber que uma paixão ématéria, que ela está sujeita às flutuações plásticas da ma-téria, dá sobre as paixões um domínio que amplia nossasoberania.

Alcançar as paixões através de suas forças em vezde considerá-las como puras abstrações confere ao atorum domínio que o iguala a um verdadeiro curandeiro.

Saber que existe uma saída corporal para a alma per-mite alcançar essa alma num sentido inverso e reencon-trar o seu ser através de uma espécie de analogias mate-máticas.

Conhecer o segredo do tempo das paixões, dessa es-pécie de tempo musical que rege seu batimento harmônico,é um aspecto do teatro em que nosso teatro psicológicomoderno há muito não pensa.

Ora, esse tempo por analogia pode ser reencontrado;e é reencontrado nos seis modos de dividir e manter arespiração tal como um elemento precioso.

Toda respiração, seja qual for, tem três tempos, assimcomo na base de toda criação existem três princípios que,mesmo na respiração, podem encontrar a figura que lhescorresponde.

A Cabala divide a respiração humana em seis princi-pais arcanos, o primeiro dos quais, chamado de GrandeArcano, é o da criação:

ANDRÓGINO MACHO FÊMEAEQUILIBRADO EXPANSIVO ATRATIVONEUTRO POSITIVO NEGATIVO

UM A TLETISMO AFETIVO 15 5

Assim, tive a idéia de empregar o conhecimento darespiração não apenas no trabalho do ator, mas tambémna preparação ao ofício de ator. - Pois, se o conhecimentoda respiração ilumina a cor da alma, com maior razãopode provocar a alma, facilitar seu desenvolvimento.

Não há dúvida de que, se a respiração acompanha oesforço, a produção mecânica da respiração provocará onascimento, no organismo que trabalha, de uma qualida-de correspondente de esforço.

O esforço terá a cor e o ritmo da respiração artifi-cialmente produzida.

O esforço por simpatia acompanha a respiração e,conforme a qualidade do esforço a ser produzido, umaemissão preparatória de respiração tornará fácil e espon-tâneo esse esforço. Insisto na palavra espontâneo, pois arespiração reacende a vida, atiça-a em sua substância.

O que a respiração voluntária provoca é uma reapa-rição espontânea da vida. Como uma voz nos corredoresinfinitos em cujas margens dormem guerreiros. O sinomatinal ou a trompa de guerra agem sobre eles para lan-çá-los regularmente na refrega. Mas, se uma criança derepente grita "olha o lobo", esses mesmos guerreiros des-pertam. Despertam no meio da noite. Alarme falso: ossoldados voltam. Mas não: chocam-se contra grupos hos-tis, caíram numa verdadeira armadilha. A criança gritou nosonho. Seu inconsciente mais sensível e flutuante topoucom uma tropa de inimigos. Assim, por meios indiretos,a mentira provocada do teatro cai sobre uma realidademais temível que a outra e da qual a vida não suspeitara.

Assim, pela acuidade aguçada da respiração o atorcava sua personalidade.

156 OTEA TRO E SEU DUPLO

Pois a respiração que alimenta a vida permite galgar asetapas degrau por degrau. E através da respiração o atorpode repenetrar num sentimento que ele não tem, sob acondição de combinar judiciosamente seus efeitos; e denão se enganar de sexo. É que a respiração é masculina oufeminina; menos freqüentemente, andrógina. Mas poderáser necessário descrever preciosos estados suspensos.

A respiração acompanha o sentimento e pode-se pe-netrar no sentimento pela respiração, sob a condição desaber discriminar, entre as respirações, aquela que convéma esse sentimento.

Como dissemos, há seis combinações principais derespiração:

NEUTRO MASCULINO FEMININONEUTRO FEMININO MASCULINOMASCULINO NEUTRO FEMININOFEMININO NEUTRO MASCULINOMASCULINO FEMININO NEUTROFEMININO MASCULINO NEUTRO

E há um sétimo estado situado acima das respiraçõese que, através da porta da Guna superior, o estado de Sa-tiva, reúne o manifesto com o não-manifesto.

