Influencia de aspectos sociais e culturais na educação de crianças indígenas

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Psico-Usf, v. 14, n. 3, p. 365-374, Setembro/Dezembro 2009

Influência de aspectos sociais e culturais na educação de crianças indígenas1

Cultural and social influences in the education of indigenous children

Sonia Grubits2 – Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande-MS, Brasil

Heloisa Bruna Grubits Freire3 – Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande-MS, Brasil

José Angel Vera Noriega4 – Centro de Investigação em Alimentação e Desenvolvimento AC., México

Resumo

Objetivamos verificar como características socioculturais e familiares influenciam na adaptação escolar decrianças guarani-kaiowá dos municípios Dourados e Caarapó, kadiwéu, da aldeia Alves de Barros na Bodoquenae terena de Córrego do Meio, município de Sidrolândia, em Mato Grosso do Sul, Brasil. Foram realizadasentrevistas e observações de crianças e pais dos referidos grupos. Observamos o diálogo e respeito mútuo narelação entre pais e filhos, evidenciado no tom sereno e suave com o qual as mães dirigem-se aos filhos. Acuriosidade infantil não é reprimida, permitindo a exploração do ambiente, a participação em todas as atividadesfamiliares, sem restrição, punição ou castigo. Porém no grupo terena, as mães conversam com as crianças, mas nasegunda vez que elas desobedecem, levam palmadas ou “varinhadas” com vara verde, o que aponta para umexemplo de como a cultura vem se transformando pelo fácil acesso e contato com a sociedade nacional.

Palavras-chave: guarani-kaiowá; kadiwéu; terena, relações familiares, educação.

Abstract

The aim of this research was to verify how social-cultural and family characteristics influence in the adaptationof Indian children at school. The observed ethnic groups were the Guarani-Kaiowá (Caarapó and Douradosmunicipalities), the Kadiwéu (Alves de Barros) and Terena (Córrego do Meio), MS, Brazil. Interviews andobservations were performed in those children and their parents. It was observed the dialog and the mutualrespect in the relations, evidenced in a serene tone with which mothers addressed to their children. Children’scuriosity is not repressed, as well as the participation in all of the family’s activities without restriction or punishment.However, in the Terena’s group, mothers at first talk to their children, and at second if they disobey again, theyget slaps or get bitten by sticks. That behavior points out to an example of how culture is changing by the easyaccess with the national society.

Keywords: guarani-kaiowá; kadiwéu; terena; family life; education

1 Apoio do CNPq, Fundect e FUNASA.2 Doutora com status de pós-doutora em Semiótica por Paris 8 – Sorbonne, França, pós doutora e doutora em Saúde Mental pelaFaculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, Mestrado em Psicologia Social pela PUCSP, Psicóloga pela PUCRJ. Formada emComunicações pela UFRJ, professora, pesquisadora e coordenadora do Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade CatólicaDom Bosco, UCDB, MS, Brasil e bolsista de produtividade pesquisa do CNPq. E-mail: [email protected]. Av. Mato Grosso, n. 759,Centro, Campo Grande/MS, Brasil, Cep 79002 – 231, Tel./Fax: (55) (67) 3382 36 313 Doutora em Saúde Mental pela Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, mestre em Psicologia, psicóloga pela UCDB, professora,pesquisadora do Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco, MS, Brasil. E-mail: [email protected]. Mato Grosso, n. 759, Centro, Campo Grande/MS, Brasil, Cep 79002 – 231, Tel./Fax: (55) (67) 3382 36 314 Professor pesquisador na área de Desenvolvimento Regional, Centro de Investigação em Alimentação e Desenvolvimento A.C.,México. E-mail: [email protected]. Apartado Postal 1735, Carretera a la Victoria km. 0.6, Hermosillo, Sonora, México. C.P.83000,Tel.: (662) 289 – 24 – 00 Ext. 317, Fax: (662) 280 – 00 – 55.

INTRODUÇÃO

Nossa experiência em pesquisas com populaçõesindígenas, desde o final da década de 80 buscando oentendimento dos processos de construção da identi-dade em diferentes grupos de Mato Grosso e MatoGrosso do Sul propiciou a emergência de diversos te-mas importantes na área de educação, saúde, políticaspúblicas e ética, entre outros. Em trabalhos de campo

com os grupos guarani dos municípios de Caarapó eDourados e kadiwéu da Aldeia Alves de Barros, naregião da Bodoquena, notamos que as crianças eramtranquilas, alegres, disciplinadas e acolhiam bem os vi-sitantes. Relatos de educadores, outros pesquisadorese profissionais que trabalham e estudam grupos indí-genas também confirmam tais observações.

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Entendemos que esta característica comum àscomunidades indígenas de Mato Grosso e Mato Gros-so do Sul são consequência de suas normas, crenças,bem como da representação social da infância, tendocomo recorte as relações e estruturas familiares, o es-tilo de educação e a sua repercussão na formação dacriança. Posteriormente, em trabalhos de campo se-melhantes em outro projeto com os terena de Córregodo Meio, município de Sidrolândia, notamos algu-mas alterações no sistema educacional, acompanhan-do uma tendência maior e mais acelerada de mudan-ças nas tradições e cultura.

Por outro lado, “na atualidade, a indisciplina es-colar é um dos temas que mais afligem professores,técnicos e pais na sociedade nacional, tanto no que serefere à clareza quanto ao consenso sobre indisciplina,quanto ao porquê das crianças não aceitarem regras elimites e, de um modo geral, terem um comporta-mento grupal de muita inquietação, denominadousualmente de “bagunça” (Lino, 2006 p.16).

