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Palestra proferida em Simpósio Internacional Biotecnologias e Regulações – UFMG – NEPC- IEAT por Laymert Garcia dos Santos

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    Laymert Garcia dos Santos

    Individuao e Controle

    Palestra proferida em Simpsio Internacional Biotecnologias e Regulaes UFMG

    NEPC- IEAT

    Num texto proftico de 1972, intitulado The Android and the Human, o escritorde fico cientfica Philip K. Dick escreveu:

    Tornar-se o que chamo, por falta de um termo melhor, um androide,significa (...) permitir a si mesmo tornar-se um meio, ou ser reduzido,manipulado, transformado num meio sem seu conhecimento ouconsentimento - o que d no mesmo. Mas no se pode transformar umhumano num androide se esse humano vai desrespeitar as leis sempre que

    puder. A androidizao requer obedincia. E, acima de tudo, previsibilidade.p. 191

    Becoming what I call, for lalck of a better term, an android, means (...) toallow oneself to become a means, or to be pounded down, manipulated,made into a means without ones knowledge or consent - the results are thesame. But you cannot turn a human into an android if that human is going tobreak laws every chance he gets. Androidization requires obedience. And,most of all, predictability.

    Falando em termos de fico cientfica, eu agora prevejo um estadoanarquista totalitrio. (...) Se, como parece, estamos (sic) no processo denos tornarmos uma sociedade totalitria na qual o aparelho de estado todo-poderoso, a tica mais importante para a sobrevivncia do verdadeiroindivduo humano seria: Burle, minta, fuja, falsifique, esteja alhures, forjedocumentos, construa dispositivos eletrnicos sofisticados em sua garagem,de modo a suplantar os dispositivos usados pelas autoridades. Se a tela dotelevisor for lhe vigiar, mude os cabos tarde da noite, quando lhe forpermitido deslig-lo - mude os cabos de tal maneira que o policialzinho que

    monitora a transmisso da sua sala espelhe de volta a casa dele. Quandovoc assinar uma confisso sob presso, forje o nome de um dos espiespolticos infiltrados no seu clube de aeromodelismo. Pague sua multa comdinheiro falso, cheque sem fundos ou carto de crdito roubado. Dendereo falso. Chegue ao tribunal num carro roubado. (...) pp. 194-195

    Speaking in science fiction terms, I now foresee an anarchistic, totalitarianstate ahead. (...) If, as it seems we are, [sic] in the process of becoming atotalitarian society in which the state apparatus is all-powerful, the ethics

    most important for the survival of the true, human individual would be: Cheat,lie, evade, fake it, be elsewhere, forge documents, build improved electronicgadgets in your garage thatll outwit the gadgets used by the authorities. If the

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    television screen is going to watch you, rewire it late at night when yourepermitted to turn it off - rewire it in such a way that the police flunkymonitoring the transmission from your living room mirrors back his house.When you sign a confession under duress, forge the name of one of thepolitial spies whos infiltrated your model-airplane club. Pay your fines in

    counterfeit money or rubber checks or stolen credit cards. Give a falseaddress. Arrive at the courthouse in a stolen car. (...)

    A lista de recomendaes continua. Mas penso que j h material suficiente.Escolhi abrir minha interveno sobre Individuao e Controle com estetrecho porque acredito que ele expressa de modo muito sucinto epremonitrio a problemtica da individuao na sociedade global ps-Snowden. Tal problemtica tem como eixo central a dificuldade de

    sobrevivncia de um humano que resiste mais insidiosa investida doprojeto de dominao de todos os tempos: a estratgia de controle doprprio processo de individuao. Com efeito, face lgica deinstrumentalizao total, a possibilidade do humano se individuar encontra-se agora em sua capacidade de inventar-se como um outsider, um fora-da-lei, vivendo aqum e para alm das leis, normas e padres. Ou seja, agora asobrevivncia do humano residiria na imprevisibilidade de seucomportamento, em sua habilidade de tornar-se imperceptvel, no que seucarter tem de indomvel, vale dizer no seu potencial de insurreio. Mas,para tanto, preciso que ele saiba perceber, ou melhor, discriminar, em simesmo, como o controle o ataca em diversas instncias, em diversasfrentes.

