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PORTO ALEGRE RS BRASIL ÓRGÃO OFICIAL DA SOCIEDADE PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE ANO 18 DEZEMBRO 2019 Nº 35 (In)Sanidade

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PORTO ALEGRE • RS • BRASIL

ÓRGÃO OFICIAL DA SOCIEDADE PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

ANO 18 • DEZEMBRO 2019 • Nº 35

(In)Sanidade

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Expediente

SUMÁRIO

SOCIEDADE PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE (SPPA)

Rua Gen. Andrade Neves, 14/802Porto Alegre/RS 90010-210

(51) 3224-3340www.sppa.org.br

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PRESIDENTE Zelig Libermann

DIRETORA ADMINISTRATIVA Catia Olivier Mello

DIRETOR FINANCEIRO Carlos Augusto Ferrari Filho

DIRETORA CIENTÍFICA Maria Cristina Vasconcellos

DIRETORA DE PUBLICAÇÕES Tula Bisol Brum

DIRETORA DE DIVULGAÇÃO Kátia Wagner Radke

DIRETOR DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA Rui de Mesquita Annes

DIRETORA DO INSTITUTO Maria Lucrécia Scherer Zavaschi

COMISSÃO EDITORIAL Idete Zimerman Bizzi (coordenadora) Cátia Deon Dall’Agno, Fabio Brodacz, Laura Meyer da Silva Marcelo Vaz, Nyvia Sousa, Regina Orgler Sordi

JORNAL DA SPPA Tiragem: 2.500 exemplares Fotos utilizadas: Arquivo/SPPA

EDIÇÃO E REDAÇÃO Ana Klein (DRT/RS 8741) Vera Nunes (DRT/RS 6198)

REVISÃO Gustavo Czekster

PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO Clemente Design

Palavra do Presidente

CAPA

Time, Gentlemen Please 1971–2 - Oskar Kokoschka

Palavra do Presidente ................................... 02

Editorial ........................................................... 03

Artigo .............................................................. 04

Associação de Candidatos............................ 05

Entrevista. ............................................... 06 a 07

Comentário..................................................... 08

Infância e Adolescência................................. 09

Diretoria Científica................................. ........ 10

Grupo do Interior ........................................... 10

Diretoria de Publicações............................... 10

Artigo .............................................................. 11

Relações com a Comunidade ...................... 12

Revista de Psicanálise ................................... 12

A linguagem é uma das mais importantes aquisições civilizatórias do ser humano. Para cada indivíduo, a palavra possibilita mudar o destino da descarga pura das emoções, colaborando com sua inserção no universo do pensamento racional e, por conseguinte, na cultura.

No entanto, a linguagem propicia também a possibilidade de jogar com o universo lógico e de reescrever as palavras, dando a elas uma face onírica.(In)sanidade, tema desta edição do Jornal da SPPA, é uma amostra de certas intervenções que alteram os significados simbólicos de uma pala-vra, criando “espaços potenciais” linguísticos.Representada dessa forma, (In)sanidade realça a ideia de Freud de que, no ser humano, sani-dade e insanidade não apresentam diferentes mecanismos psíquicos. O espaço entre elas não é qualitativo, mas quantitativo.Do ponto de vista da cultura, (In)sanidade remete ao tempo que vivemos, no qual mudanças velozes trazem a impressão de que “tudo que é sólido desmancha no ar”. De um momento para o outro, os referenciais se alte-ram e a atividade simbólica, essencial para a construção do psiquismo, pode ser substituída por manifestações voltadas ao corpo ou ao ato: o pensamento perde lugar para a ação. É nesse contexto que convivemos com relações instá-veis, e o necessário enfrentamento dos graves problemas sociais da atualidade (desigualdade social, corrupção, migrações em massa, guerras etc) acaba se defrontando com a intolerância e com manifestações de violência.Em tal cenário, como se equilibrar entre a manutenção de referenciais que nos trou-xeram identidade e, ao mesmo tempo, não nos posicionarmos de forma a restringir a subjetividade, impossibilitando a convivên-cia com as transformações permanentes das

realidades individual e coletiva?Inserida na proposta do Jornal da SPPA de reunir psicanálise e arte, (In)sanidade vai ao encontro das ideias do psicanalista francês Jean-Claude Rolland, para quem os sonhos, a criação artística e a psicanálise, ao permitir o acesso ao plano profundo da alma, auxiliam o ser humano a buscar novas formas de ligação, novos investimentos na vida.Este número do Jornal marca, ainda, um tempo. O tempo de encerramento da gestão 2018-2019.Aproveito, então, esse espaço para expressar minha gratidão para com todos aqueles que acompanharam esta trajetória à frente da SPPA.Agradeço aos amigos Augusto Ferrari, Cátia Mello, Katia Radke, Cristina Vasconcelos, Lucrécia Zavaschi, Rui Annes e Tula Brum, par-ceiros de Diretoria, pela inesgotável dedicação à nossa Sociedade, mas, principalmente, pela convivência fraterna e agradável.Ao dedicado grupo de funcionários da SPPA, Débora Agnes, Greison Jacobi, Karine Herte, Liane Vergara, Margareth Dallagnol e Maricê Cramer, nosso reconhecimento por sua dispo-nibilidade e eficiência. Meu reconhecimento também aos colegas que participaram dessa gestão, exercendo ativi-dades nos diversos grupos de trabalho que compõem a SPPA.Por fim, um especial agradecimento a todos os componentes da SPPA pelo apoio que a Diretoria sempre encontrou ao longo deste caminho.Um abraço.

Zelig LibermannPresidente da SPPA

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(In)Sanidades de nosso tempo

De que insanidade se trata essa edição do Jornal? O prefixo in sugere a ausência de sanus, saúde. Por uma lógica sim-plista, ficariam claramente

delimitados, em nítido contraste, o estado de saúde e o estado de doença, a normalidade e a loucura, a sensatez e o desatino. No mundo real, porém, os matizes são a regra, e raramente, para não dizer jamais, deparamo-nos com o puro branco ou com o negro absoluto no que tange a saúde mental. Melanie Klein revolucionou o pensamento psicanalítico, na década de 1940, ao descrever os primitivos mecanismos psíquicos do lactente, cujo ego primitivo, obrigado a lidar com os reveses inescapáveis do meio ambiente, separa, em fantasia, os “bons”e os “maus” objetos presentes em sua vida, numa tentativa arcaica de proteger o que há de positivo. Um pouco mais adiante, porém, perceberá, o incauto bebê, que as sensações boas e más derivam de uma só fonte: a mãe (ou cuidador), que por melhor que seja, nunca será infalível. Do interior da criança, igualmente, partem pulsões constru-tivas e destrutivas. Em qualquer idade, perceber que somos contraditórios, feitos de amor e ódio, luz e sombra, lucidez e loucura traz profunda dor, mesmo que estruturante dor. Nas palavras de Freud, “[...] toda pessoa normal é apenas normal na média. Seu ego aproxima-se do ego do psi-cótico num lugar ou noutro” (Freud, 1937). Da mesma forma, o mais psicótico dos indivíduos carregará, dentro de si, aspectos sãos.

