Integração de imigrantes

6
São líderes de associações de imigrantes vocacionadas para áreas específicas de apoio à integração das suas comunida- des,como por exemplo a educação ou as trocas culturais. Porém,diariamente a braços com todo o tipo de urgências (habitação,alimentos,saúde,processos de legalização etc.), e alguns relativamente impreparados para as parcerias,vol- taram à escola – desta feita para aprender as linguagens da negociação social europeia e o trabalho em rede. aprender a negociar a integração em «europês» 44 » noticiasmagazine 27.JUL.2008 REPORTAGEM TEXTO Sarah Adamopoulos ¬ FOTOGRAFIA Pedro Azevedo

description

Reportagem sobre as políticas de integração de imigrantes em Portugal

Transcript of Integração de imigrantes

Page 1: Integração de imigrantes

São líderes de associações de imigrantes vocacionadas paraáreas específicas de apoio à integração das suas comunida-des,como por exemplo a educação ou as trocas culturais.Porém,diariamente a braços com todo o tipo de urgências(habitação,alimentos,saúde,processos de legalização etc.),e alguns relativamente impreparados para as parcerias,vol-taram à escola – desta feita para aprender as linguagens danegociação social europeia e o trabalho em rede.

aprenderanegociaraintegraçãoem«europês»

44»noticiasmagazine 27.JUL.2008

REPORTAGEM

TEXTO Sarah Adamopoulos ¬ FOTOGRAFIA Pedro Azevedo

Page 2: Integração de imigrantes

47»noticiasmagazine 27.JUL.2008

é proibido. Trata-se de uma tradição muitorespeitada, sobretudo pelas gerações maisvelhas. Nós defendemos que as pessoas de-vem ser educadas no sentido de não fazerema mutilação. Contudo, pensamos tambémque isso é um traço de identidade que deveser explicado, contextualizado, uma coisaque pertence à nossa cultura e que deve porisso ser abordada sem tabus. Há muita gen-te que já nasceu cá, mas que se for à Guinétem de poder identificar-se com os valorestradicionais da sua cultura, na qual essaspráticas são vistas como traços de coragem.O nosso projecto quer poder debater tudo is-so, numa perspectiva educativa.» Há emPortugal cerca de 70 mil guineenses, 50 millegalizados.

Integrar na diversidadeBubakar Baldé, quarenta anos, a viver emPortugal desde 1997, é natural da Guiné-Bis-sau, embora tenha optado pela nacionalida-de portuguesa. É presidente do Centro deEstudos Árabe Pulaar [também chamadalíngua fula, é falada por mais cerca de 15 mi-lhões de pessoas, em vários países tais comoo Senegal, o Sudão ou os Camarões, sendo a

língua oficial de outros tantos, tais como oMali ou a Nigéria] e Cultura Islâmica, quetem sede na Reboleira. «Nós pensamos queas pessoas têm de conhecer a língua do paísonde estão para poderem comunicar e serintegradas. Este centro foi criado para ensi-nar as pessoas a falar três línguas: a portu-guesa, a língua árabe de cultura islâmica e alíngua pulaar. A maior parte dos nossos asso-ciados é muçulmana e vive entre Lisboa eSintra. Esses imigrantes querem que os seusfilhos conheçam a sua religião e cultura. En-tre os nossos associados temos tambémmuitas pessoas oriundas da Guiné, sendoque a maior parte fala língua fula. Nós ensi-namos também essa língua, para que os fi-lhos desses imigrantes possam manter vivaa ligação à sua cultura. Costumo dar o exem-plo do neto que não sabe falar com o avô. Umavô tem uma grande emoção quando nasceum neto, mas que tristeza se esse avô não po-de comunicar com ele, porque esse neto nãosabe falar a língua. Quando isso acontece háum corte. Nós pensamos que esse corte nãotem de acontecer, e que as crianças devemconhecer as duas línguas, a portuguesa e aafricana.»

«Este centro tem oitenta metros quadra-dos, temos duas salas de aulas, uma sala deculto e um escritório. Temos 1500 associa-dos – se tivermos dez por cento desses asso-ciados aqui, não cabem todos. Como vê, es-tas crianças enchem essas duas salas.» À nossa volta, há imensas crianças a brincar,que se penduram nos braços de Bubakar egritam e jogam à bola. Estamos numa daszonas consideradas mais problemáticas deLisboa, nas imediações dos bairros da Covada Moura, 6 de Maio ou Azinhaga dos Be-souros. Bairros com enormes problemas, degente que precisa de um enquadramento.Pessoas demasiado distantes dos seus paísese culturas, mas não suficientemente próxi-mas de nós. Que não compreendem os nos-sos valores, que conhecem a nossa línguapela rama, que por vezes não são capazes delê-la ou escrevê-la, e que por todas essas ra-zões não terão acesso a todo o tipo de opor-tunidades, nomeadamente profissionais.«São sociedades com sistemas muito dife-rentes, pessoas para quem é difícil entendero estilo de vida europeu, e há muitos desen-tendimentos entre os homens e as mulhe-res. Os homens têm uma atitude africana.

