INFINITO AMOR

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Romance inspirado na vida do maior artista brasileiro.

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Silvio Pélico

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Pélico, Silvio

infinito amor... nº 2 /Silvio Pélico. – São Paulo

1. Romance brasileiro I. Título.

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Prefácio

Anos 1950...

Rio de Janeiro, capital do Brasil, capital dos sonhos. Não importava onde nascera o artista, para vencer e conquistar o sucesso, era para essa belíssima cidade que ele deveria vir: principalmente um cantor.

Primeiro teria de passar por uma das várias emissoras de rádio. Concorridíssimas. Ser acolhido e aclamado em seu ponto sensível: o auditório. Depois, começar ali mesmo o seu fã-clube.

Vivia-se a era do rádio, com seus noticiários, suas novelas e seus adorados cantores. Na época, nada mais dignificante para um cantor que ser artista exclusivo de uma Rádio, pertencer ao seu cobiçado casting. As gravadoras, os shows e a independência financeira viriam mais tarde: muito depois de ter passado por um desses palcos.

Para Renato Reis, não fora diferente. Nascido numa pequena cidade de um pequeno Estado brasileiro, caso quisesse um dia ser artista de sucesso, teria de vir paro o Rio de Janeiro, cidade maravilhosa! E assim ele o fez, corajosamente, aos catorze anos de idade.

Neste breve relato que se segue, são narrados fatos que ocorreram entre 1947 e 1999; período em que quase tudo que viveu foi sentido de forma intensa. Momentos de alegrias, mas também de tristezas...

O mestre Carlos Drummond de Andrade, em seu belo poema “Noturno à janela do Apartamento”, disse:

... A soma da vida é nula.

Mas a vida tem tal poder:

na escuridão absoluta,

como líquido, circula...

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Assim disse o poeta, de forma anônima, comum a nós. Talvez esteja aí o segredo de Renato Reis: compor e cantar versos que falam sobre sentimentos comuns.

O relato começa e termina com o cantor ao lado de sua esposa, num quarto de hospital, em São Paulo: lugar onde estiveram por vinte e cinco dias. Ali, isolado, talvez o cantor tenha vivido os momentos mais angustiantes de sua vida. Lugar onde sofreu, sonhou, às vezes sorriu e também amou. E amou como poucos na vida foram capazes de amar. Como dizia outro poeta: Jorge Luis Borges...

... O mais pródigo amor lhe foi outorgado,

o amor que não espera ser amado.

É provável que, em algum quarto de hospital, alguém neste exato momento esteja passando por um drama parecido. É comum.

Portanto, como se diz nas obras de ficção, qualquer semelhança que esse relato tenha com a realidade não passará de mera coincidência.

Silvio Pélico

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1.

Na tarde de primavera que custa a declinar, os olhos imateriais do homem contemplam os últimos raios de luz que, em seus tons suaves de vermelho, rebrilham sobre o improvisado altar. Vez por outra, alquebrado, caminha em direção à janela, e sente na face o calor da evanescente luz e, súbito, lembra-se de outra tarde...

Tarde de verão, longínqua, em que estava num quarto de hotel, na belíssima Cascavel, onde do alto observava a praça e a multidão. Tarde em que, influenciado por uma sagrada inspiração, tentava decifrar um pouco daquela misteriosa atmosfera.

Era sábado, final dos anos 60. No ar, a renovadora presença da Era de Aquários. Por todo lado, sobrepondo a essas impressões, ecoava a influência mística da musica Gospel.

Da sacada, seus olhos observavam uma nuvem incendiada pelo sol. Ao redor da nuvem, um halo dourado de refração: bruma assimétrica. Em meio àquela delicada geometria, de relance viu realçada a paciente imagem de Jesus...

A mente retorna ao quarto do hospital... Magicamente, ouve os belos acordes da música que compôs naquela tarde e sente a vibração da batida Soul, a sonoridade rara do piano: sonoridade que um dia tanto desejou encontrar. Quanto à inspiração, sente que era mais que um corriqueiro estado de espírito. Era um sentimento. Sim, um profundo sentimento que o alcançara naquela incessante tarde; para ali, dentro do peito, pulsar... e para os momentos mais difíceis não só pulsar, mas arder.

