INTERAÇÃO CÁRDIOPULMONAR EM VENTILAÇÃO MECÂNICA

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INTERAÇÃO CÁRDIOPULMONAR EM VENTILAÇÃO MECÂNICA Carmen Sílvia Valente Barbas, Marco Aurélio Scarpinella Bueno, Marcelo Britto Passos Amato, Cristiane Hoelz, Milton Rodrigues Junior - CTI-Adultos — Hospital Israelita Albert Einstein Interdependência entre ventilação mecânica, sistema cardiovascular e trocas gasosas Durante a ventilação mecânica, estabelece-se uma interdependência entre o sistema respiratório e o sistema cardiovascular, durante a qual podemos observar: 1) efeitos da situação hemodinâmica e cardiovascular sobre a ventilação mecânica e trocas gasosas; e 2) efeitos da ventilação mecânica e das trocas gasosas sobre a hemodinâmica.Para análise dos efeitos da ventilação mecânica e das trocas gasosas sobre a hemodinâmica utilizaremos, como exemplo, o uso da pressão expiratória final positiva (PEEP). O emprego da PEEP frente a situações de colapso alveolar está normalmente associada a melhora das trocas gasosas, com conseqüente aumento da PaO 2 e diminuição da PaCO 2 (1, 2) . Essa melhora parece estar relacionada à reabertura de alvéolos colapsados, obtendo-se diminuição do "shunt" pulmonar verdadeiro e do efeito "shunt", assim como do efeito espaço morto (3) .Entretanto, o uso inadvertido de níveis excessivos de PEEP frente a essa mesma situação poderia produzir o efeito oposto. Em virtude de uma série de mecanismos que serão analisados a seguir, o uso de PEEP poderia acarretar diminuição do débito cardíaco, com conseqüente diminuição da oferta de oxigênio aos tecidos, aumento da extração tecidual e queda da pressão parcial venosa de oxigênio (PvO 2 ) (1) . Essa baixa PvO 2 , por sua vez, poderia causar grande queda da oxigenação arterial, suplantando os efeitos benéficos advindos da diminuição do efeito "shunt" (3) . Ao mesmo tempo, a queda do débito cardíaco e da perfusão pulmonar poderiam aumentar o efeito espaço-morto, com conseqüente elevação da PvCO 2 e PaCO 2 (1, 4) . Essa elevação da PaCO 2 para os menos

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INTERAÇÃO CÁRDIOPULMONAR EM VENTILAÇÃO MECÂNICA

Carmen Sílvia Valente Barbas, Marco Aurélio Scarpinella Bueno, Marcelo Britto Passos Amato, Cristiane Hoelz, Milton Rodrigues Junior - CTI-Adultos — Hospital Israelita Albert Einstein

Interdependência entre ventilação mecânica, sistema cardiovascular e trocas gasosas

Durante a ventilação mecânica, estabelece-se uma interdependência entre o sistema respiratório e o sistema cardiovascular, durante a qual podemos observar: 1) efeitos da situação hemodinâmica e cardiovascular sobre a ventilação mecânica e trocas gasosas; e 2) efeitos da ventilação mecânica e das trocas gasosas sobre a hemodinâmica.Para análise dos efeitos da ventilação mecânica e das trocas gasosas sobre a hemodinâmica utilizaremos, como exemplo, o uso da pressão expiratória final positiva (PEEP). O emprego da PEEP frente a situações de colapso alveolar está normalmente associada a melhora das trocas gasosas, com conseqüente aumento da PaO2 e diminuição da PaCO2

(1, 2). Essa melhora parece estar relacionada à reabertura de alvéolos colapsados, obtendo-se diminuição do "shunt" pulmonar verdadeiro e do efeito "shunt", assim como do efeito espaço morto(3).Entretanto, o uso inadvertido de níveis excessivos de PEEP frente a essa mesma situação poderia produzir o efeito oposto. Em virtude de uma série de mecanismos que serão analisados a seguir, o uso de PEEP poderia acarretar diminuição do débito cardíaco, com conseqüente diminuição da oferta de oxigênio aos tecidos, aumento da extração tecidual e queda da pressão parcial venosa de oxigênio (PvO2)(1). Essa baixa PvO2, por sua vez, poderia causar grande queda da oxigenação arterial, suplantando os efeitos benéficos advindos da diminuição do efeito "shunt"(3). Ao mesmo tempo, a queda do débito cardíaco e da perfusão pulmonar poderiam aumentar o efeito espaço-morto, com conseqüente elevação da PvCO2 e PaCO2

(1, 4). Essa elevação da PaCO2 para os menos avisados poderia ser interpretada como indicativo para se aumentar a ventilação alveolar e o volume minuto (e, conseqüentemente, as pressões alveolares), uma medida que provavelmente diminuiria ainda mais o débito cardíaco. O exemplo acima ilustra a complexidade da interdependência coração-pulmão nas diversas situações clínicas. O perfeito entendimento dessa interação é de fundamental importância para otimizarmos os efeitos da ventilação mecânica e do sistema cardiovascular, principalmente nas situações de insuficiência respiratória e cardiovascular.

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Figura 1. Variação da interação cardiopulmonar da ventilação espontânea à ventilação controlada.

Efeitos da situação hemodinâmica sobre a ventilação mecânica e trocas gasosas

Alterações do sistema cardiovascular podem afetar o sistema respiratório basicamente em três áreas: a) efeitos sobre as trocas gasosas; b) efeitos sobre a mecânica pulmonar; e c) efeitos sobre os músculos respiratórios.