    Em meu entender, a estratgia de controle do processo de individuaopode ser detectada em pelo menos trs grandes frentes, cujos contornospretendo apenas delinear, por falta de tempo.

    Em primeiro lugar, na frente filosfica, a instrumentalizao e o controle volevar reconfigurao da dvida hamletiana, tal como percebida por Heiner

    Mller. Agora, a questo ontolgica por excelncia, a de ser ou no ser, no mais formulada pelo humano, mas por um hbrido homem-mquina, oumelhor, por Hamletmquina. Em segundo lugar, na frente econmica, ainstrumentalizao e o controle se expressam atravs da reconfigurao doconceito de homo oeconomicus, tal como analisada por M. Foucault. Estapretende nos induzir a escolher o que o evangelho neoliberal programoucomo otimizao da explorao de nossos recursos humanos (inclusivegenticos), mas pensando que fazemos escolhas por conta prpria e embenefcio prprio; em suma, reduzindo-nos a mquinas de clculo de

    interesse, reprodutoras de padres. Em terceiro lugar, na frente dosconflitos, a instrumentalizao e o controle conduzem reconfigurao daguerra, interna e externa, atravs da transformao do combate em caada

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    humana, tal como pensada por Grgoire Chamayou, em sua teoria dosdrones. Graas aos drones, o poder biopoltico de fazer viver se completacom o poder de fazer morrer se estendendo a qualquer ponto do planeta, apartir dos rastros atuais e virtuais deixados pelos homens, pelo simples fatode existirem.

    Nessas trs frentes, o processo de individuao do humano se v portantocada vez mais ameaado e comprometido. Como Deleuze ensinou, controle,hoje, o nome da dominao, tanto na escala macro, coletiva, quanto namicro, infra-individual.

    Vejamos, ento, como isso acontece na frente filosfica.

    Se tomarmos como ponto de partida os termos de Philip K. Dick, o andride

    e o humano, vale a pena invocar o alcance ontolgico e epistemolgico dotrabalho do poeta e dramaturgo alemo Heiner Mller, porque foi ele quemcaptou uma tendncia contempornea crucial: a estratgia de aceleraoeconmica e tecnolgica total e sua implicao maior: o desaparecimentodo humano no vetor da tecnologia. Tal formulao, efetuada j na dcadade 70, foi posteriormente corroborada pelo fenmeno que os tecnlogosdenominam avalanche tecnolgica. Ora, esse processo coloca em questoo futuro do humano na medida em que aponta para um possvelesgotamento do homem e de sua prpria crise, pelo menos nos moldes emque esta se manifestava desde o advento dos Tempos Modernos.

    No so poucos os autores que vem em Hamlet, de Shakespeare, omomento inaugural da crise que se instaura quando o homem, soberanosem reino, percebe que o tempo est desnorteado, isto que h umdescompasso entre o tempo do sujeito e o tempo da Histria. Mas se otempo se acelera a ponto de tornar o homem obsoleto, no dizer de Gnther

    Anders1, valeria a pena perguntar: Em que medida a problemticahamletiana ainda vlida? E se no for, a que outra problemtica ela dlugar?

    O mais interessante que essa questo ontolgica e epistemolgica foicolocada por um poeta, e no por um terico. Heiner Mller explica que issoaconteceu primeiro no campo da poesia porque o pensamento sempremais lento que a escritura potica, uma vez que a literatura permite dizermais sobre a realidade mais rapidamente do que qualquer teoria. E o quesua escritura potica expressou foi o sentido da passagem do Hamlet paraHamletmachine2e de que maneira tal passagem fornece indicaes preciosaspara o entendimento do futuro do humano.

    1Anders, Gnther. Luomo antiquato 1 e 2. Turim : Bollati Boringhieri, 2003. Trad. de Laura Dallapicola e M. A.

    Mori.2Mller, Heiner. Hamlet-machine prcd de Mauser et autres pices. Paris: Ed. de Minuit, 1979.

