INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos...

32
Oliveira, C. C. (2007). Integração e Diferença em Educação Comunitária: Missão Impossível? Reflexão e Acção, vol. 15, nº 1: 08-28. UNISC (Brasil). ISSN: 1982-9949.

Transcript of INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos...

Page 1: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

Oliveira, C. C. (2007). Integração e Diferença em Educação Comunitária: Missão

Impossível? Reflexão e Acção, vol. 15, nº 1: 08-28. UNISC (Brasil). ISSN: 1982-9949.

Page 2: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO COMUNITÁRIA:

MISSÃO IMPOSSÍVEL?

Clara Costa Oliveira

Instituto de Educação e Psicologia e Escola de Ciências da Saúde

Campus de Gualtar 4700 Universidade do Minho; 351253604858;

[email protected]; Professora Auxiliar com nomeação definitiva

RESUMO:

Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses

multiculturais do filósofo Charles Taylor, interrogando sobre o seu

contributo para a compreensão e para a intervenção em educação

comunitária não formal.

ABSTRACT:

In this paper, we critically reflect about the multicultural theory of the

philosopher Charles Taylor, considering its contribution to the

understanding and to the practical use in non formal community

education.

PALAVRAS-CHAVE: educação comunitária; políticas do

reconhecimento; políticas da diferença; aculturação.

Page 3: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

2

Introdução

Olhando para a história da educação ocidental à procura de

fundamentações teorizadoras sobre a importância de promover a

integração de aqueles considerados diferentes numa determinada

sociedade, um dos autores (e dos primeiros) que se destaca é Jan Amos

Komensky (Comenius).

Tendo nascido e vivido em plena época da Reforma, e num contexto

geográfico e cultural específico face às culturas maioritárias da Europa,

ele evidencia na sua obra pedagógica os ideias de nobreza humana para

com os excluídos (especialmente os pobres) de Jan Huss, fundador da

igreja reformada hussita. Fortemente influenciado pelo ambiente religioso

peculiar vivido na Morávia, Comenius foi criado no espírito comunitário e

igualitário da Igreja cristã da Unidade dos Irmãos (Frères de Bohême) e

foi também um dos seus mais devotados membros no que respeita à

protecção dos Irmãos, que em última análise, eram todos os filhos de

Deus.

Nestas instituições religiosas se funda um dos primeiros, e um

dos mais bem organizados, sistemas pedagógicos da nossa cultura

ocidental, onde se incrementa a educação de todas as pessoas,

independentemente do género, da etnia, da idade ou da classe social a que

pertenciam. Comenius vai porém mais longe ao defender que a educação

Page 4: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

3

organizada deverá incluir todas as pessoas com deficiências de quaisquer

tipos, incluindo as mentais.

O seu conceito de educação não se refere ao ensino escolar em

transição – naquele momento - entre a organização feudal medieval e o

mundo humanista-burguês ainda sem definições precisas. Comenius

legou-nos, pelo contrário, preciosas páginas de sabedoria sobre as

aprendizagens teóricas e técnicas que obtemos na vivência em

comunidades, sobretudo naquelas que para ele encarnavam o ideal de vida

comunitária. Os saberes de tipo escolar estavam aí incluídos, nesse mundo

mais amplo em que os vínculos afectivos e emocionais, bem como as

disposições genéticas, eram considerados variáveis a considerar, e onde o

saber ancestral de algum tipo de lides por parte de grupos específicos

(como as mulheres e os artesãos) era considerado fonte de aprendizagem

para toda a comunidade.

Não deixa porém de ser curioso que Komensky tenha sido uma

personagem importante de associações de carácter secreto como os Rosa-

Cruz e o Milenismo. Parece também indiscutível, para os historiadores

contemporâneos, a existência de laços entre os pedreiros-livres (e a

franco-maçonaria em particular) e a Unidade dos Irmãos. Tratando-se de

organizações que se consideravam não só como diferentes, mas sobretudo

que pretendiam continuar a constituírem-se como diferentes face às

associações de tipo oficial que então existiam, encontramo-nos perante um

(aparente?) paradoxo na vida de Comenius.

Page 5: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

4

Esta estranheza em compreender como alguém pode ser

simultaneamente um poderoso defensor do direito à integração no âmbito

da educação por parte de populações discriminadas, e um membro de

organizações secretas fortemente organizadas de um modo hierárquico e

com crenças elitistas (como no caso dos Rosa-Cruz), é o mesmo tipo de

estranheza que assalta muitos educadores comunitários quando se

encontram no terreno como responsáveis pela educação (escolar, extra-

escolar, ou não escolar) de populações discriminadas. Com efeito, cabe-

lhes garantir a integração das diferenças sem contudo o fazer de forma

forçada; cabe-lhes também relembrar essas diferenças ao mesmo tempo

que as tentam integrar, segundo muitos dos defensores do

multiculturalismo (Taylor, por exemplo).

No tempo de Comenius, a diferença pagava-se caro (com a própria

vida, usualmente) e actualmente tal também acontece, em muitos lados do

mundo. A diferença existe sempre, contudo, em contextos diferenciados,

tal também acontecia naquela época. Assim, ser considerado diferente

num país mediterrânico seria, por exemplo, alguém que tivesse adoptado

os ideais religiosos de Lutero. Na Morávia, porém, seguir a autoridade do

bispo de Roma traria o estigma em comunidades alicerçadas politicamente

na fé da Reforma.

A contingência da diferença emerge pois da lógica significante

específica dos grupos maioritários entre os quais a diferença é reconhecida

enquanto tal, algo que qualquer educador tem que ter em conta, quer

trabalhando com indivíduos, quer com comunidades.

Page 6: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

5

A educação comunitária pressupõe a solidariedade entre cidadãos

(logo, o respeito pela diferença), e tal pode ser testemunhado na vida de

Komensky, ainda que aparentemente de forma paradoxal.