Efeitos sobre as trocas gasosas

Os efeitos da situação hemodinâmica sobre as trocas gasosas devem-se à interação complexa entre diferentes mecanismos fisiopatológicos. Bastante diversos entre si, esses mecanismos podem ser capazes de alterar os gases arteriais de forma mais incisiva que a própria regulagem do ventilador mecânico, dependendo da condição clínica do paciente.Elevações do débito cardíaco obtidas, por exemplo, pelas mais variadas maneiras (infusão de drogas vasoativas, hipervolemia, aumento artificial do retorno venoso, ou diminuição de PEEP), costumam ser acompanhadas por aumento do "shunt" pulmonar e diminuição do efeito espaço morto(1, 3, 4). Por outro lado, a diminuição do débito cardíaco costuma ser acompanhada por diminuição do "shunt" pulmonar e aumento da dispersão das unidades V/Q, com conseqüente aumento do efeito espaço-morto(4).Apesar da influência benéfica da diminuição do débito cardíaco sobre o "shunt" pulmonar, entretanto, quedas consideráveis do débito cardíaco costumam cursar com piora da oxigenação arterial. Isso se deve à queda acentuada da saturação venosa central de oxigênio, causada pela lentificação dos fluxos teciduais: desde que exista quantidade considerável de unidades V/Q hipoventiladas ou não-ventiladas ("shunt" verdadeiro), esse baixo conteúdo de O2

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venoso pode influenciar diretamente nos baixos níveis de PaO2(3, 5). Esse efeito

pode suplantar os benefícios advindos da diminuição do "shunt" pulmonar, piorando consideravelmente as trocas gasosas.Utilizando-se o mesmo raciocínio, caberia observar que a adoção de medidas auxiliares, como a infusão de dobutamina, a infusão de concentrado de hemácias, ou ainda o controle da temperatura (com diminuição do consumo de oxigênio), pode ser capaz de causar elevação da PvO2 e, conseqüentemente, da PaO2 em algumas situações clínicas(5), podendo-se fazer uso desses recursos frente a situações de hipoxemia refratária durante a ventilação mecânica.

Figura 2. Efeitos da mudança do débito cardíaco sobre a PaO2 na presença de diversas relações V/Q pulmonares.

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Figura 3. Interação cardiopulmonar: relações do sistema respiratório com o sistema cardiovascular.

A adição de pressão positiva contínua em vias aéreas (CPAP)/PEEP em indivíduos normais costuma levar à redução do retorno venoso e, conseqüentemente, à queda do débito cardíaco (Fig. 4).

Figura 4. Efeito de PEEP/CPAP em indivíduos normais.

Esse efeito encontra-se exacerbado nos indivíduos hipovolêmicos. Hipertensões pulmonares agudas, por qualquer que seja o motivo (como, por exemplo, aumento excessivo da PEEP), podem ser acompanhadas por grande

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piora das trocas gasosas. Desde que o ventrículo direito entre em falência — e as pressões de átrio direito excedam as do átrio esquerdo — existe a possibilidade de ocorrência de "shunt" intracardíaco através do forame oval (que continua patente em 30% dos indivíduos adultos). Nessa condição, a melhora das trocas gasosas tem de ser obtida por meio da diminuição das pressões alveolares, com alívio da hipertensão pulmonar(6).Finalmente, aumentos súbitos da pressão capilar pulmonar, avaliados por meio da medida da pressão de oclusão da artéria pulmonar, freqüentemente são acompanhados por edema intersticial pulmonar, com obstrução de vias aéreas, podendo-se observar piora das trocas gasosas nessas condições. No caso da síndrome do desconforto respiratório agudo (Fig. 5), a influência dessas variações de pressão hidrostática é ainda mais marcante (7), devendo-se ter especial cuidado com o balanço hídrico nesses pacientes. Independentemente desse efeito direto sobre as trocas gasosas, porém, a presença de edema intersticial pode ser grande estímulo para o centro respiratório(8) (pela ativação de mecanorreceptores presentes no interstício pulmonar), resultando em freqüência respiratória excessivamente alta durante a ventilação mecânica assistida, com produção de alcalose respiratória e aumento do trabalho muscular respiratório. Nesses casos, a otimização da ventilação mecânica nem sempre é suficiente para se conseguir freqüência respiratória mais adequada (com maior conforto do paciente), devendo-se recorrer ao uso judicioso de sedativos.

Figura 5. Interação cardiopulmonar na síndrome do desconforto respiratório agudo.

O uso de PEEP e CPAP na síndrome do desconforto respiratório agudo em níveis ideais propicia a abertura das unidades pulmonares colapsadas, melhorando a complacência e a resistência do sistema respiratório e a oxigenação arterial, podendo melhorar a sobrevida dos pacientes(2).

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Efeitos sobre a mecânica pulmonarOs efeitos da hemodinâmica sobre a mecânica pulmonar se fazem sentir principalmente por aumentos da resistência e diminuição da complacência pulmonar(8-11). Seja por edema intersticial, ou por engurgitamento das veias da mucosa brônquica(10), aumentos da pressão capilar pulmonar podem cursar com grande piora da mecânica pulmonar, com conseqüente aumento do trabalho respiratório. Essa situação pode adquirir especial importância no desmame da ventilação mecânica em indivíduos cardiopatas (Fig. 6). Nessa condição, o simples aumento da atividade muscular respiratória pode ser capaz de desencadear sobrecarga hemodinâmica, levando ao aumento da pressão capilar pulmonar e, conseqüentemente, ao aumento da impedância pulmonar(10). Se não for corretamente tratado (com o uso de vasodilatadores, diminuição da pressão de oclusão da artéria pulmonar), esse aumento da impedância respiratória pode exigir maior esforço e maior aporte de sangue aos músculos respiratórios, o que, por sua vez, pode ser motivo de piora do próprio quadro hemodinâmico. Assim, a ocorrência súbita de broncoespasmos durante o processo de desmame — desde que não presentes durante o período de ventilação controlada — pode alertar o clínico para a existência de cardiopatia latente (principalmente de origem isquêmica).