46»noticiasmagazine 27.JUL.2008

2008 é o Ano Europeu do Diálogo Intercul-tural, iniciativa do Parlamento Europeu quevisou promover uma ideia de Europa cujaobjectivação depende contudo de processosmais lentos e complexos do que declaraçõesde intenções e decretos. Uma ideia ambicio-sa, cujos grandes obstáculos naturais (histó-ricos) de sempre (os da educação para a ple-na aceitação do outro diferente, os da cultu-ra etnicista de cariz hegemónico que aindavigora) se viram entretanto ampliados peloadvento de uma globalização assente namercantilização de uma cultura de consu-mo. Não será portanto de estranhar que ameta da interculturalidade (imprescindívelà fundação de um novo modelo de socieda-de) encontre também em Portugal todo o ti-po de barreiras: as que (ainda que subcons-cientemente) se erguem em cada um de nóscontra a globalização que verdadeiramenteimporta fazer: a dos valores, culturas, iden-tidades diferentes.

«Gerir projectos em parceria» é um cursodestinado a formar ou a reciclar líderes de as-sociações de imigrantes em Portugal. Trata-se de uma formação de carácter inédito, a de-correr até ao final de Setembro próximo, fi-nanciada pelo Fundo Social Europeu eenvolvendo a Faculdade de Ciências Huma-nas da Universidade Católica Portuguesa e oAlto Comissariado para a Imigração e Diálo-go Intercultural (ACIDI). A nm foi ouvir al-

guns dos formandos (sete de cerca de trinta)e também as responsáveis científicas pelaformação, Isabel Guerra e Teresa Ramos [vercaixa na página 54]. Mário Cabral, 67 anos, ne-to de um capitão da Marinha Portuguesa, en-genheiro agrónomo, representa a ONGD(associação não-governamental para o de-senvolvimento) Guineáspora, que congregaguineenses espalhados por diversos países.Várias vezes ministro em sucessivos gover-nos da Guiné-Bissau (da Educação, da Agri-cultura, da Justiça, do Comércio, etc.), MárioCabral tem um percurso de combatente.«Fiz a luta pela libertação nacional e fiz par-te da comissão que elaborou a mudança daConstituição.»

Pintar a manta dainterculturalidadeO ex-governante considera o povo portuguêsacolhedor, mas lembra que isso não resolvetudo, e que «há uma certa tendência para pin-tar a manta da interculturalidade. Entre amulticulturalidade e a interculturalidade,diz-se de Portugal que sempre optou pelatransculturalidade, aceitando os valores dosoutros povos na construção de um caminhocomum. Mas isso não é verdade, e a Históriaprova-o. Portugal não teve umapartheid, masconstruiu-se separadamente. As pessoas nãorejeitam, não se confrontam, mas tambémnão se aproximam. Limitam-se a ir aceitando

brandamente o outro. Quando eu era estu-dante de Agronomia diziam-me que eu eradiferente, querendo com isto dizer que nãoera o típico representante de África, porque jáme tinha civilizado...»

O espírito de uma lei precisa de fazer ca-minho, de criar raízes, para atingir o homemcomum nos seus comportamentos. A plenaaceitação do outro diferente não é coisa quepossa ser imposta por decreto, de um dia pa-ra o outro. Esta é aliás uma área minada pe-los grandes mitos do encontro das civiliza-ções, para os quais os mais críticos conside-ram que o discurso da Europa social muitocontribui. O mito do português abraçante,sem reservas, amigo de todos os outros po-vos, por exemplo. Na verdade, muitos são osafricanos que continuam a sentir uma atitu-de paternalista por parte dos portuguesesex-colonizadores. Senão vejamos: já lá vãomais de trinta anos desde a independênciados países africanos, anos marcados por va-gas de imigração de gente vinda das ex-coló-nias, e, contudo, quantos africanos ocupamhoje em dia lugares de relevo na sociedadeportuguesa? «Olhando para o processo his-tórico observamos que Portugal não estavapreparado para a cooperação. Portugal esta-va, isso sim, preparado para a colonização. A independência dos países que colonizouobrigou Portugal a cooperar, mas semprecom enormes fragilidades. A própria lei daimigração peca por ser uma lei para mino-rias, para etnias, e isso está inclusive paten-te na linguagem dos decretos, até hoje. Ouseja, Portugal não estava aberto à integraçãodas minorias e, também por isso, a integra-ção é feita no sentido da assimilação, tal co-mo se fazia no tempo colonial.»