Ele deveu a sua educação aos irmãos religiosos já mencionados; ter-se

tornado maçon decorreu provavelmente de uma vontade em querer

melhorar a comunidade na qual vivia.

Naquela época, muitos maçons eram cristãos (usualmente não

trinitários) e pretendiam criar uma elite cristã que abrisse a fé à discussão

intelectual, libertando-a das superstições mágicas dos tempos medievos.

Muito provavelmente, Comenius considerava que a sua ligação à

maçonaria (e eventualmente aos Rosa-Cruz) seria um factor de

dinamização comunitária, ou seja, acreditava que a diferença poderia ser

considerada um factor de complexidade social (Dupuy, 2001).

1. Em torno de uma educação permanente e comunitária

Se a educação comunitária surge desde sempre visivelmente ligada à

dimensão extra-escolar (nomeadamente no que respeita ao espaço físico

que ocupa), é na época de Komensky, a Reforma, dos enciclopedistas e da

Revolução Francesa que ela assume o seu vínculo aos ideias de

emancipação de grupos minoritários específicos. Hoje este vínculo está

muito longe de se referir apenas a grupos excluídos por questões de classe

social e/ou de rendimentos económicos; os grupos considerados

discriminados incluem hoje as minorias étnicas, as questões de género (e

Page 7: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

6

não só as relacionadas com as mulheres), as igrejas e as seitas, os presos,

os doentes, etc.

Esta dimensão da educação comunitária encontra-se ainda muito

pouco praticada em alguns países, principalmente se tivermos em conta a

preocupação com estas questões que alguns países europeus

demonstravam já no século XIX (Escócia, Inglaterra, Dinamarca, por

exemplo). De um modo mais explícito, ou menos reconhecido, o trajecto

histórico da educação comunitária encontra-se nas mãos daqueles que a

desenvolveram em todo o mundo: o movimento operário, os sindicatos, as

igrejas católicas reformadas e as protestantes, o movimento anarquista

(cfr. Jarvis- 1998).

Com a situação da reconstrução económica e política do pós-guerra

que se verificou em praticamente toda a Europa, a necessidade de

alfabetizar populações adultas femininas e masculinas de baixos estratos

sociais passa a ser algo que preocupará doravante a educação comunitária

que, pela mesma ordem de razões, se vira também para a actualização

profissional, para a formação de quadros, etc. (Dias- 1983).

Face a esta tendência crescente de formalização estatal da educação

comunitária irrompem vozes como as de Freire, Macedo e Illich que

insistem em colocá-la ao serviço da dotação de voz às populações

humilhadas por questões políticas, económicas, geo-estratégicas, mas

também por razões culturais. Temos então um movimento reivindicativo

de participação e de autonomização revolucionária (Freire- 1975)

Page 8: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

7

dificilmente conciliável com as estratégias integradoras de tendência

estatal.

Illich, aliás, alerta-nos continuamente para o perigo da assimilação

integradora que ocorre usualmente como resultado do desaparecimento

das especificidades de culturas minoritárias ou, pelo menos, de grupos

minoritários. A denúncia do cinismo integrador humanista (dialoga-se

com o outro até o conseguir integrar na nossa mesmidade) pela voz de

Illich é tão certeira e contundente que leva muitos a considerarem-no um

radical que não merece ser levado muito a sério.

É neste caminho de tropeções, recomeços e desorientações que a

educação comunitária se cruza com as questões do multiculturalismo Este

encontro quotidiano manifesta-se nas problemáticas com que os

educadores se encontram, e que constituem as mesmas do

multiculturalismo: a integração numa comunidade/sociedade de alguém

que é único, e cujo processo de aprendizagem-educação (Oliveira- 1999) é

irredutível ao de outro seu semelhante. Esta ambiguidade concretiza-se em

situações como possuir numa aula de educação de adultos alguém

absolutamente apaixonado por só um tipo de conhecimento (o desenho,

por exemplo); como trabalhar com homossexuais em comunidades

oficialmente heterossexuais, com agorafóbicos, com deficientes visuais,

com mulheres vítimas de maus-tratos, com sobredotados, etc. Por vezes,

os educadores ignoram estas diferenças que a sua clientela possui, e

alguns fazem mesmo por as ignorar, afastando-se dos princípios

fundamentadores da educação comunitária.

Page 9: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

8

A ambiguidade acima enunciada é talvez mais difícil de omitir quando

ela emerge de algum tipo de identidade colectivo. Talvez a possamos

enunciar, a este nível, com maior precisão do seguinte modo: como

promover a integração social de grupos que, considerando-se diferentes,

querem ter os mesmos direitos de cidadania que os membros das

sociedades em que vivem sem, contudo, pretenderem desistir de alguns

(aparentes?) direitos que a sua especificidade acarreta? Como promover a

aceitação da integração de grupos com uma determinada especificidade se

ela é considerada pelo(s) grupo(s) social maioritário como algo que

ameaça a sua ordem (já de si tão precária) e, logo, os seus direitos de

cidadania? Esta questão aplica-se (caso não a queiramos omitir) – e apenas

a título ilustrativo - à educação comunitária dirigida a públicos tão

diferentes como esposas-domésticas (por imposição social, e não por

opção), pessoas inseridas no mundo rural há várias gerações, crentes de

grupos religiosos minoritários e, obviamente, às etnias.

Trabalhar seriamente com estes grupos implica, como todos sabemos,

conhecermos e compreendermos os seus padrões de atribuição de sentido

ao mundo; implica também inteirarmo-nos da história de surgimento e

evolução destes grupos e também da articulação do sentido dos indivíduos

em causa com o grupo/classe/comunidade com o qual são identificados.

