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INTERAÇÕES E DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM ORAL EM CRIANÇAS NA CRECHE: UMA ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL ARLENE ARAUJO NOGUEIRA

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INTERAÇÕES E DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM ORAL EM

CRIANÇAS NA CRECHE: UMA ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL

ARLENE ARAUJO NOGUEIRA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ARLENE ARAUJO NOGUEIRA

INTERAÇÕES E DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM ORAL EM

CRIANÇAS NA CRECHE: UMA ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL

Manaus - AM

2016

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ARLENE ARAUJO NOGUEIRA

INTERAÇÕES E DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM ORAL EM

CRIANÇAS NA CRECHE: UMA ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação

em Educação da Universidade Federal do

Amazonas, como requisito final para a obtenção

do título de Doutora em Educação.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Michelle de Freitas Bissoli

Manaus - AM

2016

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ARLENE ARAUJO NOGUEIRA

INTERAÇÕES E DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM ORAL EM

CRIANÇAS NA CRECHE: UMA ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do

Amazonas, como requisito final para a obtenção do título de Doutora em Educação, sob a

orientação da Prof.ª Dr.ª Michelle de Freitas Bissoli.

Aprovada em 08 de abril de 2016.

BANCA EXAMINADORA

Prof.ª Dr.ª Michelle de Freitas Bissoli – Presidente

Faculdade de Educação – Universidade Federal do Amazonas

Prof.ª Dr.ª Maria Denise de Carvalho Lopes – Membro

Centro de Ciências Sociais Aplicadas – Departamento de Educação

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Prof.ª Dr.ª Suely Amaral Mello – Membro

Faculdade de Filosofia e Ciências – Campus de Marília

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho

Prof.ª Dr.ª Lucíola Inês Pessoa Cavalcante – Membro

Faculdade de Educação – Universidade Federal do Amazonas

Prof. Dr. Carlos Humberto Alves Corrêa – Membro

Faculdade de Educação – Universidade Federal do Amazonas

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DEDICO

Às crianças com quem pesquisei e por intermédio das quais aprendi tanto:

Arthur,

Fernanda,

Isadora,

Kauã,

Letícia,

Miguel

e Samir.

À Alice e ao Artur, meus “filhos com açúcar”, que me inspiram sempre.

À minha filha Suzye (in memoriam), cuja lembrança permanece viva dentro de mim e

alimenta minha fé na Eternidade.

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AGRADEÇO

À Universidade Federal do Amazonas e ao Departamento de Métodos e Técnicas da

Faculdade de Educação, pela liberação para o Doutorado.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas, pelo apoio financeiro.

Institucionalmente,

Agradeço!

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AGRADEÇO

A Deus, meu Guia Supremo.

À minha orientadora, Michelle de Freitas Bissoli, pelo exemplo de pessoa e

educadora; pela orientação paciente, sábia e generosa; pela construção conjunta da

tese; pela dimensão humana sempre presente na orientação; por tentar acalmar minha

ansiedade e por acreditar mais do que eu que tudo daria certo; por me apresentar e

ensinar tanto da Teoria Histórico-Cultural, mediando minhas apropriações. Obrigada,

querida Michelle! Serei sempre grata!

À minha mãe, pelo exemplo de fé, amor, integridade e otimismo diante da vida; por

me encorajar sempre, torcer e orar por mim.

À minha filha Suzane e meu genro Fábio, por me apoiarem e se alegrarem comigo por

essa conquista.

Ao meu irmão Médison, que deu um toque especial e organizou melhor as imagens

do trabalho.

Ao Fabio, meu amor-amigo, por contribuir com minhas reflexões sempre que

dialogávamos a respeito do trabalho e por ler muito do que escrevi, apesar de

pertencer a uma área tão diferente da minha.

Às amigas da turma de doutorado – Ilaine, Corina, Silvia, Eliz, Kézia, Marinez e

Rosejane – pela amizade, por partilharem comigo desta caminhada e pelos valiosos

“pitacos”. Em especial, agradeço à Ilaine, pela parceria desde o processo de entrada

no curso, pelo diálogo maduro e pelas contribuições; e à Corina, com quem dividi

angústias e alegrias, recebendo sempre palavras de ânimo e carinho.

Aos companheiros do Grupo de Pesquisa Teoria Histórico-Cultural, Infância e

Pedagogia – Ilaine, Aline, Sônia, Jocicleia, Marcos, Ana e Isabel – pela torcida, pela

presença em momentos importantes e reflexões nos encontros do grupo.

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À minha amiga Gisele, por estar sempre perto e acreditar em mim, afirmando: “o seu

trabalho vai ficar lindo!”

À minha amiga Raiolanda, por me incentivar e me ouvir.

Aos professores do doutorado – Michelle, Carlos Humberto, Rosinha, Silvério, Graça,

Arminda, Valéria e Selma – pelos conhecimentos que auxiliaram na construção do

trabalho.

Ao professor Carlos Humberto Alves Corrêa e à professora Denise Maria de Carvalho

Lopes, pela leitura atenta do trabalho e valiosas contribuições no exame de

qualificação.

Aos profissionais da Creche Municipal Maria Ferreira Bernardes - gestora Gicélia,

pedagogas Silvia e Denise, professoras, cozinheiras – pelo carinho e acolhida. De

forma especial, agradeço às professoras participantes da pesquisa – Creuza, Cristiane e

Valmirene - por me receberem tão bem e compartilharem comigo suas práticas.

Às crianças, meus pequenos sujeitos – Arthur, Fernanda, Isadora, Kauã, Letícia, Miguel

e Samir –, pelos momentos prazerosos que passamos juntos e por me brindarem

(mesmo sem terem consciência disso) com o substrato da tese.

Com todo o meu coração,

Agradeço!

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Por uma ideia de criança

Aldo Fortunati

Por uma ideia de criança rica,

na encruzilhada do possível,

que está no presente

e que transforma o presente em futuro.

Por uma ideia de criança ativa,

guiada, na experiência,

por uma extraordinária espécie de curiosidade

que se veste de desejo e prazer.

Por uma ideia de criança forte,

que rejeita que sua identidade seja

confundida com a do adulto, mas que oferece

a ele nas brincadeiras de cooperação.

Por uma ideia de criança sociável

capaz de se encontrar e se confrontar

com outras crianças

para construir novos pontos de vista e conhecimentos.

Por uma ideia de criança competente,

artesã da própria experiência

e do próprio saber

perto e com o adulto.

Por uma ideia de criança curiosa,

que aprende a conhecer e a entender

não porque renuncie, mas porque nunca deixa

de se abrir ao senso do espanto e da maravilha.

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RESUMO

Compreender como se dá o desenvolvimento da linguagem oral na primeira infância é

fundamental para qualificar o trabalho pedagógico na creche. A Teoria Histórico-Cultural

preconiza que o desenvolvimento da linguagem oral e da atividade de comunicação da criança,

como ademais todo o desenvolvimento das funções psíquicas humanas, não é um processo

natural, mas socialmente mediado. Cabe, pois, ao adulto que educa, promover atividades que

intencionalmente coloquem a criança em interação, de modo que a comunicação se configure

como uma necessidade, mobilizando o desenvolvimento. Dessa forma, indagamos: de que

maneira ocorre o desenvolvimento da linguagem oral na primeira infância segundo a

perspectiva histórico-cultural?; como as interações adulto-criança e criança-criança interferem

no desenvolvimento da linguagem oral das crianças em situação de creche?; como o trabalho

pedagógico na creche pode propiciar interações verbais significativas? Com os objetivos de

compreender o processo de desenvolvimento da linguagem oral na etapa da primeira infância,

de acordo com os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural; conhecer a influência das

interações adulto-criança e criança-criança para o desenvolvimento da linguagem oral das

crianças em situação de creche; e elucidar como o trabalho pedagógico na creche pode

contribuir para que ocorram interações verbais significativas entre crianças e adultos,

realizamos este trabalho, que insere-se na Linha de Pesquisa 3 – Formação e Práxis do(a)

Educador(a) Frente aos Desafios Amazônicos do Programa de Pós-Graduação em Educação da

Universidade Federal do Amazonas. Foram sujeitos da pesquisa três professoras e sete crianças

de um a dois anos de idade, matriculadas na Creche Municipal Maria Ferreira Bernardes, em

2014, em Manaus-AM. A investigação enfoca o desenvolvimento da linguagem oral da criança

pequena no contexto interativo da creche, fundamentando-se nos aportes teóricos e

metodológicos da Teoria Histórico-Cultural, segundo a qual as funções psíquicas superiores

dos seres humanos surgem da estreita relação entre os fatores biológicos caraterísticos do

homem e os fatores culturais, construídos ao longo da história humana – ideia apregoada por L.

S. Vigotski, seu principal representante. A construção dos dados empíricos se deu por

intermédio de observações participativas do cotidiano, com o apoio de fotografias,

videogravações e registros em caderno de campo; entrevistas semiestruturadas e encontros

formativos com as professoras. A sistematização dos dados possibilitou agrupar as situações

interativas vivenciadas entre as crianças e suas professoras – que revelam a emergência da

linguagem oral – em duas categorias: 1) Interações comunicativas diretas: atividade

comunicativa cujos motivos são pessoais, baseada na comunicação emocional; e 2) Interações

comunicativas mediadas por objetos: atividade comunicativa de natureza prática-situacional,

apoiada na manipulação dos objetos. A análise das categorias empíricas permitiu notar que as

atividades propostas pelas professoras e as interações criança-criança e adulto-criança, na

creche, potencializam a atividade comunicativa das crianças e o desenvolvimento de sua

linguagem oral, de acordo com os pressupostos teóricos de Vigotski e seus colaboradores.

Apesar de reconhecermos que as crianças constroem entre si interações que portam ricos

significados e produzem linguagem, enfatizamos o papel mediador das professoras nesses

momentos e na organização intencional de vivências interativas promotoras da linguagem oral.

Além disso, os grupos de discussão com as professoras a respeito do desenvolvimento da

linguagem oral possibilitam a ampliação de referências para pensar a atividade pedagógica,

atestando o potencial formativo da pesquisa.

Palavras-chave: desenvolvimento da linguagem oral; atividade de comunicação; interação

criança-criança e adulto-criança; creche.

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ABSTRACT

Understanding the process of oral language development in the first years of life is essential to

qualify the pedagogical work in a nursery. The Historical-Cultural Theory emphasizes that the

development of oral language and the child's communication activity – as well as all kinds of

human mental functions development – are not natural process, but socially mediated. It is up

to the adult in charge of education the development of activities that intentionally promote the

child interaction. Doing so, communication is set as a necessity, promoting development. Thus,

one could ask: how is the development of oral language in early childhood according to

historical and cultural perspective? How do the adult-child and child-child interactions interfere

with the development of oral language of children in day care situation? How can the

pedagogical work in the nursery provide significant verbal interactions? With the purpose of

understanding the development process of oral language in early childhood stage, according to

the assumptions of Historical-Cultural Theory; besides knowing the influence of adult-child

child-child interactions for the development of oral language of children in day care situation;

and also with the aim of bringing to the light how pedagogical work in day care can contribute

to any significant verbal interactions between children and adults, so, these were the reasons

why this research has been conducted. In fact, it is part of the Research Line number 3 –

Training and Praxis of the educator before the Amazonian Challenges in the Post-Graduation

Program Studies in Education of the Federal University of Amazonas. Three teachers and seven

children of one and two years of age were the subjects of this research, held in a nursery called

Creche Municipal Maria Ferreira Bernardes, in 2014, in Manaus-AM. The research focused on

the development of oral language of young children in an interactive daycare context, based on

the theoretical and methodological contributions of the Historical-Cultural Theory, according

to which the higher mental functions of humans arise both from the close relationship between

biological factors inherent of mankind, and cultural factors, built throughout human history –

idea published by L. S. Vygotsky, its principal representative. The empirical knowledge was

acquired through participatory observations of everyday life, with the support of photographs,

video recordings and records in fieldwork notebook; and also by semi-structured interviews and

formative meetings with the teachers. The systematization of data enabled to group the

interactive situations experienced by children and their teachers – which have revealed the

emergence of oral language – in two categories: 1) direct communication Interactions: through

communicative activities whose reasons were personal, based on emotional communication;

and 2) communicative interactions mediated by objects: a communicative activity, based on the

practice of situations involving manipulation of objects. After analyzing the empirical

categories, one could note that the activities proposed by the teachers and the interactions

between child-child and adult-child, in the nursery, potentiate the communicative activity of

children and the development of oral language, according to the theoretical assumptions of

Vygotsky and his collaborators. While we recognize that children build each other interactions

that carry rich meanings and produce language, we emphasize the mediating role of teachers in

these moments and intentional organization of interactive experiences that promote oral

language. Besides that, discussion groups with teachers about oral language development

enable the expansion of references to think about the pedagogical activity, confirming the

potential of formative research.

Keywords: oral language development; activity of communication; interactions between child-

child and adult-child; nursery.

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RESUMEN

Comprender cómo se desarrolla el lenguaje oral en la infancia es fundamental para calificar el

trabajo pedagógico en una guardería. La teoría Histórico-Cultural defiende que el desarrollo del

lenguaje oral y la actividad de comunicación del niño, y todo el desarrollo de las funciones

mentales humanas no es un proceso natural, si no que está mediado socialmente. Por

consiguiente, le toca al adulto que enseña promover actividades que pongan intencionalmente

el niño en situación de interacción, de modo que la comunicación se establezca como una

necesidad, favoreciendo el desarrollo. Por lo tanto, nos preguntamos: ¿cómo ocurre la evolución

del lenguaje oral en los primeros años de vida de acuerdo con la perspectiva histórico-cultural?

¿Cómo las interacciones adulto-niño y niño-niño interfieren en la evolución del lenguaje oral

de los niños en edad de guardería? ¿Cómo el trabajo pedagógico en la guardería puede

proporcionar interacciones verbales significativas? Con el fin de comprender el proceso de

desarrollo del lenguaje oral en los primeros años de vida, de acuerdo con los antecedentes de la

teoría histórico-cultural; además de conocer la influencia de las interacciones entre adultos-

niños y niño-niño para la evolución del lenguaje oral de los niños en edad de guardería; y

también con el objetivo de aclarar cómo el trabajo pedagógico en la guardería pueda contribuir

a cualquiera de las interacciones verbales significativas entre niños y adultos, así, estas fueron

las razones por las cuales esta investigación se ha llevado a cabo, que de hecho es parte de la

Línea de Investigación 3 – Formación y Praxis del educador, llevando en cuenta los desafíos

del Amazonas en el programa de Estudios Graduados en Educación de la Universidad Federal

de Amazonas . Tres maestras y siete niños con edad entre uno y dos años fueron los sujetos de

esta investigación, que fue llevada a cabo en una guardería llamada Creche Municipal Maria

Ferreira Bernardes, en 2014, en Manaus-AM. La investigación se centró en el desarrollo del

lenguaje oral de los niños pequeños en el contexto interactivo de la guardería, basado en los

aportes teóricos y metodológicos de la teoría histórico-cultural, según la cual las funciones

mentales superiores de los seres humanos se deben tanto a la relación entre los factores

biológicos característicos de la humanidad y a factores culturales, construidos a lo largo de la

historia humana – idea publicada por L. S. Vigotsky, su principal representante. La recolección

de datos se realizó a través de observaciones de la vida cotidiana, con el apoyo de fotografías,

videos, y registros en el diario de campo; también por entrevistas semiestructuradas y

encuentros de capacitación con las maestras. La sistematización de los datos permitió agrupar

las situaciones interactivas que han vivido los niños y sus maestras – que han revelado la

aparición del lenguaje oral – en dos categorías: 1) Las interacciones de comunicación directa:

a través de actividades comunicativas cuyos motivos eran personales, basado en la

comunicación emocional; y 2) las interacciones comunicativas por objetos: actividad

comunicativa, basada en la práctica de situaciones que implican la manipulación de los objetos.

Tras analizar las categorías empíricas se ha podido señalar que las actividades propuestas por

las maestras y las interacciones niño-niño y adulto-niño, en la guardería, potencian la actividad

comunicativa de los niños y el desarrollo del lenguaje oral, de acuerdo con los antecedentes

teóricos de Vigotski y sus colaboradores. Aunque reconozcamos que los niños construyen entre

si mismos interacciones muy significativas y producen lenguajes, reconocemos importante el

papel mediador de las maestras en estos momentos y la organización intencional de

experiencias interactivas que promuevan el lenguaje oral. Además, los debates con las maestras

sobre la evolución del lenguaje oral permiten la expansión de las referencias sobre la actividad

pedagógica, lo que confirma el potencial de la investigación formativa.