A sanidade, contida na (in)sanidade, alude também à fonte criativa, vital e genuína de todo ser humano, a qual brota sempre de fon-tes irracionais e dos umbrais do inconsciente, para, somente a seguir, receber o verniz da idéia, do poema, da música, do desenho, e tornar-se inteligível e sensível aos demais.

Cada tempo, na História, protagoniza suas próprias (in)sanidades, e é lícito nos pergun-tarmos quais são as peculiaridades do século XXI, era da hipervelocidade, da hiperconexão, da globalização. Aparentemente, caminhamos por

um estreitamento de espaço e tempo, reduzidas as distâncias e ampliados os alcances. No mundo atual, virado em aldeia multimídia, o limite é o céu, lá onde aves e aeronaves disputam rotas doidamente, e onde se acumulam zilhões de pixels em nuvens diariamente. Nunca o acesso a informações, às artes, música, pintura, literatura foi tão democratizado. Nunca o contato entre as pessoas foi tão facilitado. Paradoxalmente, porém, o que se percebe é que o indivíduo con-temporâneo tende a sentir-se confuso, esvaziado e pressionado. Menos vivendo sua experiência do que sendo vivido por ela, em ritmo frenético. As taxas ascendentes de suicídio no Brasil, em especial na faixa etária jovem, demandam séria reflexão, e fazem suspeitar que a propalada “era da felicidade” assenta-se em bases frágeis.

Segundo Winnicott, as primeiras experiên-cias do ser humano com seus cuidadores são essenciais para que o bebê tenha uma experi-ência predominantemente positiva e construa a “crença num ambiente benigno”, com o qual possa se identificar (Winnicott, 1958). Em um segundo momento da vida, porém, são neces-sárias doses graduais de frustração, para que, lentamente, adquira a capacidade de esperar, pensar, simbolizar e construir a tessitura mental. O indivíduo saudável, a partir dessa perspectiva, não é aquele imune a agruras ou contradições, mas o que é capaz de tolerá-las e, ainda assim, manter vivo o dom de se emocionar e de se surpreender com o novo e com a alteridade. Contrariamente às pondera-ções de Winnicott, estaríamos, talvez, na atualidade, inver-tendo a ordem natural da evolução humana? Estaríamos, inadvertidamente, abreviando as atenções “integrais” a nos-sos bebês, devido às demandas pessoais crescentes dos pais, e buscando compensar, a seguir, com desmedida satisfação e permissividade os nossos púbe-res e adolescentes?

Nessa edição, refletimos acerca dos efei-tos traumáticos silenciosos que a cultura contemporânea pode ter sobre os grupos e pessoas, em artigo impactante de Nara Caron, “viajamos” através dos processos criativos e intuitivos, em revelador diálogo com Oswaldo Montenegro, com comentários do colega Flávio Oliveira, e adentramos o universo machadiano, por meio de artigo inspirador e oportuno de Sergius Gonzaga sobre “O Alienista”, com uma proposta original de ponderação sobre os rumos da sociedade atual.

Sendo (In)sanidade a última edição do Jornal da atual gestão da SPPA, expresso um genuíno agradecimento, em nome da equipe da comissão editorial, pelo espaço e incentivo dispensados a nós pela Diretoria, e que nos serviu de esteio criativo nesses dois anos de tra-balho. Em especial à minha equipe, incluídas as jornalistas Vera Nunes e Ana Klein, reforço que, mais do que a sensação de dever cumprido, trago comigo a satisfação pela convivência que tivemos e que muito me cativou e ensinou. Finalmente aos leitores do nosso Jornal, obri-gada, de coração, e uma boa leitura a todos.

Freud, S (1937). Análise Terminável e Interminável. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas se Sigmund Freud (Vol. 23). Rio de Janeiro: Imago.Winnicott , D. W. (1958) A capacidade para estar só. In: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas.

Editorial

Idete Zimerman Bizzi Editora do Jornal

A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.

Laura Meyer da Silva, Fábio Brodacz,Regina Orgler Sordi, Idete Zimerman Bizzi ,

Cátia Deon Dall’Agno, Nyvia Sousa e Marcelo Vaz.

Machado de Assis, O Alienista

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Psicanálise e Cultura

Sob o signo da insânia

A novela O alienista é uma das obras decisivas na ator-doante revolução formal e imaginativa desenvolvida por Machado de Assis a partir da

década de 1880. O narrador vale-se de supos-tas crônicas históricas de Itaguaí a respeito de um médico tomado pela insânia que pretendia combater. Porém, ao contrário das antigas crôni-cas, inexiste um registro verossímil da realidade objetiva, pois situações absurdas se sucedem em ciranda frenética. Contribui de modo decisivo para a corrosão do propósito realista, o estilo galhofeiro e hiperbólico do narrador, que não oculta a perspectiva irônica sobre as experiências do cientista. O texto erige-se, assim, como uma espécie de corrosiva fábula humorística.

Na construção da novela, dois tempos histó-ricos se sobrepõem. A ação transcorre durante o vice-reinado, em fins do século XVIII, enquanto o seu teor crítico refere-se à segunda metade do século XIX. O leitor, em regra, não percebe a incongruência temporal pela irresistível força dos elementos cômicos da obra. As pretensões do Dr. Simão Bacamarte de classificar a mente humana, seu ziguezague teórico, sua raciona-lidade tortuosa, suas obsessões convertidas arbitrariamente em princípios, a vaguidade de seus conceitos sobre razão e desrazão, sua patética mudança nos critérios de internamento na Casa Verde, todo esse intenso torvelinho prima pelo humor e serve para o ficcionista arguir a onipotência do pensamento científico.

OS PODERESO questionamento envolve também a emergên-cia do poder médico e suas articulações com o poder político. As conquistas da chamada medicina experimental haviam expandido de modo desmesurado o prestígio da profissão – até ali mais ou menos empalidecida pela relativa ignorância sobre a máquina humana e seu ambiente. No entanto, as inovações na área deflagraram uma autoconfiança e uma presunção que transformariam os médicos em uma casta de sacerdotes autocráticos.