Mas como articular esse saber/conhecimento detectado com a construção

do mundo vinculado como “politicamente correcto” pelos grupos sociais

considerados maioritários? É legítimo considerar que existe educação

comunitária quando se promove a animação de grupos étnicos sem uma

Page 10: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

9

dimensão teleológica educativa? Estaremos de facto a promover educação

comunitária quando direccionamos a formação extra-escolar para a

aprendizagem de bordados somente mulheres domésticas e/ou

desempregadas, sem que elas tivessem podido optar por outro tipo de

actividades (ou que não tivessem aprendido a sua legitimidade em o poder

fazer)?

Estas questões com que os educadores se defrontam quotidianamente

são consequência de um vocabulário que se literalizou (Rorty- 1989)

lentamente nos últimos séculos na nossa cultura.

Em Contingência, Ironia e Solidadriedade, Rorty lembra-nos que

muitos dos vocábulos que hoje utilizamos nem sempre existiu ao longo da

história da humanidade, sendo este um dos argumentos utilizados para

demonstrar que a linguagem não é representacionalista, ou seja, que não

representa realidades objectais, mas é antes comunitária, isto é, criam-se

vocábulos quando se pretende falar de algo que tem significado para uma

comunidade. O autor exemplifica este seu argumento com as palavras

agapê (e o seu uso cristão) e gravitas (inventado no tempo de Galileu),

entre outros. Elas simbolizam metáforas (palavras com sentido novo a

partir de contextos linguísticos já existentes, mas com um arranjo

semântico diferente) que surgiram em épocas específicas. Quando ocorre

aceitação de novas metáforas, elas passam a ser utilizadas familiarmente

dentro de uma comunidade, podendo extravasar para toda a sociedade. Tal

acontecendo, afirmamos que a metáfora se literalizou, dado que a sua

dimensão diferenciadora deixou de existir, passando esses vocábulos a

Page 11: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

10

serem utilizados no quotidiano das populações, ainda que usualmente com

significação ligeiramente diferente da original (veja-se, por exemplo, a

literalização da palavra „trauma‟, após a sua metaforização por Freud).

Algo que convém não esquecermos é que a diferença só pode ser

integrada comunitariamente até um certo ponto. Dito de outro modo,

algum ruído pode promover complexidade de um grupo/comunidade, se os

seus elementos considerarem que a novidade acarretada pela nova

metáfora os pode beneficiar, ainda que surja como perturbadora. Caso ela

seja considerada como ameaçadora da significação colectiva, a metáfora (e

quem a pronunciou) arrisca-se, no entanto, a ser eliminada, pois constitui-

se (aos olhos da comunidade) como ruído não passível de ordenação,

como algo que destrói a identidade da colectividade (Girard, 1978;

Oliveira, 1999). Saber identificar sinais de hostilidade dentro de um grupo,

diminuindo ou terminando a sua participação metafórica dentro dele é em

muitos casos um sinal de sabedoria dado que a integração da diferença em

algumas comunidades pode constituir-se como uma missão impossível de

ser concretizada.

Na época da revolução francesa, algumas das sociedades europeias

estavam prenhes de significados novos, sobretudo resultantes de formas de

vida então recentes, como as da burguesia, do proletariado, do

mercantilismo. Novos vocábulos linguísticos tiveram que ser produzidos,

ou reinventados, para dar conta destas novas vivências.

Page 12: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

11

Três vocábulos foram usados como labelos da revolução francesa com

força metafórica: igualdade, fraternidade e solidariedade. Neles assentam

as crenças básicas da educação comunitária.

Volvidos mais de duzentos anos após o seu pronunciamento, além de

não terem sido concretizados, estes ideais são considerados por muitas

pessoas como se contradizendo entre si. Para elas não é possível garantir

as liberdades específicas individuais/grupais/colectivas sem se verificarem

ingerências no tratamento civil igualitário dos restantes

membros/grupos/colectividades sociais; tal tratamento é considerado

absolutamente necessário para a concretização de um mundo mais

fraterno. Este argumento é usualmente utilizado, por exemplo, nas

dificuldades que se colocam à integração de imigrantes (brasileiros, por

exemplo) nos países da comunidade europeia.

Existem ainda pessoas que consideram, pelo contrário, que a

construção de um mundo fraterno exige o respeito pela liberdade de vidas

idiossincráticas individuais ou grupais. A este respeito universal pelo

modo específico de cada um (ou cada grupo) construir formas de vida

corresponderia uma vivência igualitária. Este foi um dos argumentos da

política multicultural do estado francês até há uma década atrás,

incrementando a diferenciação da cultura árabe como forma de garantir o

respeito igualitário às pessoas desta comunidade. Actualmente é

considerado um argumento muito discutível, dadas as insurreições

verificadas em Paris no início do novo milénio, tendo por principais

actores membros desta comunidade.

Page 13: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

12

Significa tudo isto que os ideais da revolução francesa estavam

errados, e que temos que os mudar, ou os rejeitar? A resposta do neo-

pragmatismo rortiano parece-me muito sensata: se ainda acreditamos

nesses pilares da cultura europeia, eles estão correctos; o que parece

porém irrefutável é que não os soubemos realizar. Teríamos então que

pensar no que errámos ao longo destes duzentos e alguns anos; talvez

reformulando o que já sabemos que falhou consigamos avançar na

concretização da sociedade preconizada naquela revolução.

2. Crenças e pressupostos (vocabulário) a rever

Uma das questões em que, no meu entender, errámos fortemente (e

continuamos a errar) é pretendermos que as nossas actuações biculturais

são multiculturais. É com efeito usual ver-se institucionalizada a

integração de grupos minoritários utilizando como estratégia (quase)

exclusiva o incremento das diferenças dos grupos em causa. Isto significa

que se trabalha algumas vezes com estas populações apenas em dualidade

(ainda que ocorra num mesmo espaço físico, como sendo uma sala de

aulas), mantendo e reforçando as suas identidades específicas (de um

grupo face a um outro). Este tratamento bicultural que pretende conduzir a

uma integração de membros individuais, ou de grupos minoritários, tem-se

mostrado inoperante pelo menos no que respeita aos momentos mais

críticos entre os grupos considerados.

