Institucionalizações e colapsos de sentido nas organizações

21
Institucionalizações e colapsos de sentido nas organizações Rogério Ferreira de Andrade * Universidade Lusófona Índice 1 Fábrica de produtos tecnológicos 3 2 O sentido que as narrativas transpor- tam 4 3 Processos de institucionalização 7 4 Vontade de comunicação e vontade de instituição 12 5 Vulnerabilidades, erosões e colapsos de sentido 15 6 A concluir... 19 7 Referências 20 "Processes and sequences and routines and patterns, the stuff of the world, tend to repeat themselves. Problems are simply moments of interruption in a process. When the interruption is repaired, under the guise of problem solving, the process continues to unfold and the vulnerability to interruption crops up again". (Karl Weick, in: Sensemaking in organizations, 1995: 188/9) As organizações, em particular as que ac- tuam em mercados emergentes, aspiram a institucionalizar um edifício público de me- mória que as torne menos vulneráveis. Para * Lisboa, 7 de Fevereiro de 2000 compreender estes processos de instituciona- lização, isto é, a comunicação narrativa, li- túrgica que desenvolvem, acompanharemos o trajecto da SysGlobal, uma empresa por- tuguesa de engenharia de sistemas que, no início da década de 90, procurou instituci- onalizar dois conceitos centrais inscritos no seu brasão comercial: o conceito de "Pro- duto Tecnológico"e o conceito de "Fábrica de Produtos Tecnológicos". Mostraremos ainda como a SysGlobal, apostando na inte- gração de sistemas industriais, supostamente um terreno de negócio ainda relativamente vago, não conseguiu superar algumas vulne- rabilidades, as quais, acentuando-se, condu- ziram ao colapso de sentido do seu projecto e ao próprio colapso físico da empresa - afinal duas faces de uma mesma realidade. Quando saí da SysGlobal 1 , naquela ma- nhã fria, observei mais demoradamente o edifício: uma fábrica de produtos tecnoló- gicos? uma fábrica "pós-moderna"? Evo- quei, por momentos, as fábricas da minha infância e perguntei-me que sentido tinha tudo isso, agora que quase desapareceram os muros à volta das fábricas, como desa- pareceram as chaminés de tijolo e as sire- 1 Nome fictício que atribuímos à empresa por ra- zões óbvias.

Transcript of Institucionalizações e colapsos de sentido nas organizações

Institucionalizações e colapsos de sentido nasorganizações

Rogério Ferreira de Andrade∗

Universidade Lusófona

Índice

1 Fábrica de produtos tecnológicos 32 O sentido que as narrativas transpor-

tam 43 Processos de institucionalização 74 Vontade de comunicação e vontade de

instituição 125 Vulnerabilidades, erosões e colapsos

de sentido 156 A concluir... 197 Referências 20

"Processes and sequences and routines andpatterns, the stuff of the world, tend to

repeat themselves. Problems are simplymoments of interruption in a process. Whenthe interruption is repaired, under the guiseof problem solving, the process continues tounfold and the vulnerability to interruption

crops up again".(Karl Weick, in: Sensemaking in

organizations, 1995: 188/9)

As organizações, em particular as que ac-tuam em mercados emergentes, aspiram ainstitucionalizar um edifício público de me-mória que as torne menos vulneráveis. Para

∗Lisboa, 7 de Fevereiro de 2000

compreender estes processos de instituciona-lização, isto é, a comunicação narrativa, li-túrgica que desenvolvem, acompanharemoso trajecto da SysGlobal, uma empresa por-tuguesa de engenharia de sistemas que, noinício da década de 90, procurou instituci-onalizar dois conceitos centrais inscritos noseu brasão comercial: o conceito de "Pro-duto Tecnológico"e o conceito de "Fábricade Produtos Tecnológicos". Mostraremosainda como a SysGlobal, apostando na inte-gração de sistemas industriais, supostamenteum terreno de negócio ainda relativamentevago, não conseguiu superar algumas vulne-rabilidades, as quais, acentuando-se, condu-ziram ao colapso de sentido do seu projecto eao próprio colapso físico da empresa - afinalduas faces de uma mesma realidade.

Quando saí da SysGlobal1, naquela ma-nhã fria, observei mais demoradamente oedifício: uma fábrica de produtos tecnoló-gicos? uma fábrica "pós-moderna"? Evo-quei, por momentos, as fábricas da minhainfância e perguntei-me que sentido tinhatudo isso, agora que quase desapareceramos muros à volta das fábricas, como desa-pareceram as chaminés de tijolo e as sire-

1Nome fictício que atribuímos à empresa por ra-zões óbvias.

2 Rogério Ferreira de Andrade

nes que ritmavam o trabalho desde a revolu-ção industrial? Onde estavam as máquinas,a linha de montagem, a atmosfera fabril daSysGlobal? Lá dentro, apenas notara soli-tários investigadores em ambiente de "openspace"."Veja de outra maneira o que faze-mos aqui", disse-me, entusiasmado, um dosresponsáveis. "Pense-nos como uma fábricahigh-tec, uma fábrica de produtos tecnológi-cos". Eis, então, o desafio de comunicaçãoque, como um balbucio, me fora colocado:provocar uma queda abrupta do digital noanalógico, como forma de ajudar a nova em-presa a narrar-se e a integrar-se numa comu-nidade de interesses estabelecidos onde am-bicionava vingar.

Seria demasiado simples reduzir este epi-sódio a um pedido de criação de uma em-presa retórica2, já que, nesse caso, nada ha-veria de novo, pois tal tarefa tem cabido,desde sempre, à publicidade. O que me pe-diam tinha um outro alcance. Não era umamera citação, um enxerto imaginativo desentido modernista naquela aventura "pós-moderna"protagonizada por uma empresa deengenharia de sistemas à procura da melhorcomunicação com os clientes. Propunham-me que participasse na ocupação de um ter-reno de negócios que a SysGlobal conside-rava relativamente vago e, simultaneamente,nas cerimónias - entenda-se, nas sessões in-ternas - em que se procurava institucionalizaros sentidos estratégicos que diferenciariamtal empreendimento de outros afins e o tor-nariam singular, ou seja, uma vitória do lu-

2Para analisar a conflitualidade entre a "produçãoretórica"e a "produção técnica"de uma organização,ver o excelente artigo de Zbaracki, Mark, "The rhe-toric and reality of Total Quality Management", in:Administrative Science Quarterly, Vol. 43(3),1988:602-636.

gar sobre o tempo, na excelente definição deestratégia proposta por Michel de Certeau.3

Em contraponto à monumentalidade doque é edificado, ou à retórica dos discur-sos, existem sempre estes momentos "mo-les", quase fusionais, na criação das empre-sas e das suas estruturas, momentos em queo sentido se procura e se estabiliza, ou antes,em que se institui numa narrativa possívelde entre as múltiplas narrativas consideradasplausíveis pelos instituidores (fundadores ouestrategos). Sejam ou não evidentes, as vul-nerabilidades estão já inscritas no que é insti-tuído, ameaçando-o e levando a instituição aproteger-se. No entanto, um dia, sob a formade uma mudança na estrutura ou no seu sis-tema simbólico, a erosão e o colapso virão,porque outros instituidores não deixam de seimpacientar no útero do tempo4. Uma vi-tória do tempo sobre o lugar, diríamos nós,invertendo a fórmula de Certeau.

Neste nosso artigo relataremos alguns epi-sódios da saga da SysGlobal em buscada institucionalização dos seus produtos,bem como da sua própria institucionalizaçãocomo actor empresarial. Poremos em desta-

3Michel de Certeau não deixa de nos inspirar decada vez que regressamos aos seus textos. A passa-gem completa em que se insere a frase é a seguinte:"Chamo estratégia o cálculo (ou manipulação) das re-lações de forças que se torna possível a partir de ummomento em que um sujeito de querer e de poder(uma empresa, um exército, uma cidade, uma insti-tuição científica) é isolável. Ela postula um lugar sus-ceptível de ser circunscrito como um próprio e ser abase de onde gerir as relações com uma exterioridadede alvos ou de ameaças (os clientes ou concorrentes,os inimigos...)". O comentário que Michel de Certeaufaz em seguida parece-nos carregado de ironia, de dis-tância crítica: "este gesto cartesiano consiste em iso-lar uma singularidade num mundo enfeitiçado pelospoderes invisíveis do Outro"(Certeau,1990: 59).

4A expressão é de Henry Miller.

www.bocc.ubi.pt

Institucionalizações e colapsos de sentido 3

que o papel do sentido e das narrativas nosprocessos de institucionalização, bem comoa articulação destes com a esfera da comu-nicação. Para a elaboração do artigo re-corremos a entrevistas com responsáveis etécnicos da SysGlobal, realizadas quer em1990, quer em 1999, tendo consultado di-versa documentação escrita da empresa (bu-siness plans, relatórios, publicidade, entreoutros).