Palabras clave: desarrollo del lenguaje oral; actividad de comunicación; interacciones niño-

niño y adulto-niño; guardería.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Funcionários da Creche Municipal Maria Ferreira Bernardes no ano de 2014 ... 53

Quadro 2 – Nomes das crianças do Maternal I da Creche Municipal Maria Ferreira Bernardes,

por data de nascimento e idades, em março de 2014 ............................................................. 56

Quadro 3 – Nomes das professoras do Maternal I da Creche Municipal Maria Ferreira

Bernardes, por data de nascimento, estado civil, formação e situação jurídica de trabalho, em

2014 ........................................................................................................................................ 57

Quadro 4 – Categorias de base empírica ................................................................................ 102

Quadro 5 – Eventos classificados por número, nome e forma de registro ........................ 104/105

Quadro 6 – Periodização do desenvolvimento psíquico de acordo com Elkonin (1987), Leontiev

(1988) e Vigotski (2012b) .................................................................................................... 132

Quadro 7 – Periodização da atividade de comunicação da criança, de acordo com Lísina (1986;

1987) e Zaporozet e Lísina (1986) ....................................................................................... 141

Quadro 8 – Desenvolvimento da linguagem oral, de acordo com Vigotski (2001, 2012a, 2012b)

............................................................................................................................................... 207

Quadro 9 – Critérios de escolha do livro na creche com base na idade da criança, de acordo com

Mantovani (2014) .................................................................................................................. 247

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LISTA DE FOTOGRAFIAS

Fotografia 1 – Fachada da creche ......................................................................................... 49

Fotografia 2 – Muro da creche, com vista da rua de acesso e entorno da comunidade ........ 49

Fotografia 3 – Estacionamento à frente ................................................................................. 50

Fotografia 4 – Porta de acesso ............................................................................................... 50

Fotografia 5 – Pátio ............................................................................................................... 50

Fotografia 6 – Pequeno anfiteatro ......................................................................................... 50

Fotografia 7 – Corredor mostrando sala da direção (porta aberta) e sala de enfermagem ..... 51

Fotografia 8 – Refeitório e parte da cozinha ........................................................................... 51

Fotografia 9 – Solários ........................................................................................................... 51

Fotografia 10 – Área gramada ............................................................................................... 51

Fotografia 11 – Porta de entrada da sala, com cartaz de boas-vindas ................................... 60

Fotografia 12 – Espaço de atividades .................................................................................... 61

Fotografia 13 – Fraldário ....................................................................................................... 61

Fotografia 14 – Espaço do repouso com vista lateral ............................................................ 62

Fotografia 15 – Espaço do repouso com vista frontal ........................................................... 62

Fotografia 16 – Letícia (1a, 5m) com material da pesquisadora ........................................... 89

Fotografia 17 – Fernanda (1a, 2m) olhando a própria imagem.............................................. 93

Fotografia 18 – Letícia (1a, 4m) beijando a própria imagem ................................................ 93

Fotografia 19 – Crianças explorando livros ........................................................................... 108

Fotografia 20 – Crianças no brinquedo de encaixe ............................................................... 149

Fotografia 21 – Crianças com brinquedos de encaixar .......................................................... 149

Fotografia 22 – Crianças pintando ......................................................................................... 154

Fotografia 23 – Samir pede “aua” .......................................................................................... 154

Fotografia 24 – Isadora imitando telefone ............................................................................ 157

Fotografia 25 – Letícia e Arthur brincando ........................................................................... 157

Fotografia 26 – Crianças escolhendo brinquedos .................................................................. 158

Fotografia 27 – Samir com carrinho ...................................................................................... 158

Fotografia 28 – Letícia denomina formas ............................................................................. 181

Fotografia 29 – Kauã denomina animais ............................................................................... 181

Fotografias 30 e 31 – Kauã ajuda Isadora a calçar sua sandália ............................................ 203

Fotografias 32 e 33 – Crianças explorando novos livros ....................................................... 251

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 16

1 CONTEXTO E CENÁRIO DO ESTUDO ........................................................................ 22

1.1 Constituição da creche como segmento da Educação Infantil no Brasil ........................ 24

1.2 O atendimento às crianças de um a três anos em creches públicas em Manaus ............. 38

1.3 O cenário da pesquisa ..................................................................................................... 46

1.3.1 A Creche Municipal Maria Ferreira Bernardes ........................................................ 46

1.3.2 O Maternal I: seus atores, espaços e materiais ......................................................... 55

2 ESCOLHAS METODOLÓGICAS: CAMINHOS TRILHADOS NA PESQUISA COM

CRIANÇAS PEQUENAS ...................................................................................................... 64

2.1 A opção teórico-metodológica ........................................................................................ 68

2.2 A inserção no campo: observar, participar, fotografar e filmar para construir a pesquisa

.............................................................................................................................................. 77

2.3 A organização dos dados e algumas reflexões sobre o papel formador da pesquisa .... 101

3 INTERAÇÕES E O DESENVOLVIMENTO DA COMUNICAÇÃO E DA

LINGUAGEM ORAL NA PRIMEIRA INFÂNCIA ......................................................... 111

3.1 O desenvolvimento psíquico e sua periodização .......................................................... 113

3.2 A atividade de comunicação da criança e a linguagem no primeiro ano de vida ......... 134

3.2.1 A linguagem autônoma .......................................................................................... 152

3.3 A linguagem oral nos três primeiros anos de vida ........................................................ 156

3.3.1 A linguagem egocêntrica ........................................................................................ 162

3.3.2 O início do processo de formação de conceitos ..................................................... 167

3.4 Relações entre pensamento e linguagem ...................................................................... 176

4 EVENTOS DE INTERAÇÃO E EMERGÊNCIA DA LINGUAGEM ORAL NO

COTIDIANO DO MATERNAL I ....................................................................................... 187

4.1 O cotidiano da creche e do Maternal I .......................................................................... 188

4.2 As interações comunicativas criança-criança e adulto-criança ..................................... 206

4.2.1 As interações comunicativas diretas ...................................................................... 209

4.2.2 As interações comunicativas mediadas por objetos ............................................... 226

4.3 Considerações sobre o papel do meio ........................................................................... 251

REFLEXÕES FINAIS (PARA NÃO FINALIZAR) ......................................................... 259

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 268

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INTRODUÇÃO

___________________________________________________________________________

Um fotógrafo-artista me disse outra vez: veja que pingo de sol no couro de

um lagarto é para nós mais importante do que o sol inteiro no corpo do mar.

Falou mais: que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica

nem com balanças nem com barômetros etc. Que a importância de uma

coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.

Assim um passarinho nas mãos de uma criança é mais importante para ela

do que a Cordilheira dos Andes. [...] Que uma boneca de trapos que abre e

fecha os olhinhos azuis nas mãos de uma criança é mais importante para ela

do que o Empire State Building [...].1

(MANOEL DE BARROS)

O saudoso poeta Manoel de Barros nos inspira a falar de importância. De encantamento.

Dos sentidos que atribuímos a algo. Nessa direção, suscitamos alguns questionamentos a

respeito de nossa investigação. Que importância tem para nós um estudo sobre crianças

pequenininhas? Por que uma pesquisa na creche? Qual a relevância do processo de fala dos

pequenos? Que caminhos nos conduziram a esse tema? Em que medida o desenvolvimento da

linguagem na concepção vigotskiana nos encantou, motivou e envolveu?

Essas indagações se vinculam ao nosso percurso formativo, à nossa trajetória

profissional e pessoal. Nesse caminho, entrelaçam-se distintas experiências que tivemos com

crianças, pequenas e maiores, desde muito cedo. Nossas vivências na infância se articulam

fortemente com nossa escolha pela carreira docente, de maneira que nossa opção pode parecer,

1 Excerto do poema “Sobre importâncias”, do poeta brasileiro Manoel de Barros, publicado em sua obra Memórias

inventadas: a segunda infância, pela editora Planeta (2006).

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inicialmente, dom ou vocação. No entanto, hoje percebemos que nossa história de vida constitui

um processo histórico, construído por intermédio das relações estabelecidas, pelas

oportunidades que se nos apresentaram, pelo investimento, pelo desejo de conhecer mais.

Quando criança, brincávamos de professora. Com garrafas vazias enfileiradas,

gesticulávamos, falávamos e ensinávamos, segurando na mão uma vareta. Nossa mãe,

observando por vezes essa brincadeira, dizia orgulhosa: “minha filha vai ser professora.” A

frase cresceu conosco. E quando alguém fazia a célebre pergunta “o que você vai ser quando

crescer?”, nossa resposta saía de pronto: professora. Aos doze anos de idade, a brincadeira de

escolinha ficou séria. Nossa mãe organizou uma classe com crianças da vizinhança, que

funcionaria em um pequeno salão alugado para fins religiosos, onde começamos a dar aulas de

reforço: tabuada, continhas do tipo “arme e efetue”, treino de escrita e leitura. A ideia da

escolinha surgiu por conta da situação socioeconômica de nossa família, uma forma de ampliar

o orçamento doméstico. No início, não havia dinheiro sequer para comprar o giz, usávamos

pedaços de gesso, numa lousa também improvisada. Mas as crianças frequentavam

regularmente, gostavam das “aulas” da professora-menina. Quando os pais começaram a enviar

pelas crianças o dinheiro referente às mensalidades, fomos correndo a uma papelaria e

compramos, orgulhosas, uma caixa de giz colorido. Um luxo, verdadeiro encantamento!

A menina-professora cresceu, cursou o antigo Magistério profissionalizante, casou-se,

tornou-se mãe. Agora, a tarefa docente era exercida oficialmente em uma escola municipal,

com crianças de sete anos, em classe de alfabetização. Depois de um tempo, decidimos

continuar nossa formação, optando, naturalmente, pelo curso de Pedagogia. Desejávamos

compreender melhor o desenvolvimento infantil, estudar o processo de aprendizagem na

criança, buscar respostas que auxiliassem nosso fazer pedagógico. Nosso caminho em busca da

profissionalização docente comprova que “[...] o papel de professora vai se constituindo em nós

misturado à nossa vida de meninas, mulheres, filhas, irmãs, esposas, mães, com suas práticas,

rituais, fazeres, afazeres, desejos, medos, aspirações e frustrações, modos de dizer e de silenciar,

que são histórica e socialmente construídos [...]” (FONTANA, 1997, p. 33). Nesse percurso de

aprendizagens, a presença constante do outro. Fomos nos constituindo nas interações, no

discurso e na prática social. Exercemos a prática docente com crianças de diversas idades,

atuando junto à educação infantil e séries iniciais. Mais tarde, contribuímos também para a

formação de professores em nível médio, ministrando aulas para o curso de Magistério.

Ampliando nossa atuação profissional, oportunamente trabalhamos com a educação de

adultos, quando surgiu o interesse pela pesquisa do Mestrado, intitulada Educação de Jovens e

Adultos: da Formação do Educador à Aprendizagem do Educando, defendida no Programa de

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Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em 2005. A

experiência do curso possibilitou nossa atuação no ensino superior. Inicialmente, exercemos a

docência como professora substituta e em regime de cessão (pela Secretaria Municipal de

Educação), na UFAM, período em que trabalhamos, também, na Universidade Nilton Lins.

Posteriormente, em julho de 2009, ingressamos como professora Assistente da Faculdade de

Educação da UFAM, por efeito de aprovação em concurso público.

Considero nossa entrada na UFAM como um divisor de águas na carreira profissional e

pessoal. Atuando como professora do Curso de Pedagogia no eixo da educação infantil, em

2010 tomamos conhecimento do Grupo de Pesquisa Teoria Histórico-Cultural, Infância e

Pedagogia, liderado pela Dra. Michelle de Freitas Bissoli. Almejando estudar a Teoria

Histórico-Cultural (THC) – da qual tínhamos conhecimento bastante superficial –, fomos

inserida no grupo. Um mundo novo se abria diante de nós. As leituras propostas pelo grupo

apontavam para o desafio de compreender o desenvolvimento infantil numa perspectiva

histórica e social, superando a visão da epistemologia genética de Piaget, que embasava nossa

prática até então. Ao estudar, inicialmente, os conceitos próprios da THC (funções psíquicas

superiores, aprendizagem, desenvolvimento, atividade, interações, apropriação, mediação e

outros), nossa práxis foi sendo desestabilizada. Percebemos que precisávamos ressignificá-la,

dotar de novos saberes nossa atividade docente. Sentimos, então, a necessidade de nos

aprofundar no estudo da THC. Dessa forma, destacamos que “[...] o processo pelo qual o

indivíduo se torna professor é histórico [...]. Na trama das relações sociais de seu tempo, os

indivíduos que se fazem professores vão se apropriando das vivências práticas e intelectuais

[...]” (FONTANA, 1997, p. 54).

Nesse contexto, surge a presente pesquisa, que expressa o desejo de contribuir com a

educação escolar das crianças pequenas na creche, tendo em vista o momento atual de

ampliação desse segmento em Manaus. Visualizamos, na pesquisa, a oportunidade de conhecer

e acompanhar o processo educacional que se realiza no interior do espaço institucional da

creche. Nosso interesse reside, também, na necessidade de ampliar as pesquisas no campo da

educação infantil na região Norte, com poucos estudos sobre a infância institucionalizada,

especialmente na creche. Igualmente, nossa motivação em pesquisar na creche advém do nosso

interesse pela criança, do nosso encantamento pelo universo infantil, por suas formas peculiares

de aprender e perceber o mundo. Aqui se entrelaçam a criança que fomos, as com quem

convivemos na infância, as que educamos e criamos, as que ensinamos e aquelas com quem

convivemos hoje.

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O estudo, de caráter teórico-empírico, ancora-se nos pressupostos da Teoria Histórico-

Cultural e tem como objeto de investigação o desenvolvimento da linguagem oral de crianças

na creche, buscando compreender como as interações adulto-criança e criança-criança

possibilitam o desenvolvimento dessa linguagem em crianças de um a dois anos de idade, em

situação de creche. A investigação de campo foi realizada na Creche Municipal Maria Ferreira

Bernardes, tendo como sujeitos sete crianças de um a dois anos (Maternal I) e suas três

professoras. As seguintes questões orientaram o estudo: 1) De que maneira ocorre o

desenvolvimento da linguagem oral na primeira infância, segundo a perspectiva histórico-

cultural?; 2) Como as interações adulto-criança e criança-criança interferem no

desenvolvimento da linguagem oral das crianças em situação de creche?; 3) Como o trabalho

pedagógico na creche pode propiciar interações verbais significativas?

Com base nas questões, traçamos os seguintes objetivos de pesquisa: 1) Compreender o

processo de desenvolvimento da linguagem oral na etapa da primeira infância, de acordo com

os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural; 2) Conhecer a influência das interações adulto-

criança e criança-criança para o desenvolvimento da linguagem oral das crianças em situação

de creche; 3) Elucidar como o trabalho pedagógico na creche pode contribuir para que ocorram

interações verbais significativas entre crianças e adultos.

Convém esclarecer que a tríade metodológica – objeto, questões e objetivos – que ora

apresentamos representa a síntese de nossas buscas, o resultado de um caminho trilhado. O

objeto de investigação, elemento definidor dos demais, não foi dado a priori, antes, foi sendo

construído ao longo da investigação. Assim, para nós, a definição dos componentes norteadores

do estudo foi resultante de um processo de construção, constituído no curso do próprio trabalho.

Esse movimento se mostrou um tanto curioso para nós. Ingressamos no curso de

doutorado com a intenção de estudar a construção de conceitos pela criança pré-escolar. No

entanto, ao longo do curso, nossa atenção foi sendo atraída para a creche. Ao optarmos pela

creche, nosso interesse inicial de pesquisa eram as interações sem vinculação com a linguagem.

Mais tarde, no interior das observações, o desenvolvimento da linguagem foi se evidenciando

como um objeto emergente e adequado. Fato bastante interessante é que, no estudo da formação

da linguagem, nosso interesse inicial foi contemplado em certa medida, uma vez que Vigotski

investigou o processo de formação de conceitos relacionados ao desenvolvimento da

linguagem.

Baseadas na concepção histórico-cultural, sustentamos, em nosso trabalho, a tese de que

o desenvolvimento da linguagem oral na criança não seja algo natural, mas depende das

relações estabelecidas com e pelas pessoas que a cercam, da forma como os adultos se

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comunicam com ela e das possibilidades que conferem às interações entre as crianças. Não

sendo algo que se desenvolva espontaneamente, faz-se necessário que, na creche, sejam

organizadas experiências diversificadas que favoreçam as interações verbais, essência da fala e

da linguagem articulada da criança. Seguindo esse pensamento, buscamos sistematizar estudos

efetuados por Vigotski e seus colaboradores a respeito da formação da linguagem e do papel

das interações nesse processo. Estruturamos as regularidades do desenvolvimento psíquico e da

linguagem, para, a partir daí, analisar esse processo nas crianças pesquisadas.

Assim, a tese que apresentamos – texto decorrente de nossas reflexões e apropriações

ao longo do processo de pesquisa – está organizada em quatro capítulos. No primeiro, intitulado

“Contexto e cenário do estudo”, retratamos o lócus e os sujeitos participantes, discutindo,

inicialmente, o processo de constituição de creches no contexto nacional e a situação do

atendimento local, de forma breve. Com essa forma de organização, objetivamos oferecer ao

leitor, desde o início, uma ideia de onde se passou a pesquisa, situando, de antemão, o lugar e

os sujeitos dos quais estamos falando.

No segundo capítulo, “Escolhas metodológicas: caminhos trilhados na pesquisa com

crianças pequenas”, explicitamos a opção teórico-metodológica, bem como os meios de

produção dos dados. Nele, relatamos, de forma minuciosa, nossa inserção no campo de pesquisa

e os procedimentos utilizados para produzir e registrar as interações comunicativas observadas,

além do processo de organização dos dados. Nesse contexto, evidenciamos a construção da

pesquisa, o caminho percorrido até a delimitação do objeto.