A questão da indisciplina em sala de aula de es-colas de nossa sociedade é um dos temas que atual-mente mais mobilizam professores, técnicos e pais,desde a educação infantil ao ensino médio, fato quenão é evidenciado em escolas indígenas. Segundo Rego(1996), entende-se por disciplina, a ordem, o respei-to, a obediência às leis, porém, supõe-se que a criançajá tenha adquirido anteriormente o conhecimento devalores éticos como: entendimento de regras, partilhade responsabilidades, cooperação, reciprocidade, so-lidariedade e ainda o reconhecimento dos direitos dooutro, sem o qual fica impossível a convivência emgrupo. Esses valores têm origem na família, ou seja,na socialização primária.

Ferreira (2007) informa que o desenvolvimentoindividual está relacionado a fatores genético-indivi-duais, experiências individuais precoces e, principal-mente, à relação de comportamentos inadaptados àscaracterísticas das crianças, às práticas parentais, à his-tória de interação familiar e à situação escolar. Co-menta sobre a importância da complementação es-cola e família para o desenvolvimento infantil:

A escola completa o quadro das influênciasmais significativas sobre o comportamen-to infantil e contribui de diversos modospara a formação do indivíduo por meiode desenvolvimento de comportamentos,habilidades e valores, etc. Os dois princi-pais ambientes na vida da criança (o do-méstico e o escolar) concorrem para que oresultado final seja percebido pelos pais eeducadores como comportamentoadaptativo ou desadaptativo, com o “bom”comportamento ou “mau” comportamen-to (Ferreira, 2007 p. 16).

Assim, estudar a escola a partir da análise de seucotidiano é compreender a ação de cada sujeito quenela atua, entendendo essa realidade articulada à rea-lidade da sociedade em que esse sujeito vive. Preten-demos, portanto, refletir tal situação comembasamento em trabalhos de autores clássicos e es-tudos mais atuais (Berger & Luckmann, 1985;Cabrera, 2006; Grubits & Darrault-Harris, 2003; Lino,2006; Mangolim, 1999;Viveiros de Castro, 1986;Vygotsky, 1987; entre outros).

Para localizarmos nosso referencial quanto àadaptação escolar e sua relação com a educação ecultura familiar, apresentaremos uma breve revisãobibliográfica sobre educação, seguida de aspectos re-levantes das culturas guarani/kaiowá, kadiwéu eterena. Finalmente, apresentaremos resultados de aná-lises de entrevistas e observações realizadas durante otrabalho de campo.

A IMPORTÂNCIA DA FAMÍLIA NA

SOCIALIZAÇÃO INFANTIL

Tratar sobre adaptação escolar e educação im-plica uma reflexão sobre a família. A família, primei-ro grupo social do qual a criança faz parte, exerce umpapel fundamental na sociedade na qual está inserida,tendo a função da criação dos filhos. Sua função so-cial é transmitir valores culturais e ideológicos, as idéi-as relevantes em determinado momento histórico,educando as novas gerações segundo padrões domi-nantes e hegemônicos de valores e de conduta.

É responsável pela sobrevivência física e psí-quica das crianças, constituindo-se no primeiro gru-po de mediação do indivíduo. É na família que ocor-rem os primeiros aprendizados dos hábitos e costu-mes da cultura, lugar onde se concretiza, em primei-ra instância, o exercício dos direitos da criança e doadolescente, o direito aos cuidados essenciais paraseu crescimento e desenvolvimento físico, psíquicoe social.

Segundo Hutz (2005), quando os pais oferecemaos filhos um ambiente incentivador e protetor, re-presentado por afeto e atenção, acrescidos de exigên-cias e restrições, constituem a base necessária para asocialização. A família é, então, a primeira instituiçãona qual a criança será inserida após seu nascimento e élá que receberá todo o suporte para fazer parte dasociedade.

Além da função biológica e de organização dabase emocional, a família também tem uma funçãoideológica. Segundo Reis (1984 p. 104):

Para entendermos mais profundamentecomo a família cumpre suas funções de agen-te de reprodução ideológica é necessário

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voltarmos a atenção para o seu funciona-mento interno. Nesta perspectiva, podemosobservar o que mais a diferencia de outrosgrupos: ela é o lócus da estruturação da vidapsíquica. É a maneira peculiar com que afamília organiza a vida emocional de seusmembros que lhe permite transformar aideologia dominante em uma visão demundo, em um código de condutas e devalores que serão assumidos mais tardepelos indivíduos.

A autora cita conceitos desenvolvidos por MarkPôster (1979), pois para ele a família é o lugar onde seforma a estrutura psíquica e onde a experiência secaracteriza, em primeiro lugar, por padrões emocio-nais. A função de socialização está implícita nesta de-finição, mas a família não está sendo conceitualizadaprimordialmente como uma instituição investida nafunção de socialização. Em vez disso, é considerada alocalização social onde a estrutura psíquica é proemi-nente de um modo decisivo.

Assim, de acordo com os parâmetros da psico-logia social, a instituição denominada família é res-ponsável pela socialização primária, a primeira socia-lização que o individuo experimenta na infância e emvirtude da qual se torna membro da sociedade.

Ainda segundo Reis (1984 p. 104):

É na família que os indivíduos são educa-dos para que venham a continuar biológi-ca e socialmente a estrutura familiar. Aorealizar seu projeto de reprodução social,a família participa do mesmo projeto glo-bal, referente à sociedade na qual estáinserida. É por isso que ela também ensi-na a seus membros como se comportarfora das relações familiares em toda e qual-quer situação. A família é, pois, a forma-dora do cidadão.

Para Berger e Luckmann (1985), a sociedade,enquanto formadora de cidadãos, deve ser entendi-da como uma realidade tanto objetiva quanto subje-tiva, ou seja, um processo dialético, em que ao mes-mo tempo em que o homem é produto desse meio étambém seu produtor, e tudo isso se processa emtrês momentos distintos, a exteriorização, a objetivaçãoe a interiorização. Esses três momentos não devemser pensados isoladamente, mas em decorrência deum processo simultâneo, cujo ponto inicial é ainteriorização, ou seja, a apreensão e interpretação dosacontecimentos para um indivíduo em uma dada so-ciedade.