1 Fábrica de produtostecnológicos

Regressemos à SysGlobal e ao momento emque esta ensaiava dar um sentido ao que fa-zia. No início da década de 90, a SysGlo-bal - participada maioritariamente por umgrande grupo nacional de telecomunicações- narrava-se como uma empresa portuguesade engenharia de sistemas, manifestando uminteresse vital em diferenciar-se de outras,aliás muito poucas, empresas integradoras desistemas industriais. Apresentava-se comoum parceiro estratégico para o estudo, de-senho, automação e informatização dos flu-xos de informação das empresas suas clien-tes numa perspectiva de Computer IntegratedManufacturing (CIM). O trabalho de enge-nharia consistia em adaptar software genera-lista às necessidades específicas do cliente,visando a gestão integrada de todas as esfe-ras associadas à produção, desde o planea-mento às matérias primas, à contabilidade,às vendas, aos stocks ou ao design.

A SysGlobal conhecia bem os seus princi-pais oponentes e marcava as diferenças. Osconcorrentes directos da SysGlobal na inte-gração de sistemas industriais eram a Unisoft(Unisys), a Edisoft (Philips), Megasis (Tap e

Grupo Ilídio Pinho), Digitec (Ipe) e a Intersis(Autosil). Àcerca de dois deles, a empresaopinava: a Megasis ("engenheiros de infor-mática administrativa, sem conhecimento domeio industrial") ou a Siemens ("oferecemprodutos importados, que já foram feitos emqualquer outro lado do mundo e são aplica-dos aqui"). De caminho, traçava um quadrorelativamente sombrio das pequenas e mé-dias empresas da indústria nacional, suas po-tenciais clientes, identificando alguns déficesestruturais: "pouca engenharia, muitas vezesnão há sequer um engenheiro nas empresas";"incultura e impreparação tecnológica"; "in-suficiências na organização do trabalho (mé-todos tradicionais de produção)"; "ilhas demáquinas e de automação, sem perspectivade integração (parque de máquinas isoladas,sem ligação entre si ou fracamente interliga-das, por vezes mesmo incompatíveis"); "res-ponsáveis, na sua maioria, autodidactas, queescolhem equipamento por catálogo".

Diga-se, a propósito, que a SysGlobal es-tava consciente do seu pioneirismo e do factode que não haveria ainda um mercado sufici-entemente maduro para receber propostas desistemas e arquitecturas informáticas aber-tas, independentes, sobretudo porque, atémuito recentemente, pontificavam as arqui-tecturas proprietárias, o fechamento infor-mático das empresas sobre si próprias (de-corrente do próprio isolamento dos fornece-dores). A aprovação de normas internacio-nais sobre sistemas abertos veio permitir nãoapenas a compatibilização de computadores,mas também de equipamentos de produçãoindustrial, o que, naturalmente, viabilizou osprojectos empresariais de engenharia de sis-temas orientados para a indústria.

É neste contexto que a SysGlobal dará aconhecer o valor, isto é, o sentido daquilo

www.bocc.ubi.pt

4 Rogério Ferreira de Andrade

que fazia, procurando institucionalizar doisconceitos e, afinal, duas narrativas empre-sariais: a) "Fábrica de Produtos Tecnoló-gicos- nas palavras da própria SysGlobal,essa fábrica de tipo novo "operaria segundométodos criados pela engenharia de siste-mas, sempre em parceria com industriais, re-correndo a diversos fornecedores de equi-pamentos (independência), com padrões dequalidade internacionais (certificação do sis-tema de qualidade) e elevados índices de pro-dutividade ; b) "Produto Tecnológico- aindanas palavras da SysGlobal, era o "conjuntode intervenções integradas a nível de equipa-mentos, software, engenharia e organização,com vista à resolução de um problema espe-cífico de uma indústria".

A empresa apostava em alguns produtosque, em boa verdade, eram ainda projec-tos em investigação ou em desenvolvimento,não tendo obtido suficiente validação porparte do mercado. Alguns desses produtoschegaram a mostrar as sua potencialidades,como foi o caso dos produtos específicospara modernizar a indústria da cerâmica (emunidades de fabricação de tijolo e telha nazona de Leiria) e para indústria dos moldesde plástico ou de vidro (na Marinha Grande).Outros, como o AIDA (ajuda informatizadaao dagnóstico de avarias) ou o SIGEPI (ges-tão de processos industriais) tiveram ensaiosembrionários, respectivamente na Renault enos Laboratórios Jamba; outros ainda, comoo SIREP (um sistema redactorial em portu-guês), destinado a empresas nacionais de co-municação social, não tiveram sequer a opor-tunidade de se estrear.

A narrativa empresarial do negócioexplicitava-se do seguinte modo no businessplan da SysGlobal: "Não existe nenhumaempresa portuguesa integradora de sistemas

que se posicione tão claramente como aGlobalsis, na área industrial, enquantointegradora de sistemas... (Assim), nestecontexto de grande indefinição da concor-rência e crescimento acelerado do mercado,a possibilidade de sermos uma empresalider no mercado português de SistemasIndustriais reside mais na nossa capacidadede aproveitar as oportunidades que abundame menos no posicionamento da concorrên-cia". Muito embora a política da empresafosse"estruturar toda a sua intervenção,segmento por segmento de mercado, emtermos de produtos tecnológicos", o certo éque quer o conceito de "fábrica de produtostecnológicos", quer o de "produto tecnoló-gico"foram insuficientemente trabalhadosnas narrativas que os poderiam alimentar,em particular as do marketing e da publici-dade, pelas dificuldades que enumeraremosmais adiante. Nestas circunstâncias, comoinstitucionalizar satisfatoriamente tais nar-rativas e, sobretudo, como as traduzir emconteúdos de comunicação que insuflassemnos produtos uma vitalidade proporcional aoentusiasmo que animava os engenheiros daSysGlobal?

2 O sentido que as narrativastransportam

As empresas, para além da carne (instituci-onal) e do músculo (organizacional) que asreveste e as torna visíveis, não podem viversem a produção de sentido que as anima, istoé, sem operar distinções ("Fábrica de Pro-dutos Tecnológicos"ou "Software House"?).Nessa construção e interpretação de sentido,quer as organizações quer os indivíduos re-fazem sempre as mesmas questões: o que é

www.bocc.ubi.pt

Institucionalizações e colapsos de sentido 5

"isto"para mim? Para onde me leva "isto"?O que ganho ou perco com "isto"? Que sa-tisfação ou insatisfação me traz? Não nosapressemos a ver quaisquer ressonâncias me-tafísicas nesta apresentação do conceito desentido. O sentido advém aqui e agora, ouantes, é aqui e agora que extraio ou gero si-nais com os sensores e os interpretantes cul-turais e técnicos que consigo reunir. O sen-tido é o que as organizações elaboram comoexperiência a partir desses sinais do presentee nos ambientes sempre porosos em que es-tão mergulhadas. Criar sentido é "criar fac-ticidade, tornar algo sensível"(Weick, 1985:14). Mas criar sentido e interpretar sentidosão duas actividades distintas, se bem queinterligadas, pois para criar (inventar) tenho,primeiramente, de ser um intérprete (desco-bridor) de outros sentidos instituídos ou desinais ainda latentes.

Karl Weick, na esteira de autores da esferainterpretativista como Schutz, Goffman ouGarfinkel, identifica sete propriedades típi-cas de qualquer actividade de criação de sen-tido (sensemaking): a) criar sentido é cons-truir uma identidade; b) essa construção ésempre retrospectiva; c) realizada num con-texto social; d) através da acção e do discursoperformativos, isto é, capazes de criar am-bientes sensíveis ("enactement"); e) a cria-ção de sentido reporta-se a eventos em curso("ongoing events"); f) de onde se extraemsinais ("extracted cues"); g) e guia-se pelaplausibilidade e não pela verdade"(Weick:1995: 61/2). Mas Weick não é verdadeira-mente um interpretativista. Vejamos comoele distingue cuidadosamente as actividadesde "criar sentido"e "interpretar sentido". Aprimeira é mais geral, mais abstracta do quea segunda. A confusão entre ambas pode re-sultar de "um erro de tipos lógicos". Para

o evitar, "a criação de sentido (sensema-king) deve ser separada da classe de activi-dades interpretativas que ela convoca, e colo-cada acima desta classe como um nível maiselevado de abstracção que as inclui"(Weick,1995: 16). Concluimos que a produção desentido é constitutiva, cria o que não estavalá, tem um valor ontológico superior ao dasactividades cognitivas que o procuram colhere ordenar em esquemas ou sistemas de in-terpretação. Um bom exemplo do que aca-bou de se dizer é o "enactement", um dosconceitos, ou antes, um dos processos cen-trais no pensamento de Weick e que deve-mos traduzir como o acto constitutivo (pro-dutivo) que opera pela enunciação e pela au-toridade. Enunciar uma categoria ou uma leié, na verdade, instituir - mesmo que transi-toriamente - um campo de constrangimen-tos, de actos futuros condicionados. Se ao"sensemaking"se segue a criação de um apa-relho normativo e de sanção, isso é ape-nas uma consequência do acto instituidor,do "enactement". Embora sem o reclamarclaramente, Weick aproxima o seu "enacte-ment"de um verdadeiro "processo de institu-cionalização", quer quando não aceita que sefale - como Gareth Morgan - de "sensema-king"enquanto simples metáfora, quer sobre-tudo quando escreve: "a criação de sentido éa fonte que alimenta (the feed stock) o pro-cesso de institucionalização"(Weick, 1995:36).

