Infância- Discursos de Prroteção, Práticas de Exclusão

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ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 5, N.2, 2º SEMESTRE DE 2005 51 ARTIGOS INFÂNCIA: DISCURSOS DE PROTEÇÃO, PRÁTICAS DE EXCLUSÃO INFANCY: DISCOURSES OF PROTECTION, PRACTICES OF EXCLUSION Maria Lívia do Nascimento * Estela Scheinvar ** RESUMO O presente artigo discute a produção histórica de alguns dos chamados equipamentos sociais de proteção à infância, problematizando os contextos políticos nos quais eles emergem. As análises se fundamentam em experiências desenvolvidas pelas autoras em Juizados da Infância e da Juventude e em Conselhos Tutelares, permitindo pensar instituições sociais como infância, assistência, família, dentre outras. As discussões presentes no texto apontam que a relação de tutela e as políticas de proteção, muitas vezes, resultam em práticas de exclusão e não na garantia dos direitos conquistados e estabelecidos em lei. Dessa forma, faz-se necessário pensar os modos de funcionamento das relações de proteção voltadas aos setores infanto-juvenis, trazendo para o debate sua produção histórico-política. PALAVRAS -CHAVE Infância; proteção; exclusão. Ao pensarmos a questão dos direitos da criança e do adolescente brasileiros, dois conceitos devem ser necessariamente discutidos: o de exclusão social e o de proteção. Ambos presentes nas concepções e nas práticas dos equipamentos de assistência e proteção social estruturados ao longo do século XX. No presente artigo, a proteção será pensada em relação à exclusão social e aos equipamentos sociais da justiça da infância e da juventude, trazendo experiências de trabalho junto a Juizados e outras entidades de atendimento. A idéia do que vem sendo chamado "proteção à infância e à juventude" tem se remetido a dois âmbitos: ao da “bondade” e ao da competência técnica. Experiências desenvolvidas em Juizados da Infância e da Juventude, escolas de Ensino Fundamental e outros estabelecimentos 1 obrigam a uma leitura mais apurada das práticas e dos discursos relativos aos direitos da criança e do adolescente. A intervenção em áreas de atuação direta com esta população oferece uma sustentação empírica à análise de relações generalizadas através de conceitos e categorias históricas, tais como proteção e * Professora Doutora do Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal Fluminense. ** Professora Doutora do Departamento de Educação da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Socióloga do Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Federal Fluminense.

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Discursos de Proteção.

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    ARTIGOS INFNCIA: DISCURSOS DE PROTEO, PRTICAS DE EXCLUSO INFANCY: DISCOURSES OF PROTECTION, PRACTICES OF EXCLUSION Maria Lvia do Nascimento* Estela Scheinvar**

    RESUMO O presente artigo discute a produo histrica de alguns dos chamados equipamentos sociais de proteo infncia, problematizando os contextos polticos nos quais eles emergem. As anlises se fundamentam em experincias desenvolvidas pelas autoras em Juizados da Infncia e da Juventude e em Conselhos Tutelares, permitindo pensar instituies sociais como infncia, assistncia, famlia, dentre outras. As discusses presentes no texto apontam que a relao de tutela e as polticas de proteo, muitas vezes, resultam em prticas de excluso e no na garantia dos direitos conquistados e estabelecidos em lei. Dessa forma, faz-se necessrio pensar os modos de funcionamento das relaes de proteo voltadas aos setores infanto-juvenis, trazendo para o debate sua produo histrico-poltica. PALAVRAS -CHAVE Infncia; proteo; excluso.

    Ao pensarmos a questo dos direitos da criana e do adolescente brasileiros, dois

    conceitos devem ser necessariamente discutidos: o de excluso social e o de proteo.

    Ambos presentes nas concepes e nas prticas dos equipamentos de assistncia e

    proteo social estruturados ao longo do sculo XX. No presente artigo, a proteo ser

    pensada em relao excluso social e aos equipamentos sociais da justia da infncia e

    da juventude, trazendo experincias de trabalho junto a Juizados e outras entidades de

    atendimento.

    A idia do que vem sendo chamado "proteo infncia e juventude" tem se

    remetido a dois mbitos: ao da bondade e ao da competncia tcnica. Experincias

    desenvolvidas em Juizados da Infncia e da Juventude, escolas de Ensino Fundamental

    e outros estabelecimentos1 obrigam a uma leitura mais apurada das prticas e dos

    discursos relativos aos direitos da criana e do adolescente. A interveno em reas de

    atuao direta com esta populao oferece uma sustentao emprica anlise de

    relaes generalizadas atravs de conceitos e categorias histricas, tais como proteo e

    * Professora Doutora do Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal Fluminense. ** Professora Doutora do Departamento de Educao da Faculdade de Formao de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Sociloga do Servio de Psicologia Aplicada da Universidade Federal Fluminense.

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    excluso. Nesse sentido, inmeras questes podem ser problematizadas, como nos casos

    do binmio excluso/incluso social, da legislao especfica para esta faixa etria e seu

    aparato jurdico ou, ainda, da relao assistncia/tutela/abandono. O recorte que se faz

    aqui, embora por vezes possa referenciar cada uma destas vertentes, privilegiar apenas

    algumas delas. Para tanto, a proteo ser pensada em relao excluso social e aos

    equipamentos sociais da Justia da Infncia e da Juventude, trazendo experincias de

    trabalho junto a Juizados e outras entidades de atendimento.