No terceiro capítulo, “Interações e o desenvolvimento da comunicação e da linguagem

oral na primeira infância”, refletimos sobre o desenvolvimento da linguagem, contrapondo-nos

à concepção naturalizante, ao assumir o pressuposto histórico-cultural de que esta capacidade

humana, como todas as demais, é externa à criança, vindo a ser internalizada mediante a

apropriação da cultura, no processo de comunicação com as pessoas. Inicialmente, abordamos

o desenvolvimento psíquico e sua periodização de forma geral para, em seguida, enfocarmos a

atividade de comunicação e a linguagem no primeiro e nos três primeiros anos ano de vida.

Para finalizar o capítulo, discutimos brevemente acerca da relação entre pensamento e

linguagem, destacando os aspectos que se vinculam à primeira infância.

No quarto capítulo, “Eventos de interação e emergência da linguagem oral no cotidiano

do Maternal I”, nos dedicamos a analisar a emergência da linguagem oral nas crianças

pesquisadas, com base nas situações vivenciadas entre elas e suas professoras. Mediante a

concepção histórico-cultural, buscamos conhecer a influência das interações adulto-criança e

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criança-criança para o desenvolvimento da linguagem oral dos pequenos, salientando a

importância do trabalho pedagógico no estabelecimento de interações verbais significativas.

Após as análises dos eventos selecionados, que discutem o surgimento e o incremento

da fala da criança no interior das práticas pedagógicas como resultado da imprescindível

mediação de outros, apresentamos nossas reflexões finais, concluindo esta tese.

Cabe destacar que optamos por não proceder à separação entre a apresentação de nosso

referencial teórico e os dados coletados/produzidos na pesquisa. Entendemos, com Vigotski

(2012a), que o método é a espinha dorsal do trabalho de investigação. Assim, tendo em vista

que a compreensão da realidade empírica supõe a apropriação teórica e que esta, por seu turno,

não acontece separada da reflexão sobre o real em suas múltiplas determinações, consideramos

que o texto deva expressar o movimento dialético que perfaz a práxis.

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1 CONTEXTO E CENÁRIO DO ESTUDO

___________________________________________________________________________

A criança

é feita de cem.

A criança tem

cem mãos

cem pensamentos

cem modos de pensar

de jogar e de falar.

Cem sempre cem

modos de escutar

as maravilhas de amar.

Cem alegrias

para cantar e compreender

Cem mundos

para descobrir.

Cem mundos

para inventar

Cem mundos

para sonhar.

A criança tem

cem linguagens

(e depois cem cem cem)...2

(LORIS MALAGUZZI)

As palavras do poema Ao contrário, as cem existem, de autoria do professor italiano

Loris Malaguzzi, traduzem bem nossa concepção acerca da criança, seu desenvolvimento e suas

potencialidades. Falam do mundo que se descortina para a criança desde o instante do seu

nascimento, e que lhe será apresentado pelo adulto e por outras crianças mediante o processo

2 Excerto da poesia de Loris Malaguzzi “Invece il cento c’é” traduzida em português como “Ao contrário, as cem

existem”, publicada na obra As cem linguagens da criança, pela editora Artmed (1999).

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educativo. Nesse processo que é, sobretudo, de comunicação, os pequenos terão um papel ativo

de apropriação do mundo circundante, por meio de diferentes e múltiplas linguagens: visual,

gestual, plástica, dramática, musical, oral e escrita, entre outras. Nelas são possibilitadas as

invenções infantis, suas descobertas, seus modos de perceber e expressar, suas aprendizagens.

As cem linguagens de que fala Malaguzzi certamente existem para a criança.

Entre as mais distintas formas de linguagem, em nossa investigação, realizada com

crianças bem pequenas no espaço institucionalizado da creche, decidimos enfocar a linguagem

oral como forma privilegiada de interação, embora conscientes de que seu desenvolvimento de

maneira alguma ocorre desvinculado das outras formas de comunicação e independente das

muitas atividades que permeiam a vida da criança. Acreditamos que o desenvolvimento da

linguagem oral não constitua algo inato, mas vai ocorrer, gradativamente, mediante o processo

de interação entre crianças e adultos e entre crianças e crianças, e requer a presença de distintas

mediações, a fim de que os pequenos desenvolvam o pensamento e a comunicação. Nesse

sentido, a prática pedagógica no contexto da educação infantil assume importância

fundamental: por seu intermédio, de maneira intencional e organizada, é possível estabelecer

interações verbais significativas, substrato da fala e consequente linguagem desenvolvida da

criança.

É, pois, considerando esse conjunto que definimos nosso objeto de investigação,

buscando compreender o processo de desenvolvimento da linguagem oral na etapa da primeira

infância, de acordo com os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural. Vale questionar: qual o

papel do(s) outro(s) nessa aquisição? Como o trabalho pedagógico sistemático e organizado na

creche pode favorecer situações significativas de interações verbais?

Com o intuito de encontrar respostas a esses questionamentos, empreendemos o

presente estudo. Neste capítulo, objetivamos apresentar o lócus e os sujeitos participantes.

Respeitando o princípio da historicidade, apresentamos, inicialmente, uma breve discussão

sobre o movimento de constituição de creches como segmento da educação infantil no contexto

nacional, a partir dos estudos de Haddad (1991), Oliveira (2010, 2011), Kramer (1992), Didonet

(2001); Cerisara (2002) e Kuhlmann Jr. (2010). Situamos, ainda, a educação infantil na

legislação e elaboração de documentos que apontam conteúdos relativos à linguagem oral como

objeto de aprendizagem no currículo e nas práticas pedagógicas na creche. Em seguida,

expomos um relato histórico sucinto acerca do atendimento às crianças de um a três anos nas

creches públicas em Manaus, com vistas a situar o momento presente. Para tanto, nos baseamos

nos estudos realizados por Carvalho (2011), Mourão (2013) e Assis (2013), e em relatos orais

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de pessoas ligadas à Gerência de Creches da Secretaria Municipal de Educação (SEMED),

referentes à cobertura e situação de atendimento nas creches de Manaus nos dias atuais.

1.1 Constituição da creche como segmento da Educação Infantil no Brasil

A educação escolar da criança pequena no Brasil tem uma longa trajetória, marcada por

lutas contínuas pela conquista desse direito. O atendimento à população de 0 a 5 anos foi

constituído de modo a evidenciar a falsa divisão entre cuidar e educar, uma vez que, “[...] por

um lado, havia as instituições que realizavam um trabalho denominado ‘assistencialista’ e, por

outro, as que realizavam um trabalho denominado ‘educativo’” (CERISARA, 2002, p. 10).

Nessa trajetória, muitas conquistas se deram no âmbito da legislação, fato que tem colocado a

Educação Infantil em destaque no cenário educacional nos últimos anos, especialmente após a

aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei nº 9.394/96. Assim, o tema

tem sido alvo de atenção por parte de professores, especialistas, pesquisadores, universidades e

sociedade civil, grupos que colocam o debate para além das conquistas legais e discutem a

efetivação das leis por intermédio das políticas públicas e das práticas educativas em creches e

pré-escolas.

Historicamente, o surgimento das creches no Brasil vincula-se à mudança de lugar

ocupado pela mulher na sociedade e sua entrada no mundo do trabalho, o que provocou

modificações, também, na educação dos filhos. Assim, “[...] a creche deve ser compreendida

dentro de um contexto social que inclui a expansão da industrialização e do setor de serviços,

ao mesmo tempo em que a urbanização se torna cada vez maior” (OLIVEIRA, 2011, p. 24). O

início do século XX marca sua origem, quando a fábrica começa a incorporar a mão de obra de

imigrantes europeus e estes passam a protestar contra condições inadequadas de trabalho e a

reivindicar creches para seus filhos, na década de 1920 (HADDAD, 1991; OLIVEIRA, 2011).

Fora desse contexto – em resposta a preocupações, principalmente de religiosos, com

problemas que afetavam crianças de classes menos favorecidas, como desnutrição e alta taxa

de mortalidade infantil –, as creches existentes pertenciam a entidades filantrópicas, mantidas

por donativos e ajuda governamental. Foi dessa forma que a criança começou a receber

atendimento fora do ambiente doméstico, passando a ser vista pela sociedade “[...] com um

sentimento filantrópico, caritativo, assistencial [...]” (DIDONET, 2001, p. 12). Didonet afirma

que

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Enquanto as famílias mais abastadas pagavam uma babá, as pobres se viam

na contingência de deixar os filhos sozinhos ou colocá-los numa instituição

que deles cuidasse. Para os filhos das mulheres trabalhadoras, a creche tinha

que ser de tempo integral; para filhos de operárias de baixa renda, tinha que

ser gratuita ou cobrar muito pouco; ou para cuidar da criança enquanto a mãe

estava trabalhando fora de casa, tinha que zelar pela saúde, ensinar hábitos de

higiene e alimentar a criança. A educação permanecia assunto de família. Essa

origem determinou a associação creche/criança pobre e o caráter

assistencial(ista) da creche. (DIDONET, 2001, p. 12).

Kuhlmann Jr. (2010) destaca que a criação da creche não era consenso. Em seu

calcanhar carregava polêmicas, como a defesa da responsabilidade materna pela educação dos

filhos pequenos. Muitos daqueles que entravam em sua defesa a consideravam um “mal

necessário.” No entanto, essa instituição recentemente surgida não era apenas um “mal

necessário”; ao invés disso representava “[...] a sustentação dos saberes jurídico, médico e

religioso no controle e elaboração da política assistencial que estava sendo gestada, e que tinha

na questão da infância o seu principal pilar” (KUHLMANN Jr., 2010, p. 87). Desse modo,

desenhava-se o paradigma do atendimento ofertado tanto em creches quanto em pré-escolas nas

primeiras décadas do século XX: o médico-higienista, que objetivava combater a mortalidade

infantil e implantar normas de saneamento visando a civilidade e a modernidade; o jurídico-

policial, que defendia a infância moralmente abandonada em decorrência da situação de

trabalho dos pais; e o religioso, com a intenção de implantar políticas de assistência aos pobres.

Cada um desses modelos “[...] apresentava as suas justificativas para a implantação de creches,

asilos e jardins de infância onde seus agentes promoveram a constituição de associações

assistenciais privadas [...]” (KUHLMANN Jr., 2010, p. 87).

Haddad (1991) comenta que a organização da creche vinculada à ideia da falta da família

seguiu padrões impostos por diversos profissionais, como médicos, psiquiatras, psicólogos e

outros. Esses profissionais influenciaram o funcionamento das creches em termos morais,

econômicos, higiênicos, afetivos, nutricionais, culturais e cognitivos. De acordo com a autora,

as marcas dessa construção foram cristalizadas no estabelecimento das rotinas da creche, a

exemplo dos horários de sono e alimentação, e na adoção de medidas higienistas.

A partir da década de 1950, a crescente industrialização no país foi absorvendo, de

maneira mais acentuada, a mão de obra de mulheres da classe média. Por outro lado, em razão

do processo de urbanização e especulação imobiliária nas grandes cidades, as crianças foram

perdendo os espaços de brincadeira, o que provocou o aumento da necessidade de instituições

para a infância, agora não apenas para as mulheres da classe pobre, mas também para as

profissionais da classe média, que necessitavam trabalhar fora de casa (OLIVEIRA, 2011).

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As décadas de 1970 e 1980 foram caracterizadas por maior abertura política,

provocando novas formas de reivindicações populares e mudança de concepção; a população

passa ao entendimento de creches como direito, ao invés de benesse ou paternalismo. Às

reivindicações das mulheres trabalhadoras somaram-se os movimentos feministas da época,

resultando no aumento de creches organizadas e mantidas pelo poder público (HADDAD,

1991; OLIVEIRA, 2011). Haddad considera que

Os movimentos feministas que partiram dos EUA tiveram papel especial na

revisão do significado da creche. As feministas mudam o enfoque que

considerava a creche como um programa social para mães trabalhadoras

pobres, passando a defender a idéia de que a creche deveria atender todas as

mulheres, independentemente de sua necessidade ou condição econômica.

(HADDAD, 1991, p. 30).

Em razão do número insuficiente de creches mantidas pelo poder público, formas

alternativas, mantidas por instituições particulares, surgiram nessa época, como os “lares

vicinais” e as “creches domiciliares”, modelos que perduraram até bem pouco tempo em muitos

estados do país (OLIVEIRA, 2011). Em 1975, o Ministério da Educação criou a Coordenação

de Educação pré-escolar para atender as crianças de 4 a 6 anos. Contudo, o governo continuava

mantendo e criando outras instituições desvinculadas da educação, a exemplo da Legião

Brasileira de Assistência (LBA), vinculada ao Ministério da Previdência Social. Essa

instituição, que tinha como função coordenar o funcionamento das escolas de Educação Infantil

divididas em comunitárias, confessionais e filantrópicas, foi extinta em 1995. Ainda assim, o

governo continuou a repassar recursos para as creches por intermédio da Secretaria de

Assistência Social, mantendo, dessa forma, a natureza assistencialista à educação das crianças

(HEIDRICH, s.d).

Essas instituições foram concebidas segundo a abordagem da privação cultural,

defendida no Brasil e no exterior nas décadas 1970 e 1980: “[...] para explicar a ideia de

marginalidade das camadas sociais mais pobres. [...] considerava-se que o atendimento à

criança pequena em creches possibilitaria a superação das precárias condições sociais a que ela

estava sujeita” (OLIVEIRA, 2011, p. 27). Kramer (1992) discute essa perspectiva, destacando

que a ideia presente nesse discurso é a de que as crianças das classes sociais desfavorecidas

sejam consideradas inferiores, por encontrar-se aquém do padrão estabelecido pelo discurso

oficial, faltando-lhes conteúdos que deveriam ser supridos pela escola. Assim sendo, as

propostas e inciativas educacionais teriam por alvo a superação das deficiências de saúde,

alimentação e escolares, conformando o modelo de educação compensatória. No entanto, a

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autora chama a atenção para a contradição desse modelo, afirmando que considerar a educação

como promotora de melhoria social “[...] é uma maneira de esconder os reais problemas da

sociedade e de evitar a discussão dos aspectos políticos e econômicos mais complexos”

(KRAMER, 1992, p. 30).

A transformação desse cenário começa a ocorrer apenas no final do século XX, quando

a criança ganha destaque na política brasileira e as creches passam a ser vistas como direito da

criança, não apenas da mãe trabalhadora. A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988)

rompe com a tradição assistencialista ao colocar a Educação Infantil como direito da criança e

dever do Estado. O Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990 (BRASIL, 1990), também

destaca o direito da criança a esse atendimento. Por sua vez, a Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional - LDB (Lei nº 9.394/96) a localiza, definitivamente, como a primeira etapa

da educação básica (título V, capítulo II, seção II, art. 29), visando o desenvolvimento integral

da criança até 6 anos3 de idade (BRASIL, 1996). Cerisara (2002) destaca que a partir da

promulgação da Constituição de 1988, a criança passa a ser sujeito de direitos, em vez de objeto

de tutela, como proclamado nas leis anteriores. Além disso, ao ser incorporada à educação

básica juntamente com o ensino fundamental e médio, a educação infantil é deslocada

definitivamente da área da assistência para a área da educação. Nesse contexto, a educação a

ser ofertada à criança de 0 a 6 anos passa a cumprir funções específicas: “A passagem das

creches para as secretarias de educação dos municípios está articulada à compreensão de que

as instituições de educação infantil têm por função educar e cuidar de forma indissociável e

complementar a criança de 0 a 6 anos” (CERISARA, 2002, p. 10).

Na interpretação de Cerisara (2002), a compreensão dos termos educar e cuidar está

ligada à forma como se constituíram e se consolidaram as creches e pré-escolas no Brasil. Nesse

processo, coexistiram instituições que realizavam um trabalho de cunho assistencial, e outras

que trabalhavam na direção pedagógica. Essa falsa dicotomia fazia parecer que havia duas

formas distintas de atuar junto à criança: um trabalho não-educativo mais ligado à assistência

das crianças menores, herança dos modelos familiar e hospitalar, diferenciado de uma

concepção educativa, moldada pelas escolas de ensino fundamental. De fato, Kuhlmann Jr.

(2010) afirma que a origem da falsa divisão entre cuidar/educar, assistir/educar remonta à

década de 1970, quando eram priorizadas ações de nutrição/alimentação em detrimento da

3 A fim de oficializar as determinações da Emenda nº 59/2009 (BRASIL, 2009), que inseriu a obrigatoriedade da

educação para as crianças a partir de 4 anos de idade, a Lei nº 12.796/2013 alterou o artigo 29 da LDB, afirmando

que “a educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da

criança de até 5 (cinco) anos [...]” (BRASIL, 1996).

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qualidade da educação, o que não significa ausência de intencionalidade educativa. O autor

assevera que, nessa época, conjuntamente às creches,

A pré-escola, para crianças de quatro a seis anos, também estava se

expandindo, e os educadores criticavam o assistencialismo presente nas

propostas da chamada educação compensatória. Também a escola primária

vivia um momento de denúncia de medidas assistenciais, como a merenda

escolar, medidas que eram adotadas ao mesmo tempo que se arrochava o

salário dos professores e que diminuíam as verbas para a educação. Queria-se

defender a qualidade do ensino e a culpa de sua queda parecia ser por conta

de a escola preocupar-se com a nutrição e não com a educação. É nesse

contexto que educação passou a ser vista como o oposto de assistência.