O sentido global escapa-se-nos sempre.Apenas vemos, experimentamos e compre-endemos quadros, isto é, porções de re-alidade. Produzir ou captar sentidos im-plica que me coloque ou me deixe colocarnuma encruzilhada. Mas quantos caminhoshá numa encruzilhada? Dois, sempre dois,mesmo que comecem por ser muitos. Reen-

www.bocc.ubi.pt

6 Rogério Ferreira de Andrade

contramos a redução binária, isto é, a narra-tiva, isto é, o sentido, isto é, a acção comoformas de explorar, mais factual ou maisimaginativamente, os mundos em que diari-amente nos movemos e se movem as organi-zações.

Os sentidos são instituídos como narrati-vas e passam a circular na organização porredes mais restritas ou mais alargadas. De-veremos considerar como narrativas tanto asleituras estratégicas de mercado e de novastecnologias que os indivíduos levam a efeito,como as decisões sobre participações finan-ceiras, os critérios de promoção dos empre-gados ou ainda as regras, rotinas e valo-res, que são apenas "regras de narração, típi-cas de um dado tempo e lugar"(Czarniawka,1997: 42). Porque se falará tanto de narrati-vas neste meu artigo? Em boa parte porquedesde sempre senti algum fascínio: a) pelosinstantes em que as restituições narrativas deprocessos, acções ou incidentes - isto é, ashistórias que nos contam ou contamos nasconversas diárias que têm lugar na organi-zação, do topo à base - revelam o essencialdo que aí se passa, do que alguns desejariamque se passasse e do que afinal não se che-gou a passar; b) pelo modo como os indi-víduos são tocados por essas histórias, poresses "textos"simultaneamente enunciados eencenados (scripts), e como deles se apro-priam para fazer ou desfazer sentido, paraproduzir acção ou inacção.

As narrativas organizacionais, e o sentidoque transportam, foram já objecto de estudosque realizei anteriormente5. Nesses estudossustentava que os géneros discursivos que

5Ver, por exemplo, o meu artigo "Boatos, rumo-res e zunzuns - informação quente em organizaçõesfrias", Revista de Comunicação Empresarial , No 1,1995: 27- 34.

uma organização produz são múltiplos (nar-rativo, deliberativo, prescritivo, etc) e corres-pondem a especificações funcionais. A nar-rativa, como género, era um deles. Tal comoa entendíamos, a narrativa era a fixação, pelalinguagem, de transformações que ocorremno espaço organizacional e que são contadase seguidas pelos seus membros ou parceiros.

As narrações que se desenrolam a todosos níveis da organização são comunicaçãonarrativa, implicam a construção, pelos in-divíduos ou grupos, de uma tela de experi-ências, tela parcialmente partilhável e a par-tir da qual estes avaliam a sua adesão a va-lores, projectos, assim como as vantagensda sua precipitação na acção. Sublinhava-se, então, o fundo narrativo de todas as nos-sas acções e dos nossos juízos. As históriasque construimos para explorar a realidadesão idênticas às que criamos para comuni-car com os outros. A comunicação narrativaque permanentemente realizamos precisa deinteracções, "alimenta-se"das nossas conver-sas ou, se quisermos, das intrigas ("encruzi-lhadas") que aí criamos ou que nos envol-vem. Bárbara Czarniawska, uma vez mais,resume de forma estimulante o que acabá-mos de referir: "criamo-nos projectando asnossas identidades contra intrigas acessíveis,mas cada perfomance muda, aumenta, dis-torce ou enriquece o reportório de intrigasexistente"(1997: 44). Resulta, então, nanossa perspectiva, que dificilmente acede-mos a níveis mais elaborados ou mais abs-tractos do pensamento sem essa tela narra-tiva prévia onde visualizamos e fixamos onosso trajecto como protagonistas das acçõesem que nos envolvemos, mesmo se a verdadedestas nos escapa ou, aliás, porque a verdadedestas nos escapa. Não acedemos à reflexãoou ao ajuizamento sem contarmos - mesmo

www.bocc.ubi.pt

Institucionalizações e colapsos de sentido 7

se implicitamente, por vezes em monólogoexplorativo - a história dos acontecimentossobre os quais vamos emitir juízos factuaisou avaliativos.

Embora continue a realçar a importânciadesta construção narrativa de uma tela deexperiências (estruturas narrativas de pensa-mento), pretendo ir um pouco mais longeneste artigo sustentando que as narrativas seincluem em processos mais amplos - os pro-cessos de institucionalização. De facto, asnarrativas assumem um papel fundamentalnos processos de institucionalização porque- dito, com Goffman, em forma de parábola- "semeamos histórias ao vento"e esperamosque elas "protejam a estabilidade do universoe a nossa própria estabilidade"(Goffman,1974: 23).

3 Processos deinstitucionalização

O modo como temos apresentado o trajectoda SysGlobal pode, talvez erradamente, dara ideia de que os conceitos de "fábrica"e de"produto tecnológico"eram consensuais, quehaveria, de alto a baixo, uma consonânciaentre todos os actores da empresa quanto àsestratégias de investigação e de negócio aseguir. Ora, isso não correspondia à reali-dade. Na verdade, às empresas jovens comoa SysGlobal que, no início da década de 90,começavam a operar no domínio dos siste-mas e das tecnologias de comunicação e deinformação, colocavam-se problemas novos,os quais, como veremos, não eram de fá-cil superação. A institucionalização da pró-pria empresa no mercado era problemática.Analisando, uma vez mais, o business planda SysGlobal, pode ler-se: "Devido ao forte

atraso tecnológico da indústria portuguesa,prevê-se forte investimento no triénio 90-92em novo equipamento produtivo, o que per-mitirá a sustentação e crescimento do mer-cado da integração, organização e gestão in-dustriais a partir de 1993". Ora, porque nãoesteve a SysGlobal à altura deste cenário op-timista? Porque falharam os processos deinstitucionalização que ensaiou?

Todas as organizações, ocupem-se elas dolucro ou da dádiva, sejam fortemente cen-tralizadas ou em rede, aspiram à institucio-nalização, a tornar-se, pelo menos na esferasimbólica, verdadeiras "armaduras de ferro",isomórficas (DiMaggio e Powell, 1991: 63).No entanto, a vertigem da mudança obriga-as a actualizações contínuas de si-mesmas,isto é, à produção de sucessivas versões desi-próprias, da sua identidade e do sentido donegócio ou do serviço social que desenvol-vem, o que acaba por comprometer a dese-jada estabilização institucional. Uma versãoinovadora da instituição é-nos proposta noartigo "Sobre extituciones: reflexiones críti-cas para la psicología social de las instituci-ones"(in: Tirado, Francisco; Domènech, Mi-quel, publicado na Revista da Universidad deGuadalajara, No 11, 1998). Uma curiosa teseem que os autores, partindo da instituciona-lização como forma de criar condições parahabitar, literalmente, edifícios (com as suasnormas e hábitos), propõem em seguida, ins-pirados em Serres, o conceito e a prática daextituição. Uma extituição "requer ser pen-sada longe do edifício, do plano arquitectó-nico e da geometria ou, melhor dito, da to-pografia... Toma a configuração de uma rede,de uma amálgama de conexões e associaçõesmóveis. O que conta são as vizinhanças, pro-ximidades, distâncias, adesões ou relaçõesde acumulação... E todos estes movimentos

www.bocc.ubi.pt

8 Rogério Ferreira de Andrade

locais e descontínuos têm um efeito global.Esses mesmos movimentos geram uma tota-lidade, frágil, incerta, mutável, mas no fimde contas totalidade, ordenação". De que fa-lamos? Da experiência de constituição deuma rede de suporte psiquiátrico comunitá-rio integrada no projecto de saúde mental daCatalunha. O que se quer pôr em relevo? Anão existência de "um edifício central comoreferência, de uma oposição dentro/fora". Ea conclusão? Trata-se de dar conta de umaexperiência que "não obedece a um esquemainstitucional, mas extitucional".

A novidade está do facto de que institu-cionalizar, e sobretudo "extitucionalizar", jánão significam, para as organizações actu-ais, cristalizar ou burocratizar. É pela insti-tucionalização ou micro-institucionalizaçãode um sentido, e das respectivas narrati-vas que o transportam, que as organiza-ções, aliás como os indivíduos, criam umcampo de influência, estabelecem uma "cota-ção"ou reputação, procuram fundar um valorpelo qual possam ser avaliadas num mercadoeconómico, numa praça financeira ou numa"bolsa"de opinião pública ou privada.