Figura 6. Efeito de PEEP/CPAP na síndrome do desconforto respiratório agudo.

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Figura 7. Interação cardiopulmonar no edema cardiogênico.

Efeitos sobre os músculos respiratórios Em condições normais, durante o repouso, o oxigênio consumido pela musculatura respiratória representa aproximadamente 5% do consumo total de oxigênio do organismo. Em condições adversas, todavia, essa porcentagem do consumo total pode chegar a 50%, principalmente em situações de broncospasmo grave, edema pulmonar, ou durante o desmame da ventilação mecânica(12). Indivíduos com limitações da oferta de oxigênio aos tecidos, portanto, podem ter grande prejuízo da função dos músculos respiratórios nessas condições, tornando problemática a utilização de modos de ventilação que requeiram grande atividade muscular espontânea, como a ventilação mecânica intermitente (IMV, tubo T).Drogas que aumentam a contratilidade diafragmática, como a dopamina, a digoxina e a aminofilina, parecem ter seu efeito mediado pelo aumento do fluxo sanguíneo diafragmático, podendo ser úteis como medida para se melhorar a tolerância dos doentes a esses modos espontâneos, sobretudo durante o desmame(13).O choque cardiogênico, seja por isquemia cardíaca ou por tamponamento pericárdico, pode ser uma situação limite onde o auxílio da musculatura respiratória através da ventilação mecânica representa enorme benefício(12, 13). Muitas vezes, a mecânica respiratória encontra-se prejudicada pela própria congestão pulmonar, aumentando a demanda dos músculos respiratórios(10). Nesses casos, a utilização de ventilação mecânica pode significar a reversão de uma acidose láctica, ou mesmo a prevenção de uma parada respiratória por falência muscular(14).Deve ser ainda lembrado que na vigência de septicemia, em vista da dependência anormal entre oferta e consumo de oxigênio, qualquer aumento de consumo energético exigido pela musculatura respiratória pode significar roubo de fluxo para outros órgãos, principalmente no caso das vísceras, favorecendo o desenvolvimento de falência de múltiplos órgãos(5).Qualquer que seja o motivo da limitação na oferta de oxigênio aos

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tecidos, deve-se ter em mente que o repouso da musculatura respiratória é essencial nessas condições, poupando o sistema cardiovascular da necessidade de despender boa parte do débito cardíaco na musculatura respiratória. Algumas formas de ventilação mecânica são especialmente capazes de propiciar repouso mais adequado dos músculos respiratórios, sendo preferíveis nessas situações. A pressão de suporte(15, 16), a ventilação assistida/controlada com altos fluxos inspiratórios(17, 18), ou, ainda, a ventilação com pressão de suporte e volume garantido (VAPS)(19, 20) seriam as opções mais adequadas. Deveriam ser evitados o IMV(21) ou a CPAP, assim como a utilização de baixos fluxos inspiratórios durante a ventilação assistida convencional(18).

Efeitos da ventilação mecânica sobre a hemodinâmica

Efeitos dos gases sanguíneos A hipoxemia e a acidose respiratória são causas freqüentes de hipertensão pulmonar durante a ventilação mecânica, com possível deterioração hemodinâmica(22, 23). A correção da acidose respiratória, por meio da infusão de bicarbonato, pode ser útil em algumas situações, uma vez que a hipercarbia pura (não acompanhada de queda do pH ou de hipoxemia) tem efeito menos acentuado sobre a resistência vascular pulmonar(23).Apesar de normalmente associar-se a utilização de PEEP com aumentos da resistência vascular pulmonar, deve-se lembrar que, em certas situações, o uso de PEEP pode oferecer algum auxílio no tratamento da hipertensão pulmonar associada à hipoxemia. Seja por melhora da própria hipoxemia, ou por ação direta sobre a vasculatura extra-alveolar colapsada (pelo aumento da capacidade residual funcional, com estiramento e aumento da tensão radial sobre os vasos extra-alveolares colapsados), o uso criterioso de PEEP poderia aliviar a hipertensão pulmonar relacionada à síndrome do desconforto respiratório agudo(24). Curiosamente, pequenos incrementos do PEEP acima de um ponto ideal (normalmente, acima de 16 cmH2O) poderiam voltar a aumentar a hipertensão pulmonar nessa mesma situação, de forma semelhante à que ocorre em indivíduos normais quando submetidos a valores crescentes de PEEP.A utilização de frações inspiradas de O2 excessivas, desde que determinando valores de PaO2 acima de 120 mmHg, pode ser responsável pelo aumento patológico da resistência vascular periférica, causando hipoperfusão de alguns órgãos. Essa situação pode ser particularmente crítica na vigência de septicemia com choque distributivo e déficits regionais de oferta de oxigênio(25). Por outro lado, a hipercarbia arterial costuma causar grande queda da resistência vascular periférica, observando-se aumento do débito cardíaco nessas condições(22).Na vigência de doenças neurológicas que cursam com hipertensão intracraniana, esses efeitos vasorreguladores do CO2 adquirem especial importância, muitas vezes indicando-se a ventilação mecânica como medida para controle da pressão intracraniana (por exemplo, buscando manter a PaCO2 entre 25 mmHg e 30 mmHg(26)).