É assim que sua mente tem se comportado nesses últimos dias, sem-pre oscilando entre dois mundos: o quarto do hospital e o seu infinito passado.

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Sentindo-se fatigado, dá mais alguns passos e deixa o corpo desabar sobre o sofá, seu fiel companheiro. Dali, após um leve movimento, avis-ta, feito um véu, a diáfana luz da tarde recobrir duas acolhedoras ima-gens: Nossa Senhora e seu Filho, agora tingidos de tons sépia.

Por instantes, encharcado de fé, quase não consegue distinguir a Mãe do Filho. Está imerso num místico encantamento: de uma ou de outra entidade espera a definitiva benção, o definitivo milagre.

As luzes da sala estão apagadas. Sem perceber, fora alcançado pelas sombras que só a noite traz. Mas ainda resta a tênue claridade vinda dos leds dos aparelhos médicos, cuja cor a todo instante muda de tom. Bem à sua frente, inconsciente, o corpo da amada parece flutuar sobre os lençóis, dispostos como se fossem nuvens.

Há horas ela não dá nenhum sinal, nenhum...

A fé do cantor, estável, mais se parece com o leito rochoso de um rio, a direcionar seus pensamentos sempre numa monótona direção.

Os exames evidenciam a presença de metástase. O médico insiste em dizer que o quadro é irreversível. Os obscuros pensamentos o rodeiam. Mas o leito rígido do rio corrige a direção das revoltas águas. Em seu imaginário, só há espaço para um acontecimento: a pronta recuperação de sua doce mulher. Às vezes, a vigília é interrompida pela visita de um parente ou de um amigo próximos, e os argumentos sempre apontam numa insuportável direção: trazê-lo o quanto antes à realidade. Mas ele de tudo duvida, e recebe tais argumentos como se fossem blocos de gelatina suspensos por elásticos.

Talvez a mente seja pródiga em só acreditar naquilo que vive em seu imaginário. Sob tal influência, ainda na penumbra do quarto, ele segue erigindo sua crença: tornou-se impenetrável.

No meio da noite, finalmente o cansaço o domina. A cabeça pende um pouco para traz a procura do encosto do sofá. Os olhos se fecham. Surge um breve estado de torpor. A mente penetra no insubstancial espaço do entressonho, mas a imagem vívida da Virgem Maria ainda perdura em sua retina. Por um momento, a alma ganha um alívio: fica suspensa um pouco acima dos rumores que o perturbam.

Um instante depois sente pousar no dorso da mão duas outras mãos: macias. O estado de vigília aos poucos se recompõe. Por fim reconhece a agradável presença. Então, próximo ao ombro, ouve um caloroso sus-surro:

— Por favor, meu filho, vá descansar um pouco.

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Os olhos se abrem e encontram o terno rosto de sua mãe, que traz um tímido sorriso.

— Quero estar por perto quando ela acordar, mamãe. Não quero me afastar um só instante.

— Entendo... Então se deite aqui.

O braço delicadamente o enlaça e o traz para junto de si, para colo macio, onde tantas vezes fora acalentado.

— Fique tranquilo, querido... Eu o chamo assim que ela despertar.

O calor do colo o faz adormecer. Há uma trégua, a mente atribulada ganha o esquecimento, a purificação.

Horas mais tarde, diante do espelho que encima a pia, observa com atenção o rosto recém-lavado. “Meu Deus! Como pude envelhecer tão rápido?” Ao deixar o banheiro, repara que o sofá está vazio, a mãe se fora. Nunca o quarto estivera tão calmo. Alguns passos adiante, perto da janela, os olhos alcançam a complexa paisagem da cidade — e ele a vê como um abstrato quadro pendurado na parede... Irreal.