A SysGlobal, também ela, procurava ins-titucionalizar um imaginário narrativo repe-tidamente convocado sempre que, em Por-tugal, nos confrontamos com "terrenos va-gos"e causadores de ansiedade colectiva. Éassim que, nas suas brochuras promocionais,vemos aparecer, entre outros elementos te-máticos, a saga dos descobrimentos ("os por-tugueses das descobertas marítimas integra-ram conhecimentos produzidos de forma dis-persa, utilizando-os com elevado nível dequalidade", o sublinhado é nosso) e, por ou-tro lado, a filiação numa linhagem ilustrede conceptores portugueses que passava porBartolomeu de Gusmão e a sua passarola,

bem como pelo génio do arquitecto Cassi-ano Branco, que tantas obras deixou em Lis-boa. Afinal, os engenheiros de sistemas, àsemelhança dos seus antepassados descobri-dores ou dos arquitectos seus contemporâ-neos, apresentam-se como "conceptores deprojectos, de sistemas integrados". A pró-pria assinatura da empresa ("Gerir a inova-ção, gerar a confiança") desejava contribuir,deliberadamente, para alimentar um discursosobre a inovação tecnológica (gerir a instabi-lidade, a incerteza e o risco dos "saltos tec-nológicos"), discurso esse que, repetindo-se,tornava-se uma peça importante no processode institucionalização dos produtos e, tam-bém, da identidade da empresa.

Sem pretendermos ser fastidiosos, enume-remos alguns dos meios que a SysGlobalmobilizou no processo de institucionaliza-ção6 da própria empresa e dos seus produ-tos, desde a fase de habitualização à fase,aliás nunca verdadeiramente atingida, da se-dimentação: a) apoiar-se numa "teia de êxi-tos"que resultasse da aplicação bem suce-dida dos seus produtos tecnológicos em pe-quenas e médias empresas (com o que terá

6Sobre processos de institucionalização, nomea-damente as várias fases que os constituem e as ero-sões a que estão submetidos, ver os seguintes textos:1) Tolbert, Pamela; Zucker, Lynne, "The institutiona-lization of institutional theory", in: Clegg, Stewart;Hardy Cynthia; Nord, Walter (org.), Handbook of Or-ganization Studies, ed. Sage, 1996; e 2) Crossan,Mary; Lane, Henry; Roderick, White, "An organi-zational learning framework: from intuition to insti-tution", in: Academy of Management Review, Vol.24, 1999: 522-537. Interessará comparar estas duaspropostas relativas ao desenvolvimento de processosde institucionalização. Em 1), as fases de qualquerprocesso de institucionalização são: inovar habituali-zar, objectificar, sedimentar; em 2) e aproximando-semais das nossas próprias posições: intuir, interpretar,integrar e institucionalizar.

www.bocc.ubi.pt

Institucionalizações e colapsos de sentido 9

obtido alguns resultados no sector da cerâ-mica) de modo a provocar um efeito mimé-tico junto de industriais; b) promover liga-ções certas a centros tecnológicos, universi-dades, ao ministério da indústria e tecnolo-gia (PEDIP, CDC-Centros de Competência);c) privilegiar os laços com associações in-dustriais; d) intervir pessoalmente a nível detop management de médias e grandes empre-sas; e) participar, com artigos técnicos ou dedivulgação, em revistas especializadas e se-minários; f) alimentar uma rede de delega-dos comerciais nos principais centros indus-triais e que, pela proximidade, pudessem ge-rar confiança nos responsáveis empresariaistecnologicamente impreparados; g) demons-trar, nas unidades industriais, o valor dosseus produtos tecnológicos e das suas apli-cações concretas.

A vontade de institucionalizar, isto é, detornar algo uma instituição, revela a ne-cessidade muito antiga de os indivíduos edas suas organizações assegurarem a esta-bilidade de condutas, ganharem um "centrodo mundo"(o que, para uma empresa, seriapor exemplo ocupar um lugar privilegiadono espaço ou na rede interorganizacional emque se inclui). Por essa razão é que, ape-sar de respeitáveis teses em contrário, sus-tento que o "fim das narrativas"é ainda umasuculenta narrativa. Aliás, as narrativas apo-calípticas, sobretudo as marcadamente anti-narrativistas, são, no presente, as mais bemsucedidas, pois transportam o sentido quequeremos ouvir: nada vai bem, refaça-se ocosmos colocando-nos no centro (Eliade).No entanto, correndo subterraneamente, ésempre a narrativa primeira que regressa - ado tempo, a da incerteza e das encruzilhadas

da existência, seja a dos indivíduos ou a dasorganizações.7

Uma instituição, num sentido lato, é a ti-pificação recíproca de acções habituais (Ber-ger e Luckmann), a repetição ritual de umpadrão (Tolbert e Zucker) ou as regras cultu-rais que conferem sentido colectivo e valor aentidades e actividades particulares (Meyer,Boli e Thomas). Para nós, institucionali-zar é produzir uma distinção de sentido quese repete e, repetindo-se, adquire um esta-tuto, uma legitimidade consentida aos olhosde uma comunidade existente (p. ex., umacomunidade empresarial) ou suposta (p. ex.,a comunidade científica), implicando ainda,

7Talvez devamos acrescentar algo sobre o aprisio-namento a que, para alguns autores, as narrativas sub-metem o sentido e, em consequência, como devemosencontrar outras formas de "alojar "o sentido sem otrair, outros novos géneros que não as narrativas. Nãodeixa de ser interessante que é no cinema, e pela penadaqueles que escrevem sobre cinema, que encontro aspáginas mais estimulantes sobre este debate entre nar-rativismo e anti-narrativismo. Jorge Leitão Ramos,crítico de cinema referia-se recentemente, a esse ter-ritório que considera cada vez mais vago (vazio) e quesão as narrativas: "... há um cinema que já não quercorresponder àquela necessidade primeva de imagi-nário que a espécie humana humana carrega consigodesde sempre ("conta-me uma história"), mas assumea qualidade de objecto lúdico puro e simples, energé-tico, veloz, sensorial". (in: Jornal Expresso, 1999).Deveremos, então, falar de novas narrativas que cor-respondam melhor à expressão das intensidades queJLR refere no texto ou aguardamos/ensaiamos algu-res um novo género expressivo que remeterá o gé-nero narrativo para o museu? E por que sinais sefaz ele anunciar, esse novo género? Ou, afinal, es-taremos condenados a essa tela narrativa - a come-çar pelo monólogo interior - onde não podemos dei-xar de imaginar as nossas intrigas de vida ou da ficc-ção, limitando-nos quanto muito a ambicionar contarhistórias de modos mais imaginativos - mas semprenarrativas com os incontornáveis sujeitos "psicológi-cos"?

www.bocc.ubi.pt

10 Rogério Ferreira de Andrade

para além da duração e da diferenciação desentido, que se normalizem e sancionem osdesvios ao instituído. Estará, aliás, por in-ventar o modelo de instituição, e segura-mente de "extituição", que - desejando per-durar - não crie os seus sistemas de regulaçãonormativa ou simbólica, bem como o regimede sanções para os desvios e de recompensapara as conformidades.

Philip Selznick8, passando em revista osprocessos de institucionalização que têm lu-gar nas organizações, enumerava-os: "a in-fusão de uma actividade com valores; a cri-ação de uma estrutura formal; a emergên-cia de normas informais; o recrutamento se-lectivo; os rituais administrativos, as ideolo-gias"e, de um modo geral geral, "tudo o queresulta de uma história especial da organi-zação para atingir os seus objectivos, resol-ver problemas e adaptar-se"(Selznick,1996:271). Afinal, o problema parece residir antesem saber o que não é um processo de ins-titucionalização, pois, nesta lista, tudo podepotencialmente tornar-se processo de institu-cionalização.

Para ser bem sucedida, a institucionaliza-ção impõe que tenha lugar um processo com-pleto de institucionalização, isto é - e agorana nossa linguagem - que vingue uma narra-tiva hegemónica a qual teve condições parase opor, com sucesso, a outras narrações -e a outros narradores - que ensaiaram masfalharam, ou falharam parcialmente, proces-sos de institucionalização de sentidos alter-nativos, suportados em narrativas antagóni-cas. Na SysGlobal conflituavam narrativasque se pretendiam instituidoras, seja quanto

8Selznick, Philip, "Institutionalism "old"and"new", in: Administrative Science Quarterly, Vol. 41(2), 1996: 271

à identidade da empresa, à engenharia finan-ceira a aplicar (tornar-se uma holding?), aopapel da I&D ou ainda à configuração dosprodutos. Veremos que é precisamente nestaconflitualidade entre narrativas, e entre nar-radores, que residem algumas das principaisvulnerabilidades, quer do sentido que a em-presa procurava atribuir ao que fazia, quer,consequentemente, das estruturas institucio-nalizadas em que o objectivava.