    Apesar do Estatuto da Criana e do Adolescente ECA2 prescrever a

    descentralizao da estrutura poltica desta rea, atravs de conselhos de direitos da

    criana e do adolescente, o Juizado da Infncia e da Juventude ainda tido, pela

    populao de maneira geral, como o lugar por excelncia da defesa dos direitos de

    crianas e jovens, pautando sua prtica em uma noo de proteo. Por outro lado e

    simultaneamente, est localizado em cenrios de coero. No primeiro caso, associado

    ao espao das solues: resolve, encaminha, adapta, pune "os maus", ampara "os bons",

    enfim "protege". No segundo, visto como rgo repressor que ameaa, produz medo,

    representa a autoridade, normatiza, ou seja, exerce um poder coercitivo.

    Portanto, proteo e coero, noes que podem parecer opostas, esto

    associadas nas prticas dos estabelecimentos de assistncia criana e ao adolescente.

    Tais prticas, tradicionalmente situadas no mbito da filantropia, so vistas apenas pelo

    seu lado de amparo. No entanto, quando circunscritas a contextos histrico-polticos

    concretos adquirem outras dimenses. Desconsidera-se, ao referir-se filantropia, que

    por um lado, sua produo acompanha o que Aris (1978) chama de sentimento de

    infncia, entendido como uma produo histrica e no como um sentimento natural

    do homem e que, por outro, este sentimento se d no contexto da afirmao da

    sociedade burguesa. As conotaes relativas infncia sero diferenciadas, de acordo

    com as diferenas scio-econmicas dos sujeitos. As prticas de proteo so

    produzidas historicamente e, nesta medida, localizadas de acordo com a poca e a forma

    que adotam. Portanto, tal produo pode referir-se a dois processos: o de definio da

    infncia e o de afirmao da sociedade de classes.

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    INFNCIA, FAMLIA E PROTEO NO CONTEXTO LIBERAL

    Ao pensarmos a emergncia do conceito de infncia, que data do sculo XVI,

    vemos que ele vai se definindo no contexto da afirmao de uma sociedade

    disciplinarizadora, tendo como dispositivo fundamental a educao religiosa. A nfase

    nesta camada da populao to importante que o poder eclesistico - poca

    dominante - configura a infncia como um catecumenato privilegiado (VARELA;

    ALVAREZ-URIA, 1992). Na medida em que a produo da infncia se d em uma

    sociedade excludente, o tratamento populao diferenciado de acordo com os seus

    recursos materiais. Assim, obedecendo aos princpios da sociedade de classes, a

    catequese ter propostas e prticas diferenciadas, de acordo com a populao qual se

    destina. Dessa maneira, a formao da criana variar em funo da condio de classe

    de sua famlia, sendo que uma famlia com posses se caracterizar por uma relao

    pedaggica que a capacita para exercer funes de mando, ao passo que os pobres

    dependero dos espaos pblicos, que por sculos se restringiam a instituies

    totalitrias, nas quais eram preparados para servir. Embora de forma distinta e com

    outros matizes, percebe-se que, de alguma maneira, estas diferenas permanecem cinco

    sculos depois.

    Um dos traos distintivos da educao entre crianas de diferentes classes

    sociais que as mais abastadas tm as condies necessrias para serem educadas ao

    lado dos pais, tendo a relao familiar como referncia. J as famlias mais pobres, com

    maior freqncia, so objeto de intervenes que, longe de proteg-las, as

    desqualificam. A interveno governamental na famlia pobre se d atravs da proteo

    filantrpica, que educa no sentido de sua imediata insero no processo produtivo, ao

    contrrio das famlias de maiores recursos materiais, cuja educao tem diversos

    sentidos tais como o ldico, o psicomotor, o da afirmao afetiva, antes de preocupar-se

    com a entrada no mercado de trabalho. Nessa medida, dar proteo aos pobres faz-los

    trabalhar.

    Ao localizar a proteo no campo de ao da filantropia, entende-se que esta

    deve se pautar no campo da boa vontade" e no da ao pblica. Alm do mais, a

    abordagem filantrpica se d de forma individualizada, como se as demandas fossem

    particulares. O particular, neste contexto, entendido como a culpabilizao individual

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    pelas condies de vida das pessoas s quais se socorre e no como problemas

    coletivos, produzidos histrica e socialmente. A individualizao das condies de vida

    fruto da transformao da vida comunitria em espao privado, sustentado por saberes

    especficos. A tcnica se difunde como fundamento das relaes. No trabalho, o

    domnio de conhecimentos tcnico-especializados prevalece, embora as bases tericas

    em que se sustentam tais saberes sejam patrimnios de elites. A diviso social do

    trabalho em manual e intelectual e a organizao social que diferencia famlias de maior

    poder aquisitivo e autnomas das pobres e sob a proteo pblica so dois aspectos que

    emergem no processo de privatizao. A privatizao operada pelo avano da sociedade

    capitalista se d em todos os sentidos. No apenas privatizado o produto do trabalho,

    como tambm o saber, a convivncia, a famlia, e nela a infncia. Para lidar com os

    espaos de forma privada criada uma rede de especialistas que difundiro os saberes

    considerados corretos e verdadeiros aos quais os sujeitos devero enquadrar-se.