Efeitos mecânicos da ventilação sobre o sistema cardiovascular Apesar dos possíveis efeitos humorais da ventilação mecânica sobre o sistema cardiovascular (inibição do fator atrial natriurético, liberação do hormônio

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antidiurético e, possivelmente, liberação de outros mediadores desconhecidos), até o momento não se pôde demonstrar consistentemente que esses fatores tenham papel importante durante a ventilação mecânica(27). A maior parte dos efeitos cardiovasculares relacionados à ventilação mecânica parece ser decorrente de efeitos puramente mecânicos, associados a resposta simpática autônoma que busca contrabalançar esses mesmos efeitos(24). Esquematicamente, poderíamos resumir esses efeitos em três categorias: 1) alterações do retorno venoso para ambos os átrios; 2) alterações de complacência de todas as câmaras cardíacas; 3) alterações da pós-carga de ambos os ventrículos, com possível alteração da distribuição periférica do fluxo sanguíneo.

1) Retorno venoso: apesar de as alterações de retorno venoso serem em geral relacionadas diretamente às variações de pressão intratorácica (ou pressão pleural), a situação real parece ser um pouco mais complexa. Em primeiro lugar, o aumento da pressão pleural, com compressão de grandes vasos e saco pericárdico, nem sempre é capaz de se transmitir diretamente à pressão intravascular, ou à pressão interna de átrio direito. Isso porque a complacência das veias sistêmicas é muito grande, absorvendo facilmente o aumento de volume sanguíneo sistêmico que se seguiria à compressão das estruturas vasculares intratorácicas(28, 29). Numa situação limite, podemos imaginar que o aumento excessivo da pressão pleural causaria colapso total de átrio direito, com rápida evasão do sangue do interior do átrio em direção à circulação sistêmica (já que a pressão das veias sistêmicas seria incapaz de se elevar o suficiente para se opor a essa evasão). Assim, para que seja possível a transmissão de variações da pressão pleural ao interior do átrio direito, é necessário que a pressão venosa sistêmica possa se elevar e suplantar em algum grau a pressão pleural, mantendo, então, algum sangue no interior das câmaras direitas. A maior ou menor transmissão dessas pressões externas dependerá, em última análise, da maior ou menor resposta pressórica da pressão venosa sistêmica, assim como da maior ou menor resistência das paredes das câmaras cardíacas ao colabamento.Para que seja possível a elevação da pressão venosa sistêmica em resposta aos aumentos de pressão pleural, dois mecanismos são propostos: 1) diminuição da complacência venosa por aumento do tônus simpático, e 2) aumento do volume sanguíneo extratorácico, causado pela compressão dos vasos sanguíneos intratorácicos, com conseqüente redistribuição da volemia a partir da circulação central para a periferia. Experimentalmente, demonstra-se que ambos os mecanismos são atuantes, desde que em condições normais de volemia, contribuindo com partes aproximadamente iguais ao retorno venoso(28).Em vista das considerações acima, não é de se estranhar que tenham fracassado as tentativas de correlacionar variações de pressão pericárdica (conseqüentes a variações de pressão pleural) diretamente às variações de pressão interna do átrio direito(30). Poderíamos dizer, em verdade, que os aumentos da pressão interna do átrio direito — em resposta a variações da pressão pleural — dependem de interação complexa entre pressão pleural, pressão venosa sistêmica, volemia e tônus simpático.Em alguns modelos animais, demonstra-se que, em condições de euvolemia, elevações da pressão pleural — obtidas com o uso de PEEP — costumam se acompanhar de aumento proporcional da pressão venosa sistêmica,

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de tal forma que o gradiente de pressões entre a pressão venosa sistêmica e a pressão interna do átrio direito (principal responsável pelo retorno venoso sistêmico) está mantido(28). Todavia, mesmo nessas condições, é possível ainda se observar diminuição do retorno venoso sistêmico com níveis crescentes de PEEP, o que só pode ser explicado pelo aumento concomitante da resistência venosa sistêmica. Cogita-se que esse aumento de resistência se deva à compressão das veias sistêmicas em seu trajeto intratorácico, causada por aumentos da pressão pleural(28).Qualquer que seja o mecanismo proposto, entretanto, deve-se ter em mente que essas elevações da pressão venosa sistêmica podem ter importantes conseqüências para outros órgãos. Em situações de hipertensão intracraniana, por exemplo, pequenas elevações da pressão venosa sistêmica podem ser responsáveis pela descompensação da pressão intracraniana, com possível herniação de estruturas cerebrais(26). Nesses casos, quaisquer manobras que tendam a elevar a pressão alveolar devem ser cuidadosamente monitorizadas, se possível com monitorização contínua da pressão intracraniana. Na vigência de sepse, por outro lado, elevações persistentes da pressão venosa sistêmica podem ser responsáveis por edema do trato gastrointestinal, prejudicando a absorção de alimentos, assim como a perfusão da mucosa entérica(31).A geração de valores negativos de pressão pleural, seja por atividade muscular respiratória intensa, ou pelo uso de ventilação com pressão negativa extratorácica, tende a diminuir as pressões de átrio direito, aumentando o gradiente de pressões entre a pressão venosa sistêmica e a pressão interna do átrio direito. Conseqüentemente, costuma-se observar aumento do retorno venoso nessas condições. A partir de determinado ponto, entretanto, esse aumento do retorno venoso passa a sofrer limitações: à medida que as pressões dos vasos intratorácicos chegam a cair abaixo de zero, pode começar a haver colabamento das veias sistêmicas extratorácicas (diferentemente dos vasos intratorácicos, as veias abdominais estarão rodeadas por uma pressão intra-abdominal positiva), fato esse que passará a ser o fator limitante do retorno venoso sistêmico(28, 29). (Esse ponto de colabamento passa a funcionar como um resistor de Starling(32).)Ao contrário dessas conseqüências produzidas sobre o átrio direito, valores negativos de pressão pleural, associados ao conseqüente estiramento do interstício pulmonar, tendem a diminuir o retorno venoso para o átrio esquerdo (em virtude de represamento temporário de sangue nos vasos pulmonares extra-alveolares, principalmente veias e capilares peribrônquicos). Por outro lado, aumentos da pressão pleural (e da pressão alveolar) costumam se acompanhar de uma "ordenha" do sangue presente nas veias e capilares alveolares em direção ao átrio esquerdo, causando aumento temporário da pré-carga de câmaras esquerdas(24). Esse fato explica a resposta bifásica que se segue à inspiração com pressão positiva, observada durante qualquer modo de ventilação mecânica. Logo no início da inspiração, observa-se aumento fugaz do débito cardíaco, devido ao aumento temporário do retorno venoso para câmaras esquerdas, obtido a partir da compressão do sangue armazenado nos vasos pulmonares. Numa segunda fase, porém, observa-se queda de débito cardíaco, causada pelo efeito contrário preponderante sobre a pré-carga de câmaras direitas, observando-se, então, diminuição do fluxo sanguíneo pulmonar e queda do retorno venoso para o átrio esquerdo.Na verdade, aumentos de volumes

