instituicao prisional e literatura

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22 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, ago. 2009 A experiência com a Literatura numa instituição prisional (Literary experience in prison institution) (La experiencia con la Literatura en la institución de prisión) Mhyrna Boechat* Virgínia Kastrup** Resumo Este trabalho discute os desdobramentos de uma oficina de leitura com internos de uma prisão no Rio de Janeiro. A oficina se insere no quadro de trabalhos que usam a arte como instrumento de produção de subjetividade e transformação social, como política cognitiva e existencial. Para a compreensão da instituição-prisão, são usadas as ideias de Erving Goffman, Michel Foucault e Loïc Wacquant. Sobre os estudos de produção de subjetividade em oficinas de leitura, o texto toma como referencial Gilles Deleuze, Felix Guattari e Virgínia Kastrup. Foram realizados encontros semanais com um grupo heterogêneo quanto à escolaridade, para a prática da leitura em conjunto. São apresentados relatos dos encontros, para demonstrar a dinâmica do grupo e a multiplicidade dos efeitos produzidos. O texto analisa a potência da arte, precisamente da Literatura, como fator expansivo de subjetividade na atmosfera de violência e privação que caracteriza a instituição prisional. Palavras-chave: Literatura; produção de subjetividade; prisão. Abstract This paper discusses the implantation and development of a reading workshop carried out with prisoner in a prison in Rio de Janeiro. The workshop belongs to the set of proposals that use art as a tool for the production of subjectivity and social change and also as a cognitive and existential politics. In order to understand the prison-institution, the text makes use of the ideas of Erving Goffman, Michel Foucault and Loïc Wacquant. Concerning the production of subjectivity studies, the text takes Gilles Deleuze, Felix Guattari and Virgínia Kastrup as a theoretical Texto recebido em fevereiro de 2009 e aprovado para publicação em novembro de 2009. * Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. E-mail: [email protected]. ** Doutora em Psicologia, professora do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. E-mail: [email protected].

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instituicao prisional e exercício em literatura

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22 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, ago. 2009A experincia com a Literatura numa instituio prisional(Literary experience in prison institution)(La experiencia con la Literatura en la institucin de prisin)Mhyrna Boechat2*Virgnia Kastrup3**Resumo Estetrabalhodiscuteosdesdobramentosdeumaocinadeleitura cominternosdeumaprisonoRiodeJaneiro.Aocinaseinsereno quadrodetrabalhosqueusamaartecomoinstrumentodeproduo desubjetividadeetransformaosocial,comopolticacognitivae existencial. Para a compreenso da instituio-priso, so usadas as ideias de Erving Goffman, Michel Foucault e Loc Wacquant. Sobre os estudos de produo de subjetividade em ocinas de leitura, o texto toma como referencialGillesDeleuze,FelixGuattarieVirgniaKastrup.Foram realizadosencontrossemanaiscomumgrupoheterogneoquanto escolaridade,paraaprticadaleituraemconjunto.Soapresentados relatosdosencontros,parademonstraradinmicadogrupoea multiplicidade dos efeitos produzidos. O texto analisa a potncia da arte, precisamentedaLiteratura,comofatorexpansivodesubjetividadena atmosfera de violncia e privao que caracteriza a instituio prisional. Palavras-chave: Literatura; produo de subjetividade; priso.AbstractThispaperdiscussestheimplantationanddevelopmentofareading workshop carried out with prisoner in a prison in Rio de Janeiro. The workshopbelongstothesetofproposalsthatuseartasatoolforthe production of subjectivity and social change and also as a cognitive and existential politics. In order to understand the prison-institution, the text makesuseoftheideasofErvingGoffman,MichelFoucaultandLoc Wacquant. Concerning the production of subjectivity studies, the text takes Gilles Deleuze, Felix Guattari and Virgnia Kastrup as a theoretical Texto recebido em fevereiro de 2009 e aprovado para publicao em novembro de 2009.*MestrandapeloProgramadePs-graduaoemPsicologiadaUniversidadeFederaldoRiodeJaneiroUFRJ. E-mail: [email protected].** DoutoraemPsicologia,professoradoInstitutodePsicologiaedoProgramadePs-GraduaoemPsicologiada Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ. E-mail: [email protected] Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, dez. 2009A experincia com a Literatura numa instituio prisionalOframework.Forthepracticeofgroupreading,weeklymeetingswere held with a group that was heterogeneous concerning level of schooling. Reportsofthosemeetingsarepresentedinordertoshowthegroup dynamicsandthemanifoldeffectstheyproduced.Thetextanalyses the power of art, namely that of literature, as a factor that can expand thesubjectivityintheatmosphereofviolenceanddeprivationthatis charachteristic of the prison institution. Key-words: Literature; production of subjectivity; prison.Resumen Este trabajo discute los desdoblamientos de un taller de la lectura con los internos de una prisin en Ro de Janeiro. El taller si inserta en el cuadro de trabajos que utilizan el arte como instrumento de produccin de la subjetividad y de la transformacin social, mientras poltica cognitiva y existencial.Paralacomprensindelainstitucin-crcelsonutilizadas las ideas de Erving Goffman, Michel Foucault y Loc Wacquant. En los estudios de la produccin de la subjetividad en talleres de lectura el texto toma como referencial Gilles Deleuze, Felix Guattari y Virginia Kastrup. Hansidorealizadoencuentrossemanalesconungrupoheterogneo cuantoalaescolaridad,paralaprcticadelecturaenconjunto.Son presentadosrelatosdelosencuentrosparademostrarladinmicadel grupoylamultiplicidaddelosefectosproducidos.Eltextoanalizala potenciadelarte,precisamentedelaliteratura,comofactorexpansivo