Se alguém disser que o ator, não sendo metafísicopor essência, não precisa preocupar-se com esse sétimoestado, responderemos que, a nosso ver, e embora o teatroseja o símbolo mais perfeito e mais completo da mani-festação universal, o ator traz em si o princípio desseestado, desse caminho de sangue pelo qual ele penetraem todos os outros cada vez que seus órgãos potenciaisdespertam de seu sono.

UM ATLETISMO AFETIVO 157

Na maior parte do tempo, sem dúvida, o instintocomparece para suprir essa ausência de uma noção quenão se pode definir; e não é preciso cair de tão alto paraemergir nas paixões medianas como aquelas de que oteatro contemporâneo está cheio. Do mesmo modo, o sis-tema das respirações não é feito para as paixões medianas.E não é para uma declaração de amor adúltero que nosprepara a cultura repetida das respirações, segundo um pro-cedimento muitas vezes empregado.

Uma emissão repetida sete e doze vezes nos predis-põe a uma qualidade sutil de gritos, a desesperadas rei-vindicações da alma.

E nós localizamos essa respiração, nós a dividimosem estados de contração e descontração combinados. Usa-mos nosso corpo como um crivo pelo qual passam a von-tade e o afrouxamento da vontade.

No tempo de pensar em querer, projetamos com forçaum tempo masculino, seguido sem solução de continuidadedemasiado sensível por um tempo feminino prolongado.

No tempo de pensar em não querer, ou mesmo denão pensar, uma respiração feminina fatigada nos faz as-pirar um mofo de porão, o hálito úmido de uma floresta;e nesse mesmo tempo prolongado emitimos uma expiraçãopesada; enquanto isso, os músculos de todo o corpo, vi-brando por regiões de músculos, não pararam de trabalhar.

O importante é tomar consciência dessas localiza-ções do pensamento afetivo. Um meio de reconhecimen-to é o esforço; e os mesmos pontos sobre os quais incideo esforço físico são aqueles sobre os quais incide a ema-nação do pensamento afetivo. Os mesmos que servem detrampolim para a emanação de um sentimento.

158 O TEATRO E SEU DUPLO

Deve-se observar que tudo o que é feminino, o que éabandono, angústia, apelo, invocação, o que tende para al-guma coisa num gesto de súplica, baseia-se também nospontos do esforço, mas como um mergulhador palmilhao fundo do mar para depois voltar à superfície: há comoque um jato de vazio no lugar onde estava a tensão.

Mas nesse caso o masculino volta para povoar o lu-gar do feminino como uma sombra; enquanto o estadoafetivo é masculino, o corpo interior compõe uma espéciede geometria inversa, uma imagem do estado invertido.

Tomar consciência da obsessão física, dos músculostocados pela afetividade, eqüivale, como no jogo das res-pirações, a desencadear essa afetividade potencial, a lhedar uma amplitude surda mas profunda, e de uma violên-cia incomum.

E assim qualquer ator, mesmo o menos dotado, pode,através desse conhecimento físico, aumentar a densidadeinterior e o volume de seu sentimento, e uma tradução am-pliada segue-se a este apossamento orgânico.

Com esse objetivo, não é mau conhecer alguns pon-tos de localização.

O homem que levanta pesos, é com os rins que o faz,é com um desancamento dos rins que ele sustenta a forçamultiplicada de seus braços; e é curioso constatar que,inversamente, todo sentimento feminino que cala fundo,o soluço, a desolação, a respiração espasmódica, o tran-se, é na altura dos rins que ele realiza seu vazio, nessemesmo lugar onde a acupuntura chinesa dilui a obstruçãodo rim. A medicina chinesa procede apenas através docheio e do vazio. Côncavo e convexo. Tenso e relaxado. Yine Yang. Masculino e feminino.

UM ATLETISMO AFETIVO 159

Outro ponto de irradiação: o ponto da raiva, do ata-que, da mordacidade é o centro do plexo solar. É aí quese apoia a cabeça para lançar moralmente seu veneno.

O ponto do heroísmo e do sublime é também o daculpa. É onde batemos no peito. O lugar onde se recalcaa raiva, aquela que consome e não avança.

Mas onde a raiva avança a culpa recua; é o segredodo cheio e do vazio.