    Nessa medida, lidar com a infncia passa a ser coisa de especialistas. A

    relao pedaggica e mdica, a organizao familiar, a moradia esto enquadradas em

    normas e modelos difundidos por especialistas, atravs de dispositivos disciplinares

    produzidos a partir do sculo XVI. Modelos que reforam o carter privado da relao

    familiar e, dessa forma, reafirmam seu distanciamento do mbito pblico, espao que

    anteriormente definia as prticas sociais atravs das rotinas comunitrias. A relao

    pblica da famlia fica confinada a espaos localizados e institucionalizados, sem

    interferir diretamente na vida poltica. Nesse sentido, a famlia emerge como um

    territrio privado, ntimo, com atribuies no seu interior e explicitamente excluda do

    mundo da poltica. A correlao entre famlia e poltica se produz atravs de

    dispositivos disciplinares, localizados no mbito da proteo. Retira-se a proteo do

    contexto histrico no qual emerge e se conferem famlia atribuies polticas

    disciplinares essenciais organizao social, negando sua participao direta e cotidiana

    no mbito da poltica pblica.

    Contudo, se a proteo for percebida enquanto um processo histrico

    excludente, seja em sua dimenso geral, que produz a dicotomia pblico e privado, ou

    atravs de estratgias de afirmao de uma sociedade de classes, a responsabilidade por

    sua execuo no se limitar ao voluntarismo "do bem", mas ao compromisso poltico

    com um projeto que reverta as condies de excluso. Nesse sentido, ao mesmo tempo

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    em que se reconhece a filantropia como a forma mais difundida de oferecer proteo,

    inquestionvel a funo do Estado moderno nessa tarefa. Quando a boa vontade no

    corresponde s demandas dos "necessitados", consensual a responsabilizao do

    Estado. Nele, as formas atravs das quais se oferece proteo social so organizadas

    pelo governo, por prticas especficas para exercer e manter o poder.

    O governo como questo social e poltica emerge no sculo XVI, com a

    disseminao de grupos sociais que, obrigados a migrar para sobreviver, rompem com a

    tradicional estabilidade de seus assentamentos. Na sociedade moderna, o deslocamento

    e a migrao so elementos do cotidiano. Ao se perderem os laos comunitrios

    tradicionais de educao dos jovens, a relao com a criana tambm se v implicada

    entre as prticas de governo. Esta situada no mbito da pedagogia que, por sua vez,

    sempre esteve implicada na famlia, no governo da famlia, cujo sentido o governo

    atravs da famlia (DONZELOT, 1980). Assim, associada a um processo poltico

    determinado, onde sua interveno passa a ser decisiva para a manuteno da ordem, a

    partir da qual o exerccio de poder se preserva. Dessa forma, a famlia moderna est

    diretamente associada ao contexto poltico de governo.

    O governo uma prtica concreta apoiada em aparelhos, equipamentos,

    instituies, procedimentos, que permitem o exerccio de uma forma especfica de

    poder. Tem por alvo a populao qual se remete a partir de relaes de controle, dita

    de segurana, como ocorre no caso do aparelho judicirio.

    A segurana social, portanto, um instrumento do poder que indica maior

    autonomia dos indivduos, embora, paradoxalmente, implique em maior dependncia. O

    discurso da sociedade liberal se d no sentido de garantir a liberdade de cada

    indivduo. Ao mesmo tempo, essa liberdade est condicionada capacidade de se

    enquadrar na estrutura econmica e nos modelos sociais. Capacidade que esbarra nas

    contradies da sociedade capitalista, sustentada na especulao do mercado, onde uma

    das mercadorias a fora de trabalho. Portanto, segurana social, no sentido de oferecer

    independncia ao cidado, apenas opera para quem j est inserido em uma estrutura

    econmica determinada. Do contrrio, a dependncia operar por outras vias, que no

    Brasil se localizam nas polticas de assistncia social. Como assinala Foucault (s.d., p.

    212), observa-se um efeito de dependncia por integrao e um efeito de dependncia

    por marginalizao ou excluso.

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    PROTEO E EXCLUSO: PROXIMIDADES

    A poltica social convocada a penetrar com nfase em situaes de excluso

    social. No entanto, como aponta Robert Castel (1996), a noo de excluso social vem

    sendo utilizada de maneira muito inflacionada e heterognea. Tornou-se de tal maneira

    massificada que est completamente indefinida, cobrindo realidades por demais

    dspares3. O exemplo do prprio Castel, que discute o fato de tanto um trabalhador

    desempregado quanto um jovem morador de periferia envolvido em delitos penais

    serem considerados excludos", embora tenham vivido diferentes trajetrias e

    correspondam a realidades diversas.

