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179 Sitientibus, Feira de Santana, n.31, p.179-202, jul./dez. 2004 INTENÇÃO EM EXTENSÃO - UMA PROPOSTA NASCIDA NA SALA DE AULA DE DIDÁTICA Ludmila Oliveira Holanda Cavalcante* RESUMO — Este artigo descreve uma experiência realizada com alunos do curso de Pedagogia em uma proposta de intervenção educacional junto a uma escola rural, no município de Amélia Rodrigues na Bahia. O projeto de intervenção foi desenhado a partir das discussões conceituais sobre o processo de formação do pedagogo, a relação teoria e prática, universidade e comunidade; pesquisa, ensino e extensão universitária. Para o desenvolvimento deste trabalho buscamos a Pedagogia de Projetos que, auxiliando a nossa pesquisa com viés interdisciplinar, embasou-nos para a práxis na comunidade. A experiência é avaliada a partir das relações conceituais que surgiram e das inter-relações estabelecidas no contexto no qual atuamos. Dentro de uma perspectiva de complexidade sócio-ambiental deparamos-nos com uma experiência educacional voltada para um universo de reflexões muito mais abrangente do que previamente pensado. PALAVRAS-CHAVE: Extensão universitária; Pedagogia de Projetos; Educação Ambiental. Discutir a prática pedagógica como intencionalmente domesticadora e homogeneizadora de valores da classe hegemônica não é novidade na área de educação. Contrapor-se a tal prática com intenções de um trabalho educacional sócio-político que vise a transformação da realidade também parece ser um discurso conhecido. Ao tentar identificar o papel da educação na busca por alternativas de construção de uma sociedade mais justa, eternas discussões vão surgindo no sentido de * Mestre em Sociologia da Educação pela University of London, Inglaterra; Doutoranda em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Professora pesquisadora da Equipe de Estudo e Educação Ambiental da UEFS. Texto produzido como resultado da avaliação do trabalho com a turma de Pedagogia do 4 o e 5 o semestres consecutivos, no ano de 2002. Universidade Estadual de Feira de Santana – Dep. de Educação. Tel./Fax (75) 3224-8084 - BR 116 – KM 03, Campus - Feira de Santana/BA – CEP 44031-460. E-mail: [email protected]

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INTENÇÃO EM EXTENSÃO - UMA PROPOSTA NASCIDANA SALA DE AULA DE DIDÁTICA

Ludmila Oliveira Holanda Cavalcante*

RESUMO — Este artigo descreve uma experiência realizada com alunosdo curso de Pedagogia em uma proposta de intervenção educacionaljunto a uma escola rural, no município de Amélia Rodrigues na Bahia.O projeto de intervenção foi desenhado a partir das discussões conceituaissobre o processo de formação do pedagogo, a relação teoria e prática,universidade e comunidade; pesquisa, ensino e extensão universitária.Para o desenvolvimento deste trabalho buscamos a Pedagogia de Projetosque, auxiliando a nossa pesquisa com viés interdisciplinar, embasou-nospara a práxis na comunidade. A experiência é avaliada a partir dasrelações conceituais que surgiram e das inter-relações estabelecidas nocontexto no qual atuamos. Dentro de uma perspectiva de complexidadesócio-ambiental deparamos-nos com uma experiência educacional voltadapara um universo de reflexões muito mais abrangente do que previamentepensado.

PALAVRAS-CHAVE: Extensão universitária; Pedagogia de Projetos; Educação Ambiental.

Discutir a prática pedagógica como intencionalmentedomesticadora e homogeneizadora de valores da classe hegemônicanão é novidade na área de educação. Contrapor-se a talprática com intenções de um trabalho educacional sócio-políticoque vise a transformação da realidade também parece ser umdiscurso conhecido. Ao tentar identificar o papel da educaçãona busca por alternativas de construção de uma sociedademais justa, eternas discussões vão surgindo no sentido de

* Mestre em Sociologia da Educação pela University ofLondon, Inglaterra; Doutoranda em Educação pela UniversidadeFederal da Bahia. Professora pesquisadora da Equipe de Estudo eEducação Ambiental da UEFS. Texto produzido como resultado daavaliação do trabalho com a turma de Pedagogia do 4o e 5o semestresconsecutivos, no ano de 2002.

Universidade Estadual de Feira de Santana – Dep. deEducação. Tel./Fax (75) 3224-8084 - BR 116 – KM 03, Campus -Feira de Santana/BA – CEP 44031-460. E-mail: [email protected]

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compreender até que ponto temos condições de superar essedesafio. A complexidade do social no qual estamos inseridostem exigido muito mais que intenções pedagógicas que visemem seus discursos acadêmicos as transformações do real, temexigido posturas e processo de formação acadêmica que realmenteatuem em função de tais mudanças, e para tanto, acreditamosque será importante que elas comecem a acontecer na construçãoda prática pedagógica universitária.

Ao trabalhar com a Didática no curso de Pedagogia, essarealidade de fragmentação conceitual sobre o papel do educadore da função social da educação foi tornando-se ilustrativa osuficiente para demonstrar um aspecto perturbador no processode formação profissional do curso de Pedagogia: para quê epara quem estamos formando o pedagogo?

Os relatos de histórias de vida, as trajetórias “desviadas”,os caminhos percorridos até a escolha do curso, chegam atéos nossos ouvidos tentando justificar a opção por Pedagogiasem a clara noção de sua premissa básica, que ao nosso ver,é o compromisso da educação com a construção de um socialdigno e democrático.

A discussão da Didática, como instrumento de reflexãopara a relação teoria e prática voltada para a discussão dafunção social da escola e do papel do educador na construçãodeste social, pode ilustrar a importância da necessidade deconstruir um processo de formação profissional que insista naformação sócio-política do pedagogo.

