Infancia Cultura e Midia

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Currículo sem Fronteiras, v.11, n.1, pp.138-155, Jan/Jun 2011 ISSN 1645-1384 (online) www.curriculosemfronteiras.org 138 INFÂNCIA, CULTURA E MÍDIA: Reflexões sobre o narrar das Crianças na Contemporaneidade 1 Adriana Hoffmann Fernandes Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Resumo A constituição das culturas infantis no século XX está estreitamente relacionada ao contexto midiático. Tal aspecto originou o interesse por investigar as narrativas das crianças na tese de Doutorado. O estudo foi fundamentado nos Estudos Culturais Latino-Americanos que entendem o “cultural” na perspectiva da hibridação (Canclini, 2003) surgindo nas falas das próprias crianças pesquisadas. A investigação das narrativas ocorreu em duas escolas (uma pública e uma particular), num Centro cultural e num Blog. Como procedimentos da coleta de dados optou-se pelas seguintes estratégias: (1) oficinas que aconteceram no espaço do Centro cultural e nas escolas e (2) entrevistas realizadas com as crianças desses grupos e com as crianças do Blog a partir das produções narrativas. Os achados da pesquisa apontam para a complexidade do campo das narrativas na contemporaneidade, mostram a freqüente relação das crianças com a imagem e trazem os desafios advindos desse contexto. Palavras-chave: criança, cultura, mídia. CHILDHOOD, CULTURE AND MEDIA: THOUGHTS ON THE NARRATING CHILDREN IN CONTEMPORARY TIMES Abstract The constitution of the childlike cultures in the 20 th Century is strictly related to the context of the media. Such aspect originated the interest to investigate the narratives of the children in the Doctoral thesis. The study was based in the Latin American Cultural Studies that understand “cultural” in the hybrid perspective (Canclini, 2003), arising in the speeches of the children being researched. The investigation of the narratives happened in two schools (one public and one private), in Cultural Center and a Blog. As procedures of data collecting, the following strategies were chosen: (1) workshops that happened in the space of Cultural Center and in the schools and (2) interviews made, from the narrative productions, with the children of these groups and with the children of the Blog. The findings of the research aim for the complexity of the narrative field in the contemporary, show the frequent relation of the children with the image and bring the challenges that come from this context. Key words: children, culture, media.

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  • Currculo sem Fronteiras, v.11, n.1, pp.138-155, Jan/Jun 2011

    ISSN 1645-1384 (online) www.curriculosemfronteiras.org 138

    INFNCIA, CULTURA E MDIA: Reflexes sobre o narrar das Crianas na

    Contemporaneidade1

    Adriana Hoffmann Fernandes Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

    Resumo

    A constituio das culturas infantis no sculo XX est estreitamente relacionada ao contexto miditico. Tal aspecto originou o interesse por investigar as narrativas das crianas na tese de Doutorado. O estudo foi fundamentado nos Estudos Culturais Latino-Americanos que entendem o cultural na perspectiva da hibridao (Canclini, 2003) surgindo nas falas das prprias crianas pesquisadas. A investigao das narrativas ocorreu em duas escolas (uma pblica e uma particular), num Centro cultural e num Blog. Como procedimentos da coleta de dados optou-se pelas seguintes estratgias: (1) oficinas que aconteceram no espao do Centro cultural e nas escolas e (2) entrevistas realizadas com as crianas desses grupos e com as crianas do Blog a partir das produes narrativas. Os achados da pesquisa apontam para a complexidade do campo das narrativas na contemporaneidade, mostram a freqente relao das crianas com a imagem e trazem os desafios advindos desse contexto. Palavras-chave: criana, cultura, mdia.

    CHILDHOOD, CULTURE AND MEDIA: THOUGHTS ON THE NARRATING CHILDREN IN CONTEMPORARY TIMES

    Abstract The constitution of the childlike cultures in the 20th Century is strictly related to the context of the media. Such aspect originated the interest to investigate the narratives of the children in the Doctoral thesis. The study was based in the Latin American Cultural Studies that understand cultural in the hybrid perspective (Canclini, 2003), arising in the speeches of the children being researched. The investigation of the narratives happened in two schools (one public and one private), in Cultural Center and a Blog. As procedures of data collecting, the following strategies were chosen: (1) workshops that happened in the space of Cultural Center and in the schools and (2) interviews made, from the narrative productions, with the children of these groups and with the children of the Blog. The findings of the research aim for the complexity of the narrative field in the contemporary, show the frequent relation of the children with the image and bring the challenges that come from this context. Key words: children, culture, media.

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    1. Introduo

    Neste artigo busco trazer algumas reflexes referentes investigao realizada em minha pesquisa de Doutorado que teve como foco investigar a produo narrativa das crianas em meio ao contexto miditico contemporneo. Entendo que a narrativa pode acontecer em diferentes linguagens, recursos e suportes, no se restringindo, apenas, expresso por meio da escrita ou da oralidade e refere-se, principalmente, ao contar de si das crianas2 na perspectiva de Benjamin. Tal enfoque dialoga com os estudos como os do NICA (Ncleo de Infncia, Comunicao e Arte), coordenados pelas pesquisadoras Gilka Girardelllo e Monica Fantin, da UFSC. Em uma de suas pesquisas realizadas, Girardello (2010) aborda a produo narrativa infantil em tempos de imaginrio digital enfocando mais especificamente a produo narrativa oral das crianas em sua relao com a internet, enquanto Fantin (2004) aborda as narrativas das crianas em relao ao cinema.

    importante ressaltar que a minha pesquisa, assim como as duas referidas, tem como foco a perspectiva das crianas no contexto da cultura infantil contempornea. Conforme aponta Brougere, existe um espao pblico no qual elas elaboram uma cultura comum, lugar de apropriao e de circulao de elementos que vem de fontes bem diferentes, como a famlia, a escola, e tambm as mdias. Nessa rede complexa, acrescenta o autor, as crianas produzem sua cultura na relao com o grupo (BROUGERE, 2003. Apud Girardello, 2010). As narrativas so parte dessa produo de cultura pelas crianas.

