INIMIGOSDEFÉ Anos de espera e de mágoa · PDF filedeterminação das...

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EXTRA EXTRA PÁGINA 3 - Edição: 26/01/2009 - Impresso: 25/01/2009 — 22: 51 h EXTRA Segunda-feira 26 de janeiro de 2009 S 3 EXTRA Segunda-feira 26 de janeiro de 2009 S 3 AZUL MAGENTA AMARELO PRETO GERAL INIMIGOS DE FÉ Como é a casa de santo A MATURIDADE A saída do iniciado é um dos momentos mais celebrados pela comuni- dade. Ele se torna, nesse momento, um yaô. Só após fazer sua obrigação de sete anos, o yaô torna-se um ebomi. Só então, poderá receber a missão dos orixás de se tornar babalorixá ou ialorixá Casa de Exu É o guardião da entrada do centro Barracão É o salão onde acontecem as rodas (xirês) Casas dos orixás Xirê (roda) Cadeiras Atabaques Dignatários Assistência Roncó Quarto sagrado onde são feitos os recolhimentos para iniciação e obrigações Não existe um modelo universal, porém há elementos comuns nos terreiros, localizados normalmente em áreas rurais, próximos a natureza NO INTERIOR DO BARRACÃO AS REGRAS São os orixás que determinam o futuro de cada integrante do terreiro. Para que um abiã, o frequentador da religião, se torne yaô é preciso que o sacerdote da casa receba essa determinação das divindades no jogo de búzios. Outro chamado pode acontecer quando o futuro religioso "bola no santo”, caindo em transe A INFÂNCIA A iniciação acontece em um ritual fechado. Em boa parte das casas, o aspirante fica recolhido por 21 dias. Durante esse período, aprende os cânticos, as danças, as orações e raspa a cabeça. Quando sai do recolhimento, o preceito dura normalmente três meses, tempo em que deve usar roupas brancas, comer alimentos especiais, usar seguranças como quelê (gravata do orixá, colar de miçangas coberto com lenço sagrado) e contra-eguns (tiras de palha da costa) e viver em estado de tranquilidade e com certo distanciamento das questões mundanas. A abstinência sexual dura todo esse período As cadeiras A maior à direita é a do orixá da casa, onde o pai-de-santo se senta quando está "virado" [1]; ao lado, a cadeira do pai-de-santo da casa [2], depois, fica a cadeira da sua Equéde [3], existem outras cadeiras para o pai pequeno ou mãe pequena e os dignatários da casa, de acordo com a estrutura do barracão Ogãs Alabês Ao lado dos atabaques, ficam os ogãs alabês. Eles são responsáveis pela música, fundamental para o contato com as divindades, no candomblé. O toque é como um convite para que o orixá chegue na casa através da incorporação de um dos filhos-de-santo Os rodantes São as pessoas que recebem as vibrações dos orixás. Eles cantam e dançam dispostos em roda (sem se dar as mãos) Equéde São as mulheres que cuidam dos rodantes incorporados, trocam suas roupas, dançam ao lado dos orixás, enxugam o suor do rodante e carregam o adjá, uma espécie de sino usado para chamar os orixás Equéde Rodante Hierarquia Na roda, existe uma hierarquia. Apenas as ebomis usam saltos altos. Os yaôs vêm atrás (são os iniciantes, que já fizeram a feitura, mas ainda não cumpriram a obrigação de sete anos), com roupas mais simples e descalços PESQUISA E TEXTO: CLARISSA MONTEAGUDO INFOGRAFIA E ARTE: ARY MORAES 1 2 3 Anos de espera e de mágoa Religiosos que denunciaram agressões sofrem com o descaso das autoridades nos casos de intolerância FOTOS DE PABLO JACOB CARLOS HENRIQUE é subtenente da Polícia Militar e pai-de-santo: luta por direitos religiosos D Denúncias cresceram 400% em um ano PAI WALTER: espera por providências da Justiça desde 2005 Após anos de silêncio da so- ciedade e omissão do poder público, a intolerância come- ça a ser vista como uma real ameaça à democracia por li- deranças religiosas e autori- dades policiais. Segundo o de- legado Henrique Pessoa, co- ordenador do setor de inte- ligência da Polícia Civil, desde que a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa co- meçou a atuar, as denúncias de abusos quadruplicaram. — Os integrantes de reli- giões de matriz africana estão