    A concepo moderna do termo excludo remete a meados da dcada

    de 60, quando este conceito comea a se fazer presente em publicaes francesas sobre

    "desadaptados sociais" (invlidos, velhos, deficientes fsicos e mentais). Entretanto, se

    consolida enquanto um novo sentido, onde excludos so "aqueles que manifestam uma

    incapacidade de viver como todo mundo", a partir da obra de Ren Lenoir (1974) "Os

    Excludos". Esta viso expressa uma concepo social baseada em modelos, a partir da

    qual quem no se enquadra torna-se um "excludo social". Tal tica, que desconsidera a

    multiplicidade das formas de existncia, impe modos de ser distanciados das condies

    concretas necessrias sua realizao. Estabelece-se, assim, o binmio

    excluso/incluso de forma dicotmica e intransigente.

    Os debates sobre excluso tm se aproximado daqueles que discutem a

    questo social, a funo do emprego, o desemprego e suas conseqncias. Ou seja, esta

    noo, atualmente, est profundamente ligada sociedade que tem o trabalho e sua

    decorrente proteo como forma de estabilidade social4. Porm, tratando-se do

    capitalismo, no qual o desemprego no um acaso, mas uma forma atravs da qual esse

    sistema se estruturou, a proteo no sentido da integrao implica em prticas

    concretas, limitadas em relao ao discurso que se prega. Sabe-se de sobra que a

    capacidade de integrao ao sistema produtivo de forma ativa limitada, pelo que as

    polticas de proteo se orientam a contornar algumas situaes limites, sem a menor

    pretenso de reverter o quadro estrutural que produziu a excluso social. A expanso da

    proteo pblica ocorre na medida em que as situaes de excluso advindas dos

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    processos de industrializao capitalista se generalizam, repercutindo na capacidade de

    suporte das redes sociais primrias como a famlia e a comunidade.

    Por isto, quando as polticas se autodenominam de reintegrao social, partem

    do suposto que em algum momento os setores excludos participaram da estrutura

    econmica que regula a seguridade social e que ho de tornar a integr-las. Premissa

    nitidamente falsa, segundo a experincia dos equipamentos sociais que prestam servios

    de proteo criana e ao adolescente no Brasil. Na medida em que objetivamente as

    condies materiais no se transformam, as polticas de proteo propostas pelos

    governos brasileiros, incapacitadas de integrar os jovens ou suas famlias a um mercado

    de trabalho excludente, quando operam, o fazem atravs de prticas de controle

    disciplinar.

    Seguindo nesta direo, pode-se dizer que os equipamentos sociais,

    especificamente no que diz respeito a crianas e jovens pauperizados, atendem uma

    parcela da populao excluda da escola, do modelo de famlia institudo, dos padres

    de consumo, de atividades ldicas previamente definidas, do sistema de sade, enfim de

    um modelo do mundo do trabalho.

    Assim, conviria lembrar que, ao se afirmar que existe uma criana excluda, est

    pressuposto que existe uma que est includa, chegando-se binarizao

    incluso/excluso. Por este modo de pensar, a criana dita excluda alvo de programas

    de incluso, onde ela e sua famlia so tomadas como um problema, justificando-se a

    interveno de especialistas e a existncia de agentes e programas de integrao social.

    Tal o caso dos programas de bolsa-escola, cesta bsica, tquete de leite etc. Tornam-se

    ento presentes nos projetos polticos, invadem a mdia, conquistam a cena pblica,

    produzem especialismos a partir de uma qualificao negativa, que designa a falta em

    comparao a um modelo de infncia ideal. A razo disto est precisamente no fato dos

    "traos constitutivos das situaes de excluso no se encontrarem nas situaes em si

    mesmas" (CASTEL, 1997, p.19), mas na crena de um afastamento de condies

    ideais de vida. Da nascem as propostas de reabilitao, com uma viso de amparo

    transitrio, na medida em que se enfrenta a situao de excluso como uma crise

    passageira e pontual. Ao considerar o processo de excluso como uma crise, so

    estabelecidas aes fragmentadas, como se a excluso fosse produzida por um fator que,

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    ao ser abordado, a contornaria. Dessa forma, existe a expectativa de que tais aes

    sejam definitivas, que revertam, de fato, situaes de excluso.

    As prticas de proteo apenas intervm institucionalmente, seja nos setores

    produtivos atravs de institutos de benefcios especficos para trabalhadores ou nos

    equipamentos sociais para excludos. Assim, para ser assistido, condio bsica estar

    integrado ou includo em alguma dessas redes. A reintegrao social relacionada a

    equipamentos sociais, cujas prticas tornam falacioso propugnar a independncia dos

    assistidos. Dessa forma, os equipamentos para os excludos, longe de oferecer condies

    de independncia, os controla e os torna dependentes.

    A proteo, no caso dos adultos, est localizada nas polticas de seguridade

    social e, no caso da criana e do adolescente, opera atravs do conceito de tutela. Tais

    relaes so definidas em lei, onde o nvel de abstrao se distancia da concretude das

    prticas cotidianas. A proteo uma referncia a uma formao poltica pautada em

    modelos hegemnicos, a uma sociedade cientificamente planejada, em que cada

    movimento, cada comportamento enquadrado em padres tecnicamente regulados.