A apreensão de interpretação referida por Bergere Luckmann (1985) começa com o fato do indivíduo“assumir” o mundo no qual os outros já vivem, o

que constitui um processo original que irá variar depessoa para pessoa, e este mundo, uma vez reconhe-cido, poderá ser modificado à maneira de cada um.Segundo os autores, a socialização primária, nos pri-meiros anos de vida em contato com a própria famí-lia, ocorre em circunstâncias carregadas de afeto. Acriança identifica-se com os outros pela multiplicidadede modos emocionais, porém a interiorização só ocor-rerá se for precedida pela identificação é por meiodesta que a criança torna-se capaz de identificar a simesma, absorvendo os papéis e as atitudes dos ou-tros, tornando-os seus.

Já na socialização secundária, o indivíduo esta-belece suas relações, em outras instituições, como, porexemplo, a escola, a partir de suas idiossincrasias, de-pendendo dos conteúdos específicos já interiorizadosna socialização primária. “Na socialização primária,por conseguinte, é construído o primeiro mundo doindivíduo” (Berger & Luckmann, 1985 p. 182).

Diante dessas premissas, considera-se que a edu-cação recebida na família cumpre um papel primor-dial na constituição do indivíduo cultural. Tem-se oconhecimento de que a mãe é muito importante paraa criança: é o primeiro olhar, o primeiro contato, équem cuida, ampara, alimenta. A família, de um modogeral, também desempenha esse papel, inicialmentepor meio do pai, e depois dos outros membros, como:irmãos, tios, avós etc. Mas é a mãe ou quem desem-penha esse papel, quem inicialmente acolhe a criança,cuida dela e permite a entrada do “outro” nessa rela-ção. A socialização primária termina quando forinteriorizado o “outro generalizado”, possibilitandoao indivíduo tornar-se membro efetivo da sociedadee possuir subjetivamente uma personalidade e ummundo. Assim, inicia-se a socialização secundária.

Segundo Reis (1984), a família tem sido foco deatenção de vários estudiosos, e apesar de todas ascríticas em relação a esta instituição, não pode ser ne-gada sua importância no nível das relações sociais,pois é na família, entre indivíduo e a sociedade, queaprendemos a perceber o mundo que nos cerca. Cabeà família, como vimos, o processo de socializaçãoprimária, o qual já vimos, e que carregamos vida afo-ra, e particularmente, a formação de nossa identida-de social.

Sua formação na consciência significa que o indi-víduo identifica-se agora não somente com os outrosconcretos, mas com uma generalidade de outros, istoé, com uma sociedade. “Somente em virtude destaidentificação de generalidade sua identificação consi-go mesmo alcança estabilidade e continuidade” (Mead,1959 apud Berger & Luckmann, 1985 p. 178). Noprocesso de socialização a criança tem a possibilida-de de adquirir conhecimento dos valores, normas,

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costumes pessoais, instituições, símbolos sociais, comotambém a aprendizagem da linguagem e a aquisiçãode condutas sociais desejadas ou não (López, 1995).

Todas essas considerações denotam que os as-pectos abordados nesta pesquisa, em relação à socia-lização primária da criança, condizem com ainteriorização de alguns aspectos educacionais na fa-mília, que posteriormente deverão ser generalizadospor esta mesma criança em ambiente escolar, ou seja,na socialização secundária. A socialização secundáriaé a interiorização de submundos institucionais ou combase nas instituições. É a aquisição do conhecimentode funções específicas observadas direta ou indireta-mente na divisão do trabalho, ou melhor, é a sociali-zação encontrada no contato com instituições forado ambiente familiar. Esses submundos são realida-des caracterizadas por componentes normativos,afetivos e cognoscitivos, sendo este o momento emque se concretiza a aprendizagem. Portanto, a sociali-zação secundária é realizada também na escola, po-dendo até ser denominada como o segundo gruposocial no qual a criança é inserida.

De acordo com Vygotsky (1987), autor que abor-da a formação do psiquismo humano em seu con-texto histórico-cultural, as características de cada indi-víduo são formadas a partir de inúmeras e constantesinterações do indivíduo com o meio, compreendidocomo contexto físico e social, que inclui as dimensõesinterpessoal e cultural. Logo, desde o nascimento edurante toda a vida, este mesmo indivíduo estabelecetrocas recíprocas com o meio, já que ao mesmo tem-po em que internaliza as formas culturais, as transfor-ma e intervém no universo que o cerca.

Para o autor acima citado, de tradiçãosociointeracionista, os processos psicológicos origi-nam-se nas relações interpessoais e se desenvolvemao longo do processo de internalização de formasculturais de comportamento. Ele chama atenção parao importante papel mediador exercido por outraspessoas nos processos de formação dos conhecimen-tos, habilidades de raciocínio e procedimentoscomportamentais de cada indivíduo.

Vygotsky (1987) explica que é por intermédiodessas mediações, encontradas inicialmente no meiofamiliar, que o humano, até então imaturo, apropria-se de forma ativa dos modos de funcionamento psi-cológico, do comportamento e da cultura, ou me-lhor, do patrimônio da história da humanidade e deseu grupo social. Dessa maneira, ao internalizar asexperiências fornecidas pela cultura familiar e social, acriança reconstrói individualmente os modos de açãorealizados externamente e aprende a organizar ospróprios processos mentais, a controlar e dirigir seucomportamento e a agir no meio.

Portanto, na socialização secundária não ocorre-rão identificações como na socialização primária, masfarão parte da vida do indivíduo como os muitosgrupos a que este indivíduo pertence, como: a igreja,a escola, o trabalho, a comunidade, entre outros, edessa forma, o processo de socialização é ininterrupto,ocorrendo consequentemente à formação da identi-dade do indivíduo.