    Assim como Silverstone (2002) afirma que nossas histrias, nossos mitos e lendas populares definiram, preservaram e renovaram culturas, entendo as narrativas produzidas pelas crianas como histrias-experincias na qual a vida se faz nas histrias e as histrias, como experincias, contam como nos constitumos na vida (MATTOS, 2003). No qualquer histria que se constitui como narrativa para as crianas, mas as histrias que dialogam com elas, que contam um pouco do que as crianas so/pensam sobre o que vivem e sobre como entendem o contar histrias a partir de sua cultura. Algumas das questes orientadoras da minha busca na investigao foram: em que lugares ou suportes de seu cotidiano as crianas tm acesso a narrativas que as tocam? Como convivem e entendem as narrativas a partir de sua cultura da infncia?

    Atravs dessas e de outras questes, articulando infncia, mdia e educao, privilegio o trabalho com as narrativas das crianas reveladoras dos modos de viver o seu contar de histrias. Isso delineou o processo da pesquisa da tese. Apresento neste artigo alguns achados3 relativos aos entendimentos das crianas acerca dos modos de existncia das histrias, como se constituem e como percebem alguns dos modos de narrar na cultura contempornea.

    A concepo de infncia que me guiou nesse estudo implicou em entender as crianas como co-autoras, sujeitos que negociam, compartilham e criam culturas. No momento atual, em que a revoluo tecnolgica vem ocasionando mudanas nas maneiras das pessoas se relacionarem cotidianamente com o conhecimento e a cultura, causando perplexidade e insegurana nas geraes mais velhas, quase um imperativo

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    desenvolver pesquisas com crianas e no sobre crianas. Castro (2008) afirma que esse tipo de pesquisa entende as crianas e jovens participantes da pesquisa como sujeitos que no decorrer da pesquisa colaboram e constroem a pesquisa em conjunto com o pesquisador.

    A perspectiva scio-histrica de Vigotski e os Estudos Culturais (Martn-Barbero e Nestor Canclini) orientaram a proposta da oficina como metodologia de pesquisa com crianas. Vigotski (2007) auxilia na pesquisa quando aponta a necessidade de estudar e refletir sobre o indivduo em sua totalidade, articulando seus aspectos externos e internos, mostrando a importncia de se investigar o sujeito no contexto. Desse modo, a oficina proporciona um espao de investigao das crianas em seu contexto j que nelas as crianas junto com seus pares dialogam, produzem e trocam narrativas. Canclini (2005) dialoga com essa perspectiva ao enfocar a cultura na tica da interculturalidade, entendendo-a como um processo de mudana e no como um pacote de caractersticas fixas. Por esse motivo o autor opta por nome-la pelo adjetivo, tal como discute Appadurai (Apud Canclini, 2005), j que o adjetivo traz de forma mais abrangente esse sistema de relaes de sentido que identificam diferenas, contrastes e comparaes que compem o cultural. Ao propor estudar o cultural, o autor abarca um conjunto de processos atravs dos quais dois ou mais grupos representam e intuem imaginariamente o social, concebem e geram as relaes com os outros. O cultural da infncia existe nos espaos em que a infncia se constitui fazendo relaes e criando sentidos que so produzidos nos coletivos dos quais participam.

    Rivoltella (2009), ao falar da especificidade da pesquisa em Midia-educao, apresenta a linha de estudos a que me filiei, uma abordagem dos Estudos Culturais e que se preocupa em compreender a cultura vivida no cotidiano dos grupos sociais. Com esse entendimento, a pesquisa de campo realizou-se em 4 diferentes campos, tanto escolares (uma escola pblica e uma escola particular) e no-escolares (centro cultural e bloguinho), para que fosse possvel perceber, de forma mais ampla, as narrativas trazidas e criadas pelas crianas frequentadoras desses diferentes espaos na cidade de Petrpolis, regio serrana do estado do Rio. As crianas participantes da pesquisa que freqentaram as oficinas, na faixa etria de 7 a 12 anos, cursavam o 1 segmento do ensino fundamental e j dominavam os usos bsicos da escrita. As oficinas tiveram como eixo 3 momentos diferentes: o momento do compartilhar/contar histrias conhecidas trazidas pelas crianas, o momento de criar novas histrias nos formatos desejados, o momento de troca das histrias criadas entre os grupos. Em cada campo tivemos cerca de 8 oficinas com uma mdia de participao de 20 crianas em cada espao. Tnhamos crianas de diferentes idades e turmas tendo, ao todo, ao longo de todas as oficinas realizadas um contingente de cerca de 60 crianas participantes pertencentes a variados contextos sociais que se integravam nos momentos das oficinas. Percebeu-se que todas as crianas tinham acesso a livros, filmes e internet, sendo os primeiros na escola e em casa, sendo o acesso internet o que mais os diferenciava. As oficinas aconteceram com a presena de crianas de diferentes faixas etrias durante o perodo de 2 meses em cada campo de pesquisa com uma mdia de uma oficina semanal. Nas oficinas realizadas nas escolas e no centro cultural tivemos disposio equipamentos como TV, DVD, CD, rdio, papel, lpis, papis, livros, mas infelizmente em nenhum desses espaos foi possvel o uso de computador para a pesquisa, leitura e

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    criao ou troca das produes. Por esse motivo, um ltimo espao de pesquisa escolhido foi o do bloguinho (blog do jornal O Globo) e nele a pesquisa realizou-se pela coleta de produes das crianas participantes (da mesma faixa etria das que fizeram as oficinas presenciais) em posts publicados no site da internet.4 Aps esse primeiro momento da pesquisa, como complemento s oficinas realizadas e aos posts coletados, foram feitas entrevistas com as crianas de todos os campos envolvidos na pesquisa. Nas oficinas realizadas com as crianas esse processo de dilogo foi fundamental na construo e compreenso dos modos de pensar e de construir narrativas condizentes com a experincia de ser criana no mundo contemporneo.