A Guineáspora nasceu na internet, contaMário Cabral. «Pusemo-nos todos em con-tacto e criámos a organização.» Cabral de-fende uma estrutura de tipo federativo paraa comunidade guineense, porque, diz, «hámuitas associações, mas entre elas há imen-sas que não estão legalizadas, e que contudofazem trabalho local da maior importância.Essas associações precisam de poder intera-gir para serem mais fortes. A Guineásporaquer ajudar a levar a bom porto essa congre-gação de esforços. Mas infelizmente esta-mos actualmente privados de uma sede.»Sem um espaço físico para se encontrar comassociados e outros dirigentes, Mário Cabraldespacha assuntos nos cafés e no decurso decaminhadas pela cidade, enquanto aguardaque os serviços de acção social da CâmaraMunicipal de Lisboa lhe cedam um dos mui-tos espaços devolutos da capital.

«A mutilação genital feminina é uma tra-dição muito firme na Guiné, sobretudo nasetnias muçulmanas. Queremos trabalharcom as comunidades da Amadora, da Quin-ta do Mocho (Sacavém), onde continua a serpraticada. Há pessoas que vão à Guiné ape-nas para fazer a excisão, já que em Portugal

«Há constantemente nas sociedades humanas forças que trabalham em direcções opostas: umas tendendo à manutenção e até mesmo àacentuação dos particularismos; outras agindo no sentido da convergência e da afinidade.» Claude Lévi-Strauss

Mário Cabral, 67 anos,engenheiro agrónomo,

representa a ONGDGuineáspora.

Ao centro, Bubakar Baldé,quarenta anos, é presidentedo Centro de Estudos Árabe

Pulaar.

Page 3: Integração de imigrantes

49»noticiasmagazine 27.JUL.2008

Direito na Universidade Lusófona. Media-dora sociocultural no CNAI (Centro Nacio-nal de Apoio ao Imigrante), onde dá apoiojurídico, explica que «o trabalho em rede, asparcerias, são hoje em dia fundamentais,mas é algo que não está ainda interiorizado,e há até por vezes algum espírito competiti-vo entre as associações».

Com sede no Lumiar, é uma estrutura vo-cacionada para a valorização profissional,cultural e científica dos estudantes africanosa viver em Portugal. Mas uma vez que estáinserida num bairro social, a associação tra-balha também com as comunidades locais.«Começaram a aparecer pessoas com pro-blemas de legalização, saúde e outros, e nósfomos obrigados a alargar o nosso âmbito.Redistribuímos vestuário e alimentos pelacomunidade do bairro, damos apoio a 75 fa-mílias de jovens estudantes, alguns oriundosde famílias monoparentais, que vivem commuitas dificuldades, apoio nos processos delegalização, nalguns casos de pessoas que jáestão em Portugal há alguns anos. Aprovei-tando esta nova lei da imigração com base nocontrato de trabalho, demos já entrada de al-guns pedidos de legalização. Nós lutámos pe-la alteração da lei da imigração, e ela foi defacto alterada. Mas as alterações não são tãosubstanciais como desejaríamos. Porque nal-guns casos a única hipótese que temos de re-gularização assenta no poder discricionáriodo SEF, o que significa que, mesmo reunindotodos os requisitos, o cidadão não tem garan-tias de ver a sua situação regularizada.»

Criada em 1999, a associação de Assunçãoinveste também na transmissão e conserva-ção da cultura dos países de origem. «Há

muitas pessoas que vieram na perspectivade trabalhar e juntar dinheiro, para depoisregressar. Mas na prática as coisas vieram arevelar-se mais difíceis, porque as condiçõessocioculturais e políticas nos países de ori-gem não melhoraram, obrigando a que per-manecessem cá, aqui constituindo as suasfamílias. Não obstante, os estudantes têmsempre a preocupação de ajudar as famíliasque ficaram nos seus países e acabam porbeneficiar da nossa acção. São no fundo pes-soas que estão cá e lá, no país de origem e node acolhimento, e que se deparam com todoo tipo de dificuldades, num como noutropaís. Vêm maioritariamente de Angola, SãoTomé, Guiné e Cabo Verde. Fomo-nos en-tretanto apercebendo de que havia outro ti-

po de pessoas que precisavam do nossoapoio, para além das oriundas dos PALOP:refiro-me a pessoas de outros países, umafranja de população vinda da África não-lu-sófona e que tinha problemas ainda maioresde integração. Ou seja, fomo-nos adaptandoàs realidades que íamos encontrando e àsnecessidades que fomos identificando.»