delasubjetividadenlaatmsferadelaviolenciaylaprivacinque caracteriza la institucin de prisin. Palabras-claves: Literatura; produccin de la subjetividad; prisin.1 Introduopresentetrabalhotemcomoobjetivoapresentaraimplantaoeos desdobramentosdeumaocinadeleiturarealizadacominternos daunidadeprisionalHlioGomes,noComplexoPenitencirioFrei Caneca, localizado na cidade do Rio de Janeiro. A ocina foi realizada durante de16meses,de2006a2008.Aatividadefoidesenvolvidapormeiodo convnio entre a SEAP (Secretaria do Estado de Administrao Penitenciria) e a diviso de Psicologia Aplicada da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Ocorreu no contexto de estgio do curso de formao em Psicologia de uma das autoras. O relato apresenta a discusso a respeito da potncia da arte, mais precisamente da Literatura, como fator expansivo de subjetividade naatmosferadeviolnciaeprivaoquecaracterizaopresdio.Sugerea possibilidade de sua atuao no sentido de promover um desvio em relao ao 24 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, dez. 2009Mhyrna Boechat, Virgnia Kastrupsuposto destino da marginalidade. Discorre sobre como a experincia com a Literatura por internados pode ocasionar microprocessos bifurcadores dodeterminismoinstauradonessesespaos.Oestudosugereaindaa leituradetextosliterrioscomopossibilidadedeaprendizagemticae transformao de si mesmo e do mundo. Oprojetodaoficinasurgiucomintuitodepromoverexperincias, em suas dimenses cognitivas, afetivas e emocionais por meio da leitura de textos, instaurando um intervalo no cotidiano prisional e convidando osparticipantesaumencontroconsigomesmo.Esteseinsereno quadrodetrabalhosqueusamasoficinasdeartecomoinstrumento detransformaosocialedeproduodesubjetividade,pormeioda leituraemconjuntoedadiscussodostextos.Ocontatocomautores clssicos,comoEdgarA.Poe,JorgeLuisBorgeseGracilianoRamos poderiaabrirespaoparadescobertasporexperinciasafetivasdiretas, proporcionadaspelaapuradasutilezacomquetaisautorestratamde temas caros existncia humana. Sero apresentados relatos de encontros com o objetivo de demonstrar aspectos relevantes da dinmica do grupo e a diversidade de temas que estiveram presentes, no intuito de evidenciar a multiplicidade dos efeitos daleitura.Paraacompreensodotemadainstituio-priso,foram usadas as ideias de Erving Goffman, Michel Foucault e Loc Wacquant. Sobreosestudosacercadaproduodesubjetividadeemoficinasde leitura,tomamoscomoreferencialGillesDeleuze,FelixGuattarie Virgnia Kastrup.2 Sobre a priso O fracasso da instituio penal em seu objetivo de reduzir a criminalidade foiconstatadodesdeosprimeirosanosdosculoXIX,depoisdeseu estabelecimento como dispositivo penal, e sempre esteve acompanhado de sua manuteno. Em Vigiar e punir (1977), Michel Foucault sugere a anlise da deteno penal no pelo seu objetivo fracassado de suprimir acriminalidade,masantesdedistinguirasinfraes,organiz-lase us-las,introduzindo-asemumagestodiferencial,construindouma economia geral das ilegalidades. O investimento na punio gera prticas ilegaisquandoproduzdelinquncia.Foucaultpropeumaanliseda detenopenalcomoviadecontroledapopulaoerranteedeatos ilegais, impedindo que estes se ampliem e se manifestem. Desde ento, a punio no reprime o crime, mas atribui ilegalidade a determinadas 25 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, dez. 2009A experincia com a Literatura numa instituio prisionalinfraesemarcadefinitivamenteoscondenados,mesmoaquelesque quitaram suas dvidas com a justia. Atualmente o modelo de punio como privao de liberdade responde ademandasreferentesordempoltico-econmicavigente.Coma crise do modelo da social-democracia (baseado na regulao econmica enaextensodarededeproteosocial),bemcomodoadventodo neoliberalismo, notadamente a partir da dcada de 70 do sculo XX, h uma reformulao das polticas pblicas. Tal crise caracteriza a passagem deumregimedeplenoempregoaoreconhecimentododesemprego comofatorestruturaldaeconomia.Nessepanoramainternacional,a taxadeencarceramentomultiplicadaemseisvezesnosltimosvinte anos1.Odesenvolvimentodoaparelhopenalapresenta-seentocomo resposta ao sistema caracterizado pela desregulamentao da economia e aos problemas enfrentados nesse novo paradigma. Como uma tendncia mundial, o sistema penitencirio vem recebendo investimentosmaciosaexemplodapolticapblicadetolerncia zeronorte-americana.Nota-seasupressodoEstadoeconmico, oenfraquecimentodoEstadosocialeglorificaodoEstadopenal (Wacquant,2001,p.18).Almdeforteincentivodamdia,forjada uma contradio pela presena mxima do Estado no setor de segurana e pelo Estado mnimo no mbito socioeconmico. Nos pases marcados porfortesdisparidadessociais,acarnciahistricadeumatradio democrtica torna o impacto de tais mudanas ainda mais mordaz. No Brasil, o peso histrico da escravido, dos conflitos agrrios e da ditadura recai sobre a mentalidade coletiva, no uso da fora policial para a parcela proletria e na estratificao etnorracial no aparelho judicirio, por exemplo. Assim, o sistema penitencirio brasileiro caracteriza-se por superlotao dos estabelecimentos e condies de vida sub-humanas. A brutalidade cotidiana e a ausncia de assistncia populao carcerria apenas concorrem para a situao de pobreza e desigualdade, enquanto condena no s o apenado como tambm sua famlia ao estigma da ficha criminal, levando-os discriminao e ao desemprego. No Rio de Janeiro contemporneo, so necessrias e urgentes intervenes nosentidodeenfraquecerasforasopressorasdoneoliberalismoque impelemapropagao,endmicadocrime,damisriaedomedo. 1Em 1997, nos Estados Unidos, contavam-se 645 encarcerados por 100 mil habitantes, que contrasta com a taxa do perodo anterior de 90 encarcerados por 100 mil habitantes. No Brasil, em 1998, previa-se a duplicao do parque penitencirio (Wacquant, 2001). 26 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, dez. 2009Mhyrna Boechat, Virgnia KastrupPoroutrolado,faz-senecessrioodesenvolvimentodeprojetos transdisciplinaresdeatenopopulaocarcerria,bemcomos famlias, para romper com a lgica viciosa de marginalizao da pobreza ouditadurasobreospobres(Wacquant,2001).Asituaoexige propostasinventivasemovimentosdetransformao,comoparalelo estudo de seus efeitos. 