Olhávamos para o cotidiano das creches e ali víamos – como ainda hoje

podemos ver em muitas delas – que elas funcionavam como um depósito de

crianças. (KUHLMANN Jr., 2010, p. 180).

Ainda na perspectiva do autor (2010), há um discurso repetido e cristalizado entre

educadores, que, por desconhecer a história, defendem o lado educacional e atacam o aspecto

assistencial como algo negativo. No entanto, o caráter assistencial é conferido não pela ausência

de práticas educativas, mas pela baixa qualidade do atendimento, que se limita ao cuidado físico

e à “proteção” da criança, provocado pela transferência da responsabilidade sobre ela a

entidades assistenciais. Isso faz com que a educação das crianças pequenas seja vista como

favor aos pobres, tal como apontado por Kramer (1992). Assim, o amparo legal da Constituição

e da LDB representa a superação de tal concepção, ao menos na letra da lei, pois sendo a creche

inserida no sistema educacional, não mais se caracteriza como alternativa às famílias carentes,

mas sim como complementar à ação da família. “Mas não é por isso que as instituições se

tornam educacionais, elas sempre o foram e continuarão sendo, aonde quer que estejam”

(KUHLMANN Jr., 2010, p. 186).

A defesa de que as creches deixassem de ser assistenciais e se tornassem educacionais

gerou uma polarização entre educação e assistência: os aspectos ligados aos cuidados e

assistência foram relegados, em detrimento da valorização do aspecto educacional. Passou-se a

considerar o educacional como atividade nobre; e os cuidados com o corpo e alimentação como

atividade desvalorizada, como se as duas pudessem ser conflitantes. Contudo, a função de

guardar é própria da creche, uma necessidade inerente e esperada pelas famílias – de qualquer

classe social – que confiam a essa instituição seus filhos pequenos, argumenta Kuhlmann.

Combatendo a perspectiva escolarizante muitas vezes presente nas creches, o autor defende a

articulação do cuidado à educação, sobre o que Didonet (2001) declara:

Já é de convicção generalizada que a creche é uma instituição de cuidado e

educação, funções essas realizadas simultaneamente pelos mesmos

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profissionais – por todos e cada um dos que interagem com a criança –, em

cada uma das atividades. Nessa nova visão e nova prática, não há distinção

entre atividades assistenciais e atividades educativas; não há atividades nobres

(educar) e atividades “humildes” (dar banho, trocar fralda, servir a

mamadeira). O médico educa ao entrevistar e examinar o bebê, e a educadora

cuida da saúde da criança ao servir-lhe a comida. (DIDONET, 2001, p. 25).

É importante dizer que, embora o modelo assistencialista tivesse um caráter educativo,

a concepção de educação, nesse caso, era completamente diferente daquela que defendemos:

muito mais voltada para a adaptação das crianças aos costumes da sociedade que as exclui, do

que para a sua formação omnilateral (essa sim, capaz de favorecer as transformações

necessárias na consciência das pessoas e, mesmo que indiretamente, na mudança do status quo).

Essa reflexão nos aponta dois aspectos importantes da questão: o assistencialismo não é neutro,

assim como toda pedagogia tem caráter político e uma filosofia que a sustenta.

Do ponto de vista da Teoria Histórico-Cultural, é na relação que a criança estabelece

com o adulto – tanto nos momentos de comunicação emocional direta (que envolvem o banho,

a alimentação, as brincadeiras, por exemplo) quanto nas situações mediadas pelo uso, em

parceria, dos objetos sociais – que se formam, simultaneamente, inteligência e personalidade.

Isso demonstra que cuidar e educar não se separam.

A especificidade da creche como instituição que deve cuidar e educar de maneira

inseparável é apontada nos vários documentos elaborados após o estabelecimento legal da

educação escolar da criança pequena. Igualmente, a inserção da creche no sistema educacional

impulsionou pesquisas, debates, discussões e a elaboração de documentos que visam orientar

propostas pedagógicas específicas e construir um currículo direcionado à criança nos seus

primeiros anos de vida, por parte do Ministério da Educação (BRASIL, 1998a, 1999, 2009b,

2012a)4.

Em 1998 o Ministério da Educação elaborou as Diretrizes Curriculares Nacionais para

a Educação Infantil (DCNEI/1999), documento de caráter obrigatório, instituído pela

Resolução CNE/CEB nº 1/1999. O Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), que

trata das referidas diretrizes e antecedeu a referida Resolução, apresenta as discussões em torno

de sua formulação. Segundo o Parecer, a incorporação da educação infantil à educação básica,

4 Entre os anos de 2006 a 2009, com a preocupação de estabelecer critérios referentes às formas de relacionamento

e infraestrutura para as instituições de educação infantil, o MEC publicou outros documentos: Política Nacional

de Educação Infantil: pelo direito das crianças de zero a seis anos à Educação; Parâmetros Básicos de Infraestrutura

para Instituições de Educação Infantil; Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil – v. 1 e 2;

Indicadores da Qualidade na Educação Infantil; e Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos

fundamentais das crianças. Todos esses documentos encontram-se disponíveis na página do Ministério da

Educação, na internet.

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isoladamente, não define uma política que responsabilize o estado e a sociedade civil pela

educação das crianças de 0 a 6 anos, em conjunto com a família. De acordo com o documento,

“uma política nacional para a infância é um investimento social que considera as crianças

como sujeitos de direitos, cidadãos em processo e alvo preferencial de políticas públicas”

(BRASIL, 1999, p. 1, grifos do documento). As Diretrizes são apresentadas no Parecer como

um documento que regulamenta o trabalho pedagógico nas creches e pré-escolas, quanto às

propostas curriculares e estabelecimento de normas relativas à concepção de cuidado e

educação, própria às instituições de educação infantil.

O conjunto das discussões destaca a linguagem oral como forma de expressão, a ser

inserida em contexto de “jogos e brincadeiras”, na rotina de cuidado e educação que envolve o

trabalho na creche. A emergência e evolução da comunicação e da linguagem são relacionadas

ao contato das crianças consigo mesmas, com os outros, com os objetos, e o entorno, devendo

ser desenvolvida, nas propostas pedagógicas, mediante princípios éticos, políticos e estéticos,

integrada aos demais aspectos da vida da criança: “as Propostas Pedagógicas para as instituições

de Educação Infantil devem promover em suas práticas de educação e cuidados a integração

entre os aspectos físicos, emocionais, afetivos, cognitivo/lingüísticos e sociais da criança,

entendendo que ela é um ser total, completo e indivisível” (BRASIL, 1999, p. 12). O diálogo e

a interação são evidenciados como eixos do trabalho pedagógico, sob a responsabilidade de

professores envolvidos “[...] em todas as situações, provocando, brincando, rindo, apoiando,

acolhendo, estabelecendo limites com energia e sensibilidade, consolando, observando,

estimulando e desafiando a curiosidade e a criatividade [...]” (BRASIL, 1999, p. 14).

Em continuidade ao processo de elaboração dos documentos que deveriam nortear o

fazer pedagógico na educação infantil, no ano de 1998 ocorreu, também, a publicação do

Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil - RCNEI (v. 1, 2 e 3), como parte da

série de documentos “Parâmetros Curriculares Nacionais”. O documento foi “[...] concebido de

maneira a servir como um guia de reflexão de cunho educacional sobre objetivos, conteúdos e

orientações didáticas para os profissionais que atuam diretamente com crianças de zero a seis

anos [...]” (BRASIL, 1998a, v. 1, p. 7). Desde sua publicação, o referencial suscitou polêmica

no interior de universidades e grupos que se preocupam com a educação escolar da criança

pequena. De acordo com Guimarães (2008)

Por um lado, o documento situa a educação infantil como lugar de construção

da identidade e da autonomia das crianças, baseadas em relacionamentos

seguros e aconchegantes, tendo em vista crescerem como cidadãs com direitos

reconhecidos. Por outro lado, o modo como se estruturam conteúdos e

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metodologias mostra preocupação com a antecipação de encaminhamentos

próprios do ensino fundamental. (GUIMARÃES, 2008, p. 32).

Guimarães (2008) salienta outros pontos conflitantes na implementação do RCNEI,

como sua publicação aligeirada e o rompimento com discussões e políticas anteriores, além do

emprego do termo Referencial Curricular, sugerindo o estabelecimento de conteúdos fixos

adotados por um único caminho. A autora aponta também a abordagem insuficiente que o

documento faz de questões de natureza étnica e socioeconômica.

Arce (2001) denuncia o caráter pedagógico do RCNEI, baseado no “construtivismo” de

definição eclética que reúne, de forma limitada, diferentes correntes teóricas representadas por

Piaget, Vigotski e Wallon. “Vemos Vigotski sendo utilizado como aquele que fala das

interações sociais, como práticas subjetivas entre indivíduos, Piaget como o que trata do

desenvolvimento cognitivo e Wallon como o responsável pelo lado afetivo, pelo

desenvolvimento do “eu” da criança” (ARCE, 2001, p. 273), afirma a autora. Em conformidade

com Arce, sabemos que a Teoria Histórico-Cultural não se vincula ao interacionismo e ao

construtivismo, o que significaria, para o ecletismo teórico presente no documento, que

Vigotski teria levado “[...] o social para o construtivismo e para a escola, operando-se assim um

exacerbado reducionismo de seus conceitos de social e interação, reduzidos a meras deduções

provenientes do senso-comum” (idem). Sobre essa questão, Duarte (2007, p. 84-85, grifo do

autor) profere críticas contundentes:

Diga-se em primeiro lugar que nenhuma dessas denominações aparece nas

obras de Vigotski, Leontiev, Luria, Galperin, Elkonin, Davidov ou outro

membro dessa escola. Esses autores preocuparam-se sempre em caracterizar

essa psicologia naquilo que ela tem de diferenciador em relação a outras, ou

seja, sua abordagem histórico-social do psiquismo humano. [...]. Sejamos

mais claros: o divisor de águas para a Escola de Vigotski, quando da

caracterização das correntes da psicologia, residia justamente na abordagem

historicizada ou não historicizada do psiquismo humano. Ora, para eles

somente uma psicologia marxista poderia abordar de forma plenamente

historicizada o psiquismo humano. [...]. o interacionismo é um modelo

epistemológico que aborda o psiquismo humano de forma biológica, ou seja,

não dá conta das especificidades desse psiquismo enquanto um fenômeno

histórico-social. Com isso estamos defendendo que a Psicologia Histórico-

Cultural não é uma variante do interacionismo-construtivista. Não basta

colocar o adjetivo social. A questão é a de que a especificidade dessa escola

da psicologia perante outras não pode ser abarcada pela categoria de

interacionismo nem pela de construtivismo.

Consideramos que, apesar das críticas procedentes, esse documento se mostrou como

um caminho no estabelecimento concreto de conteúdos e orientações didáticas a serem adotados

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pelas propostas pedagógicas das instituições de educação infantil, até então sem um

direcionamento neste sentido. O volume 3 do RCNEI, denominado “Conhecimento de Mundo”,

apresenta as diferentes linguagens pelas quais a criança estabelece contato com o ambiente:

movimento, música, artes visuais, linguagem oral e escrita, natureza e sociedade e matemática.

Trata-se de seis eixos de trabalho, abordando objetivos, conteúdos e orientações didáticas, a

serem desenvolvidos pelas propostas pedagógicas de creches e pré-escolas. No eixo que

compreende a linguagem oral, esta capacidade é concebida como resultado da interação da

criança com os adultos e outras crianças, desde muito cedo, tal como preconiza a concepção

histórico-cultural por nós assumida. A concepção do desenvolvimento da linguagem expressa

no RCNEI revela que “as brincadeiras e interações que se estabelecem entre os bebês e os

adultos incorporam as vocalizações rítmicas, revelando o papel comunicativo, expressivo e

social que a fala desempenha desde cedo [...]” (BRASIL, 1998a, v. 3, p. 125). Partindo dessa

concepção, são elencados alguns “conteúdos” a serem trabalhados com crianças de zero a três

anos: uso da linguagem oral para conversar e nas diversas situações de interação presentes no

cotidiano; participação em situações de leitura de diferentes gêneros feita pelos adultos;

participação em situações cotidianas nas quais se faz necessário o uso da leitura e da escrita;

e observação e manuseio de materiais impressos, como livros, revistas, histórias em

quadrinhos etc. Na verdade, não se trata de conteúdos propriamente, mas de situações que

podem favorecer o desenvolvimento da linguagem, embora o documento mencione essas

situações/experiências como conteúdos.

No ano de 2009, dez anos após a instituição das primeiras Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação Infantil, o Ministério da Educação, por meio do Conselho Nacional

de Educação, efetivou uma revisão desse documento, a partir de amplo debate envolvendo

universidades, pesquisadores, representantes de entidades nacionais ligados à educação,

especialistas da área da educação infantil, representantes de órgãos públicos governamentais e

não governamentais e movimentos sociais (Parecer CNE/CEB nº 20/2009 e Resolução

CNE/CEB nº 5/2009). O Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) justifica a revisão

enfatizando a necessidade de incluir, nos princípios indicados nas Diretrizes de 1999, novos

desafios para a educação infantil: ampliação de matrículas; regularização de funcionamento de

creches e pré-escolas; diminuição de professores não habilitados e pressão pelo atendimento.

Esses desafios conduziram o norteamento de questões referentes às propostas pedagógicas, à

prática dos professores, às ações e projetos desenvolvidos com as crianças, o que equivale às

orientações curriculares presentes no documento.

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As novas DCNEI avançam em relação às anteriores, apresentando uma visão e definição

de currículo, considerando que esse é um ponto de controvérsia no Brasil quando se trata da

educação infantil, sendo o termo vinculado à escolarização presente no ensino fundamental e

médio, razão pela qual se deu preferência aos termos “projeto pedagógico” ou “proposta

pedagógica”. No entanto, o documento defende que, ao elaborar os projetos e propostas, as

instituições de educação infantil elaboram seu currículo, “[...] concebido como um conjunto de

práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos

que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, científico e tecnológico [...]” (BRASIL,

2009a, p. 6). Analisando a proposta das novas diretrizes sobre o currículo na educação infantil,

Oliveira (2010, p. 4) argumenta que “[...] esta definição de currículo foge de versões já

superadas de conceber listas de conteúdos obrigatórios, ou disciplinas estanques, de pensar que

na Educação infantil não há necessidade de qualquer planejamento de atividades [...]”. Segundo

as considerações da autora,

A definição de currículo defendida nas Diretrizes põe o foco na ação

mediadora da instituição de Educação infantil como articuladora das

experiências e saberes das crianças e os conhecimentos que circulam na

cultura mais ampla e que despertam o interesse das crianças. Tal definição

inaugura então um importante período na área, que pode de modo inovador

avaliar e aperfeiçoar as práticas vividas pelas crianças nas unidades de

Educação Infantil. (OLIVEIRA, 2010, p. 4).

Nesse sentido, as Diretrizes destacam a necessidade de planejamento e intencionalidade

das práticas que orientam o cotidiano de creches e pré-escolas e reafirmam que estas devem ser

desenvolvidas com base na integralidade das distintas dimensões que compõem a criança:

expressivo-motora, afetiva, cognitiva, linguística, ética, estética e sociocultural. Sem fazer

referência ao termo “conteúdos”, determina que as propostas sejam organizadas em

“experiências de aprendizagem”, sendo a linguagem oral assim destacada:

É importante lembrar que dentre os bens culturais que crianças têm o direito

a ter acesso está a linguagem verbal, que inclui a linguagem oral e a escrita,

instrumentos básicos de expressão de idéias, sentimentos e imaginação. A

aquisição da linguagem oral depende das possibilidades das crianças

observarem e participarem cotidianamente de situações comunicativas

diversas onde podem comunicar-se, conversar, ouvir histórias, narrar, contar

um fato, brincar com palavras, refletir e expressar seus próprios pontos de

vista, diferenciar conceitos, ver interconexões e descobrir novos caminhos de

entender o mundo. É um processo que precisa ser planejado e continuamente

trabalhado. (BRASIL, 2009a, p. 15).

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À semelhança dos eixos propostos no RCNEI, podemos identificar, na Resolução do

CNE, as mesmas áreas (movimento, música, artes visuais, linguagem oral e escrita, natureza e

sociedade e matemática), com acréscimo de experiências ligadas aos recursos tecnológicos.

Segundo o referido artigo, “as práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da

Educação Infantil devem ter como eixos norteadores as interações e a brincadeira [...]”

(BRASIL, 2009a, p. 4), por meio de experiências que envolvam: experiências sensoriais,

expressivas, corporais que possibilitem movimentação; experiências de narrativas, de

apreciação e interação com a linguagem oral e escrita; relações quantitativas, medidas,

formas e orientações espaçotemporais; o conhecimento das crianças em relação ao mundo

físico e social, ao tempo e à natureza; autonomia das crianças nas ações de cuidado pessoal,

auto-organização, saúde e bem-estar; manifestações de música, artes plásticas e gráficas,

cinema, fotografia, dança, teatro, poesia e literatura; utilização de gravadores, projetores,

computadores, máquinas fotográficas, e outros recursos tecnológicos e midiáticos.

