Atos de retórica. Para pensar, falar e escrever criticamente.
INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos...
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Oliveira, C. C. (2007). Integração e Diferença em Educação Comunitária: Missão
Impossível? Reflexão e Acção, vol. 15, nº 1: 08-28. UNISC (Brasil). ISSN: 1982-9949.
INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO COMUNITÁRIA:
MISSÃO IMPOSSÍVEL?
Clara Costa Oliveira
Instituto de Educação e Psicologia e Escola de Ciências da Saúde
Campus de Gualtar 4700 Universidade do Minho; 351253604858;
[email protected]; Professora Auxiliar com nomeação definitiva
RESUMO:
Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses
multiculturais do filósofo Charles Taylor, interrogando sobre o seu
contributo para a compreensão e para a intervenção em educação
comunitária não formal.
ABSTRACT:
In this paper, we critically reflect about the multicultural theory of the
philosopher Charles Taylor, considering its contribution to the
understanding and to the practical use in non formal community
education.
PALAVRAS-CHAVE: educação comunitária; políticas do
reconhecimento; políticas da diferença; aculturação.
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Introdução
Olhando para a história da educação ocidental à procura de
fundamentações teorizadoras sobre a importância de promover a
integração de aqueles considerados diferentes numa determinada
sociedade, um dos autores (e dos primeiros) que se destaca é Jan Amos
Komensky (Comenius).
Tendo nascido e vivido em plena época da Reforma, e num contexto
geográfico e cultural específico face às culturas maioritárias da Europa,
ele evidencia na sua obra pedagógica os ideias de nobreza humana para
com os excluídos (especialmente os pobres) de Jan Huss, fundador da
igreja reformada hussita. Fortemente influenciado pelo ambiente religioso
peculiar vivido na Morávia, Comenius foi criado no espírito comunitário e
igualitário da Igreja cristã da Unidade dos Irmãos (Frères de Bohême) e
foi também um dos seus mais devotados membros no que respeita à
protecção dos Irmãos, que em última análise, eram todos os filhos de
Deus.
Nestas instituições religiosas se funda um dos primeiros, e um
dos mais bem organizados, sistemas pedagógicos da nossa cultura
ocidental, onde se incrementa a educação de todas as pessoas,
independentemente do género, da etnia, da idade ou da classe social a que
pertenciam. Comenius vai porém mais longe ao defender que a educação
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organizada deverá incluir todas as pessoas com deficiências de quaisquer
tipos, incluindo as mentais.
O seu conceito de educação não se refere ao ensino escolar em
transição – naquele momento - entre a organização feudal medieval e o
mundo humanista-burguês ainda sem definições precisas. Comenius
legou-nos, pelo contrário, preciosas páginas de sabedoria sobre as
aprendizagens teóricas e técnicas que obtemos na vivência em
comunidades, sobretudo naquelas que para ele encarnavam o ideal de vida
comunitária. Os saberes de tipo escolar estavam aí incluídos, nesse mundo
mais amplo em que os vínculos afectivos e emocionais, bem como as
disposições genéticas, eram considerados variáveis a considerar, e onde o
saber ancestral de algum tipo de lides por parte de grupos específicos
(como as mulheres e os artesãos) era considerado fonte de aprendizagem
para toda a comunidade.
Não deixa porém de ser curioso que Komensky tenha sido uma
personagem importante de associações de carácter secreto como os Rosa-
Cruz e o Milenismo. Parece também indiscutível, para os historiadores
contemporâneos, a existência de laços entre os pedreiros-livres (e a
franco-maçonaria em particular) e a Unidade dos Irmãos. Tratando-se de
organizações que se consideravam não só como diferentes, mas sobretudo
que pretendiam continuar a constituírem-se como diferentes face às
associações de tipo oficial que então existiam, encontramo-nos perante um
(aparente?) paradoxo na vida de Comenius.
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Esta estranheza em compreender como alguém pode ser
simultaneamente um poderoso defensor do direito à integração no âmbito
da educação por parte de populações discriminadas, e um membro de
organizações secretas fortemente organizadas de um modo hierárquico e
com crenças elitistas (como no caso dos Rosa-Cruz), é o mesmo tipo de
estranheza que assalta muitos educadores comunitários quando se
encontram no terreno como responsáveis pela educação (escolar, extra-
escolar, ou não escolar) de populações discriminadas. Com efeito, cabe-
lhes garantir a integração das diferenças sem contudo o fazer de forma
forçada; cabe-lhes também relembrar essas diferenças ao mesmo tempo
que as tentam integrar, segundo muitos dos defensores do
multiculturalismo (Taylor, por exemplo).
No tempo de Comenius, a diferença pagava-se caro (com a própria
vida, usualmente) e actualmente tal também acontece, em muitos lados do
mundo. A diferença existe sempre, contudo, em contextos diferenciados,
tal também acontecia naquela época. Assim, ser considerado diferente
num país mediterrânico seria, por exemplo, alguém que tivesse adoptado
os ideais religiosos de Lutero. Na Morávia, porém, seguir a autoridade do
bispo de Roma traria o estigma em comunidades alicerçadas politicamente
na fé da Reforma.
