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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO 6282 INDÚSTRIA BRASILEIRA E A EMERGENTE DIVISÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (DIT): DESAFIOS DA INDÚSTRIA BRASILEIRA DE CALÇADOS A LUZ DA CRISE MUNDIAL DE 1973 HELTON ROGÉRIO DA ROSA 1 Resumo: A partir da crise de realização capitalista da década de 1970, a saber, fase recessiva do 4º ciclo de Kondratieff, o centro capitalista mundial tratou de reorganizar a produção aprofundando suas relações, tanto comerciais quanto produtivas, com os países da periferia do sistema. Aproveitando-se dessa “janela de oportunidade” criada pela reorganização produtiva encetada no centro do capitalismo mundial, a indústria brasileira de calçados, reagindo ativamente aos impulsos emanados a partir daquele centro, tratou de abocanhar grandes parcelas de mercados localizados nos países desenvolvidos, condição que elevou o país a figurar entre os principais produtores e exportadores mundiais a época. Palavras-chave: Indústria brasileira; indústria de calçados; reorganização produtiva. Abstract: From the capitalist realization crisis of the 1970s, namely recessive phase of the 4th Kondratieff cycle, the world capitalist center tried to reorganize production deepening their relations, both commercial and productive, with the countries of the periphery of the system. Taking advantage of this "window of opportunity" created by the productive reorganization initiated at the center of world capitalism, the Brazilian footwear industry, actively reacting to impulses emanating from that center, tried to snatch up large portions of markets located in developed countries, a condition that raised the country to be among the main world producers and exporters the season. Key-words: Brazilian industry; footwear industry; productive reorganization. 1 Introdução Sob o invólucro da fase B do quarto ciclo de Kondratieff, desencadeado a partir da crise capitalista da década de 1970, a economia mundial pôs em marcha um profundo projeto de reajustamento da produção visando, sobretudo, a objetivação do capitalismo mediante a acoplagem de novas frentes geográficas de atuação, nítido movimento expansivo do capital como assinalou Mamigonian (1999). Tal dinâmica foi marcada pela reestruturação de setores-chave, notadamente aqueles de alta e média tecnologia, no seio da economia capitalista mundial e pela expulsão de setores tecnologicamente maduros, onde a estagnação das taxas de 1 Acadêmico do curso de Pós-Graduação em Geografia, nível doutorado, pela Universidade Federal de Santa Catarina - PPGGEO/UFSC. Contato: [email protected].

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INDÚSTRIA BRASILEIRA E A EMERGENTE DIVISÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (DIT): DESAFIOS DA INDÚSTRIA BRASILEIRA DE CALÇADOS A LUZ DA CRISE MUNDIAL DE 1973

HELTON ROGÉRIO DA ROSA1

Resumo: A partir da crise de realização capitalista da década de 1970, a saber, fase recessiva do

4º ciclo de Kondratieff, o centro capitalista mundial tratou de reorganizar a produção aprofundando suas relações, tanto comerciais quanto produtivas, com os países da periferia do sistema. Aproveitando-se dessa “janela de oportunidade” criada pela reorganização produtiva encetada no centro do capitalismo mundial, a indústria brasileira de calçados, reagindo ativamente aos impulsos emanados a partir daquele centro, tratou de abocanhar grandes parcelas de mercados localizados nos países desenvolvidos, condição que elevou o país a figurar entre os principais produtores e exportadores mundiais a época.

Palavras-chave: Indústria brasileira; indústria de calçados; reorganização produtiva. Abstract: From the capitalist realization crisis of the 1970s, namely recessive phase of the 4th

Kondratieff cycle, the world capitalist center tried to reorganize production deepening their relations, both commercial and productive, with the countries of the periphery of the system. Taking advantage of this "window of opportunity" created by the productive reorganization initiated at the center of world capitalism, the Brazilian footwear industry, actively reacting to impulses emanating from that center, tried to snatch up large portions of markets located in developed countries, a condition that raised the country to be among the main world producers and exporters the season. Key-words: Brazilian industry; footwear industry; productive reorganization.