    Um ato de amor pode ser interpretado como uma ameaa social, assim como relaes

    que coloquem em risco a vida de outrem podem ser definidas como adequadas. Tal o

    caso das mes enquadradas como negligentes ao deixarem seus filhos em abrigos para

    poderem trabalhar. Isto, sob certas concepes, um trao de desafeto e

    irresponsabilidade, chegando-se ao cmulo de puni-las, limitando intencionalmente as

    visitas aos filhos abrigados. Ao mesmo tempo, so inmeros os casos de mes acusadas

    de desafeto por deixarem os filhos sozinhos em casa quando vo trabalhar, j que no

    tm outro lugar onde possam deix-los e o sustento da famlia garantido

    unicamente pelo seu trabalho. No h o que dizer sobre aquelas que, ao no terem

    suporte para cuidar de seus filhos, se vm impossibilitadas de acessar o mercado de

    trabalho.

    A leitura de prticas cotidianas desse tipo passa, na maioria das vezes, pelo

    crivo de enunciados formais e hegemnicos que desconsideram a construo das

    relaes. A ordem legal se baseia em parmetros de normalidade, que no apenas

    desconhecem outras formas de vida, mas as destroem, na medida em que a leitura que

    se faz destes parmetros circunscrita a um s modelo.

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    No Brasil, a distncia entre a formulao poltica e a realidade abismal e at

    contraditria. A administrao da poltica de proteo social acompanha as formas

    autoritrias dos governos que, longe de buscar uma aproximao dos setores que

    demandam formas de proteo, faz uso poltico de sua implementao em benefcio

    prprio. Assim, independentemente dos princpios legais especficos, a proteo social

    foi sendo entregue a setores econmicos e polticos lucrativos, de tal forma que os

    setores emergentes tomassem conta dos espaos, deixando os setores mais pauperizados

    cada vez mais excludos. O nico recurso para reivindicar um servio o lobby junto s

    elites; uma forma poltica corporativa, que cada vez mais inviabiliza a penetrao nos

    espaos polticos e sociais5. Em vez de se discutir esta rea democraticamente, buscam-

    se alianas particulares que garantam de forma individual e interesseira o acesso aos

    equipamentos sociais.

    Nos equipamentos sociais se inscreve uma modalidade do poder sustentada na

    disciplina. O poder disciplinar, segundo Foucault, implica em um conjunto de

    instrumentos, tcnicas, procedimentos, assumidos pelos equipamentos sociais que

    objetivam vigiar e controlar. Esta prtica se desenvolve tanto por aqueles que tm

    funo coercitiva, como o caso da Justia, como por aqueles onde mais velada a

    relao disciplinar, como no caso da escola e do atendimento sade. Todos eles

    funcionam pela vigilncia, que no Brasil controlada pelas elites polticas.

    A produo da proteo enquanto dispositivo de preservao de modelos

    hegemnicos emerge no contexto de debates polticos e sociais. Embora predominem

    certos modelos sociais, as formulaes polticas no so homogneas. Expressam

    movimentos, opes e foras que disputam espaos de poder. Nesse sentido, s leis

    cabem diversas interpretaes que se enfrentam atravs de prticas cotidianas nos

    espaos do poder, como nos equipamentos sociais, por exemplo. O trabalho

    institucional atravs de equipes tcnicas e da discusso junto aos diretamente

    implicados contribui com reflexes sobre as propostas de interveno. Por oposio, a

    centralizao; na figura de um Juiz, de um diretor ou de outros especialistas; dos

    destinos da populao investe em relaes autoritrias, contrrias ao ideal democrtico.

    O autoritarismo, que na rea social tem seu trao mais marcante no paternalismo com

    que se desenvolvem as prticas de proteo, impede a ampliao dos mecanismos e das

    formas de proteo social, na medida em que permanecem encurraladas nos interesses e

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    nas concepes particulares dos gestores pblicos e privados. As gestes tendem a ser

    pautadas na verticalidade da doao caritativa, que uma ao dirigida, que limita um

    movimento espontneo e impede processos reivindicativos.

    ESTABELECIMENTOS DE PROTEO E SEUS ESPECIALISTAS

    O relato de uma histria vivida em um Juizado do interior do Estado do Rio de

    Janeiro pode bem ilustrar a dimenso da engrenagem de proteo, dependncia e

    disciplinarizao produzida pelas prticas de estabelecimentos desse tipo.

    Ao ser chamada para levar sua filha de pouco mais de cinco anos ao Juizado, a

    me se apresenta no local. L deixa a criana na sala de espera indicada e retorna para

    casa. Ao final do expediente, um funcionrio, preocupado com o choro da criana, a

    encaminha para a psicloga, que se surpreende com a presena daquela figura

    desconhecida. Aps buscar informaes sobre a menina, a psicloga descobre seu

    endereo e a acompanha at sua casa, para saber o porqu do abandono. L chegando,

    encontra a me convicta de ter agido corretamente, j que acatou a autoridade. Segundo

    sua explicao apenas atendeu a uma demanda do "Juiz". Justifica que foi ao Juizado e

    l deixou sua filha, conforme entendeu que deveria fazer quando lhe disseram para levar

    a menina a uma determinada sala. Relata, ainda, que perante a surpresa da vizinhana

    por ter retornado sem a filha, ela, muito segura, explicou a todos ter deixado a criana

    com o "Juiz".