A contingência da diferença emerge pois da lógica significante
específica dos grupos maioritários entre os quais a diferença é reconhecida
enquanto tal, algo que qualquer educador tem que ter em conta, quer
trabalhando com indivíduos, quer com comunidades.
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A educação comunitária pressupõe a solidariedade entre cidadãos
(logo, o respeito pela diferença), e tal pode ser testemunhado na vida de
Komensky, ainda que aparentemente de forma paradoxal.
Ele deveu a sua educação aos irmãos religiosos já mencionados; ter-se
tornado maçon decorreu provavelmente de uma vontade em querer
melhorar a comunidade na qual vivia.
Naquela época, muitos maçons eram cristãos (usualmente não
trinitários) e pretendiam criar uma elite cristã que abrisse a fé à discussão
intelectual, libertando-a das superstições mágicas dos tempos medievos.
Muito provavelmente, Comenius considerava que a sua ligação à
maçonaria (e eventualmente aos Rosa-Cruz) seria um factor de
dinamização comunitária, ou seja, acreditava que a diferença poderia ser
considerada um factor de complexidade social (Dupuy, 2001).
1. Em torno de uma educação permanente e comunitária
Se a educação comunitária surge desde sempre visivelmente ligada à
dimensão extra-escolar (nomeadamente no que respeita ao espaço físico
que ocupa), é na época de Komensky, a Reforma, dos enciclopedistas e da
Revolução Francesa que ela assume o seu vínculo aos ideias de
emancipação de grupos minoritários específicos. Hoje este vínculo está
muito longe de se referir apenas a grupos excluídos por questões de classe
social e/ou de rendimentos económicos; os grupos considerados
discriminados incluem hoje as minorias étnicas, as questões de género (e
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não só as relacionadas com as mulheres), as igrejas e as seitas, os presos,
os doentes, etc.
Esta dimensão da educação comunitária encontra-se ainda muito
pouco praticada em alguns países, principalmente se tivermos em conta a
preocupação com estas questões que alguns países europeus
demonstravam já no século XIX (Escócia, Inglaterra, Dinamarca, por
exemplo). De um modo mais explícito, ou menos reconhecido, o trajecto
histórico da educação comunitária encontra-se nas mãos daqueles que a
desenvolveram em todo o mundo: o movimento operário, os sindicatos, as
igrejas católicas reformadas e as protestantes, o movimento anarquista
(cfr. Jarvis- 1998).
Com a situação da reconstrução económica e política do pós-guerra
que se verificou em praticamente toda a Europa, a necessidade de
alfabetizar populações adultas femininas e masculinas de baixos estratos
sociais passa a ser algo que preocupará doravante a educação comunitária
que, pela mesma ordem de razões, se vira também para a actualização
profissional, para a formação de quadros, etc. (Dias- 1983).
Face a esta tendência crescente de formalização estatal da educação
comunitária irrompem vozes como as de Freire, Macedo e Illich que
insistem em colocá-la ao serviço da dotação de voz às populações
humilhadas por questões políticas, económicas, geo-estratégicas, mas
também por razões culturais. Temos então um movimento reivindicativo
de participação e de autonomização revolucionária (Freire- 1975)
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dificilmente conciliável com as estratégias integradoras de tendência
estatal.
Illich, aliás, alerta-nos continuamente para o perigo da assimilação
integradora que ocorre usualmente como resultado do desaparecimento
das especificidades de culturas minoritárias ou, pelo menos, de grupos
minoritários. A denúncia do cinismo integrador humanista (dialoga-se
com o outro até o conseguir integrar na nossa mesmidade) pela voz de
Illich é tão certeira e contundente que leva muitos a considerarem-no um
radical que não merece ser levado muito a sério.
É neste caminho de tropeções, recomeços e desorientações que a
educação comunitária se cruza com as questões do multiculturalismo Este
encontro quotidiano manifesta-se nas problemáticas com que os
educadores se encontram, e que constituem as mesmas do
multiculturalismo: a integração numa comunidade/sociedade de alguém
que é único, e cujo processo de aprendizagem-educação (Oliveira- 1999) é
irredutível ao de outro seu semelhante. Esta ambiguidade concretiza-se em
situações como possuir numa aula de educação de adultos alguém
absolutamente apaixonado por só um tipo de conhecimento (o desenho,
por exemplo); como trabalhar com homossexuais em comunidades
oficialmente heterossexuais, com agorafóbicos, com deficientes visuais,
com mulheres vítimas de maus-tratos, com sobredotados, etc. Por vezes,
os educadores ignoram estas diferenças que a sua clientela possui, e
alguns fazem mesmo por as ignorar, afastando-se dos princípios
fundamentadores da educação comunitária.
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A ambiguidade acima enunciada é talvez mais difícil de omitir quando
ela emerge de algum tipo de identidade colectivo. Talvez a possamos
enunciar, a este nível, com maior precisão do seguinte modo: como
promover a integração social de grupos que, considerando-se diferentes,
querem ter os mesmos direitos de cidadania que os membros das
sociedades em que vivem sem, contudo, pretenderem desistir de alguns
(aparentes?) direitos que a sua especificidade acarreta? Como promover a
aceitação da integração de grupos com uma determinada especificidade se
ela é considerada pelo(s) grupo(s) social maioritário como algo que
ameaça a sua ordem (já de si tão precária) e, logo, os seus direitos de
cidadania? Esta questão aplica-se (caso não a queiramos omitir) – e apenas
a título ilustrativo - à educação comunitária dirigida a públicos tão
diferentes como esposas-domésticas (por imposição social, e não por
opção), pessoas inseridas no mundo rural há várias gerações, crentes de
grupos religiosos minoritários e, obviamente, às etnias.