O biculturalismo fomenta usualmente a competitividade, a inveja e o

rancor; o desejo do oprimido minoritário se tornar opressor. A percepção

Page 14: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

13

(usualmente não-consciente) por parte do opressor deste ressentimento

latente leva-o usualmente a reforçar os mecanismos de discriminação. São

este tipo de situações, que acentuam o mimetismo, que são usualmente

utilizadas para a justificação de atitudes de “defesa”, fazendo surgir bodes

expiatórios do grupo social maioritário face a fenómenos perturbadores da

sua coesão social, como o comércio de estupefacientes, o roubo, etc.

Intervenções ao nível do multiculturalismo que tenha conseguido

articular com sucesso a integração de populações consideradas diferentes,

ou especiais, podem ajudar-nos a criar soluções para os contextos nos

quais actuamos. Os cursos livres (na perspectiva de life long learning) que

têm obtido melhores resultados nos E.U.A. são aqueles em que a mistura

cultural é mais variada (Bateson, 1989). Em termos comunitários

divulgam-se os cursos de cultura chinesa, por exemplo, não só nos bairros

chineses das cidades mas por todos os bairros. Neles são também

apresentados exposições, dramatizações, etc, relacionados com esta

cultura. Daí que hoje se possam encontrar cursos livres de chinês em que a

maior parte da população inscrita não é de origem chinesa, e onde

podemos encontrar pessoas de origem hispânica, inglesa, indiana, etc.

Experiências deste tipo estão a ser sentidas um pouco por todo o mundo;

(cfr., por exemplo, Roberts- 1999).

Este tipo de intervenção multicultural pode ser alargado para lá da

população adulta: todas as crianças residentes em França deveriam ter

acesso permanente à língua e cultura de três culturas: francesa, argelina

(com foco no mundo árabe) e portuguesa. Este tipo de modelo pode

Page 15: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

14

facilmente ser adaptado ao contexto cultural das sociedades em causa.

Quando vivemos em países em que a diversidade cultural não é tão visível

em termos de nacionalidades, ou de etnias, o multiculturalismo pode ser

trabalhado ao nível de outras diferenças culturais, como a classe social, o

género, a idade, o contexto comunitário (rural/urbano; litoral/interior).

Esta é aliás uma das metodologias de educação comunitária que

melhores resultados pode obter no que respeita a grupos mistos. Criar

categorias sociais dentro destes grupos de modo a constituírem-se

múltiplos outros grupos acentua o que há de comum entre pessoas que

aparentemente só podem ser categorizadas em função da sua etnia/raça.

Este tipo de intervenção exige muita flexibilidade, criatividade e

paciência. Não se obtêm resultados reais de integração das diferenças

individuais/grupais em prazos estipulados a priori por estruturas

governamentais, desconhecendo os ritmos muito variáveis com que cada

grupo de trabalho se depara.

Outra dimensão importante é conseguirmos trazer o mundo cultural

específico de comunidades minoritárias (ou até inexistentes na nossa

comunidade) para o quotidiano: a leitura escolar de histórias da cultura

africana (negra e árabe), chinesa, alemã e francesa a cidadãos portugueses

e brasileiros ajudar-nos-ia a constituirmos povos muito mais tolerantes do

que discursos inflamados de activistas políticos defensores das causas dos

oprimidos. Tornar familiar o que é diferente parece ser uma forma

privilegiada de se realizar a integração das diferenças.

Page 16: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

15

Outra dificuldade que temos encontrado verifica-se face a populações

constituídas por grupos discriminados - e até excluídos – socialmente.

Neste contexto, a educação comunitária serve, muitas vezes, de pretexto

para reforçar lógicas de marginalização, já que legitima de tal modo a

diferença cultural e o estatuto social desses grupos (minorias étnicas e

raciais, presos, doentes mentais, idosos, etc) que a dimensão integradora

numa sociedade que inclui outro tipo de grupos tem cada vez menor

viabilidade.

A promoção da educação comunitária tem sido uma mais-valia

surpreendente em termos de resultados positivos quando se recorre à

actuação de mediadores. Esta prática ainda é pouco usual em vários

contextos, afigurando-se-nos como muito importante fomentá-la. Para tal

teremos que questionar o pressuposto romântico de que a educação

comunitária deve ser um espaço neutro de actuação por parte dos

educadores.

Sabemos que a neutralidade não existe e obviamente que temos que

considerar essa não-neutralidade como um limite cauteloso à nossa

intervenção junto das comunidades em questão. Um dos modos de lidar

positivamente, e não de uma forma imobilizadora, com esta situação,

consiste na formação de mediadores pertencentes às comunidades em

questão. A experiência tem mostrado que a sua escolha deve ocorrer

depois de se possuir um conhecimento razoável dos grupos. Os

mediadores, com efeito, actuarão com um protagonismo cujas

consequências tem que ser ponderado pelos seus formadores. A grande

Page 17: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

16

vantagem dos mediadores, para além da sua fácil integração como agentes

educativos, é o facto de os seus contornos observacionais terem sido

constituídos primordialmente dentro da comunidade a que pertencem,

contrariamente aos dos educadores que os formaram.

3. As políticas de reconhecimento

Como sabemos, as preocupações com a educação multicultural

surgiram há relativamente pouco tempo nas culturas nacionais. Isto

explica-se por elas serem, de algum modo, o corolário daquilo que alguns

especialistas (Taylor, 1994) apelidaram de “políticas de reconhecimento”.