    Este caso aponta para a relao de poder inquestionvel na qual se fundam as

    prticas dos equipamentos sociais. Saber-se abraada pelo manto do Juiz conforta uma

    me em conflitos, independentemente do rumo que se d ao caso. O poder disciplinar

    age atravs do seqestro dos corpos. O reconhecimento do poder totalitrio do Juiz o

    reconhecimento da "incapacidade" da me. A me sequer pensa na possibilidade de

    influir no encaminhamento que ser dado ao caso da filha. Ela no s se sabe

    incompetente para isto - embora em todos os mbitos da vida cotidiana lhe seja cobrada

    competncia para cuidar de sua famlia - como tampouco imagina que possa haver um

    debate em torno do caso. O Juiz, que justo , saber "naturalmente" o que fazer.

    Nesse momento, a me acredita que, ao deixar a filha no Juizado, a deixa sob uma

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    proteo superior, reconhecendo nesse momento sua desqualificao para participar dos

    destinos de sua famlia.

    As relaes sociais que se do no espao da sociedade disciplinar fazem com

    que a prpria me perceba sua relao familiar como um compromisso social no qual

    sua competncia a virtude que pode trazer "bons resultados". Desta maneira, os

    conflitos familiares so vividos de forma individualizada, em funo da capacidade

    interna da famlia - particularmente dos chefes de famlia - de resolv-los. A

    transferncia do conflito para o mbito pblico, atravs do encaminhamento deste a

    estabelecimentos de assistncia ou ao Juizado, no vista como um esforo para buscar

    novos recursos perante as demandas da famlia, mas como uma desqualificao desta.

    Tal anlise tem se evidenciado na pesquisa histrica que vem sendo realizada pelo

    PIVETES em arquivos de Juizados da Infncia e da Juventude. Segundo os dados

    coletados, as mes buscam o juizado como ltimo recurso, quando se esgotam suas

    possibilidades de permanecer com os filhos. Nesses casos, a prtica tradicional sempre

    foi solicitar a internao, embora a forma como isto ocorresse implicasse na perda de

    poderes destas mes em relao a suas famlias. O Juiz passa a deter o poder sobre as

    crianas. No se registram processos nos quais a me aponte suas dificuldades,

    solicitando apoio antes que a situao chegue ao limite de ter que abandonar os filhos

    ou que o Juizado interfira, evitando esta medida radical. O prprio Juizado no oferece

    outras opes que a substituio da tutela. Essa prtica , pois, totalitria.

    Dentre outros equipamentos sociais que se ocupam da populao pobre, o

    Juizado de Menores surge, no incio do sculo, a partir das preocupaes do higienismo,

    movimento pautado na vigilncia e na disciplina. Preocupados com as crianas que

    perambulavam abandonadas pelas ruas e com o aumento da criminalidade infantil, os

    juristas da poca preconizavam dois tipos de discurso: por um lado a defesa da criana

    que deveria ser protegida e por outro, a idia de que a sociedade deveria se prevenir

    contra o perigo eminente da delinqncia infanto-juvenil. Ou seja, no bojo das prticas

    de preveno, o Juizado surge como uma medida saneadora de uma disfuno. Assim,

    historicamente, tem como uma de suas funes atenuar situaes de excluso e como

    outra, resguardar a ordem.

    Estabelece-se a uma primeira lgica: excluso como produtora de equipamentos

    de assistncia e proteo. Entretanto, uma outra vem se construindo e pode ser

  • ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 5, N.2, 2 SEMESTRE DE 2005

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    facilmente identificada no espao do Juizado. O fato de estar sendo protegido funciona

    como uma reafirmao da excluso. A exemplo do caso relatado anteriormente, as

    pessoas que procuram o juizado pouco se reconhecem dentro desse estabelecimento.

    Ignoram seus direitos, sentem-se coagidas diante da autoridade e ao mesmo tempo

    dependentes dela. A poltica que consiste em proteger confere um status social

    degradante queles que pretende ajudar, estigmatizando-os e produzindo/reproduzindo

    um total descrdito em suas condies de agir autonomamente. Isto construdo pela

    impossibilidade de separar os dois mbitos de interveno do Juizado: a proteo dos

    chamados carentes e a proteo da ordem. A ao protetora uma ao preventiva

    contra os necessitados, na medida em que estes so do interesse pblico quando

    ameaam o espao privado. Neste caso, estar sob condies de proteo est associado a

    ser uma ameaa ordem.

    As famlias que chegam ao Juizado, lugar de proteo, se vm presas num

    emaranhado de normas e percursos estranhos a seus modos de vida e so chamadas a

    neles se enquadrarem. Dessa forma, reafirma-se a excluso por desqualificao da

    diferena, por afirmao de formas hegemnicas de existncia, pela imposio de

    prticas definidas a partir de modelos institudos.

    Os discursos cotidianos reafirmam o carter mltiplo do processo de excluso

    social que produz equipamentos de assistncia. A presena de equipes tcnicas

    constitudas por profissionais de diferentes formaes instrumentaliza a tecnologia do

    poder institudo. Os discursos oficiais e as regras funcionais, fundamentadas nas

    diferentes reas de conhecimento, so apresentados de forma coesa. A preservao de

    modelos hegemnicos prevalece, esvaecendo os esforos para produzir novos

    territrios. A prpria lei polmica. A ela cabem diversas interpretaes a partir das

    quais encaminhamentos, os mais variados, podem ser pensados, em funo das

    condies concretas de cada caso e dos equipamentos disponveis.