3 Os modos de subjetivao na unidade prisionalAdetenopenaltemcomofunoaprivaodeliberdade,bemcomo a transformao dos indivduos por meio de prticas disciplinares. Foucault (1977) descreve e analisa a disciplina na priso, onde esgotada de maneira exaustivaeintegralemtodasassuasformas,oqueoautorchamade onidisciplinaridade(1977,p.144).Atransformaodoindivduogera saberporintermdiodevigilncia,registroeatualizaoconstantese,em contrapartida, esses mesmos saberes denem como se encaminhar sua pena. Osistemacarcerrio,sejanasuaaplicao,sejanaconstituiodesaber, exerce seus efeitos sobre o corpo, aquele que no deve ser supliciado, e sobre a alma, sede de hbitos. A disciplina vigia, normaliza e examina, delineando a constituio do sujeito. Quando objetiva o sujeito, individualiza e introduz o indivduo moderno na alada do saber. O indivduo se constitui tal como descrito,mensurado,classicadoenormalizado.Napriso,osefeitosde poder e desenvolvimento de saberes se reforam mutuamente. onde melhor seexpressaatecnologiapolticadisciplinar.Trata-sedeumtipodepoder produtivoenoexclusivamenterepressivo,queseapropriadasforaseas reutiliza. O investimento de poder efetua-se a partir dos corpos e das foras e comporta ainda um desdobramento incorpreo direto: a alma moderna.Em sua obra O uso dos prazeres (1984), Foucault aponta a subjetivao como um eixo integrante da relao entre o poder, como vetores de fora, e o saber, como dimenso de verdade e conhecimento. As prticas de subjetivao edecuidadodesiderivamdecdigosmoraisedecondutasnormativas, conferindoaelesumadimensomoduladoraeindividualizante(Deleuze, 2005).SegundoFoucault,amaneiracomoumsujeitoobedeceouresiste a regras, como respeita ou negligencia os valores e seus modos de sujeio s normas constituem margens de variao nicas.Nouniversoprisional,asprticasdesivariamapartirdasnuancesdas leisenormas.Ummesmointernopodetransgredirousubmeter-seauma regra por motivos diversos de outros internos, como tambm pode optar por negligenciar outras regras, traando um caminho prprio. Por exemplo, o uso 27 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, dez. 2009A experincia com a Literatura numa instituio prisionaldedrogaspodedemonstrarposiesdeabsentesmo,formadeapoiofaco criminosa, forma de armao frente aos companheiros de cela, dentre outras. O uso pode ser restrito a algumas drogas ou no e, sendo dessa forma, pode variar por razes ideolgicas, religiosas, status ou outras. A relao consigo mesmo foge ao rigor das malhas de poder e de seus cdigos, oquedarorigemapontosderesistncia,nosquaisapessoaproblematiza oqueeomundoondeseinsere.ComoarmaFoucault,oshomensno somente se xam em regras de conduta como tambm procuram se transformar, modicar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estticos e responda a certos critrios de estilo. o que chama deartedaexistncia(Foucault,1984,p.15).Napriso,ocuidadodesi,essa estticadaexistncia,apresenta-seporesquemascriativosdesobrevivnciae convvionaestruturafsicaesemiticadaqueleespao.Aconhecidaprivao no interior dessas organizaes, somada ao abandono do sistema penitencirio brasileiro, com a escassez at mesmo de materiais bsicos de higiene, produzem mecanismosimprovisadosecriativosdemaneirasdesecomunicar,cozinhar, negociarprodutos,transportarobjetosediversasformasinventivasdeexistir, muitas vezes ilcitas. Sob essa perspectiva, a priso se apresenta no somente em sua estagnao e esterilidade, mas em um estado latente e fervilhante de potencial inventivo. Esse ponto de vista questiona a concepo comum da priso como lugar reservado ao connamento e ociosidade de mentes criminosas, incapazes de exercer qualquer outra atividade alm de sua nica aptido: a disposio ao crime. No podemos negar aqui o poder de violncia e hostilidade do meio, bem como acontecimentos indizveis e mesmo fantsticos aos olhos da classe mdia. Os internos requeriam aos guardas a entrada de livros, instrumentos musicais emateriaisparaconfecodepeasartesanais,demonstrandointeresseem desenvolveralgumaatividadeduranteotempodequedispunham.Muitas vezesaentradadessematerialeranegadapelaadministrao.Arealizao dealgumaatividadesemostravapossvel,jqueexistiamdesejoepotencial inventivo, e parecia necessria, em razo da ansiedade gerada pela ociosidade que, segundo os presos, dicultam a espera pela liberdade. Do ponto de vista prtico, o uso da leitura, onde os recursos necessrios seriam somente livros, se apresentou como sada para a efetivao de um trabalho com a populao carcerria,tendoemvistaacarnciaderecursoseadiculdadeemobter autorizao para a entrada de outros materiais. Por outro lado, sabido que a leitura de textos literrios uma prtica de transformao de si e do mundo. Em sua dimenso tica, a Literatura prepara um campo frtil para promoo de experincias de problematizao e transposio dos limites de si mesmo e do meio (Kastrup, 2000, 2002; Cabral, 2006).28 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, dez. 2009Mhyrna Boechat, Virgnia Kastrup4 Sobre a LiteraturaAleituradetextosliterriospossibilitaodesenvolvimentodemodos desubjetivaoouprocessosdesingularizaoemaneirasderesistira modossobrecodicadospreestabelecidos.Tecnologiascognitivasde massa,comoateleviso,tendemadifundiraserializaoeplanicao desubjetividades,apontandoparaoconsumopassivodeimagens,de sistemaderepresentao,desensibilidadeedesejo(Kastrup,2000,p. 69).Considerandoocasoespeccodospresdiosbrasileiros,amassa carcerriaconsomequasequeexclusivamenteaprogramaotelevisiva como opo de entretenimento. A repetio constante dos mesmos temas nessa programao (que circulam entre violncia, sexo e corrupo) reduz o repertrio de escolhas do preso, que tem poucos canais a sua disposio equevariammuitopoucoentresi.Aleituradejornaispopulares,que comportamtemaselinguagemmuitoprximassdaTV,apresenta-se como uma segunda alternativa de entretenimento. Outra forma de leitura comumnaprisoaqueladecarterreligioso2.Internosquebuscassem porlivrosdeoutranaturezanabibliotecadocolgionoencontravam