Que Machado tenha percebido isso no calor do momento histórico é extraordinário: a racionalidade moderna desalojando a cons-ciência mágica. Não por acaso, o pensamento opositivo ao discurso “psiquiátrico” procede da superstição religiosa do padre Lopes. Já Simão Bacamarte representa a figura do cientista como ainda hoje o entendemos, um ser altruísta, vol-tado para os estudos e que, sob a energia da ratio, paira acima das crenças primitivas da plebe e das contingências do destino. Seu credo desinteressado na evolução da humanidade, seu esforço para decifrar o mistério dos cérebros enfermos e construir a Casa Verde, elevam-no à condição de benfeitor de Itaguaí.

Ao mesmo tempo, a nomeada de sábio e o peso social do conhecimento lhe propiciam

livre terreno para o exercício da ditadura cien-tífica. Nem a esposa, nem os amigos, nem a amedrontada Câmara de Vereadores ousam contestá-lo. Igualmente o barbeiro Porfírio – que levanta a população para destruir a Casa Verde – não realiza sua promessa populista, compreendendo que o prestígio do médico e do manicômio significava a possibilidade de obter o apoio dos principais da vila e do pró-prio Vice-Rei. Fecha-se, assim, um pacto entre dois poderes. E, embora o barbeiro logo caia em desgraça, as teorias despóticas do alie-nista continuarão invulneráveis. O seu próprio auto-recolhimento à Casa Verde, quando vê a si mesmo como o último desequilibrado de Itaguaí, decorre de uma premissa lógica, apon-tada por Abel Batista: Bacamarte declara-se alienado para continuar sendo um alienista.

O narrador jamais comenta as práticas tera-pêuticas utilizadas na Casa Verde, limitando-se a descrever, sob ângulo humorístico, os casos de monomania, transtorno delirante e aluci-nação dos internados. Seu foco concentra-se na elasticidade caricata dos diagnósticos de Bacamarte, que permitiram o encarceramento de metade da população de Itaguaí. As ideias

[...] sua patética mudança nos critérios de internamento na Casa Verde, todo esse intenso torvelinho prima pelo humor e serve para o ficcionista arguir a onipotência do pensamento científico.

Sérgius Gonzaga, professor de Literatura da UFRGS, escritor, ex-secretário de Cultura da Capital

Artigo

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do alienista haviam se desvinculado do empí-rico e flutuavam alheias à existência concreta. Ainda que pervertida, sua racionalidade o induz a reconsiderar as teses anteriores e invertê-las de modo autoritário e surrealista.

Nesta reviravolta, ele substitui a investigação psiquiátrica pela filosofia moral. Loucos agora são os puros, os honrados, os generosos. O pro-cesso de cura consiste em corrompê-los, já que as virtudes éticas são o apanágio das mentes perturbadas. Com inesperada rapidez, os novos internos entregam-se ao sortilégio dos vícios e retornam à normalidade. Esta pedagogia degra-dada corresponde ao ceticismo de Machado,

para quem o interesse é o móvel básico da conduta humana e o desmascaramento das aparências virtuosas seu procedimento mais usual de análise psicológica.

ATUALIDADEA novela abre outro campo interpretativo que talvez justifique sua vibrante atualidade. Simão Bacamarte vivencia, como homem do saber, um tipo especial de cegueira que tem aco-metido expressiva parcela da intelectualidade nos últimos 130 anos. Essa cegueira, desen-cadeada pelas “paixões da mente pensante” (Mark Lilla), configura-se a partir de paradoxos:

crenças unívocas sobre um futuro imaginário simulam uma falsa racionalidade e se apresen-tam como utopias possíveis, de largo alcance, garantindo a abolição das dores e injustiças que oprimem a humanidade ou parte dela. Seu fascínio parece brotar não apenas da ótica messiânica, mas das certezas definitivas e retilíneas que as sustentam. O ato de pensar o mundo, cuja essência é a razão cética, vira um ato de fé. E a adesão a alguma forma de tirania torna-se a consequência previsível daqueles que se veem como os portadores de verdades não sujeitas à matéria movediça da realidade.

A exemplo do alienista de Itaguaí.

Supervisão clínica com o Dr. Bernard GolseNo último dia 18 de setembro, a Associação de Candidatos (AC), em conjunto com o Núcleo de Infância e Adolescência (NIA), teve o privilégio de contar com a presença do Dr. Bernard Golse para uma supervisão coletiva de material gentilmente trazido pela colega Débora Schaff.

Dr. Bernard Golse é Psiquiatra infantil e Psicanalista, foi Diretor do Serviço de Psiquiatria Infantil do Hospital Necker-Enfans Malades (Paris, França), é professor e chefe do serviço de psiquiatria infantil da Universite de Paris V (Rene Descartes), Presidente da Association Pikler Lóczy France e Presidente da Associação Europeia de Psicopatologia de Criança e do Adolescente (AEPEA). Proferiu a conferência “Do corpo ao pensamento: a importância dos cuidados cotidianos do bebê”, atividade realizada na sequência da supervisão coletiva.

Com a parceria de Sylvia Nabiger, iniciamos a atividade em um clima intimista e acolhedor. Dr. Golse nos contou um pouco de sua história, carreira e interesses, traçando paralelos inte-ressantíssimos com a sua área de interesse atual. Em especial destaque, o trabalho com crianças autistas e o interesse nas questões vinculares mãe-bebê.

Na sequência, através da discussão do mate-

rial clínico, tivemos a oportunidade de presenciar a mente do analista em ação. Com uma escuta muito atenta e sensível, Dr. Golse demonstrou a sua forma de pensar o material, assim como foi exemplificando seu estilo técnico. A atividade contou com uma plateia atenta, muito interes-sada e que não pôde deixar de se admirar com o trabalho e a presença extremamente prestativa e afetiva do Dr. Golse.

Como Associação de Candidatos, nos sentimos privilegiados e agradecidos pela oportunidade única, a qual entendemos ser resultado da profícua parceria entre a AC, o NIA e o Instituto no seio da nossa querida SPPA. Que venham os próximos encontros!

Associação de Candidatos

Dr. Bernard Golse com o grupo da AC

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Falando da vida em ré maior: entrevista com Oswaldo MontenegroEm passagem por Porto Alegre, Oswaldo Montenegro, cantor e compositor de clássicos como “Bandolins” e “Agonia”, concedeu descontraída entrevista ao Jornal da SPPA, em que fala sobre inspiração criativa, cultura contemporânea, e arrisca opiniões sobre a inserção da psicanálise na sociedade.