1 – Introdução

Sob o invólucro da fase B do quarto ciclo de Kondratieff, desencadeado a

partir da crise capitalista da década de 1970, a economia mundial pôs em marcha

um profundo projeto de reajustamento da produção visando, sobretudo, a

objetivação do capitalismo mediante a acoplagem de novas frentes geográficas de

atuação, nítido movimento expansivo do capital como assinalou Mamigonian (1999).

Tal dinâmica foi marcada pela reestruturação de setores-chave, notadamente

aqueles de alta e média tecnologia, no seio da economia capitalista mundial e pela

expulsão de setores tecnologicamente maduros, onde a estagnação das taxas de

1 Acadêmico do curso de Pós-Graduação em Geografia, nível doutorado, pela Universidade Federal

de Santa Catarina - PPGGEO/UFSC. Contato: [email protected].

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lucros já não mais despertavam interesses para novas inversões de capitais,

marcada característica dos períodos depressivos dos ciclos longos.

Como fator resultante, a periferia capitalista formada por diversos países em

via de industrialização foi, contrariamente as fases recessivas dos ciclos pretéritos2,

chamada a aprofundar sua participação na divisão internacional do trabalho (D.I.T)

mediante nova orquestração produtiva baseada, não mais nas simples vantagens

comparativas naturais, mas também sob vantagens advindas da abundância em

fator trabalho que dispunham, equivale dizer, mão de obra numerosa e barata3.

Interessa-nos dizer que foi justamente nesse quadro de efervescência do

capitalismo mundial que a periferia passou por um induzido processo de

especialização da produção, não por acaso, em setores produtivos onde a demanda

pelo fator trabalho se configurou num significativo limitante a retomada do lucro nos

países desenvolvidos. Note-se que tal estratégia se mostrou duplamente atrativa a

reestruturação produtiva em vias de realização no centro do sistema capitalista, pois,

ao expurgar as indústrias tecnologicamente maduras e intensivas em trabalho para a

periferia do sistema, o capitalismo desenvolvido pôde: a) prolongar a vida útil do

aparato produtivo tecnologicamente obsoleto e que foram direcionados aos novos

produtores periféricos estendendo, portanto, seus lucros sob a forma de repasse de

equipamentos a países em vias de industrialização, e b) importar produtos

manufaturados, sobretudo os de consumo simples como calçados, têxteis, etc; a

preços mais convidativos produzidos na periferia e que serviram para manter

estáveis o poder de compra da massa trabalhadora sem elevação real dos salários,

notadamente, fazendo arrefecer a pressão exercida pelo capital variável sobre as

taxas de lucro.

2 Conforme a dinâmica dos ciclos de Kondratieff, nas fases B dos ciclos, os mercados, sobretudo

aqueles do centro do sistema capitalista mundial, tendem a se fechar em nítido movimento defensivo dos mercados internos, condição que faz dificultar as trocas comerciais, dinamizadas nas fases ascendentes, com a periferia. Segundo Rangel, “para os nossos países (periféricos), a passagem à fase descendente do ciclo significa simplesmente certa tendência para a queda do volume e a imposição de termos de intercâmbio menos favoráveis, vale dizer, redução de nossa participação na divisão internacional do trabalho e agravamento das condições em que essa se faz” (RANGEL, 2005, p. 279. Grifo nosso). 3 De acordo com Mamigonian (1999) “o período depressivo 1973-96 empurrou várias produções

industriais para fora do dentro do sistema (compressora para Singapura e Brasil) ou para novas regiões industriais dentro do centro do sistema (Sul dos EUA, península Ibérica, etc.).”

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Como se sugere, foi justamente nessa vaga produtiva induzida a partir das

oscilações cíclicas gestadas no centro do capitalismo mundial que a estrutura de

produção brasileira voltada à fabricação de calçados buscou maior inserção

internacional, tornando-se nessa ocasião um país de grande relevância no cômputo

mundial em termos de volumes de produção4.

Vale dizer que essa inserção nos mercados mundiais não se deu por simples

coincidência, mas foi propiciada pelo ulterior desenvolvimento das forças produtivas

nacionais que, desde meados do século XIX, vinha se firmando entre o quadro

produtivo brasileiro, onde no caso da manufatura dos calçados, atrelava-se ao

desenvolvimento de uma produção artesanal que antecedeu a própria

industrialização do país.