«No caso da imigração africana, atenden-do ao baixo nível de desenvolvimento dosseus países, são pessoas com grandes limi-tações ao nível da formação científica, o queconstitui um enorme factor de exclusão emtermos do mercado de trabalho. Isso acabapor levá-las a um grande isolamento, e onosso trabalho passa também por sensibili-zar as populações, acreditando nas institui-ções, para os mecanismos legais passíveisaté de alterar determinadas políticas so-ciais. O que se passa é que os africanos nãoacreditam que as instituições sejam capa-zes de funcionar democraticamente, o queresulta evidentemente daquilo que aconte-ce nos seus países.»

Trabalhar em redeAntónio Carlos Silva é o responsável pela AJPAS (Associação de Jovens Promotoresda Amadora Saudável). Com 51 anos, naturalde Cabo Verde, é médico a trabalhar na áreada saúde pública. A AJPAS, que conta já com15 anos de experiência no terreno, formaamas, educadoras de infância, técnicos deapoio domiciliário, etc., numa acção perma-nente que cobre os concelhos da Amadora ede Sintra. «Tocamos em média, de forma di-recta, muitas pessoas, milhares mesmo, queprecisam de apoio psicossocial, domiciliá-rio, e até na área alimentar – temos um pro-tocolo com o Banco Alimentar –, na da saú-de materna, na da vacinação, do planeamen-to familiar, etc. Temos médicos, enfermei-ros, juristas, técnicos de serviço social, fize-mos parcerias com farmácias, com os bom-beiros, etc. As instituições precisam deaprender a trabalhar em rede, caso contrá-rio não conseguem subsistir.»

António Carlos pensa que os imigrantes eos filhos dos imigrantes de origem africanaforam os que até há pouco tempo mais so-freram com uma legislação que lhes negavaa nacionalidade portuguesa, mesmo quan-do eles nasciam cá. «Parecendo que não, oacesso à educação e à saúde, embora garan-tido, acaba por não ser real. Porque as pes-soas não vão renovar os documentos, e naárea do emprego, por exemplo, não estãoem pé de igualdade. Sim, são penalizadas pe-las origens e pela falta de competências. Dei-xam a escola e isso exclui-as. Mas os servi-ços públicos têm de estar preparados paraesta nova realidade. Agora já não podemosdizer que estes imigrantes estão de passa-gem. Os serviços têm de ter uma noção dasespecificidades de cada comunidade imi-grante, para poderem intervir bem. Objecti-

48»noticiasmagazine 27.JUL.2008

terreno e que por isso conhece bem a reali-dade portuguesa. «Antigamente era maisdifícil para os imigrantes, muito mais difícil.As coisas começaram a melhorar desde ogoverno de Guterres, que foi quando sepensou que se não resolvessem os proble-mas dos imigrantes em Portugal se iriamcriar outros. Houve algumas mudanças nasleis, que beneficiaram a integração, comopor exemplo a lei da nacionalidade, quepermitiu a muitas pessoas obter a naciona-lidade portuguesa. Mas agora o Parlamen-to Europeu votou esta lei que defende a de-portação de não-documentados. É uma leique consideramos um retrocesso. Portugaltem vários milhões de emigrantes pelomundo. Imaginem que os que estavam sempapéis eram obrigados a voltar para Portu-gal ainda hoje... A Europa precisa dos imi-grantes, mas então, por que razão está a ex-pulsar os que já cá estão? É errado e nós ape-lamos ao governo português para nãoseguir esta directiva. Todas as semanas euvou a um tribunal ou a uma fronteira porcausa de um imigrante sem papéis.»

E culturalmente as mulheres e os homensnão são iguais. É uma outra realidade, queprecisa de reajustes à realidade portuguesa.As mulheres quando saem de África vêmcom os hábitos das mulheres africanas e têmmuitas dificuldades em integrar-se. Há mui-tos divórcios por causa desses problemasculturais. Celebramos também casamentosmuçulmanos e africanos, baptizados e ceri-mónias fúnebres. Fazemos ainda o mês doRamadão, altura em que nos encontramostodos aqui [Reboleira] para fazermos juntosa oração da noite e para cortar o jejum – dis-tribuímos aqui pelo menos cinquenta refei-ções por dia aos muçulmanos no Ramadão.»