Consideramos que as experiências de aprendizagem tenham sido abordadas nas novas

Diretrizes de forma bastante ampla e genérica. A fim de subsidiar mais concretamente a

elaboração das propostas pedagógicas e a construção de currículos em creches e pré-escolas, as

DCNEI prometem que “a Secretaria de Educação Básica, por meio da Coordenação Geral de

Educação Infantil, está elaborando orientações curriculares, em processo de debate democrático

e com consultoria técnica especializada [...]” (BRASIL, 2010, p. 31). Como parte dessas

orientações, em 2012, o MEC, com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância

(UNICEF), lançou o documento Brinquedos e brincadeiras de creche: manual de orientação

pedagógica, “[...] com a finalidade de orientar professoras, educadoras e gestores na seleção,

organização e uso de brinquedos, materiais e brincadeiras para creches, apontando formas de

organizar espaço, tipo de atividades, conteúdos, diversidade de materiais que no conjunto

constroem valores para uma educação infantil de qualidade” (BRASIL, 2012a, p. 5). A referida

publicação constitui um material rico em sugestões e possibilidades de atividades que

favorecem vivências necessárias para bebês e crianças pequenas nas creches. Cabe considerar

que a implementação das propostas em nosso país exige a aplicação de recursos financeiros

suficientes para que os espaços das creches possam contar com as condições materiais e

humanas necessárias para o trabalho com bebês e crianças bem pequenas, ainda que essa

discussão não tenha sido focalizada no documento. Relativamente recente, a publicação precisa

ainda ser divulgada e estudada no interior dessas instituições.

A definição legal da educação infantil promovida pela Constituição de 88 e pela LDB

de 1996, certamente, foi o passo decisivo para que a educação escolar das crianças de 0 a 5 anos

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fosse assumida pelo Estado. Ao lado desse processo, a construção dos documentos que buscam

desenhar um currículo para a escola da infância representa um grande avanço na educação das

crianças pequenas do nosso país. Pelo caráter mandatório, as Diretrizes se destacam “[...] como

instrumento orientador da organização das atividades cotidianas das instituições de educação

infantil [...]”, como enfatiza Oliveira (2010, p. 1). No entanto, esta autora menciona que a

superação de práticas inadequadas que muitas vezes ainda persistem no interior de creches e

pré-escolas depende do investimento na formação continuada dos professores. Outrossim,

chama a atenção para a formação oferecida nos cursos de Pedagogia, que deve atentar para a

especificidade da educação infantil, especialmente em relação à creche. Nas reflexões finais do

texto em que apresenta as novas Diretrizes, Oliveira escreve:

[...] nossa aposta é pelo grande e estimulante envolvimento dos educadores

que atuam na área na reflexão sobre as práticas cotidianas vividas pelas

crianças nas instituições de Educação infantil e pela busca de formas de

trabalho pedagógico que possam caminhar na direção pretendida. Cabe aos

sistemas de ensino e às instituições formadoras de professores dar-lhes as

melhores condições para essa atuação sensível às novas exigências da área. Se

hoje algumas instituições já se encontram bem avançadas na concretização de

suas propostas de modo compatível com as normativas trazidas pelas novas

Diretrizes, outras instituições podem desde já se envolver em amplo processo

de renovação de práticas, de revolução de representações cristalizadas sobre a

criança, das expectativas acerca do que ela pode aprender. Afinal, não apenas

as crianças são sujeitos do processo de aprendizagem, mas também seus

professores se incluem no fascinante processo de ser um eterno aprendiz, um

construtor de sua profissionalidade. (OLIVEIRA, 2010, p. 14).

As considerações de Oliveira nos levam a discutir a questão da formação inicial dos

professores da educação infantil na atual LDB (Lei nº 9.394/96), uma vez que o

comprometimento desses profissionais com o desenvolvimento de práticas condizentes com as

novas Diretrizes passa, necessariamente, pela sua formação. Sendo a educação infantil

incorporada ao âmbito da Educação Básica pelos marcos legais e tendo a nobre tarefa, expressa

no Artigo 29, de promover o desenvolvimento integral da criança pequena, nossa argumentação

é de que a formação inicial do professor e da professora que atua junto a essa criança deve ter

o mesmo grau de exigência da formação requerida para os outros níveis da educação. Sobre

esse aspecto, retomando as recentes mudanças na atual LDB, o Artigo 62, que versa sobre os

profissionais da educação, recebeu nova redação apenas para inserir um ano a mais no ensino

fundamental, mas não apresentou alterações quanto à formação exigida:

A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível

superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e

institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o

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exercício do magistério na educação infantil e nos 5 (cinco) primeiros anos

do ensino fundamental, a oferecida em nível médio na modalidade normal.

(BRASIL, 2015, p. 37, grifos nossos).

A Lei é ambígua e traz à tona uma velha questão. Determina que a formação dos

professores deve ser efetivada em nível superior, no entanto, no mesmo artigo admite, para os

professores da educação infantil e primeiros anos do ensino fundamental, a formação mínima,

em nível médio. Outra determinação confusa que permanece na atual legislação é o disposto no

artigo 63, inciso I, de que “[...] os institutos superiores de educação manterão cursos formadores

de profissionais para a educação básica, inclusive o curso normal superior, destinado à

formação de docentes para a educação infantil e para as primeiras séries do ensino

fundamental.” O curso Normal Superior foi criado a partir da atual LDB e destinou-se à

formação de professores da Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental. Foi

criado, então, como um curso de formação específica para esses professores e deveria ser

oferecido por Institutos Superiores de Educação, o que nos leva a questionar o lugar dessa

formação, que não é exclusivamente a universidade, mas institutos que não possuem os mesmos

princípios daquela.

Ocorre que o curso Normal Superior, com duração menor que os cursos de licenciatura,

foi, na verdade, uma tentativa aligeirada do Ministério da Educação de oferecer o Ensino

Superior aos professores sem formação, sendo extinto em 2006, no contexto da reforma do

curso de Pedagogia, que, segundo suas diretrizes, “[...] destina-se à formação de professores

para exercer funções de magistério na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino

Fundamental [...]” (BRASIL, 2006b, p. 19). Apenas algumas faculdades particulares continuam

a oferecer o curso Normal Superior e, apesar disso, este ainda é apontado na legislação como

uma alternativa de formação para os professores da Educação Infantil.

A indefinição legal quanto à formação inicial dos professores da Educação Infantil tem

gerado diferenças no que é exigido pelas secretarias de educação dos vários Estados e

Municípios em seus processos de seleção e também abre precedentes para que pessoas sem

qualificação atuem nas instituições como professores. Sobre este aspecto, assevera Kramer

(2006, p. 805):

As resoluções e deliberações estaduais e municipais confrontam-se com a Lei

de Diretrizes e Bases da Educação [...], gerando nos profissionais que

trabalham em creches e pré-escolas incertezas quanto ao que lhes será

exigindo com relação à formação inicial e ao processo de formação

continuada. [...] No caso das creches comunitárias, esta realidade se impõe:

profissionais não habilitados dedicam-se ao atendimento de uma parcela

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significativa da população de 0 a 6 anos, tentando suprir a omissão e

ineficiência do Poder Público.

Diante desse cenário, a questão da formação é consideravelmente preocupante. Os dados

a seguir acarretam ainda mais preocupação. De acordo com o Censo Escolar 2012, o sistema

educacional brasileiro apresenta ainda um déficit expressivo em relação à formação de seus

professores: dos 2.101.408 professores brasileiros, 22% (459 mil) não possuem formação

universitária. Fato igualmente grave é que grande parte desses professores se concentra na

educação infantil. Dos 443,4 mil professores que atuam nessa etapa, 36,4% não chegaram à

universidade. Como já assinalado, a LDB admite a formação mínima no curso de magistério

para o professor que atua na educação infantil. No entanto, ainda há uma significativa

porcentagem de professores que não atende sequer essa exigência, um total de 10% deles.

A formação inicial para atuar com turmas de creche ou pré-escola requer conhecimentos

específicos sobre a criança, exige conhecer as correntes teóricas que abordam o

desenvolvimento infantil em todas as suas dimensões e subsidiam as práticas pedagógicas. A

formação assim entendida exige um nível de qualificação, que, a nosso ver, não pode ser obtida

em nível médio, nem foi alcançado pelos professores com formação no extinto curso de

magistério. Campos (2006) relata um exemplo de como em outros países a educação das

crianças pequenas é levada a sério. Na França, é exigido um alto nível de formação, um curso

similar ao de Mestrado, realizado em dois anos, após a graduação. Em contrapartida, os

professores das crianças têm o mesmo status dos professores do ensino elementar e secundário,

sendo classificados no nível A.

Dessa forma, urge pensar a formação dos professores da educação infantil, que se deve

efetivar por um compromisso legal por parte do MEC e por intermédio de políticas públicas

capazes de assegurar – pelas vias da formação docente –, além do atendimento, a qualidade da

educação da criança pequena. Há que se defender a formação elevada, desenvolvida em nível

superior. Faz-se necessário, portanto, um comprometimento por parte do Estado, que tem o

dever de se comprometer com essa formação, a nosso ver, ainda um tanto relegada.

E quanto aos professores e professoras que já atuam em creches e pré-escolas? A Lei do

Piso (BRASIL, 2008), lei n. 11738, de 16 de julho de 2008, assegura aos docentes que um terço

de sua carga horária de trabalho seja destinado a atividades de formação, planejamento e

preparo de materiais enquanto dois terços devem ser cumpridos em interação direta com os

educandos. Resta questionar: em que localidades isso tem sido garantido? Como têm sido

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pensadas as atividades de planejamento dos professores? Como tem sido organizada a formação

continuada? Os professores têm sido ouvidos em suas necessidades?

1.2 O atendimento às crianças de um a três anos em creches públicas em Manaus

O atendimento educacional à criança de um a três anos no âmbito do poder público na

cidade de Manaus denuncia que a história se repete. O processo é bastante recente, e tem como

precedente uma história de luta, envolvendo conquistas e retrocessos, herança da trajetória da

educação infantil no Brasil, como apresentado no item anterior. Durante muito tempo deu-se

nos moldes do que acontecia em âmbito nacional, cumprindo objetivos e funções diversas no

decurso da história, seguindo padrões de atendimento pautados ora no assistencialismo, ora na

compensação.

Duas pesquisas locais puderam constatar essa realidade. Carvalho (2011) investigou

como se dá a construção do currículo da e na creche, analisando as práticas pedagógicas ali

desenvolvidas. O estudo, que em seu bojo traz algumas reflexões acerca da infância e educação

no Amazonas, revelou que, durante um longo período, o atendimento educacional em creches

foi realizado à margem das políticas públicas educacionais. Segundo a pesquisadora, na década

de 1990, sob a responsabilidade da Secretaria de Estado da Assistência Social e Trabalho

(SETRAB), hoje Secretaria de Estado da Assistência Social (SEAS), foram criadas 13 (treze)

creches que atendiam crianças de zero a seis anos de idade. Nesse atendimento, não havia

exigência de qualificação para os profissionais, o requisito era apenas o nível fundamental ou

médio. A formação para os professores e demais funcionários era realizada mediante parceria

com as Secretarias de Educação e de Saúde. No entanto, o foco das preocupações girava em

torno da higiene e tutela.

Ainda de acordo com Carvalho (2011), após a municipalização do ensino em 1999, essas

creches deixaram de ser responsabilidade do Estado, passando, então, a ser vinculadas à

Prefeitura. A pesquisadora denuncia um processo de descontinuidade, por parte do município,

do serviço realizado pelo Estado, de modo que as creches foram sendo extintas. Uma iniciativa

de caráter não formal nesse período foi o projeto denominado Família Social, em que crianças

ficavam sob os cuidados de mães sociais – mulheres do lar, que recebiam uma ajuda financeira

da prefeitura para este fim. Esse modelo domiciliar e assistencialista de Educação, isento de

compromisso educativo, funcionou até o ano de 2010.

O (re)início da história das creches públicas de Manaus, que remonta ao ano de 2008, é

apontado por Assis (2013), cujo objeto de análise constituiu a política pública de creche em

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Manaus, como direito das mulheres trabalhadoras da sociedade amazonense. Assis descreve

que, com a implantação da Zona Franca de Manaus e consequente absorção da mão de obra

feminina pelo Distrito Industrial, muitos movimentos feministas reclamavam por creches onde

pudessem deixar seus filhos pequenos. As mulheres operárias, lideradas por representantes

sindicais e feministas, passaram a se reconhecer como sujeitos de direito, e a lutar por bens

sociais a que faziam jus, dentre eles a proteção contra a violência, o combate à discriminação

salarial imposta às mulheres, bem como a obtenção de serviços e bens coletivos, estando o

direito à creche aí inserido. Essa luta resultou, a princípio, em algumas creches dentro das

fábricas, distanciadas do poder público e sem nenhum caráter educativo.

A referida pesquisa (2013) informa que a luta travada nesse contexto pressionou o poder

público, servindo de fundamento para que esse segmento educacional fosse inserido como pauta

de política pública na cidade de Manaus. No ano de 2008, foi inaugurada a primeira creche no

âmbito do poder público nesse município. O estudo de Assis (2013, p. 47) afirma que esta

creche pioneira

Nasceu de demanda antiga da luta por creches das mulheres dos diversos

movimentos sociais e comunitários de Manaus. Uma luta travada em

princípio, pelas mulheres industriárias [...] e que, com a diminuição da

prestação dos serviços de creche no DI e na cidade, a procura por instituições

infantis que oferecessem esses serviços se fez latente, chamando atenção dos

políticos concorrentes à Prefeitura Municipal de Manaus, mais

especificamente no ano de 2004.

Face o vagaroso processo de consolidação da creche como responsabilidade do poder

público em Manaus, faz-se necessário discutir os números de atendimento à população da

pequena infância neste município. De acordo com o último Censo do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE), feito em 2010, apenas 18,4% das crianças na faixa de zero a

três anos eram atendidas em todo o país, com grande parte desse percentual na rede privada. O

estado que conta com o maior atendimento nessa faixa etária é Santa Catarina, que, ainda assim,

atende apenas 42% das crianças. A maior parte dos estados atende entre 20 a 30% dessa

população.

O estado do Amazonas encontra-se entre aqueles com mais baixo atendimento,

apresentando “a segunda pior taxa de cobertura em creches de todo o país”, segundo estudo

recente realizado pela Fundação Abrinq5, com informações do Censo do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, e Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios

5 Desafios na infância e na adolescência no Brasil: análise situacional nos 26 estados brasileiros e Distrito

Federal. Fundação Abrinq.

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(PNAD) 2012, entre outros indicadores. Números divulgados por esse estudo apontam uma

defasagem em relação ao número de crianças que frequentam a creche, tanto no estado quanto

na capital, Manaus, que também tem a segunda menor taxa de atendimento: no estado inteiro,

da população total de crianças de 0 a 3 anos (306.083), apenas 20.133 foram matriculadas na

creche, ou seja, 6,58%; na capital, do número total de crianças na mesma faixa etária (134.984),

a matrícula foi de 8.784, representando um percentual de 6,51%. O Instituto Nacional de

Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) divulgou os resultados preliminares do Censo Escolar

2014, apontando dados semelhantes, considerando as matrículas nas redes pública municipal

em creches no estado: na rede municipal foram matriculadas 15.904 crianças de 0 a 3 anos,

contra 5.629 na rede privada. No município de Manaus, as matrículas somaram a quantidade

de 2.995 crianças nessa faixa etária na rede municipal, enquanto que o número na rede privada

superou esse valor, perfazendo um total de 5.145 crianças.

Os dados divulgados pela Fundação Abrinq podem ser confirmados por Mourão (2013),

que coordenou o Censo das Instituições de Educação Infantil do Município de Manaus, um

projeto de iniciativa do Conselho Municipal de Educação (CME), em parceria com a

Universidade Federal do Amazonas, objetivando traçar um perfil do atendimento educacional

às crianças de 0 a 6 anos de idade nesse município, nos setores público e privado. O censo

denunciou um quadro de precarização preocupante, mostrando que o atendimento, além de

insuficiente, está longe de atender aos parâmetros de qualidade estabelecidos pelos documentos

oficiais do Ministério da Educação. Há problemas relativos à insuficiência de oferta e estrutura

física, dentre outros.

Existe um grande número de escolas funcionando sem autorização do CME, inclusive

muitas dessas pertencentes à rede municipal, fato que deve gerar maior preocupação: cerca de

70% das instituições de educação infantil, tanto na rede pública quanto privada, funcionam na

clandestinidade. Das 500 escolas distribuídas nas diversas zonas de Manaus e cobertas pela

pesquisa do Censo, 221 não possuíam autorização do CME para funcionar. Em decorrência

desse fato foram encontradas muitas escolas sem as condições mínimas de funcionamento, em

termos pedagógicos e de estrutura física. Foram descritos problemas de falta de espaço e espaço

inadequado, quando existente. Há escolas funcionando em prédios alugados, cujo espaço não

foi pensado para a criança e suas necessidades. A ausência de brinquedos, parques e outros

recursos pedagógicos também foi denunciada.