Jornal: As tuas composições costumam abordar paixões e sentimentos com poesia e profundidade ímpares. Como achas que nasceu essa intimidade com as emoções?OM: Eu não tenho a menor ideia. Primeiro eu me apaixonei pela música, pela forma da can-ção. Muito tempo depois de já ser profissional na música, de ser compositor como ofício, eu descobri, com muita alegria, que muitas pes-soas se identificavam com o que eu escrevia e que a gente acaba, sem querer, tirando uma foto do momento em que estamos passando. É algo natural, que ocorre sem querer, incons-cientemente. Não é algo planejado, mas me deixa muito alegre.Jornal: A tua identificação com a música foi espontânea? Há outros artistas na tua família?OM: Todo mundo na minha família tocava e cantava, ninguém era profissional. Eu tive con-tato com a música muito cedo, ainda menino, e isso se intensificou quando eu fui para São João Del Rei, em Minas Gerais, com meus pais, com 7 anos de idade, que é a cidade da serenata, e meus pais começaram a conviver com os boêmios da cidade, permitiam que eu fosse com eles, e aí a música me inundou. E, mais do que inundar, ela me fez..... vivê-la junto com o afeto. Era uma coisa muito afe-tuosa essa serenata de Minas Gerais. Era uma coisa entre amigos, para amigos. Todo mundo

cantava. Eu não sabia que existia cantor porque todo mundo cantava. Quem can-tava bem, cantava. Quem cantava mal, cantava. Todo mundo tocava. Aquilo foi muito forte para mim e me dava uma sensação de prazer que até hoje eu não reencontrei. Eu passo a vida tentando achar aquilo de novo.Jornal: Em que medida te dedicas à música e em que medida à letra das canções?OM: Minha mãe é professora de literatura, ela foi muito importante para mim nessa parte das palavras.... Eu nunca pensei, nunca racio-cinei sobre o que eu queria dizer. Nem mesmo pensei nas consequências do que poderia estar dizendo. Eu fui fazendo, como se fosse uma mistura de desabafo com artesanato....Jornal: O processo de compor desponta naturalmente?OM: Ele normalmente brota. Como eu traba-lho muito com cinema, e trabalhei muito com teatro, muitas vezes você tem que compor uma trilha para um personagem, e aí você tem que escrever sobre o que você não é e sobre como você seria se fosse. É um exercício meio de humildade, meio de esquizofrenia....Jornal: Voltando às palavras, como elas apareciam na tua vida?OM: Minha mãe citava sempre autores que ela gostava, frases, e me dava livros para ler. Acho que as palavras mais importantes na minha vida foram as de Monteiro Lobato, na minha infância, foi onde eu exerci a leitura com mais afinco.

Jornal: Falaste que, através da música, o público se identifica com o compositor...OM: Por meio da canção. Acho que a can-ção é uma arte do século XX, como a ópera é uma arte do século XIX. Eu acho que no nosso século, agora, já estamos no final da canção. A canção não é mais protagonista. Até a metade do século XX ela era protagonista: as pessoas compravam um disco para ouvir o disco, viam televisão para ouvir a música. Hoje não, hoje a música é trilha. Trilha da novela, do filme, do brinquedo da internet, da série.Jornal: E qual é a tua impressão sobre o momento atual da sociedade?OM: Eu acho que é um momento muito inte-ressante, instigante, porque a tecnologia vai, realmente, mudar o mundo. Ela vai influen-ciar inclusive na ética, e já está influenciando. O ser humano vai ser honesto pela tecnologia. Ele não vai ser honesto porque ele acredita na honestidade, mas porque, pelo avanço

Oswaldo Montenegro, músico, compositor e autor de trilhassonoras para peças teatrais, balés, cinema e televisão

Entrevista

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tecnológico, será impossível mentir. As pessoas sempre imaginaram que a transformação das pessoas em direção à verdade deveria ocorrer sob a perspectiva moral, mas ela virá sob a perspectiva tecnológica. Não adianta você dizer que estava em tal lugar, pois as pessoas sabe-rão onde você estava, o que você sente, o que você pensa. É uma sinceridade causada pela tecnologia, e essa é a mudança mais doida que já houve em toda a história humana.Jornal: O título do nosso Jornal será (In)sanidade...OM: Eu acho que a sanidade será muito difícil no século XXI, porque o ser humano se des-prendeu muito dos mitos, dos ritos. Os mitos organizam a cabeça humana. Plantar e saber que tem aquele tempo para colher, ver o dia amanhecendo, anoitecendo, saber que tem um rito para você se tornar adulto. Dentro de um shopping, hoje em dia, você não sabe que horas são, você come uma comida que não sabe o tempo de plantio, o tempo que se espe-rou para germinar. Isso desorienta a cabeça humana e, ao mesmo tempo, existe a sensa-ção de busca insaciável por prazer, é quase um vício. O ser humano, agora, tem opções exageradas. É tanto filme para você ver que acaba não vendo nenhum. Tem gente que já

está ligando na rádio porque não aguenta mais ter que escolher, e precisa que alguém escolha por ele a música que vai ouvir.

Jornal: Tens algo a comentar sobre a psicanálise?OM: Eu acho que a psicanálise vem de uma “sacada” genial, que é o poder que o incons-ciente tem, como se ele fosse um HD em que informações muito preciosas são colocadas. Acho que ela vai ter que se readaptar muito, pois a primeira ideia da psicanálise foi ter acesso a esse HD de uma forma consciente, e a chave para o HD não é a lógica racional. Agora, os próprios cientis-tas, que são seres muito racionais, entendem que nem tudo pode ser explicado pela lógica, e que a lógica não consegue entender tudo. Acho que a psicanálise vai ter que se adaptar e se associar com muitas outras matérias para poder sobreviver, senão ela vai ficar condenada no tempo.Jornal: Já tiveste alguma experiência pessoal com a psicanálise?OM: Nenhuma. Nunca fiz. A não ser duas séries que eu escrevi, chamada “Sonhos e Segredos”, sobre seis personagens que faziam psicoterapia de grupo.Jornal: Como achas que a passagem do tempo afetou as tuas composições?