Bubakar é professor, tradutor, intérpretee formador de língua árabe e de língua pu-laar. Estudou jornalismo no Egipto, e emPortugal, para além do centro que fundou edirige desde 2002, dá também formaçãonoutros lugares, tais como nos tribunais,nos aeroportos, nas fronteiras, entidadescom as quais também colabora como tradu-tor e intérprete. É um homem com uma jávasta experiência, que passa os seus dias no

Ainda assim, Bubakar pensa que o gover-no português é mais tolerante do que outros,como por exemplo o francês, que «integraem termos formais, mas na prática não dáoportunidades. Nós não temos nenhunsproblemas com portugueses, e eles aliás sãonossos parceiros, apoiam-nos, dão livros eroupas para nós mandarmos para a Guiné.Mas o português é branco, é cristão, é euro-peu. E por isso é normal que aceite mais fa-cilmente outro europeu. Sim, o racismoexiste. Se não existisse não havia associa-ções como a nossa, a lutar pelos direitos dosimigrantes. É um racismo que não é genera-lizado, mas que se observa ainda muito, so-bretudo no mercado de trabalho».

Parcerias inevitáveis Assunção Sousa, angolana, tem 35 anos e éuma das fundadoras da Associação de Apoioao Estudante Africano. Veio para Portugalnum contexto de guerra, no início dos anosnoventa. Trabalhou em lojas e hipermerca-dos, enquanto dava continuidade ao seuprocesso académico, e um dia formou-se em

Desigual«Há falta de equida-

de nas políticaspara a imigração.Osque vieram há maistempo não tiveram

o mesmo trata-mento,um olharcompreensivo.»

António Carlos Silva, 51 anos, é o responsável pela Associação

de Jovens Promotores daAmadora Saudável.

Assunção Sousa, 35 anos,é uma das fundadoras

da Associação de Apoio aoEstudante Africano.

Page 4: Integração de imigrantes

50»noticiasmagazine 27.JUL.2008

vando: nós, no centro de saúde, temos o de-ver de dar assistência a toda a gente, porquea saúde é universal. Mas uma coisa é a lei eoutra é a prática. As pessoas chegam aos ser-viços sem documentos, porque têm medode que os serviços sejam uma via de expul-são, e fogem. E por isso nós temos de estarpreparados para isso e saber explicar que osserviços de saúde não existem para as ex-cluir mas para as integrar, e que se elas esti-verem bem de saúde poderão trabalhar eprosperar em Portugal.»

O médico é da opinião de que «os imigran-tes de Leste têm sido alvo de um tratamen-to, sobretudo por parte dos media, que nãocorresponde à realidade. Passam a ideia deque são todos médicos e engenheiros e quenão têm problemas de espécie alguma, masa realidade é outra, é preciso ver isso. Pensoque há uma certa falta de equidade nas polí-ticas para a imigração, porque os que vieramhá mais tempo não tiveram o mesmo trata-mento, esse olhar compreensivo. É eviden-te que as sociedades do Leste Europeu têmmuita gente com formação técnica e cientí-fica, mas entre os imigrantes não são todosformados. São povos educados, com capaci-dade de organização, que sabem bem o quequerem, e a prova disso é que há muitos quejá regressaram. Não é uma imigração igual àbrasileira ou à africana».

Instrumentos de mudançaAnelise Geidel é jurista e mediadora socio-cultural no Gabinete de Apoio Técnico às As-sociações de Imigrantes (GATAI) do ACIDI(Alto Comissariado para a Imigração e o Diá-logo Intercultural). Para ela, o multicultura-lismo define-se como «um dos sistemas derespostas políticas e institucionais de pro-moção pelo respeito pelos direitos humanose a igualdade de oportunidades». Parecem sópalavras. A brasileira, 36 anos, natural de Por-to Alegre, casada com um neto de portugue-ses que tem a dupla nacionalidade, e a viverhá cinco anos em Portugal, pensa que o cami-nho se faz pela «educação para os valores, pa-ra a cidadania, para a coesão social, para osdireitos humanos e a igualdade de oportuni-dades, de educação anti-racista e antixenó-foba, de valorização e respeito pelas diferen-

ças e para a tolerância». Parecem outra vez sópalavras, de alguém habituado a manejá-lasdiariamente, no gabinete onde dá apoio aoslíderes de associações de imigrantes que re-correm ao ACIDI para se constituírem legal-mente, pedir reconhecimento (um estatutodado pelo ACIDI, que as reconhece comosendo representativas) ou financiamentopara os seus projectos de intervenção na co-munidade. Mas se ditas por uma imigrante,que lida directamente com os imigrantesnum gabinete que existe para os apoiar, sãooutra coisa: são instrumentos de mudança,actualmente bem concretos, para ela comopara as mais de cem associações oficialmen-te reconhecidas pelo instituto público que asregulamenta e enquadra.