Trabalhar seriamente com estes grupos implica, como todos sabemos,
conhecermos e compreendermos os seus padrões de atribuição de sentido
ao mundo; implica também inteirarmo-nos da história de surgimento e
evolução destes grupos e também da articulação do sentido dos indivíduos
em causa com o grupo/classe/comunidade com o qual são identificados.
Mas como articular esse saber/conhecimento detectado com a construção
do mundo vinculado como “politicamente correcto” pelos grupos sociais
considerados maioritários? É legítimo considerar que existe educação
comunitária quando se promove a animação de grupos étnicos sem uma
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dimensão teleológica educativa? Estaremos de facto a promover educação
comunitária quando direccionamos a formação extra-escolar para a
aprendizagem de bordados somente mulheres domésticas e/ou
desempregadas, sem que elas tivessem podido optar por outro tipo de
actividades (ou que não tivessem aprendido a sua legitimidade em o poder
fazer)?
Estas questões com que os educadores se defrontam quotidianamente
são consequência de um vocabulário que se literalizou (Rorty- 1989)
lentamente nos últimos séculos na nossa cultura.
Em Contingência, Ironia e Solidadriedade, Rorty lembra-nos que
muitos dos vocábulos que hoje utilizamos nem sempre existiu ao longo da
história da humanidade, sendo este um dos argumentos utilizados para
demonstrar que a linguagem não é representacionalista, ou seja, que não
representa realidades objectais, mas é antes comunitária, isto é, criam-se
vocábulos quando se pretende falar de algo que tem significado para uma
comunidade. O autor exemplifica este seu argumento com as palavras
agapê (e o seu uso cristão) e gravitas (inventado no tempo de Galileu),
entre outros. Elas simbolizam metáforas (palavras com sentido novo a
partir de contextos linguísticos já existentes, mas com um arranjo
semântico diferente) que surgiram em épocas específicas. Quando ocorre
aceitação de novas metáforas, elas passam a ser utilizadas familiarmente
dentro de uma comunidade, podendo extravasar para toda a sociedade. Tal
acontecendo, afirmamos que a metáfora se literalizou, dado que a sua
dimensão diferenciadora deixou de existir, passando esses vocábulos a
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serem utilizados no quotidiano das populações, ainda que usualmente com
significação ligeiramente diferente da original (veja-se, por exemplo, a
literalização da palavra „trauma‟, após a sua metaforização por Freud).
Algo que convém não esquecermos é que a diferença só pode ser
integrada comunitariamente até um certo ponto. Dito de outro modo,
algum ruído pode promover complexidade de um grupo/comunidade, se os
seus elementos considerarem que a novidade acarretada pela nova
metáfora os pode beneficiar, ainda que surja como perturbadora. Caso ela
seja considerada como ameaçadora da significação colectiva, a metáfora (e
quem a pronunciou) arrisca-se, no entanto, a ser eliminada, pois constitui-
se (aos olhos da comunidade) como ruído não passível de ordenação,
como algo que destrói a identidade da colectividade (Girard, 1978;
Oliveira, 1999). Saber identificar sinais de hostilidade dentro de um grupo,
diminuindo ou terminando a sua participação metafórica dentro dele é em
muitos casos um sinal de sabedoria dado que a integração da diferença em
algumas comunidades pode constituir-se como uma missão impossível de
ser concretizada.
Na época da revolução francesa, algumas das sociedades europeias
estavam prenhes de significados novos, sobretudo resultantes de formas de
vida então recentes, como as da burguesia, do proletariado, do
mercantilismo. Novos vocábulos linguísticos tiveram que ser produzidos,
ou reinventados, para dar conta destas novas vivências.
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Três vocábulos foram usados como labelos da revolução francesa com
força metafórica: igualdade, fraternidade e solidariedade. Neles assentam
as crenças básicas da educação comunitária.
Volvidos mais de duzentos anos após o seu pronunciamento, além de
não terem sido concretizados, estes ideais são considerados por muitas
pessoas como se contradizendo entre si. Para elas não é possível garantir
as liberdades específicas individuais/grupais/colectivas sem se verificarem
ingerências no tratamento civil igualitário dos restantes
membros/grupos/colectividades sociais; tal tratamento é considerado
absolutamente necessário para a concretização de um mundo mais
fraterno. Este argumento é usualmente utilizado, por exemplo, nas
dificuldades que se colocam à integração de imigrantes (brasileiros, por
exemplo) nos países da comunidade europeia.
Existem ainda pessoas que consideram, pelo contrário, que a
construção de um mundo fraterno exige o respeito pela liberdade de vidas
idiossincráticas individuais ou grupais. A este respeito universal pelo
modo específico de cada um (ou cada grupo) construir formas de vida
corresponderia uma vivência igualitária. Este foi um dos argumentos da
política multicultural do estado francês até há uma década atrás,
incrementando a diferenciação da cultura árabe como forma de garantir o
respeito igualitário às pessoas desta comunidade. Actualmente é
considerado um argumento muito discutível, dadas as insurreições
verificadas em Paris no início do novo milénio, tendo por principais
actores membros desta comunidade.