Em relação à oferta, “[...] os dados da pesquisa mostraram que em Manaus o

atendimento à Educação Infantil está longe de responder às questões legais e atender à crescente

demanda para a primeira etapa da Educação Básica” (MOURÃO, 2013, p. 159). O estudo

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informa que, em 2010, apenas 2.987 crianças foram matriculadas na rede municipal de ensino,

e infere que neste número não estão incluídas as matrículas feitas em escolas sem autorização

de funcionamento. A autora aponta para a necessidade de políticas públicas com vistas ao

atendimento da educação infantil no setor público, e recomenda, entre outras medidas, a

construção de escolas de educação infantil e ampliação do número de creches. Faz-se necessário

esclarecer que existem turmas de crianças de três anos de idade nos Centros Municipais de

Educação Infantil (CMEIs), mas as crianças menores não são contempladas por vagas nessas

instituições.

Conforme demonstrado, a explicação para o baixo número de crianças atendidas pela

creche no município se deve ao contexto acima descrito, ou seja, à falta de políticas públicas.

Este segmento foi tardiamente abraçado pelo Estado. O momento atual se caracteriza por um

lento processo de ampliação da oferta, fortemente marcado por promessas políticas e carregado

de contradições. Em 2009, a Secretaria Municipal de Educação (SEMED) criou, na sua

estrutura administrativa, a Gerência de creches, com vistas a subsidiar o processo de ampliação

e organização. Em 2013, foram inauguradas duas novas instituições, e a promessa era de que

até o fim do mesmo ano esse número fosse expandido6. Segundo matéria publicada no portal

d24am, no dia 01 de março de 2013, por Couto (2013), o atual prefeito de Manaus, Artur Neto,

inaugurou, neste dia, uma das creches citadas acima, no contexto do seu “plano acelerado de

100 dias de gestão” e afirmou que até dezembro de 2013 seriam construídas mais 54. De acordo

com a matéria, a construção da creche se deu por intermédio da parceria público-privada. Foi

uma iniciativa conjunta da prefeitura e empresários do grupo TV Lar7. O prefeito busca, ainda,

outras parcerias com o governo federal, através do Programa Brasil Carinhoso8.

Em outra matéria publicada no G1 AM por Dias e Dantas (2013), consta que o prefeito

anterior assinou, em 2012, um termo de compromisso para construir 55 creches através do

Programa Proinfância9, e que foram aprovados 110 projetos pelo referido programa, no entanto,

nenhuma delas foi construída na sua gestão. Em campanha política, o atual prefeito prometia

6 Dados colhidos em entrevista informal com a Gerente de creches da Secretaria Municipal de Educação do Estado

do Amazonas (SEMED), no dia 23 de abril de 2013. 7 Grupo de lojas no Estado do Amazonas, liderado pelo empresário José Azevedo. 8 A Ação Brasil Carinhoso, lançada em 2012 pelo governo federal, faz parte do Plano Brasil Sem Miséria, cujo

objetivo é o combate à pobreza das famílias com crianças entre 0 e 6 anos. No que tange à ampliação do acesso à

creche, visa atuar junto à primeira infância de 0 a 4 anos de idade, aumentando o número de matrículas para as

crianças dessa faixa etária pertencentes a famílias beneficiadas pelo Programa Bolsa Família. 9 O Proinfância - Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública

de Educação Infantil foi criado pelo governo federal em 2007, como parte das ações do Plano de Desenvolvimento

da Educação (PDE) do Ministério da Educação. Tem como objetivo central oferecer apoio financeiro ao Distrito

Federal e aos Municípios com vistas a garantir o acesso de crianças à creche e à pré-escola na rede pública.

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um número maior, de 120 ao longo de seu mandato, embora reconheça que a necessidade do

município é de 318 creches, face à demanda da população de 0 a 3 anos. A promessa de

campanha contava com recursos do Programa Brasil Carinhoso, porém, segundo a gerente de

creches do Município, a construção das creches no âmbito desse programa encontrava-se em

processo de licitação.

O interesse local pela expansão do atendimento na creche é decorrente da preocupação

do Ministério da Educação que, reconhecendo o débito do país para com a educação escolar

das crianças de zero a três anos, lançou o Programa Brasil Carinhoso, tendo como meta a

construção de 6 mil creches e pré-escolas até 2014, antecipando recursos do Fundo de

Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da

Educação (FUNDEB), entre outras medidas que visam à ampliação do atendimento. Por ocasião

do lançamento da referida ação, o governo federal assinou com as prefeituras um acordo para a

construção de 1.500 creches em todo o país.

Faria e Aquino (2012) tecem severas críticas quanto à obrigatoriedade da educação

escolar das crianças de 4 a 5 anos e à flexibilização da escolaridade das crianças de 0 a 3 anos

no contexto da Emenda 59 e do novo Plano Nacional de Educação (PNE) 2011-2020, e apontam

que os programas voltados para a creche têm caráter assistencialista. Na referida obra, Aquino

e Vasconcellos (2012) discutem a meta 1 do PNE, que visa “[...] universalizar, até 2016, a

educação infantil na pré-escola para as crianças de quatro a cinco anos de idade, e ampliar a

oferta de educação infantil em creches de forma a atender, no mínimo, cinquenta por cento das

crianças de até três anos” (BRASIL, 2010, p. 8). As autoras chamam a atenção para as

estratégias da referida meta, entre elas a estratégia 1.12, que promete “[...] implementar, em

caráter complementar, programas de orientação e apoio às famílias, por meio da articulação das

áreas da educação, saúde e assistência social, com foco no desenvolvimento integral das

crianças de até três anos de idade” (idem, p. 9-10). Segundo Aquino e Vasconcellos (2012), a

Ação Brasil Carinhoso, que integra ações dos Ministérios da Saúde, do Desenvolvimento Social

e da Educação, se inscreve no disposto nesta meta, configurando-se, pois, como um programa

de caráter assistencialista.

Ações como o Brasil Carinhoso fazem com que a educação e outros bens sociais sejam

vistos pela população a que se destinam como benesse, concedidos por bondade de seus

governantes, e não como um direito assegurado por lei. Isto fica muito evidente, a começar pelo

nome que caracteriza a referida ação. Um país não tem que ser ‘carinhoso’ com seus cidadãos,

antes, deve zelar, por meio de políticas sérias, para que seus direitos sociais sejam respeitados

e garantidos: educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção

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à maternidade e à infância, e assistência aos desamparados (CF/1988, art. 6°). Além disso,

atuando prioritariamente no combate à pobreza, esta ação não tem como perspectiva central a

educação, embora uma de suas vertentes seja a ampliação do acesso à creche. Campos (2008,

p. 3) assevera que incluir a educação infantil em políticas ou programas não é o mesmo que

priorizá-la, e afirma que “[...] as indicações para educação infantil, essencialmente, têm se

localizado no terreno das políticas compensatórias e intersetoriais, destinadas às denominadas

‘populações vulneráveis’.” A autora segue analisando o caráter do plano político que vem sendo

traçado para a educação infantil no Brasil, o qual tem sido pautado em programas transitórios,

ao invés de políticas permanentes, sobre o que afirma:

Programas possuem ações pontuais, não possuem caráter universal e por vezes

são emergenciais. A ênfase em programas é corroborada pelo discurso da

necessidade de se criar ações para combater a pobreza e, nesse sentido, se

associa educação infantil e ações de combate à pobreza nos chamados “grupos

vulneráveis”. (CAMPOS, 2008, p. 3).

Enquanto a ampliação do atendimento à criança de um a três anos10 em Manaus segue

nesse contexto, “cerca de duas mil pessoas esperam por vagas em apenas cinco creches de

Manaus”, de acordo com matéria veiculada pelo Jornal Band Amazonas online, no dia 08 de

janeiro de 2014. A matéria, feita por Rocha (2014), denunciava a dificuldade dos pais em

conseguir uma vaga nas creches construídas até então. No entanto, o noticiário esclarece que a

demanda real é bem maior que duas mil pessoas, considerando que muitos pais não sabem da

existência das creches. Diante dessa realidade, a dificuldade para conseguir uma vaga é grande,

os pais são colocados em uma lista de espera, e passam por um rigoroso processo seletivo que

inclui cadastro, avaliação tendo em vista vários critérios e visita domiciliar que constata o

enquadramento da criança e da família nos critérios exigidos.

Em face dessa conjuntura de ausência de políticas, da falta de reconhecimento ao direito

à educação das crianças pequenas e sua importância, a ampliação das creches em Manaus vem

caminhando a passos lentos. Apesar do discurso político que prometia a construção de 120

creches, apenas 7 novas instituições foram inauguradas entre os anos de 2013 e 2014. Esse

quadro incipiente atende apenas uma pequena parcela das crianças de um a três anos, deixando

à margem a grande maioria, conforme apontado.

Em entrevista concedida pela professora Jacy Alice Grande da Soledade, assessora

pedagógica da Gerência de Creches da SEMED, no dia 17 de dezembro de 2014, obtivemos

10 Embora a creche compreenda a faixa etária de 0 a 3 anos na legislação educacional brasileira, na realidade local,

atualmente, as instituições não abrigam os bebês de 0 a 1 ano.

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dados mais precisos sobre a cobertura e situação do atendimento educacional às crianças de um

a três anos de idade em Manaus hoje. Nas sete creches em funcionamento, foram atendidas, no

ano de 2014, 78411 crianças. Um processo de licitação foi concluído visando à construção de

mais quarenta novas instituições. De acordo com informações da gerência, a ampliação esbarra

em questões burocráticas e em outros fatores, como a resistência de alguns moradores. O

processo de licitação é vagaroso, se dá em meio a entraves burocráticos relativos aos locais de

construção, havendo a exigência de diversos órgãos que fiscalizam a situação dos terrenos.

Além disso, há casos em que moradores de determinado bairro rejeitam a construção da creche,

preferindo que haja no local algum empreendimento de lazer, por desconhecer a importância

desse segmento educacional e por ter a visão historicamente construída de que a creche se

destina aos filhos dos pobres.

Em relação ao aspecto pedagógico, a SEMED informou reconhecer a especificidade do

trabalho na creche, e demonstrou preocupação com as profissionais que estão atuando junto às

crianças, reconhecendo que nem sempre essas possuem formação específica, fato resultante da

lacuna existente nos cursos de graduação em pedagogia, os quais não preparam os futuros

professores para atuar com as crianças pequenas da creche. Nessa direção, no início do

funcionamento de cada creche, profissionais dessa secretaria atuam por uma semana junto às

professoras, a fim de subsidiar seu trabalho. Fomos informados de que se encontra em

elaboração um documento normativo para a creche, uma resolução estabelecendo os critérios

pedagógicos de atendimento. Há também um projeto de formação continuada em andamento,

o Projeto Mediações Pedagógicas, por intermédio do qual são desenvolvidas, com os

pedagogos, sugestões de atividades voltadas às crianças pequenas, e estes, por sua vez, devem

atuar como multiplicadores junto às professoras nas creches.

A Gerência enfatizou o fato de a creche ser um segmento muito recente em Manaus, e

demonstrou preocupação com o aspecto pedagógico, a fim de que o trabalho realizado com as

crianças não se restrinja aos aspectos higiênicos de sanitarismo, por vezes colocado em primeiro

plano. A esse respeito, comentou que, não sendo a educação uma área isolada, os órgãos de

saúde estabelecem normas e critérios para o funcionamento das creches. Em Manaus, por

exemplo, a SEMED conta com o apoio da Secretaria Municipal de Saúde (SEMSA) e segue

normas da vigilância sanitária. Contudo, afirmou que não se pode perder de vista o educar como

11 Se compararmos esse número com os divulgados pela Fundação Abrinq com o Censo Escolar 2014 do INEP, e

a pesquisa de Mourão (2013), perceberemos facilmente que há discrepâncias. Este fato nos leva a pressupor que

os números divulgados não se referem às crianças atendidas somente em creches, mas abarca todas as crianças de

três anos matriculadas em escolas de Educação Infantil (CMEIs), que atendem também a pré-escola.

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função precípua da educação infantil, por isso a necessidade de aliar os dois aspectos, cuidar e

educar, a fim que as creches de Manaus “não sejam depósitos de crianças, que não se percam

em discursos assistencialistas e paternalistas, mas sejam creches de referência, tratando com

cuidado, amor e educação.”12 A respeito da demanda reprimida, afirmou ser esta muito grande,

de maneira que a gerência de creches da SEMED, preocupada também com essa questão, vem

discutindo formas de ampliar o atendimento, entendendo a creche não apenas como direito da

mãe trabalhadora, mas, sobretudo, como direito da criança.

No contexto de ampliação em que se encontra a Educação Infantil na etapa da creche

no município de Manaus, os noticiários que abordam o assunto têm, com frequência,

apresentado a concepção de algumas pessoas envolvidas, bem como da comunidade sobre o

papel da creche, qual seja, o de que a mesma é (apenas) um lugar onde as mães podem deixar

seus filhos pequenos para poderem trabalhar (COUTO, 2013; SEMED/MANAUS, 2013,

TORRES et al., s.d.). Certamente, em conformidade com as Diretrizes Curriculares Nacionais

para a Educação Infantil (DCNEI), esta é uma função importante dessa instituição, que diz

respeito à função política das creches e pré-escolas, a qual permite que a mulher ocupe um lugar

no mundo do trabalho, sem precisar abrir mão do seu direito à maternidade, executando na

sociedade outras atividades, além das tarefas domésticas. No entanto, aliadas à função política,

encontram-se as funções social e pedagógica, igualmente relevantes: a função social sendo

aquela para a qual creches e pré-escolas tornam-se espaços de partilha, do cuidado e da

educação das crianças, ao lado da família, e a função pedagógica entendida como a que

possibilita a convivência entre crianças e adultos, a ampliação de saberes, conhecimentos e

primeiras descobertas do mundo infantil.

Para que, de fato, a escola de educação infantil possa cumprir suas funções, as DCNEI

(2009) a caracterizam como um espaço institucional educativo, que tem o dever de cuidar e

educar as crianças de forma indissociável, em conjunto com a família. A natureza expressa

nessa tarefa coloca a especificidade dessa instituição, que, por isso, se diferencia de outras tidas

como espaços não formais de educação. Assim, creches e pré-escolas devem ser vistas como

lugares onde profissionais qualificados se preocupam em promover o desenvolvimento infantil

desde a mais tenra idade. Nessa direção, o documento insta o Estado a “[...] assumir a

responsabilidade de torná-las espaços privilegiados de convivência, de construção de

identidades coletivas e de ampliação de saberes e conhecimentos de diferentes naturezas”

(BRASIL, 2009b, p. 5).

12 Jacy Alice Grande da Soledade, Assessora Pedagógica da Gerência de Creches da Secretaria Municipal de

Educação de Manaus.

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Ao considerar as funções que a creche deve desempenhar no desenvolvimento infantil,

em especial a função pedagógica, fica evidente a importância de pesquisas que acompanhem

esse processo, que investiguem a especificidade do fazer pedagógico na creche. É preciso olhar

para o que se passa no interior dessas instituições, para as práticas pedagógicas estabelecidas

no cotidiano onde convivem, por um período considerável do dia, adultos e crianças bem

pequenas. Nesse sentido, justificamos a pertinência de nossa pesquisa, a qual se inscreve no

contexto acima descrito, e cujo objeto de investigação é constituído pelo desenvolvimento da

linguagem oral. Das diferentes motivações que nos levaram à pesquisa, destacamos, aqui, o

desejo de contribuir com a educação dos pequenos que, sendo sujeitos históricos e sociais, têm

direito a um ambiente educativo que lhes proporcione o desenvolvimento de suas capacidades

humanas, por intermédio de diferentes aprendizagens, próprias do período inicial de vida em

que se encontram.

1.3 O cenário da pesquisa

A seguir, apresentamos o cenário em que ocorreu nossa pesquisa, lócus escolhido que

permitiu visualizar crianças e adultos em interação, e que constituiu ponto de partida para

nossas reflexões teóricas. Na descrição desse espaço e da comunidade na qual está inserido,

apresentamos, também, um breve perfil dos sujeitos participantes: crianças entre um e dois anos

de idade pertencentes ao Maternal I e suas professoras. A fim de auxiliar na descrição,

mostraremos, no seu decurso, alguns registros fotográficos feitos por nós (acervo pessoal de

pesquisa), no intuito de oferecer uma visão mais clara desse cenário.

1.3.1 A Creche Municipal Maria Ferreira Bernardes

A Creche Municipal Maria Ferreira Bernardes está localizada na Zona Norte da cidade

de Manaus, dentro da comunidade Fazendinha, bairro não oficial, situada no bairro Cidade

Nova. A comunidade Fazendinha surgiu entre os anos de 2002 e 2004, no contexto das

ocupações irregulares que vêm ocorrendo na cidade nas últimas três décadas, as chamadas

invasões, e possui hoje uma população de 6.052 moradores. A localidade se insere no problema

da ocupação desordenada na cidade de Manaus, consequência do modelo de desenvolvimento

e expansão que provocou a urbanização acelerada nesse município (ASSAD, 2006). Ao discutir

o problema das invasões em Manaus, Assad (2006, p. 7) indica que “[...] segundo dados da

Secretaria de Estado de Terras e Habitação nos anos de 2002 e 2003 ocorreram mais de 100

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novas ocupações no perímetro urbano”, e afirma que isto revela ausência de políticas públicas

de habitação e uma espécie de segregação da população residente nesses espaços.