Poderá, em alguns momentos desta expo-sição, ficar a ideia de que as organizações se-riam mónadas absolutas, institucionalizandoou desinstitucionalizando campos des sen-tido, dentro de si ou nos seus arredores, comuma liberdade quase total, sem constrangi-mentos. Ora, os ambientes em que a organi-zações evoluem, tanto os que denominamosimpropriamente "interiores"(regras e crençasinstituídas, democraticidade, estilo de lide-rança, agonística de interesses e projectos,métodos de produção), como os "exterio-res"(espaço interorganizacional, conjunturatecnológica, crescente integração dos merca-dos) influenciam o trajecto da organização.Deveríamos, por essa razão, falar em doisambientes dominantes, entrelaçando-se: umambiente institucional e um ambiente téc-nico, sendo que "uma perspectiva institucio-nal acentua a importância dos aspectos sim-bólicos do ambiente..., incluindo os siste-mas normativo e cognitivo", enquanto queos ambientes técnicos são aqueles em que"um produto ou serviço é trocado num mer-cado de tal modo que a empresa é premiadapelo efectivo e eficiente controlo do seu pro-cesso de trabalho"(Scott, W. Richard, "Sym-bols and organizations: from Barnard to theinstitutionalists", in: Hassard, John; Parker,Martin (eds), Towards a new theory of or-

www.bocc.ubi.pt

Institucionalizações e colapsos de sentido 11

ganizations, ed. Routledge, London, 1994:49).

De qualquer modo, e apesar deste esclare-cimento, não deveremos perder de vista queas empresas são sistemas abertos, autopoié-ticos, isto é, que se auto-constroem, se auto-organizam. São, pois, redes de acção co-lectiva (Czarniawska) que criam e interpre-tam os sentidos que as fazem mover (Weick).Embora consideremos a análise institucio-nal de extrema riqueza, teremos sempre de aconfrontar - ou, antes, de a enriquecer - coma perspectiva construtivista, uma vez que éa organização quem "constitui (enact) acti-vamente os seus ambientes através da inte-racção social, .. . (cabendo) ... à ges-tão estratégica a tarefa de realizar a orga-nização - isto é, criar e manter sistemasde sentido partilhado que facilitam a acçãoorganizada"(in: Smircich, Linda; Stubbart,Charles, "Strategic management in a enactedworld", in: Academy of Management Re-view, Vol. 10(4),1985: 724). Reforçandoesta ideia, Porac, Thomas e Baden-Fuller re-ferem que a etnometodologia, insistindo nopapel da interpretação, "traz substância psi-cológica a anteriores hipóteses e observaçõesad hoc... Ao fazê-lo, o relato interpretati-vista expande o trabalho dos teóricos ins-titucionalistas ... que têm sustentado queas crenças consensuais socialmente construí-das influenciam as acções de organizaçõesem competição. A presente perspectiva ex-pande esta tese pois localiza tais crençasnos modelos mentais dos estrategos organi-zacionais"(Porac, Joseph; Thomas, Howard,Baden-Fuller, "Competitive groups as cog-nitive communities: the case of Scottishknitwear manufacturers", in: Journal of Ma-nagement Studies, Vol. 26, 1989: 401).Resulta mais claro que os indivíduos cons-

troem activamente interpretações de sentidoestando atentos a sinais e integrando estesem estruturas cognitivas que desenvolveram,não se limitando a conformar-se a estruturascolectivas consensuais (por exemplo, a valo-res, normas ou métodos impregnados de umapressuposta cultura instituída).

Contrariamente a alguns defensores dasteorias institucionalistas que tendem a sobre-valorizar a acção colectiva nas organizações,atribuo uma razoável importância à interven-ção dos indivíduos nos processos de institu-cionalização. Neste ponto estarei mais pró-ximo de Tolbert e Zucker quando exploramprecisamente as virtualidades da ponte possí-vel entre o indivíduo, a organização e a ins-tituição, "entre o modelo do actor racionale o modelo institucional"(1996: 176), recu-sando que os indivíduos estejam irremedia-velmente subjugados às regulações colecti-vas impostas pelo passado (instituído) da or-ganização, isto é, aos mecanismos normati-vos ou às regulações pelo simbólico. Estarei,por essa razão, bem mais distante de Meyer eRowan, embora reconhecendo o interesse dealgumas das suas análises, quando afirmamque "as estruturas formais de muitas organi-zações na sociedade pós-industrial reflectemdramaticamente os mitos dos seus ambien-tes institucionais em lugar das suas própriasactividades"(1980: 300). Neste balancea-mento entre um pólo institucional e um póloindividual, intersubjectivo, não ignoramos apertinência dos estudos que reflectem sobrea produção do "pensamento colectivo"e queparecem hoje impulsionar, muito produtiva-mente, a teoria das organizações, a psico-logia social e, acredito, também a comuni-cação das organizacões. Lembremo-nos, apropósito, da questão lapidarmente formu-lada por Mary Douglas ("how institutions

www.bocc.ubi.pt

12 Rogério Ferreira de Andrade

think?"), que é também o título da obra emque a autora se interroga sobre a génese dopensamento colectivo, das estruturas cogni-tivas, ou mesmo emocionais, que produzemliteralmente a organização. Mas, insisto, acriatividade e a inovação têm uma irredutí-vel assinatura individual. E isso ficará bemvisível neste artigo, pois o que aqui afirma-mos para as organizações é extensível aos in-divíduos, também eles instituidores de nar-rativas ritualizadas e auto-referenciais a queatribuo pelo menos tanta importância comoa que concedo às institucionalizações que osorganismos colectivos levam a cabo.

A esta minha posição não é indiferente opapel que reservo aos narradores organiza-cionais, sejam eles estratégicos ou espontâ-neos, que fazem e desfazem diariamente asorganizações. Conviria não perder de vistaque todo o instituído, hoje sedimentado, foianteriormente uma narração nascente ou umfeixe de narrações que acabou por prevale-cer. Ora, essas narrações são conduzidas(criadas e encenadas) por narradores estraté-gicos, isto é, por indivíduos. Por essa razão,as narrativas institucionalizadas ou a institu-cionalizar não são, como se perceberá, me-ras ficções aleatórias, como o são as ficçõescriadas por imaginários de criação publicitá-ria, que produzem, por vezes soberbamente,a "empresa retórica". Aproveitemos para re-tomar agora o conceito de empresa retóricacom que nos confrontámos anteriormente,embora sem o esclarecer. A empresa retó-rica é, por um lado, o corpo de narrativase de discurso que esteve no centro da cri-ação dessa empresa e que, desenvolvendo-se, estabilizando-se em estruturas materiaise simbólicas, lhe serve actualmente como in-vólucro "institucional"(há quem lhe chame acultura da organização ou a sua identidade).

Mas, por outro lado, a empresa retórica étambém o corpo de narrativas e de discursoque a empresa opera na comunicação comos seus múltiplos interlocutores, através, porexemplo, dos interfaces do design, da publi-cidade ou da comunicação dos gestores oudas administrações. Pensar, aliás, o discursoda organização como "texto literário"podeser uma pista muito interessante de investi-gação: de boa ou má qualidade, funcionalou "ornamental", mas sempre literatura, numsentido muito amplo

- textos narrativos com um fundo roma-nesco, onde as intrigas e os personagens (in-divíduos, grupos, departamentos, serviços,etc) estão lá, mesmo se camuflados por fór-mulas pragmáticas de discurso9. Não setrata, de modo algum, de um tema secundá-rio, pois há, sem dúvida, quem dê o seu me-lhor - e com a melhor das intenções - na pro-dução literária da sua empresa, produzindolaboriosamente normativos, relatórios, bro-churas, newsletters, códigos de ética ou am-bientais e outros textos que contribuem paraproduzir a empresa e os seus ambientes.

4 Vontade de comunicação evontade de instituição

O comunicador, e sobretudo os gestores daorganização, são activos institucionalizado-res, cabendo-lhe, de alguma maneira, criaresse efeito - sempre diferido, mas sempre

9Sobre a distinção entre "discurso"e "narra-tiva"nas organizações, ver: Keenoy, Tom; Oswick,Cliff; Grant, David, "Organizational Discourses: Textand Context", in: Organization, Vol 4, No2, 1997:147-157 e, também, Czarniawska-Jeorges, Barbara,"A four times told tale: combining narrative and sci-entific knowledge in organization studies", in: Orga-nization, Vol. 4 (1), 1997: 7-30

www.bocc.ubi.pt

Institucionalizações e colapsos de sentido 13

tentado - de isomorfismo institucional, de fe-chamento narrativo e discursivo da organiza-ção. Por outras palavras, o processo comu-nicacional, enquanto produtor da organiza-ção, é um verdadeiro processo de institucio-nalização. Não apenas mais um processo aacrescentar à lista de Selznick, mas aqueleque concorre decisivamente para estabilizaros ambientes internos e externos dessas or-ganizações.

Pelo facto de considerarmos que os pro-cessos de comunicação são verdadeiros pro-cessos de institucionalização (a comunica-ção é um processo que visa impor um "ins-tituído"), não pretendemos, por essa razão,fazer tábua rasa das funções que Jakobsontão diligentemente dissecou a partir de umfeixe inicial de comportamentos comunica-tivos. Entendemos, no entanto, Gilles De-leuze quando - recuperando esse feixe - atri-bui uma "função"primeira, se bem que di-fusa, à comunicação, ao discurso: a funçãoimperativa. Enunciar era, pelo menos para oDeleuze de "Mille Plateaux", construir umaassimetria, isto é, um poder. Um instituído,acrescentaríamos nós, pretendendo reforçara ideia de que as organizações privilegiamhoje a institucionalização.