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    Talvez tal passagem remeta passagem de uma era a outra, ou melhor passagem de uma formao histrica marcada pelo predomnio da epistememoderna para uma outra que aparentemente j no mais seria regida porela. Ocorre que tudo isso se apresenta nos manuscritos de Hamletmachinecomo teatro mental. O prprio Mller assinalou que tudo se passa como se a

    pea se criasse na mente do dramaturgo como um teatro de vibraes e deintensidades sentidas, que encontram a sua traduo visual no plano daescritura maneira de um sismgrafo ou de um eletrocardiograma quecapta os batimentos cardacos e vai registrando as variaes, regularidadese irregularidades, no papel.

    O que emerge e se figura nesse teatro mental?

    Mller observa, em entrevista a Sylvre Lotringer: (...) Hamletmachine umtexto para coro, uma experincia coletiva, no uma experincia individual.

    Quando escrevo Coro/Hamlet as pessoas no vem isso, porque noquerem ver. No Ocidente elas tm medo das experincias coletivas, pensamtudo em termos de individualidades. Mas no h um Hamlet nico emHamletmachine.3

    A indicao do dramaturgo muito relevante para nosso propsito, namedida em que ela nos faz ver que no estamos diante nem de um Hamlet-indivduo idiossincrtico nem de uma experincia individual, mas sim de umprocesso que precisa ser entendido na dimenso coletiva que lhe prpria.Isto : que Hamlet no pode nem deve ser considerado como um

    personagem real ou fictcio, mas sim como um processo de individuao dohumano cuja verdadeira dimenso coletiva. Assim, o Hamlet deHamletmachine uma instncia, uma espcie de agenciamento coletivo deenunciao, nos termos empregados por Gilles Deleuze e Flix Guattari,incorporando-se num papel.

    Ora, no lance da reconfigurao do Hamlet de Shakespeare por Mller, oque vemos surgir o papel desempenhado por um Hamlet inumano, por umHamletmquina que se afirma, enquanto vemos retrair-se e como que retirar-

    se um Hamlet humano que j se v sem papel para desempenhar, pelomenos na cena em que estvamos habituados a encontr-lo. Captadoscomo figuras espectrais, segundo Jean Jourdheuil, o que eles anunciam um fenmeno psquico indito: a retirada do homem para suas prpriasentranhas e o incio do monlogo da mquina.4

    Est se vendo que, se considerarmos a passagem de Hamlet paraHamletmachine no mbito do processo de individuao, ela expressaria odesaparecimento do sujeito moderno (a polmica afirmao foucaultiana damorte do Homem), a retirada do humano para as suas entranhas, o

    3Ibid. p. 30.

    4Ibid. p. 35.

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    silenciamento de sua voz, inclusive e sobretudo como autor, no plano doagenciamento coletivo de enunciao, e o surgimento de um hbridoHamletmquina que passa a articular um outro discurso, num contexto scio-histrico tambm transfigurado.

    A pergunta que fica : O que significa o humano refugiar-se no silncio dasentranhas enquanto o hbrido assume o monlogo?

    * * *

    A segunda frente da estratgia de controle do processo de individuao aeconmica, com a reconfigurao do conceito de homo oeconomicus, talcomo analisada por M. Foucault, em Naissance de la biopolitique. Tal reflexose inscreve em sua poderosa crtica do neo-liberalismo e de seus

    pressupostos fundamentais, formulada no final da dcada de 70, poucodepois de Mller escrever Die Hamletmaschine.

    O livro de Foucault estabelece de que modo a racionalidade econmicapassa a orientar o governo dos homens, relegando ao segundo planocategorias centrais como razo de Estado, soberano, sujeito de direito,contrato, etc, que constituem os pilares do que entendemos por poltica. Maso que nos interessa aqui o modo como a reformulao do conceito dehomo oeconomicus incide no processo de individuao atravs do controle.

    Assim, as questes que a leitura suscita so : Em que medida a noo dehomo oeconomicus afeta o que se entende por natureza humana ?Reduzindo o humano a um interesse cujo alcance adquire uma dimenso atento insuspeitada, como a teoria do capital humano, ao disponibilizar todosos recursos do homem para o mercado, considera a autonomia dosujeito ? Como pensar o processo de individuao do humano quando algica do mercado invoca o poder no s de orient-lo, mas tambm deconstituir a sua verdade ? O que pode escapar desta lgica e/ou resistir ?