Uma raiva superaguda e que se desmembra começapor um neutro estalante e se localiza no plexo por um vaziorápido e feminino, a seguir é bloqueada nas duas omo-platas, volta como um bumerangue e lança fagulhas mas-culinas, mas que se consomem sem avançar. A fim deperder o tom mordaz, conservam a correlação da respira-ção masculina: expiram com ênfase.

Quis dar apenas alguns exemplos em torno de algunsprincípios fecundos que constituem a matéria deste textotécnico. Outros erigirão, se tiverem tempo, a completa ana-tomia do sistema. Há trezentos e oitenta pontos na acupun-tura chinesa, dos quais setenta e três principais e que ser-vem à terapia corrente. Há um número bem menor desaídas grosseiras para nossa humana afetividade.

Um número bem menor de apoios que possamosindicar e nos quais se baseará o atletismo da alma.

O segredo consiste em exacerbar esses apoios comouma musculatura que se esfola.

O resto se faz com gritos.

* *

160 O TEA TRO E SEU DUPLO

É preciso refazer a cadeia, a antiga cadeia em que oespectador procurava no espetáculo sua própria realidade,é preciso permitir que esse espectador se identifique como espetáculo, respiração a respiração e tempo a tempo.

Não basta que essa magia do espetáculo prenda oespectador, ela não o aprisionará se não se souber ondepegá-lo. Basta de magia casual, de uma poesia que nãotem a ciência para apoiá-la.

No teatro, doravante poesia e ciência devem identi-ficar-se.

Toda emoção tem bases orgânicas. É cultivando suaemoção em seu corpo que o ator recarrega sua densidadevoltaica.

Saber antecipadamente que pontos do corpo é preci-so tocar significa jogar o espectador em transes mágicos.É dessa espécie preciosa de ciência que a poesia no tea-tro há muito se desacostumou.

Conhecer as localizações do corpo é, portanto, refa-zer a cadeia mágica.

E com o hieróglifo de uma respiração posso reen-contrar uma idéia do teatro sagrado.

N. B. - Ninguém mais sabe gritar na Europa, e espe-cialmente os atores em transe não sabem mais dar gritos.Quanto às pessoas que só sabem falar e que se esqueceramde que tinham um corpo no teatro, também se esquece-ram de usar a garganta. Reduzidas a gargantas anormais,não é nem mesmo um órgão mas sim uma monstruosaabstração que fala: os atores, na França, agora só sabemfalar.

DUAS NOTAS

I - Os Irmãos Marx

O primeiro filme dos Irmãos Marx que vimos aqui,Animal Crackers, pareceu-me, e assim foi visto por todoo mundo, uma coisa extraordinária, a liberação, atravésda tela, de uma magia particular que as relações habituaisentre as palavras e as imagens não revelam, e, se há umestado caracterizado, um grau poético distinto do espíri-to que se possa chamar de surrealismo, Animal Crackersparticipa plenamente dele.

É difícil dizer em que consiste essa espécie de ma-gia, em todo caso é algo que talvez não seja especifica-mente cinematográfico, mas que também não pertenceao teatro, e de que apenas alguns poemas surrealistas bem-sucedidos, se os houver, poderiam dar uma idéia. A qua-lidade poética de um filme como Animal Crackers pode-ria corresponder à definição do humor, se esta palavra hámuito tempo não tivesse perdido seu sentido de liberaçãointegral, de dilaceramento de toda realidade no espírito.

162 O TEATRO E SEU DUPLO

Para compreender a originalidade poderosa, total,definitiva, absoluta (não estou exagerando, simplesmentetento definir as coisas, e tanto pior se o entusiasmo mearrebata) de um filme como Animal Crackers e, em algunsmomentos (em todo caso, em toda a parte final), comoMonkey Business, seria preciso acrescentar ao humor anoção de algo inquietante e trágico, uma fatalidade (nemfeliz nem infeliz, mas difícil de formular) que se esguei-raria por trás dele como a revelação de uma doença atroznum perfil de absoluta beleza.