Mas nada disto é exclusivo das organi-zações, como já assinalámos. A compul-são generalizada a tudo tornar instituiçãoarrasta-nos a nós próprios como indivíduos,traindo um intenso desejo de permanecer, deresistir à volatilidade social, ao anonimato.Entendamo-nos: já não é apenas um pro-blema de nos fazermos ouvir ou ver (o queseria ainda um problema tradicional de co-municação), mas de ocupar um lugar único,duradouro, num Olimpo qualquer do pre-sente (o que é uma vontade de instituição).Assim como tornamos instituições as nos-

sas marcas e os nossos produtos, ambiciona-mos agora, nós-próprios, tornarmo-nos ins-tituição. O culto generalizado da imagem,essa construção de sentido narrada e institu-cionalizada preferencialmente pela publici-dade e pelos mass media, exemplifica bemo que chamo uma compulsão à institucio-nalização. Entretemo-nos com a mediação,insatisfazemo-nos com a comunicação e as-piramos à instituição. Qual o pano de fundode tudo isto? O anonimato, causador de tãoterríveis e secretos sofrimentos individuais ecolectivos.

Formulemos mais precisamente a nossahipótese: a comunicação é, pelo menos noactual estado da comunicação das organiza-ções, um outro nome que damos ao proces-sos de institucionalização. Nem argumentar,nem apenas narrar, mas institucionalizar, eiso que fazem os actores individuais ou colec-tivos. 10 Para evitar que esta minha formu-lação seja mal interpretada, gostaria de es-clarecer que ela é válida para todas as or-ganizações, embora algumas haja em que ainstitucionalização é insistentemente reque-rida, em boa parte por se incluirem em mer-cados emergentes (multimedia, engenhariagenética, biotecnologias, tecnologias da ali-mentação), como era o caso da SysGlobal.

Neste artigo, não nos referiremos parti-cularmente ao que se convencionou desig-

10Discorrendo sobre o valor das narrativas para aconstrução de mundos, Jerome Bruner, seguindo deperto Nelson Goodman, sustenta que há dois modosde pensamento, contribuindo cada um, embora dife-rentemente, para ordenar a experiência e construir arealidade: uma boa história ("o rei morreu e, então, arainha morreu") e um argumento bem formado ("se x,então y"). Se os argumentos nos "convencem pela suaverdade", as histórias convencem-nos "pela sua se-melhança com a vida", pela verosimilhança"(Bruner,1985: 11 e12).

www.bocc.ubi.pt

14 Rogério Ferreira de Andrade

nar como a "comunicação institucional"dasorganizações, que é afinal a projecção deum edifício público de memória com finsde legitimação, e que tenderíamos a oporàs comunicações comerciais. Na pers-pectiva que avançamos, esta distinção épouco pertinente, pois a "força institucio-nal"(Zbaracki,1988: 605) que a organiza-ção procura gerar, com os múltiplos proces-sos de institucionalização que leva a efeito,derrama-se de forma transversal, indiferen-temente para "dentro"ou para "fora"da orga-nização, para a comunidade interna de tra-balho, para o mercado ou para os foruns emque a organização busca legitimar-se. De-corre daqui alguma artificialidade na sepa-ração que por vezes se estabelece entre co-municações comerciais e comunicações ins-titucionais. Todo o acto de comunicaçãonas organizações visa uma institucionaliza-ção, mesmo a dos produtos, onde a diferen-ciação simbólica de nomes e atributos (mar-cas) resulta, também ela, de processos deinstitucionalização de sentido. No limite,institucionalizam-se mesmo "produtos bran-cos", os que pretenderiam escapar à tiraniada marca-produção e que acabam por ficarsubmetidos a uma outra tirania, à da insígniadas grandes superfícies de consumo. Todasas comunicações estratégicas são institucio-nalizações em curso.

Os dois grandes desafios que se colocamà comunicação enquanto processo de institu-cionalização são, por um lado, o da mediati-zação e, por outro, o da tradução11. Consi-

11Michel Serres é um dos autores que mais se inte-ressou por esta relação umbilical que a comunicaçãomantém com a tradução (ver, por exemplo, HermesIII, ed. Minuit, Paris, 1974). Muitos outros discí-pulos de Serres retomaram a operação de "tradução",aplicando-a a diversos campos. Michel Callon foi um

derados separadamente não trazem nenhumanovidade, mas ensaiemos conjugá-los e ve-remos como representam actualmente doismeios privilegiados de produzir a instituição.Quando falamos em tradução, falamos emtradução da identidade da organização, dasexpectativas dos seus homens e das suas mu-lheres, tradução das estratégias, do valor dosprodutos ou serviços - isto é, de uma apuradacapacidade de compreensão e interpretação.E falamos também dos tradutores mais acti-vos: os media, a publicidade, o design, etc.Com frequência vemos estes tradutores soci-ais tornarem-se, por exemplo, tradutores per-versos (dando primazia, na tradução, aos in-teresses do próprio tradutor) ou narcísicos (osentido primeiro é um pretexto para a suaprópria "obra"). Um bom exemplo que re-cobre ambas as práticas é o da crescente pro-liferação de anúncios e filmes publicitários- "fantasmas"ou não - preparados expressa-mente para concorrer em certames prestigi-ados e que entronizam, ou antes, instituemreputações, sejam de agências ou de criati-vos, os quais ascendem assim a criadores de

deles, escrevendo páginas com imenso interesse paraa abordagem que desenvolvemos aqui, ou seja, a tra-dução como uma das operações centrais para o enten-dimento da comunicação como processo de instituci-onalização. Michel Callon mostra a operação de tra-dução aplicada, na indústria, à concepção de um carroeléctrico, afinal um teste à capacidade para criar um"modo de equivalência entre objectivos heterogéneosde actores particulares"e para "manter em conjuntoelementos tão diferentes, tão heterogéneos como osconstrangimentos do eléctrodo, as exigência do podercentral ou a política da EDF", tudo isto numa rede que"não tem centro nem periferia, é um sistema de rela-ções entre enunciados problemáticos que vêm indi-ferentemente da esfera social, da produção científica,da tecnologia ou do consumo"(in: Dosse, François,L’empire du sens. L’ humanisation des sciences hu-maines, ed. La Découverte, Paris, 1997: 28/29).

www.bocc.ubi.pt

Institucionalizações e colapsos de sentido 15

arte publicitária (autores), demitindo-se dasua missão de criativos (tradutores).

A dificuldade estará em encontrar bonstradutores, pois é na tradução que os sen-tidos podem ser omitidos, treslidos ou traí-dos. Mas significa também encontrar boasmediatizações. Na verdade, a mediatizaçãoé também um factor constitutivo de qual-quer processo de institucionalização, tendoganho hoje uma dimensão nunca antes alcan-çada. Os investimentos colossais em tecno-logia e capital canalizados para a publicidadee para a informação pública, sendo sintomá-ticos das dificuldades que as empresas en-frentam para operar à escala global, são so-bretudo sintomáticos da tendência crescente-mente institucionalizadora das organizaçõesna busca da sedimentação de um instituído,isto é, na construção de sentidos dominantes,duradouros e socialmente consensuais que aspreservem das erosões e do colapso a que es-tão, hoje mais do que nunca, vulneráveis.

5 Vulnerabilidades, erosões ecolapsos de sentido

Os sentidos inscritos nas práticas e nas estru-turas sociais são, como vimos dizendo, frá-geis, submetidos a erosões e, por isso, sem-pre dependentes de uma comunicação ins-titucionalizadora, ritual, litúrgica12 que osproteja, preservando o que há de único, deestimável ou de vantajoso nesses sentidos.Mas as perdas de sentido são permanentes e

12Numa outra oportunidade diremos algo mais so-bre a comunicação ritual, litúrgica ou, para sermosmais abrangentes, sobre o balanceamento que se ve-rifica actualmente nos estudos de comunicação entreum pólo interactivo (criador de experiência e de sen-tido) e um pólo institucional (estabilizador da experi-ência e do sentido).

o que fazemos é compensar essas perdas comnovas práticas, novas estruturas organizacio-nais ou reforçar ritualmente as já instituídas.