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Significa tudo isto que os ideais da revolução francesa estavam
errados, e que temos que os mudar, ou os rejeitar? A resposta do neo-
pragmatismo rortiano parece-me muito sensata: se ainda acreditamos
nesses pilares da cultura europeia, eles estão correctos; o que parece
porém irrefutável é que não os soubemos realizar. Teríamos então que
pensar no que errámos ao longo destes duzentos e alguns anos; talvez
reformulando o que já sabemos que falhou consigamos avançar na
concretização da sociedade preconizada naquela revolução.
2. Crenças e pressupostos (vocabulário) a rever
Uma das questões em que, no meu entender, errámos fortemente (e
continuamos a errar) é pretendermos que as nossas actuações biculturais
são multiculturais. É com efeito usual ver-se institucionalizada a
integração de grupos minoritários utilizando como estratégia (quase)
exclusiva o incremento das diferenças dos grupos em causa. Isto significa
que se trabalha algumas vezes com estas populações apenas em dualidade
(ainda que ocorra num mesmo espaço físico, como sendo uma sala de
aulas), mantendo e reforçando as suas identidades específicas (de um
grupo face a um outro). Este tratamento bicultural que pretende conduzir a
uma integração de membros individuais, ou de grupos minoritários, tem-se
mostrado inoperante pelo menos no que respeita aos momentos mais
críticos entre os grupos considerados.
O biculturalismo fomenta usualmente a competitividade, a inveja e o
rancor; o desejo do oprimido minoritário se tornar opressor. A percepção
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(usualmente não-consciente) por parte do opressor deste ressentimento
latente leva-o usualmente a reforçar os mecanismos de discriminação. São
este tipo de situações, que acentuam o mimetismo, que são usualmente
utilizadas para a justificação de atitudes de “defesa”, fazendo surgir bodes
expiatórios do grupo social maioritário face a fenómenos perturbadores da
sua coesão social, como o comércio de estupefacientes, o roubo, etc.
Intervenções ao nível do multiculturalismo que tenha conseguido
articular com sucesso a integração de populações consideradas diferentes,
ou especiais, podem ajudar-nos a criar soluções para os contextos nos
quais actuamos. Os cursos livres (na perspectiva de life long learning) que
têm obtido melhores resultados nos E.U.A. são aqueles em que a mistura
cultural é mais variada (Bateson, 1989). Em termos comunitários
divulgam-se os cursos de cultura chinesa, por exemplo, não só nos bairros
chineses das cidades mas por todos os bairros. Neles são também
apresentados exposições, dramatizações, etc, relacionados com esta
cultura. Daí que hoje se possam encontrar cursos livres de chinês em que a
maior parte da população inscrita não é de origem chinesa, e onde
podemos encontrar pessoas de origem hispânica, inglesa, indiana, etc.
Experiências deste tipo estão a ser sentidas um pouco por todo o mundo;
(cfr., por exemplo, Roberts- 1999).
Este tipo de intervenção multicultural pode ser alargado para lá da
população adulta: todas as crianças residentes em França deveriam ter
acesso permanente à língua e cultura de três culturas: francesa, argelina
(com foco no mundo árabe) e portuguesa. Este tipo de modelo pode
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facilmente ser adaptado ao contexto cultural das sociedades em causa.
Quando vivemos em países em que a diversidade cultural não é tão visível
em termos de nacionalidades, ou de etnias, o multiculturalismo pode ser
trabalhado ao nível de outras diferenças culturais, como a classe social, o
género, a idade, o contexto comunitário (rural/urbano; litoral/interior).
Esta é aliás uma das metodologias de educação comunitária que
melhores resultados pode obter no que respeita a grupos mistos. Criar
categorias sociais dentro destes grupos de modo a constituírem-se
múltiplos outros grupos acentua o que há de comum entre pessoas que
aparentemente só podem ser categorizadas em função da sua etnia/raça.
Este tipo de intervenção exige muita flexibilidade, criatividade e
paciência. Não se obtêm resultados reais de integração das diferenças
individuais/grupais em prazos estipulados a priori por estruturas
governamentais, desconhecendo os ritmos muito variáveis com que cada
grupo de trabalho se depara.
Outra dimensão importante é conseguirmos trazer o mundo cultural
específico de comunidades minoritárias (ou até inexistentes na nossa
comunidade) para o quotidiano: a leitura escolar de histórias da cultura
africana (negra e árabe), chinesa, alemã e francesa a cidadãos portugueses
e brasileiros ajudar-nos-ia a constituirmos povos muito mais tolerantes do
que discursos inflamados de activistas políticos defensores das causas dos
oprimidos. Tornar familiar o que é diferente parece ser uma forma
privilegiada de se realizar a integração das diferenças.
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Outra dificuldade que temos encontrado verifica-se face a populações
constituídas por grupos discriminados - e até excluídos – socialmente.