De um instante, o sensível ouvido acusa um balbuciar, e o atento acompanhante se volta para o leito... Os trêmulos lábios tentam lhe dizer algo, mas o som lhe é incompreensível. Em seguida, a expressão da amada volta a ficar calma, mas ele não se sente frustrado com esse distanciamento. Ao contrário, observa-a com ternura. Ali, do alto, como se fosse a noite, segue contemplando a esposa com múltiplos olhos.

Ao acaso e de forma diversa, imagens lhe chegam à mente. Imagens de um passado não tão distante. Mas logo o fluxo é interrompido, pois os negros olhos se abrem: olhos de jabuticaba. Olhos que nasceram para serem seus. Só seus. Por um momento ela o reconhece e, com a pouca força que lhe resta, comprime as mãos afetuosas do marido...

— Meu amor, meu amor... O que está acontecendo?

— Foi só um cochilo, nada mais — ele responde.

A melodiosa voz ecoa pelo ar, o semblante da esposa volta a ficar plácido, e mais uma vez ela se acalma. E ali, naquele silêncio, ele se lembra de mais uma canção.

Tem sido assim. De repente a lucidez lhe chega. Os olhos se abrem. Os lábios tremulam. Um aperto de mãos se segue. Um instante depois, a lucidez se vai, deixando para traz um rastro de impressões, num eterno chegar-e-partir.

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As mãos voltam a sentir a pressão. Os olhos negros e misteriosos de novo se abrem. E uma avalanche de imagens o alcança...

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2.

Dezembro de 1977...

Era primavera. Na cidade alta e regelada, já se insinuava o piedoso hálito do verão... Há pouco o show terminara. De banho tomado e já refeito, ele circulava pelo camarim. De repente, o chamado:

— Pai? Esta é a amiga de que lhe falei. Estuda comigo lá no colégio, quer conhecê-lo.

Enigmáticos como a noite, os olhos dela se abriram. Ele sentiu, num instante, que a felicidade que traziam parecia ter o tamanho do mundo. Já mergulhado em ternura, não conseguia mais se libertar desse doce olhar. E clara a vida se mostrou. Momento único, que para sempre fica-ria gravado em sua memória.

Percebera, num instante, que algo dentro de si havia se partido, e que a transformação era definitiva. Ficou estático. Num gesto rápido, ela se alongou na direção de seu rosto, deixando o pequeno corpo sus-penso nas pontas dos pés. Ato reflexo, ele dobrou o tronco e fez com que suas faces se aproximassem. Um leve desequilíbrio a fez sair do prumo. Os cantos das bocas levemente se tocaram. Ele se desmanchou diante de tão delicadas impressões: a fragrância da pele, o calor da face já afogueada, a maciez da inocente boca. Não teve a menor dúvida de que aquele beijo fora o primeiro dela. Que aqueles lábios jamais tinham tocado outros lábios... E que num canto qualquer daquela alma virginal morava um desejo inconfessável.

Fora do hospital a noite segue clara. Indiferente a tudo, a Lua flutua no horizonte, deixando na vidraça apenas um leve rastro prateado. Interpondo-se entre o leito e a janela, ele se mantém de pé. Após um leve movimento lateral, deixa que parte da tênue luz alcance a face da amada, dando-lhe um suave aspecto marmóreo, angelical. Com ternura, faz seus dedos deslizarem sobre a fronte da amada, ajeitando-lhe cari-

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nhosamente os cabelos. Enquanto dura o gesto, o pensamento dá um salto de catorze anos, está em 1991: e as imagens que lhe chegam são ainda mais agradáveis, pois a vê sentada na primeira fila de um show, aplaudindo-o.

Mais tarde, sem que ele perceba, ela já está na entrada do camarim, segurando nas mãos a providencial toalha. E as imagens continuam se sobrepondo em sua mente, uma a uma... Ela, no avião, com a cabeça apoiada em seu ombro acariciando sua mão. No banco de trás do carro, pacientemente aguardando o cerco das fãs, que histéricas se jogam contra os vidros e o capô do carro. De madrugada no estúdio, sentada no sofá, já tomada de infinito, a ouvir os acordes que dão suporte a uma nova canção.