Este estudo visa, portanto, relatar a experiência que desenvolvemosno quarto e quinto semestres do curso de Pedagogia, emDidática, com o objetivo de operacionalizar as discussões/intervenções em função da concretização da relação teoria-prática tardiamente estabelecida na maioria dos cursos acadêmicosde formação docente.

O planejamento do nosso curso foi construído visandoproporcionar uma reflexão em torno do papel do educador nasociedade brasileira, e simultaneamente, trazer subsídios teórico-metodológicos capazes de contribuir para uma melhor atuaçãodo estudante de Pedagogia no cotidiano universitário e nocontexto escolar/comunitário que o rodeia.

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A relação universidade x comunidade passou a ser umelemento importante nesta discussão, e para subsidiar estaanálise, nos aproximamos do conceito epistemológico de“extensão” universitária e do seu significado no processo deformação do profissional de educação (Freire,1983). Trabalharna perspectiva extensionista a partir da sala de aula pareceuser um desafio de muito significado para nosso grupo. A complexidadedesta experiência comunitária necessitaria estar sendo contempladacom muita seriedade por envolver pessoas outras fora daacademia, por partir de um desejo operacional nosso e porrepresentar um enfoque diferente, desconhecido e com poucascertezas de sucesso.

Ademais, discutir esta proposta dentro de uma perspectivametodológica com a proposta da disciplina, com o grupo, como contexto universitário, com a demanda comunitária implicariaum processo complexo de adequação da atuação em sala deaula à uma proposta arrojada de intervenção educacional foradela. Colocamo-nos diante de problemáticas operacionais queparadoxalmente nos faziam avançar na elaboração e construçãodo trabalho:

�Como incluir a relação ensino-pesquisa e extensão naperspectiva de um processo pedagógico consciente, crítico etecnicamente produtivo no período de dois semestres e com 40alunos em sala?

�Como efetivar um processo politicamente sensível epragmaticamente viável?

�Como construir uma proposta interdisciplinar dentro daacademia, respeitando as especificidades de cada área deconhecimento, articulando com profissionais diversos e efetivandoo trabalho de intervenção em tempo único?

A opção que tivemos foi adotar a Pedagogia de Projetoscomo abordagem metodológica por fazer parte do nosso conteúdoprogramático, por contemplar a pesquisa, o planejamento partici-pativo, a interdisciplinaridade, por sugerir um encaminhamentoem sala de aula que visasse uma intervenção. Ademais, talabordagem metodológica haveria de nos proporcionar a construçãode uma prática pedagógica que poderia estar encadeandooutras práticas e relações dentro da universidade, por exemplo,

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os docentes e discentes de diversas áreas; os discentes coma comunidade, a escola, seus professores e alunos; a comunidadecom a universidade; a universidade com o poder público local- todos juntos em função de um mesmo trabalho. Ou seja, asugestão da intervenção educacional em uma perspectiva interdis-ciplinar de um processo cíclico de relação universidade/comunidade/escola poderia enfim, ter a possível chance de concretização...

E assim poderemos relatar as discussões que permearamnossa experiência.

A PEDAGOGIA DE PROJETOS, UM PARÊNTESE NA PRÁTICAOU UMA PRÁTICA CHEIA DE PARÊNTESES?

Ao começarmos a enxergar a escola como um ponto departida para a realização de um trabalho voltado à comunidade,acreditávamos estar trazendo referenciais para a discussão daformação sócio política do educador. Estávamos, pressuponho,tendo a oportunidade de discutir, entre outras coisas, a funçãosocial da escola (OLIVEIRA,1992). A prática docente, então,poderia tomar um rumo de intervenção social que ultrapassasseconteúdos programáticos e chegasse a alcançar legitimamenteo social no qual estava inserida.

Ao visitarmos as escolas rurais no município de AméliaRodrigues, 70 km de Salvador, Bahia, com o objetivo de observardiferentes contextos educacionais e suas práticas pedagógicascontextualizadas, questionamos: qual o papel social do educadordiante de realidades sociais como essas? Que perspectiva deatuação poderíamos ter para trabalhar com a comunidade quecontribui tanto com o nosso processo de “contemplação derealidades” ?

A Escola Rural São Jorge, com seus 4 professores, 66alunos do Ensino Fundamental (4-14 anos), passou a ser onosso ponto de partida, o nosso desafio conceitual, procedimentale atitudinal (COLL, 1998) para o trabalho com a disciplina. Anossa intenção era ultrapassar o muro da escola, buscando arelação da mesma com a comunidade da qual faz parte. Estavaclaro que queríamos trazer uma “perspectiva extensionista”1

para o nosso curso e levar para a comunidade escolar essa

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mesma perspectiva de trabalho comunitário, mas, questionava-se ainda até que ponto poderia ser uma proposta viável paraos professores das escolas com as quais poderíamos trabalhar.

A escola rural da comunidade do Café da Manhã, representadapor sua diretora e seus professores, em conversa conosco,sugeriu-nos que voltássemos para ajudá-los a trabalhar com“os problemas relacionados ao lixo na comunidade” que segundoeles, dificultava até o bom funcionamento da escola que tinhao seu quintal constantemente poluído pelo lixo local, não haviafossas nas casas e muito menos coleta de lixo na comunidade.

O desafio de trabalhar “com o lixo” na comunidade inteirasuperou as nossas expectativas: o problema não era apenasde ordem educacional, alcançava um grau de profundidadepolítica e sócio ambiental que nos deixou, no mínimo, surpreendidos.Havia um desafio teórico-metodológico tomando forma e quenos obrigava a pensar com muita cautela na complexidadedesse trabalho.