seno livros didticos. Havia, na biblioteca, poucos livros disponveis de Literatura, os quais permaneciam intocados.Paramelhorilustraraescassezdeescolhaspessoais,Goffman(2005) descreveuadinmicadainstituiototal3comoalgoqueprivaodireito deescolha do internado, em funo de um plano administrativo central eracional,paraapreservaodainstituioemanutenodeseu funcionamento. Os sujeitos so proibidos de escolher os horrios de suas refeies, restringem-se a circular por espaos delimitados, usam vesturio padronizado, etc. Todavia o internado pode escolher entre ler ou no ler, os tipos de leituras, quais autores, a estria, em quais universos pretende se arriscar no interior de uma priso. Arespeitodopotencialdesuperaoprovidopelaarte,Guattarie Rolnik armam:A literatura, bem como a msica ou a pintura podem acarretar processos de percepo e sensibilidade completamente novos, alcanando microprocessos revolucionrios, diferenciao nos modosdetemporalizao,possibilidadedereapropriaode 2 Os pastores costumam proibir qualquer outro tipo de leitura nas celas exclusivamente destinadas a evanglicos.3Goffmandelimitaoconceitodeinstituiototalcomoumaorganizaoqueexigedeseusparticipantescertograude isolamento fsico e simblico, regido por um programa central que organiza o tempo e o espao do apenados. Estabelece o exerccio de certas prticas e usa dispositivos que produzem subjetividades. Uma instituio total pode ser denida como um local de residncia e trabalho, onde um grande nmero de indivduos com situao semelhante, separados da sociedade mais ampla por considervel perodo de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada (2005, p. 11).29 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, dez. 2009A experincia com a Literatura numa instituio prisionalprodutosmiditicos,captaodeelementossituacionaisque construam referncias prticas ou tericas com certa autonomia do poder global, a nveis semiticos (1986, p. 45).Os trabalhos desenvolvidos nas unidades prisionais correspondem, em sua maioria,aumperlclnico,almdaelaboraodelaudosparaavaliao peridicadosapenados24.Pornoatendersexignciaspragmticasda instituio e destoar do entendimento do que seria uma atividade convencional de um psiclogo na priso, a realizao da ocina, em seu carter experimental, despertou desconana e repulsa por parte de alguns prossionais, at mesmo da prpria Psicologia. Aprimeiratentativaderealizaodogruposedeuemoutraunidade prisional,eostrabalhosforaminterrompidospelasuperviso,que,em desacordo com o referencial terico usado, chegou a armar que o trabalho realizado no era psicologia. Esse fato nos levou a procurar outra unidade prisional, o presdio Hlio Gomes, que nalmente aceitou o projeto. Ainda assim,osempecilhosburocrticoseideolgicoscolocadospelainstituio atrasaramoinciodasatividadesdogrupoemnovemeses.Asimples inteno de reunir internos encarnava um cunho transgressor. Os pedidos de autorizao para efetuao da ocina avrios nveisdehierarquia,o atraso nas avaliaes do projeto da ocina, a falta de espao fsico e a indisposio defuncionriosocasionaraminmerasdiculdadesparaaimplantaodo trabalho.Otrnsitodeinternoseradeinteiraresponsabilidadedosguardas responsveispeloturnoe,poressarazo,dava-sedemaneiraconturbada. Observava-seumarivalidadefortementearraigadaentrepresoseguardas, fundadaemdiscursos,afetosesaberesquelegitimamaviolnciafsica esimblica(Boechat,2008).Assim,aposiodealgunsprossionais, principalmente psiclogos e assistentes sociais frente a denncias de violncia, de culpabilizao, de crticas inamadas atuao dos guardas. A rotina de trabalho cria uma ciso entre os prossionais da segurana e os de tratamento, o que diculta a possibilidade de negociao e bom andamento dos trabalhos, prejudicando principalmente os presos. Os psiclogos so vistos pelos guardas como ingnuos por acreditarem no que os presos dizem, dessa forma no conseguem reconhecimento e colaborao. Em um dos encontros, um guarda perguntou sorrindo: voc que conta estorinha para preso?.4A Lei de Execuo Penal 7.210, de 11 de julho de 1984, determina avaliao tcnica dos condenados ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime fechado e semiaberto, com vistas individualizao da execuo. A participao do psiclogo na elaborao de exames delineia sua relao com internos. O psiclogo e seu saber cientco detm efeitos de poder, formulando enunciados que tm estatuto de verdade (Rauter, 1979).30 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, dez. 2009Mhyrna Boechat, Virgnia KastrupAtensodesseambienteseretroalimentacomasprecriascondies detrabalhodoagentepenitencirio,comopoucoreconhecimento,m remunerao, capacitao inadequada, acompanhamento mdico e psicolgico insuciente, superlotao prisional e reduzido nmero de guardas.5 A dinmica do trabalho da ocinaForam realizados encontros semanais, com durao de aproximadamente duashoras.Olimitedetempofoiestabelecidopelasdiculdadesimpostas pela instituio. Os encontros ocorriam na escola ou na igreja catlica ou evanglica de acordo com a disponibilidade desses espaos.O grupo era constitudo de nove internos de idade entre 28 a 52 anos. O grupo era heterogneo quanto ao grau de escolaridade. Havia um interno com o terceiro grau nalizado, dois com ensino mdio e o restante do grupo no havia concludo o primeiro segmento do ensino fundamental. A seleo dos presos foi elaborada por meio de dados coletados nos exames criminolgicos e discusses com a superviso. Foi fundada em dois critrios: o primeiro, a alta penalidade a ser cumprida, pretendia garantir maior tempo de permanncia no grupo. O segundo critrio, no receber visitas de familiares, foi estipulado apartirderelatosdeinternos,quedescreviamumsentimentodeintensa angstiaerelatavamqueafaltadavisitastornavaaesperaporliberdade extremamente difcil. A maioria dos participantes s havia tomado contato com livros de carter religioso, como a Bblia ou com livros do gnero autoajuda. Em princpio, a escolha dos textos no foi realizada pelos presos, mas pela prpria coordenadora do trabalho, e o material era copiado e distribudo ao grupo. Na seleo