Dentro do peito é capaz de sentir a emoção que havia naqueles mo-mentos, momentos inesquecíveis. Sabe que, num instante, as horas e os dias ganharam vida, sentido, cores... Emoção que jamais sentira, e via aquele amor chegar feito um redemoinho, delicadamente misturado com paixão, desejo, alegria, poesia. Um infinito amor...

Em meio à penumbra do quarto, uma inquietante lembrança se faz presente, mas desta vez não lhe vem na forma de imagens. Trata-se apenas de um belo poema. Um poema de Pablo Neruda...

É bom, amor, sentir-te perto de mim na noite,

invisível em teu sonho, seriamente noturna,

enquanto eu desenrolo minhas preocupações

como se fossem redes confundidas.

Ausente, pelos sonhos teu coração navega,

mas teu corpo assim abandonado respira

buscando-me sem ver-me, completando meu sonho

como uma planta que se duplica na sombra.

Erguida, serás outra que viverá amanhã,

mas das fronteiras perdidas na noite,

deste ser e não ser em que nos encontramos

algo fica acercando-nos na luz da vida

como se o selo da sombra assinalasse com fogo

suas secretas criaturas.

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É madrugada. Próximo ao leito, de um instante penetra num espaço repleto de incertezas, de mistérios. Mistérios que só a noite traz. Mas ele não permite que isso continue e, bem baixinho, inicia uma oração. Depois, resolve aliviar seus joelhos, acomodando-se no sofá.

Com os olhos fixos na amada, sua mente fica a deriva. Pensa com ternura na fragilidade desse ser que tanto ama, e que com inocência lhe mostrou o misterioso prazer que há nas coisas mais simples: ir de mãos dadas à missa, sentar-se à mesa para um café ao cair da tarde, receber um abraço numa noite de verão. E agradece a Deus por tudo isso! Porém, num instante raro de lucidez, sente que o fim está próxi-mo. “Tantas coisas foram vividas, e tantas outras deixaremos de viver, de compartilhar. Num instante fui levado ao paraíso. Noutro, posso cair no nada, no infinito vazio”; pensa, melancólico.

Inexplicavelmente tem vontade de ver a imagem de Nossa Senhora. Mas não quer expor a esposa às agressivas luzes fluorescentes. Então, vai ao altar, acende uma vela, apanha o terço e volta ao sofá. Os lábios mais uma vez tremulam e outra oração se inicia.

O coração se acalma, a mente parece flutuar entre o sono e a vigília. Vagaroso, os olhos tentam acompanhar o reflexo que a oscilante chama produz na parede. Mais oscilante que a chama, a mão apanha lápis e papel, e alguns versos começam a ser rabiscados...

Silenciosa espera

Feito uma flor estival,

Que tímida em cor se desdobra.

O lápis insiste em grafar

O que a memória incerta recobra.

Diante da indefesa face,

Toda vestida de luar.

Minha doce e calma esperança

Em silêncio procura alcançar.

Com o terço nas mãos

A vigio esperando o perdão.

Às vezes ignorando o cansaço,

Nessa longa e peregrina atenção.

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Na madrugada já entrada

E imerso num eterno sentir.

Anseio ao menos que a aurora

De um instante possa vir.

Na tardia manhã, fiapos de luz se desprendem da vidraça, tecendo no ar um delicado véu prateado. Véu que aos poucos baixa sobre a face da amada, que se mantém voltada para o lado, estável e indiferente a tudo.

“O que me falta no presente, com sua ausência, ganho em memória. Memória imensa! Memória que por vezes se dilui em sonhos, ou dor. Dor que não se cala, dor que não se acha onde dói — e nem ao menos preenche o vazio que certo se impõe, feito uma vertigem. Acordado, em devaneios ou em sono, que importa? És em mim onipresente! És em mim o amor”; pensa, já entorpecido.

Após um demorado piscar de olhos, a mão lentamente solta o lápis sobre a folha.