    A reconfigurao do homo oeconomicus concerne as novas articulaes

    entre mercado e indivduo, que vo traz-lo para o centro da cena, emdetrimento do sujeito de direito. Na base portanto do que o filsofo consideraa mutao epistemolgica dos neoliberais, se encontra aquilo que outrosdenominaram anlise de custo/benefcio , que tenta resolver o problemafundamental de se saber como aquele que trabalha utiliza os recursos deque dispe. assim que o trabalho reintroduzido no campo da anliseeconmica. Marx, em sua teoria do modo de produo capitalista abstrarado trabalho concreto a fora de trabalho, entendida como trabalho abstrato, enessa perspectiva o salrio era o preo da venda da fora de trabalho. Mas

    para os neoliberais salrio renda, o produto ou o rendimento de umcapital : Decomposto do ponto de vista do trabalhador em termoseconmicos, o trabalho comporta um capital, isto uma aptido, uma

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    competncia ; como eles dizem : uma mquina 5. E por outro lado uma renda, quer dizer um salrio ou um conjunto de salrios ; como elesdizem : um fluxo de salrios. 6 A conseqncia de tal transformao dotrabalhador que se sua competncia e sua aptido so vistos como suamquina, seu capital que vai produzir fluxos de renda, o prprio trabalhador

    emerge a seus olhos e aos olhos dos outros como uma espcie de empresa.Desse modo, assim como a unidade de base da economia a empresa,tambm a unidade de base da sociedade no mais o indivduo, mas otrabalhador-empresa.

    Ora, tal reconfigurao concerne diretamente o humano, mas no s isso : concerne

    tambm o modo como interesse econmico e interesse tecnocientifico vo convergir

    no sentido de uma reduo do homem dimenso econmica que permitir conceber

    o seu patrimnio gentico como uma riqueza passvel de valorizao.

    Com efeito, analisando a composio do capital humano, o que diz o filsofo? Ocapital humano composto de elementos inatos e de elementos adquiridos :

    Falemos dos elementos inatos. H os que podemos chamar de hereditrios, e outros

    que so simplesmente inatos. (...) Sobre o problema dos elementos hereditrios do

    capital humano, (...) algo est surgindo, que poderia ser, como quiserem,interessante ou inquietante.7Com efeito, nas anlises(...) desses neoliberais, (...) dito explicitamente que a constituio do capital humano s tem interesse, e s se

    torna pertinente, para os economistas, na medida em que esse capital se constitui

    graas utilizao de recursos raros, e de recursos raros cujo uso seria alternativo

    para um dado fim. Ora, evidente que no temos que pagar para ter o corpo quetemos, ou que no temos que pagar para ter o equipamento gentico que o nosso.

    Isso no custa nada. Sim, no custa nada enfim, vai saber, e imaginamos muito

    bem que alguma coisa como isso pode acontecer (aqui, o que fao mal chega a ser

    fico cientifica, uma espcie de problemtica que est se tornando ambiente

    atualmente). (...) [A gentica atual] permite sobretudo estabelecer, para um dado

    indivduo, seja ele qual for, as probabilidades de contrair tal ou tal tipo de doena,

    numa certa idade, durante um dado perodo de sua vida, ou de um modo inteiramente

    qualquer a qualquer momento de sua vida. Em outras palavras, um dos interesses

    atuais da aplicao da gentica s populaes humanas, permitir reconhecer osindivduos de risco e o tipo de risco que os indivduos correm ao longo de sua

    existncia. Vocs me diro : a tambm no podemos fazer nada, nossos pais nos

    fizeram assim. Sim, claro, mas a partir do momento em que se pode estabelecer

    quem so os indivduos de risco, e quais so os riscos para que a unio de indivduos

    de risco produza um indivduo que ter ele prprio tal ou tal caracterstica quanto ao

    risco de que ser portador, podemos perfeitamente imaginar o seguinte : que os

    bons equipamentos genticos isto [aqueles] que podero produzir indivduos de

    5Como observa Foucault em nota, em Investment in Human Capital, Theodore Schultz prope integrar as aptideshumanas inatas em an all-inclusive concept of technology. Cf. Foucault, M. op.cit. p. 243.6Ibid. p. 230.