Em Monkey Business reencontramos os Irmãos Marx,cada um com seu tipo, seguros de si e preparados, sente-se,para agarrar as circunstâncias pelo colarinho. Mas, en-quanto em Animal Crackers', e desde o começo, cada per-sonagem quebrava a cara, aqui se assiste, durante trêsquartas partes do filme, ao jogo de palhaços que se diver-tem e fazem graça, algumas muito boas, e é apenas nofim que as coisas encorpam, que os objetos, os animais,os sons, o patrão e seus empregados, o anfitrião e seus con-vidados, que tudo isso se exaspera, se precipita e se revo-luciona, sob os comentários ao mesmo tempo extasiadose lúcidos de um dos Irmãos Marx, arrebatado pelo espíri-to que ele conseguiu enfim desencadear e do qual pareceser um comentário estupefato e passageiro. Nada é tãoalucinante e terrível quanto essa espécie de caça ao homem,como a luta entre rivais, a perseguição nas trevas de umestábulo, de um celeiro onde por todo lado pendem teiasde aranha, enquanto homens, mulheres e animais vêem-se no meio de um amontoado de objetos heteróclitos cujomovimento ou ruído terão cada um seu papel.

O fato de em Animal Crackers uma mulher de repen-te cair de pernas para cima, num sofá, e mostrar por um

DUAS NOTAS 163

instante tudo o que gostaríamos de ver, ou de um homemde repente se jogar sobre uma mulher num salão, darcom ela alguns passos de dança e em seguida estapeá-ladentro do ritmo, mostra uma espécie de liberdade inte-lectual em que o inconsciente de cada personagem, com-primido pelas convenções e costumes, vinga-se e ao mes-mo tempo vinga nosso inconsciente; mas o fato de emMonkev Business um homem acuado se jogar sobre umalinda mulher que encontra e dançar com ela, poeticamen-te, numa espécie de busca do encanto e da graça das ati-tudes mostra uma reivindicação espiritual dupla, e mos-tra tudo o que há de poético e talvez de revolucionário nagraça dos Irmãos Marx.

Mas o fato de a música dançada pelo casal do homemacuado e da linda mulher ser uma música de nostalgia eevasão, uma música de alívio, uma música de liberação,indica o lado perigoso de todas essas blagues humorísticase mostra que o espírito poético quando se exerce tendesempre a uma espécie de anarquia fervilhante, a uma de-sagregação integral do real pela poesia.

Se os americanos, a cujo espírito pertence esse tipode filme, só querem entender esses filmes humoristica-mente, e em matéria de humor sempre se mantêm apenasnas margens fáceis e cômicas da significação dessa pala-vra, pior para eles, mas isso não nos impedirá de consi-derar o fim de Monkey Business como um hino à anar-quia e à revolta integral, o fim que põe o berro de umbezerro no mesmo nível intelectual e lhe atribui a mesmaqualidade de dor lúcida que ao grito de uma mulher commedo, o fim em que nas trevas de um celeiro sujo doiscriados raptores trituram à vontade os ombros nus da

164 O TEA TRO E SEU DUPLO

filha do patrão e tratam de igual para igual com o patrãodesamparado, tudo isso em meio à embriaguez, tambémintelectual, das piruetas dos Irmãos Marx. E o triunfo detudo isso está na espécie de exaltação ao mesmo tempovisual e sonora que todos esses acontecimentos assumemnas trevas, no grau de vibrações que eles atingem e naespécie de forte inquietação que sua reunião acaba porprojetar no espírito.

II - Em torno de uma mãe

Ação dramática de Jean-Louis Barrault

No espetáculo de Jean-Louis Barrault há uma espéciede maravilhoso cavalo-centauro, e nossa emoção diantedele foi tão grande como se com sua entrada de cavalo-centauro Jean-Louis Barrault nos tivesse trazido a magia.

Esse espetáculo é mágico como são mágicas as en-cantações de feiticeiros negros quando a língua que bateno palato faz chover numa paisagem; quando, diante dodoente esgotado, o feiticeiro que dá à sua respiração aforma de um estranho mal-estar expulsa a doença com arespiração; é assim que no espetáculo de Jean-Louis Bar-rault, no momento da morte da mãe, um concerto de gri-tos adquire vida.