OM: Nunca pensei nisso. Mas, se eu tivesse que buscar uma diferença, seria a ausência de certezas. Quando você é jovem, acha que sabe tudo, aí você vai ganhando dúvida, até que só sobram dúvidas. A música “A lista”, por exemplo, é feita só de perguntas, é a música de quem não tem certeza mesmo sobre nada.Jornal: Tu tens alguma música que con-sideres especial na tua carreira?OM: “Bandolins”, que viabilizou minha car-reira como compositor. Tenho muita gratidão a essa música, pois foi ela que me permitiu ter esse privilégio de trabalhar no que eu gosto.Jornal: Tu lembras de como surgiu a inspiração para compor “Bandolins”?OM: Lembro que uma amiga bailarina se sepa-rou do namorado, que também era bailarino, pois ele foi para a França. Era aniversário dela e eu fiz a música, que fala de uma mulher que está louca, achando que está dançando um “pas de deux”, quando está dançando sozinha...Jornal:“Como fosse um par...”OM: Isso... Como fosse um par...

VERSOS DE "BANDOLINS"Como fosse um lar seu corpo a valsa tristeIluminava e a noite caminhava assimE como um par o vento e a madrugadaIluminavam a fada do meu botequim

Valsando como valsa uma criançaQue entra na roda a noite tá no fimEla valsando só na madrugadaSe julgando amada ao som dos bandolins

Quando você é jovem, acha que sabe tudo, aí você vai ganhando dúvida, até que só sobram dúvidas.

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Sobre a entrevista de Oswaldo Montenegro

Flávio de Oliveira e Souza Psicanalista da SPPA

Não há dúvida de que lidar com o intangível da existência humana, com afetos indizíveis, ritmos e palavras, adentrar no que jamais será conhecido e buscar aquele prazer já tido que nunca se repetirá são terrenos comuns na prática dos artistas e dos analistas.

Oswaldo Montenegro, com a profundidade do músico e poeta, nos oferece uma oportunidade de ampliarmos nosso pensamento desde o ofício da psicanálise como arte, da peculiaridade do encontro entre dois sujeitos em busca de suas singularidades ao exame crítico da prática psicanalítica em tempos de uma cultura horizontalizada, saturada pela grande máquina da informação. Então, falemos de arte, psicanálise e encontro singular. A arte se define como a atividade humana relativa à estética e comunicação, exigindo uma variedade de linguagens no campo da música, literatura, arquitetura, dança, etc. O processo criativo ocorre através da expressão de um sujeito que se constrói fora de si no objeto artístico. E há um outro que compartilha essa experiência e também se desvela através dela. Tal qual Oswaldo Montenegro que emergiu como poeta quando muitos se identificaram com sua fala. Mas por que a psicanálise também seria uma forma de arte? A relação paciente-analista exige uma escuta polissêmica, polifônica e uma fala poliglota. De igual forma, é fundamental a atenção para todos os elementos não verbais, da intuição aos ritmos e melodias da fala. O processo psicanalítico cria e descobre esse espaço ímpar entre o poeta e o outro: por vezes o analista é o poeta, por vezes é o outro. Quando Oswaldo Montenegro diz “escrever sobre o que você não é, como você seria se fosse”, define este movimento intersubjetivo de nossa prática. Ao adentrar nesse espaço do encontro de alteridades que é singular, revelador, próprio desta dupla e que não se repetirá, os afetos sem nome, o irrepresentável, o vazio e a morte podem encontrar expressão.

E não se está só, pois o poeta nos acompanha solidário tal qual a continência do analista. A promoção da sanidade se dá através do desenvolvimento do pensamento criativo, do compartilhamento, da promoção do sujeito singular, do crescimento mental, criando ou descobrindo um sentido perdido que, ao ser vivido, pode ser encontrado. Ao falar em tecnologia e no sujeito contemporâneo, Oswaldo Montenegro pauta nossa discussão sobre a insanidade. Em dado momento ele afirma: “O ser humano vai ser honesto pela tecnologia...pelo avanço tecnológico, será impossível mentir...a transformação das pessoas em direção à verdade deveria ocorrer sob a perspectiva moral, mas ela virá sob a perspectiva tecnológica”. Pensando em nossa prática clínica cotidiana, me ocorre acrescentar outra perspectiva. Temo que o fato de que nossa privacidade ser cada vez mais devassada em favor da grande máquina da informação do século XXI não esteja tornando o sujeito mais honesto ou incapaz de mentir. O que se vê é uma progressiva impossibilidade de ser verdadeiro, mas de modo silencioso e insidioso. Não se trata aqui de ser verdadeiro ou não para os outros, é um processo interno, invisível ao próprio sujeito. A pressão exercida numa cultura em que o indivíduo é globalizado, onde sua medida de felicidade se dá por likes ou seguidores virtuais, fomenta a normose e dilui, esmaga o indivíduo singular. A pasteurização e horizontalização do sujeito reduz a sua existência à parte funcional de um todo intangível. O sujeito peculiar, singular e criativo - que víamos acima despertado pela relação com a arte ou com a psicanálise - resta atrofiado. Borra-se a diferença entre o real e o virtual, surge o virtual real, o “alone together” (sozinho acompanhado) de Turkle. E o espaço privado onde o pensamento potencial se desenvolve e cria com liberdade, fica subtraído em favor de existir na colmeia. A homogeneização do sujeito (enquanto processo de pensamento e expressão do self) acarreta no “sujeitocídio”, eliminando a integridade

do pensamento que ampara a ilusão do “eu”. A existência idiossincrática é eliminada (Bollas). Nesse contexto, o espaço intersticial ímpar entre eu e o outro, entre o poeta e o leitor, entre o analista e o paciente debilita-se, como se fosse cedido a um GPS global, que nos poupa de pensar e nos orienta o caminho. Talvez essa seja uma particular insanidade de nossos tempos com a qual analistas e artistas devam se ocupar. Oswaldo Montenegro amadurece em sua tolerância à incerteza, nossa conhecida capacidade negativa. Chama a atenção para o respeito aos ritos da passagem do tempo, para o ritmo da vida na natureza, a construção da palavra como forma de conter a loucura (composição de “Bandolins”). Temos boas notícias para o poeta. Ele está mais próximo de nossas preocupações e prática psicanalítica do que pensa. A adaptação aos novos tempos e o casamento com outras matérias que, segundo ele, garantiriam a sobrevivência da psicanálise já estão em curso.

Comentário

O processo psicanalítico cria e descobre esse espaço ímpar entre o poeta e o outro: por vezes o analista é o poeta, por vezes é o outro.

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Do enfraquecimento simbólico ao gozo de viverSabemos que cada ser humano é singular, é único na sua maneira de sentir e de se expressar. Contudo, também sabemos que somos profundamente afetados pelo espírito da época em que vivemos.