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pulmonares, sejam eles obtidos através de pressão positiva ou negativa, tendem a represar sangue nos capilares extra-alveolares, devido ao aumento do estiramento radial desses mesmos vasos, com conseqüente aumento do "continente vascular". Dependendo do volume sanguíneo intravascular, entretanto, essa resposta pode predominar ou não sobre o fenômeno contrário obtido sobre os capilares "alveolares" (que são "espremidos" durante a inspiração). Em condições de hipovolemia, por exemplo, a pressão positiva em alvéolos é capaz de "espremer" pouco volume sanguíneo a partir dos capilares alveolares, e a diminuição do retorno venoso esquerdo pode ser o fenômeno preponderante, mesmo no início da inspiração (desaparecendo a resposta bifásica). Em condições de normo ou hipervolemia, contudo, o "roubo de sangue" a partir dos capilares extravasculares é pequeno em relação ao montante fornecido pelo colapso dos capilares alveolares, predominando o aumento inicial do retorno venoso esquerdo(24). Esses padrões de resposta podem ser muito úteis na avaliação inicial da volemia do doente submetido a ventilação mecânica(33).

2) Alterações de complacência: durante a ventilação mecânica com pressão positiva, aumentos da pressão pleural são transmitidos diretamente ao pericárdio. Apesar de pequenas variações regionais (as variações de pressão pleural, medidas por meio de balão esofágico, por exemplo, costumam subestimar levemente as variações de pressão pericárdica, medidas por meio de balão colocado em saco pericárdico lateral(34, 35)), esse aumento da pressão pericárdica é responsável pela diminuição global das pressões transmurais de câmaras cardíacas, uma vez que há diminuição do diferencial de pressão entre os lados "interno" e "externo" do coração.Isso explica, portanto, a piora da função ventricular diastólica observada durante a ventilação com pressão positiva, o que equivale a dizer que se obtém piora da complacência ventricular, ou das relações volume-pressão diastólicas(24, 36). Assim, para determinada pressão de enchimento ventricular (no caso do ventrículo esquerdo, avaliada clinicamente pela pressão de oclusão da artéria pulmonar), o volume ventricular diastólico final estará diminuído (e, conseqüentemente, o volume sistólico e a fração de ejeção também), o que poderia ser erroneamente interpretado como piora da contratilidade cardíaca. Esse erro, contudo, decorreria do mau uso do conceito de pré-carga: em situações onde a complacência ventricular está alterada, o conceito original de pré-carga deveria estar mais diretamente ligado ao volume diastólico final dos ventrículos (e, portanto, ao grau de estiramento muscular) do que às pressões de enchimento ventricular(36). Trabalhos recentes demonstram que, desde que as pressões diastólicas transmurais possam ser restabelecidas por meio da infusão de volume (com restabelecimento do volume diastólico final dos ventrículos), não é mais possível detectar-se as alterações de contratilidade miocárdica descritas em trabalhos mais antigos sobre ventilação mecânica(37). Pelo contrário, se a diminuição das pressões transmurais pode atrapalhar a diástole, certamente esse fenômeno poderia favorecer a sístole, o que pode explicar, em parte, a melhora do débito cardíaco observada em indivíduos cardiopatas submetidos à ventilação mecânica(24, 38).Dessa forma, medidas da pressão de oclusão da artéria pulmonar durante a ventilação mecânica devem ser cuidadosamente interpretadas. Diferentes considerações devem ser feitas em relação ao pulmão e ao coração.