    Historicamente, os especialistas emergem enquanto exrcitos autorizados pelo

    saber escolar, atuando a partir da desqualificao dos no legitimados pela academia.

    Ivan Illich (1977) denuncia o poder que exercem os especialistas ao definirem as

    necessidades humanas e a control-las. este exrcito de notveis que estabelece o que

    uma omisso, quais os omissos e em que momento cabe proteg-los. Da mesma

    forma, as prticas de proteo no so discutidas com os definidos como carentes; so

  • ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 5, N.2, 2 SEMESTRE DE 2005

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    pr-determinadas com base em modelos de normalidade. O poder de sua interveno

    nos equipamentos sociais est dado por saberes tcnicos, fundados em modelos que se

    propem a enquadrar os definidos como carentes.

    A interveno dos especialistas se d de forma radical. As situaes em que se

    exerce a proteo tendem a se repetir sistematicamente, por tratar-se de casos em sua

    maioria reconhecidos tanto por suas causas como pelas formas que adotam. A poltica

    de proteo uma opo poltica; no a nica forma possvel nem uma prtica

    acidental. A interveno acontece de forma loteada pelos diversos saberes

    especializados. Cada um diagnostica e faz um encaminhamento em seu domnio,

    tornando a relao social que foi definida como problemtica, irregular ou

    carente, uma colagem na qual os sujeitos no se reconhecem, estranham o contexto

    em que foram enquadrados, onde sua vida no faz sentido, no mais sua vida. V-se

    obrigado, ento, a curvar-se perante a incapacidade de auto-regular-se.

    As prticas institucionalizadas produzem a demanda de controle social. O poder

    plenipotente dos especialistas se sustenta na produo do incapaz, imprimindo nos

    sujeitos a condio de carente. Nesse territrio, o especialista se limita ao lugar que

    lhe designado, perdendo qualquer perspectiva de interveno problematizadora. Seu

    saber um saber condicionado.

    No entanto, a nossa experincia com intervenes socioanalticas em

    estabelecimentos como o Juizado ou a escola, ambos altamente disciplinadores, abre o

    debate sobre o fundamento e as perspectivas das prticas institucionais. Tais

    experincias apontam para novas produes. Longe de perceber os tcnicos enquanto

    um exrcito redundante, constata-se que, contar com a participao das equipes

    tcnicas, sem dvida, um avano. Se por um lado a prtica tradicional desloca o

    cotidiano dos indivduos para encaix-los em moldes universais, por outro lado traz a

    possibilidade de instituir olhares mltiplos a situaes mltiplas. Trata-se de produzir

    novos espaos, buscando-se perceber cada caso em suas diferenciaes, sem encaix-los

    em modelos pr-estabelecidos. Abrem-se janelas para o debate sobre o contexto em que

    so produzidos os conflitos6, de forma tal que as relaes no sejam naturalizadas e os

    encaminhamentos no adotem "pacotes" universais, independentemente das condies

    particulares de cada famlia.

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    Esta uma perspectiva para penetrar nas slidas redes de grupos que ocupam

    poderosos espaos institucionais e que, nesta medida, bem podem contribuir para

    reforar modelos hegemnicos ou investir em prticas que partam do contexto

    especfico da populao alvo dos equipamentos. Leitura possvel a partir do Estatuto da

    Criana e do Adolescente - ECA, que implica abrir espaos para a participao

    democrtica da populao e, como tal, provoca debates na rea da proteo criana e

    ao adolescente.

    Um dos fundamentos do ECA a descentralizao do atendimento. Falar da

    descentralizao tocar em ampla polmica que vai da definio da necessidade de

    proteo s bases polticas a partir das quais esta se exerce. Concretamente, no que diz

    respeito participao de equipes tcnicas no atendimento a casos especficos ou na

    definio de estratgias de interveno, o Estatuto abre um espao valioso ao localizar

    os encaminhamentos no mbito local. Abrir esta brecha, a partir do referido parmetro

    legal, perante as dificuldades de um Estado federativo de tradio centralizadora e das

    prticas histricas de afirmao de modelos dominantes, faz do Estatuto da Criana e do

    Adolescente um desafio histrico.

    Estabelecer novas referncias na relao de proteo implica insistir nas diversas

    leituras possveis perante uma proposta poltica; implica produzir novas prticas. Assim,

    as leituras polmicas em relao aos discursos hegemnicos criam novos territrios,

    novos debates e, com eles, novas prticas. Por oposio, formular enunciados plurais e

    preservar velhos procedimentos reforar poderes tradicionais em nome de retricas

    combativas. Inovar, desconstruir so exerccios de grande responsabilidade por

    emergirem das prprias tradies que se colocam sob questo. No se trata apenas de

    negar velhas estruturas, mas de reconhecer nas prticas que elas produzem a emergncia

    de espaos a serem explorados. neste sentido que se insiste em debater no s os

    enunciados legais, mas as vises em seus contextos polticos e sociais especficos,

    exerccio fundamental para levar prtica os ideais de mudana. Implementar uma nova

    lei, uma nova concepo de proteo, preparar-se de forma ciosa para lev-la prtica

    no cotidiano dos equipamentos sociais, produzir novas alianas e pensar estratgias

    orientadas a consolidar os ideais postulados. Ou seja, fazer com que os postulados

    sejam lidos nas prticas cotidianas. Fugir deste caminho investir no descompasso da

    histria, usando novos discursos para reforar velhos poderes.