    7Grifo meu.

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    baixo risco ou cuja taxa de risco no ser nociva para eles, para seus prximos, ou

    para a sociedade -, esses bons equipamentos genticos vo certamente se tornar algo

    raro, e na medida em que sero algo raro, podem perfeitamente [entrar], e normal

    que entrem, nos circuitos ou nos clculos econmicos, isto nas opes alternativas.

    (...) Se lhes digo isso, no de forma alguma beirando a brincadeira ; simplesmente

    uma forma de pensar ou uma forma de problemtica que se encontra atualmente emestado de emulso.

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    Depois de estabelecer a articulao entre reproduo humana e reproduodo capital o filsofo completa : E portanto em termos de constituio, decrescimento, de acumulao e de melhoramento do capital humano que secoloca o problema poltico da utilizao da gentica. Os efeitos, digamos,racistas da gentica so com certeza alguma coisa que preciso temer eque nem de longe foram apagados. Mas essa no me parece a questo

    poltica maior atualmente.

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    Assim, o problema poltico da utilizao da gentica no um problema de poltica

    cientfica. O que Foucault nos ensina, que se trata de um problema da nova razogovernamental, da nova arte de governar . O problema poltico da utilizao da

    gentica parte do problema da reduo do homem ao homo oeconomicus.

    A utilizao da gentica portanto um problema poltico porque o patrimnio

    gentico do indivduo vai entrar nos clculos de seus investimentos enquanto homooeconomicus e vai, portanto, informar e modificar a sua conduta racional. E

    poltico tambm porque essa conduta racional vai se inscrever numa moldura

    desenhada precisamente para valoriz-la. Isso ocorre porque a prpria transformao

    do sujeito em homo oeconomicus permite constituir seus comportamentosracionais como objeto da anlise economica e, em seguida, como objeto da razo

    governamental, estando portanto sujeitos previso e regulao por parte dela -

    citando Gary Becker, Foucault dir que o homo oeconomicus aquele que aceitaa realidade , isto que responde ao real de maneira no aleatria, portanto passvel

    de sistematizao.Assim, o homo oeconomicus a superficie de contato entre oindivduo e o poder porque o indivduo vai fazer suas opes dentro do campo de

    possibilidades que o poder lhe oferece, mesmo e sobretudo quando pensa fazer a mais individual das escolhas, j que ela concerne sua prpria individuao. Fica claro,

    agora, como a introjeo do clculo econmico no mais ntimo da vida tem por

    corolrio a mxima exposio do sujeito a um poder que o manipula.

    Com o homo oeconomicusneoliberal entramos numa nova arte de governar ,num outro sistema de pensamento poltico, numa outra lgica. Alguns anos depois da

    morte de Foucault, Gilles Deleuze vai retomar de modo fulgurantemente sinttico

    essa reflexo sobre o neoliberalismo num texto que s luz de Naissance de la

    8Ibid. pp. 233-234.

    9Ibid. pp. 234-235. Grifos meus.

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    biopolitique adquire a sua verdadeira dimenso. Com efeito, trata-se de um Post-Scriptum10que o filsofo escreve como uma espcie de adendo anlise poderosa

    desenvolvida por seu contemporneo. Ali, Deleuze comea afirmando que, no

    capitalismo, uma nica coisa universal : o mercado. Ao longo das pginas, o leitor

    vai percebendo que o autor com certeza ouviu com a mxima ateno as gravaes

    das aulas no Collge de France pois, incorporando em sua prpria escrita a rupturaanunciada por Foucault, marca a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade

    de contrle, a passagem da fbrica empresa, dos espaos fechados ao espao aberto,

    da troca concorrncia, de um poder exercido com base na modelizao a um outro

    fundado na modulao, da assinatura e do nmero de matrcula senha, da lei e da

    norma jurisprudncia, do par indivduo-massas ao par dividual-amostragens ou

    bancos, do padro-ouro cesta de moedas. O Post-Scriptumprolonga e aprofundaas formulaes relativas ao nascimento da biopolitica, estabelecendo as conexes

    lgicas que o avano do neoliberalismo tornou perceptveis na vida social

    contempornea.