Q uando experiências de frag-mentação, descontinuidade, vulnerabilidade, perda do sentimento de esperança e sentido da vida afetam

dramaticamente o desenvolvimento psíquico de crianças e adolescentes, o campo da saúde mental vê-se convocado a atuar no enfrenta-mento desse difícil desafio. Como ajudar a ressignificar a vivência de vazio e a desespe-rança que tão cedo se instala na subjetividade de muitos jovens? Tentativas de suicídio de jovens têm sido um tema suficientemente estu-dado, discutido, compreendido?

Para abordar essas preocupações, o XXI Simpósio da Infância e Adolescência contou com a presença de dois convidados. O primeiro foi o psicanalista Alberto Cesar Cabral, da Associação Psicanalítica Argentina, que tratou do tema relacionado aos padecimentos extremos em crianças e adolescentes. Além dele, contou com a participação da psicanalista Analia Wald, da Associação Psicanalítica Argentina, cuja expe-riência com ambientes de alta vulnerabilidade social, incluindo seus conhecimentos no campo das dificuldades de aprendizagem e trabalho em saúde mental hospitalar, foi mais uma oportuni-dade de ampliar o debate sobre o tema proposto.

A aproximação ao complexo tema dos padecimentos extremos foi inicialmente apre-sentada pelo Dr. Cabral, que construiu sua reflexão reunindo e articulando saberes da sociologia, filosofia e psicanálise. Seu objetivo foi chamar a atenção para a sobredeterminação entre os padecimentos que acometem crianças e adolescentes - no limite, o suicídio - e o progressivo empobrecimento dos ideais que se orientem para o desejo de viver.

Existe como que uma orfandade simbó-lica correlata a um registro do sem-sentido e um enfraquecimento gradativo de recursos

simbólicos para enfrentar as inquietações e angús-tias de um viver que não encontra uma comunidade forte capaz de alojar as novas gerações.

No coração da clínica, segundo Cabral, encontramos um deslizamento da função paterna, outrora autoritária, para um “amiguismo” igualitário, uma espécie de “culpa de proibir” e que reforça a orfandade simbólica. Esta última, conjugada à desorientação dos pais contemporâneos, traduz uma tendência à socialização adolescente pela via sintomática. Os frequentes episódios de alcoolismo grupal, consumo de drogas, epidemias de suicí-dios e generalização dos transtornos alimentares são apenas alguns exemplos da precariedade de ofertas identificatórias do mundo adulto.

Segundo o psicanalista, numa época em que os laços familiares e sociais encontram--se como que afrouxados, a tarefa para a qual somos convocados é a de instalar o gozo de viver. Esse parece ser um tema ainda pouco debatido, muito embora possamos tangenciar a potência de seu significado.

O antropólogo David Le Breton, citado por Cabral, discute a noção de acting-out no universo adolescente. Propõe uma ressignificação para atos de passagem, situações em que os ado-lescentes construiriam, por seus próprios meios, condutas em que verificariam sua consistência, sua inteireza, sua virilidade, sua feminilidade, etc. Atitudes que sancionam o trânsito entre os dois mundos, que recuperem o sentido do porvir.

Com sua larga experiência no campo da saúde mental, a reflexão da Dra. Analia Wald perpassou o tema das fronteiras, entendendo a psicanálise como um pensamento vivo que não diferencia entre as paredes do consultório e a prática clínica institucional. Assim, também devemos transitar

por fronteiras mais fluidas no enfrentamento com a universalidade de nossos modelos teó-ricos. A sexualidade, por exemplo, passa a ser um dos campos privilegiados em que assistimos transformações nas subjetividades contemporâ-neas, desde o binarismo até um regime marcado por pluralidades, diversidade e fluidez, tanto no campo identificatório quanto nos posicionamen-tos desejantes e nas parentalidades.

A Dra. Analia Wald propõe ainda que pense-mos a psicanálise como um discurso essencial ao pensamento crítico, discurso este que ceda lugar a outras lógicas que não impliquem em exclusão.

No mês de setembro, a SPPA contou com a presença do Dr. Bernard Golse, que palestrou para uma ampla plateia sobre o tema “Do corpo ao pensamento”. Para Golse, a psicanálise é uma só, não existindo uma psicanálise de adultos e outra de crianças e adolescentes. Ele complementou dizendo que a psicanálise do bebê podia trazer novas luzes para essa disciplina.

Também acredita que a dedicação ao corpo do bebê remete a uma qualidade de escuta toda especial na medida em que os bebês colo-cam o corpo em primeiro plano, bem como é o locus privilegiado de expressão do vínculo humano. O retrato do vínculo, inclusive, ante-cede o retrato figurativo do objeto.

A teorização psicanalítica sobre os bebês e seu vínculo com os cuidadores e com o mundo tem contribuído fortemente não apenas para a qualificação psíquica nos contextos familiares, mas também nos institucionais.

Rui de Mesquita Annes, Tula Bisol Brum, Alberto César Cabral (APA) e Analía Wald (APA)

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Pensar o calendário científico de uma ins-tituição psicanalítica é uma tarefa complexa: precisamos incluir diferentes modelos teóricos e, ao mesmo tempo, oferecer atividades que apre-sentem outros elementos que fazem parte da constituição do humano. Essa reflexão não ocorre somente em nossa Sociedade. Em julho desse ano, em um encontro dos diretores científicos das sociedades componentes da IPA, debateram-se as metas a serem buscadas no planejamento cientí-fico dos próximos dez anos. Dentre as propostas discutidas, algumas já estão sendo contempla-das em nosso calendário científico. Apresento algumas das atividades ocorridas neste segundo semestre, as quais despertaram muito interesse entre nossos colegas, bem como estimularam o desejo de que os ricos debates pudessem ser ampliados através de novos encontros.

A primeira atividade que destaco neste sen-tido, denominada Controvérsias, teve como tema “Édipo em debate". A proposta foi, através da observação do entendimento sobre o Complexo de Édipo nas diferentes escolas psicanalíticas, poder-mos reconhecer os detalhes apresentados por cada modelo teórico, de maneira a compreender melhor a teoria e, a partir daí, a sua aplicação prática.