A Pedagogia de Projetos tornou-se uma perspectiva metodológicaviável para a concretização deste processo pois, segundo Leite(1996)

A Pedagogia de Projetos se coloca como uma dasexpressões dessa concepção globalizante quepermite aos alunos analisar os problemas, as si-tuações e os acontecimentos dentro de umcontexto e em sua globalidade, utilizando, paraisso, os conhecimentos presentes nas disciplinase sua experiência sociocultural. (p.29)

Por contemplar uma proposta de pesquisa e por permitirrealização de um trabalho interdisciplinar, a Pedagogia deProjetos torna-se um desafio importante no processo de formaçãode professor, inclusive por proporcionar relevantes discussõesem torno da construção de competências docentes tão retoricamenteenfatizadas na nossa formação universitária. No que concernea questão sócio ambiental podemos justificar ainda que:

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Para o trabalho com EA, a pedagogia de projetosainda possibilita aos sujeitos 1) analisar a questãoambiental de forma sistêmica, correlata, analíticae politicamente referendada. 2) compreender aquestão ambiental como uma responsabilidadesocial coletiva, que implica em uma postura reflexivadiante da realidade. 3) proporcionar condições detrabalho científico vinculado à uma análise darealidade a partir de seus sujeitos e suas visões demundo; 4) incentivar o refletir sobre , para motivaro agir junto em função do agir para a transformaçãosocial. (Cavalcante, 2005)

Assim, tomando a Pedagogia de Projetos como um eixometodológico nordesteador2 (CAVALCANTE e FERRARO, 2000)era necessário discutirmos também o significado da trilogiaensino-pesquisa e extensão no curso de Pedagogia, a relaçãocomunidade e universidade, a concepção de educação ambiental;o imaginário da comunidade com relação ao lixo que cercavasuas casas, suas concepções de qualidade de vida, a perspectivade sustentabilidade em um trabalho como este.

Segundo Leite...

O que caracteriza o trabalho com projetos não é aorigem do tema, mas o tratamento dado a essetema, no sentido de torna-lo uma questão do grupocomo um todo e não apenas de alguns alunos oudo professor. Portanto, os problemas ou temáticaspodem surgir de um aluno em particular, de umagrupo de alunos, da turma, do professor ou daprópria conjuntura. O que se faz necessário garantiré que esse problema passe a ser de todos, com umenvolvimento efetivo na definição dos objetivos eetapas para alcançá-los, na participação nasatividades vivenciadas e no processo de avaliação.(p.31)

Esse envolvimento efetivo buscava a construção de umaproposta de trabalho que fosse analiticamente discutida pelogrupo e pela comunidade, havendo, além disso, a clara noção

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da necessidade do suporte técnico de outras áreas para darencaminhamento ao trabalho. Assim, articulamos com outrosprofissionais para suprir as questões conceituais e procedimentaisespecíficas de cada área de atuação.

Com relação à comunidade, no entanto, era necessárioperceber até que ponto a proposta seria bem recebida e aceitae até mesmo se eles aceitariam mesmo trabalhar conosco. Naprimeira reunião de apresentação da proposta para os moradores, houve uma resistência inicial muito significativa:

tudo isto eu vocês estão falando aí, entra por aquie sai por aqui, estamos cansados de projetos, deescrever coisas nas paredes e de não ver nadaacontecendo (moradora local)

Para o nosso grupo isso significava um entrave de difícilsolução e que poderia representar a não-efetivação da nossaproposta. Mas, com o decorrer da discussão, os estudantes dePedagogia defenderam a intervenção, ressaltando, no entanto,a existência da limitação do ponto de vista político e oficial, eesclarecemos a proposta de participação comunitária na perspectivade deixá-los a par da responsabilidade, como moradores, deatuarem no local com e sem a nossa participação.

O discurso dos moradores locais revelaram um difícil cotidiano,permeado por falta de água e saneamento básico, sem fontede renda fixa (agricultores em sua maioria), sem assistênciamédico - odontológica no local, sem representação políticaconsistente (uma ou duas vozes questionadoras sem muitarepresentatividade nos momentos de negociação), sem coletade lixo, sem condições básicas de vida...sem auto estima.

Nossos objetivos acadêmicos construídos na Universidadepontuavam:

�Construir propostas de práticas educativas interventivas,voltadas para a trilogia ensino-pesquisa e extensão, subsidiandoas discussões teóricas através de desafios operacionais detrabalhos de campo, com comunidades diversas, problemáticasvariadas e realidades complexas;

�Discutir o papel do educador e da universidade, nadinâmica social da qual fazem parte;

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�Contribuir para a formação de profissionais comprometidoscom questões sócio-ambientais, políticas, econômicas e culturaisdo nosso cotidiano.

No contato com o local, os objetivos comunitários pareciamresumir-se em:

� obter água;� ter saneamento básico;� aprender a fazer “essas comidas com casca de banana”;� ter coleta de lixo no local� serem reconhecidos como comunidade oficial, levados

em consideração pelo poder público;� “Ver as coisas acontecerem”Diante do retrato de uma realidade difícil, estávamos nos

deparando com questões cruciais para o nosso trabalho. Estávamosdiante de uma realidade que não pedia discursos, não tinhamais paciência para experiências de projetos, não tinha confiançaem quem chegava para “discutir suas condições de vida”. Acomunidade não nos convidou para estar ali e deixou claro, emsuas falas que se fosse para realizar um trabalho com ela, quefosse pautado no fazer, no construir, no transformar peloconcreto...