Elas podem dividir-se entre a política da dignidade igual e a política da

diferença; a segunda deriva da primeira, e ambas assentam no pressuposto

do respeito igual. Enquanto a política da dignidade igual abriu o caminho

para a legitimidade do multiculturalismo, é da política da diferença que ele

deriva directamente.

Irei deter-me rapidamente sobre cada uma das políticas do

reconhecimento pois penso que sem a compreensão do que elas significam

não conseguiremos nunca perceber onde radica o mal-estar que

encontramos em educação comunitária quando tentamos articular

integração e diferença.

Começando pela questão do reconhecimento, qualquer educador

comunitário sabe quanto muito dos seus educandos-educadores (Freire-

1975) sofreram devido à falta de reconhecimento, quer pessoal, quer

social. A aliança que Freire considera existir entre educação e

Page 18: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

17

conscientização prende-se directamente com esta problemática. A falta de

reconhecimento sistemática, e muitas vezes geracional, leva a que as

populações estigmatizem as próprias auto-imagens. Sabemos hoje que o

efeito de uma educação familiar que não reconheça o valor intrínseco de

ser humano a uma criança se reflectirá por toda a sua vida na imagem

psicológica de si própria. O mesmo efeito pode ser encontrado em

populações discriminadas; quando as sociedades, numa espécie de

culpabilidade colectiva, assumem os seus erros face a essas populações

(criando-lhes mecanismos facilitadores de acesso a bens socioculturais que

favorecem o reconhecimento pessoal e social), elas raramente os

aproveitam totalmente.

A importância do reconhecimento radica no, e fundamenta o,

pressuposto do direito à dignidade igual para todos os membros de uma

sociedade democrática. Mas a História facilmente nos pode ensinar que

este pressuposto nem sempre existiu; ele hoje surge-nos como mais ou

menos evidente na cultura “ocidental” devido à incorporação que nela

ocorreu de conceptualizações de vários filósofos. Detenhamo-nos em três

desses importantes conceitos: “universalidade” (tal como foi pensada por

Hegel e Marx), “identidade” (conceito especialmente importante a partir

de Rousseau) e a importância da dimensão linguística, dialogante (tal

como foi teorizada por Kant, e que marcou toda a filosofia da linguagem

contemporânea).

Assim, a crença escatológica hegeliana de um mundo que vai

melhorando na concretização histórica do Ideal foi-nos abrindo o caminho

Page 19: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

18

para acreditarmos na possibilidade de todos termos uma dignidade social.

Ela era aliás possível de ser verificada historicamente através da luta de

classes e do colapso das hierarquias sociais, simbolizado pela Revolução

Francesa.

Rousseau, por seu lado, contribuiu muitíssimo para o estabelecimento

do mito do “eu” autêntico, da essência romântica de uma identidade pura e

incorruptível pela sociedade. Se em Kant encontramos, por outro lado, o

postulado de um “eu” psicológico uniformizador das produções cognitivas

de tipo raciocinativo, as suas obras de pendor ético revelam, sem dúvida, a

defesa de uma dignidade social a que todos temos direito.

Kant é também importante por ter defendido que nas formas

linguísticas de expressão das nossas genuínas identidades radicava a

possibilidade de construirmos, pelo diálogo, comunidades com espaços

nos quais todos veriam reconhecida a respectiva dignidade social. Assim,

a concepção de que as diferenças podem ser integradas em função de um

Bem-comum defende que o diálogo é o meio de concretização dessa

crença, subjacente nos ideais de uma só Europa, por exemplo (ou de um só

país, nos E.U.A). Face ao cenário de terrorismo internacional, dos

conflitos étnicos dentro da Europa, etc, muitas pessoas consideram no

entanto que esta crença de origem kantiana deve ser desmistificada.

Muitos dos discursos políticos dos dois últimos séculos assentaram nas

concepções que acabámos de enunciar. Lentamente muitos dos conceitos

criados nesta matriz discursiva foram-se incorporando no nosso discurso

quotidiano (Rorty, 1989), tornando-se tão familiares que acreditamos que

Page 20: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

19

eles espelham uma verdade ontológica inscrita no mundo e nas relações

inter-pessoais.

Esta incorporação serve de pano de fundo para muitos juízos de valor

que pronunciamos, quer na esfera privada, quer na esfera pública. Dela

deriva a defesa de muitos de nós de que o reconhecimento de uma

dignidade social para cada cidadão implica acabar com a discriminação,

quer social, quer política, quer económica. Parece contudo que a abolição

da discriminação política é aquela mais fácil de levar a cabo (e.g: os

pobres podem votar).

O reconhecimento (universal) do direito à diferença tomou lentamente

forma a partir da assimilação cultural dos conceitos de identidade e de

autenticidade forjados no idealismo europeu e expandidos pelo liberalismo

político. Em nome do direito (universal) de expressão e cumprimento dos

anseios genuínos e irredutíveis a discursos maioritários defendem-se os

direitos inalienáveis de pessoas individuais, de grupos minoritários, de

comunidades diferenciadas, de etnias, de raças, de religiões, etc. A

importância atribuída a estas significações puras para a identidade pessoal,

ou colectiva, em questão é tão acentuada que muitos consideram ser um

verdadeiro pecado mortal a integração dessas pessoas/grupos nos grupos

sociais maioritários.