    2. As crianas e as histrias relaes com a imagem

    Histria uma histria assim que a pessoa pode imaginar assim mais ou menos, colocando na cabea da pessoa o que a pessoa acha para ficar mais interessante o que a pessoa ta contando no vendo. Eu gosto de ficar vendo as coisas (...) como ler gibi porque a pessoa vai lendo a vai mostrando mesmo tipo um vdeo e a pessoa vai fazendo na prpria cabea imaginando como que foi. (Narley escola pblica)

    Porque uma boa histria ou a definio do que seria uma histria passa pela

    imagem, pelo ver a histria como sendo algo mais forte do que o ouvir ou o ler? Martim-Barbero (2002) ressalta que hoje h toda uma reestruturao das funes das prticas culturais de memria, de saber, do imaginrio e criao devido ao contexto social e cultural no qual essas crianas se formam.

    Pino (2005) ressalta que a emergncia das funes culturais no ser humano explicitada por Vigotski quando fala no desenvolvimento cultural da criana. Ter o ver como critrio de escolha est diretamente relacionado ao desenvolvimento cultural de tais crianas. Para isso, Pino relembra que Vigotski aponta em seus estudos que cada funo em desenvolvimento aparece em cena duas vezes: uma vez no plano social e outra no plano pessoal, isto , aparece primeiro entre pessoas (categoria interpsicolgica) para depois aparecer no interior da criana (categoria intrapsicolgica). Desta forma as funes culturais (ou funes superiores) surgem a partir da progressiva insero da criana nas prticas sociais do seu meio cultural nas quais, pela mediao do outro, vai adquirindo a forma humana. Tal mediao do outro entendida no somente pelo outro sujeito, mas pelas produes culturais com as quais as crianas entram em contato desde que nascem.

    Tal contato com histrias dessa forma faz parte das prticas das quais as crianas participam, dos modos como primeiro se relacionam como o mundo, at antes mesmo antes de lerem e escreverem. Isso algo visvel nos dias de hoje. As crianas j nascem nesse contexto de leitura de prticas diversas e entremeadas do qual a imagem audiovisual faz parte. Isso permite que vejam de outra forma e tenham outros parmetros para suas narrativas agora mais ancorados em sua visualidade.

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    Jonhny, um dos sujeitos da pesquisa, traz em sua fala uma pista de como ocorre esse vnculo das crianas com a imagem em suas narrativas. Ao perguntar a ele, que mostra que produz histrias em quadrinhos inspiradas nos mangs que l5, se conseguiria fazer a histria por escrito, a resposta dada foi a seguinte: fica difcil, por que eu penso em quadrinhos... E como leio muito essas histrias tenho vontade de fazer assim para experimentar e ver novas formas...

    Esta resposta inspira uma aproximao com Benjamin (1994), autor que, do mbito da teoria crtica da cultura, ajuda a discernir que as novas formas de percepo expressam-se num sensorium diferente em razo da tcnica, das novas tecnologias. Mostra o quanto necessrio considerar que as mudanas no espao da cultura transformam a experincia dos sujeitos, interferindo nos seus modos de produzir cultura.

    A preferncia pelas histrias, hoje, foi ampliada relativamente a esse aumento de possibilidades de acesso e de modos de fruio por meio da imagem. Que histrias as crianas que participaram da pesquisa preferem?

    RENAN: As histrias que eu mais gosto so do Pinquio e do Saci Perer. PESQ: Onde que voc conheceu essas histrias? RENAN: A do Pinquio eu conheci pelo filme, e o do Saci Perer foi do livro com a professora quando eu era da 1 srie que ela contou. PESQ: E tem outra histria de que goste? RENAN: Batman. PESQ: Batman? E de onde que voc conhece o Batman? RENAN: Da Liga da Justia, e da Liga da Justia sem Limites. PESQ: Da televiso? RENAN: Da televiso e acho que tambm dos jogos Tits. PESQ: Dos jogos Tits? E de onde voc conhece? RENAN: Tava vindo no CD do Mc Lanche e tambm d todo dia aps o jornal do SBT. (Escola pblica) MATEUS: Eu gosto de histrias com muita ao, histrias medievais e tambm quando entra personagens como ogro, criaturas mitolgicas e tambm gosto de histrias de terror... Um pouco... PESQ: Ento me d um exemplo de algumas histrias de que voc gosta. MATEUS: Ghostbuster que aquela histria de terror do livro que eu trouxe... Uma de histria medieval que estou lendo... dos jogos... Eu j vi Senhor dos Anis [filme]... (Escola particular) GABRIELE: Se voc quer saber a verdade (isso meio estranho) eu adooooro a histria da Bela e da Fera, da Cinderela, da Jasmin. Mas tambm gosto de histrias mais recentes como a coleo de livros Fala Srio, da Thalita Reboucas, dos livros Quem mexeu no meu Queijo, Uma professora muito maluquinha e muuuuuuuuitos outros. As histrias de princesas eu conheci por filmes e as outras por livros. (BLOGUINHO)

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    Percebe-se que as crianas gostam tanto das histrias da cultura popular, como o

    Saci-Perer, e da tradio oral como os contos de fada (Pinquio, Cinderela, A Bela e a Fera...), quanto do Batman da TV, das histrias de ao, de terror, medievais que aparecem nos livros, nos filmes, nos jogos... O gosto pelas histrias tradicionais mescla-se com o gosto pelas histrias que so contadas pelas mdias, muitas delas recriaes ou recontos dessas mesmas histrias populares. As crianas mostram que conhecem e circulam por diferentes histrias em diferentes suportes (TV, jogos, filmes, Cds, livros, etc).

    Nesse contexto, os LIVROS e os FILMES aparecem com maior incidncia na fala das crianas, como sendo os suportes que preferem e dos quais mais se utilizam para ter acesso s histrias. Como Laura, outra criana pesquisada, comenta: acho que os livros e filmes so muito parecidos...