Estávamos diante de um desafio teórico-metodológico queimplicava muita reflexão acerca do nosso trabalho universitárioe a sensação de impotência, frustração e ansiedade foramalguns dos sentimentos que trouxemos para a sala de aula.Precisávamos estudar e organizar nossas reflexões, precisávamosoperacionalizar tais discussões. Por onde começaríamos?

DESCREVENDO E AVALIANDO A PROPOSTA (OU TENTATIVA)DE INTERVENÇÃO NA COMUNIDADE DO CAFÉ DA MANHÃ

Com uma turma de 40 alunos, dividimos o grupo em algunssubgrupos para melhor operacionalização. Os alunos de Pedagogiaassumiram o papel de articuladores de áreas, como, Saúde,Coleta Seletiva, Recreação e Arte, Alimentação Alternativa, ebuscavam dentro da própria academia as referências para odesencadear do trabalho (os professores das diversas áreas

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contatadas tiveram um papel-chave nesse momento). Alémdisso, havia os grupos de Organização (que era a referênciaentre os outros) e o grupo de Divulgação, responsável peloregistro de todo o processo, tanto na comunidade como naprópria universidade. Desenvolvemos um processo de articulaçãocom a comunidade ao longo de cinco visitas locais (houvetambém visitas estratégicas de contatos com o poder públicolocal em busca de parceria e colaboração com o trabalho).Todas as visitas tinham a escola como referência e utilizavamseus alunos como eixo de comunicação com a comunidade.Elaboramos um questionário em classe no qual cada grupo comseus referenciais específicos (professores responsáveis) traziamas questões necessárias à realização mínima de uma intervençãona área. O questionário foi aplicado pelo próprio grupo nacomunidade, a análise dos dados foi feita na Universidade coma intenção da organização e realização de trabalhos com oficinasjunto aos moradores.

O nosso trabalho teve como momento-chave de concretização,a realização de um evento no local com o objetivo também deilustrar e convidar o poder público para a demonstração de umaprimeira etapa e sensibilização para a concretização de etapasseguintes. Sendo assim, questões estruturais, como, saneamentobásico, coleta de lixo e água foram pontuadas fundamentaispara que a comunidade pudesse alcançar um mínimo de condiçõesadequadas de sobrevivência. À medida que todos esses aspectosiam sendo expostos através de documentos e nos standsorganizados pelo grupo de alunos e pela comunidade duranteo evento, íamos percebendo que o envolvimento qualitativo detodos para com o evento.

As crianças da escola, juntamente com o grupo de Recreaçãoe Arte, através de encenações teatrais com temas ambientaise desenhos que traziam a imagem do local e suas representaçõesdo lixo, ilustraram que todo o processo educacional que intencionávamosdespertar poderia ter tido, ainda que precariamente, algumrespaldo no cotidiano daquelas pessoas. Por uma manhã, acomunidade demonstrou se sentir privilegiada com um trabalhoeducativo destinado ao seu cotidiano, com a presença do poderpúblico local diante do seu contexto de demandas e valores

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sócio-culturais e fazendo parte de um trabalho voltado para elae com ela construído.

Que discussões acadêmicas permeavam o nosso trabalhocomunitário?

1. O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL DE PEDAGOGIA E SUA INSERÇÃO NA ANÁLISE SÓCIO- AMBIENTAL CIRCUNDANTE.

O primeiro e importante passo para o início de todo oprocesso de trabalho pautou-se nesse foco de análise.

A compreensão da dimensão sócio-política da formação doeducador em questões que ultrapassam o contexto do cotidianoda escola tem sido um desafio para o processo de formaçãodocente. O próprio território escolar e seu dia a dia são umcontexto de pouca familiaridade profissional para muitos graduandosna universidade. Em recente trabalho com licenciaturas (CAVALCANTE,2000), registramos a grande dificuldade dos licenciandos emcompreender a estrutura das disciplinas de cunho pedagógicocomo suporte teórico prático necessário à melhor compreensãona relação educador - educando nas escolas e, conseqüentemente,na realização de uma prática pedagógica voltada para a funçãosocial do trabalho em educação. A dificuldade estava fundamentadana resistência dos licenciandos ao trabalho docente, enfatizadapelas posturas dicotômicas na compreensão da relação ensinoe pesquisa, reconhecidamente uma característica dos cursosde licenciatura (PEREIRA,1999) .

No curso de Pedagogia, a experiência tem ilustrado que,no segundo ano, os alunos ainda não têm uma clara noção dosprincípios nordesteadores da formação pedagógica, da importânciado trabalho do pedagogo para a sociedade e do significado daeducação para a construção do social do qual faz parte.

A expectativa em torno da disciplina Didática portanto,está voltada para noções técnicas de atuação na escola esoluções mágicas para enfrentar o “mistério” do dia a dia dasala de aula e desta forma, vincular estas ansiedades técnicasàs discussões teórico-políticas no processo de formação eatuação deles, pareceu-nos ser sempre um percurso de difícilconcretização.

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A apresentação de uma postura profissional que implica,antes de mais nada, um trabalho voltado para uma mentalidadepolítica crítica (GIROUX,1999) e comprometida com as classesmais desprivilegiadas na sociedade poderia ajudar na construçãode um processo de formação profissional mais adequado àcomplexidade do trabalho educacional. Tal perspectiva na formaçãodo educador parte do princípio que, ao trabalhar em empresas,escolas, organizações não-governamentais ou movimentos sociaise religiosos diversos, o pedagogo precisa construir uma visãode mundo (e profissional) que busque reflexões e ações capazesde intervir competentemente na construção de um social maisjusto e digno, mas também defende, acreditamos, que a práticadocente e suas características idiossincráticas devem ser oponto de partida para esta formação profissional. SegundoPerrenoud (2000), “enfrentar os deveres e os dilemas éticosda profissão” representa uma das dez competências necessáriasao nosso processo de formação docente, supúnhamos estardiante de um desses fatores, tendo a oportunidade desseenfrentamento ainda dentro da academia; um passo decisóriopara o trabalho que estávamos iniciando, e claro, uma justificativapara concretizá-lo.