Dessa forma posto, no presente artigo serão tecidas algumas considerações

acerca da indústria de calçados brasileira. Além da introdução que visou demarcar o

espaço conjuntural da discussão, o trabalho segue com mais três sessões. Nas

sessões seguintes serão tratados temas que abarcam desde a especialização da

produção, característica fundamentalmente geográfica, até a inserção internacional

da produção datada da década de 1970. Em tom conclusivo, o trabalho finaliza

coma uma rápida análise da conjuntura inaugurada com a reestruturação produtiva

ocorrida na década de 1990 e que, ao que tudo indica, ainda está em andamento.

2 – Uma breve história da manufatura de calçados no Brasil.

Em seu seminal trabalho acerca da origem da indústria brasileira, W. Suzigan

(2000) afirma que ao irromper o processo de industrialização no país mediado pelo

conhecido movimento de substituições de importações (S.I), a indústria de calçados

já se encontrava plenamente instalada, sugerindo que nesse caso específico tal

movimento não explicaria o surgimento do quadro produtivo industrial. Importa-nos

dizer que tal afirmação trata-se de uma meia verdade.

4 Ainda segundo Santos et al (2002), o mesmo fenômeno pôde ser observado para a indústria do

couro, onde após a década de 1970 o país passa a figurar como um dos maiores produtores e exportadores mundiais de couro.

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De fato, a indústria de calçados antecedeu a substituição de importação do

tipo industrial aludida por Suzigan, ela se fez mediante a internalização da produção

em sua fase natural ocorrida ainda durante a fase b do 1º ciclo de Kondratieff (1815-

48) como afirmava Rangel (2005). Aliás, cabe dizer que, através da leitura a partir

dos ciclos de longa duração é possível perceber o caráter geográfico da indústria de

calçados ao longo da história do desenvolvimento econômico brasileiro.

Temos que na fase b do 1º ciclo de Kondratieff (1815-48), dado o

arrefecimento do lado mais dinâmico de nossa economia, aquele voltado às

exportações, as fazendas redistribuíam seus fatores de produção, menos para o

mercado e mais para o autoconsumo, produzindo gêneros de toda ordem, inclusive

calçados (PAIM, 1957; RANGEL, 2005). Não é por acaso que a gênese do fabrico de

calçados se deu internamente as unidades autônomas de produção salpicadas por

vasta extensão do território brasileiro.

Eis uma característica genética marcante que persiste ainda na atualidade,

pois, ao nascer como atividade que visava o autoconsumo, não mercantil, portanto,

a estrutura manufatureira se desenvolveu em relação anárquica ao mercado

consumidor aos moldes capitalista, vale dizer, inexistente à época. Dai a produção

se manifestar por diferentes pontos do território nacional ainda em tempo presente.

Na fase b do 2º Kondratieff (1873-96), obedecendo à sequência de nossas

substituições de importações enunciadas por Rangel (2005), a fabricação dos

calçados irrompe as amarras do complexo rural e vai se desenvolver de forma

artesanal nos centros urbanos em formação buscando a mercantilização da

produção. Sob égide do capital comercial e buscando mercados consumidores em

potencial, a produção se instalou nas duas maiores cidades em formação do país,

notadamente, Rio de Janeiro e São Paulo, onde assumiu caráter industrial e

permaneceu de forma hegemônica até meados do século XX.

Os dados confirmam que, já em 1910, num total de 37 estabelecimentos

fabris com representatividade em termos de produção e operários, 21 estavam

localizados no Rio de Janeiro e 13 em São Paulo, onde as fábricas com maiores

dimensões físicas e melhores equipadas eram a Condor no Rio de Janeiro,

empregando 300 operários e produzindo 800 pares diários e a Clark, em São Paulo,

com 250 operários e produção que alcançava mil pares/dia (SUZIGAN, 2000).