Nas sociedades modernas a escola acolhe a crian-ça, que fica privada do contato direto com o adulto(fora da escola) durante parte do dia, geralmente du-rante manhã e/ou tarde e algumas vezes em regimede internato ou semi-internato, devido a diferentesfatores como atividades profissionais dos pais. Nãoencontramos tal situação nas sociedades indígenas es-tudadas, pois mesmo com o surgimento das escolasnas aldeias, notamos maior flexibilidade nos desloca-mentos e a criança tem liberdade para permanecerjunto aos adultos, ouvindo as conversas em famíliaou mesmo nas reuniões promovidas pelos grupos,como conselho da comunidade, grupo de mulheres,entre outros. Cabe ressaltar, que nos trabalhos comos terena estamos começando a perceber algumasmudanças neste estilo de educação.

Meliá (1979) cita que uma dupla atitude aparen-temente contraditória chama a atenção do não-índioao observar uma sociedade indígena: as crianças go-zam de uma grande liberdade de ação, “fazendo oque querem”, sem que os adultos se imponham comadmoestações ou proibições; nota-se que essas crian-ças não dão motivos de aborrecimento aos pais ou aoutros membros da comunidade. O adulto conside-ra a criança na sociedade indígena com muito respei-to, carinho e seriedade. O carinho que os pais têmcom as crianças, o modo de falar e de persuadi-la éextremamente respeitoso.

OS GUARANI, KADIWÉU E TERENA

Um entendimento das reações e das relações dacriança indígena nas escolas das aldeias demanda umconhecimento das principais características das etniasem questão e principalmente a percepção das diferen-ças na organização social e cultural existente entre elas.Cabe ressaltar que, apesar das diferenças significativas,as observações sobre a criança na escola e contextofamiliar na educação são muito semelhantes.

Sobre os guarani, a extensão das diferenças entreas nações indígenas brasileiras é expressa por Vivei-ros de Castro (1986 p. 29) quando afirma: “[...] associedades gê e tupi guarani1 parecem estar em oposi-ção polar, ao longo de um continuum virtual das

1 Tupi é um dos ramos da sociedade Guarani com estrutura sociale língua semelhantes aos demais.

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diversas formações socioculturais dos povos sul-ame-ricanos, para as mais variáveis que decidi note-se bemprivilegiar em meu trabalho”. Os tupi-guarani, paraViveiros de Castro (1986), definiam-se num “vir-a-ser” num tornar-se o outro, de forma diversa dapessoa gê-bororo, que subjuga a diferença à identi-dade. Ainda segundo o autor, a dinâmica subjacenteao movimento em direção ao outro pode seridentificada na solução antropofágica dos tupi-guarani. A identidade, segundo o autor, seria“antidialética”. Esses povos apresentam uma inver-são da representação tradicional da sociedade pri-mitiva, feita pela antropologia.

A cosmologia do grupo passa por conceitosbásicos como deus, ser humano e inimigo. O que estáfora da sociedade é que a ordena e orienta. Seu mo-delo cosmológico configura-se a partir do sistema dealma, nome, morte, canibalismo e canto. Além disso,apresenta uma enorme flexibilidade sociológica,indiferenciação interna associada a um complexo derelações individualizadas com o mundo espiritual. Estaposição estratégica para a construção da pessoa geraaquilo que foi chamado por Viveiros de Castro (1986)de individualismo (Grubits & Darrault-Harris, 2001).

Sua concepção da alma humana é a chave do seusistema religioso e comanda a vida social desta socie-dade. A predominância da religião e da relação coma morte, subjacente na noção de alma ou na teoria dapessoa, constituem um ponto de apoio essencial paraa compreensão de sua organização social. Assim, apessoa ocupa um espaço virtual entre a natureza esobrenatureza, ou seja, um elemento paradoxal queconectaria e separaria, circulando como espaço vazioentre domínios e formas do extrassocial. “É nestesentido que a Pessoa tupi-guarani é um entre (um en-tre dois) e não um ente” (Viveiros de Castro, 1986 p.104). Outro aspecto relevante para o entendimentode sua peculiar cultura e organização social é que, ape-sar da extensa amplitude do seu território, no passa-do, sempre existiu uma significativa homogeneidadelinguística dos seus dialetos e de sua cosmologia.

Segundo estudos e observações de Schaden(1974), a criança guarani é notavelmente independen-te. O guarani não acredita na conveniência e eficáciade métodos educativos, a não ser a título excepcionalou por via mágica. As crianças guarani têm total li-berdade de convivência com os adultos. Tal fato tal-vez as torne mais espontâneas e francas quando emcontato com estranhos. Essa influência pode ser ob-servada também na ausência de brinquedos, pois asbrincadeiras se concentram na imitação de atividadesdos adultos.

O guarani respeita a personalidade e a vonta-de individual infantil, não ocorrendo a repressão

no processo educativo. Assim, na infância, oGuarani segundo Schaden (1974), não aprende adominar-se e a contrariar as suas inclinações e oseu temperamento.

Para os Guarani, a alma já nasce com um poten-cial e qualidades e eles não se preocupam, por essarazão, com o desenvolvimento da natureza psíquica.Schaden (1974 p.62) relata que os nandéva, “não en-sinam as rezas às crianças, porque, sendo individuais,são mandadas diretamente pelas divindades. Desde amais tenra infância, cada nandéva participa das ceri-mônias da família e de toda a comunidade, apren-dendo, assim, sem esforço, tudo o que faz parte dopatrimônio grupal; ao mesmo tempo, fica aguardan-do que lhe seja enviada a sua própria reza, que rece-berá em sonho. O mesmo se dá entre os mbua, ondecada qual conhece, à força de ouvi-las sempre, as re-zas de todos os companheiros”.