Neste contexto, a educação comunitária serve, muitas vezes, de pretexto
para reforçar lógicas de marginalização, já que legitima de tal modo a
diferença cultural e o estatuto social desses grupos (minorias étnicas e
raciais, presos, doentes mentais, idosos, etc) que a dimensão integradora
numa sociedade que inclui outro tipo de grupos tem cada vez menor
viabilidade.
A promoção da educação comunitária tem sido uma mais-valia
surpreendente em termos de resultados positivos quando se recorre à
actuação de mediadores. Esta prática ainda é pouco usual em vários
contextos, afigurando-se-nos como muito importante fomentá-la. Para tal
teremos que questionar o pressuposto romântico de que a educação
comunitária deve ser um espaço neutro de actuação por parte dos
educadores.
Sabemos que a neutralidade não existe e obviamente que temos que
considerar essa não-neutralidade como um limite cauteloso à nossa
intervenção junto das comunidades em questão. Um dos modos de lidar
positivamente, e não de uma forma imobilizadora, com esta situação,
consiste na formação de mediadores pertencentes às comunidades em
questão. A experiência tem mostrado que a sua escolha deve ocorrer
depois de se possuir um conhecimento razoável dos grupos. Os
mediadores, com efeito, actuarão com um protagonismo cujas
consequências tem que ser ponderado pelos seus formadores. A grande
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vantagem dos mediadores, para além da sua fácil integração como agentes
educativos, é o facto de os seus contornos observacionais terem sido
constituídos primordialmente dentro da comunidade a que pertencem,
contrariamente aos dos educadores que os formaram.
3. As políticas de reconhecimento
Como sabemos, as preocupações com a educação multicultural
surgiram há relativamente pouco tempo nas culturas nacionais. Isto
explica-se por elas serem, de algum modo, o corolário daquilo que alguns
especialistas (Taylor, 1994) apelidaram de “políticas de reconhecimento”.
Elas podem dividir-se entre a política da dignidade igual e a política da
diferença; a segunda deriva da primeira, e ambas assentam no pressuposto
do respeito igual. Enquanto a política da dignidade igual abriu o caminho
para a legitimidade do multiculturalismo, é da política da diferença que ele
deriva directamente.
Irei deter-me rapidamente sobre cada uma das políticas do
reconhecimento pois penso que sem a compreensão do que elas significam
não conseguiremos nunca perceber onde radica o mal-estar que
encontramos em educação comunitária quando tentamos articular
integração e diferença.
Começando pela questão do reconhecimento, qualquer educador
comunitário sabe quanto muito dos seus educandos-educadores (Freire-
1975) sofreram devido à falta de reconhecimento, quer pessoal, quer
social. A aliança que Freire considera existir entre educação e
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conscientização prende-se directamente com esta problemática. A falta de
reconhecimento sistemática, e muitas vezes geracional, leva a que as
populações estigmatizem as próprias auto-imagens. Sabemos hoje que o
efeito de uma educação familiar que não reconheça o valor intrínseco de
ser humano a uma criança se reflectirá por toda a sua vida na imagem
psicológica de si própria. O mesmo efeito pode ser encontrado em
populações discriminadas; quando as sociedades, numa espécie de
culpabilidade colectiva, assumem os seus erros face a essas populações
(criando-lhes mecanismos facilitadores de acesso a bens socioculturais que
favorecem o reconhecimento pessoal e social), elas raramente os
aproveitam totalmente.
A importância do reconhecimento radica no, e fundamenta o,
pressuposto do direito à dignidade igual para todos os membros de uma
sociedade democrática. Mas a História facilmente nos pode ensinar que
este pressuposto nem sempre existiu; ele hoje surge-nos como mais ou
menos evidente na cultura “ocidental” devido à incorporação que nela
ocorreu de conceptualizações de vários filósofos. Detenhamo-nos em três
desses importantes conceitos: “universalidade” (tal como foi pensada por
Hegel e Marx), “identidade” (conceito especialmente importante a partir
de Rousseau) e a importância da dimensão linguística, dialogante (tal
como foi teorizada por Kant, e que marcou toda a filosofia da linguagem
contemporânea).
Assim, a crença escatológica hegeliana de um mundo que vai
melhorando na concretização histórica do Ideal foi-nos abrindo o caminho
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para acreditarmos na possibilidade de todos termos uma dignidade social.
Ela era aliás possível de ser verificada historicamente através da luta de
classes e do colapso das hierarquias sociais, simbolizado pela Revolução
Francesa.
Rousseau, por seu lado, contribuiu muitíssimo para o estabelecimento
do mito do “eu” autêntico, da essência romântica de uma identidade pura e
incorruptível pela sociedade. Se em Kant encontramos, por outro lado, o
postulado de um “eu” psicológico uniformizador das produções cognitivas
de tipo raciocinativo, as suas obras de pendor ético revelam, sem dúvida, a
defesa de uma dignidade social a que todos temos direito.
Kant é também importante por ter defendido que nas formas
linguísticas de expressão das nossas genuínas identidades radicava a
possibilidade de construirmos, pelo diálogo, comunidades com espaços
nos quais todos veriam reconhecida a respectiva dignidade social. Assim,
a concepção de que as diferenças podem ser integradas em função de um
Bem-comum defende que o diálogo é o meio de concretização dessa
crença, subjacente nos ideais de uma só Europa, por exemplo (ou de um só
país, nos E.U.A). Face ao cenário de terrorismo internacional, dos
conflitos étnicos dentro da Europa, etc, muitas pessoas consideram no
entanto que esta crença de origem kantiana deve ser desmistificada.