Como ocorre comumente nesses casos, a área apresenta problemas de infraestrutura,

segurança, falta de saneamento básico e serviços públicos essenciais como escolas, creches,

postos de saúde e delegacias, dentre outros. É perceptível o pouco desenvolvimento existente

na comunidade, que conta apenas com uma creche municipal, uma escola estadual e um posto

de saúde. Os moradores dispõem dos serviços públicos essenciais como água, luz elétrica,

transporte público. No aspecto econômico, são encontradas algumas empresas e fábricas de

pequeno porte, ao lado de uma área comercial que compreende lojas, mercadinhos, padarias,

drogarias e comércio popular de rua.

A seguir, o mapa dos bairros de Manaus, separados por zonas geográficas. A

comunidade Fazendinha está situada no bairro Cidade Nova (nº 50), na zona norte da cidade,

situada na área amarela do mapa.

Mapa 1 - Bairros de Manaus, separados por zonas geográficas.

Zona Norte (Amarelo); Zona Leste (Azul-escuro); Zona Sul (Vermelho);

Zona Centro-Sul (Cor-de-laranja); Zona Oeste (Azul-claro); Zona Centro-Oeste (Verde)

Fonte: Bairros de Manaus. Ver: http://www.camilomarcelino.com/bairrosmanaus/

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A Creche Municipal Maria Ferreira Bernardes tem história bastante recente nessa

comunidade, assim como é novo o processo de implantação das creches em Manaus. Vale

ressaltar sua importância no contexto descrito anteriormente, de ampliação do atendimento

educacional às crianças de até três anos de idade. Representando a segunda creche criada nesse

âmbito, foi inaugurada em março de 2013, iniciando suas atividades em 02 de abril do mesmo

ano, respaldada legalmente pelo Ato de criação N° 2.209/2013 P.M.M. Juridicamente, pertence

à Divisão Distrital Zonal – DDZ IV (Zona Norte)13, da Secretaria Municipal de Educação da

Prefeitura de Manaus. Em 2014, ano em que estivemos realizando a pesquisa, a creche atendeu

a 58 crianças, oriundas da comunidade e de bairros da zona norte da cidade.

A construção da creche, como já mostramos anteriormente, foi feita por um grupo de

empresários locais, conforme noticiado por um dos jornais que faziam a cobertura do evento de

inauguração: “A obra não teve custo aos cofres públicos, porque foi construída pelo grupo TV

Lar em decorrência de uma Medida Compensatória. Em seu discurso de inauguração, o prefeito

explicou que fortalecerá as parcerias público/privadas para construção de creches.”14 Por conta

desse fato, a creche recebeu o nome da avó do fundador daquele grupo – Maria Ferreira

Bernardes.

Destacando-se em meio às humildes construções da Comunidade Fazendinha, no alto

da rua de mesmo nome, encontramos a Creche Municipal Maria Ferreira Bernardes com sua

fachada de azulejos vermelhos e demais paredes cobertas de azulejos marrons, imitando

tijolinhos à vista. Ocupando uma área de 623, 81 m², possui boa estrutura física, contendo áreas

de administração (diretoria/secretaria, sala de professores), serviços (cozinha, refeitório,

lavanderia, depósitos, banheiros, sala de enfermagem e lactário), espaços de convivência (pátio

e um pequeno anfiteatro), cinco salas de referência, e estacionamento.

13 Em conformidade com a estrutura organizacional da SEMED, as escolas e creches municipais são distribuídas

e gerenciadas por zonas distritais (DDZs). Essas escolas estão distribuídas em 6 (seis) zonas, cada uma responsável

por uma área da cidade composta por bairros, sub-bairros e comunidades. 14 Fonte: acritica.com. Ver: http://acritica.uol.com.br/manaus/Manaus-ganha-creche-Amazonia-Amazonas-

Manaus-Prefeitura_0_874712592.html?print=1

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Fotografia 1 - Fachada da creche Fotografia 2 - Muro da creche, com vista da rua

de acesso e entorno da comunidade

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014. Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

Seu acesso é feito por um grande portão eletrônico de ferro com grades azuis, que possui

um sistema de segurança com campainha e interfone, liberado apenas ao acionar um botão

localizado no interior do prédio. Entrando por esse portão, na lateral direita vemos o

estacionamento, utilizado por todos os funcionários. Seguindo em frente há uma porta que

permite a entrada propriamente dita. Entrando por ela visualizamos o pátio, com duas casinhas

de brinquedo, cadeiras encostadas nas paredes, um bebedouro e alguns murais. Mais à frente,

já na área gramada, há uma pequena construção que imita um anfiteatro, local que pode servir

para expressões plásticas e dramáticas das crianças, mas nunca utilizado, em razão de não ser

coberto e pegar muito sol, segundo algumas professoras.

O pátio comunica-se com diferentes espaços, é uma área central rodeada por quatro das

cinco salas de referência15 existentes: duas de Maternal II (crianças de 2 a 3 anos) e duas de

Maternal III (crianças de 3 a 4 anos). É um espaço de convivência, de encontro e interação entre

as crianças, onde acontece a entrega e espera das crianças pelos pais, brincadeiras, festas e

programações da creche. Nessas ocasiões, marcadamente nas datas comemorativas, uma caixa

de som, músicas e enfeites dão o tom festivo ao local. O pátio vira festa. Em suas paredes

existem alguns murais expondo figuras, cartazes e frases em letreiros. São painéis, em geral

produzidos pelos adultos, que também seguem o ritmo das datas comemorativas.

As quatro salas de referência que se encontram ali têm o espaço dividido em sala de

atividades, sala de repouso, banheiro e solário. São salas pequenas, não comportam um número

grande de crianças. O mobiliário e materiais são compostos por mesas, cadeiras, estante com

brinquedos, alguns livros infantis e armário (com materiais diversos como lápis, giz colorido,

15 Denominação utilizada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009b).

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papel, jogos etc.). Na sala de repouso há colchonetes e aparelhos de TV e DVD. No banheiro

existe uma bancada grande com banheiras, trocadores, produtos de higiene e limpeza, além de

vaso sanitário pequeno, adaptado ao tamanho das crianças. Nas paredes, lista com nomes das

crianças, cartaz do tempo, cartazes com letras, frases e pequenos textos, régua que mede a

altura, itens indicadores da presença de uma cultura escolar, que marca as instituições de

educação infantil em geral.

Fotografia 3 - Estacionamento à frente Fotografia 4 - Porta de acesso

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014. Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

Fotografia 5 - Pátio Fotografia 6 - Pequeno anfiteatro

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014. Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

À esquerda da porta de entrada há um corredor onde encontramos a sala da direção, um

banheiro de adultos e a sala de enfermagem. No final desse corredor, à esquerda, temos o

refeitório dispondo de três mesas compridas com banquinhos acoplados, onde são servidas as

refeições das crianças de 2 a 4 anos, a cozinha e a sala de professores, onde são guardadas as

cadeiras de alimentação das crianças menores, de 1 a 2 anos. À direita fica localizado o lactário,

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uma sala de refeição para as professoras, e a sala de referência do Maternal I (crianças de 1 a 2

anos), turma diretamente observada em nossa pesquisa.

Na parte de trás, de frente para uma área gramada que rodeia todo o espaço da creche,

encontramos a entrada da cozinha com uma área de serviço, três depósitos (material de limpeza,

papelaria e utensílios), dois banheiros de adultos e uma lavanderia. A área gramada é extensa e

ensolarada, ali são colocados varais com roupas de cama e banho para secar, e, como o pátio,

também é um espaço de convivência e interação. Em algumas ocasiões, as professoras fazem

piquenique com as crianças, e promovem banhos coletivos em piscinas de plástico, momentos

de alegria muito apreciados pelos pequenos.

Fotografia 7 - Corredor mostrando sala da

direção (porta aberta) e sala de enfermagem Fotografia 8 - Refeitório e parte da cozinha

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014. Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

Fotografia 9 - Solários Fotografia 10 - Área gramada

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014. Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

Conforme os registros fotográficos apresentados, a creche possui uma infraestrutura

muito boa. As instalações são novas e percebemos que existe preocupação em relação à

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conservação e limpeza. O ambiente, limpo e arejado, é capaz de despertar prazer estético nas

crianças e adultos que ali convivem por um longo período do dia. Todas as salas de referência

e demais dependências são climatizadas, proporcionando conforto e bem-estar.

Condicionadores de ar são equipamentos essenciais se considerarmos o clima da região,

bastante quente durante todo o ano, chegando, em algumas épocas, a 38º C em média. Os

equipamentos, materiais, mobília e recursos pedagógicos, em sua maioria, apresentam boa

funcionalidade, são dispostos de maneira a facilitar seu uso com segurança. Os espaços

existentes constituem locais seguros16, garantindo a integridade física das crianças e adultos.

Fato que corrobora nesse sentido é o portão de entrada, que permanece trancado, aberto somente

no interior do prédio, mediante identificação.

Existem, no entanto, alguns aspectos que merecem atenção. As salas de referência,

como já mencionamos, são pequenas, especialmente a sala do Maternal I (sobre isso falaremos

detalhadamente mais adiante). O espaço do banho é constituído por banheiras com torneiras,

uma espécie de cuba, dispostas em uma bancada de mármore. Esse é um item que merece

destaque. Para as crianças menores, de 12 até 18 meses, o local é apropriado, no entanto, para

as crianças maiores, consideramos inadequado, pelo tamanho e peso das crianças e em razão

de, socialmente, não utilizarem banheiras em suas casas, mas chuveiro, o que seria o ideal.

Algumas professoras se queixam de dores nas costas em virtude de ter que levantar as crianças

até a bancada. Para facilitar o trabalho, em algumas salas foi improvisada uma escada, que

possibilita a subida pela própria criança. Concernente aos materiais que devem compor o

ambiente nas salas de educação infantil, sentimos falta de um espelho, importante para o

conhecimento corporal da criança (BRASIL, 2012a).

Os espaços externos, disponíveis para a brincadeira, são poucos. Em se tratando de uma

instituição de educação infantil como a creche, podemos dizer que alguns são indispensáveis.

Não existe parquinho, área de terra, ou caixa de areia, espaços próprios para viver a infância. É

inexistente também uma área molhada, com chuveiros, torneiras e tanques baixos, para as

brincadeiras com água. Durante o período em que permanecemos na creche, em algumas

ocasiões de piquenique e banhos em piscinas de plástico na área gramada, conversamos com a

diretora sobre isso e sugerimos, enfatizando que a creche dispõe de uma área externa

privilegiada, que as brincadeiras e contato com a água poderiam ser mais frequentes, uma vez

que propiciam novas experiências e favorecem a ampliação dos contatos com o mundo. A

16 Os termos prazer estético, boa funcionalidade e locais seguros que utilizamos, tomamos de empréstimo do texto

de Becchi; Bondioli e Ferrari (2004): Escrever um projeto pedagógico da creche saudável, em que esses termos

são empregados como indicadores de qualidade nas instituições de educação infantil na Itália.

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publicação “Brinquedos e brincadeiras de creches”, do Ministério da Educação (BRASIL,

2012a), traz consigo essas indicações.

Reconhecemos a curta trajetória da história das creches em Manaus, bem como o tempo

de funcionamento da creche em questão. É tudo muito recente, muitas coisas estão ainda em

processo de construção, organização e aquisição. Em momentos de conversa com a diretora,

falávamos sobre isso. Ao longo de nossas observações, íamos apontando aquilo que

percebíamos. Vale ressaltar, aqui, o empenho e esforço da mesma no sentido de buscar

preencher essas lacunas junto à Gerência de Creches da SEMED.

Em relação às questões concernentes ao espaço, o processo de construção do prédio

evidencia certa negligência quanto às orientações dos documentos oficiais (BRASIL, 1998b;

2006a; CAMPOS; ROSEMBERG, 2009), os quais estabelecem normas quanto ao tamanho das

salas, composição dos espaços e equipamentos. Tomando como exemplo o espaço do banho, a

concepção adotada parece advinda do senso comum, de que creche é um lugar frequentado por

bebês, que são banhados em banheiras, pensamento que não considera também a presença de

crianças maiores. O mesmo acontece quanto ao tamanho da sala destinada às crianças do

Maternal I, de 1 a 2 anos. Parece que a ideia é a de que, quanto menores forem as crianças,

menos espaço necessitam, quando sabemos ser exatamente o oposto. Além de ser a menor de

todas as salas, é a única que não possui solário.

Abaixo apresentamos o quadro de funcionários, das pessoas que atuam direta ou

indiretamente junto às crianças nesse espaço que, como vimos, no que respeita à infraestrutura,

apresenta algumas contradições.

Quadro 1 - Funcionários da Creche Municipal Maria Ferreira Bernardes no ano de 2014.

FUNCIONÁRIOS QUANTIDADE

Gestora 01

Pedagoga 01

Professoras 14

Técnico em enfermagem 01

Auxiliar administrativo 01

Cozinheira 01

Auxiliar de cozinha 01

Auxiliar de serviços gerais 03

TOTAL 23 funcionários

Fonte: Instituição pesquisada, 2014.

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A creche funcionou, no ano de 2014, em regime de horário integral, de 7h às 16h. Pelo

número de salas (05) e quantidade de professoras apontado no quadro acima (14), encontramos

uma situação privilegiada. Quando começamos a pesquisa, em maio/2014, havia duas

professoras17 por sala, sendo que, mais tarde, a diretora conseguiu junto à SEMED mais uma

profissional, passando então a atuar três professoras em cada turma de crianças. Foram

atendidas, neste ano, 58 crianças assim distribuídas: 07 no Maternal I (1 a 2 anos); 24 em duas

turmas de Maternal II (2 a 3 anos); 27 em duas turmas de Maternal III (3 a 4 anos). Dessa forma,

a relação entre o número de professoras e o número de crianças encontrava-se bem acima do

recomendado pelo Parecer CNE/CEB Nº 17/2012, que determina essa proporção (de 0 a 1 ano:

6 a 8 crianças por professor, e de 2 a 3 anos: 15 crianças por professor), fato que consideramos

bastante positivo.

No contexto do que mencionamos sobre o pouco tempo de funcionamento dessa

instituição, razão pela qual alguns aspectos encontram-se em processo de construção e

organização, está a Proposta Pedagógica, ainda não elaborada. Em conversa com a diretora e a

pedagoga, as mesmas afirmaram reconhecer essa necessidade, planejando sua elaboração para

o corrente ano (2015). A fim de orientar o trabalho pedagógico nas instituições de educação

infantil em Manaus, a equipe responsável da SEMED, composta por profissionais da educação,

elaborou, em 2012, a Proposta Pedagógico-Curricular de Educação Infantil. A referida

proposta, em consonância com as DCNEI (BRASIL, 2009b) e demais publicações legais, vem

oferecendo suporte para o planejamento do trabalho pedagógico na creche. Além disso,

pensando mais especificamente no trabalho com bebês e crianças bem pequenas, a mesma

equipe organizou o Caderno de Orientações Pedagógicas - Fase Creche, buscando “[...] fornecer

subsídios teórico-metodológicos que promovam o desenvolvimento e a aprendizagem mediante

práticas educativas condizentes às [com as] crianças de 0 a 3 anos de idade [...]”. (SEMED, s.d.,

p. 9).

Ainda com vistas a orientar o trabalho na educação infantil, e, mais recentemente, na

creche, a SEMED, por intermédio da Divisão de Desenvolvimento Profissional do Magistério

(DDPM), promove encontros de formação continuada para gestores, pedagogos e professores

que atuam nas creches e pré-escolas públicas de Manaus. Não pretendemos discutir, nesse

momento, a questão da formação dos professores de crianças pequenas, em especial das

professoras que foram sujeitos da nossa pesquisa. Faremos isso mais adiante. Por ora, nos

interessa situar o lócus da investigação, em seus diferentes e variados aspectos.

17 Não compreende professora e auxiliar; são, de fato, duas professoras. Na turma do Maternal I havia três

professoras desde o início.

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Nessa direção apresentamos, a seguir, a turma diretamente observada, o Maternal I,

traçando um breve perfil das crianças e professoras. Mostraremos, também, os espaços da sala

e materiais ali existentes.

1.3.2 O Maternal I: seus atores, espaços e materiais

O quadro seguinte expõe informações concretas sobre as crianças do Maternal I (nomes,

datas de nascimento e idades em março18 de 2014), dados colhidos nas fichas de matrícula,

cadastro mantido pela secretaria. Optamos por utilizar os nomes reais das crianças, tomadas por

nós como sujeitos da pesquisa, cada uma possuidora de identidade e singularidade. Obtivemos,

junto aos pais, autorização para revelar os nomes e imagens das crianças. Adotamos a mesma

concepção em relação às professoras, que também autorizaram o uso de seus nomes

verdadeiros, bem como à diretora da creche, que consentiu em usarmos o nome real da

instituição.