Os conceitos de "vulnerabilidade"e de"colapso"têm sido objecto de inúmeras aná-lises, seja na interacção e nos rituais quo-tidianos (Erving Goffman), nos agregadossociais maiores como os agrupamentos ouas massas humanas (Elias Canetti), no or-ganizing (Karl Weick e as suas excelentesanálises de colapsos de sentido em equipasou em sistemas que funcionam sob stress,como é o caso do dramático desastre áereode Tenerife, em 1977) ou nos actos de dis-curso (John Austin e o Paul Watzlawick daparadoxologia). Numa perspectiva micro-sociológica e inspirado no interaccionismosimbólico, Isaac Joseph esclarece-nos sobreo que poderá ser um modelo reparador, ouseja, como pode a nossa experiência - o sis-tema de sentido instituído em nós - ser "re-parada"com novas estruturas de sentido, demodo a limitar danos, após uma exposição ainteracções erosivas ou ameaçadoras de co-lapso (Joseph: 1998). Estes, e muitos outroscontributos teórico-práticos que poderíamosainda referenciar, põem em destaque as ca-tástrofes pessoais ou organizacionais associ-adas às erosões de sentido, permitindo com-preender melhor porque atribuo tão grandeimportância à actual vocação institucionali-zadora da comunicação das organizações.13

13Se o colapso do projecto empresarial tivesse sidoapenas um colapso de sentido (embora também o sejaseguramente), então era como se John Austin afir-masse - num outro contexto, embora útil aqui - que osefeitos dos enunciados performativos decorriam ex-clusivamente da sua correcta enunciação. Ora, sabe-mos que Austin não comete este lapso: impõe, aliás,outras condições sine qua non que, uma vez verifica-das, tornam válida e legítima uma institucionalização(por exemplo, a cerimónia complexa que envolve as

www.bocc.ubi.pt

16 Rogério Ferreira de Andrade

Vejamos, a terminar, algumas das vul-nerabilidades que tornaram incertos, e deenorme risco, os processos de institucio-nalização que tinham lugar na SysGlobal.Como salientámos, essas vulnerabilidadesencontravam-se já inscritas, desde o iní-cio, no projecto empresarial da SysGlobal,agravando-se na prova de fogo a que a em-presa foi submetida quando anunciou a suaentrada no mercado das empresas integra-dores de sistemas industriais e, mais ainda,quando ambicionou tornar-se uma holding,diversificando participações financeiras nou-tras empresas (cartografia tradicional, carto-grafia digital, sistemas de informação geo-gráfica, etc).

Não nos propomos inventariar e analisar,sistematicamente, as inúmeras vulnerabili-dades que pontuaram o curto tempo de vidada SysGlobal, sejam - entre muitas outras- as que resultavam do confronto da em-presa com o mercado internacional e naci-onal; do ambiente tecnológico das pequenase médias empresas suas clientes; da recep-ção lenta e imprecisa de um conceito emer-gente como era o de engenharia de sistemasindustriais; da identidade clivada da própriaempresa; das visões contrastadas dos enge-nheiros e dos homens do aparelho político-financeiro da SysGlobal na condução do ne-gócio; do"lusco-fusco"que perturbava a dis-tinção entre projectos (investigação) e pro-dutos (trabalhados pelo marketing e pelamarca); da constituição de uma holding pelaSysGlobal.

Deter-nos-emos apenas em três dessasvulnerabilidades: a) a identidade narrativa-

palavras do deão universitário na abertura do ano lec-tivo e que torna o discurso institucional verosímil elegítimo).

estratégica da SysGlobal ; b) o conceitoemergente de "engenharia de sistemas indus-triais"; c) a dificuldade em gerar produtospara o mercado a partir de projectos deinvestigação.

1a Vulnerabilidade: a identidadenarrativa-estratégica da SysGlobal

identidade estratégica da SysGlobal, isto é,o sentido que a SysGlobal procurava gerarpara orientar e estimular positivamente oshomens e as mulheres que aí trabalhavam,bem como as organizações que aceitaramo desafio de se tornar suas clientes, não éseguramente a menor das vulnerabilidades.Pelo contrário, é uma das mais importan-tes. Tornar palpáveis os conceitos de "fá-brica"e de "produto tecnológico", bem comoinstitucionalizá-los num mercado de peque-nas e médias empresas caracterizado pelasinsuficiências estruturais que já referimos,constituía uma tarefa bastante espinhosa. So-mando agora a estes espinhos os conflitos nointerior da própria SysGlobal quanto à defi-nição da sua identidade, obteremos uma sig-nificativa erosão das energias humanas e dosrecursos materiais e simbólicos disponíveis.

As empresas excessivamente clivadas,como nos parece ser o caso da SysGlobal,têm mais dificuldade em ocupar um lugarprivilegiado de narradores institucionais, emenriquecer cumulativamente as suas narrati-vas e, em consequência, a sua acção. Numestudo realizado há alguns anos, Tom Pe-ters (The Passion of excellence, ed. RandomHouse, NY, 1985) comparava, por um lado,os resultados financeiros obtidos por duasempresas muito similares, por outro lado, ashistórias que se contavam àcerca delas e quecirculavam entre os respectivos empregados.

www.bocc.ubi.pt

Institucionalizações e colapsos de sentido 17

Na empresa apresentada como de "alto ren-dimento", cerca de 98% das histórias eramfavoráveis aos interesses dessa empresa, oque a colocava como uma "high story com-pany", isto é, uma empresa em que a filosofiade gestão seria esmagadoramente "referen-dada"pelos seus membros. Já na empresa de"baixo rendimento", naturalmente uma "lowstory company", o "referendo"através dashistórias dava-lhe apenas 50% da adesão dosseus membros, ou seja, as histórias eram-lheclaramente desfavoráveis. Se as histórias dasorganizações se limitassem, como de certomodo transparece da apresentação de Peters,a opiniões ou estados circunstanciais que "aspessoas sentem mas são incapazes de confes-sar directamente"(Peters, 1985: 280), então,pareceriam algo desproporcionados os efei-tos que diagnosticou e resumiu do seguintemodo: "as histórias são tão poderosas queuma década de trabalho pode ser eliminadaem seis semanas. E, infelizmente, pode levaranos (e / ou uma mudança de gestão) a su-perar as consequências"(Peters, 1985: 281).Sublinhe-se que, apesar de aparentaram al-guma ligeireza, estas dimensões ideológicas(simbólicas) das empresas são tão decisivascomo as dimensões marcadamente materiais.Aliás, as realizações simbólicas14 das em-

14O simbolismo organizacional é uma fértil áreade investigação, desmultiplicando-se os seus adep-tos em inúmeras iniciativas, com destaque para aStanding Conference on Organizational Symbolism,uma conferência permanente que reflecte sobre o que,há alguns anos atrás, nos estudos sobre as organi-zações, poderia ser considerado residual. Para ter-mos uma ideia do âmbito abrangente das temáticas,referiremos as conferências realizadas mais recente-mente: "The empty space"(Varsóvia, 1997), "Orga-nization and symbols of competition"(Brasil, 1998),"Taking Liberties"(Edimburgo, 1999). Agendadas es-tão já duas novas conferências - a de Atenas, em 2000,

presas ganharam hoje uma enorme importân-cia. Devemos, por isso, evitar circunscrevê-las exclusivamente à "comunicação instituci-onal"ou às "narrativas publicitárias", as quaisconstituem um tipo particular de tradução ede mediatização estratégica.

Formulemos, então, as duas hipóteses denarração identitária (sustentadas por distin-tos actores) que faziam o seu curso na Sys-Global, instabilizando-a: a) ser uma empresade vanguarda tecnológica que concebe pro-jectos inovadores cujos custos de R&D eoperacionais alguém pagará até ao "break-even"a prazo incerto; b) ou ser uma empresacapaz de integrar e harmonizar os seus doissistemas mais importantes - o técnico e o co-mercial - sem deixar de reclamar por mé-rito próprio uma reputação de empresa ino-vadora e com produtos inovadores. A opçãopor uma qualquer destas hipóteses de iden-tidade narrativa-estratégica, sobretudo paraempresas que se lançam em mercados emer-gentes, tem de levar em consideração o su-porte financeiro dessas mesmas opções. Poroutras palavras, responder à pergunta "o quesomos e o que fazemos?"tinha, literalmente,um custo para a SysGlobal, pois significavaperguntar também "quem investe a médioprazo na investigação, quem paga - e durante

sobre "Organization and culture. Pre-modern lega-cies for the post-modern millennium"e a de Buda-peste, em 2001. Uma obra de referência a consul-tar, pela diversidade de contributos teóricos e expe-riências relatadas, é a de Barry Turner (org), Orga-nizational Symbolism, ed. Walter de Gruyter, Ber-lin/New York, 1990. Na Internet, pode ser igual-mente consultado o site desta Conferência Perma-nente (www.scos.org), bem como o da revista queedita: "Studies in symbolism, cultures and organiza-tions - a journal of cultural studies & organizationalsymbolism"(www.acs.ucalgary.ca).

www.bocc.ubi.pt

18 Rogério Ferreira de Andrade

quanto tempo - a investigação aplicada que évital para a viabilidade da empresa?"

Acreditamos que, em boa parte, o insu-cesso na institucionalização de identidadesestratégicas resulta do insucesso das narrati-vas que as transportam (que tardam ou nãoconseguem, de todo, institucionalizar-se),sendo que o inverso é igualmente plausível,ou seja, identidades organizacionais fortesinstituem histórias fortes, uma das quais- e de grande valor - é a da imagem daorganização, afinal a melhor história queesta conta de si própria e que deve serapreciada e validada, quando o é, pelosseus múltiplos interlocutores individuais oucolectivos. Deveríamos corrigir ligeiramentea fórmula dizendo que essa história (a "ima-gem") não é unilateralmente contada, antesincorpora o conhecimento e a experiênciaconsistentes que o narrador organizacionaltem das suas audiências plurais, do espectrode interesses sediados dentro e fora daempresas (e que comummente designamospor públicos). Por outras palavras, emborahaja uma estrutura morfológica (um "nóduro"de sentido, de discurso) relativamenteinvariável na história que a imagem oua reputação contam, essa estrutura nãodispensa - antes impõe - a renovação deepisódios para melhor ganhar a adesãodo seus auditores. Ora, foi precisamenteesta subtileza de narrador experimentadoque terá faltado à SysGlobal nos episódiosreferenciais (tecnologia, produtos, marcas)e autoreferenciais (identidade, imagem) queproduziu.