Criamos pois um imperativo categórico que se enuncia no

reconhecimento e na atribuição de valor social a algo que não é universal,

nem sequer maioritariamente, partilhado. Este imperativo exige de todos

nós algo complexo, já que o direito à diferença surge como corolário do

Page 21: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

20

direito universal à dignidade e ao reconhecimento igual para todos. De

facto, para que o direito à diferença seja universal, ele tem que respeitar

não o que é comum, mas o que é específico, o que sendo uma

incongruência lógica, enquadra-se no valor da liberdade em que

acreditamos desde a Revolução Francesa. Esta é uma das razões porque

tem sido tão difícil a construção de sociedades democráticas, não

parecendo contudo haver outra alternativa (dentro do contexto das crenças

que construímos). Com efeito, a política do reconhecimento da dignidade

igual, por si só, pode levar a regimes ditatoriais em que se define pelo

poder o que é necessário para que todos sejamos dignos, sem ter em conta

os anseios idiossincráticos de pessoas ou grupos. Como sabemos, o

princípio da dignidade igual tem legitimado que uma

compreensão/interpretação da condição humana se imponha como aquela

que melhor garante, a todos, o reconhecimento desse princípio.

Os conflitos conceptuais (e não só) que as políticas do reconhecimento

levantam podem ser assim sintetizadas: as políticas de reconhecimento da

dignidade igual (universal) lutam por formas de não-discriminação que

não têm em conta as diferenças das pessoas entre si. As políticas do

reconhecimento à diferença definem-se como exigindo que tratemos

diferentemente as pessoas/grupos/colectividades que consideramos (ou

que se auto-consideram) como possuindo especificidades face às

comunidades maioritárias.

A concretização da política de reconhecimento à diferença tem como

exemplos privilegiados a situação dos Amish na Pennysilvania e dos

Page 22: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

21

Mormons em Iotwa, nos Estados Unidos da América…mas será legítimo

esta situação ocorrer com sistemas democráticos com estados-governos

centrais fortes?

4. Da possibilidade de conciliar o inconciliável

As políticas da dignidade igual baseiam-se no pressuposto de que

todos os seres humanos merecem um respeito igual entre si, base da

crença da possibilidade infinita de integração das diferenças. Para Kant,

esta dignidade ancora-se no facto de os seres humanos serem considerados

agentes racionais, com capacidade para orientar e decidirem as suas vidas

segundo princípios (ainda que não o façam). As nossas crenças

contemporâneas na dignidade igual para todos os humanos alicerçam-se

em raciocínios deste tipo.

Com efeito, a defesa das políticas da dignidade igual derivam da

crença de uma potencialidade partilhada por todos os humanos (e que se

pode enunciar em torno do postulado kantiano, e da revolução francesa, da

liberdade humana). É este potencial (e não o que se faz com ele) que

garante o direito de todas as pessoas a serem respeitadas. Daí que nos faça

sentido estender este direito àqueles que se encontram impossibilitados de

realizar esse potencial: pessoas com deficiências, pessoas em coma, etc.

Uma das maiores polémicas éticas da contemporaneidade, sobre a

interrupção voluntária da gravidez, sustenta em si esta mesma questão,

dado que o que é motivo de discórdia é a consideração, ou não, de que os

embriões humanos são potencialmente pessoas. É que caso assim os

Page 23: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

22

consideremos, os princípios de aceitação do direito à dignidade igual por

parte de quem não pode actuar com toda a sua capacidade humana, terá

que ser aplicada também nesta situação.

As políticas da diferença também se baseiam no pressuposto da

existência de uma potencialidade universal ao nível humano,

nomeadamente na formação e definição de identidades, quer ao nível

pessoal, quer ao nível comunitário, quer ainda ao nível cultural. É esta

capacidade de se constituírem identidades únicas de tipo humano que é

considerado um direito inolvidável a ser respeitado pelas políticas da

diferença.

“Just as one should never forget the sociality of the biographical, so

too the converse is true: the social can only exist in, and through, the

biographical dimension. Social reality is not possible to approach if we

streep it of its biographical dimension” (Alheit- 1999:321).

Como enunciámos anteriormente, estes dois tipos de actuação política,

ambas alicerçados no respeito igual entre humanos, entram usualmente em

conflito. Com efeito, ao nível da concretização de práticas educativas

comunitárias, aquelas assentes num política de dignidade igual focalizam-

se naquilo que é comum, enquanto para outros só se assegura o

cumprimento do respeito igual pelo reconhecimento nas práticas das

peculiaridades individuais/comunitárias da população em causa.

Não podemos pois estranhar que os defensores das políticas do

reconhecimento da dignidade igual acusem a segunda posição de

favorecimento da discriminação (podendo dar como exemplo a não

Page 24: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

23

aceitação em universidades feministas da contratação de docentes que não

possuam curricularmente uma posição feminista assumida); os apologistas

do incremento das políticas do reconhecimento às diferenças esgrimem

libelos de prepotência aos primeiros, dado ser por eles exigido uma

homogeneidade de crenças e uma conformidade de comportamentos

exigidos por grupos e culturas maioritárias.

A confusão que muitos educadores comunitários (e muitas outras

pessoas, obviamente) sentem face a situações de tentativa de integração de

pessoas/grupos/comunidades consideradas diferentes, resulta pois de

paradoxos nas quais fomos construindo as nossas sociedades, paradoxos

esses que as tornam tão complexas e difíceis de compreender.

A história dos ideais da humanidade ensina-nos que geralmente estas

situações paradoxais são superadas pela literalização de metáforas

sintéticas de tipo hegeliano, em que a terceira via funde as duas posições

anteriores.

No que respeita, no entanto, a questão sobre a qual aqui temos vindo a

reflectir torna-se muito difícil fundir as duas posições paradoxais (e em

que uma encaixa na outra, ainda que dela distinguindo-se) porque não

possuímos um espaço neutro a partir do qual o possamos fazer.

Com efeito, os defensores da política da dignidade igual para todos

não pertencem a uma posição neutra, mas antes defendem a existência de

regras comuns a que todos têm que obedecer a partir de uma cultura (entre

muitas) que no presente momento histórico actua hegemonicamente. Daí a

dificuldade que esta posição tem vindo sempre a encontrar ao tentar

Page 25: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

24

estipular os princípios universais que todos poderiam aceitar; é que os

valores considerados fundamentais pelas culturas hegemónicas são tão

contingentes e dependentes da evolução das suas evoluções históricas,

como os das culturas marginalizadas.