dos primeiros textos, foi usada como estratgia a literatura fantstica que, segundo taloCalvino,nosdizmuitascoisassobreainterioridadedoindivduoe sobreasimbologiacoletiva(2004,p.10).Algunsexemplosdecontos utilizados nesse perodo foram O corao denunciador e A casa de Usher, de Edgar A. Poe; O livro de areia e O Outro, de Jorge L. Borges. O conto fantsticofoiescolhidopelaprpriasolicitaodospresosporaventura5. Os nais surpreendentes, com elementos extraordinrios ou coisas banais que ocultassem algo de aterrador, envolvia a todos.Posteriormenteforamemprestadoslivrosparaqueosinternoslevassem paraacelaeescolhessemocontoaserlidonoprximoencontro.Pedia-seentoqueelesexplicassemomotivodaescolha.Tambmforamfeitas 5 Para o detalhamento do tema, conra Boechat (2008).31 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, dez. 2009A experincia com a Literatura numa instituio prisionalavaliaes regulares a respeito da dinmica do trabalho, em que se perguntava o que poderia mudar para torn-lo melhor e quais eram os aspectos positivos enegativos.Foramelaboradosrelatosdetalhadosdetodososencontros realizados.Primeiramente,esclareciaosinternosqueauncianaleituranoseria condio para participarem da ocina e que os que tivessem diculdade de acompanhar poderiam compreender a estria ouvindo, pois faramos mais de uma leitura em voz alta. Deixei bastante claro que, mesmo sendo da Psicologia, no pretendia avaliar seus comportamentos. Tive o cuidado de esclarecer que a participao na ocina no implicaria na concesso de benefcios legais em seus processos, pois os internos, em geral, anseiam por pareceres favorveis. Semprehaviacuidadoemusaralinguagemmenosformalpossvelpara reduzir a distncia que me separava do grupo enquanto dotora (como me chamavam) e me preocupava em no pressupor ingenuidade da parte deles por seu baixo nvel de escolaridade. Pensava que se tratasse de temas existenciais, encontrariapontosdecruzamentoeumalinguagemcomumatodosns, independente das discrepncias sociais e culturais existentes.A ocina guardava constante ateno em no imprimir nos participantes discursos vazios a respeito de uma suposta importncia da leitura, ou ainda discursos impregnados da noo de cultura-valor, no sentido levantado por Guattari e Rolnik (1986), em que a palavra cultura remete a um julgamento, substituindonoessegregativas.Nosetratavadeumexercciodaleitura para acumular de saber ou obter cultura.A seguir, sero apresentados os relatos de dois encontros.6 As joias, de Guy MaupassantO conto As joias foi retirado de uma coletnea de Guy Maupassant, que encontrei em meio aos livros didticos da biblioteca. O livro era datado de 1955,etodasaspginastinhamasextremidadesunidas.Foiprecisocortar as antigas pginas amareladas para que fosse lido pela primeira vez, aps 52 anos de sua publicao. Foram feitas cpias do texto para serem distribudas aos participantes.Como de costume, aguardei por aproximadamente uma hora e quarenta minutos pelos participantes para dar incio ao trabalho. A leitura foi iniciada sem qualquer explicao prvia sobre o conto. O texto narra a estria de um homem que se casa com uma graciosa jovem de classe mdia, muito dedicada, e levam juntos uma vida modesta, pacata efeliz.Atque suaesposa vema falecer,eeledescobreumafortunaemjoiasemseuspertences,levantando 32 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, dez. 2009Mhyrna Boechat, Virgnia Kastrupdvidas sobre a sua delidade. O personagem passa a viver angustiado, mas opta por no buscar a verdade nos fatos passados e passa a usufruir os bens herdados. Gozando de uma vida confortvel, resolve casar-se novamente, dessa vez com uma mulher honesta, porm irascvel, que no o faz feliz. Ao trmino da leitura, expliquei que o autor tinha escrito o texto por volta de 1850, e por isso usava palavras desconhecidas, mas armei que isso no prejudicaria nosso entendimento do texto.Umdosparticipantesexclamouintrigado:Iaserbomterolivro,para saber o nal da estria. Eu respondi: A estria termina aqui mesmo. Outro internoexclamou,indignado:Entoaestriatmalcontada.Notem m...Expliqueiqueariquezadotextoestemdeixarnoleitoradvida atormentadoraqueviveuopersonagem.Seguiu-seocomentrio:Seesse autorestivessevivo,eumandariaumacartaparasaberomdaestria. Nadiscusso,todosconcluramqueumamantehaviadadoasjoiasparaa jovem.Outrointernoexclamouqueaculpaeradame,quetinhamania de grandeza e queria casar a lha com um homem rico. Ele se refere a um detalhepresentenumapassagemdotexto,arespeitodasambiesdame da personagem, que gostaria de casar a lha com um homem rico. Algum comenta que a famlia no tem culpa pela desonestidade da lha: A minha famlia honesta, e eu sou ladro.Outrointernoarmouque:Oqueosolhosnoveemocoraono sente.Eunoianemquerersaberdeondevieramasjoias.Iapensarque elaeconomizavaodinheiroe,seelatraamesmo...noimporta.Oque importamesmoqueelamefezfeliz.Falaramsobreestriasdetraio naprisoerecordaramumcasoocorridonaunidade,emqueaesposado internoseenvolveucomoutrapessoa,eseucompanheirofoiavisadono presdio.Eleaguardouodiadeseuparlatrio26e,duranteavisita,matoua facadas a namorada. Os internos armaram que o ocorrido no incomum e j aconteceu em outros presdios. Falaram de outros destinos para traies, como, por exemplo, internos que so largados por suas namoradas e acabam sematando.Poucassemanasmaistarde,aequipedePsicologiasoubede um caso de suicdio pelas mesmas razes discutidas. O Faxina7 da sala da Psicologia chegou pela manh na sala de atendimento muito abalado. Disse que seu companheiro estava demorando a acordar para trabalhar e, quando ele o chamou em sua comarca8, constatou que ele havia se suicidado. Havia 6Como chamada a visita ntima, onde o interno tem o direito de car a ss com sua companheira. 7So chamados faxinas os internos que trabalham para a instituio. 