Não sei se esse feito é uma obra-prima; em todo caso,é um acontecimento. É preciso saudar como aconteci-mento uma tal transformação de atmosfera, em que umpúblico ouriçado de repente mergulha às cegas e que odesarma inapelavelmente.

DUAS NOTAS 165

Há nesse espetáculo uma força secreta e que ganha opúblico tal como um grande amor conquista uma almapronta para a rebelião.

Um jovem e grande amor, um jovem vigor, umaefervescência espontânea e viva circulam através de mo-vimentos rigorosos, através de uma gesticulação estiliza-da e matemática como um gorjeio de pássaros cantoresatravés de colunadas de árvores, numa floresta magica-mente alinhada.

É aí, nessa atmosfera sagrada, que Jean-Louis Barraultimprovisa os movimentos de um cavalo selvagem, e quede repente nos surpreendemos ao vê-lo transformado emcavalo.

Seu espetáculo demonstra a ação irresistível do gesto,demonstra vitoriosamente a importância do gesto e domovimento no espaço. Devolve à perspectiva teatral a im-portância que não deveria ter perdido. Faz da cena, enfim,um lugar patético e vivo.

É em relação à cena e em cena que esse espetáculose organiza: só pode viver em cena. Mas não há um sóponto da perspectiva cênica que deixe de adquirir umsentido emocionante.

Na gesticulação animada, no descontínuo desenrolarde figuras, há uma espécie de apelo direto e físico; algo deconvincente como um ditame, e que a memória não es-quecerá.

Não esqueceremos mais a morte da mãe, com seusgritos que retomam, no espaço e no tempo, a épica tra-vessia do rio, a ascensão do fogo pelas gargantas doshomens e à qual corresponde, no plano do gesto, umaoutra ascensão do fogo, e sobretudo essa espécie de ho-

166 O TEA TRO E SEU DUPLO

mem-cavalo que circula pela peça como se o próprioespírito da Fábula tivesse voltado a descer até nós.

Até agora, apenas o Teatro de Bali parecia ter man-tido um vestígio desse espírito perdido.

O que importa que Jean-Louis Barrault tenha reto-mado o espírito religioso através de meios descritivos eprofanos, se tudo o que é autêntico é sagrado, se seusgestos são tão belos que assumem um sentido simbólico?

Sem dúvida, não há símbolos no espetáculo de Jean-Louis Barrault. E, se é possível fazer uma crítica a seusgestos, é por nos darem a ilusão do símbolo, ao passo queeles circunscrevem a realidade; e é por isso que a açãodesses gestos, por mais violenta e ativa que seja, acabaficando sem prolongamentos.

Ela é sem prolongamentos porque é apenas descritiva,porque narra fatos exteriores em que as almas não inter-vém; porque não atinge diretamente pensamentos e almas,e é nisso, mais do que na questão de saber se essa forma deteatro é teatral, que reside a crítica que se pode fazer a ela.

Do teatro ela tem os meios - pois o teatro que abre umcampo físico exige que esse campo seja preenchido, queseu espaço seja mobiliado com gestos, que se faça viveresse espaço em si mesmo e magicamente, que se percebanele um viveiro de sons, que nele se percebam novas rela-ções entre o som, o gesto e a voz - e é possível dizer que oteatro é isso, o que Jean-Louis Barrault fez dele.

Mas, por outro lado, do teatro essa realização não tema cabeça, ou seja, o drama profundo, o mistério mais pro-fundo do que as almas, o conflito dilacerante das almasem que o resto é apenas um caminho. Em que o homemnão passa de simples ponto e em que as vidas se saciamem sua fonte. Mas quem bebeu da fonte da vida?

O TEATRO DE SERAPHIN

a Jean Paulhan

Há detalhes suficientes para que se compreenda.Explicitar seria estragar a poesia da coisa.

NEUTROFEMININO

MASCULINO

Quero experimentar um feminino terrível. O grito darevolta pisoteada, da angústia armada em guerra e da rei-vindicação.

É como a queixa de um abismo que se abre: a terraferida grita, mas vozes se elevam, profundas como o bura-co do abismo, e que são o buraco do abismo que grita.