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Paradoxalmente, essa situação de hegemonia produtiva tenderia a ser

modificada com o desenvolvimento do fenômeno industrializante nesses dois

grandes centros urbanos nacionais. Intui-se que, tendo nossa industrialização

iniciado pelos bens de consumo simples, condição possibilitada pela importação de

tecnologia desenvolvida no centro do sistema, nosso departamento I pré-industrial

caracterizava-se por ser altamente insumidor de mão-de-obra, logo, concorrente

direto da indústria de calçados por braços, o que fez reverberar em custos de

produção cada vez menos atrativos.

Dessa forma, aos poucos a produção, em grande medida dominada pelo

capital comercial, passa a perder fôlego nesses grandes centros urbanos e ganha

força em formações sociais periféricas típicas de pequena produção mercantil onde ,

geneticamente, os investimentos estavam atrelados à produção. Não por acaso

Franca (SP) imigrante e Novo Hamburgo (RS) também imigrante, ambos com longa

tradição na manufatura de artigos em couro, assumirem a dianteira na produção de

calçados no Brasil já em meados do século XX (CARNEIRO, 1986).

3 – Especialização da produção como fenômeno geográfico.

A especialização da produção, no que concerne a indústria calçadista

brasileira, tratou-se de um fenômeno de ordem geográfica que implicou num

aprofundamento da divisão social do trabalho “fundada na ocupação de áreas até

então periféricas” (SANTOS; SILVEIRA, 2011, p. 105) à produção desenvolvida em

São Paulo e Rio de Janeiro.

Temos que até os finais da década de 1960, a estrutura produtiva calçadista

já assumia sua forma mais moderna e acabada em Franca (SP) e Novo Hamburgo

(RS), onde o primeiro se especializou na produção de calçados masculinos,

tornando-se o maior polo produtor desse tipo de calçados na América Latina

(NAVARRO, 2006), e o segundo enveredou pela especialização em calçados

femininos, tornando-se, por sua vez, um dos maiores polos produtores mundiais de

calçados (COSTA, 2004).

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Segundo L. Carneiro (1986) a especialização produtiva significou um avanço

na estrutura industrial brasileira e ter-se-ia iniciado em finais da década de 1930,

onde a proximidade geográfica com o fenômeno de industrialização brasileira

desempenhou fator determinante frente ao estado de coisas que viria a ser

inaugurado no setor de calçados no Brasil.

Franca (SP), por estar geograficamente próxima ao centro irradiador da

industrialização nacional, São Paulo, teria se aproveitado da crescente oferta de

tecnologia, notadamente máquinas e equipamentos capazes de modernizar a

produção, não por acaso aprofundado sua trajetória de desenvolvimento industrial

naquele produto mais dócil, por assim dizer, ao trato mecânico, logo, dedicando-se a

produção de calçados masculinos que, no geral, são mais padronizados em termos

de processos produtivos5.

Concorriam a favor de Franca (SP), além do crescente mercado consumidor

em expansão, fruto da atração de milhares de migrantes, “a instalação no país de

fabricantes americanos de máquinas para calçados, a United Shoe Machinery Co

que, desde 1908, passou a operar num sistema revolucionário de arrendamento de

equipamento e assistência técnica para fábricas de calçados” (SUZIGAN, 2000, p.

193).

No seu oposto, Novo Hamburgo (RS), geograficamente desprivilegiado frente

a sua congênere paulista, tanto na proximidade do mercado nacional quanto em

possibilidade de acesso a máquinas e equipamentos mais sofisticados, especializou-

se quase que naturalmente na produção de calçados femininos, ainda na atualidade,

arredio a mecanização e mais intensivo em processos artesanais.

Foi natural, pois, impossibilitada de concorrer no mercado nacional com a

produção francana com níveis de mecanização e produtividade superiores, a

produção gaúcha tratou de garantir sua participação no mercado nacional em vias

5 Segundo Navarro, a maior facilidade para a obtenção de máquinas e o crescimento do mercado

consumidor permitiu que algumas das fábricas de calçados de Francas se expandissem, tanto física quanto produtivamente (NAVARRO, 2006).

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de formação mediante a oferta de produtos diferenciados daqueles produzidos em

Franca (SP), notadamente, calçados femininos6.