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No caso do pulmão, a pressão de oclusão da artéria pulmonar deve ser interpretada, isoladamente, como a pressão que determina o extravasamento de fluidos para o interstício pulmonar, independentemente das variações de pressão alveolar ou pressão pleural. Isso porque, salvo situações extremas, a real pressão capilar pulmonar guarda correlação muito estreita com a pressão de oclusão da artéria pulmonar (normalmente, uma diferença de apenas 2 mmHg(39)), e ainda porque boa parte dos capilares pulmonares são extra-alveolares, uma região onde o interstício perivascular encontra-se submetido a regimes de pressões que guardam pouca relação com as pressões alveolares ou pleurais (na verdade, tendem a ter valores opostos(24)). Por outro lado, no caso do coração, uma vez que a pressão pericárdica sofre grandes influências da pressão pleural, a pressão de oclusão da artéria pulmonar não deverá ser isoladamente utilizada como estimativa de pré-carga (ou como pressão de enchimento ventricular), a menos que seja referenciada à pressão pleural, obtendo-se então a pressão transmural de câmaras esquerdas(24).Da mesma forma que os aumentos da pressão pleural determinam a diminuição da complacência ventricular, negativações da pressão pleural produziriam o efeito oposto, aumentando a complacência das câmaras cardíacas. Esse efeito pode ser útil em estados de hipovolemia, mas costuma ser prejudicial em vigência de um ventrículo já dilatado(24).Concomitantemente a esses efeitos da pressão pleural sobre a função diastólica, deve-se também levar em conta os importantes efeitos da chamada "interdependência ventricular". Uma vez que ambos os ventrículos compartilham o mesmo septo e o mesmo saco pericárdico, o aumento de volume diastólico de uma das câmaras necessariamente implica a diminuição do volume diastólico da outra. Em condições normais de pré-carga, a pressão diastólica gerada pelo próprio saco pericárdico é desprezível em relação à pressão pleural, trabalhando-se numa faixa de complacência ótima do saco pericárdico(24). Entretanto, numa situação de dilatação extrema do ventrículo direito, as altas pressões geradas dentro do saco pericárdico podem ser responsáveis por grande restrição diastólica do ventrículo esquerdo(24). Associado a esse fenômeno, deve-se considerar que o raio de curvatura do septo interventricular pode aumentar de acordo com a dilatação do ventrículo direito (o chamado abaulamento do septo interventricular em direção ao ventrículo esquerdo), comprometendo mais ainda a função diastólica do ventrículo esquerdo. Experimentos onde dilatações extremas de ventrículo direito foram obtidas, sejam elas causadas por níveis excessivos de PEEP (devido ao aumento excessivo da pós-carga do ventrículo direito), seja pela realização de grandes esforços inspiratórios(24) (devido ao aumento excessivo do retorno venoso e da complacência ventricular direita), têm demonstrado que esses efeitos podem ser clinicamente relevantes, muitas vezes causando grandes aumentos da pressão de oclusão da artéria pulmonar e quedas significativas do débito cardíaco. Nessas condições, a infusão de volume só poderia agravar o quadro, piorando a dilatação ventricular direita(24).Assim, durante a ventilação com pressão positiva, pode-se dizer que a disfunção diastólica do ventrículo esquerdo se dá em duas etapas, dependendo da situação do ventrículo direito. Num primeiro momento, desde que o aumento das pressões alveolares não esteja determinando a dilatação do ventrículo direito, essa disfunção pode ser facilmente revertida por meio de infusão de volume. Num segundo momento, todavia (geralmente quando associada a

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níveis de PEEP acima de 16-20 cm H2O), a compressão dos vasos pulmonares, com conseqüente dilatação do ventrículo direito, pode passar a ser responsável pela piora da disfunção do ventrículo esquerdo após infusão de volume(24).

3) Alterações de pós-carga: Diferentes efeitos se produzem sobre a pós-carga do ventrículo esquerdo e ventrículo direito, todos eles decorrentes de influências diretas da pressão pleural sobre o pericárdio, assim como das pressões alveolares sobre os capilares intra e extra-alveolares.No caso do ventrículo direito, esses efeitos dependem da condição pulmonar basal (na verdade, da capacidade residual funcional), uma vez que os componentes intra e extra-alveolares da resistência vascular pulmonar comportam-se diferentemente, de acordo com os volumes pulmonares. Como visto anteriormente, enquanto os capilares intra-alveolares tendem a colapsar durante a inspiração (mesmo na ventilação espontânea, em virtude da tração longitudinal sobre os septos alveolares), os extra-alveolares tendem a se dilatar. Em indivíduos normais, os efeitos sobre os primeiros predominam, principalmente quando se utiliza ventilação com pressão positiva, observando-se aumento da resistência vascular de acordo com incrementos da pressão alveolar (ou do nível de PEEP).Em pulmões com colapso alveolar, todavia, a diminuição patológica da capacidade residual funcional pode ser responsável pela resposta bifásica da resistência vascular pulmonar. Durante o início da insuflação pulmonar, a reabertura dos capilares extra-alveolares colapsados pode ser o fenômeno preponderante, observando-se diminuição da resistência vascular à medida que a ventilação mecânica (ou o uso de PEEP) restaura a capacidade residual funcional(24). Associando-se a esse efeito a melhora da hipoxemia, por meio da ventilação mecânica, pode-se aliviar a vasoconstrição hipóxica, com conseqüente queda da resistência vascular pulmonar(24). Mesmo nessa situação, entretanto, à medida que as pressões e volumes pulmonares passam a ser excessivos, o colapso dos capilares alveolares pode ser muito importante, voltando a haver aumento da resistência vascular pulmonar total nessa condição(24).Esses efeitos sobre a vasculatura pulmonar costumam ofuscar a diminuição teórica da pós-carga do ventrículo direito, obtida a partir da diminuição de pressão transmural do ventrículo direito durante a sístole(24). Assim, na vigência de choque cardiogênico por falência do ventrículo direito (infarto de ventrículo direito, embolia pulmonar, falência de ventrículo direito por sepse, etc.), a utilização da ventilação com pressão positiva tem de ser considerada com muita cautela. Nessa condição, qualquer piora da hipertensão pulmonar pode ser crítica, e — diferentemente do que ocorre em relação às falências de ventrículo esquerdo — a ventilação mecânica costuma piorar a disfunção de ventrículo direito, a menos que se evite cuidadosamente a hiperdistensão pulmonar (Fig. 8).

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Figura 8. Interação cardiopulmonar na doença pulmonar obstrutiva crônica.