Neutro. Feminino. Masculino.Para lançar esse grito eu me esvazio.Não de ar, mas da própria potência do ruído. Ergo à

minha frente meu corpo de homem. E, lançando sobreele o "olho" de uma horrível mensuração, ponto a pontoforço-o a entrar em mim.

O ventre, primeiro. É pelo ventre que o silêncio devecomeçar, à direita, à esquerda, no ponto dos estrangula-mentos herniários, onde operam os cirurgiões.

168 O TEATRO E SEU DUPLO

O Masculino, para fazer sair o grito da força, apoiar-se-ia primeiro no ponto dos estrangulamentos, comanda-ria a irrupção dos pulmões na respiração e da respiraçãonos pulmões.

Aqui, infelizmente, acontece o contrário e a guerraque quero fazer vem da guerra que fazem contra mim.

E em meu Neutro há um massacre! Você compreende,há a imagem inflamada de um massacre que alimentaminha guerra. Minha guerra se alimenta de uma guerra,e cospe sua própria guerra.

Neutro. Feminino. Masculino. Existe nesse neutroum recolhimento, a vontade à espreita da guerra, e quefará sair a guerra, com a força de seu abalo.

O Neutro às vezes é inexistente. É um Neutro derepouso, de luz, de espaço enfim.

Entre duas respirações, o vazio se amplia, mas entãoele se amplia como um espaço.

Aqui é um vazio asfixiado. O vazio apertado de umagarganta, onde a própria violência do estertor obstruiu arespiração.

É no ventre que a respiração desce e cria seu vaziode onde volta a arremessá-lo para o alto dos pulmões.

Isso significa: para gritar não preciso da força, pre-ciso apenas da fraqueza, e a vontade partirá da fraqueza,mas viverá, a fim de recarregar a fraqueza com toda aforça da reivindicação.

No entanto, e este é o segredo, assim como no teatro,a força não sairá. O masculino ativo será comprimido. Emanterá a vontade enérgica da respiração. E a manterápara todo o corpo, e para o exterior haverá um quadro dodesaparecimento da força ao qual os sentidos acreditarãoassistir.

O TEA TRO DE SÉRAPHIN 169

Ora, do vazio do meu ventre alcancei o vazio queameaça o alto dos pulmões.

Daí, sem solução de continuidade sensível, a respi-ração cai sobre os rins, primeiro à esquerda, é um grito fe-minino, depois à direita, no ponto onde a acupuntura chi-nesa espeta a fadiga nervosa, quando ela indica um maufuncionamento do baço, das vísceras, quando ela revelauma intoxicação.

Agora posso encher meus pulmões num barulho decatarata, cuja irrupção destruiria meus pulmões se o gritoque quis dar não fosse um sonho.

Massageando os dois pontos do vazio no ventre e apartir daí, sem passar para os pulmões, massageando osdois pontos um pouco acima dos rins, eles fizeram nas-cer em mim a imagem desse grito armado em guerra,desse terrível grito subterrâneo.

Por esse grito, eu preciso cair.É o grito do guerreiro fulminado que num barulho

de vidros embriagado roça de passagem as muralhasquebradas.

Caio.Caio mas não tenho medo.Livro-me do medo no barulho da raiva, num solene

barrido.Neutro. Feminino. Masculino.O Neutro era pesado e fixo. O Feminino é tonitruante

e terrível, como o uivo de um fabuloso molosso, atarra-cado como as colunas cavernosas, compacto como o arque mura as abóbadas gigantescas do subterrâneo.

Grito em sonho, mas sei que estou sonhando, e nosdois lados do sonho faço reinar minha vontade.

170 O TEA TRO E SEU DUPLO

Grito numa armadura de ossos, nas cavernas de mi-nha caixa torácica que, aos olhos perplexos de minha ca-beça, assume uma importância desmedida.

Mas com esse grito fulminado, para gritar é precisoque eu caia.

Caio num subterrâneo e não saio, não saio mais.Nunca mais no Masculino.

Eu disse: o Masculino não é nada. Ele mantém força,mas me sepulta na força.

E, quanto ao exterior, é uma batida, uma larva de ar,um glóbulo sulforoso que explode na água, o masculino,o suspiro de uma boca fechada e no momento em que elase fecha.