2. RELAÇÃO UNIVERSIDADE – COMUNIDADE... AFINAL A QUE SE PROPÕE O TRABALHO DA EXTENSÃO?

Discutir a inserção da universidade na comunidade foitambém um momento importante de construção desse processo.Sabemos que o processo de formação de educadores, nocontexto universitário, precisa fortalecer as condições de trabalhoque tenham como perspectiva a relação de parceria entreacademia e a comunidade da qual faz parte. Tal relação, jápermeada por um histórico de desgaste entre as partes, encontrainúmeras dificuldades de concretização em propostas de intervençãocomunitária que sejam significativas para ambas as partes. Aodiscutir o problema da dicotomia teoria e prática no contextoUniversidade, Santos afirma :

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A vertente principal do apelo à prática foram asexigências do desenvolvimento tecnológico, dacrescente transformação da ciência em forçaprodutiva, da competitividade internacional daseconomias feitas de ganhos de produtividadecientificamente fundados. As mesmas condiçõesque, no domínio da investigação, reclamaram maisformação profissional, reclamaram, no domínio dainvestigação, o privilegiamento da investigaçãoaplicada. Mas o apelo à prática tem outra vertente,mais sócio-política, que se traduziu na crítica doisolamento da universidade, da torre de marfiminsensível aos problemas do mundo contemporâneo,apesar de sobre eles ter acumulado conhecimentossofisticados e certamente utilizáveis na suaresolução (1999, p. 200).

Buscar uma sensibilidade acadêmica em relação ao trabalhorealizado para e com a comunidade ao redor da universidade,tem sido um desafio para muitos de nós que acreditamos nanecessidade desta interação academia e vida real. As tentativasde tal aproximação através da trilogia ensino/pesquisa e extensãoainda fazem-se passíveis de muita análise e reflexão, principalmentequando as três dimensões têm sido vistas como historicamentedissociadas e conseqüentemente, reprodutoras de uma visãofragmentadora do que seria a proposta inicial da Universidade.

Para Cunha (1989)

...a universidade tem como objetivo a produção e adisseminação da ciência, da cultura e da tecnologia.E mais: a disseminação está logicamentedependente da produção acadêmica. A universidadeque não produz ciência, cultura e tecnologia (aindaque não seja igualmente fértil em todas as áreas),não é universidade. (p.69)

Mas a ciência, a cultura e a tecnologia são também construídasfora da Universidade e, de certa forma, quantitativamente bemdisseminadas pela sociedade através de suas próprias empresas,indústrias, sistemas de comunicação. Para a Universidade, a

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disseminação de seus conhecimentos acadêmicos específicosnão chega a significar um processo tão simples assim, a inter-relação entre o que se produz e que se veicula fora do territórioacadêmico ainda representa um abismo na compreensão dealguns da função social da Universidade.

Cunha ressalta que, através da proposta dos programasde extensão, a universidade teria oportunidades de, a princípio,socializar o conhecimento que lhe é específico, e que emboradificilmente pode competir com a disseminação de conhecimentostrazidos pela mídia e poder de sedução que a mesma traz paraa sociedade, ainda assim tem condições de propor um trabalhoque vise estar ao alcance da comunidade, estabelecendo umarede de conexão que ultrapasse o informe acadêmico, mas que,ao intervir, também consiga extrair conhecimentos que a elasão externos.

Assim, a discussão do papel da extensão como interventorano social, poderá,no entanto, ir além do seu poder de disseminaçãode conhecimentos, mas também do seu caráter disseminadorquando vinculado a uma proposta mercadológica de intervenção,dissociada do processo sócio-político e educacional a que sepropõe, em princípio, a instituição universitária.

... a prestação de serviços (impropriamente chamadade extensão), deve estar subordinada ao ensino eà produção acadêmica. Sem isso, o resultado é aredução da universidade a outro tipo de instituição.Se a produção acadêmica (de ciência, de cultura etecnologia) não tiver suficiente prioridade e amplitude(universalidade de campo) podemos até ter ensinosuperior, como o das faculdades isoladas, masnão universidade. Se a prestação de serviços(extensão) desligar-se da produção acadêmica edo ensino, teremos um serviço governamental deassistência social (saúde, desfavelamento,alfabetização) ou uma agência de fomento àsempresas (treinamento de pessoal, projetos,assistência técnica). (Cunha, 1989:70)

A noção de programa de extensão universitária, comoprestação de serviços pode trazer implicações graves na compreensão

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do papel que ela representa no universo acadêmico. Se aextensão é a continuação de um processo de conhecimentoconstruído na Universidade, que, ao chegar a atingir a realidadena qual se insere cumpre um ciclo de relação teoria e práticaque pode e deve beneficiar a ambos, ela não deve ser vistacomo um reduto de experimentos e aplicações de resultadosacadêmicos, mas, a priori, como uma instância da academiacapaz de contribuir para a socialização da “produção científica”no sentido de levar à comunidade as possíveis contribuiçõespara o melhor funcionamento e organização das demandas dasociedade. Tal perspectiva extensionista assegura a importânciadeste trabalho e a responsabilidade a ele atribuída, assimcomo configura-o na perspectiva de comunicação entre sujeitos(FREIRE,1983) .