Lá fora, os dedos macios da antemanhã acariciam a vidraça, o cansa-ço se dissolve em sono. Enfim o primeiro crepúsculo o alcança...

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3.

Manhã de inverno. No canto da cozinha, ardendo em brasa, o fogão à lenha espalhava pelo ar lufadas de calor. Com os olhos encharcados de felicidade, o menino saboreava seu café, tendo seus gestos guardados pelos olhos zelosos da mãe.

Depois, já de pé e ao lado da mesa, a mãe lhe arrumava a roupinha que, dias antes, ela mesma costurara. Vez por outra, satisfeito, voltava os olhos para o chão e, com charme, estendia o pezinho na direção da luz e reparava no sapatinho que ganhara de véspera. Orgulhosa, a mãe lhe ajeitava os cabelos. Tímido, um leve sorriso lhe brotava na face. Era 29 de junho de 1947, dia de festa na cidade, dia de são Pedro.

Num instante já ia descendo pela rua, tendo por companhia a mais querida das amigas.

A conversa era animada, pois muitas novidades pululavam em suas mentes: desfiles, músicas, presentes. Mas os olhos não se desviavam um instante do caminho acidentado, das pedras soltas que jaziam pelo chão. Afinal, não queria que nada arranhasse seus sapatinhos novos.

De repente, a visão se alargou e eles avistaram a praça, que alegre se abria em variadas cores: bandeirolas, mastros, retretas...

Juntos caminhavam de um lado a outro: sempre na direção de um grupo mais animado, de fardamentos mais coloridos, de ritmos mais empolgantes...

Num momento, o desfile de um grupo chamou a atenção do casal. Hipnotizados, pararam entre a rua e a linha férrea, e as evoluções que o grupo realizava não os deixaram perceber que, atrás, bem próximo, uma velha locomotiva realizava uma perigosa manobra.

Súbito um grito foi ouvido. Pressentindo o perigo, a professora dera na menina um violento puxão, que sem nada entender caiu na calçada. Assustado, o menino deu dois passos para trás, tropeçou no trilho e caiu.

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De repente, o céu foi encoberto por uma nuvem escura de ferros. Aflito, sentiu uma das pernas suportar todo o peso do mundo.

Em casa, sobre a prancha de costura, um frêmito dominou as mãos de sua mãe. Súbito, os pés perderam a cadência natural do balanço. Os olhos, involuntários, tomaram a direção da janela. Por um instante a alma ficou suspensa, e um estranho presságio a alcançou. O corpo já não queria mais ficar parado. De um lado a outro da casa, ela começou a se movimentar.

Debaixo do vagão, feito uma ave assustada, a mãozinha se espalhou no ar à procura de um apoio, encontrou uma haste, gesto que o salvou. Ao seu redor, correria, confusão, gritos... E um impiedoso tirante lhe comprimiu o peito. Paralisada, a mente já não podia compreender o que se passava: só havia sentimentos. Aos poucos os sons mudaram de tons, ficaram mais graves: eram vozes de homens trabalhando. Depois, ouviu o ranger de ferros se atritando. Um alívio e de novo a claridade da manhã: fora puxado para fora do arcabouço. Nas costas, ainda a sensação de pedras o lixando. Na perna acidentada, sentiu um forte arrocho de tecido. Os olhos se voltaram na direção do aperto. E, no branco linho, viu brotar uma assustadora mancha vermelha. Enérgico, um solavanco o colocou no ar: estava nos braços fortes de um homem, que depressa o levava para o carro. Os ouvidos quase não podiam mais decifrar os sons: pareciam todos confundidos. Mas ainda foi capaz de distinguir um ruído de motor. Gritos, empurrões, solavancos... E tudo se apagou.

Quando acordou, viu um homem vestido de branco extraindo figuras de uma cartolina: era o médico que tentava distraí-lo, fazendo esboços de animais. O garoto sentiu úmida a perna acidentada, olhou para bai-xo e percebeu o sapatinho respingado de sangue. “Por favor, doutor, não suje mais meus sapatos. São novos...” “Certamente ele não tem a menor ideia da gravidade do acidente”, refletiu o médico.