Muitos dos discursos políticos dos dois últimos séculos assentaram nas
concepções que acabámos de enunciar. Lentamente muitos dos conceitos
criados nesta matriz discursiva foram-se incorporando no nosso discurso
quotidiano (Rorty, 1989), tornando-se tão familiares que acreditamos que
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eles espelham uma verdade ontológica inscrita no mundo e nas relações
inter-pessoais.
Esta incorporação serve de pano de fundo para muitos juízos de valor
que pronunciamos, quer na esfera privada, quer na esfera pública. Dela
deriva a defesa de muitos de nós de que o reconhecimento de uma
dignidade social para cada cidadão implica acabar com a discriminação,
quer social, quer política, quer económica. Parece contudo que a abolição
da discriminação política é aquela mais fácil de levar a cabo (e.g: os
pobres podem votar).
O reconhecimento (universal) do direito à diferença tomou lentamente
forma a partir da assimilação cultural dos conceitos de identidade e de
autenticidade forjados no idealismo europeu e expandidos pelo liberalismo
político. Em nome do direito (universal) de expressão e cumprimento dos
anseios genuínos e irredutíveis a discursos maioritários defendem-se os
direitos inalienáveis de pessoas individuais, de grupos minoritários, de
comunidades diferenciadas, de etnias, de raças, de religiões, etc. A
importância atribuída a estas significações puras para a identidade pessoal,
ou colectiva, em questão é tão acentuada que muitos consideram ser um
verdadeiro pecado mortal a integração dessas pessoas/grupos nos grupos
sociais maioritários.
Criamos pois um imperativo categórico que se enuncia no
reconhecimento e na atribuição de valor social a algo que não é universal,
nem sequer maioritariamente, partilhado. Este imperativo exige de todos
nós algo complexo, já que o direito à diferença surge como corolário do
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direito universal à dignidade e ao reconhecimento igual para todos. De
facto, para que o direito à diferença seja universal, ele tem que respeitar
não o que é comum, mas o que é específico, o que sendo uma
incongruência lógica, enquadra-se no valor da liberdade em que
acreditamos desde a Revolução Francesa. Esta é uma das razões porque
tem sido tão difícil a construção de sociedades democráticas, não
parecendo contudo haver outra alternativa (dentro do contexto das crenças
que construímos). Com efeito, a política do reconhecimento da dignidade
igual, por si só, pode levar a regimes ditatoriais em que se define pelo
poder o que é necessário para que todos sejamos dignos, sem ter em conta
os anseios idiossincráticos de pessoas ou grupos. Como sabemos, o
princípio da dignidade igual tem legitimado que uma
compreensão/interpretação da condição humana se imponha como aquela
que melhor garante, a todos, o reconhecimento desse princípio.
Os conflitos conceptuais (e não só) que as políticas do reconhecimento
levantam podem ser assim sintetizadas: as políticas de reconhecimento da
dignidade igual (universal) lutam por formas de não-discriminação que
não têm em conta as diferenças das pessoas entre si. As políticas do
reconhecimento à diferença definem-se como exigindo que tratemos
diferentemente as pessoas/grupos/colectividades que consideramos (ou
que se auto-consideram) como possuindo especificidades face às
comunidades maioritárias.
A concretização da política de reconhecimento à diferença tem como
exemplos privilegiados a situação dos Amish na Pennysilvania e dos
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Mormons em Iotwa, nos Estados Unidos da América…mas será legítimo
esta situação ocorrer com sistemas democráticos com estados-governos
centrais fortes?
4. Da possibilidade de conciliar o inconciliável
As políticas da dignidade igual baseiam-se no pressuposto de que
todos os seres humanos merecem um respeito igual entre si, base da
crença da possibilidade infinita de integração das diferenças. Para Kant,
esta dignidade ancora-se no facto de os seres humanos serem considerados
agentes racionais, com capacidade para orientar e decidirem as suas vidas
segundo princípios (ainda que não o façam). As nossas crenças
contemporâneas na dignidade igual para todos os humanos alicerçam-se
em raciocínios deste tipo.
Com efeito, a defesa das políticas da dignidade igual derivam da
crença de uma potencialidade partilhada por todos os humanos (e que se
pode enunciar em torno do postulado kantiano, e da revolução francesa, da
liberdade humana). É este potencial (e não o que se faz com ele) que
garante o direito de todas as pessoas a serem respeitadas. Daí que nos faça
sentido estender este direito àqueles que se encontram impossibilitados de
realizar esse potencial: pessoas com deficiências, pessoas em coma, etc.
Uma das maiores polémicas éticas da contemporaneidade, sobre a
interrupção voluntária da gravidez, sustenta em si esta mesma questão,
dado que o que é motivo de discórdia é a consideração, ou não, de que os
embriões humanos são potencialmente pessoas. É que caso assim os
22
consideremos, os princípios de aceitação do direito à dignidade igual por
parte de quem não pode actuar com toda a sua capacidade humana, terá
que ser aplicada também nesta situação.