Se a instituição universitária insiste na realização de umtrabalho com noções preconcebidas em relação ao contextosocial, ora investigando-o sem retorno, ora nele intervindotecnicamente (por vezes com propostas curativas de intervenção,quando não em intervenções preventivos didaticamente opressorese inadequadamente autoritários), será pouca -ou quase nenhuma- a apreensão das verdadeiras demandas e necessidadescomunitárias. Tais trabalhos correm o risco de subestimar atroca de experiências que a oportunidade extensionista enuncia,deixando de levar ao contexto acadêmico a devida compreensãoda realidade e, até mesmo de compreender a Universidadecomo integrante deste mesmo contexto social e por isso compropriedade para com ele conviver e nele interferir.

Freire (1983) anuncia como objetivo do que chama “educaçãopopular”:

através da problematização do homem mundo oudo homem em suas relações com o mundo e comos homens, possibilitar que estes aprofundem suatomada de consciência da realidade da qual e coma qual estão (p.33)

A problematização aqui implica um processo de construçãode conhecimento que não doa ou transmite conhecimentos,mas que propicia contextos de discussão e reflexão capazes de

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criar novas idéias e repensar o já conhecido. Ao discutir asemântica do termo extensão, o autor afirma:

Esta é a razão pela qual, se alguém, juntamentecom outros, busca realmente conhecer, o quesignifica sua inserção nesta dialogicidade dossujeitos em torno do objeto cognoscível, não fazextensão, enquanto que, se faz extensão, nãoproporciona, na verdade, as condições para oconhecimento, uma vez que sua ação não é outrasenão a de estender um ‘conhecimento’ elaboradoaos que ainda não o têm, matando, deste modo,nestes, a capacidade crítica para tê-lo. (p.28)

As relações de poder, as hierarquias do saber, as censurasintelectuais vivenciadas em grande parte do mundo universitáriopodem significar uma fronteira enorme na atividade extensionistacom o contexto que a circunda. Como vencer a crise da legitimidadeda Universidade (SANTOS,1999) se a distância entre essemundo intelectualmente privilegiado e o mundo de pessoascomuns parece cada vez mais imperativa na busca antagônicapor uma sociedade democrática?

Que tipo de trabalho poderíamos desenvolver em umacomunidade já desgastada com discursos intervencionistas ede pouca concretização no cotidiano das pessoas envolvidas? Que tipo de intervenção “deseja” a comunidade com a qualiremos trabalhar ? E será que existe mesmo o “desejo” comunitáriode atuarmos em seu território?

Estávamos diante de um outro desafio teórico-metodológico.

3. ENTÃO ESTAMOS TRABALHANDO COM OS CONCEITOS E PRINCÍPIOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ?

O terceiro foco de análise (claro, acontecendo de formaquase simultânea) foi a constatação do caráter ambiental dotrabalho e como o mesmo harmoniosamente se inseria nadiscussão rizomática da formação social do pedagogo.

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A educação ambiental é um processo permanenteno qual os indivíduos e as comunidades adquiremconsciência do seu meio e aprendem osconhecimentos, os valores, as habilidades, aexperiência e também a determinação que lhescapacite para agir, individual e coletivamente, naresolução dos problemas ambientais presentes efuturos” (Congresso Internacional de Educação eFormação sobre o Meio Ambiente – Moscou, 1987apud Roy, Garcia, 2001).

Os autores consideram essa, uma definição que consegue,pelo menos, expressar em linhas gerais as aspirações fundamentaisda Educação Ambiental afirmando que “as definições são novelosenrolados que se deixam desenrolar para aclarar todo o seusentido sem perder as conexões entre os seus elementos”(p.19)

Portanto, perceber que ao contemplar as questões deordem social, cultural e política, nos deparamos com o quepodemos categorizar como questão ambiental (LEFF, 2002),na qual todas se inserem e formam um contexto de complexidadede incomensurável importância para o nosso trabalho de educadores.

A partir da demanda da escola fundamental rural estávamosdiante de um desafio no trabalho de educação ambiental quenos alertou para muitas outras discussões na área de educação,ou seja, a dinâmica do social era antes de tudo, uma dinâmicasócio ambiental na qual precisávamos nos deter (ou iniciarnossas reflexões).

Estávamos compreendendo que a idéia da educação ambientalnão surgiu (nem pode estar limitava) à problemática do “lixo”.A discussão ambiental já havia surgido com a ansiedade emtrabalhar na Universidade as questões sociais que dizemrespeito a modos e condições de vida que não permitem àspessoas desfrutarem dos mesmos princípios de equidade edignidade social e que dessa forma retratam, no espaço em quevivem, as condições de vida que miseravelmente desfrutam.Além disto, fomos descobrindo que o “lixo” e sua representaçãosimbólica e social (GAZZINELLI, 2001) significava um eixo defundamental importância na análise e construção dessa postura

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educacional. Que a discussão por vezes estereotipada dasquestões ditas “específicas do meio ambiente” são questõesque trazem no seu bojo um poder de reflexão social e políticade necessária complexidade. Uma visão de questões ambientaisque não pode ser compartimentada ou fragmentada no processode análise social. O nosso trabalho apenas ilustra esta complexidade,mas logicamente não conseguiria naquele momento, abarca-lade forma satisfatória.

O caráter “permanente” de um trabalho como este, representaum processo educacional que, claro, não acaba com a concretizaçãode etapas, pois, por ser processo não se finda mas intencionaaportar no cotidiano das pessoas através de uma nova visãode mundo capaz de perceber que as questões sociais, políticase culturais são integrantes do contexto ambiental, e que essecontexto precisa ser respeitado, cuidado e preservado emharmonia com os sujeitos que dele fazem parte.