Também realizamos o debate “Psicanálise e Pesquisa: interlocuções possíveis”, no qual trouxemos à pauta a discussão do pesquisar em Psicanálise: quais são as possibilidades? O que já existe sendo realizado? Aproveitou-se também para abordar a história da pesquisa em nossa Sociedade, entre outros desdobramentos do tema. Enfim, um debate inicial, feito com o intuito de estimular o pensamento sobre o assunto e promover o interesse dos colegas em engajar-se em pesquisas, uma das

diretrizes da IPA para os próximos dez anos. Em outra vertente, mantendo nossa tradição

de realizar atividades que privilegiem o pensar a clínica, propusemos um rico e interessante debate preparatório para o Congresso Bion 2020, que ocorrerá em Barcelona. Seguindo o tema do Congresso, realizamos a atividade “A intuição em uma supervisão com Bion” na qual, a partir de uma supervisão realizada com o próprio, gentilmente cedida pela colega Gisele de Matos Britto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Minas Gerais, nos foi possível pensar este tema complexo para a Psicanálise que é a intuição, não só do ponto de vista teó-rico, mas ricamente entrelaçada com a clínica.

Enfim, mais um semestre de muito trabalho, mas com um ganho certo na instrumentalização de todos nós para a prática clínica.

O Núcleo de Estudos em Psicoterapia Psicanalítica de Passo Fundo nasceu em 1986, chamado GEPP, para estudar e melhor com-preender a Psicanálise. O grupo vingou e em 2002, foi procurado pelo Psicanalista da SPPA Antônio Carlos Pires, para divulgar a Psicanálise no interior do RS. Assim, iniciou-se uma parceria com a instituição porto-alegrense, a qual, na época, ainda era inatingível para muitos.

Primeiro grupo de estudos da SPPA no interior, o NEPP - PF congrega hoje 50 partici-pantes (sócios e aspirantes). O vínculo de afeto e a busca inquietante pelo saber psicanalítico ficaram sólidos e cada vez mais íntimo com os

profissionais da SPPA, especialmente com aque-les que coordenam os seminários mensais em Passo Fundo. Não apenas eles rodam quilôme-tros partilhando a teoria que acreditam. Muitos participantes vêm de municípios distantes em busca de aperfeiçoamento teórico/técnico, trocas de experiências e recursos para consti-tuírem-se em pessoas e profissionais melhores e, assim, prosseguirem cuidando do que há de mais precioso: o ser humano e o seu psiquismo.

O NEPP-PF cresceu comprometido com a ética e consolidou-se legalmente como associação. Realiza seminários em três modalidades: um grupo para o estudo de teoria e da técnica psicanalítica, um apro-

fundado no estudo da obra de Thomas Ogden, e um dedicado a fundamentos metapsicológicos. Desde 2016, o NEPP-PF realiza um simpósio anual, com a colaboração da SPPA. Nutrimos e zelamos por este vínculo, pois acreditamos que é na troca de ideias entre os membros e pensadores da Psicanálise que os psicoterapeutas e psicanalistas se desenvolvem e se instrumentalizam para a prática clínica, tão desafiadora na atualidade. Buscamos o crescimento, baseado no espírito de curiosidade, inquietação com o novo e desejos de aprofundar o conhecimento de diversas teorias que norteiam o cenário psicanalítico contemporâneo.Dirlene Baruffi – Coordenadora Científica NEPP

SPPA projeta seu calendário científico

SPPA e NEPP – Passo Fundo: a Psicanálise e seus vínculos!

Diretoria Científica

Após quatro anos como diretora de publicações, dois na gestão de Maria Lucrécia Zavaschi e dois na gestão de Zelig Libermann, encerro minha participação agrade-cendo a oportunidade e a todos que comigo trabalharam, com parceria e dedicação, no Jornal, na Revista, no Site, no Boletim, na Comissão de Memória, no Clube de Revista, na Biblioteca e na Coleção SPPA.

Foram muitas conquistas e contribuições para aprimo-rar cada um desses segmentos. Para brindar à despedida destaco a retomada da Coleção SPPA neste ano em parceria com a Editora Dublinense com o lançamento dos

livros Primeiro o corpo de Christophe Dejours e Perder a cabeça de Giuseppe Civitarese.

Também o lançamento dos Drops da Psicanalítica no Site da SPPA, criado pela comissão editorial do Site. São trechos de entrevistas desdobradas que transmitem de forma lúdica a experiência de colegas psicanalistas da SPPA dedicados e envolvidos na tarefa de expandir a psicanálise em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, no Brasil, nas Américas e no mundo.

Agradecimento e novidades da Diretoria de Publicações

Tula Bisol BrumDiretora de Publicações da SPPATula Bisol Brum

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Os traumas infantis silenciosos nas relações familiaresAté poucas décadas, o sofrimento dos bebês, tanto físico como psíquico, não era reconhecido. Acreditava-se que eles não enxergavam, nem escutavam; tampouco usufruíam de sensações gustativas, táteis ou olfativas. Também não vivenciavam agonias, emoções, dor, angústias, medo, como as crianças maiores e os adultos. Por isso, até procedimentos invasivos eram e seguem sendo realizados sem anestesia.

Seres invisíveis, nasciam sem permissão de viver com uma individualidade. Muitas vezes, vinham ao mundo para cumprir um destino de substituição, preencher vazios. Por outro lado, os bebês sempre exerceram um fascínio porque encerram mistérios da origem da vida, dos sentimentos e do funcionamento primitivo da mente e suas transformações. Vários profissionais que atuam ou atuaram na primeiríssima infância propuseram-se a desvendar o bebê ao vivo: quem ele é, como é, como sente e vive. E mesmo correndo o risco de perderem-se no desconhecido, romperam tabus, venceram desafios e, mais à vontade, entraram e passaram a circular mais livremente no mundo dos bebês e suas mães. O resultado foi um grande legado, responsável por importantes avanços no conhecimento sobre o bebê, cuja dependência é total – a vulnerabilidade, a indiscriminação, a imaturidade e o desamparo são reais, concretos e crus.Esses autores iluminaram as modalidades de comunicação primitiva, a estruturação psíquica e o desenvolvimento emocional primitivo. No conjunto pais-bebê, é relevante a forma intricada de comunicação que se