A base da organização social dos guarani é a fa-mília-grande; a criança que cresce nessa família apren-de a fixar ou focalizar suas emoções ou expectativasde recompensa e punição em poucas ou determina-das pessoas, pois muitos adultos as punem ou re-compensam.

Meliá (1979) informa que o sentido da educaçãoguarani-kaiowá, é sobretudo moral e espiritual, e,portanto, deve conservar o ‘modo de ser guarani’.Sendo assim, a educação está orientada a alcançar aperfeição com a reza, a não-violência e visão “teoló-gica” do mundo, o que para o Guarani só pode seralcançado por meio da comunidade e da inspiração.

Os kadiwéu, um grupo menor, ocupam, há maisde dois séculos, uma área situada entre a serra daBodoquena a leste, Paraguai a sudoeste e, ao sul, opantanal mato-grossense, na parte oeste do estado deMato Grosso do Sul. Ressalte-se que a referida área éde difícil acesso. A língua kadiwéu é a única represen-tante da família guaicuru a leste do rio Paraguai. Aslínguas da família guaicuru são faladas por povos ti-picamente chaquenhos, habitantes do Chaco paraguaioe argentino. As afinidades entre os vários dialetos dessafamília são muito próximas, já sendo observadas pe-los jesuítas no século XVII.

A questão das relações intertribais sempre foi sig-nificativa para o entendimento do funcionamento edinamismo da sociedade Kadiwéu, sendo o que jus-tifica e estabelece a pauta dessas relações. O mito decriação e diferenciação da humanidade evidencia ocaráter das relações intertribais assimétricas econtextualiza o surgimento dos ekalai, os não-índios,e define o comportamento dos kadiwéu, enquantoguerreiros. Siqueira Jr. (1987) relata que versões e va-riantes mais recentes já acrescentam o tema territóriocomo atributo diferenciador.

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A literatura histórica existente sobre esse grupodestaca sua estrutura social, baseada numa organiza-ção estratificada em castas: os nobres ou senhores, osguerreiros e cativos. Esses últimos eram capturadosdurante as guerras intertribais e integrados na socie-dade guaicuru, recebendo determinadas atribuições.Atualmente, não existem mais as guerras intertribais ea captura de cativos, mas termos específicos são em-pregados para indicar relações de consanguinidade eafinidade, relações socialmente determinadas, comoas que se estabelecem entre descendentes de senhorese cativos, e, entre padrinhos e afilhados, adotados dapopulação regional.

Os kadiwéu praticam ainda rituais de iniciaçãoe os relacionados à morte e ao luto, atividades ritu-ais realizadas nas festas do Bate-Pau (também reali-zadas pelos terena, um pouco modificadas) e doBobo, que, por sua vez, ocorrem principalmente nodia do índio e ocasionalmente em outras datas festi-vas. A Festa da Moça constitui-se no ritual de inicia-ção feminina, realizado quando a adolescentekadiwéu tem sua primeira menstruação. Apesar de aatividade xamanística ter perdido muito de sua im-portância na vida desse grupo, o reduzido númerode nidjienigi (xamãs), também chamados padres,existentes atualmente na reserva indígena kadiwéuconserva certo prestígio. Uma das principais ativi-dades, a de curador, sofre a concorrência direta daassistência médica prestada pelos missionários evan-gélicos ou da Fundação Nacional de SaúdeFUNASA, recorrendo os kadiwéu frequentementeàs duas práticas (Grubits & Darrault-Harris, 2003).

A economia kadiwéu se organiza hoje em dia,principalmente, em torno da obtenção dos recursosprovenientes de arrendamento dos pastos, atividadesagrícolas, e criação de bovinos e equinos e, em me-nor escala, de caça, pesca e coleta, além da realizaçãode empreitadas e da venda da força de trabalho nasfazendas vizinhas à reserva e junto aos próprios ar-rendatários. Todas essas tarefas são basicamente mas-culinas, excetuando-se a coleta. As mulheres são asprincipais produtoras de artesanato para venda, ge-rando recursos razoáveis para economia familiar.Nossos estudos indicaram duas questões importan-tes para o grupo kadiwéu: as questões de gênero, prin-cipalmente nos aspectos referentes à divisão de tra-balho e, a outra, a importância da arte, em especial,os desenhos, os traçados abstratos, indicando a mar-ca de cada grupo familiar, com a preservação dastécnicas originais e naturais no preparo e elaboraçãodas peças de cerâmica.

Os terena, juntamente com o grupo guarani/kaiowá, constituem a maior nação indígena em MatoGrosso do Sul, com cerca de vinte e cinco mil pessoas,

de um total de cerca de cinquenta mil que habitam oestado. Além desses grupos, encontramos tambémos kadiwéu, acima citados, ofaié e guató, kinikinawa,porém com populações bem menores.

Os terena pertencem ao povo aruak e vierampelo alto Rio Negro, sendo as hipóteses levantadassobre sua origem de que partiram das planícies co-lombianas e venezuelanas. Recentemente, surgiu a hi-pótese da origem no Equador. Da mesma forma queoutros grupos, os terena entraram no território sul-mato-grossense a partir do século XVIII. Estão atual-mente assentados em doze reservas, num total de cercade dezenove mil e dezessete hectares de terra, locali-zados principalmente na Bacia do Rio Miranda. Exis-te também um contingente vivendo em fazendas e nacidade, denominados desaldeados, e numa aldeia ur-bana, em Campo Grande, atualmente conhecida comoConjunto Marçal de Souza (Cabrera, 2006).

Os terena, sobretudo aqueles residentes nas al-deias mais “tradicionais”, como Cachoeirinha e Ba-nanal, apesar do contato regular com a sociedadenacional, utilizam os poderes dos seus “porangueiros”,ou curadores, que são os xamãs, denominados pelosterena: koixomuneti. Tais curandeiros são responsáveispela cura de doenças e possuem o poder de desco-brir feitiço que terceiros podem ter colocado no do-ente, causando sua morte (Ladeira & Azanha, 2004).