Essa concepção de educação ambiental traz um novosignificado ao trabalho escolar, a proposta ultrapassa “a aula”comemorativa do dia da árvore e desemboca em uma perspectivade questionamento das condições de vida das pessoas e suasdiversas formas de sobrevivência em espaços diferenciados epermeados por uma dinâmica sócio-cultural própria.

Em geral, as escolas têm restringido sua prática deeducação ambiental a projetos temáticos,desarticulados do currículo e das possibilidadesde diálogo das áreas de conhecimento com atemática. Muitas vezes, são campanhas isoladasou ações efêmeras em datas comemorativas,iniciativas de um ou de alguns professoresinteressados, que acabam por desenvolve-las deforma extracurricular, ou então, são projetosdescontextualizados e/ou que se concentram emaspectos puramente ecológicos e sociais que sãoparte integrante da temática ambiental. Poucasvezes os projetos são pensados a partir daspotencialidades das regiões em que a escola estáinserida. (VIANNA, 2001)

Dessa forma, o nosso trabalho acadêmico também estavatrazendo uma discussão pertinente à nossa formação pedagógica

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e nos desafiava para representá-la adequadamente no espaçoescolar, com seus alunos e professores. Em nossa busca poruma atuação sócio-política, nos deparávamos com mais umreferencial que não dominávamos, mas que passamos a compreendercomo de fundamental importância para o cotidiano educacional.

A complexidade do trabalho comunitário e apreensão daeducação ambiental como abordagem sócio política, implicavamna compreensão do conceito de sustentabilidade sócio ambiental.

O princípio de sustentabilidade defende que nossas açõessociais façam sentido para nós mesmos e para as pessoas comas quais estamos trabalhando. Que as pessoas tenham condiçõesde participar da construção/preservação do seu próprio espaçosócio ambiental sem ignorar a importância dos seus valores,sua cultura, suas crenças, levando em consideração o seupotencial de auto gerenciar-se e seguir um rumo próprio emfavor de melhores condições de vida no presente e no futuro.Gadotti (2001) nos alerta:

a sustentabilidade tornou-se não só um temagerador preponderante neste início de milênio parapensar o planeta, mas também um tema portadorde um projeto social global e capaz de reeducarnosso olhar e todos os nossos sentidos, capaz dereacender a esperança em um futuro possível, comdignidade para todos. (GADOTTI, 2001;11)

Para que o nosso trabalho estivesse pautado no conceitode sustentabilidade, era necessário compreender esta experiênciaque tivemos na comunidade como um momento que não seesgotaria com a nossa saída do local. A nossa intervençãoestava apenas iniciando um “processo de intencionalidades”na transformação das condições sócio-ambientais e culturaisdo local que precisava ter vida própria e independente daatuação técnica na comunidade. De novo o desafio do “processo”como modus operandi , as pessoas tomando a causa para si,assumindo o ônus de sua própria construção social, pois “Asustentabilidade não tem a ver apenas com a biologia, a economiae a ecologia; tem a ver com a relação que mantemos com nósmesmos, com os outros e com a natureza”, afirma Gadotti.

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O trabalho na comunidade do Café da Manhã estavaproporcionando a chance de nos rever não só como profissionaisde educação, mas, também e principalmente, como seres sociaiscom uma nova percepção da nossa responsabilidade com omundo que nos cerca e que ajudamos a construir.

Aquela comunidade tem uma relação direta com o nossocotidiano na medida em que enxergamos os seus problemascomo problemas globais, problemas de ordem ética, política,cultural que não se encerram em suas casas e territórios masque complementam o nosso contexto, pois estão fazendo parteda realidade que muitas vezes insistimos em não ver. De queadianta compormos o quadro privilegiado de uma instituiçãouniversitária, se no dia a dia da mesma não conseguirmostrabalhar com causas “nobres” como a melhoria (ainda quebásica) das condições de vida dessas pessoas? Será que nãopoderemos operacionalizar nossas teorias acadêmicas emfunção de trabalhos que realmente alcancem estas pessoas?Será que não poderemos tentar nos colocar a disposiçãodestas realidades com objetivos menos demagógicos massuficientemente eficazes no processo de estruturação de suascondições de vida e sustentabilidade?

Retornando à sala de aula...

educar e educar-se, na prática da liberdade, étarefa daqueles que sabem que pouco sabem – porisso sabem que sabem algo e podem assim chegara saber mais – em diálogo com aqueles que, quasesempre, pensam que nada sabem, para que estes,transformando seu pensar que nada sabem emsaber que pouco sabem, possam igualmente sabermais. (FREIRE,1983:25)

A avaliação que fazemos do trabalho realizado passa pormuitas análises. Inicialmente havia o grande temor de estarmosrealizando uma “gincana social” que pudesse ter um carátermeramente filantrópico que ia de encontro a todas as nossasexpectativas, leituras e discussões acadêmicas. Havia, também,o grande receio de criar expectativas na comunidade que nãoconseguiríamos suprir.

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Sentimos muitas dificuldades para concretizar este projetode intervenção da forma que acreditávamos ser ideal. A questãoda interdisciplinaridade, da relação com o poder público, dadinâmica da carga horária da nossa sala de aula, da relaçãocom a comunidade, do respeito ao desejo desta comunidadeforam fatores que indicavam o grau de dificuldade crescentepara a operacionalização do trabalho. A medida que líamos,discutíamos e planejávamos, íamos percebendo como era complexaa realização de tal proposta dentro das perspectivas do que érelação comunidade/ universidade, teoria /prática, vida real edesejos...Quanto mais compreendíamos o significado de umaadequada intervenção acadêmica na comunidade, menosconseguíamos traduzi-lo em nossa prática.