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    Como acertadamente diz Almeida (1995, p. 88), referindo-se penetrao das

    novas concepes na rea social - concepes fundadoras da Constituio Federal de

    1988 e, portanto, das propostas contidas no Estatuto da Criana e do Adolescente: [...] a fragilidade das tendncias reformadoras reduziu o alcance e o impacto do impulso racionalizador e modernizador. Faltou neste caso uma elite profissional capaz de nuclear e dar rumo a uma coalizo mecanicista e que aliasse concepo clara do novo modelo assistencial com experincia de gesto pblica e forte penetrao nos centros de deciso da poltica assistencial no Executivo.

    Novos discursos com velhas prticas o que se presencia no Brasil. Intervir em

    velhas formas de atuao implica em produzir rupturas, embora no necessariamente

    rompimentos, a partir das descontinuidades que emergem da prtica cotidiana. Os

    esforos nesse sentido no tm sido poucos e saltam aos olhos as dificuldades. Dentre

    elas, se destaca a ausncia de debate das relaes de poder presentes no espao da

    proteo infncia e juventude. As experincias de interveno nesta rea, de forma

    geral, se limitam proposta de novas tcnicas. No entanto, pensar o modo de

    funcionamento das relaes de proteo implica problematizar sua produo histrica,

    desnaturalizando as prticas voltadas aos setores infanto-juvenis.

    NOTAS 1 As autoras tm participado de projetos de estgio no Juizado da Infncia e Juventude de Niteri e em escolas de ensino fundamental. Tambm fazem parte da equipe do Projeto de Interveno Voltado s Engrenagens e Territrios de Excluso Social (PIVETES), realizando pesquisa histrica em processos da justia da infncia e da adolescncia. Todas essas experincias se realizam na Universidade Federal Fluminense. 2 O Estatuto da Criana e do Adolescente, lei federal aprovada em 1990, estabelece a criao de Conselhos, como forma de descentralizar as atribuies polticas anteriores e tradicionalmente circunscritas ao Juizado de Menores e ao Ministrio dedicado rea social. 3 Para esta situao Castel denomina a excluso mot-valise (palavra-valise), que inclui uma grande variedade de sentidos. 4 Para este tipo de anlise ver R. Castel (1998). 5 Em relao a esta temtica ver Vianna (1994). 6 Entende-se por conflito a produo de demanda que faz com que determinadas situaes sejam definidas como problema. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ALMEIDA, M.H.T. Federalismo e polticas sociais Revista Brasileira de Cincias Sociais, So Paulo, v. 28, p. 88-108, 1995. ARIS, P. Histria social da criana e da famlia. Rio de Janeiro: Vrtice, 1978. CASTEL, R. O advento de um individualismo negativo. Revista do Departamento de Psicologia - UFF, Niteri, v. 9, n. 2 e 3, p. 4-11, 1996.

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    CASTEL, R. As metamorfoses da questo social - uma crnica do salrio. 1 ed. Petrpolis: Vozes, 1998. CASTEL, R. As armadilhas da excluso. In: CASTEL, R. ; WANDERLEY, L.E.W.; e BELFIORE-WANDELEY, M. (Org.). Desigualdade e a questo social. So Paulo: EDUC, 1997. DONZELOT, J. A polcia das famlias. 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1980. FOUCAULT, M. Saber y Verdad. Madri: La Piqueta, s.d. ILLICH, I.; ZOLA, I. K.; KNIGHT, M. Mc.; CAPLAN, J.; SHIKEN, H. Profesiones inhabilitantes. Madrid: Blume, 1977. LENOIR, R. Les Exclus. 1 ed. Paris: Seuil, 1974. VARELA, J.; ALVAREZ-URA, F. Arqueologia de la escuela. Madrid: La Piqueta, 1992. VIANNA, M. L. W. Lobismo: um novo conceito para analisar articulao de interesses no Brasil. 1994. 220 f. Tese (Doutorado em Cincia Poltica) - Instituto Universitrio de Pesquisa do Rio de Janeiro/IUPERJ, Rio de Janeiro.

    ABSTRACT The present article discusses the historical production of some of the called childrens protection social equipment, problematizing the political contexts in which they emerge. The analyses are based on experiences developed by the authors in Children and Youth Judgements and in the Tutelary Councils. These experiences take the authors to question social institutions as infancy, assistance, family, youth, in between others. The debates present in this text point out that the tutelary relation, as well as the protection policies many times result into practices of exclusion, not necessarily guaranteeing the rights conquered and established in law. Therefor, it is necessary to think and analyse the historical way that protection relationships involving infancy and youth have been produced. KEYWORDS Infancy; protection; exclusion.

    Recebido em: 17/05/04 Aceito para publicao em: 08/12/04 Endereo: [email protected], [email protected].