Ladeira e Lazanha (2004) relatam o mito de ori-gem do povo terena, sobre um herói civilizador du-plo que tem uma parte “gêmea” que age como umanti-herói, denominado Yurikoyuvakái que tirou-os dedebaixo da terra e ensinou-lhes o uso do fogo e dasferramentas agrícolas. O mito de origem é passadode geração a geração em algumas comunidade, emgeral pelos mais velhos.

Essa duplicidade fundamenta o comportamen-to dos membros das metades xumonó, os gozadores,“bravos” e sukirikionó, sérios e mansos que ainda sãopresentes em muitos aspectos da vida social e ceri-monial terena. Segundo Mangolim (1999), as religi-ões chamadas “cristãs” são aceitas quando afirmamos princípios básicos da cultura terena, mas tambémamedrontam com as idéias de que fora do cristianis-mo não há salvação.

Um elemento importante para desenvolvermosuma proposta de pesquisa na área de psicologia socialé a identificação dos terena como um povo ligado àagricultura, de índole pacífica, muitas vezes submeti-dos por outras nações e aceitando com facilidade asregras do dominador. Esse fato é apontado comocausa da eventual descaracterização do grupo, apesarde indicações de que os Terena ainda são capazes demanter elementos culturais profundos que lhes dãocoesão (Mangolim, 1999). No final da década de 90,

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este quadro começa a se transformar, com os movi-mentos políticos envolvendo a retomada de terrasque pertenciam no passado aos terena, além de ou-tras reivindicações na área de educação e saúde.

Sempre demonstraram disposição para conta-tos pacíficos com a população da região, participan-do da comercialização de produtos agrícolas, princi-palmente milho, mandioca, batata-doce, abóbora etc.Também no artesanato trabalham com a cerâmica,basicamente atividade feminina, ficando para os ho-mens a cestaria, caça e pesca. Tiveram como fato sig-nificativo na sua história, a atuação na guerra doParaguai, a partir do que surgiu a dependência dotrabalho na região, como mão-de-obra dos fazen-deiros. Participaram da construção da linha telegráfi-ca no extremo oeste do país, comandada pelo Mal.Rondon, que demarcou suas reservas para reagrupá-los. Além disso, muitos índios terena trabalharam naconstrução da estrada de ferro Noroeste do Brasil.Atualmente, observou-se que sua aproximação comos moradores das regiões onde estão assentados écada vez maior, buscando trabalho na comunidade(Mangolim, 1999).

OBJETIVOS E PROCEDIMENTOS

Nos trabalhos de campo com as três etnias bus-camos identificar quais os aspectos culturais relacio-nados com as atividades infantis, normas e crenças,contidos nos processos de socialização primário esecundário. Para tanto, caracterizamos a representa-ção social da infância, reunimos subsídios e informa-ções relevantes, objetivando contribuir para discus-sões e reflexões sobre o ajustamento da criança indí-gena e não-indígena ao ambiente escolar.

Mediante o material colhido, fizemos uma análi-se qualitativa de relatos e falas agrupados por temasselecionados, visando entender e interpretar a signifi-cação dos fenômenos em foco, assim como deter-minar por meio dos significados como se dá o pro-cesso de formação da personalidade e da educaçãodas crianças indígenas guarani-kaiowá, kadiwéu eterena e suas especificidades culturais, reveladas noposterior comportamento em ambiente escolar. Ostemas para análise foram selecionados visando con-templar os objetivos propostos, e para a interpreta-ção dos dados foram utilizados preceitos de com-preensão da psicologia social, de estudos sobre estaspopulações indígenas, associando a isso discussõessobre a cultura local.

AS ANÁLISES

As observações, entrevistas e conversas infor-mais registradas nos trabalhos de campo durantes

as pesquisas com os três grupos em questão aponta-ram para o diálogo como a principal forma de edu-car uma criança. A conversa, o uso de conselhos e anão-punição física foram observados na educaçãoindígena, confirmando dados da literatura. Percebe-mos, porém que os terena tendem, em comparaçãoaos guarani/kaiowá e kadiwéu, a algumas formas decontrole que não correspondem aos padrões indíge-nas, de acordo com os autores citados e informaçõesde pesquisadores e técnicos que mantêm contatos fre-quentes com referidas etnias.

Podemos ilustrar tais situações com falas e de-poimentos de mães e pais que participaram das pes-quisas e nossas observações. Em visitas à reservaguarani/kaiowá, na Escola Municipal Indígena doAgustinho, em Dourados, constatamos como ascrianças tinham bem internalizadas as normas e re-gras de convivência. Em nenhum momento mostra-ram-se apáticas aos jogos e brincadeiras; ao contrá-rio, riam, faziam gracejos, brincavam umas com asoutras, porém a um pedido de silêncio do professor,logo obedeciam (Lino, 2006).

Tal fato reflete como a família organiza a vidaemocional de seus membros, o que lhes permite trans-formar a ideologia dominante em uma visão de mun-do, em um código de condutas e de valores que se-rão assumidos mais tarde pelos indivíduos, como foianalisado por Reis (1984) tendo, portanto, comoconseqüência, o comportamento adaptado das crian-ças indígenas em sala de aula.

Assim também, de acordo com Meliá (1979) queidentifica uma dupla atitude aparentemente contradi-tória para os não-índios ao observar um grupo indí-gena, pois segundo ele as crianças gozam de uma gran-de liberdade de ação sem que os adultos se impo-nham com repreensões ou proibições. Os pais e ou-tros membros da comunidade reagem aos compor-tamentos infantis, que os não-índios denominam tra-vessuras ou erros e falhas passíveis de correção e pu-nição, entendendo que são características normais epróprias do desenvolvimento infantil. Dessa manei-ra, as crianças não dão motivos de aborrecimentoaos pais ou a outros membros da comunidade.