    LUIZA: ... eu gosto muito de ver filme (...) Mas pelo livro tambm bom porque tem vrias histrias, vrias formas, assim... histrias reais, histrias inventadas. (...) (Centro cultural) PESQ: Voc falou que v mais histrias em livros, essa a maneira de que voc mais gosta, que voc prefere ou tem outras maneiras de entrar em contato com histrias que voc prefira? MATEUS: Bom... Em filmes. No prprio videogame mesmo, e numa revista. (Escola particular)

    Eco (apud Aguiar, 2003) explica a complementaridade entre livro e cinema ao dizer que narrativa literria e filme cinematogrfico so artes de ao pois partem de um mesmo processo de fabulao que os alicera. Prates lembra que:

    entre ambos estabeleceu-se um comrcio internarrativo que, se de um lado forneceu ao cinema mecanismos literrios que lhe facultam contar histrias, hoje dota a literatura de tcnicas cinematogrficas que contribuem para revigorar sua capacidade expressiva, particularmente no que tange s produes romanescas. So bastante abundantes os casos de textos, literrios ou no, em que se registra um forte parentesco com elementos que, aps o surgimento dos meios tecnolgicos, assumiram feio declaradamente cinematogrfica. (PRATES, 2003, p. 148 e 149)

    3. Ouvir, ver e ler a hibridao das histrias do cotidiano

    CLARA: A minha me tem uma amiga que vai no aniversrio do meu irmo e conta histrias de terror.. (...) Tem o homem da capa preta... Tem uma histria que ela contou que aconteceu de verdade... Tem outras histrias...

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    JOO: A histria do lobisomem... joga uma placa de fogo no corao do lobisomem de dia e ele fica lobisomem e depois mata o cara que est na caminhonete e depois o cara... (...) PESQ: Essa histria de onde? JOO: No histria, filme... GABRIELA: E tem aquela dos passarinhos: Prncipe, prncipe, essa no a princesa, veja os sapatinhos de Cristal... A ela diz: Eu no tenho mais filha mas eu tenho uma empregada... A ela chama a empregada e coloca o sapato e depois: Principe, prncipe, agora voc acertou: essa sim a princesa.... JULIANA: Mas a da capa preta d mais medo... Nessa hora as crianas comeam a lembrar cada uma de uma histria e a cont-las umas para as outras... (Escola particular)

    Pelo que dizem, o livro e a TV/DVD parecem ser onde tm maior contato com as

    histrias que constituem suas narrativas. Ao longo das conversas as histrias conhecidas se misturam. Da fala da histria contada para o livro e, depois, para o cinema ou a TV numa espcie de encadeamento, uma histria puxando a outra, um suporte puxando o outro... Parece haver uma certa complementaridade nesse convvio entre suportes/formas de entrar em contato com as histrias. O livro remete aos jogos, aos filmes e assim por diante e vice-versa... So as trocas alternadas de que nos falou uma criana em pesquisa anterior.6

    As crianas demonstram que muitas vezes no se do conta tambm dessa mistura que fazem ao ouvir, ler e ver histrias fazendo desse contato variado uma coisa s. Mesmo tendo o livro um forte papel de instaurador de uma cultura que nesta pesquisa parece predominar pela fala das crianas, pode-se observar como a imagem (o visual) e o som (a audio) aparecem como elementos que se associam ao livro na relao cotidiana das crianas com as histrias, mesmo que nem sempre saibam reconhecer ou delimitar sua origem.

    JULIANA: Voc lembra de onde essa histria? MARIA CLARA: No da TV? Do canal Nickelodeon... JULIANA: No, essa do filme. MARIA CLARA: Mas acho que tambm vi em outro lugar... JULIANA: Nos jogos da Internet? (Escola particular)

    Essa complementaridade mostra que muitos deles circulam por diversos suportes mesmo sem localizarem exatamente em que suporte esto as histrias que conhecem, afinal elas esto em todos os lugares... Canclini (2008) diz que, na atualidade, ser leitor, espectador e internauta no so prticas separadas. So, na verdade, prticas de uma mesma e nica pessoa que migra de um espao para outro, mescla usos e aprendizagens e constri uma outra forma de ler, entremeando todos os modos de ser leitor ao integrar

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    as recordaes das histrias da TV, do filme e dos jogos numa mesma narrativa. Os dilogos entre as formas de ler dos sujeitos esto cada vez mais articulando-se s formas de produzir da mdia, como discutido por Jenkis (2008) ao falar da narrativa transmiditica, modo de narrar cada vez mais adotado pelos produtores de mdia em que uma histria desenrola-se atravs de mltiplos suportes miditicos. Segundo Jenkis, na forma ideal de narrativa transmiditica cada meio faz o que faz de melhor e os criadores esto buscando cada vez mais construir uma relao mais cooperativa com os consumidores nesse processo de imaginao de novas possibilidades de enredo para as histrias em outros jogos, brinquedos, sites, etc.

    Manuel Castells (apud Martin- Barbero, 2003) ajuda a entender que o novo modo de produzir se acha inextricavelmente unido a um novo modo de comunicar, convertendo o conhecimento em uma fora produtiva direta. Segundo ele, no foi o tipo das atividades das quais participam a humanidade que mudou, o que mudou foi sua capacidade tecnolgica de usar como fora produtiva aquilo que distingue a espcie humana como raridade biolgica: sua capacidade para processar smbolos. Com isso, Castells (idem) mostra que a criatividade das sociedades ocidentais passa hoje, de modo significativo, pela tecnologia e - complementaria passa pela capacidade de relacionar-se com as imagens.

    4. Histrias com idias formadas e histrias sem p nem cabea refletindo sobre a linearidade e as misturas os conflitos da hibridao

    Uma histria uma coisa que tem que ter um comeo, um meio e um fim e tem que ter um ttulo. E tem que saber usar a imaginao. (Renan escola pblica)

    A fala de Renan traz tona a questo da linearidade das histrias. Tal idia das crianas apareceu em alguns momentos, em que afirmam que a histria tem que seguir a seqncia incio, meio e fim, sempre articulada com o debate da no-linearidade.