Como seria de se esperar, a especialização como estratégia produtiva

garantiu à produção paulista a liderança nacional, onde o estado passou de uma

participação de 37,5% em 1955 para 59,9% em 1969 sob o montante total produzido

no país, vale lembrar, período que antecede a inserção internacional da produção.

Por outro lado, a estratégia acertada das firmas gaúchas em fugir ao embate direto

com as firmas paulista, garantiu a liderança na produção de calçados femininos,

onde o Rio Grande do Sul saltou de 39,8% em 1955 para 60.8% em 1969 nesse

nicho específico de mercado.

Ao fim e ao cabo, as vantagens advindas da especialização, superando a

anarquia produtiva até então vigente nas mais diversas regiões produtoras do país,

significou a estruturação planejada de um importante parque produtor nacional que

passou a gravitar em torno de Franca (SP), produtor especializado em calçados

masculinos, e Novo Hamburgo (RS), especializado em calçados femininos, o que

serviria de base para a futura inserção internacional da produção nas décadas

seguintes.

4 – Internacionalização, estrutura e desenvolvimento pós-década de 1970.

A internacionalização da produção brasileira deveu-se a dois grandes fatores,

um de ordem interna e outro de ordem externa. Partícipe de um plano maior

encetado pelo Estado nacional visando alargar sua pauta exportadora em finais da

década de 19607, a indústria de calçados foi privilegiada por uma série de incentivos

fiscais que contavam com isenções progressivas sobre impostos de circulação,

produção e renda, além de incentivos creditícios que possibilitavam sua inserção

internacional de maneira subsidiada. De grande importância às exportações foi

6 Em 1950 foram produzidos no Rio grande do Sul 1.044.178 pares de calçados para homens,

2.249.529 pares de calçados femininos, 5.422.133 pares de alpargatas, chinelas e similares, grupo que incluía os calçados leves. (CARNEIRO, 1986). 7 Segundo Navarro (2006) o chamado “esforço exportador” surgiu como um paliativo que visava

atenuar os desequilíbrios entre balança comercial e a balança de pagamentos do país, resultados da progressiva composição da dívida externa brasileira a época.

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também a política de minidesvalorizações cambiais levadas a efeito pelo governo a

partir de 1968, onde as desvalorizações da moeda nacional frente ao dólar norte-

americano atuavam de forma a aumentar deliberadamente o crédito recebido pelos

exportadores (NAVARRO, 2006), condição que se somava as já citadas tornando o

mercado externo mais atrativo que o mercado nacional.

Já no plano externo, concorreram para o sucesso exportador do calçado

“made in Brazil” o arrefecimento da produção no centro do sistema mundial,

condição que reverberou em gigantescos e continuados pedidos de produção as

firmas brasileiras que viram suas escalas saltarem a níveis nunca antes alcançados,

tanto de calçados masculinos, mas principalmente, de calçados femininos.

Nesse sentido, não seria exagero dizer que a década de 1970 significou para

indústria calçadista nacional importante ponto de inflexão. A conjuntura inaugurada

no período possibilitou as firmas brasileiras uma verdadeira válvula de escape à

capacidade ociosa armazenada em sua estrutura de produção, pois, ao contrário do

mercado interno que contava com severa sazonalidade em questão de vendas, o

mercado externo significou vendas certas e continuadas ao longo do ano, permitindo

linearidade a produção8.

Posto noutros termos, as exportações de calçados brasileiros que eram da

ordem de quatro mil pares e US$ 8 milhões em 1970 saltaram para os

impressionantes 201 milhões de pares e US$ 1.846 em 1993, notadamente,

vislumbrando no mercado norte-americano seu principal market share. Segue-se

que o gradativo avanço visando aprimoramento das técnicas de produção, bem

como a melhoria contínua dos produtos, alçou o Brasil ao posto de um dos maiores

produtores e exportadores mundiais de calçados, condição que ainda se apresenta

mesmo diante as adversidades enfrentadas pelo setor na atualidade.