Para ilustrar tais conclusões temos informaçõesrecorrentes de pais e mães guarani-kaiowá, como nocaso dos fragmentos abaixo relacionados.2

Eu aconselho, né? Aconselho primeiro para depoisperguntar. Tem que aconselhar para depois per-guntar... já foi feito mesmo né? Você pergunta e elejá conta... o caminho é para o dia de amanhã; o quejá passou, já passou por que ele vai crescer, e é assim

2 Integrante do grupo de pesquisa com crianças Guarani/Kaiowá,Lino (2006: 82).

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que nós carregamos a família, casado também étudo assim, aconselhar, perguntar para depois fa-lar qual é o caminho certo... tem dois caminhos paraa gente seguir desde criança, o bem e o mal, entãonós já falamos isso para ele, depois de sete anos ele jáescuta a voz do pai e da mãe. (FE-1, pai)

Para educar? Eu acho que é... Para educar não dápara bater. É só conversar mesmo, conversar mui-to. Para educar mesmo as crianças. Para bater, aímachuca e sobe na cabeça e é pior para as criançase não adianta, por isso tem que só conversar e pôr acriança no caminho [...]. (FE-3)

Oh! isso aí tem que ser com a palavra... que nãoprejudica. (FE-1)

Tem uma diferença, os brancos têm a cabeça queestuda, mas nas idéias são fracos, o índio não temestudo, mas nas idéias tem mais atenção, aconselhaa família, é por aí, só isso que eu sei. (FE-1, pai)

Tais afirmações podem ser relacionadas ao “modode ser guarani”. O sentido da educação é moral e espi-ritual, orientada a alcançar a perfeição por meio da reza,da não violência e da visão “teológica” do mundo, oque para o guarani é alcançado por meio da comuni-dade e da inspiração, segundo Meliá (1979).

Indicam também a “flexibilidade sociológica,indiferenciação interna associada a um complexo derelações individualizadas com o mundo espiritual” eindividualismo, segundo Viveiros de Castro (1986).Lembramos que o autor pontua a predominância dareligião e da relação com a morte, subjacente na no-ção de alma ou na teoria da pessoa, que constitui umponto de apoio essencial para a compreensão de suaorganização social.

Schaden (1974), analisando a educação infantilguarani, relata que o adulto respeita a personalidade ea vontade individual da criança, que não aprende adominar-se e a contrariar as suas inclinações e o seutemperamento, não ocorrendo, portanto, a repressãono processo educativo.

Os fragmentos seguintes são ilustrações muitosignificativas da educação familiar da culturaguarani/kaiowá, ainda de acordo com os autoresacima citados:

Criança é, é para ficar no lugar do pai, cresce,não sabe o dia, o pai é chamado... o pai sobe e acriança fica e o conselho é levado para frente, e acriança fica relembrando o que pai falava para ela[...]. (FE-1)

Eu acho que é a família que ensina as crianças,acho que criança nasce boazinha mesmo né, depoisfica pegando o costume para ficar assim, teimosa,onde a família põe no caminho, né! (FE-3)

As crianças brincam de imitar os adultos e seubrinquedo é, de acordo com o sexo, o instrumento detrabalho do pai ou da mãe, bem como seus compor-tamentos, o que permite aos pais observar, aconselhare “pôr no caminho”. Estas cenas são comuns a qual-quer visitante em uma reserva indígena e inclusive nareserva indígena de Dourados, conforme fragmentode entrevista que segue:

Eles brincando assim só, nem na bola, nem nada,só brincando assim com outro. (FE-2)

Quanto ao grupo kadiwéu da aldeia Alves deBarros, também observamos muito acolhimento fa-miliar, com parentes ou os pais junto às crianças, alémdo hábito da menina permanecer com a mãeceramista, brincando e assim adquirindo conhecimen-tos sobre a tarefa materna. Os meninos acompanhamos pais no trabalho com o gado ou na caça e pesca.Notamos que uma característica muito importantenessa população é o respeito com que ocorre esseprocesso, pois os pais indígenas não gritam com acriança, não batem, e, sim, conversam muito, tendoneste instrumento da linguagem, tanto corporal quantoverbal, o principal recurso para a educação de seusfilhos, o que denota grande diferença para nossa po-pulação não-índia em relação à educação infantil.

No grupo terena de Córrego do Meio ocorre-ram informações nas entrevistas sobre modificaçõesrelevantes no sistema social e educação. Como exem-plo dessas informações, uma das mães entrevistadascomentou que seus filhos não eram desobedientes.Relatou que na aldeia geralmente as crianças ficavamperto das mães e só não andavam mais junto aos paisquando ficavam adolescentes e, então, não precisa-vam mais obedecer.

Informou que seus filhos a obedeciam mais por-que era ela que estava sempre presente, e se as crian-ças desobedeciam, ela conversava, mas na segundavez, se não atendiam, acabavam levando umas pal-madas ou umas “varinhadas” com vara verde. Quan-do perguntada sobre o que as crianças costumamfazer de errado, citou que geralmente subiam emárvores.

Eles não são desobedientes [...] sempre estão pertodos pais, só não ficam mais perto quando crescem,ficam adolescentes [...] aí não obedecem mais”. “Elesobedecem mais eu do que o pai, porque eles ficammais comigo [...] quando não quer obedecer eu falomais uma vez que não pode e se mais uma vez eladesobedecer eu dou umas palmadas ou umasvarinhadas. (Família 1)

Eles não costumam desobedecer [...] eu costumoconversar, explico o que é errado, arrumo umavarinha verde e falo que se fizer de novo você vai

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apanhar. Depois se ela for além eu dou umas trêsvarinhadas nela, quando ela acalma eu dou banhonela para ela acalmar e pergunto para ela se elasabe por que está apanhando. Não sei se éerrado!Aqui é a mãe que cuida dos filhos, o paitrabalha na roça [...] eles têm mais respeito com opai. (Família 2)3

Assim, nos trabalhos realizados nesse grupo en-contramos pela primeira vez alguns relatos sobre sis-temas de educação com punições semelhantes as queencontramos entre os não-índios.