aprendendo que não vão apa- nhar calados. No que depen- der de nós, a polícia será, sim, democrática. Queremos ser referência nacional na ques- tão — diz Henrique. O delegado vem acompa- nhando a condução das inves- tigações dos casos. Ele traba- lha até na conscientização dos próprios policiais para a gra- vidade da questão. — A gente está tentando fazer com que o policial con- sidere relevante o fato. Mui- tas vezes, só se interpreta co- mo relevante o homicídio ou o tráfico. Mas a intolerância religiosa é problema gravíssi- mo, motivo de guerra no mundo. Não podemos deixar que essas diferenças se acir- rem de modo que a gente te- nha crimes de grandes proporções no Brasil — ressalta. Pessoa já teve que intervir em situações como a atuação de um poli- cial que não considerou into- lerância religiosa a atitude de um pastor porque “ele falava em nome de Deus”. — O estado é laico e po- liciais não podem agir segun- do crenças pessoais — diz. Após a mudança no siste- ma das delegacias legais, os crimes de ofensa à religião são enquadrados na Lei Caó, que prevê pena de até cinco anos de prisão, no caso de utilização da mídia para difundir a intolerância: — Quando o agressor não está visando à pessoa, mas à religião, é o artigo 20 da Lei Caó. A pena é de um a três anos de prisão e de três a cin- co, se a discriminação é feita pela mídia — explica Pessoa. CLARISSA MONTEAGUDO [email protected] “Quem segue o demônio não pode morar no prédio”. Os gritos da vizinha não saem da memória da enfermeira Josefina Aguiar Castro, de 53 anos, a Mãe Jô de Oxum. O pesquisador da cultura bantu Walter Nkosi, de 53 anos, também nunca esquecerá os berros de “seguidores de Sa- tanás” durante o enterro de um filho-de-santo no Cemité- rio de Irajá. A cerimônia fú- nebre, sagrada no candomblé, foi interrompida porque pre- gadores panfletavam no meio do cortejo afro. Já o subtenente da Polícia Militar Carlos Henrique Go- mes Satiro, o Pai Henrique de Oxóssi, prendeu em flagrante uma mulher que desacatava a ialorixá Mãe Menininha do Gantois, na Praça da Liber- dade, no Centro de Nova Iguaçu. Religiosos graduados, os três não têm em comum apenas as crenças, mas uma longa luta contra a intolerân- cia sem o apoio da Justiça. O resultado dos três casos: registros das ocorrências em delegacias e anos de espera por providências. — Foi um desrespeito à mãe que tinha perdido o filho, à religião, à dor — lamenta Walter, que registrou o caso na 27 a - DP (Vicente de Car- valho), em 2005. Integrante do grupo que fazia a pregação, o auxiliar ju- diciário Paulo Sérgio de Pau- la, de 49 anos, minimiza: — Estávamos fazendo tra- balho de evangelização e hou- ve confusão. Foi coisa boba. Henrique de Oxóssi tam- bém registrou a agressão na 52 a - DP (Nova Iguaçu), em 2005. Autuada no caso, a do- na-de-casa Julia dos Santos Oliveira, de 63 anos, diz que continua pregando: — Problema dele se ficou ofendido. Quem não serve a Deus serve a quem? Ficarão de fora do Reino dos Céus os sodomitas, os cães, os feiticei- ros, os mentirosos, os que se prostituem e os que mentem. Henrique espera provi- dências da Justiça até hoje. E lamenta as perseguições: — O candomblé não acre- dita em diabo. O mal não está na religião, ele está no ser hu- mano. AMANHÃ, AS DIFICULDADES NO DIA-A-DIA DOS INICIADOS ❁❁ Comunidade judaica foi a primeira a sofrer com o preconceito Sergio Niskier Porta-voz da Fundação Israelita do Estado do Rio de Janeiro A comunidade judai- ca, que conhece na própria pele o que foi ser a primeira da fila no sofrimento do pre- conceito, foi também das primeiras a se le- vantar em solidarieda- de aos irmãos de fé das religiões de matriz africana, hoje os pri- meiros a serem agredi- dos em nosso país. O silêncio e a omissão fa- zem do omisso o próxi- mo alvo. Juntos, esta- mos dando um passo concreto para que pos- samos ter uma nação de irmãos. Não é a to- lerância apenas, é o respeito a cada um. Confira mais fotos e vídeos disponíveis no site. extraonline.com.br