    Trago as opinies surgidas num debate em que propus que dissessem o que entendiam a respeito das histrias feitas pelos integrantes da oficina que eram compartilhadas no grupo gerando um debate a respeito:

    MATEUS: Eu acho assim que [nessa histria] d para entender alguma coisa do incio, do meio e do final... BERNARDO: Alguma coisa... PESQ: Ser que toda histria tem que ter incio, meio e final? OUTRO: Depende... BERNARDO: No... ILANA: No... FREDERICO: S no pode ter um comeo sem p nem cabea... PESQ: Ser? Mas no tem histria que comea sem p nem cabea?

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    JOO: Eu j vi... uma que comea pelo final... Mas a histria no contada... PESQ: Ah, ento... Mas comea pelo fim e depois? BERNARDO: Por exemplo, eu j vi histria que comea direitinho e tal, a chega no meio pula um pedao, e depois que vai para o fim... e depois no final ele diz o meio...e explica o que aconteceu no meio... Igual no filme... (Escola particular)

    Houve um tempo, nos lembra Martn-Barbero (2002) em que o caminho da

    emancipao passava quase que exclusivamente pela escrita e sua linearidade. Mas como entender a alfabetizao hoje, quando muitas das informaes que do acesso ao saber passam pelas diversas redes e tramas da imagem e das sonoridades eletrnicas? Isso permite que vejam de outra forma e tenham outros parmetros para pensar sobre as histrias:

    PESQ: Outra coisa, na semana passada teve gente que disse que podia comear a histria pelo final... Como esse negcio de comear pelo final? MATEUS: igual desenho japons... BERNARDO: O final pode dar sentido ao incio... JULIA: A gente faz uma cena e corta ela pela metade... Igual em Paraso Tropical... colocou a cena da Tais. No final, no ltimo captulo, viu que o Olavo foi l e matou... A o final d sentido ao incio... PESQ: Ahhh... Alm desse... JULIA: Tambm foi assim no filme Tropa de Elite. Parou a cena - ele atirou - e a gente no viu quem atirou e no final mostraram... (Escola particular)

    Estamos diante de mudanas que desclassificam as classificaes anteriores, as hierarquias instauradas, criando hibridaes num contexto fora das totalidades conhecidas por ns que no migramos entre histrias e seus suportes com a mesma facilidade com que o fazem as crianas.

    PESQ: E de onde que voc tirou essa idia de inventar tantas histrias? MATEUS: No sei... eu s sei que eu jogava muitos jogos quando era menor, jogava jogos medievais... e tambm via filme na TV, via Senhor dos Anis, lia livro... a parece que misturou tudo... PESQ: Na cabea? MATEUS: ... misturou na cabea... PESQ: Era vdeo-game que voc jogava? MATEUS: Vdeo-game, assistia TV, via filme, lia livro... (Escola particular) BERNARDO: Acho bom fazer e misturar tudo, sempre muito... sempre uma boa tentativa mas s vezes no d certo. Depende muito do tipo de histria: filme, programa de TV. Voc no mistura um drama com uma comdia usando todo o "material" que voc pode. Eu no consigo fazer uma histria assim. Uma histria tem que ter lgica na minha opinio... S passo para o computador as histrias com idias formadas. (Escola particular)

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    Mateus aponta a dimenso criativa das misturas que resultam nas histrias que inventa. No entanto, nem sempre esse acesso a diferentes histrias resulta em misturas significativas na dimenso da produo visvel. Como aponta Bernardo, ao mesmo tempo em que essa mistura amplia as possibilidades das histrias, certas misturas no do certo e acaba no saindo histria nenhuma. Para muitos, essa possibilidade continua a ser apenas possibilidade j que se sentem desorientados frente s formas de combinao/uso numa mistura que resulte em algo visvel como numa histria. o que parece nos dizer Jlia em sua fala:

    PESQ: Porque voc acha difcil usar as suas idias numa histria? Idias voc tem muitas! JLIA: Porque eu no sei como organizar, vou ser muito sincera... E s vezes falta pacincia... (Escola particular)

    Alm de viver as dificuldades das combinaes, a fala de Jlia parece apontar tambm para o que nos diz Arlindo Machado (2001) quando comenta que a TV criou um espectador que zapa e zipa em todos os nveis e que mantm com as imagens e os sons uma relao de impacincia e evaso. Relembrando Fellini, ele comenta que, com o passar do tempo, o cinema e a TV devero aprender a contar um outro tipo de histria que leve em conta essa impacincia do espectador... Assim, j no se contam mais histrias completas. Uma nova narrativa comea a tomar forma, a partir dos cacos de gneros, das sobras de outras narrativas, sem conseguir se completar nunca. Essa nova narrativa , segundo Machado, parte do efeito zapping. Nela a histria est sempre a ponto de constituir-se, mas nunca chega a tornar-se apreensvel, no se tornando jamais articulada numa sequncia de acontecimentos coerentes. A seqncia se desfaz.

    Canclini (2003) adverte que nas hibridaes h casos em que as misturas podem ser produtivas, mas estas tambm podem gerar conflitos que impedem a produo. Foi possvel perceber nessa pesquisa que as crianas pareciam viver um conflito entre o convvio com histrias em diferentes suportes, vivendo essa potencial mistura dos formatos e a idia que tm de que a histria tem que ter incio, meio e fim, no pode ser sem p nem cabea7, tem que ter idias formadas, lgicas. Estas so, na verdade, idias antagnicas/contraditrias ao entendimento da no-linearidade trazido por elas nesse processo de hibridao. Tal situao permite que faam as misturas em relatos orais mas, algumas vezes, os impedem de misturar na escrita ou em outros suportes com os quais mais identificam a existncia de histrias.