CONCLUSÕES

Refletindo sobre educação infantil das popula-ções indígenas estudadas, percebemos uma significati-va diferença em comparação com a sociedade nacio-nal na organização familiar e consequentemente, noacompanhamento das crianças nos primeiros anos devida. A mãe que ainda pode ficar mais próxima dosfilhos e outros membros da família, pela existênciada grande família, contribui para a transmissão decostumes, crenças, padrões morais e éticos. Percebe-mos no referencial teórico e trabalhos de campo, emespecial dos guarani, com uma bibliografia mais vas-ta sobre sua cultura e organização social, que a grandefamília tem um papel ativo e muito importante naeducação e aprendizagem das crianças. A criança temliberdade para participar livremente do cotidiano fa-miliar, seus eventos, muitas vezes acompanhando ospais no seu trabalho doméstico ou na reserva.

Na sociedade nacional, de um modo geral, os fi-lhos que antes eram deixados aos cuidados das mãespassaram a frequentar as escolinhas, creches e escolasmaternais, na presença das babás ou mesmo sozinhosem casa, brincando com games, televisores e computa-dores, ou quando não, apenas na rua brincando aqui ouali com outras crianças, enquanto os pais não voltam dotrabalho. Geralmente não residem com avós, tios, comoacontecia antigamente na chamada grande família.

Além disso, os pais de volta ao lar, já cansadospelo desgaste diário, nem sempre ou raramente têmpaciência para conversar com a criança, explicar algoaté que ela entenda. Algumas vezes acontece que emmeio a gritos a mãe solicita alguma coisa à criança ouparte para a agressão física. Assim, a relação mãe xfilho nas populações não-índias difere muito das in-dígenas, pois nesta última as crianças recebem, namaioria das situações, mais carinho, respeito e aten-ção de seus familiares.

Cabe ressaltar que nos grupos indígenas em ques-tão notamos que a criança tem um acompanhamentocom conselhos, diálogo constante, acompanhada deliberdade para observar os adultos e participar dediferentes atividades na comunidade. A adolescêncianesses grupos é um período mais curto ou pratica-mente é apenas uma espera para os rituais de inicia-ção do jovem, que logo ingressa na vida adulta, jácom vivências e conhecimentos adquiridos na infân-cia, muito diferente daquilo que acontece na socieda-de nacional, onde referido período é cada vez maislongo e complexo até a pessoa atingir a idade adulta.

Neste estudo constatamos que mesmo em reser-vas com uma grande complexidade de problemassociais, políticos e econômicos, como é a reserva deDourados, a maneira como a criança indígena éeducada na primeira socialização na família a que per-tence, ou seja, na socialização primária, difere muitodas crianças não-índias. Este fator pode ser o maisimportante ou determinante para que essas criançasse ajustem com mais facilidade ao ambiente escolar,ou seja, na socialização secundária e o quanto este as-pecto difere do comportamento escolar em relaçãoàs crianças na sociedade nacional.

Os terena de Córrego do Meio já apresentamsituações diferenciadas das duas outras etnias, comeventuais punições na educação das crianças, na co-munidade estudada, além de indicações de que a gran-de família vem dando lugar a um pequeno grupoconstituído pelos pais e filhos.

As pesquisas sobre relações familiares nas socieda-des indígenas podem e têm muito a contribuir com asociedade não-índia, porém, fica uma indagação a serrespondida por aqueles que trabalham com a questãoindígena: o que fazer para que os aspectos culturais evi-denciados nestas pesquisas sejam preservados e tambémsirvam de modelo para toda a sociedade não-índia?

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3 Integrante do grupo de pesquisa com crianças Terena, Cabrera(2006: 59).

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Recebido em setembro de 2008

Reformulado em abril de 2009

Aprovado maiode 2009

Sobre os autores:

Sonia Grubits, Doutora com status de pós-doutora em Semiótica por Paris 8 – Sorbonne, França, pósdoutora e doutora em Saúde Mental pela Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, Mestrado em Psico-logia Social pela PUCSP, Psicóloga pela PUCRJ. Formada em Comunicações pela UFRJ, professora, pesquisa-dora e coordenadora do Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco, UCDB,MS, Brasil e bolsista de produtividade pesquisa do CNPq. E-mail: [email protected]. Av. Mato Grosso, n.759, Centro, Campo Grande/MS, Brasil, Cep 79002 – 231, Tel./Fax: (55) (67) 3382 36 31

Heloisa Bruna Grubits Freire, Doutora em Saúde Mental pela Faculdade de Ciências Médicas daUNICAMP, mestre em Psicologia, psicóloga pela UCDB, professora, pesquisadora do Programa de Mestradoem Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco, MS, Brasil. E-mail: [email protected]. Av. MatoGrosso, n. 759, Centro, Campo Grande/MS, Brasil, Cep 79002 – 231, Tel./Fax: (55) (67) 3382 36 31

José Angel Vera Noriega, Professor pesquisador na área de Desenvolvimento Regional, Centro deInvestigação em Alimentação e Desenvolvimento A.C., México. E-mail: [email protected]. ApartadoPostal 1735, Carretera a la Victoria km. 0.6, Hermosillo, Sonora, México. C.P.83000, Tel.: (662) 289 – 24 – 00Ext. 317, Fax: (662) 280 – 00 – 55.