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EXTRA ● Segunda-feira 26 de janeiro de 2009 S3EXTRA ● Segunda-feira 26 de janeiro de 2009 S3

AZUL MAGENTA AMARELO PRETO

GERAL

INIMIGOS DE FÉ

Como é a casa de santo

A MATURIDADEA saída do iniciado é um dos momentos mais celebrados pela comuni-dade. Ele se torna, nesse momento, um yaô. Só após fazer sua obrigaçãode sete anos, o yaô torna-se um ebomi. Só então, poderá receber a missãodos orixás de se tornar babalorixá ou ialorixá

Casa de ExuÉ o guardião daentrada do centro

BarracãoÉ o salão ondeacontecem asrodas (xirês)

Casas dos orixás

Xirê (roda)

Cadeiras Atabaques

Dignatários

Assistência

RoncóQuarto sagrado onde sãofeitos os recolhimentos parainiciação e obrigações

Não existe um modelo universal, porém há elementos comunsnos terreiros, localizados normalmente em áreas rurais,próximos a natureza

NO INTERIOR DO BARRACÃO

AS REGRASSão os orixás que determinam o futuro decada integrante do terreiro. Para que um abiã,o frequentador da religião, se torne yaô épreciso que o sacerdote da casa receba essadeterminação das divindades no jogo de

búzios. Outro chamado pode acontecerquando o futuro religioso "bola nosanto”, caindo em transe

A INFÂNCIAA iniciação acontece em um ritualfechado. Em boa parte das casas,o aspirante fica recolhido por 21dias. Durante esse período,aprende os cânticos, as danças, asorações e raspa a cabeça. Quando sai dorecolhimento, o preceito dura normalmente trêsmeses, tempo em que deve usar roupas brancas, comeralimentos especiais, usar seguranças como quelê (gravata doorixá, colar de miçangas coberto com lenço sagrado) econtra-eguns (tiras de palha da costa) e viver em estado detranquilidade e com certo distanciamento das questõesmundanas. A abstinência sexual dura todo esse período

As cadeirasA maior à direita é a doorixá da casa, onde opai-de-santo se senta

quando está "virado" [1];ao lado, a cadeira do

pai-de-santo da casa [2],depois, fica a cadeira dasua Equéde [3], existemoutras cadeiras para opai pequeno ou mãe

pequena e os dignatáriosda casa, de acordo com a

estrutura do barracão

Ogãs AlabêsAo lado dos atabaques, ficam os ogãs alabês.Eles são responsáveis pela música, fundamentalpara o contato com as divindades, nocandomblé. O toque é como um convite paraque o orixá chegue na casa através daincorporação de um dos filhos-de-santo

Os rodantesSão as pessoas que recebem asvibrações dos orixás. Eles cantame dançam dispostos em roda (semse dar as mãos)

EquédeSão as mulheres quecuidam dos rodantesincorporados, trocamsuas roupas, dançamao lado dos orixás,enxugam o suor dorodante e carregam oadjá, uma espécie desino usado parachamar os orixás

EquédeRodante

HierarquiaNa roda, existe umahierarquia. Apenas asebomis usam saltosaltos. Os yaôs vêmatrás (são osiniciantes, que jáfizeram a feitura, masainda não cumprirama obrigação de seteanos), com roupasmais simplese descalços

PESQUISA E TEXTO: CLARISSA MONTEAGUDOINFOGRAFIA E ARTE: ARY MORAES

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Anos de espera e de mágoaReligiosos que denunciaram agressões sofrem com o descaso das autoridades nos casos de intolerância

FOTOS DE PABLO JACOB

CARLOS HENRIQUE é subtenente da Polícia Militar e pai-de-santo: luta por direitos religiosos

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Denúncias cresceram 400% em um ano

PAI WALTER: espera por providências da Justiça desde 2005

■ Após anos de silêncio da so-ciedade e omissão do poderpúblico, a intolerância come-ça a ser vista como uma realameaça à democracia por li-deranças religiosas e autori-dades policiais. Segundo o de-legado Henrique Pessoa, co-ordenador do setor de inte-ligência da Polícia Civil, desdeque a Comissão de Combateà Intolerância Religiosa co-meçou a atuar, as denúnciasde abusos quadruplicaram.

— Os integrantes de reli-giões de matriz africana estãoaprendendo que não vão apa-nhar calados. No que depen-der de nós, a polícia será, sim,democrática. Queremos serreferência nacional na ques-tão — diz Henrique.