«A interculturalidade é uma meta, a seratingida nas boas práticas e boas e equidis-

Meta«A interculturalidade deveser atingida nas boas práticas e boas e equidistantes relações do dia-a-dia.É a aceitação ampla da diversidade.»

Anelise Geidel, 36 anos, é mediadora no Gabinete de

Apoio Técnico às Associaçõesde Imigrantes do ACIDI.

Page 5: Integração de imigrantes

de Realojamento. Mas a realidade é outra,porque as pessoas que não estão inscritasnesse programa superam as outras. O bairrofoi crescendo, e agregados recenseados sãocerca de 225. Mas não-recenseados são mui-tos mais, porque temos cerca de 1500 pes-soas no bairro actualmente.»

Bernardo, também ele morador no bair-ro, diz que está em curso um processo de de-molição e que até ao final de 2009 essas fa-

mílias deverão todas ser realojadas. «Mas oprocesso é bastante complicado, porque hávários agregados que não estão recensea-dos, e esses não há forma de realojá-los.» Co-mo olha Bernardo para a acção autárquicano seu bairro? «Sentimo-nos um pouco es-quecidos, esse é o sentimento geral das pes-soas que vivem aqui. Há enormes discre-pâncias. O nosso bairro, denominado “debarracas”, está ao lado de prédios de quase

luxo, construídos recentemente, e onde osapartamentos T3 valem 200 mil euros. Sãorealidades muito diferentes e contrastantes.Se pensarmos nas pessoas que vivem aquihá mais de 15 anos, que não têm quaisquercondições de comprar casas aqui, no bairroonde criaram raízes...»

Problemas que requerem congregação deesforços – parcerias portanto. «O curso Ge-rir Projectos em Parceria é muito importan-te para mim, sobretudo ao nível da aprendi-zagem de metodologias de trabalho assen-tes numa lógica de parceria, já que osproblemas do meu bairro requerem a inter-venção de várias entidades, sobretudo au-tarquias. Esta formação também é muito vá-lida por via da rede de laços que se estabele-cem entre as várias associações.» Ao contrá-rio dos mais velhos, que têm muitas vezes oprojecto de regressar ao seu país de origem,porventura desinvestindo das lutas sociaispassíveis de lhes proporcionarem vidas me-lhores, Bernardo pensa antes de mais emajudar a ultrapassar as enormes carênciassentidas no bairro. Sendo certo que nin-guém o fará por ele, consciência que explicaa combatividade e a mobilização do recém--adulto. Carências também ao nível da edu-cação. «A associação trabalha também naárea da educação. Damos apoio escolar a to-das as crianças do bairro. Há muito insuces-

tantes relações do dia-a-dia. É a aceitaçãoampla da diversidade e, portanto, intercultu-ralidade e multiculturalismo são dois concei-tos complementares e não opostos. A aber-tura para a interculturalidade, mais do quesimplesmente um discurso politicamentecorrecto, é uma prática do meu dia-a-dia an-te a diversidade e complexidade das relaçõesde proximidade mantidas com as associa-ções de imigrantes de diferentes nacionali-dades e com os nacionais portugueses.» In-terculturalidade que nem sempre se faz semas vítimas dos estereótipos que precedem opensamento do homem comum sobre os es-trangeiros no seu país. No caso dos portugue-ses, os exemplos são vários. Mas tratando-sede uma brasileira, pergunto à gaúcha comovê os estereótipos sobre a mulher brasileiraem Portugal. Diz que são muito fortes, «nãosabia que havia essa má imagem, embora ofacto de eu ser casada me proteger desse per-fil». Perfil que funciona, anterior e para alémdo discurso igualitário (porque mexe com aculpa católica ligada ao corpo), e funcionan-do discrimina. Mas lá está: «Não está no pas-saporte de ninguém quem é racista ou quemé solidário», e também há muitos portugue-ses que não olham para as brasileiras dessaforma pejorativa e ostracizante.