A inserção internacional revelou outro ponto tangencial à produção nacional

de calçados, pois, os calçados femininos que haviam relegado a produção gaúcha a

posto subalterno em relação à produção paulista desde 1930, passaram a liderar as

exportações nacionais a partir da década de 1970 graças ao apelo do quesito “moda”

8 É interessante dizer que, enquanto o mercado nacional concentra suas vendas sobre o quarto

trimestre do ano, condição avalizada pelas vendas de natal, o mercado norte americano, pela longa tradição consumista daquela sociedade, mantém-se atrativo o ano todo.

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sobre os produtos. Essa inversão significou nova mudança no centro geográfico da

produção passando a hegemonia nacional ao estado do Rio Grande do Sul que,

entre o período que se estende entre 1972 e 1984, participou com média superior a

70% dos valores exportados pelo país. (CARNEIRO, 1986).

Por seu turno, a mudança no compasso hegemônico produtivo findou na

formação de uma região produtora muito mais completa em termos de estrutura que

sua congênere paulista, pois, a mudança estrutural suscitou novos investimentos

que se espraiaram para novas indústrias adjacentes à produção principal como a

fabricação de máquinas e equipamentos, matéria-prima de toda ordem e serviços.

No que se refere ao fator estrutural, interessa-nos assinalar que a década de

1970, e sua consequente orientação aos mercados internacionais, findaram em

cindir a estrutura industrial em dois segmentos bastante particulares.

O primeiro segmento de firmas, voltado primordialmente às exportações, foi

liderado pelas empresas mais capacitadas do setor que passaram a atuar

estrategicamente voltada a grande escala de produção, sendo encabeçadas pelas

regiões produtoras de Franca (SP) e Novo Hamburgo (RS). O segundo segmento foi

aquele em que, tanto firmas menos capacitadas de Franca (SP) e Novo Hamburgo

(RS) quanto regiões produtoras menos dinâmicas como, por exemplo, São João

Batista (SC), souberam aproveitar as oportunidades geradas no mercado nacional

com a atenção das grandes firmas do setor voltadas ao mercado internacional.

Eis uma característica que viria a se revelar como ponto nodal no processo de

desenvolvimento futuro do setor de calçados no Brasil. Por estar atrelada a

produção em grandes escalas, as firmas que se voltaram às exportações reduziram

gradativamente suas linhas de produção bem como, seus esforços voltados ao

desenvolvimento dos produtos como aqueles ligados ao design e marketing, pois,

nesse tipo de negócio, marcado pelo que se convencionou chamar de private label,

ou seja, calçados fabricados com etiquetas dos contratantes, as firmas recebem

todas as especificações produtivas de acordo com o gosto do cliente.

No seu extremo, as firmas que recorreram ao mercado interno, vale dizer,

muito mais dinâmico que aquele ligado ao exterior, foram obrigadas a empreender

em constantes mudanças na concepção do produto. Por seu turno, como

trabalhavam em estratégia diferenciada daquela vigente nas exportações, já que

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deveriam alcançar nichos de mercados variados, as firmas desse segmento eram

especializadas na produção em escopo, vale dizer, múltiplas linhas de produtos e

volumes reduzidos.

De acordo com H. Rosa (2014), em São João Batista (SC) a produção voltou-

se ao calçado feminino “tipo modinha”. Nesse tipo de produção os calçados são

produzidos em pequenas quantidades e com grades de numeração abertas, o que

possibilita ao varejista adquirir apenas aqueles números com maior rotatividade nas

vendas, inibindo capitais ociosos em produtos encalhados. No entanto, a principal

característica do calçado “tipo modinha” diz respeito à validade dos modelos, pois,

como o próprio nome sugere, os adereços que enfeitam os calçados mudam com

frequência que variam entre dois e três meses de produção, quando são

substituídos por novos adereços que caracterizam, portanto, nova modinha.

Eis uma estratégia que surge como embrionário processo de formação de

uma moda abrasileirada, condição que possibilita certa blindagem ao mercado

interno já que calçados estrangeiros não conseguem acompanhar as rápidas

mudanças observadas na produção “tipo modinha” endereçadas ao mercado interno

(ROSA, 2014).