estabelece. Os bebês utilizam linguagem não-verbal, corporal, primitiva, e transmitem mensagens emocionais através de expressões corporais, mímica, olhares, gestos. Estes ativam respostas da mãe por meio da mímica, dos sons, do timbre, da intensidade, do ritmo, do silêncio, ou seja, de aspectos não verbais, inconscientes, de sua fala. É isso que toca emocionalmente o bebê, criando, desde muito cedo, uma ligação especial entre os dois. As falhas no tom, na harmonia dessa comunicação, originam traumas muito precoces devido ao despreparo do bebê. Essa relação é importante não só por permanecer para sempre, com suas marcas e sequelas psíquicas, mas também porque é o núcleo das transferências primitivas presentes em qualquer tratamento com pacientes adolescentes e adultos. Com os pequenos, estas transferências são mais centrais e intensas porque incluem a presença física e emocional de todos os participantes do início da vida, com seus desejos, expectativas, conflitos e frustrações. Com frequência, compartilhamos difíceis vivências transferenciais/ contratransferenciais provocadas pelas precoces e graves falhas ambientais e patologias familiares – geralmente egossintôncias –, que invadem nosso consultório, nas quais estão inseridos nossos pequenos pacientes. É estranho pensarmos em situações já estruturadas, em se tratando do infans. O fato é que ele apresenta, desde sempre, sinais e sintomas que envolvem todo o grupo familiar, em uma estranha sintonia. São ambientes esquisitos, por vezes bizarros, com pais fisicamente presentes e afetivamente ausentes. Essa ausência, na verdade, contém negação, ódio, falsidade, formação reativa, que atacam a percepção da criança. É um mundo desconcertante, com relações familiares patéticas. Há uma inadequação nas atitudes, nas respostas,, uma

falta de sensibilidade e empatia que, às vezes, culminam em desrespeito, invasão, maus tratos. Assim, tanto a saúde quanto a doença nascem nessas relações familiares iniciais, agora presentes no tratamento da criança. Frequentemente, o paciente não existe, ainda não está, não tem espaço físico nem emocional nesta situação. É ignorado pelos pais, que não conseguem escutá-lo, identificar-se com o seu sofrimento e desespero. Torna-se simples depositário de aspectos negados e cindidos da história familiar. Esse conjunto mobiliza, impacta e cria uma das situações mais difíceis, tristes e exigentes para quem exerce a psicanálise nessa área. Como podemos acolher essas almas soterradas nas patologias familiares silenciosas, mudas? O objetivo não é culpar nem acusar ou julgar os pais, mas sim enfrentarmos os desafios de nos equiparmos para encontrarmos maneiras mais efetivas para diminuir a dor emocional e possibilitar a retomada de um desenvolvimento saudável da criança. Ser um aliado e testemunhar o seu sofrimento, validar a sua percepção, respeitá-la em sua singularidade e etapa de vida.

Nara Amália Caron Psicanalista da SPPA

Como podemos acolher essas almas soterrados nas patologias familiares silenciosas, mudas?

Artigo

1 Dedicados à psiquiatria do bebê, à psiquiatria de crianças, à psicologia do desenvolvimento e à psicanálise de crianças: D.W. Winnicott; E. Bick; F. Dolto; E. Tronick; C. Trevarthen; D.N. Stern; J. Bowlby; M. Mahler; S. Lebovici; R. Spitz; S. Fraiberg; B. Cramer; F. Palacio-Spaza; B. Golse; R. Roussillon.

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No segundo semestre de 2019, a SPPA esteve presente em várias atividades culturais de nossa cidade, enfatizando, assim, o valor atribuído ao produtivo intercâmbio entre a Psicanálise e a Cultura.

A SPPA participou de debates com o teatro nas peças “Todo mundo tem um sonho”(Porto Alegre em Cena), um espetáculo encenado por mais de noventa jovens com deficiência intelectual, e “TOC - uma comédia obsessiva compulsiva”, peça dirigida e encenada por atores gaúchos.

Através da parceria Smed/Pescar, tivemos ainda a oportunidade de debater o filme “Assunto de família”, obra cinematográfica japonesa que trata

de importantes questões sobre famílias que vivem em situa-ções de vulnerabilidade social.

O Café Literário da Psi-canalítica abordou uma série de autores e as suas obras, entre os quais Shakespeare, Hemingway, J. M Barrie e Agualusa, oportu-nizando reflexões e debates que envolveram Psicanálise e Literatura.

O já consagrado espaço oferecido pela SPPA - Ciclo de Estudos -, para que estudan-tes e profissionais aprofundem conhecimentos relacionados à Psicanálise, neste semestre centrou-se predominantemente em Freud e Bion.

Além disso, atividades como o Simpósio da Infância e Adolescência, a conferência de Bernard Golse e as nossas reuniões científicas tiveram a gratificante possibilidade de contar com um público expressivo na sede da SPPA.

Reflexões sobre psicanálise e cultura em pauta

Relações com a Comunidade

Café Literário debateu: Shakespeare, Hemingway,

J.M Barrie e Agualusa

Com o número temático de dezembro, Psicanálise e Comunidade, encerram-se as publicações deste ano de 2019, assim como se despede a atual editora Lúcia Thaler, dando lugar ao colega Renato Lucas, que assumirá o cargo de editor da Revista de Psicanálise da SPPA a partir de janeiro de 2020.

Psicanálise e Comunidade foi o resultado de um trabalho conjunto do Conselho Editorial e dos grupos de trabalho da SPPA com a Secretaria Municipal de Educação (SMED) e com o Projeto Pescar, tendo sido idealizado a partir do Simpósio de Vulnerabilidade Social realizado na Sociedade em outubro de 2018. Objetivou-se apresentar os trabalhos de psica-nálise aplicada e de cunho social desenvolvidos em nossa comunidade, bem como divulgar tra-balhos de interesse antropológico e histórico que foram apresentados no referido Simpósio.

Os três números programados para 2020 são Neurose em abril, D. W. Winnicott em agosto e Ética e Psicanálise em dezembro. Em breve serão

divulgados os temas previstos para 2021, os quais poderão ser consultados tanto no site da Sociedade e da Revista quanto em seu Boletim eletrônico.

Como de costume, a Revista convida os interessados, tanto em publicar artigos relati-vos aos temas programados quanto outros que sejam também de interesse da Psicanálise, para que submetam suas contribuições no site da SPPA, na plataforma Seer, ou através do e-mail [email protected].

No que concerne às atividades da Revista em sua interface com a cultura e com a comunidade, esta se fez presente mais uma vez na Feira do Livro de Porto Alegre, em parceria com a Câmara Rio-Grandense do Livro, no dia 17 de novembro passado. A atividade escolhida para esta ocasião foi um sarau, denominado de Leonardo da Vinci, este curioso ser humano. Objetivou-se, assim, em sintonia com a Câmara Rio-Grandense do Livro, homenagear este gênio da humanidade, bem como pensar sua obra com sensibilidade, partindo de um olhar artístico e psicanalítico.

Nota da Revista

Revista de Psicanálise

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