Trinta mil romenos e moldavos em PortugalVladimir Covaci, 38 anos, ex-estudante emLiteraturas Eslavas na Ucrânia, hoje técnicode gás, começa por anunciar que «temos deestabelecer regras para esta conversa, porqueeu sou apenas um membro da ComunidadeRomena, não sou dirigente». Em pano de fun-do a Igreja Ortodoxa Romena de Lisboa, umtemplo instalado no interior de uma igreja ca-tólica portuguesa convencional, o altar comoum cenário, porém belíssimo, e diante do qualvárias mulheres se curvam, num fervor quereconhecemos como nada tendo a ver com ossinais de fé católica a que estamos habituados.Daí a pouco vai haver uma missa especial. «A associação surgiu em 2001 e respondeu auma necessidade de organizar a comunidaderomena e moldava que foi chegando a Portu-gal com a vaga de emigração da Roménia quehouve a partir de 1999. Vieram cerca de 60 milromenos e moldavos para Portugal. Actual-mente não sei se chegamos aos 30 mil, poishouve muita gente que voltou para casa ouque foi para outros países quando começou acrise do mercado de trabalho. Quem ficou foiquem já tinha começado a criar raízes aqui.»

A associação romena nasceu dentro daigreja, explica Vladimir, como um instrumen-

to de representação, para ajudar os romenose moldavos a resolver os problemas de sem-pre e de todos, como por exemplo como man-ter as crianças ligadas à língua, à história e àcultura romenas. «Porque as crianças esque-cem. Os meus filhos estão cá há seis anos e jáesqueceram muito. Começaram a escola emportuguês, desde a primária, e a língua por-tuguesa tornou-se predominante. Eles pen-sam em português, já não são como nós, e porisso é muito importante que venham à esco-la de romeno aos sábados», diz Vladimir, ex-plicando que a escola de romeno é a principalactividade da associação que representa. Pa-ralelamente, a Comunidade Romena organi-za outras actividades, eventos artísticos queservem de pretexto para os imigrantes se reu-nirem e manterem ou criarem laços com osseus conterrâneos. «Mas está sempre tudomuito ligado à igreja e às celebrações religio-sas», precisa o romeno. «A nossa sede é aquina igreja, tudo o que acontece parte daqui.»

Vladimir gosta muito de estar em Portu-gal e faz questão de dizer que está a ser sin-cero. Pensa que os portugueses são muitoparecidos com os romenos e que são acolhe-dores. Já os franceses acha-os bastante maisfrios, sempre a impor barreiras. ConsideraPortugal um dos países mais evoluídos daEuropa em termos de políticas de imigraçãoe que a realidade noutros países é mais durapara os imigrantes, apesar de nalguns casosas coisas estarem mais avançadas em termoslegais. «Portugal tem estado sempre a ino-var. A criação destes centros de apoio e to-dos estes programas para ajudar os imigran-tes são muito importantes para nós. O CNAI,por exemplo, é um lugar onde podemos re-solver a maioria dos nossos problemas, sim,é uma espécie de loja do cidadão imigrante.»

Imigrantes por realojarA Quinta da Serra (no Prior Velho) nasceu noinício da década de noventa organizada co-mo uma associação de moradores, para ten-tar resolver os problemas de habitação dosseus associados. Trata-se de um bairro de ha-bitação clandestina (dito de barracas), cheiode casas improvisadas, onde há vários anosse fixaram várias centenas de famílias. «Aspessoas que vivem aqui vêm maioritaria-mente dos PALOP», explica Bernardo Go-mes, guineense, líder associativo com ape-nas 18 anos, estudante universitário na áreada Saúde (ortoprotesia). «São sobretudo pes-soas da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Vi-vem aqui enquanto esperam para ser realo-jadas. Hoje em dia já não se fazem realoja-mentos em massa, como antigamente, porcausa dos problemas entretanto surgidos. Aspessoas têm agora a oportunidade de iniciarum processo de compra de habitação, com oapoio do proprietário do terreno, do INH eda Câmara Municipal de Lisboa. Mas as au-tarquias contabilizam apenas as que estão re-censeadas e inscritas no Programa Especial

Vladimir Covaci, 38 anos, é um dos membros

da Comunidade Romena,que congrega imigrantes

romenos e moldavos.

Bernardo Gomes, líderassociativo com apenas

18 anos, desenvolve o seutrabalho na associação

Quinta da Serra.

Page 6: Integração de imigrantes

54»noticiasmagazine 27.JUL.2008

Gerir Projectos em ParceriaIsabel Guerra (socióloga) e Teresa Ramos(assistente social) são as responsáveis pelocurso de pós-graduação Gerir Projectos em Parceria, a decorrer na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade CatólicaPortuguesa até ao final de Setembro de 2008 – um programa em parceria com o Alto Comis-sariado para a Imigração e Diálogo Intercul-tural (ACIDI), financiado pela Iniciativa Comu-nitária EQUAL (Fundo Social Europeu).