Acreditamos que, na medida do possível, tal experiênciatenha realmente surtido um pequeno efeito na comunidade. Umpoço artesiano será construído no local, e os tonéis de lixoforam colocados na rua para a realização da coleta sistemáticana área, assim podemos dizer que houve, ainda que de formaefêmera, o poder público dirigiu um “olhar clínico interessado”para o local historicamente esquecido e negligenciado. Existem,no entanto, as questões pendentes que perpassam a discussãopolítica crítica de intervenção comunitária que tanto discutimosatravés dos textos de Freire, nas perspectivas de sustentabilidadee educação ambiental e mesmo na concepção de trabalhoextensionista que defendemos.

Constatamos que nossa proposta então estaria, só começando,que precisa urgentemente ser concretizada de forma bem maissistemática, participativa e política, o que significa que estetrabalho semestral com 40 alunos e nosso dia a dia acadêmiconão tiveram condições de contemplar satisfatoriamente as nossasdemandas, talvez por entendermos que tal trabalho não podeser conclusivo em momentos de sala de aula, mas precisa serlevado adiante, em uma proposta de intervenção que impliqueum processo de pesquisa ação (BRANDÃO, 2000) pautado emprincípios de gestão participativa que implicariam no empoderamentolocal diante de suas reivindicações por direitos sociais a seremresolvidos pelo estado e não contemplados paliativamente por“intenções” da sociedade civil.

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A escola rural, como ponto de partida, teve sua participaçãocomprometida, pois o seu calendário letivo não coincidiu como nosso, deu-se através dos alunos e da diretora. A inserçãodos professores no trabalho foi inexistente e a perspectiva decolocar a pedagogia de projetos diante de suas realidadesdocentes não chegou a ser contemplada.

Defendemos a pedagogia de projetos, como um instrumentode trabalho em sala de aula com tamanho potencial de transformação,ela pode e deve ser adotada como proposta de prática pedagógicaque, de fato, estimule os alunos a compreenderem o seu papeldiante da pesquisa, da relação teoria e prática, da compreensãoda realidade que os cerca e que ajudam a construir, comosujeitos sociais que são. A pedagogia de projetos pode proporcionarum novo olhar diante do óbvio e uma conseqüente postura deamadurecimento frente o processo de construção de conhecimento.A discussão da realidade diante dos dilemas sócio ambientaisnos chamou atenção par a necessidade de um trabalho quevise a ambientalização da pedagogia, em que a postura políticae crítica do pedagogo contemple, antes de tudo, a complexidadesócio ambiental das realidades existentes (talvez essa sejauma reflexão para um futuro texto!).

Para os alunos de Pedagogia, essa foi uma experiência demuito enriquecimento, quer pelo seu caráter positivo de atuaçãona comunidade, quer pela frustração ao perceber a dificuldadede realizar este trabalho de forma satisfatória, quer pelo viésambiental que demonstrou ser de extrema importância no nossotrabalho com educação. Os alunos relataram a experiênciaatravés de produção de textos para avaliação semestral, comsuas interpretações, aprendizados, e conclusões do trabalho,o que de certa forma fecha a atividade de cunho teórico práticode volta à academia. Uma exposição de fotos com a experiênciatambém foi realizada para divulgação na Universidade.

Digamos que a avaliação está ainda sendo construída àmedida em que refletimos sobre esta prática, quando escrevoe releio este artigo e quando penso em meus alunos relatandoo que vivenciaram. Acredito que tal experiência não passarádespercebida para as crianças da rua São Jorge, para osalunos de Didática do curso de Pedagogia e para mim, professora

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universitária sempre em crise com a relação universidade ecomunidade.

INTENTION IN EXTENSION – PROPOSAL A BORN WITHIN APEDAGOGICAL PRACTICE CLASSROOM

ABSTRACT — This article describes a work experience with Pedagogy’students through an educational intervention project at a rural schoolin Amelia Rodrigues, state of Bahia. The intervention project has beendrawn from the theoretical discussions about the process of pedagogygraduation, the relation between theory and practices; university andcommunities; research, teaching and university extension. To develop thework we use the Pedagogy of Project, which helped our research with aninterdisciplinary approach, supporting our praxis at the community. Thework has been evaluated from the concepts relations that emerged duringthe experience and from the inter relations established at the context.From a complexity social environmental perspective we faced an educationalexperience inside an universe of reflexivity much wider than the originallyexpected.

KEY WORDS: University extension; Pedagogy of project; Environmental education.

AGRADECIMENTO

Agradeço aos meus colegas da Equipe de Estudos e EducaçãoAmbiental da UEFS, professores Luciano Vaz e Luiz FerraroJúnior, e à professora Simone Oliveira do Departamento deBiologia (UEFS), que no meio de suas confusas agendas,conseguiram nos orientar e apoiar este trabalho “interdisciplinar”para que o mesmo fosse planejado e operacionalizado pelogrupo da Pedagogia. Agradeço a participação dos alunos norico processo de construção desta análise em sala de aula efora dela, a participação da Prefeitura Municipal de AméliaRodrigues e sua Secretaria de Educação por tentar viabilizar

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a idéia, e aos funcionários da UEFS (Depto. de Educação eSetor de Transportes) que, de forma generosa, deram-me umagrande contribuição no trabalho. Dedico o artigo aos sujeitossócio-ambientais da comunidade do Café da Manhã com quemaprendemos muito mais do que podíamos imaginar.

NOTAS

1 Estaremos nos detendo nesta questão adiante, neste trabalho.2 A expressão “nordestear” é uma licença poética dos autores que

pretende colocar em pauta a questão do referencial NORTE doverbo nortear, que apesar de sua origem no norte magnético paraa orientação de caminhos, permite que discutamos as questõesda relação Norte-Sul, Nordeste-Sudeste .

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