Temos então que as políticas de dignidade igual levam usualmente à

discriminação e à alienação de comunidades minoritárias. Às políticas que

defendem o reforço das diferenças é-lhes usualmente apontado a posição

altiva e de vontade de poder mimético que não as posiciona em situação

de possível diálogo com as culturas maioritárias, mas antes de confronto

incontornável.

Ambas as posturas defendem, no entanto, o reconhecimento a que

todos os seres humanos têm direito. A primeira argumenta que a luta pelo

reconhecimento só pode ser vitoriosa com a existência de regimes

políticos que garantam reconhecimento recíproco entre seres iguais. Para

tal temos de concretizar o propósito comum a todos os seres humanos,

realizando nas sociedades contemporâneas o ideal do contrato social

enunciado por Rousseau, e onde as nossas diferenças têm que estar

subjugadas ao bem-comum (ou, muitas vezes, ao mal-comum).

Note-se, no entanto, que o Bem-comum pode ser tornado comum a

partir de comunidades minoritárias que, em nome das suas diferenças,

conseguiram legitimar a exclusão de outros. Isto acontece, por exemplo,

no estado do Quebeque, no Canadá, em que nas escolas só se pode ensinar

francês (mesmo aos filhos de anglófonos), onde as empresas com mais de

50 pessoas só podem funcionar com base na língua francesa, e onde os

Page 26: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

25

anúncios comerciais só podem utilizar aquela língua. Estamos aqui perante

uma situação peculiar, em que já não se luta apenas pela expressão da

diferença de uma cultura dentro de uma outra, mas sobretudo da

legitimação em se criar e se manter deliberadamente essa cultura (Taylor-

1994).

O ponto de vista de quem argumenta que os interesses particulares

devem ser sempre prioritários aos interesses colectivos alicerça-se no

liberalismo político, em que se defende a liberdade de actuação individual;

daí que a actuação do Estado deve ser o mais leve possível, cabendo-lhe

quase em exclusivo garantir espaços de desenvolvimento,

representatividade e participação a todos os pontos de vista, constituindo-

se as sociedades em grandes espaços de conversações onde se esgrimem

continuamente argumentos, e onde o qualquer discurso é considerado

contingente e passível de ser destronado do seu lugar privilegiado pela

melhor argumentação de outros discursos (Rorty- 1989).

Esta posição esquece porém que existem indivíduos que se encontram

impossibilitados, por questões de vária ordem, de participarem na

construção de sociedades de tipo conversacional, ou dialogante. Essas

pessoas/grupos devem, ou não, ser protegidas pela actuação dos Estados?

Mas, a assim ser, em nome de que padrões poderemos definir quais são

essas pessoas/grupos e até que patamar, e em nome de que valores, as

devemos proteger, de modo a garantirmos a integração deste tipo de

população?

Page 27: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

26

A corrente liberal tem apresentado, contudo, alguns autores que

remetem, pelo menos ao nível conceptual, para a possibilidade de se

estipularem alguns objectivos (e não imposições) colectivos comuns. Estes

terão todavia de existir no respeito pelas diferenças que se verifiquem

dessas colectividades, e teremos que conseguir assegurar direitos

fundamentais àqueles que não concordem com os referidos objectivos

comuns.

Este liberalismo mais leve tenta pois criar uma variante intermediária

entre as duas posições que fui descrevendo, ao longo deste artigo (com a

preciosa ajuda de Charles Taylor, entre outros). Reconhece-se que a

diferença é fonte de complexidade dentro das sociedades contemporâneas,

mas assume-se que por vezes é necessário ter que optar pela sobrevivência

de alguma identidade cultural face à incapacidade de se integrarem

determinado tipo de ruídos, pelo menos num determinado tempo e espaço

de uma sociedade. Acontece por vezes que uma mesma sociedade possui

ruídos que provêm de vários grupos minoritários que causam perturbações

não tanto na cultura maioritária, mas sobretudo nas outras minoritárias.

Não parece pois haver soluções a indicar para a questão aqui

reflectida. Conhecermos porém melhor os contornos que envolvem as

dificuldades que ela acarreta é já, porém, avançar na procura de

ajustamentos a efectuar pelos educadores comunitários, tendo sempre em

conta o contexto específico em que se move o público com o qual

trabalha.

Page 28: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

27

Penso que é sobretudo importante conseguirmos – via educação

comunitária – que o ruído dentro de uma sociedade por parte dos grupos

minoritários não seja considerado uma ameaça grave à identidade da

comunidade maioritária. Avanço com alguns passos que se poderão

incentivar para que tal não ocorra, de modo a que a diversidade de grupos

minoritários possa actuar como fonte de inovação.

Um dos passos mais importantes é, sem dúvida, como já referi,

reconhecermos o valor das pessoas e dos grupos, focalizando-nos nas suas

dimensões positivas na construção de mundos de significação. Isto implica

conhecer e compreender as histórias de vida das populações em causa,

perceber qual a narrativa que contam a si próprias, e entre si, para

justificarem os seus actos.

Assumirmos que o ponto de vista a partir do qual ajuizamos outras

pessoas/comunidades não constitui um referencial neutro, implica também

procurarmos compreender como este ponto de vista se gerou,

identificando redes de crenças e pressupostos, estudando a sua

constituição histórica como valores inquestionáveis dentro da nossa

cultura, bem como a sua relação com a história de vida que é a de cada um

de nós, no acto de observacionalmente ajuizarmos discursos e condutas

alheios.

Consciencializarmos a cultura maioritária, bem como as minoritárias,

da necessidade de reconhecimento que todos possuem, possibilita em

alguns casos (cfr. Goleman-1995:310-329) a negociação entre

Page 29: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

28

comunidades diferentes no sentido de evitar actuações que humilham o

reconhecimento à dignidade igual das comunidades diferentes.