Que iniciativa é esta?Somos a área científica de serviço social daUniversidade Católica, neste caso da Facul-dade de Ciências Humanas. Temos uma filei-ra de formação em serviço social e vários pro-dutos de formação em pós-graduação a ela as-sociados – licenciatura, mestrado e doutora-mento. Fazemos portanto pós-graduaçõesnas áreas ligadas às políticas sociais, seja ao ní-vel da concepção seja ao da execução dessaspolíticas. Neste caso concreto, estamos am-bas ligadas aos fenómenos de intervenção co-munitária e temos por essa via trabalhadocom muitas instituições, nomeadamentecom o ACIDI, entidade com a qual temos fei-to vários tipos de formações, para vários tiposde públicos. Este curso foi inicialmente for-matado para o programa EQUAL, uma ini-ciativa comunitária que trabalha na forma-ção de técnicos de intervenção em comuni-dades ou instituições (prisões, câmaras muni-cipais, empreendedorismo ligado à igualda-de de oportunidades, etc.). Este produto deformação em Planeamento e Avaliação deProjectos foi considerado uma iniciativa dequalidade e financiado para disseminação.Razão por que o ACIDI nos solicitou no sen-tido de fazer a sua disseminação. Considera-mos muito interessante a especificidade dopúblico que o ACIDI nos propôs, ou seja, líde-res de associações culturais de imigrantes,com quem o ACIDI habitualmente trabalha.Que competências vão essas pessoas poderadquirir?Vão sair do curso com capacidade para fazeruma análise de necessidades, um projecto dedesenvolvimento de respostas a essas neces-sidades e a avaliação dos resultados do mes-mo. A maior parte destes formandos são li-cenciados em diferentes áreas, vêm da Ges-tão, do Direito, da Psicologia, das áreastecnológicas, etc., curiosamente muito pou-

cos das áreas sociais. Mas todos líderes de as-sociações, o que significa que têm experiên-cia de trabalho com as suas comunidades – etambém na estruturação de projectos de de-senvolvimento para as mesmas. Este cursovem reestruturar essa forma de trabalhar, nu-ma lógica diferente da habitual. São pessoasque estão habituadas a pensar a acção em fun-ção do orçamento que podem vir a obter, masesta formação vai dar-lhes novas ferramen-tas no sentido de fundamentar, de avaliar aprópria acção. Por outro lado, embora muitosestejam treinados neste tipo de projectos, nãoestão preparados para fazê-lo com diferentesparceiros. Esta formação vai dar-lhes novascapacidades no contexto da estruturação deprojectos envolvendo vários actores. Recebe-mos cento e tal candidaturas, de que retive-mos cerca de trinta. Esta iniciativa teve umaboa recepção e o ACIDI já nos pediu outraformação, a fazer ainda durante o ano de2008. Trata-se por outro lado de uma forma-ção que dá créditos aos formandos, que po-dem ser usados para se candidatarem a mes-

trados, por exemplo (é uma mais-valia queBolonha nos permite).Que critérios foram usados para a selecçãodos formandos?A ideia foi contemplar todas as associa-ções que trabalham com o ACIDI, dandolugar a pelo menos uma pessoa por asso-ciação. Contemplámos a generalidade dosgrupos da nossa imigração. Temos váriasraças e religiões, o que não deixa de ser in-teressante, tratando-se de uma formaçãoque é assegurada por uma universidadecatólica. Temos um belíssimo clima, cadaum com a sua cultura e a sua forma de vere as suas realidades e diferentes necessida-des. Penso que o curso tem aumentado acapacidade de entendimento multicultu-ral ao aproximar os olhares de uns sobreos outros. São mais homens do que mulhe-res, embora o género não fosse um crité-rio, como é evidente. Temos uma grandeheterogeneidade de idades, pessoas entreos 18 e os 67 anos. Predominam os dirigen-tes, embora também haja não-dirigentes.

so escolar e absentismo, e nós tentamoscombater isso. Fazemos também alfabetiza-ção de adultos.»

Bernardo olha para Portugal como umpaís acolhedor, mas diz que há muitas lacu-nas a colmatar. «Muitas mesmo. Mas para is-so é preciso um olhar mais pormenorizado

sobre os contextos sociais. Em França, ondehá muita população oriunda de antigas coló-nias francesas, os senegaleses, por exemplo,recebem um auxílio notável por parte dasentidades oficiais. Em Portugal não há essacultura de entreajuda. A política portuguesapara a imigração tem de se abrir, no sentido

da aproximação aos países de origem dosseus imigrantes. É preciso dar mais infor-mação às pessoas, muitas delas vêm para cápensando encontrar um paraíso. Por outrolado, é preciso dar atenção às famílias que jáestão enraizadas, que vivem cá há muitosanos mas ainda não foram integradas.»«