Tais características seriam vitais ao desenvolvimento do setor na década de

1990, pois, diante do pareamento cambial levado a efeito pelo Plano Real, em

novembro de 1994, as grandes firmas voltadas as exportações foram duramente

afetadas. Já aquelas firmas que estavam acostumadas com a dinâmica do mercado

interno souberam assimilar melhor os efeitos recessivos intrínsecos a crise que se

seguiu. Enquanto as firmas exportadoras padeciam com ajustes estruturais visando

retorno ao atendimento do mercado interno9, vale lembrar, muito mais dinâmico do

que aquele ambiente que estavam acostumadas a operar, as firmas menores já

haviam se preparado pela própria contingencia produtiva a que foram expostas nas

décadas anteriores, vale dizer, produção mais flexível e capaz de ajustes rápidos as

oscilações do mercado.

9 Segundo assinalou Antônio Barros de Castro (2011, p. 89) “uma interessante ilustração pode ser

encontrada no ocorrido com a empresa Alpargatas. Entre 1991 e 1992, a empresa enfrentou um grave período de sua história, amargando um prejuízo de US$ 121 milhões” Ainda segundo o autor, em virtude da queda significativa no faturamento a empresa foi obrigada e enxugar o quadro de funcionários passando de 32.000 em 1991 para 17.000 em 1992.

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Queremos com isso dizer que, numa análise mais aprofundada sobre a

dinâmica setorial, a afirmação de que “a crise atingiu as empresas a partir do mesmo

ano e mesma direção, tanto para as empresas localizadas no cluster do Vale dos

Sinos quanto para as demais regiões brasileiras” (COSTA, 2004, p.19) é facilmente

refutada. Fugindo a homogeneização quanto ao efeito da crise, H. Rosa (2014)

demonstrou que foi justamente na década de 1990, período de intensos

constrangimentos ao segmento exportador, que a principal região produtora de

Santa Catarina viu nascer as principais firmas do setor de calçados.

Conclusão

O Brasil fechou o ano de 2014 com uma produção de 876 milhões de pares

de calçados, variação negativa em relação ao ano anterior em aproximadamente 2,5

pontos percentuais. Desse montante, ficaram no mercado interno, maior diferencial

geográfico da indústria calçadista brasileira, 747 milhões de pares, equivale dizer, 85%

de tudo que produzimos. Um notável avanço que foi possibilitado pela profunda

evolução social e econômica do país nos últimos anos.

Por seu turno, no cenário internacional passamos de quarto maior exportador

em meados da década de 1980, quando contribuímos com 7,4% do comercio

mundial de calçados, para a décima quinta posição em 2014, quando representamos

1,3% do total comercializado no planeta. Como chegamos a essa situação?

De fato, a reestruturação produtiva ocorrida na década de 1990,

diferentemente daquela posta em andamento na década de 1970, deu start a uma

reestruturação de caráter defensivo. No fundamental, o deslocamento de linhas de

produção para o Nordeste do país tratou-se de tentar reproduzir as condições

favoráveis observadas na década de 1970 baseadas no baixo custo do fator trabalho,

notadamente, estratégia que buscou sobre fôlego frente à produção asiática.

Em síntese, o que se pode observar pós-década de 1990 é que, enquanto

países como Itália, Portugal e Espanha buscaram avançar no trato produtivo

diferenciando produtos e agregando valor mediante desenvolvimento de marketing e

design, a produção brasileira enveredou na tentativa de resgatar sua posição entre

os maiores exportadores mundiais mediante aprofundamento da estratégia

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deflagrada na década de 1970.

Frente ao exposto, não seria exagero dizer que na atualidade a indústria

calçadista brasileira encontra-se num limbo produtivo frente suas congêneres

mundiais. Com preços médios que giram em torno de US$ 11 por par, ficamos

aquém da concorrência direta com a China, cujo preço médio é US$ 3,87 por par, e

mais distantes ainda do nicho superior, onde Portugal e Espanha, nossos maiores

concorrentes dada nossa especialidade produtiva, atingem preços médios que

variam entre US$ 20 e US$ 35 por par.

REFERENCIAS

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