    Entrar e sair da hibridez, expresso usada por Cornejo Polar (Apud Canclini, 2003), refora essa questo das dificuldades de se manter nela em algum momento. Tal expresso aponta que a hibridao pode ocorrer nesse movimento de trnsito e provisionalidade, nesse circular entre as histrias.

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    5. Histrias mudantes8 Mas eu no posso mudar a histria?

    Vigotski (2007) diz que no se deve esquecer que a lei bsica da arte criadora infantil consiste em que seu valor no reside no resultado, no produto da obra criadora, mas no processo mesmo. Nas oficinas percebeu-se que, muitas vezes, o objetivo inicial de contar uma histria era continuamente modificado, sendo criada a cada momento uma nova histria. A observao desse processo mudante das histrias no foi exclusividade de apenas um grupo, mas apareceu em diferentes grupos. Esse processo pode ser melhor revelado na observao de momentos da produo narrativa de um grupo de meninas da escola particular que trago a seguir ao decidirem fazer suas narrativas sob a forma de teatro:

    A idia inicial:

    CLARA: Era uma vez a tesoura que era muito triste e um dia uma leoa, uma baiana e outra baiana levaram ela para o mundo das tesouras que ela no sabia que existia e l a tesoura ficou feliz!! PESQ: Bom, a delas uma histria que j est prontinha! ZAYRA: A nossa tambm!! (outro grupo de meninas) PESQ: Que histria vocs vo fazer? ZAYRA: A histria da princesa e da empregada. PESQ: Bom, e como a histria da princesa e da empregada? ZAYRA: assim... A empregada arrumava a casa e a princesa se sentia muito sozinha e a um dia chegou um prncipe (eu que no vou fazer papel de homem!!!). Veio um prncipe e levou a princesa embora. A eu falei: Sabe, quer saber? Eu no vou ficar aqui sozinha! Eu vou embora para uma ilha...

    Na preparao do ensaio... JULIANA: E a ela vira bailarina... PESQ: Vocs esto fazendo a empregada e a princesa? ZAYRA: mas mudou agora! Vai ser a empregada que virou princesa que era bailarina... PESQ: Mas a cada hora vocs vo mudar os personagens? Assim no vai dar!! CLARA: No, que a gente est experimentando... Bota essa roupa! PESQ: Essa no era a empregada? CLARA: mas ela vai ter que colocar outra roupa! JULIANA: , vou colocar essa agora! Vai ter mais personagens... GABRIELA: Olha como fica... ZAYRA: Ficou mais bonita assim! As meninas ficam olhando, experimentando as roupas e mudando as personagens da histria.

    Durante o ensaio...

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    ZAYRA: Tia, a gente vai fazer as bailarinas... porque agora todo mundo quer ser bailarina! Vem, vamos ensaiar mais... Os dois grupos de meninas se juntam e uma fala: pode ser A princesa e a bailarina! vamos fazer assim... Como que comea? Eu sou a bailarina... Eu sou a baiana e tambm tem as leoas!! ZAYRA: Vamos comear, meninas! Vamos l! Ela saem danando e as outras vo atrs... Agora ela volta e todas as outras a seguem... Elas caem no cho e gritam... As meninas marcham, andando uma atrs da outra em fila... Vocs tm que falar comigo, n? (Zayra fala e age para que as outras a imitem) Uma delas marcha mais forte e todas as outras correm com medo. Vamos l? Agora a gente vai fazer assim, t Maria? Sou eu que mando... Zayra d uma de mandona no ensaio/brincadeira...

    No teatro, forma como faziam a histria nos exemplos trazidos, as prprias

    crianas improvisavam uma espcie de criao falada, dialogada, do que necessitavam. Tal processo do teatro vivido na escola particular talvez seja melhor entendido na fala das crianas de outro campo:

    HELENA: Eu gosto de brincar daquele filme. Em vez de eu escrever... PESQ: Sei... HELENA: ...fao o que eu acho que poderia ser, eu fao tipo um teatro do que poderia ser. Mas um teatro pra mim mesma. (Centro cultural)

    Ao gostar de brincar daquele filme ou histria mostram que essa criao sempre provisria e talvez por isso no seja escrita ou expressa de outra forma que tenha um carter mais definitivo... Como esse brincar pelo teatro um teatro para mim [ela] mesma a organizao de idias no o que conta, mas sim o prazer de inventar e imaginar o que poderia ser naquela histria. E essas possibilidades so, sempre, ilimitadas, inconclusas, abertas, mudantes...

    Assim, nesse contar histrias com teatro, uma brincadeira narrativa assim como a discute Girardello (2010) surgia nesse processo do brincar em que as histrias mudavam constantemente. Cada novo elemento, como algo no cenrio, uma roupa nova, uma fala de algum, fazia com que a histria inventada tomasse um outro rumo. O que parecia importar no era a histria narrada, mas a brincadeira vivida pelas crianas. Essa brincadeira de histrias nada mais era que uma instncia de produo incessante e tambm uma forma de leitura cultural, se tivermos em mente a equivalncia qualitativa entre o ato de ler e o de escrever, o de ouvir histrias e o de cont-las. (GIRARDELLLO, 2005, p. 7 e 8)

    No entanto, o que apareceu mais claramente expresso no teatro tambm acontecia na produo de narrativas em outros suportes. As crianas produziam cultura com sentidos relevantes para o grupo de amigos num constante processo de mudana: dos atores, das idias, dos materiais, das duplas de trabalho, das novas histrias s quais tinham acesso... Em todos esses momentos os novos elementos surgidos, na maioria das vezes, no eram incorporados histria em processo gerando uma continuidade, mas

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    geravam uma outra histria. Da mesma forma, as histrias iniciadas num encontro muitas vezes no eram finalizadas num prximo por no saberem como dar continuidade, optando por iniciar novas histrias. Estavam vivendo, muitas vezes, um recomear contnuo das histrias.