Quando todo o ar passou para o grito e quando não so-bra mais nada para o rosto. Desse enorme barrido de mo-losso, o rosto feminino e fechado acaba de se desinteressar.

E é aqui que começam as cataratas.Esse grito que acabo de lançar é um sonho.Mas um sonho que devora o sonho.Estou num subterrâneo, sem dúvida, respiro, com a

respiração apropriada, oh, maravilha, e sou eu o ator.O ar à minha volta é imenso mas obstruído, pois a

caverna é murada por todos os lados.Imito um guerreiro perplexo, caído sozinho nas caver-

nas da terra e que grita atingido pelo medo.Ora, o grito que acabo de lançar evoca primeiro um

buraco de silêncio, de silêncio que se retrai, depois o ba-rulho de uma catarata, um barulho de água, está na ordem,pois o barulho está ligado ao teatro. É assim que, emtodo verdadeiro teatro, opera o ritmo quando bem com-preendido.

O TEA TRO DE SÊRAPHIN 171

O TEATRO DE SÊRAPHIN:

Isso significa que há novamente magia de viver, queo ar do subterrâneo, embriagado, como um exército re-flui de minha boca fechada para minhas narinas escanca-radas, num terrível barulho guerreiro.

Isso significa que quando represento meu grito dei-xou de girar em torno de si mesmo, mas desperta seuduplo de forças nas muralhas do subterrâneo.

E esse duplo é mais do que um eco, é a lembrança deuma linguagem cujo segredo o teatro perdeu.

Do tamanho de uma concha, adequado para segurarna palma da mão, esse segredo; é assim que fala a Tra-dição.

Toda a magia de existir terá passado para um únicopeito quando os Tempos se encerrarem.

E isso será bem perto de um grande grito, de umafonte de voz humana, uma única e isolada voz humana,como um guerreiro que não tenha mais exército.

Para descrever o grito com que sonhei, para descre-vê-lo com palavras vivas, com as palavras apropriadas epara, boca a boca e respiração contra respiração, fazê-lopassar não para o ouvido, mas para o peito do espectador.

Entre a personagem que se agita em mim quando,ator, avanço em cena e aquela que sou quando avanço narealidade, há uma diferença de grau, sem dúvida, mas embenefício da realidade teatral.

Quando vivo não me sinto viver. Mas quando repre-sento sinto-me existir.

O que me impediria de acreditar no sonho do teatroquando creio no sonho da realidade?

172 OTEA TRO E SEU DUPLO

Quando sonho, faço alguma coisa, e no teatro façoalguma coisa.

Os acontecimentos do sonho conduzidos por minhaconsciência profunda ensinam-me o sentido dos aconte-cimentos da vigília para onde me conduz a fatalidade nua.

Ora, o teatro é como uma grande vigília, onde sou euque conduzo a fatalidade.

Mas [nesse] teatro onde conduzo minha fatalidadepessoal e que tem como ponto de partida a respiração, eque se apoia, depois da respiração, no som ou no grito, épreciso, para refazer a cadeia, a antiga cadeia em que oespectador procurava no espetáculo sua própria realidade,permitir que esse espectador se identifique com o espetá-culo, respiração a respiração e tempo a tempo.

Não basta que essa magia do espetáculo prenda oespectador, ela não o aprisionará se não se souber ondepegá-lo. Basta de magia casual, de uma poesia que não temmais a ciência para apoiá-la.

No teatro, doravante poesia e ciência devem identi-ficar-se.

Toda emoção tem bases orgânicas. É cultivando suaemoção em seu corpo que o ator recarrega sua densidadevoltaica.

Saber antecipadamente que pontos do corpo é preci-so tocar significa jogar o espectador nos transes mágicos.

É [dessa] espécie preciosa de ciência que a poesiano teatro há muito se desacostumou.

O TEA TRO DE SÉRAPHIN 173

Conhecer as localizações do corpo é, portanto, refa-zer a cadeia mágica.

E com o hieróglifo de uma respiração quero reen-contrar uma idéia do teatro sagrado.

México, 5 de abril de 1936