O delegado vem acompa-nhando a condução das inves-tigações dos casos. Ele traba-lha até na conscientização dospróprios policiais para a gra-vidade da questão.

— A gente está tentandofazer com que o policial con-sidere relevante o fato. Mui-tas vezes, só se interpreta co-mo relevante o homicídio ouo tráfico. Mas a intolerânciareligiosa é problema gravíssi-mo, motivo de guerra nomundo. Não podemos deixarque essas diferenças se acir-rem de modo que a gente te-nha crimes de grandesproporções no Brasil— ressalta.

Pessoa já

teve que intervir em situaçõescomo a atuação de um poli-cial que não considerou into-lerância religiosa a atitude deum pastor porque “ele falavaem nome de Deus”.

— O estado é laico e po-liciais não podem agir segun-do crenças pessoais — diz.

Após a mudança no siste-ma das delegacias legais, oscrimes de ofensa à religiãosão enquadrados na Lei Caó,que prevê pena de atécinco anos deprisão,

no caso de utilização da mídiapara difundir a intolerância:

— Quando o agressor nãoestá visando à pessoa, mas àreligião, é o artigo 20 da LeiCaó. A pena é de um a trêsanos de prisão e de três a cin-co, se a discriminação é feitapela mídia — explica Pessoa.

■ CLARISSA [email protected]

■ “Quem segue o demônionão pode morar no prédio”.Os gritos da vizinha não saemda memória da enfermeiraJosefina Aguiar Castro, de 53anos, a Mãe Jô de Oxum. Opesquisador da cultura bantuWalter Nkosi, de 53 anos,também nunca esquecerá osberros de “seguidores de Sa-tanás” durante o enterro deum filho-de-santo no Cemité-rio de Irajá. A cerimônia fú-nebre, sagrada no candomblé,foi interrompida porque pre-gadores panfletavam no meiodo cortejo afro.

Já o subtenente da PolíciaMilitar Carlos Henrique Go-mes Satiro, o Pai Henrique deOxóssi, prendeu em flagranteuma mulher que desacatava aialorixá Mãe Menininha doGantois, na Praça da Liber-dade, no Centro de NovaIguaçu. Religiosos graduados,os três não têm em comumapenas as crenças, mas umalonga luta contra a intolerân-cia sem o apoio da Justiça.

O resultado dos três casos:registros das ocorrências emdelegacias e anos de esperapor providências.

— Foi um desrespeito àmãe que tinha perdido o filho,à religião, à dor — lamentaWalter, que registrou o casona 27a- DP (Vicente de Car-valho), em 2005.

Integrante do grupo quefazia a pregação, o auxiliar ju-diciário Paulo Sérgio de Pau-la, de 49 anos, minimiza:

— Estávamos fazendo tra-balho de evangelização e hou-ve confusão. Foi coisa boba.

Henrique de Oxóssi tam-bém registrou a agressão na52a- DP (Nova Iguaçu), em2005. Autuada no caso, a do-na-de-casa Julia dos SantosOliveira, de 63 anos, diz quecontinua pregando:

— Problema dele se ficouofendido. Quem não serve aDeus serve a quem? Ficarãode fora do Reino dos Céus ossodomitas, os cães, os feiticei-ros, os mentirosos, os que seprostituem e os que mentem.

Henrique espera provi-dências da Justiça até hoje. Elamenta as perseguições:

— O candomblé não acre-dita em diabo. O mal não estána religião, ele está no ser hu-mano.

AMANHÃ, AS DIFICULDADES NO

DIA-A-DIA DOS INICIADOS ❁❁

Comunidadejudaica foia primeira asofrer com opreconceito

Sergio NiskierPorta-voz da FundaçãoIsraelita do Estado do Riode Janeiro

■ A comunidade judai-ca, que conhece naprópria pele o que foiser a primeira da filano sofrimento do pre-conceito, foi tambémdas primeiras a se le-vantar em solidarieda-de aos irmãos de fédas religiões de matrizafricana, hoje os pri-meiros a serem agredi-dos em nosso país. Osilêncio e a omissão fa-zem do omisso o próxi-mo alvo. Juntos, esta-mos dando um passoconcreto para que pos-samos ter uma naçãode irmãos. Não é a to-lerância apenas, é orespeito a cada um.

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