    Assim como essas crianas tm contato com o livro, tambm tm contato com outros suportes nos quais as histrias da contemporaneidade se apresentam: vdeo-game, DVDs, desenhos, etc. Esse recomear contnuo das histrias poderia, ento, estar articulado dimenso da fragmentao narrativa observada na linguagem desses suportes caracterizada pela rapidez, pela mudana que ao trazer sempre novos aspectos os fazem recomear em outras bases? Estariam as histrias mudantes associadas ao formato das histrias contadas sob a tica da imagem com as quais as crianas tm contato cotidiano? Que questes essa dimenso mudante e impaciente pode trazer para a aprendizagem das crianas?

    Tal situao parece articular-se com o que nos diz Arlindo Machado (op. cit.) a respeito do zapping. Assim, Machado argumenta que o zapping surgiu diante da exploso de materiais audiovisuais mas no exclusividade do espectador de TV pois j se zapava em outros tempos, mesmo antes do controle remoto e da televiso. Afinal, o que faz o leitor do livro quando faz uma leitura interesseira, seletiva e atravessada do objeto? Ou mesmo quando pula captulos e trechos e escolhe outro caminho de leitura, rompendo com a linearidade habitual do impresso? Estariam estas crianas tambm zapando as histrias conhecidas, misturando-as, embaralhando gneros e buscando novas formas de contar? Estariam tambm fazendo zapping no processo de conhecimento?

    Machado afirma que hoje o espectador de TV e vdeo no mais assiste a programas inteiros, nem acompanha mais histrias completas. Ele salta continuamente, amarrando de forma desconcertante as imagens e histrias a que tem acesso. As histrias mudantes, inventadas por essas crianas, so histrias com muitas possibilidades e sem um fim determinado, pois a qualquer momento o fim pode ser outro. Talvez algumas crianas, que desde seu nascimento j convivem com as histrias em suas vrias formas, j estejam nos dizendo o que apontam Janet Murray (2003) e Machado (2001) ao falarem do sonho de Mallarm, na idia de livro inconcluso, potencialmente infinito, no qual cabem sempre novas histrias e novas possibilidades. Talvez no mais se acostumem com um nico final, mas busquem nas narrativas suas infinitas possibilidades de acontecimento.

    6. O que uma histria no ponto de vista das crianas

    O que a pesquisa traz como contribuies sobre o modo como as crianas se relacionam e criam suas narrativas nessa hibridao entre as histrias e os formatos conhecidos em seu aspecto mudante, provisrio, sempre a recomear, a busca do entendimento do que seriam as histrias no ponto de vista das crianas. Apresento a seguir as falas das crianas dos diferentes campos pesquisados a respeito:

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    Para mim uma histria qualquer coisa que aconteceu e est sendo contada. Pode ser real ou no, pode ser divertida, dramtica, triste, policial, etc. Pode ser legal ou at chata. (Tom- bloguinho) Uma histria so diversas palavras que contam algum acontecimento ou a imaginao de alguma pessoa... fazendo estas coisas que no existem... contos de fadas... Mas tem algumas que aconteceram mesmo! (Victor- escola particular) assim quando acontece alguma coisa... e passa um tempo a os outros falam para mim a parece uma histria... Tipo um livro assim... (Guilherme-escola pblica) Histria quando voc conta uma coisa que aconteceu... Ou aconteceu realmente ou voc est inventando... (Luiza Centro cultural)

    As falas das crianas mostram o que entendem por histria. A idia de que histria uma coisa que aconteceu e que algum conta aparece nas falas das crianas dos diferentes campos pesquisados. Alm disso, vem associada a essa concepo, a idia de que as coisas contadas podem ser coisas reais, que aconteceram mesmo, ou coisas inventadas, da imaginao de alguma pessoa... A noo de histria trazida pelas crianas tambm supe a idia de um narrador, um contador de histrias que conta o que aconteceu. Esse narrador pode ser uma pessoa os outros falam para mim o que aconteceu, pode ser um suporte palavras que contam algum acontecimento, tipo um livro..., o que se pode ampliar tambm para outros suportes como TV, jogos, filmes, etc. Percebe-se que as crianas concebem como histria tanto o que verdadeiro, como o que fantasia, inveno, fruto da imaginao, traando diferenas a respeito dessas duas formas de relao com o contar.

    LUIZA: Tem muitas [histrias] nos filmes. Mas nem sempre todas so verdadeiras. PESQ: E qual a diferena entre uma histria que verdadeira e uma histria que no verdadeira? HELENA: A que no verdadeira geralmente inventada. A tem contos de fada... Animais com caractersticas humanas... LUIZA: So coisas que no existem. Histrias reais contam o que existe, o que acontece na realidade ... Tem at filme que baseado em uma histria real. HELENA: Eu, eu tambm j vi um filme, por exemplo, que trata de uma histria real eu no lembro do nome do filme o cara, o moo tem um filho... ...isso aconteceu na realidade, mas feito por atores. A ele chega para assaltar o hospital, roubar o hospital, chega a enfrentar policiais para poder fazer um transplante de corao para o filho viver. tirado de uma histria real. (Centro cultural)

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    Pelo que dizem as crianas, todos os acontecimentos reais ou imaginrios podem ser contados em forma de histria seja em que formato for: notcia, quadrinho, filme, entre outros. O que define se algo pode ser histria ou no no sua forma de contar ou passar adiante a histria (seu gnero), mas o fato de ser um acontecimento (verdadeiro ou inventado) que compartilhado com outros de diferentes formas.

    Girardello (2010) traz a histria de Salman Rushdie que fala de um menino que descobre o legendrio Mar dos Fios de Histrias, em que cada fio colorido do mar representava e continha uma nica narrativa. O Mar de Fios de Histrias era, na verdade, a maior biblioteca do universo. E como as histrias ficavam guardadas ali em forma fluda, elas conservavam a capacidade de mudar, de se transformar em novas verses de si mesmas, de se unirem a outras histrias de forma hibridizada. (RUSHDIE, 1991,Apud Girardello, 2010)

    Seria, de acordo com as crianas da pesquisa, esse compartilhar das histrias de forma hbrida, mudante, um dos elementos mais fortes do contar na contemporaneidade? Seria por esse compartilhar que o contar adquire esse carter mudante, esse carter hbrido que sempre pode ser outro, quanto mais histrias se conhece e se compartilha pelas mais diferentes mdias trazendo de alguma forma esse resgate de uma dimenso do narrar prximo da oralidade?