Passar do acto de fé de que todas as culturas merecem ser respeitadas

para o respeito efectivo entre si tem-se revelado tarefa árdua de ser

concretizada no quotidiano da educação comunitária. Os passos que

possamos dar nessa direcção remeterão contudo para a co-educação

alicerçada no conhecimento real das culturas que partilham uma mesma

sociedade.

Considero no entanto como algo de fundamental o investimento na

construção de projectos comuns voluntários, sem medos românticos da

diluição de identidades de verdadeiros eus, individuais e colectivos. A

impossibilidade de possuirmos sociedades com projectos com os quais

todos nos identifiquemos não nos deve impedir de investir na prospecção e

concretização daqueles que são possíveis de se realizarem.

Para tal, teremos que conseguir perceber como outros organizam bio-

psico-comunitariamente o mundo que partilhamos, reconhecer essas

formas de vida ainda que não partilhemos das suas crenças. Reconhecer

outras pessoas e outras culturas não pode assentar em atitudes

paternalistas, infantilizantes e protectoras; ela implica também considerá-

las como pontos de vista alternativos, e com dignidade suficiente, para

serem nossos adversários na constituição do mundo em que todas as

configurações são importantes. É que as sociedades contemporâneas, as

civilizações e as democracias não constituem dádivas que herdámos, mas

antes resultam de processos contínuos infindos de construção, e de

Page 30: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

29

reconstrução. A manutenção de sociedades democráticas exige de cada um

de nós a participação activa, promovendo espaços de debate dos quais

possam emergir significações perturbadoras, ainda que não aniquiladoras,

dos jogos de linguagem nos quais vivemos: “uma palavra nova é como

uma semente fresca semeada no terreno do debate” (Wittgenstein-

1977:2).

Bibliografia:

A.A.V.V. (Grupo de Missão) (1998). Uma aposta educativa na

participação de todos. Documento de Estratégia para o Desenvolvimento

da Educação de Adultos. Lisboa. Gabinete da Secretaria de Estado de

Educação e Inovação.

Alheit, Peter (1999).Biography as Paradigm. Friedenthal-Haase Martha

(ed.). Personality and Biography in the History of Adult Education. Vol.

I.. PP.319-336.

Bateson, Gregory (1972). Steps to an Ecology of Mind. Nova Iorque.

Ballantine Books.

Bateson, Gregory (1987). Natureza e Espírito –Uma Unidade Necessária.

Lisboa. D. Quixote.

Bateson, Mary-Catherine (1994). Peripherial Visions –Learning Along

The Way. Nova Iorque. Harper.

Page 31: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

30

Canário, Rui (1999) Educação de Adultos. Um Campo e uma

Problemática. Lisboa. EDUCA. Faculdade de Psicologia e de Ciências da

Educação.

Denis, Marcelle (1974). Contribution aux Études Coméniennes: Approche

Psychologique pour la Compréhension de l’oeuvre de Komensky. Paris.

CNRS- Academia de Ciências de Praga.

Dias, J. Ribeiro (coord.) (1983). Curso de Iniciação à Educação de

Adultos. Braga. Unidade de Educação de Adultos. Universidade do

Minho.

Dupuy, Jean-Pierre (2001). Introdução às Ciências Sociais. Lógica dos

Fenómenos Colectivos. Lisboa. Instituto Piaget.

Freire, Paulo (1975). A Pedagogia do Oprimido. Porto. Afrontamento (2ª

ed.).

Girard, Réné (1978). Des Choses Cachées Depuis la Fondation du Monde.

Paris. PUF.

Goleman, Daniel (1995). Inteligência Emocional. Lisboa. Temas e

Debates.

Hegel, G.W. F. (1967). The Phenomenology of Mind. Nova Iorque. Harper

Torchbooks.

Jarvis, Peter (1998). The Education of Adults as a Social Movement: a

Question for Late Modern Society”. Wildemeersch, D., Finger, M.,

Jansen, T. (ed.). Adult Education and Social Responsibility. Frankfurt am

Main. Peter Lang.

Kant, Immanuel. (1984). Crítica da Razão Prática. Lisboa. Edições 70.

Page 32: INTEGRAÇÃO E DIFERENÇA EM EDUCAÇÃO DE ADULTOS: … · RESUMO: Neste artigo, pretendemos reflectir criticamente sobre as teses ... Com a situação da reconstrução económica

31

Kant, Immanuel. (s/d). Critique de la Raison Pure. Paris. Garnier-

Flammarion.

Knowles, Malcolm (1989). Making of an Adult Educator: An

Autobiographical Journey. S. Francisco. Jossey-Bass.

Oliveira, C. Costa (1999). A Educação como Processo Auto-organizativo

.Fundamentos Teóricos para uma Educação Permanente e Comunitária.

Lisboa. Instituto Piaget.

Oliveira, C. Costa, Paulo, João e Antunes, M. Conceição (org.) (1999).

Educação de Adultos e Intervenção Comunitária. Braga. Instituto de

Educação e Psicologia. Universidade do Minho.

Rawls, John (1971). A Theory of Justice. Oxford. Oxford University Press.

Roberts, Amy (1989). Taming the Monsters: Practical Intimacies in a

Third Classroom Grade Costa Rica. Educational Action Research. Vol. 7.

Nº3.

Rorty, Richard (1989). Contingência, Ironia e Solidariedade. Lisboa.

Editorial Presença.

Rousseau, J. J. (1973). Reveries d’un Promeneur Solitaire. Paris. P.U.F.

(livres de poche).

Taylor, Charles (1994). Multiculturalismo. Lisboa. Instituto Piaget.

Wittgenstein, Ludwig (1977). Culture and Value. Chicago. Chicago

University Press.