As políticas da diferença também se baseiam no pressuposto da
existência de uma potencialidade universal ao nível humano,
nomeadamente na formação e definição de identidades, quer ao nível
pessoal, quer ao nível comunitário, quer ainda ao nível cultural. É esta
capacidade de se constituírem identidades únicas de tipo humano que é
considerado um direito inolvidável a ser respeitado pelas políticas da
diferença.
“Just as one should never forget the sociality of the biographical, so
too the converse is true: the social can only exist in, and through, the
biographical dimension. Social reality is not possible to approach if we
streep it of its biographical dimension” (Alheit- 1999:321).
Como enunciámos anteriormente, estes dois tipos de actuação política,
ambas alicerçados no respeito igual entre humanos, entram usualmente em
conflito. Com efeito, ao nível da concretização de práticas educativas
comunitárias, aquelas assentes num política de dignidade igual focalizam-
se naquilo que é comum, enquanto para outros só se assegura o
cumprimento do respeito igual pelo reconhecimento nas práticas das
peculiaridades individuais/comunitárias da população em causa.
Não podemos pois estranhar que os defensores das políticas do
reconhecimento da dignidade igual acusem a segunda posição de
favorecimento da discriminação (podendo dar como exemplo a não
23
aceitação em universidades feministas da contratação de docentes que não
possuam curricularmente uma posição feminista assumida); os apologistas
do incremento das políticas do reconhecimento às diferenças esgrimem
libelos de prepotência aos primeiros, dado ser por eles exigido uma
homogeneidade de crenças e uma conformidade de comportamentos
exigidos por grupos e culturas maioritárias.
A confusão que muitos educadores comunitários (e muitas outras
pessoas, obviamente) sentem face a situações de tentativa de integração de
pessoas/grupos/comunidades consideradas diferentes, resulta pois de
paradoxos nas quais fomos construindo as nossas sociedades, paradoxos
esses que as tornam tão complexas e difíceis de compreender.
A história dos ideais da humanidade ensina-nos que geralmente estas
situações paradoxais são superadas pela literalização de metáforas
sintéticas de tipo hegeliano, em que a terceira via funde as duas posições
anteriores.
No que respeita, no entanto, a questão sobre a qual aqui temos vindo a
reflectir torna-se muito difícil fundir as duas posições paradoxais (e em
que uma encaixa na outra, ainda que dela distinguindo-se) porque não
possuímos um espaço neutro a partir do qual o possamos fazer.
Com efeito, os defensores da política da dignidade igual para todos
não pertencem a uma posição neutra, mas antes defendem a existência de
regras comuns a que todos têm que obedecer a partir de uma cultura (entre
muitas) que no presente momento histórico actua hegemonicamente. Daí a
dificuldade que esta posição tem vindo sempre a encontrar ao tentar
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estipular os princípios universais que todos poderiam aceitar; é que os
valores considerados fundamentais pelas culturas hegemónicas são tão
contingentes e dependentes da evolução das suas evoluções históricas,
como os das culturas marginalizadas.
Temos então que as políticas de dignidade igual levam usualmente à
discriminação e à alienação de comunidades minoritárias. Às políticas que
defendem o reforço das diferenças é-lhes usualmente apontado a posição
altiva e de vontade de poder mimético que não as posiciona em situação
de possível diálogo com as culturas maioritárias, mas antes de confronto
incontornável.
Ambas as posturas defendem, no entanto, o reconhecimento a que
todos os seres humanos têm direito. A primeira argumenta que a luta pelo
reconhecimento só pode ser vitoriosa com a existência de regimes
políticos que garantam reconhecimento recíproco entre seres iguais. Para
tal temos de concretizar o propósito comum a todos os seres humanos,
realizando nas sociedades contemporâneas o ideal do contrato social
enunciado por Rousseau, e onde as nossas diferenças têm que estar
subjugadas ao bem-comum (ou, muitas vezes, ao mal-comum).
Note-se, no entanto, que o Bem-comum pode ser tornado comum a
partir de comunidades minoritárias que, em nome das suas diferenças,
conseguiram legitimar a exclusão de outros. Isto acontece, por exemplo,
no estado do Quebeque, no Canadá, em que nas escolas só se pode ensinar
francês (mesmo aos filhos de anglófonos), onde as empresas com mais de
50 pessoas só podem funcionar com base na língua francesa, e onde os
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anúncios comerciais só podem utilizar aquela língua. Estamos aqui perante
uma situação peculiar, em que já não se luta apenas pela expressão da
diferença de uma cultura dentro de uma outra, mas sobretudo da
legitimação em se criar e se manter deliberadamente essa cultura (Taylor-
1994).
O ponto de vista de quem argumenta que os interesses particulares
devem ser sempre prioritários aos interesses colectivos alicerça-se no
liberalismo político, em que se defende a liberdade de actuação individual;
daí que a actuação do Estado deve ser o mais leve possível, cabendo-lhe
quase em exclusivo garantir espaços de desenvolvimento,
representatividade e participação a todos os pontos de vista, constituindo-
se as sociedades em grandes espaços de conversações onde se esgrimem
continuamente argumentos, e onde o qualquer discurso é considerado
contingente e passível de ser destronado do seu lugar privilegiado pela
melhor argumentação de outros discursos (Rorty- 1989).