    7. Consideraes finais

    Diante do que apresento trago muito mais perguntas do que respostas. Valverde comenta que quando Benjamin aponta que no interior dos grandes perodos histricos a forma de percepo das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existncia (VALVERDE, 2003, p. 20), ele quer destacar justamente a dimenso cultural das mudanas, ou seja, que as mudanas sociais acarretam mudanas na estrutura da recepo. Seriam estas aqui trazidas algumas dessas formas como o cultural se apresenta na atualidade?

    Os entendimentos e conflitos vividos pelas crianas sobre os quais refletimos neste artigo configuram uma outra forma de criar narrativas que se contrape norma da centralidade ordenadora pelo eixo letrado. Mesmo que percebamos que vrias crianas tm o livro como eixo do contar em sua fala colocando-os junto aos filmes em suas preferncias, ele no apropriado por elas da mesma forma que por ns. As crianas vivem hoje numa sociedade em que se aprende com a TV, com a internet, com os jogos eletrnicos, com outros produtos culturais e tambm com a escola, sendo todos estes diferentes ambientes de aprendizagem. A apropriao que gera hibridaes produtivas faz parte de um processo de aprendizagem em que preciso conhecer as diferentes linguagens e suas lgicas para poder articul-las numa nova relao depois de vrias experimentaes. Isso aponta que no basta conhecer ou ler determinadas histrias em variados suportes para saber produzi-las. preciso saber lidar com os conflitos que surgem do convvio com estes meios atravs dos quais se contam, hoje, as histrias. Martin-Barbero (2006, p. 55, apud COUTINHO e QUARTIERO, 2009) afirma que vivemos em sociedades do desconhecimento, isto , sociedades que no

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    reconhecem a pluralidade de saberes e culturas e no as incorporam/integram s sociedades e seus sistemas educativos.

    O que os achados desta pesquisa trazem dialogar com o que diz Martin-Barbero (2003), quando aponta que o que a revoluo tecnolgica introduz em nossa sociedade no tanto a quantidade de mquinas, mas um novo modo de relao entre os processos simblicos que constituem o cultural, um novo modo de comunicar. A comunicao converte-se em estrutural da sociedade, remetendo a novos modos de percepo de linguagem, novas sensibilidades e escritas.

    Essas novas configuraes das narrativas como dimenso do cultural abarcam a escola, mas no somente a escola, estendem-se aos diferentes espaos de formao presentes na sociedade. No entanto, cabe escola alguns desafios: primeiro, o de reconhecer essas diferentes aprendizagens em uma pluralidade de saberes e, segundo, o de colaborar com a criao, junto com as crianas, de modos de compreenso dos seus modos de narrar na contemporaneidade, ao partir das relaes criadas com as narrativas visuais e tecnolgicas ajudando-as a organizar seu narrar nesse contexto constantemente fludo, mudante e hbrido. Todos temos responsabilidades de oferecer s crianas possibilidades de ver, ouvir, ler, imaginar, por intermdio do acesso cada vez maior s produes significativas de nossa cultura, o que pode abrir, junto com elas, caminhos para construir novos modos de contar histrias que possam ser motivo de ampliao do dilogo, da expresso e da aprendizagem na contemporaneidade. Notas 1 A discusso presente neste artigo parte da tese Infncia e cultura: o que narram as crianas na

    contemporaneidade?, escrita pela autora, orientada pela Prof. Maria Luiza Oswald, no Programa de Ps-graduao em Educao da UERJ e defendida em fevereiro de 2009. Contou com o auxlio da CAPES em seu processo de finalizao nos anos de concluso.

    2 A expresso utilizada est relacionada ao conceito de Narrativa do autor Walter Benjamin em seu artigo O narrador. Mesmo considerando que o autor fala do narrador num determinado contexto histrico entendo que seu entendimento da narrativa refere-se ao contar de si, ou seja, ao modo como os narradores contam as histrias que trazem a marca de sua experincia.

    3 Parte das discusses presentes nesse artigo tambm foram abordadas em trabalho publicado nos Anais da 33 ANPED (on-line).

    4 O endereo do site do bloguinho com as produes das crianas participantes http://oglobo.globo.com/blogs/bloguinho/

    5 Revistas em quadrinho japonesas. 6 A pesquisa referida a pesquisa de Mestrado da autora em que Felipe, um dos sujeitos da pesquisa, afirma que v

    na TV o que estava no livro e no livro o que estava na TV, afirmando que isso so as trocas alternadas, expresso usada pela criana, e que define muito bem essa circularidade entre os meios e as histrias que so veiculadas por eles.

    7 Aqui a idia do que ser sem p nem cabea est ligada na fala deles mudana de ordem dessa organizao como, por exemplo, comear a histria pelo fim ou pelo meio...

    8 O conceito de mudantes usado academicamente pelo pesquisador Jader Vasconcelos que fala das crianas migrantes que mudam de espao geogrfico por viverem em situaes sociais desfavorveis e necessitarem buscar sempre novos lugares para morar ou trabalhar nas cidades. O termo apareceu na fala dos seus entrevistados e o autor se refere a crianas mudantes. Em nosso caso, a escolha pelo termo no tem o mesmo sentido. O mudante a refere-se ao processo e desejo de mudana das histrias vivido pelas crianas na pesquisa. O mesmo termo aparece em vrios BLOGs e sites da atualidade referindo-se ao termo como semelhante a mutantes, significando essa impermanncia nas pessoas e nas coisas...

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    da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, Brasil. E-mail: [email protected]

    Texto publicado em Currculo sem Fronteiras com autorizao da autora.