No caso do ventrículo esquerdo, a ventilação mecânica com pressão positiva está nitidamente associada a uma diminuição benéfica da pós-carga. Como visto acima, a ventilação mecânica costuma aliviar a pressão transmural sistólica do ventrículo esquerdo, favorecendo, em algum grau, a contratilidade miocárdica(24, 38). Para o ventrículo esquerdo, tudo se passa como se os incrementos de pressão pleural fossem, na verdade, diminuições da pressão arterial média de igual montante (da mesma forma, haveria diminuição equivalente na pressão transmural de ventrículo esquerdo). Poderíamos dizer, portanto, que a ventilação mecânica com pressão positiva funciona com um "vasodilatador" venoso e arterial, causando diminuição na pré e na pós-carga, respectivamente, com a peculiaridade de não causar queda no valor absoluto da pressão arterial média. Indivíduos com choque cardiogênico e edema pulmonar, por exemplo, podem se beneficiar muito do uso da ventilação mecânica, principalmente quando se associa o uso de PEEP, podendo-se indicar essa manobra eletivamente quando os tratamentos convencionais falham(24). Nesse caso específico, o alívio dos músculos respiratórios (que estariam solicitando boa parte do débito cardíaco), associado à diminuição das incursões negativas torácicas (que teriam o efeito oposto, aumentando a pós-carga do ventrículo esquerdo(24)), pode resultar em benefício global muito útil na prática clínica.

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Figura 9. Efeito de CPAP/PEEP no edema cardiogênico.

Alguns estudos recentes sugerem que efeitos importantes da ventilação mecânica sobre a redistribuição periférica do débito cardíaco devem ser considerados(11, 27). Na vigência de sepse, queda significativa na perfusão das vísceras pode ser desencadeada pelo uso de PEEP (principalmente pâncreas, fígado, baço e rins), a qual não pode ser adequadamente revertida pela infusão de volume, mesmo quando se restaura adequadamente o débito cardíaco(27). Isso sugere que algum efeito primário sobre a vasculatura de determinadas vísceras pode ser desencadeado pela ventilação mecânica. Se esse efeito é mediado por alterações do tônus simpático(22), ou se é mediado por alterações regionais de vasculatura decorrentes do edema intersticial presente nas vísceras (edema causado pela própria ventilação mecânica, provavelmente devido ao aumento da pressão venosa central(22)), ainda é uma questão em aberto. De qualquer forma, deve-se levar em conta essas alterações em situações onde a oferta de oxigênio às vísceras pode estar comprometida.

Em relação ao coração, apesar de alguns estudos sugerirem queda importante do fluxo coronário e do consumo de oxigênio do miocárdio (principalmente subendocárdio) à medida que se utilizam níveis crescentes de PEEP, estudos mais recentes sugerem que essas alterações são decorrentes da simples diminuição da demanda celular, causadas pela diminuição de pré e pós-carga cardíaca(11). Na verdade, a utilização de PEEP, por uma somatória de efeitos descritos acima, tenderia a "proteger" um miocárdio isquêmico (principalmente as câmaras esquerdas, e desde que em níveis suficientes para não causar queda importante da pressão diastólica em raiz de aorta).

Algumas implicações práticas da interação cardiopulmonar

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Excetuando-se as situações onde a musculatura respiratória esteja exercendo papel muito ativo, todos os efeitos cardiovasculares citados (alterações de retorno venoso, complacência, ou pós-carga) podem ser vistos como uma conseqüência direta ou indireta das variações de pressão alveolar. Enquanto pressões alveolares elevadas podem ser diretamente responsáveis pelo estiramento pulmonar e compressão dos capilares septais (alterando a resistência vascular pulmonar e o retorno venoso para o átrio esquerdo), a parcial transmissão das pressões alveolares à superfície pleural pode ser responsável pela compressão do saco pericárdico e das veias sistêmicas intratorácicas, produzindo-se, assim, as alterações do retorno venoso descritas acima, bem como as alterações de resistência venosa sistêmica, de complacência ventricular, e de pós-carga ventricular.Como o ciclo respiratório é normalmente muito mais lento que o ciclo cardíaco, a passagem de sangue pelos vasos pulmonares pode ser vista como um processo contínuo, ocorrendo praticamente durante todo o ciclo respiratório, e variando apenas de acordo com as pequenas diferenças de pressão e volume encontradas durante a inspiração e a expiração. Como as pressões alveolares costumam ser mais baixas durante a expiração, e considerando-se que o tempo expiratório é comumente mais longo que a fase inspiratória, a maior parte da perfusão pulmonar tende a ocorrer durante a expiração, pelo menos em condições usuais de ventilação mecânica. Variações nos níveis de PEEP, portanto, costumam exercer influência hemodinâmica muito marcante, já que a circulação pulmonar poderia ser comprometida, nesse caso, em seu momento de maior intensidade.

Por outro lado, levando-se em conta que uma parte não desprezível do débito cardíaco ocorre durante a inspiração, é fácil imaginar que o pico de pressão alveolar, assim como o tempo de exposição às elevadas pressões inspiratórias (tempo inspiratório), devam também exercer alguma influência sobre o sistema cardiovascular, pelo menos no que se refere a aproximadamente um terço do ciclo respiratório (assumindo-se uma relação I:E = 1:2). Mais ainda, alto pico de pressão inspiratória, associado a alto volume corrente, poderia implicar maior tempo necessário para o esvaziamento alveolar e, conseqüentemente, maior prejuízo hemodinâmico durante a expiração.Assim, se quisermos ter uma idéia global do comprometimento hemodinâmico associado a determinado modo de ventilação mecânica, a melhor alternativa não deve ser a análise de parâmetros isolados (valores de PEEP, volume corrente, ou de pico de pressão, isoladamente), mas a determinação da pressão alveolar média, considerando-se que esta reflete a somatória de efeitos durante todo o ciclo respiratório(11, 22).Em concordância com essas colocações, estudos hemodinâmicos comparativos entre diversos modos de ventilação mecânica demonstram que, independentemente do modo específico de ventilação, a pressão média de vias aéreas — definida como a área compreendida sob a curva de pressão traqueal no decorrer do tempo — é o principal responsável pelos efeitos cardiovasculares associados à ventilação mecânica(40). Aumentos do tempo inspiratório, diminuição do tempo expiratório (principalmente quando associados à inversão da relação I:E), grandes pausas inspiratórias, uso de altos volumes correntes, uso de fluxos inspiratórios decrescentes, e uso de PEEP são, todos, manobras que tendem a elevar a