Subitamente os olhos do garoto se fecharam: era uma forte picada de agulha. Mais tarde, mergulhado na penumbra do quarto, os olhos se depararam com a protetora face da mãe.

— Sinto muita dor em meu peito... O que aconteceu?

A mão macia e acolhedora deslizou sobre seu peito, acariciando-o.

— Já vai passar meu filho, já vai passar...

No final da madrugada, o sono profundo fez o corpo virar para o lado, forçando o peito contra o duro braço do sofá. Com o tempo, a dor

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o faz acordar, enquanto os primeiros raios da manhã tocam sua face que, tombada, encontra-se bem próxima ao chão. Num instante, per-cebe que dera um salto no tempo.

Com muito esforço, ergue o tronco, olha para o lado e observa a esposa: está na mesma posição que a deixara antes de adormecer.

A manhã se vai, a tarde termina, o segundo crepúsculo principia. Próximo à janela, vê um filete de luz vazar pelas frestas da persiana, iluminando parcialmente a delicada face da esposa, enquanto mais uma imagem o alcança...

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4.

Anos 50...

Tudo ao seu redor soava como da primeira vez: as tardes de domin-go na “Casa do Estudante”, as aulas no conservatório musical, a jovem namorada, o vistoso Ford Mercury serpenteando por entre as serras, as caravanas musicais, o acompanhamento harmonioso do regional, a proximidade do microfone com os lábios...

Ainda sentado no sofá do hospital, os profundos olhos se fecham; e as imagens, nítidas como um girassol, mais uma vez o alcançam...

A luz oblíqua pendendo da janela que encimava a pequena oficina. O reflexo mutante do acetato rodopiando sobre o prato. O ruído contínuo da agulha ferindo a superfície macia do alumínio. Ao lado do amigo, e também cantor, o espanto diante da voz metálica: era a primeira vez que ouvia sua voz gravada, recém-surgida do engenhoso aparelho.

Noutro momento, se vê numa cadeira ao fundo da sala, observando os femininos gestos de seu primeiro amor: os cabelos jogados para o lado, as mãos de porcelana deslizando sobre o teclado, os pés delicados pressionando suavemente os pedais... Em devaneio, quase não podia acreditar que fora capaz de conquistar a belíssima garota. A cena se repetia às quartas e sextas. Juntos chegavam ao conservatório. Mas era ele quem primeiro tomava aula. Depois, pacientemente a esperava. Vez por outra, ela se voltava para trás, seus olhares se entrecruzavam; e, sonhador, mais uma vez observava a sensualidade dos movimentos da menina: os acordes suaves que ela tirava do piano, a entrega absoluta. Impressões que aos poucos foram se combinando e se transformando em delicadas peças de concisão: sínteses que mais tarde povoariam suas canções.

Num instante a memória dá um salto...

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Estava no meio de uma praça, num palanque rodeado por centenas de pessoas. Cidade vizinha, cidade de seus tios, onde antes estivera em férias como um visitante comum. Mas naquele dia foi diferente. Estava se apresentando como artista. Os olhares eram outros: transformaram-se. Apesar de tímido, gostou desses novos olhares. Apaixonou-se pelo mistério que neles havia: olhares que jamais o abandonariam, jamais...

De imediato, soube que algo dentro de si se partiu, e que cada um desses fragmentos, feitos diminutas bússolas, apontavam para um só querer: ser um cantor.

Mas sentiu que não seria por ali que o sucesso viria: nessas pobres caravanas musicais, nessas pequenas cidades do interior, anônimas ao grande público, anônimas e dispersas como as estrelas. Sabia da exten-são do seu talento; sua intuição, sempre tão aguda, apontava noutra direção: queria despertar para o mundo. Ou queria, como um rouxinol ao anoitecer, com seu canto despertar o mundo. Sua alma, imensa, já não cabia mais ali: espaço etéreo. Era preciso partir!