    * * *

    Philip K. Dick sugeriu que a tica para a sobrevivncia do verdadeiro indivduo

    humano residia no comportamento transgressivo e na contraveno. Heiner Mller

    apontou que a passagem de Hamlet para Hamletmquina anunciava a retirada do

    homem para suas prprias entranhas e o incio do monlogo da mquina. Foucault

    analisou de que modo a investida do poder biopoltico programa o homooeconomicus neoliberal, transformando-o num zumbi. Fica evidente, ento, que a

    problemtica da individuao contempornea est indissociavelmente ligada questo de um controle exercido tanto pelo mercado quanto pelo Estado. E sobre a

    natureza desse Estado, em sua relao com o indivduo, que gostaria de terminar.

    Para tanto, recorro ao livro fascinante de Grgoire Chamayou, Thorie du drone, de

    2013. Ali podemos ver com clareza como o Estado trata o humano que sai fora do

    padro, criminalizando-o e transformando-o em alvo de uma autntica caada

    humana. Se a estratgia da sobrevivncia do humano consistia em tentar escapar, no

    plano das micro-aes, veremos agora que precisamente nesse plano que o poderbiopoltico do Estado vai montar o seu dispositivo de captura.

    Com Assange, Snowden e tantos outros, ficamos sabendo que as democracias

    ocidentais do sculo XXI esto se tornando uma fachada. Por trs dela, um imenso e

    permanente sistema de controle garimpa e processa os rastros, os dados eletrnicos

    deixados nas redes pelos cidados do mundo inteiro. A super-exposio constante -

    para se esconder, o indivduo, extremamente vulnervel, se v forado a tornar-se

    imperceptvel. Tarefa difcil.

    10 Post-Scriptum sur les socits de contrle , in Deleuze, Gilles. Pourparlers. Paris : Minuit, 1990.

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    A teoria do drone, do filsofo francs, mostra no o devir empresa, mas o devir presa

    do indivduo. O drone definido como um veculo terrestre, naval ou aeronutico,

    controlado distncia ou de modo automtico (p. 21). Chamayou, que em seu livro

    se ocupa unicamente dos drones voadores armados, sublinha a mxima estratgica

    fundamental desse tipo de mquina, citando um oficial da Fora Area americana,

    para quem A verdadeira vantagem dos sistemas de aeronaves sem piloto permitirprojetar poder sem projetar vulnerabilidade. (p. 22) Pois graas ao drone, anica vulnerabilidade exposta violncia armada a de um inimigo reduzido condio de mero alvo.

    Projetar poder sem projetar vulnerabilidade significa transformar radicalmente o

    estado de guerra num estado de violncia em que o combate, o enfrentamento

    guerreiro, se torna uma espcie de tiro ao alvo, em suma um assassinato seletivo, uma

    caa ao homem.

    Assim, no captulo Vigiar e aniquilar, Chamayou expe os princpios operatrios

    que orientam a estratgia dos promotores dos drones, essas armas que

    revolucionaram nossa capacidade de lanar um olhar constante sobre o inimigo: (p.58)

    1. Princpio de olhar persistente ou de viglia permanente- trata-se de umaviglia geoespacial constante do olhar institucional;

    2. Princpio de totalizao das perspectivas ou de viso sinptica - aquele quepreconiza: Ver tudo, o tempo todo;3. Princpio de arquivamento total ou do filme de todas as vidas - aqueleque, ao controle em tempo real acrescenta a funo de gravar e arquivar;4. Princpio de fuso dos dados - trata-se de interceptar todo tipo decomunicao eletrnica para processar as diferentes camadas de informao de um

    mesmo acontecimento;

    5. Princpio de esquematizao das formas de vida - aqui interessa avisualizao dos dados de diversas fontes para o estabelecimento de padres dos

    seres vivos, com o objetivo de ver emergirem os elementos suspeitos que se

    destacam por seus comportamentos anmicos. Fundado numa anlise das condutas,

    e no mais no reconhecimento de identidades nominais, tal princpio no busca aidentificao singular, mas sim a genrica;

    6. Princpio de deteco das anomalias e de antecipao preventiva -trata-se de escanear as imagens a fim de detectar, no emaranhado das atividades, os

    acontecimentos pertinentes para o olhar securitrio. Como afirma um analista

    militar, analisar as imagens capturadas pelos drones uma atividade a meio

    caminho entre o trabalho policial e as cincias sociais.