8Cama de alvenaria individual xada s paredes das celas, onde cam sobrepostas como beliches.33 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, dez. 2009A experincia com a Literatura numa instituio prisionalamarrado os ps em uma extremidade da comarca e seu pescoo em outra e, exionandoosjoelhos,forousuagargantaeveioafalecerporasxia.O faxina contava ofegante que seu amigo havia recebido uma carta da esposa informandoqueestavamorandocomoutro.Disseento:Nodpra aguentar isso aqui (referindo-se priso) sem famlia no, doutora. Ningum aguenta isso no. OcontodeMaupassantcompostoporpalavrasrebuscadas,prprias dosculoXIX.Haviaapossibilidadedeestarmospropondoumaleitura muito densa para aquele que era um dos primeiros encontros, fazendo com queaocinacassenoriscodaindiferena,pelainacessibilidade.Quando solicitavam,esclareciaosignicadodealgumaspalavras,apresentando sinnimos.Nomomentoemqueopersonagemcentraldescobreasjoias nospertencesdesuaesposa,levantandosuspeitassobresuadelidade,era notvel a expresso facial de surpresa e espanto nos rostos dos participantes, denunciando o envolvimento com a leitura. E um deles chegou a exclamar: J existia isso desde aquela poca!. Isso contava como um dos indcios de o texto ter atingido os leitores, apesar da diculdade do vocabulrio.Pudenotaraindaqueosinternosnuncahaviamtidocontatocomesse tipo de estrutura de texto, que deixa em aberto questes levantadas e mantm umaatmosferadedvidaseproblematizaes.Issopodesejusticarpelo fatodesuasexperinciasseremquasequeexclusivamentecomleiturasde cunho religioso, que ensina ao leitor concluses seguras a respeito de certo contedomoralaseraprendido.Oestranhamentoemrelaoaotexto deMaupassantchegouaserentendidoporumdelescomoseaestria estivessemalcontada.Expliqueiaelesqueaestriafoiassimconstruda de maneira intencional, e que a grandeza do autor expressava-se justamente em sua capacidade de transmitir ao leitor o mal-estar do personagem, em sua dvida atormentadora de ter sido trado. Esclareci ainda que no era objetivo daocinaprivilegiarcertosautoresouestilos.Apenashaviatrazidouma possibilidade de escrita indita, diferenciada de suas leituras anteriores.Ocalordadiscusso,emseusgrausdediscordncia,sooucomosinal marcante dos efeitos afetivos gerados pela leitura. Num encontro posterior, umdosparticipantesmaismobilizadosdissequenoconseguiapararde pensarnessetextoequenarrouparaseuscompanheirosdecela,quese interessarameml-lo,gerandopolmica.Outrosparticipantesagiramda mesmaforma.Nessemesmodia,uminternocomentouterlidootexto doencontroanterior(ARosadeParacelso,deJorgeL.Borges)comseu amigo de cela, que se interessou pelo tema e pediu para participar do grupo. 34 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, dez. 2009Mhyrna Boechat, Virgnia KastrupPosteriormente, outros participantes do grupo tambm dividiram seus textos com companheiros de cela. Esse evento chamou ateno, e foi um indicador de um efeito imprevisto. Criou-se, paralela ocina, uma rede de leitores, participantes no presenciais, que inuenciavam indiretamente a dinmica do grupo, atravs da leitura em suas comarcas, que geravam discusses nas celas e retornavam ao grupo. Quase todos os participantes trouxeram bilhetes de seus companheiros, solicitando a participao na ocina. Nem sempre pude atender aos pedidos. No entanto, a inuncia da prtica alastrou-se, envolvendo um nmero maior de internos. Aos poucos, a iniciativa de emprestar o texto aos companheiros se estendia a outras celas, criando um uxo de trocas em um contgio enriquecedor. Pela impossibilidade de entrar nas galerias, s pude avaliar os efeitos dessa leitura no acompanhada pelo que era trazido ao grupo. Sugeriquerelessemnacelaostextosquelheshaviainteressado,porque assim descobririam mais elementos no texto e poderiam at mesmo chegar a novas concluses. 7 A ocina avaliada pelos leitoresOinciodoencontrosedeus12h30min,emumasaladocolgio.O preparo necessrio para convocao de internos se dava pela manh, e nosso encontro acontecia em mdia com uma hora e meia, at duas horas de atraso, porcausadasdiculdadesimpostaspelainstituio.Trsnovosinternos chegaram ao grupo, e outros trs saram. Eraperodo de recesso,e aescola no tinha sido frequentada, nem tinha sido limpa. nossa volta, acumulam-se pelos cantos e em cima de algumas mesas dejetos de ratazanas. A ameaa integridadefsicaestavapresentenoapenasnointeriordascelas,ea iminncia da contaminao se estendia tambm aos funcionrios e visitantes. Durante o tempo em que aguardamos a chegada de todos, conversamos sobre o livro Manicmios, prises e conventos, de Erving Goffman, que eu trazia comigo e que estava sobre a mesa, chamando a ateno do grupo. Expliquei brevemente o assunto do livro e disse que, apesar de ter sido escrito em 1963, ainda era pertinente para os estudos sobre as prises atuais. Perguntei se eles achavam que a priso atual mais humana, levando em considerao que a maioria deles j havia sido presa mais de uma vez.Umdosinternosarmou:Achavamelhorantigamente,porqueagente falava com o pessoal dos direitos humanos. Eles iam l dentro das galerias e ouviam a gente. Antes os presos se respeitavam mais. Hoje em dia, os presos so muito novos e no respeitam ningum. Os internos mais velhos espantam-se 35 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, dez. 2009A experincia com a Literatura numa instituio prisionalcom o niilismo dos mais novos, que no tm um ideal pelo qual lutar, no tmidenticaocomsuaatividadenocrimeesevendempelasdrogas. Perguntei se o fato de o grupo ser predominantemente constitudo por pessoas maisvelhasteriaavercomessaindisposiodosjovensparaseengajarem. Eles concordaram: Eles no tm vontade de fazer nada, cam o dia inteiro arrumando briga na cela. Segundo eles, os mais jovens caracterizam-se por serem violentos e no respeitarem limites. Batem em coroa, matam qualquer um por drogas. Segundo seu discurso, parece haver uma tica que se perdeu com a introduo da cocana no crime. Parece que a exibilizao de valores, prpria da contemporaneidade, se expressa diretamente no comportamento dos jovens e na macroestrutura do crime.Faleisobreosmaustratosquetambmexistiamnosmanicmios,eum interno lembrou: Fui fazer um trabalho na casa do diretor do manicmio da regio onde residia e, na hora, l, eu lembrei de tudo que falaram dele (rindo). A eu z com ele tambm, para saber