Esta posição esquece porém que existem indivíduos que se encontram
impossibilitados, por questões de vária ordem, de participarem na
construção de sociedades de tipo conversacional, ou dialogante. Essas
pessoas/grupos devem, ou não, ser protegidas pela actuação dos Estados?
Mas, a assim ser, em nome de que padrões poderemos definir quais são
essas pessoas/grupos e até que patamar, e em nome de que valores, as
devemos proteger, de modo a garantirmos a integração deste tipo de
população?
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A corrente liberal tem apresentado, contudo, alguns autores que
remetem, pelo menos ao nível conceptual, para a possibilidade de se
estipularem alguns objectivos (e não imposições) colectivos comuns. Estes
terão todavia de existir no respeito pelas diferenças que se verifiquem
dessas colectividades, e teremos que conseguir assegurar direitos
fundamentais àqueles que não concordem com os referidos objectivos
comuns.
Este liberalismo mais leve tenta pois criar uma variante intermediária
entre as duas posições que fui descrevendo, ao longo deste artigo (com a
preciosa ajuda de Charles Taylor, entre outros). Reconhece-se que a
diferença é fonte de complexidade dentro das sociedades contemporâneas,
mas assume-se que por vezes é necessário ter que optar pela sobrevivência
de alguma identidade cultural face à incapacidade de se integrarem
determinado tipo de ruídos, pelo menos num determinado tempo e espaço
de uma sociedade. Acontece por vezes que uma mesma sociedade possui
ruídos que provêm de vários grupos minoritários que causam perturbações
não tanto na cultura maioritária, mas sobretudo nas outras minoritárias.
Não parece pois haver soluções a indicar para a questão aqui
reflectida. Conhecermos porém melhor os contornos que envolvem as
dificuldades que ela acarreta é já, porém, avançar na procura de
ajustamentos a efectuar pelos educadores comunitários, tendo sempre em
conta o contexto específico em que se move o público com o qual
trabalha.
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Penso que é sobretudo importante conseguirmos – via educação
comunitária – que o ruído dentro de uma sociedade por parte dos grupos
minoritários não seja considerado uma ameaça grave à identidade da
comunidade maioritária. Avanço com alguns passos que se poderão
incentivar para que tal não ocorra, de modo a que a diversidade de grupos
minoritários possa actuar como fonte de inovação.
Um dos passos mais importantes é, sem dúvida, como já referi,
reconhecermos o valor das pessoas e dos grupos, focalizando-nos nas suas
dimensões positivas na construção de mundos de significação. Isto implica
conhecer e compreender as histórias de vida das populações em causa,
perceber qual a narrativa que contam a si próprias, e entre si, para
justificarem os seus actos.
Assumirmos que o ponto de vista a partir do qual ajuizamos outras
pessoas/comunidades não constitui um referencial neutro, implica também
procurarmos compreender como este ponto de vista se gerou,
identificando redes de crenças e pressupostos, estudando a sua
constituição histórica como valores inquestionáveis dentro da nossa
cultura, bem como a sua relação com a história de vida que é a de cada um
de nós, no acto de observacionalmente ajuizarmos discursos e condutas
alheios.
Consciencializarmos a cultura maioritária, bem como as minoritárias,
da necessidade de reconhecimento que todos possuem, possibilita em
alguns casos (cfr. Goleman-1995:310-329) a negociação entre
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comunidades diferentes no sentido de evitar actuações que humilham o
reconhecimento à dignidade igual das comunidades diferentes.
Passar do acto de fé de que todas as culturas merecem ser respeitadas
para o respeito efectivo entre si tem-se revelado tarefa árdua de ser
concretizada no quotidiano da educação comunitária. Os passos que
possamos dar nessa direcção remeterão contudo para a co-educação
alicerçada no conhecimento real das culturas que partilham uma mesma
sociedade.
Considero no entanto como algo de fundamental o investimento na
construção de projectos comuns voluntários, sem medos românticos da
diluição de identidades de verdadeiros eus, individuais e colectivos. A
impossibilidade de possuirmos sociedades com projectos com os quais
todos nos identifiquemos não nos deve impedir de investir na prospecção e
concretização daqueles que são possíveis de se realizarem.
Para tal, teremos que conseguir perceber como outros organizam bio-
psico-comunitariamente o mundo que partilhamos, reconhecer essas
formas de vida ainda que não partilhemos das suas crenças. Reconhecer
outras pessoas e outras culturas não pode assentar em atitudes
paternalistas, infantilizantes e protectoras; ela implica também considerá-
las como pontos de vista alternativos, e com dignidade suficiente, para
serem nossos adversários na constituição do mundo em que todas as
configurações são importantes. É que as sociedades contemporâneas, as
civilizações e as democracias não constituem dádivas que herdámos, mas
antes resultam de processos contínuos infindos de construção, e de
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reconstrução. A manutenção de sociedades democráticas exige de cada um
de nós a participação activa, promovendo espaços de debate dos quais
possam emergir significações perturbadoras, ainda que não aniquiladoras,
dos jogos de linguagem nos quais vivemos: “uma palavra nova é como
uma semente fresca semeada no terreno do debate” (Wittgenstein-
1977:2).
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