    Esses princpios operatrios constituem a base a partir da qual vai se dar o que os

    especialistas militares denominam anlise das formas de vida (pattern of lifeanalysis), que consiste num mapeamento conjunto do socius, do locus e do tempus.Vale dizer: a sobreposio do Facebook, do Google Maps e de um calendrio do

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    Outlook num mesmo mapa digital. Ou, melhor dizendo: um mtodo de espionagem

    fundado na atividade. Com a palavra o filsofo: A atividade constitui uma

    alternativa identidade: quando um alvo nominativo designado, em vez de se

    buscar localiz-lo, fazer o inverso - comear por vigiar, juntar dados, traar grficos

    em larga escala, para em seguida, atravs da anlise dos big data fazer emergir os

    pontos nodulares que, em virtude da posio e do tamanho que suas bolinhas de corcomeam a ocupar no diagrama geral, podem ser identificadas como ameaas que

    precisam ser neutralizadas. (p. 73)

    Como observa o filsofo, o mundo inteiro se torna uma reserva de caa - pois se em

    ltima instncia o que define a guerra o combate, o que define a caa a

    perseguio. Tornando-se estratosfrico graas ao drone, continua Chamayou, o

    poder imperial modifica sua relao com o espao: no se trata de ocupar umterritrio, mas de control-lo de cima, assegurando-se o domnio dos ares. O que

    Eyal Weizman descreve como uma poltica da verticalidade.

    Assim, a caa ao homem, que comeou com a caa ao terrorista, acabou instaurando,graas revolucionarizao da guerra propiciada pelos drones, um terrorismo de

    Estado que, para operar, passa a exigir a construo de todo um aparato jurdico-

    poltico capaz de legitim-lo e legaliz-lo. Ora, o que Chamayou mostra, que, na

    perspectiva persecutria desse Estado, perspectiva policialesca e securitria, os

    inimigos so terroristas. Mas, cada vez mais, os terroristas so indivduos

    aberrantes, personalidades perigosas, que surgem como encarnaes do mal.

    Segundo o filsofo, o Estado terrorista instaura o que ele chama de necro-tica, isto

    uma doutrina de bem-matar, ancorada nos princpios da filosofia do direito dematar. Com efeito, toda a parte IV do livro dedicada aos carrascos filsofos, aos

    pensadores que vm se dedicando formulao da legitimidade dessa nova licence

    to kill.

    No h tempo para tratarmos, aqui, do modo como a necro-tica analisada por

    Chamayou. Mas importa lembrar que, um ano depois de Philip K. Dick escrever seu

    The Android and the Human, em 1973, portanto, quando as foras armadas

    americanas comeavam a tirar as lies da guerra do Vietnam e a desenvolver osdrones armados, um grupo de jovens cientistas engajados nos movimentos anti-

    guerra publicaram em sua revista militante Science for the People o seguinte:

    Assim como a guerra area sucedeu a guerra terrestre, uma nova forma de guerra vai

    substituir a guerra area. Ns a chamaremos de guerra distncia. [...] A guerra distncia repousa sobre o conceito fundamental de sistema pilotado distncia [...]o veculo, situado ao longe recebe informaes via captadores colocados a bordo. [...]

    Para corpos humanos com capacidades necessariamente limitadas, ainda que tenham

    armas, qualquer defesa torna-se v diante de tais aparelhos, cujos nicos limites queconhecem so os mecnicos. A guerra distncia uma guerra de mquinas

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    humanas contra o corpo humano. como se o esprito humano tivesse idose alojar nas mquinas a fim de destruir o corpo humano. (pp. 309-310)