onde ele guardava o dinheiro. Ocoroaeraruim,nodisse...Sfalouquandopegamosolhodele.Os internos mais velhos so especializados em um tipo de crime, e chamam sua atividade de trabalho. Cada um falou sobre seus trabalhos. Um dos recm-chegados ao grupo dizia que sua arte era outra, era chave mestra. Abria lojas para que outros roubassem. A importncia do crime em suas vidas ganha a dimensodeumtrabalho,comtodasassuasimplicaesdeidenticao, reconhecimento social e engajamento. Comtodososparticipantespresentes,inicieiaavaliaodotrabalhoda ocina.Pediqueosinternosantigosexplicassemaosquehaviamchegado comofuncionavaogrupoeporqueestavamali.Umdosparticipantes, bastante entusiasmado, disse que poderiam se beneciar nos exames de sua participao no grupo, ou seja, o psiclogo poderia dar boas referncias dele ao juiz. Armou que sair da cela era o maior benefcio, e que ali eles podiam sedistrairtambm.Outrointernodissequealielespoderiamsairdacela para respirar, poderiam ganhar benefcios, aprender a ver as coisas de outra maneira e abrir a mente. Outro disse que o grupo era bom, porque sua participao poderia expedir pareceres favorveis em suas avaliaes judiciais. Disse ainda que ali era um espao reservado, em que poderiam falar o que sentiam,desabafar.Apesardosmeusesclarecimentosiniciaisquanto participao na ocina no implicar em benefcios em relao aos pareceres, os internos ignoraram por completo minhas advertncias do primeiro encontro. No entanto, a opinio geral sobre o grupo parecia se centrar nos benefcios, na possibilidade de circular pelo presdio e, em ltimo lugar, considerou os efeitos da leitura. Uma interpretao precipitada de seus discursos apontaria 36 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, dez. 2009Mhyrna Boechat, Virgnia Kastruppara o fracasso dos nossos objetivos iniciais, como uma espcie de injeo de desnimo sobre nossa expectativa a respeito de seus resultados. Contudoasfalasfaziamnotarocarterintempestivodaexperincia. Se, por um lado, demonstravam a carncia de discursos que sustentassem e positivassem a prtica da leitura de textos literrios, por outro demonstravam acentuadoenvolvimentoafetivocomela.Pode-secogitarqueosmembros maisantigosdogrupo,suamaneira,disseramaosoutrosinternosrecm-chegados que a ocina seria uma boa oportunidade e, para isso, apontavam vantagens,mesmoaquelasqueeuterminantementegarantiquenolhes daria. Nomesmoencontro,doisdelescontaram,revoltados,queuminterno roubou um livro de mil oitocentos e pouco da biblioteca, levou para a cela equeimouolivroapenasparafazerumafogueira.Comosehouvessem presenciado um crime, descreviam e reprovavam a maneira como o homem desfolhou as pginas do livro para queim-las uma a uma: A gente no podia fazer nada. Tambm podamos notar o cuidado com os livros quando alguns participantesdevolviam-nosreparadosporelesmesmos,commaterialdo colgio. Os enredos das estrias passavam posio de tema central nas discusses comoutroscompanheirosdentrodasgalerias.Elementosdoscontos confundiam-se com os de sonhos, a exemplo do interno que, indignado com apossvelindelidadedapersonagemdocontodeMaupassant,chegoua terpesadeloscomessamesmaquesto.Entretantooprincipalindciodo compromissocomaocinaeraaprpriapresenanasatividades.Apso encontro, saam diretamente da escola para a gaiola29 e l esperavam serem levados de volta para a cela. O encontro era realizado na parte da manh, e osinternosaguardavamnaquelecubculoimundoatquatrohorassemse alimentar,eaindasofriamameaaseprovocaes.Uminternohaviadito que procurava manter-se afastado da escola para evitar confuses, porque a sada da cela expunha a contatos e consequentes riscos. Todos concordavam que frequentar a ocina era arriscado. Alm disso, a postura de concentrao e envolvimento no parecia em nada com uma simples atitude de evadir de suas celas apenas para passar o tempo.Notou-sequeosinternosqueseuniramaogruponesseencontro apresentavam um tipo de relao fsica com os textos discrepantes daqueles 9A gaiola uma cela de pequenas propores. Os presos so direcionados de suas celas para este local, e aguardam at que sejam chamados para atendimento. Diariamente, a gaiola permanece lotada, e seus ocupantes chegam a passar horas de p em condies sub-humanas.37 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, dez. 2009A experincia com a Literatura numa instituio prisionalque j vinham acompanhando o trabalho. Os primeiros seguravam-no como seozessemcomqualquerobjeto,sematentarparaocontedoescrito, enquanto os segundos demonstravam extremo cuidado. 8 A Literatura e a expanso de territriosA ocina de leitura no ambicionou ser uma resposta opositiva ao problema da excluso social e produo de delinquncia prpria instituio, mas se apresentoucomoummovimentoderesistnciaeumdesvioemrelaos prticas psicolgicas mais frequentes e aos objetivos institucionais apoiados em prticas de privao e de disciplina. Para tanto, forneceu subsdios para a criao de modos de subjetivao, ampliando a oportunidade de experincias de si por meio da leitura. Naelaboraodosrelatos,procuramosnotenderaesquemas classicatrios,transcendentes,reducionistas,hierarquizadosou culpabilizantesemumcampodesaberjtomarcadoporconcepes preconceituosas. Em alguns pontos, a ocina atingiu objetivos de transposio doterritrioexistencialprisional,impulsionandoprticasinditaspelos seus componentes e gerando efeitos imprevistos. Como exemplo, podemos memorarocasodeuminternoqueserecusavaaleremvozaltaparao grupo,semdizerarazo.Elearmavaquenofrequentavaaescolapara evitar confuses com guardas e presos. Por seu intenso envolvimento nas discussesacercadostextos,insistimosparaquelessetambm.Quando aceitou,apresentousriadiculdade,seguidadenotvelconstrangimento. Nos encontros seguintes, ele passou a ler com mais frequncia. Sua leitura sedavadeformalenta,maselesemostravaperseveranteaosustentarsua participao no grupo. Fazia a escolha de contos, como eu propunha e, alm disso, revelava considervel esforo para acompanhar o ritmo de leitura do grupo. Ao longo do trabalho, acabou procurando o colgio e se matriculou, pois o grupo o incentivou a voltar a estudar. Segundo ele, sua diculdade de ler o atrasava muito na leitura das estrias que gostava. Aextensodosefeitospositivospodeserobservadatambmemoutro interno, que gostava de escrever poesias, mas que se queixava a respeito de aprisonodeixarescrever.Aolongodasocinas,passouatrazersuas poesias antigas e novas, que lamos em voz alta. Foi possvel notar relevantes mudanas em relao ao valor conferido ao livro. Se, no incio, o objeto livro produzia olhares vazios, a prtica da leitura foi,aospoucos,conduzindoanovasrelaesesentidos.Nosprimeiros encontros, os internos no xavam seus olhares sobre as palavras ou frases. 