Março de 1956...

Uma réstia de luz vazava pela porta entreaberta, deixando parte da cama semi-iluminada. No ombro, um leve balançar de mão o acordava.

— Já é hora, meu filho, já é hora...

A voz da mãe estava embargada; e seus olhos, úmidos de emoção, vigiavam cada centímetro do rosto do filho. Já lúcido, ele observou o belo rosto pender em sua direção, e logo sentiu os lábios macios lhe tocarem a face. Um estremecimento se seguiu. Num instante, teve o real entendimento daquela frase: “Já é hora...”.

Sim! Teria de partir. Então forte a abraçou. Por um momento quis que o tempo parasse, e dentro daquele abraço desejou para sempre ficar envolvido. Mas a pressão foi aliviada. Os braços se alongaram. Banhados pela tênue luz que vinha da porta, notou o quanto aqueles olhos amendoados eram lindos... imateriais.

— Venha, meu filho, venha...

Trêmulo, o braço da mãe o enlaçou e o colocou sentado na cama.

— Enquanto você se arruma, vou passar o café — disse ela, com a voz embotada de emoção.

À mesa, ele observava a desolada bagagem abandonada ao lado do pai. Um silêncio profundo se interpôs entre eles.

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Após o café, o lento caminhar até o portão.

— Talvez fosse melhor não partir, meu filho...

As lágrimas que dos olhos desciam começaram a molhar seu terno de brim, mas ele se manteve firme: sabia que teria de ser assim. Mas logo a mãe se conformou e deixou que a mão alcançasse o rosto do filho. Depois, longamente, afagou-lhe os cabelos.

Enfim o adeus. Ficou estático. Ela se virou e deu alguns passos para trás; enquanto, com ternura, o pai lhe estendia a mão.

A cidade dormia. Hesitante, reparou naquele caminho tão familiar. Mas agora ele o via imerso numa bruma de melancolia, de incertezas.

Enquanto pai e filho desciam pela rua, um imenso céu, de infinito azul, arqueava-se sobre a cidade silenciosa. Súbito, voltou-se para trás, e a viu diante do portão.

Por um instante, como se fosse uma miragem, ela o viu parado na estação, solitário. Então, mais uma vez, ela lhe acenou.

Ainda sem a lucidez do sol, devagar seguia a manhã. No horizonte, só um abstrato reflexo se fazia presente. Já acomodado no banco do trem, atônito pensava em seu insondável futuro.

Mais tarde, o balanço do trem o fez lembrar-se do colo da mãe, colo que tantas vezes o confortou. No peito, um aperto o torturava. De um instante, os olhos tristes se fecharam; e a imagem, ilusória, tomou-lhe conta da mente, que era toda aceno, despedida.

Enquanto o apito ia ferindo vivamente a antemanhã, aos poucos sua alma foi se desprendendo de seu passado...

De volta à plena maturidade e ao quarto do hospital, ele pressente: “Naquele instante fora cavado em mim um abismo. Um abismo que o tempo ainda não fora capaz de preencher”. Agora, lá fora no corredor, ele não ouve sequer os rumores característicos dos hospitais: vidros se atritando enquanto alguém arrasta um carrinho, o farfalhar dos lençóis sendo jogados nos cestos, sussurros abafados. Tudo está calmo.

Sobre ele o silêncio pesa. A solidão o esmaga. A ausência de notícias o sufoca. Corpo e alma, antes unos, agora se apresentam cindidos pelo distanciamento da esposa...

“Será que ela sonha? O que terá sonhado nesses dias de ausência? Ou o que existe é só um incessante vazio? Queria, nem que fosse por um instante, poder penetrar nesse vazio. E nele encontrar um pouco da

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sua presença”; reflete ele, enquanto as sombras da noite começam a rodeá-lo. De um instante, vem-lhe a mente um poema de Cecília Meireles, só um pequeno trecho:

Os azuis estão cantando

no coração das turquesas:

formam lagos delicados,

campo lírico, horizonte,

sonhando onde quer que estejas...

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