2a Vulnerabilidade: o conceito emer-gente de engenharia de sistemas industri-ais

A SysGlobal não desenvolvia propria-mente produtos de software, desenvolvia umtrabalho de engenharia. Ora, este conceitonovo de engenharia de sistemas aplicadaaos meios industriais não fora ainda sufi-cientemente apreendido. Bem podiam ostécnicos da SysGlobal repetir enfaticamenteque uma máquina nova produziria muitomais se estivesse interligada, por exemplo,com sistemas CAD ou com sistemas deplaneamento da produção (pois era precisa-mente essa integração que permitia ganhosde produtividade e melhoria da qualidadedos produtos), que as empresas nem sempreentendiam essa diferença decisiva, aprovei-tando muito pouco da oportunidade que selhes oferecia. Por outro lado, as mudançasna estrutura organizativa dessas médias epequenas empresas, em particular a adapta-ção aos novos sistemas informáticos, sendodecisivas para potenciar os efeitos tecnológi-cos, raramente tinham lugar. Lamentava-seum técnico da SysGlobal: "corremos sempreo risco de chegar a uma empresa, ter umaideia brilhante, dispor de bons técnicos,montar o sistema informático e perder-se,mesmo assim, metade da perfomance".

3a Vulnerabilidade: a dificuldade emgerar produtos a partir de projectos deinvestigação

Num primeiro momento, verificou-se umaincapacidade de traduzir vocabulários oriun-dos dos projectos de investigação e desen-volvimento (vocabulários da engenharia) emvocabulários de produto ou mesmo de marca(comercialmente amadurecidos por markete-ers), o que revelava uma incapacidade pro-funda em harmonizar duas culturas: a "cul-tura de engenharia"e a "cultura de marke-

www.bocc.ubi.pt

Institucionalizações e colapsos de sentido 19

ting". Não sendo inédita em empresas dotipo da SysGlobal, empresas jovens e a ac-tuar em mercados emergentes, esta vulnera-bilidde ganhou aqui contornos críticos.

A consequência desta tensão poderesumir-se do seguinte modo: pretendia-sena verdade apenas desenvolver "projec-tos (investigação) ou promover "produ-tos"(comerciais, aplicáveis a unidadesindustriais concretas)? As memórias des-critivas dos produtos, por nós consultadas,eram sistemáticas e exaustivas no quedizia respeito às configurações técnicas, àsmetodologias de aplicação e às implicaçõestecnico-financeiras da concepção, emboraomissas não só no que respeitava à criaçãode mais valias simbólicas (a sua especifici-dade face a outros produtos congéneres econcorrenciais), mas também quanto à suautilidade para os potenciais clientes. Nolimite, não havia sequer, mesmo para osprodutos mais amadurecidos, uma políticade denominação clara (nomes fortes paraum mercado concorrencial), o que signifi-cava também uma acentuada ineficácia datradução e da mediatização públicas dosprodutos - isto é, e como vimos referindo, dasua institucionalização. Numa empresa quereclamava, justamente, uma competênciade integradora de sistemas, era manifestae paradoxal a dificuldade em integrar asesferas da tecnologia e do marketing.

6 A concluir...

A saga da SysGobal permitiu-nos observaralguns momentos de um processo de institu-cionalização e destacar o que há de aleatório,de frágil nesse acto e nessa vontade de fun-dar e fazer perdurar um sentido, isto é, decriar uma instituição.

O insucesso do projecto empresarial daSysGlobal, não será de mais sublinhá-lo, nãoradicou apenas no colapso do seu sistema desentido, embora possamos dizer que os co-lapsos de sentido contribuem decisivamentepara os colapsos dos projectos empresariais.As vulnerabilidades iniciais da SysGlobalagravaram-se face às dificuldades que a em-presa revelou na institucionalização da suaidentidade narrativa-estratégica, bem comode dois dos seus brasões comerciais funda-mentais que eram o conceito de "fábrica deprodutos tecnológicos"e o próprio conceitode "produto tecnológico". Submetido às ero-sões internas e externas que referenciámos, oprecário instituído entrou progressivamenteem colapso e, com ele, todo o edifício de me-mória que a SysGlobal procurava tecer nosmeios empresariais.

A comunicação, tal como a entendemosneste artigo, é o processo pelo qual as or-ganizações e os indivíduos realizam a ins-titucionalização, isto é, mantêm viva e ac-tiva uma memória e, ao mesmo tempo, pre-vinem, combatem ou adiam as erosões e oscolapsos de sentido que sempre acabam porvir dos seus ambientes interiores ou exteri-ores. A comunicação está hoje, claramente,ao serviço da vontade de instituir que se apo-derou dos indivíduos, dos grupos e das or-ganizações e pela qual respondem ao anoni-mato social. Não deveremos, então, admirar-nos que seja pela comunicação que marca-mos e ritualizamos (fazemos repetir, regres-sar) o que, para nós, indivíduos ou organi-zações, encerra um valor a preservar e quejulgamos encerrar um valor também para osoutros.

www.bocc.ubi.pt

20 Rogério Ferreira de Andrade

7 Referências

BOJE, David,The storytelling organization:a study of story perfomance in an office-supply firm, in: Administrative ScienceQuarterly, Vol. 36 (1), 1991: 106 -126

BRUNER, Jerome,Actual minds, possibleworlds, Harvard University Press, 1986

CERTEAU, Michel de,L’invention du quo-tidien - arts de faire I, ed. Gallimard,Paris, 1990

CZARNIAWSKA Barbara, Narrating theorganization: dramas of institutionalidentity, University of Chicago Press,1997

CZARNIAWSKA-JOERGES, Barbara(org.), Good novels, better manage-ment: reading organizational realitiesthrough fiction, ed. Gordon & BeachScience Pubs, 1994

DONNELLON, Anne; GRAY, Barbara;BOUGON, Michel, Communication,meaning and organized action, in: Ad-ministrative Science Quarterly, Vol. 31,1986: 43-55

DOUGLAS, Mary, How institutions think,Routledge & Paul Kegan, 1987

DUTTON, Jane; DUKERIC, Janet,Keepingan eye on the mirror: image and identityin organizational adaptation, in: Aca-demy of Management Journal, Vol. 34,1991: 517-554

GOFFMAN, Erving, Les cadres del’expérience, ed. Minuit, Paris,1974

GRANT, David; KEENOY, Tom; OSWICK,Cliff, Discourse + Organization, ed.Sage, 1998

JOSEPH, Isaac,Erving Goffman et la micro-sociologie, ed. PUF, Paris, 1998

MEYER, John; ROWAN, Brian,Institutio-nalized organizations: formal structureas myth and ceremony, in: ETZIONI,A.; LEHMAN, E., A sociological rea-der on complex organizations, ed. Holt,Reinehart and Winston, 1980

PORAC, Joseph; THOMAS, Howard,BADEN-FULLER, Charles,Competi-tive groups as cognitive communities:the case of Scottish knitwear manu-facturers, in: Journal of ManagementStudies, Vol. 26, 1989: 397-416

POWELL, Walter; DiMAGGIO, Paul,Thenew institucionalism in organizationalanalisys, The University of ChicagoPress, London, 1991

SCOTT, W. Richard,Symbols and organiza-tions: from Barnard to the institutiona-lists, in: HASSARD, John; PARKER,Martin (eds), Towards a new theory oforganizations, ed. Routledge, London,1994

SELZNICK, Philip, Institutionalism"old"and "new", in: Administra-tive Science Quarterly, Vol. 41(2),1996: 270-278

TAYLOR, James,Rethinking the theory oforganizational communication. How toread an organization, ed. Ablex Pu-blishing, 1993

www.bocc.ubi.pt

Institucionalizações e colapsos de sentido 21

TOLBERT, Pamela; ZUCKER, Lynne,Theinstitutionalization of institutional the-ory, in: CLEGG, Stewart; HARDY,Cynthia; NORD, Walter (org.), Hand-book of Organization Studies, ed. Sage,1996

TURNER, Barry, (org),Organizational Sym-bolism, ed. Walter de Gruyter, Ber-lin/New York, 1990

WEICK, Karl, Sensemaking in organizati-ons, ed. Sage, 1995

WEICK, Karl, The vulnerable system: ananalysis of the Tenerife air disaster, in:Journal of Management, Vol. 16(3),1990 (ou, ainda, in: FROST, P.; LOUIS,M.; LUNDBERG, C.; MARTIN, J.(eds), Refraiming organizational cul-ture, ed. Sage, 1991: 117-130)

ZBARACKI, Mark,The rhetoric and realityof total quality management, in: Ad-ministrative Science Quarterly, Vol. 43(3),1988: 602-636

www.bocc.ubi.pt