38 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, dez. 2009Mhyrna Boechat, Virgnia KastrupUm dos participantes, na roda de leitura, ngia prestar muita ateno ao texto.Masobserveiqueeleoseguravadecabeaparabaixoedesviavao olhar frente aos mnimos estmulos do ambiente. De objeto estranho, o livro passa a compor rotinas, ocupar espaos em suas vidas e ganha importncia. Umclaroexemplofoiocasojrelatadodosdoisinternosqueassistiram absolutamenteconsternadosaumcompanheirodecelaqueimandoum livro muito antigo, furtado da biblioteca. No decorrer dos encontros, a ateno se volta progressivamente para o texto. Segue-se ento uma leitura cada vez mais encarnada. Como exemplo, podemos citar casos de sonhos matizados por elementos dos contos lidos ou ainda o caso do interno que evitou ler o conto sobre um navio fantasma antes de dormir, pois a descrio do balano lhe causava nuseas.O encontro com o texto exige entrega, conana nas pessoas envolvidas e reduo de controle sobre o meio (Kastrup, 2002). No incio das atividades daocina,ospresosarmavamrepetidasvezes:Napriso,ningum amigodeningum.Nessesentido,foiimportantepactuarqueoquese comentava dentro do grupo no poderia sair dali. A desconana de alguns foi superada pela entrega de outros. J nos primeiros encontros, os internos deixaram de negar seus crimes e passaram a discuti-los abertamente. Foram acolhidasedebatidasopiniessobreasrelaesdopresdio,carregadas derevoltaetristeza.Umtrabalholentoepreciso,degestosepalavras, tecendo minuciosamente um territrio afetivo composto pelos membros e pelo texto. Um lugar em que procuravam garantia, alguma segurana e a delimitao em relao a um territrio prisional, perigoso e adverso. Esse novoterritrioseconrmanafaladeumparticipante:Nostornamos uma famlia. A gente se encontra no banho de sol e ca junto falando de um monte de coisas. Evidencia-se uma diferena substancial na coeso do grupo. Aocinaproduziramovimentosgradativos,desadadesiede encontrocomotexto.Issosignicavaodistanciamentomomentneo de preocupaes com a condio de preso, lho, marido ou marginal. O desvio dessas formaes cognitivas e existenciais habituais e a consequente desterritorializaoabremcampoparaaproblematizaooferecidapela prticadaleitura.Umaatenonaeinventivaconstituiuumaatitude aberta,dedisposioparadescobertasenovasexperinciasdesido mundo.A formao de um territrio afetivo de leitura viabiliza desterritorializaes ereterritorializao,almdedistanciardadimensomolardapriso.A 39 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, dez. 2009A experincia com a Literatura numa instituio prisionalatenoaotextoretirava-nosdaatmosferasaturadadopresdio.Pouco apouco,estampidos,gritosiradosdeameaasealtasgargalhadasjno provocam mais qualquer reao em nenhum de ns. Asdelimitaesdonovoterritrioafetivoconstitudotornavam-se ntidasecontrastavamcomoscdigosexteriores.Aomdosencontros, umguardavinhabusc-los.Osinternossecalavam,adotavamexpresses sisudas,baixavamacabeaecolocavamasmosparatrs,emsinalde respeito e submisso autoridade. Era contrastante a atmosfera do grupo e a semitica do presdio, carregada de extrema violncia. Essas delimitaes eocontrastesvezestraziamconitos.Umdosparticipantesdogrupo, aps a leitura de um texto, descontrado, resolveu reclamar do longo tempo queteriamqueaguardaratquefossemlevadosparasuascelas.Como consequncia,foiobrigadoaaguardaroitohoras.Seuscompanheirosde grupo foram liberados para suas celas, mas o interno permaneceu ali, sem alimentaoesofrendoameaas,provocaeseagressesfsicas10durante todo esse perodo. Frentescondiessubumanasjcitadas,capatentequeo desenvolvimentodeprojetossociais,artsticoseculturaisnoambiente prisionalrompecomalgicacorrosivadaprisosobreosapenados. Conclumos que a diferenciao dos processos cognitivos, da percepo e da sensibilidade,promovidapelocontgiodaLiteratura,expandeterritrios existenciaisemdiversasdimenses,dessaformadesestabilizaosefeitos subjetivosprevistospelainstituioedesregulaaspretensesnormativas e disciplinares geradas pela internao, que acabam arrastando novamente para a criminalizao. Para concluir, preciso reconhecer as limitaes deste estudo em relao compreensodoslargosefeitosproduzidosporessaexperinciacoma Literaturanainstituioprisional.Sernecessriodarcontinuidadeao estudo, tendo em vista sua relevncia poltica e social, a elevada quantidade de material produzido e de temas deixados em aberto. Agradecemos aos psiclogos da Coordenao de Psicologia, ao apoio da SEAP na forma de uma bolsa de estgio e, principalmente, aos internos da Unidade Prisional Hlio Gomes que participaram da ocina de leitura.12Ocasofoilevadoaodiretordopresdio,masnofoitomadanenhumaprovidncia.Apartirdesseevento,passeia acompanh-los at o momento que fossem transferidos para suas celas, e essa postura me levou a embates com guardas e situaes de extremo desgaste emocional.40 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 22-40, dez. 2009Mhyrna Boechat, Virgnia KastrupRefernciasBoechat. M. (2008). Literatura e territrios existncias: a experincia da leitura nainstituioprisional.Monograadeconclusodecurso.Universidade Federal do Rio de Janeiro, Curso de Psicologia, Rio de Janeiro.Borges, J. L. (2001). O livro de areia. So Paulo: Globo. BRASIL. Presidncia da Repblica. (1984, jul 13). Lei 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execuo Penal. Dirio Ocial da Unio. Disponvel em: . 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