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pressão média de vias aéreas, comprometendo, portanto, a situação hemodinâmica. Apesar de a curva de pressão traqueal no decorrer do tempo não ser exatamente a pressão média alveolar, sua correlação com a hemodinâmica parece se dever ao simples fato de a curva de pressão traqueal no decorrer do tempo ser uma boa estimativa da pressão alveolar média, desde que em condições de resistência pulmonar próximas do normal(40).É importante lembrar que quando a resistência expiratória suplanta consideravelmente a resistência inspiratória (como costuma acontecer em doença pulmonar obstrutiva crônica e quadros asmáticos), a curva de pressão traqueal no decorrer do tempo costuma hipoestimar a pressão alveolar média (devido às altas pressões alveolares não mensuradas durante a expiração(40)), e o prejuízo hemodinâmico passa, então, a não se correlacionar adequadamente com a curva de pressão traqueal no decorrer do tempo. É o que acontece, por exemplo, durante a ventilação mecânica de indivíduos obstruídos. Mesmo que os níveis de pico de pressão ou de curva de pressão traqueal no decorrer do tempo estejam aparentemente adequados, comumente se observa grande comprometimento hemodinâmico durante a ventilação mecânica desses indivíduos. A mensuração do PEEP intrínseco é muito importante nesses casos, fornecendo uma idéia mais adequada das pressões alveolares e, portanto, do comprometimento hemodinâmico.De acordo com a relação de complacências entre pulmão e caixa torácica, maior ou menor pressão alveolar será transmitida à superfície pleural. Podemos imaginar que um pulmão com alta complacência, associado a uma caixa torácica bastante rígida, deverá transmitir grande parte de sua pressão alveolar ao espaço pleural, causando grandes prejuízos hemodinâmicos. Em contrapartida, indivíduos com fibrose ou edema pulmonar costumam transmitir de forma muito tênue a pressão presente no interior dos alvéolos, geralmente tolerando muito bem a ventilação mecânica. A estimativa da repercussão pleural de uma determinada pressão alveolar pode ser feita por meio da seguinte fórmula:

                                                    pressão pleural = Palv . Cpulm/(Ctórax + Cpulm)

onde Cpulm = complacência do pulmão isolado,

Ctórax = complacência da caixa torácica,

e Palv = pressão alveolar.

Como os efeitos hemodinâmicos se correlacionam mais adequadamente às pressões médias alveolares e pleurais (pressão alveolar média e pressão pleural, respectivamente), como a pressão alveolar média e a curva de pressão traqueal no decorrer do tempo, temos que:

                                                    pressão pleural = Paw . Cpulm/(Ctórax + Cpulm).

Como normalmente Cpulm = Ctórax = 200 ml/cmH2O, temos que, em condições normais, metade da pressão média de vias aéreas é transmitida à pleura. Podemos, portanto, imaginar que um indivíduo com pulmões normais, submetido a

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CPAP de 10 cmH2O, sofrerá uma diminuição de 5 cmH2O nas pressões transmurais cardíacas, fato este que deverá ser cuidadosamente considerado quando se proceder à reposição volêmica baseada nas medidas de pressão de oclusão da artéria pulmonar (lembrando-se que o mesmo cálculo não é válido para a determinação das pressões transmurais dos capilares pulmonares).Apesar de muito úteis na prática clínica, deve-se lembrar que esses cálculos valem apenas quando se consideram lesões pulmonares homogêneas. Alguns indivíduos com síndrome do desconforto respiratório agudo, por exemplo, podem apresentar repercussão hemodinâmica maior que a esperada por esses cálculos aproximados. Se, normalmente, apenas um terço a um quarto do valor do PEEP é transmitido à pressão pleural na vigência de síndrome do desconforto respiratório agudo (associados, normalmente, a uma complacência pulmonar ao redor de 30 a 40 ml/cmH2O), a situação pode ser bem diferente quando se trata de lesões pulmonares muito heterogêneas (associadas, por exemplo, a focos de condensação pneumônicos). Mesmo que a complacência pulmonar global continue em níveis muito baixos, a presença de áreas pulmonares relativamente sãs ao redor do coração pode ser responsável por uma transmissão anormal das pressões alveolares ao mediastino, causando repercussão maior que a esperada pelo cálculo global da complacência pulmonar(24). Nessas situações caprichosas e raras, até a metade das pressões alveolares pode ser transmitida ao mediastino, de forma semelhante à que costuma ocorrer em indivíduos com pulmões normais.Outra colocação importante a ser feita aqui refere-se aos indivíduos portadores de fibrose pulmonar. Se, por um lado, a baixa complacência desses pulmões parece ser responsável pela menor repercussão hemodinâmica durante a ventilação mecânica, isso é válido apenas no que tange ao retorno venoso e às alterações de complacências de câmaras cardíacas. Quando se consideram as alterações de resistência pulmonar, observa-se que os capilares alveolares estão sujeitos ao colapso (causado pela pressão positiva alveolar) da mesma forma que nos pulmões normais. Ao se tentar ventilá-los com volumes correntes habituais (10 a 15 ml/kg), pode-se infligir um regime de altas pressões em vias aéreas, originando colapso de capilares alveolares e aumento da resistência vascular pulmonar (com conseqüente descompensação do ventrículo direito). A regra aqui seria sempre uma ventilação com baixos volumes correntes, devendo-se aumentar a ventilação alveolar por aumento da freqüência (esses indivíduos são normalmente pouco propensos ao aparecimento de PEEP intrínseco, devido à alta elastância desses pulmões).

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