Kramer (2002) discute algumas questões de natureza ética nas pesquisas com crianças:

os nomes verdadeiros; as imagens; a devolução dos achados de campo. Para a autora, essas

questões devem ser tratadas pelo pesquisador de acordo com o referencial teórico que utiliza:

“Quando trabalhamos com um referencial teórico que concebe a infância como categoria social

e entende as crianças como cidadãos, sujeitos da história, pessoas que produzem cultura, a idéia

central é a de que as crianças são autoras, mas sabemos que precisam de cuidado e atenção”

(KRAMER, 2002, p. 42). Sobre revelar os nomes, enfatiza que as pesquisas de natureza

qualitativa exigem uma narrativa direta, surgindo daí a necessidade de citar nomes. Questiona

sobre o uso dos nomes e das imagens, no caso da devolução dos dados representar algum tipo

de risco para as mesmas, e sugere, neste caso, que sejam usados nomes fictícios, fato que não

se aplica à nossa pesquisa. Além disso, utilizamos a fotografia como um recurso metodológico,

sobre o que a autora também reflete, afirmando que poderia haver uma contradição entre não

revelar os nomes e exibir as imagens.

Voltemos à apresentação dos nossos pequenos sujeitos. A turma era composta,

inicialmente, por 10 crianças, mas houve desistência de 3, restando apenas 7, sendo 3 meninas

e 4 meninos. Quando iniciamos a pesquisa, em março de 2014, as crianças tinham entre 1 ano

18 Mês em que iniciamos a pesquisa na creche.

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e 1 mês a 1 ano e 11 meses. Crianças pequenas19, ou pequenininhas, constituíram, pois, sujeitos

de nossa pesquisa.

Quadro 2 - Nomes das crianças do Maternal I da Creche Municipal Maria Ferreira Bernardes, por data

de nascimento e idades, em março de 2014.

Nomes das crianças

Datas de nascimento

Idades em março de 2014

Arthur Guilherme Silva de Souza

05/04/2012

1 ano e 11 meses

Fernanda da Santa Cruz Silveira

27/01/2013

1 ano e 2 meses

Isadora Liz Lima da Silva

12/11/2012

1 ano e 4 meses

Kauã Souza de Vasconcellos Dias

27/10/2012

1 ano e 5 meses

Letícia do Rosário Neiva

18/10/2012

1 ano e 5 meses

Miguel Monteiro Cardenes

21/09/2012

1 ano e 6 meses

Samir Cavalcante Lima de Lira

15/02/2013

1 ano e 1 mês

Fonte: Instituição pesquisada, 2014.

Nas fichas de matrícula conseguimos outros dados, referentes à situação familiar,

profissão dos pais, moradia e situação socioeconômica. Quase todas as crianças vivem com os

pais (pai e mãe), com exceção de uma, que vive com a mãe e a avó. As profissões dos pais são

variadas: serviços gerais; doméstica; professora; motorista; auxiliar administrativo; acadêmico

de medicina. Todas as mães são mulheres que trabalham fora de casa, sendo esse um dos

critérios utilizados pela SEMED para a matrícula. A prioridade é para as crianças filhas de mães

trabalhadoras de menor renda, que residem na comunidade onde a creche se localiza.

Percebemos que, no atendimento educacional à criança pequena, mais que a perspectiva do

direito da criança, ainda predomina a visão histórica que marcou a origem das creches e pré-

escolas no Brasil, como apoio à mulher que trabalha20.

19 O termo criança pequena será utilizado neste trabalho conforme a proposição de Vigotski (2001, 2012b). Ao

falar sobre as diversas idades do ser humano, o autor utiliza o termo Niño de edad temprana (criança de idade

inicial) para referir-se à criança na faixa etária de 0 a 3 anos. A expressão é também bastante utilizada por autores

contemporâneos, brasileiros e italianos, referências na educação infantil, dentre eles: Mello (2005, 2007, 2010);

Faria (1999); Barbosa (2006, 2010); Edwards; Gandini; Forman (1999); Rabitti (1999); Bondioli; Mantovani

(1998). 20 Em 1943, a creche foi inserida no âmbito da legislação brasileira através da Consolidação das Leis do Trabalho

(CLT). Determinava esta lei que as empresas com mais de 30 empregadas com idade superior a 16 anos deveriam

dispor de local apropriado onde as empregadas pudessem ter seus filhos guardados no período de amamentação.

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Em relação à moradia, três crianças moram próximo da creche, as outras quatro residem

um pouco mais distante, mas nas proximidades. As condições das moradias, em geral são boas;

as casas, a maioria alugadas, possuem estrutura adequada, contando com os serviços básicos de

água, luz e urbanização. O ganho mensal das famílias compreende uma média de três salários

mínimos, somada a renda do casal. A gestora da creche teve a oportunidade de visitar a casa de

cada família, procedimento que faz parte do processo de seleção para a matrícula das crianças,

uma vez que não há vagas suficientes para todos. De acordo com a gestora, os pais preenchem

um cadastro solicitando a vaga, e, posteriormente, a visita é realizada para constatar a

necessidade, com base nos critérios estabelecidos.

Passemos ao perfil das três professoras que atuavam no Maternal I em 2014.

Quadro 3 - Nomes das professoras do Maternal I da Creche Municipal Maria Ferreira Bernardes, por

data de nascimento, estado civil, formação e situação jurídica de trabalho, em 2014.

Nome Data de nascimento e

idade em março de

2014

Estado

civil/maternidade

Formação Situação

jurídica de

trabalho

Creuza Neri

Saldanha Evangelista

15/03/1965

49 anos

Casada sem filhos

Normal

superior

Efetiva

Maria Cristiane

Corrêa Neves

19/09/1975

39 anos

Casada com filhos

Normal

superior

Efetiva

Valmirene Nilo

Vasconcelos

12/11/1968

46 anos

Casada com filhos

Pedagogia

PS21

Fonte: Instituição pesquisada, 2014

Alguns dados que possibilitaram desenhar o perfil das professoras, além dos colocados

no quadro, obtivemos em entrevista individual. As três professoras possuem formação superior,

na área requerida para atuar com a educação infantil. Creuza e Cristiane cursaram o Normal

Superior e Valmirene é formada em Pedagogia. As três têm idades aproximadas, e tempo de

serviço superior a dez anos na educação. Creuza e Valmirene atuam há dez anos com a educação

infantil e Cristiane há quatro. Apesar de todas possuírem experiência anterior na educação

21 Processo seletivo, uma forma de contrato temporário.

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infantil, somente Valmirene já havia atuado como professora de creche, antes do trabalho atual.

Creuza e Cristiane só haviam atuado anteriormente com a pré-escola.

Abaixo, uma apresentação das professoras por elas mesmas, contando um pouco de suas

trajetórias na educação, e da experiência de estar na creche.

“Comecei a dar aula aos 16 anos de idade em uma época em que educação infantil era

amontoar um monte de crianças de 3 a 5 anos em uma sala só pra uma professora cuidar. Foi

cruel, mas sobrevivi, acho que porque sempre esperei que as coisas melhorassem, sempre fui

otimista. Como amava as crianças e tinha jeito para cantar e dançar, fiquei na educação

infantil em escolas particulares por quase dez anos, o que de certa forma me fez tentar fazer

meu melhor quando fui para a escola pública, pois as [diferenças entre as] realidades das

escolas públicas e particulares são enormes. Mas voltando ao meu fazer pedagógico, me virei

até razoavelmente bem na SEMED, fiquei como alfabetizadora por oito anos e gostava demais,

porém adquiri calos nas cordas vocais pelo mau uso da voz e tive que me afastar por uns meses,

onde notei o sofrimento de quem é readaptado. Lutei e consegui voltar à sala de aula com os

pequenos de 4 a 5 anos, como comecei [como no início] [...]. Agora estou na creche, e o que

aprendi com os bebês? Bem, eles não são só coisinhas fofas, que pegamos e levamos para lá e

para cá, eles são pessoas em formação, e precisam que nós, adultos, saibamos que o que

fazemos, dizemos a eles, vai ficar dentro deles e pode ajudá-los a serem pessoas melhores ou

piores e isso é um problema, pois a maioria dos adultos não se apercebe disso e deixa marcas

negativas nas crianças. Não era conhecedora disso até vir para a creche, então infelizmente

não posso esperar que pais, funcionários, saibam disso, porém é meu dever falar a eles e a

qualquer pessoa sobre isso. Fiquei mais atenta à maneira como ajo e como outras pessoas

agem com crianças de 1 a 3 anos. Como estou agora? Diria que mais feliz. Por que feliz?

Porque não importa como estou quando amanhece, se cansada, triste, magoada, quando chego

na creche e vejo essas pessoinhas sorrindo, levantando os braços pra mim e até me chamando

de mãe, tudo fica melhor, e me sinto como se fosse o melhor dia da minha vida. Esse é meu

segredo, de 50 anos ter uma cara de 30, corpinho de 25 e cabeça de 20 (risos). Não conta pra

ninguém.” (Creuza)

“Estou na SEMED há 19 anos, já passei por todas as turmas, da educação infantil ao quinto

ano. A creche está sendo uma experiência muito boa, diferente de tudo que imaginei na área

da educação, principalmente por aprender tanto com pessoas tão pequenas. Aprendi o quanto

eles são espertos e já entendem tudo desde bebês, inclusive como manipular um adulto. Aprendi

a ser mais humana e carinhosa, eles precisam disso. Aliás, todos nós. Infelizmente, no Brasil,

o governo não dá o devido valor à educação. Sonho com escolas bem estruturadas, onde

possamos colocar em prática o que aprendemos. Apesar de tudo, o que nos motiva é pensar

que essas crianças não têm culpa e precisam do nosso melhor.” (Cristiane)

“A opção de ingresso ao Magistério foi uma escolha movida por impulso, já que se mostrou

como uma proposta de curso profissionalizante concomitante ao Ensino Médio. No decorrer

do curso, a partir de experiências nos estágios, optei por permanecer na profissão graças ao

vínculo e afeição obtidos, apesar de inicialmente não saber da vocação como educador. No

entanto, apesar de sentir prazer ao ensinar, o educador passa por algumas frustrações que

infelizmente são inerentes ao comportamento humano. Contudo, acredito que apesar de ter

sido uma profissão por acaso, é uma carreira que aprendi a amar, e que me motiva todos os

dias. Apesar de toda a minha experiência ter sido na educação infantil (10 anos), sendo que

desse tempo 6 anos foram na creche, somente em 2014 atuei com o Maternal, com crianças

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de um a dois anos de idade, fase em que os pequenos estão em pleno desenvolvimento motor,

cognitivo e social. Foi uma experiência enriquecedora, pois amo minha profissão e percebi

que tenho aptidão para lidar com crianças (bebês). E me sinto honrada por exercer um papel

digno na sociedade e que precisa ser mais valorizado por todos.” (Valmirene)

A escolha das professoras para trabalhar na Creche Maria Ferreira Bernardes foi feita

com a participação da gestora. Por ocasião da inauguração, a SEMED publicou um anúncio,

disponibilizando vagas para professoras da rede municipal que desejassem atuar na mesma.

Algumas professoras se apresentaram, outras foram convidadas, mediante análise do perfil para

atuar com crianças pequenas. Em 2014, inicialmente, apenas Creuza e Cristiane trabalhavam

com o Maternal I. Posteriormente, a gestora sentiu necessidade de aumentar o número de

professoras por sala, de duas para três, momento em que Valmirene foi chamada. As três

profissionais relataram gostar de trabalhar na creche. Trabalhavam juntas, combinando e se

revezando nas atividades de trocas de fraldas, banhos, alimentação, ninar, passear, brincar e

outras, que envolvem a rotina da creche. Com apenas sete crianças na turma, partilhavam de

uma situação privilegiada em relação à proporção de crianças por professora. Havia

praticamente duas crianças para cada uma, quando a determinação legal é de seis a oito.

A sala do Maternal I, como já mencionamos, é bem pequena, a menor de todas na creche.

De fato, não abrigaria mais que 10 crianças em seu interior, especialmente na idade de 1 a 2

anos, período em que as crianças pequenininhas necessitam de espaço para movimentar-se

livremente. A sala é assim dividida: espaço de atividades22, forrado com um tapete alfabético

emborrachado, contendo um pequeno armário e duas caixas de brinquedos. Na janela, persiana

colorida em tons suaves, e, nas paredes, um quadro branco na altura das crianças e desenhos de

emborrachado; fraldário, com bancada de mármore e banheiras acopladas, e dois vasos

sanitários pequenos para criança. Na bancada ficam dispostos materiais de higiene e limpeza,

além de trocadores. Além das banheiras, na bancada encontramos um chuveiro sobre uma

banheira, aquisição da professora Creuza, que relatou sentir necessidade de, em algumas trocas

de fralda, lavar as crianças. Nas paredes do fraldário, alguns desenhos de emborrachado, e uma

pequena prateleira, onde são guardadas as mochilas das crianças; espaço do repouso, com piso

também coberto por um tapete emborrachado, outro armário pequeno, colchonetes e uma bola

grande, do tipo suíça. Em uma das paredes, aparelhos de TV e DVD, nas outras, mais figuras

de emborrachado, e três pequenas prateleiras com alguns brinquedos e livros infantis. Esses são

os espaços e materiais que compõem a sala de referência do Maternal I.

22 Na denominação dos espaços que compõem a sala, adotamos a nomenclatura empregada pelo documento do

MEC, “Parâmetros básicos de infra-estrutura para instituições de educação infantil: encarte 1.” (BRASIL, 2006a).

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Consideramos que aparelhos de TV e DVD são equipamentos dispensáveis em salas de

crianças pequenas. Nesta fase há um mundo – dentro da sala e “lá fora” – para ser descoberto,

podendo (ou devendo!) ser apresentado aos pequenos por meio de outros recursos/mediações

que não a TV; recursos que exigem, necessariamente, a interação com o outro. Sabemos o

quanto esses equipamentos ocupam, normalmente, a vida das crianças em casa, pelo que

advogamos o favorecimento de experiências e vivências mais ricas na creche. Sendo assim, TV

e DVD poderiam ser substituídos por livros, brinquedos, sucatas, cantinhos temáticos e outras

coisas interessantes para as crianças. Entretanto, temos conhecimento do quanto esses aparelhos

são apreciados pelos adultos na escola da infância... retirá-los ou mesmo restringir seu uso,

esbarraria em muita resistência por parte dos grandes, o que não ocorreria com os pequenos.

Importa questionar: não seria já a hora de privilegiar o que interessa ao desenvolvimento das

crianças, colocando sua humanização no centro do processo educativo?

Na sequência, alguns registros fotográficos conferem maior clareza à nossa descrição.

Fotografia 11 - Porta de entrada da sala, com cartaz de boas-vindas

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

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Fotografia 12 - Espaço de atividades

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

Fotografia 13 - Fraldário

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

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Fotografia 14 - Espaço do repouso com vista lateral

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

Fotografia 15 - Espaço do repouso com vista frontal

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

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Pelos registros fotográficos dos espaços da sala, vemos um detalhe que se destaca – a

profusão de letras – nas paredes e no chão. Fomos informadas pela gestora, responsável por

organizar e decorar inicialmente as salas de referência da creche, acerca do uso das letras. Na

realidade, o que se pretendeu foi forrar o chão e as paredes da sala na altura das crianças, por

questão de segurança, para evitar que se machucassem. Ao mesmo tempo, o motivo foi a

ornamentação do espaço. Para tanto, a opção foi utilizar o tapete emborrado com letras, que,

segundo a gestora, é mais barato que o liso. Não houve, portanto, nenhuma intencionalidade

pedagógica quanto às letras, e não observamos seu uso no sentido de práticas antecipadoras de

alfabetização.

Caracterizado o lócus da pesquisa, cenário de onde partimos para refletir

conceitualmente a respeito das interações verbais e consequente desenvolvimento da linguagem

oral das crianças pequenas na creche, no próximo capítulo apresentamos os procedimentos

metodológicos dos quais lançamos mão, descrevendo os caminhos trilhados na construção de

nosso estudo. Explicitamos nossa base teórico-metodológica, as alegrias e os desafios

vivenciados e enfrentados na sala de referência do Maternal I.

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2 ESCOLHAS METODOLÓGICAS: CAMINHOS TRILHADOS NA PESQUISA

COM CRIANÇAS PEQUENAS

__________________________________________________________________________________

Caminhante, são teus rastos

o caminho, e nada mais;

caminhante, não há caminho,

faz-se caminho ao andar.

Ao andar faz-se o caminho,

e ao olhar-se para trás

vê-se a senda que jamais

se há de voltar a pisar.

Caminhante, não há caminho,

somente sulcos no mar.23

(ANTÓNIO MACHADO)

A pesquisa em ciências humanas – ao contrário dos estudos pertencentes às ciências da

natureza, de cunho predominantemente positivista –, tem caráter provisório e inconclusivo. Não

lidando com coisas, matérias ou substâncias do mundo físico, tem, como objeto de estudo,

ideias, fatos e fenômenos sociais e humanos, elementos em constante movimento, fato que

requer distintas formas de abordagem, análise e interpretação. Daí sua natureza temporária.

Aspecto igualmente relevante, e que também confere especificidade a esse tipo de pesquisa, diz

23 Poema “Caminhante”, do poeta espanhol António Machado, publicado em seu livro Poesías completas, pela

editora Espasa-Calpe (1983).

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respeito à escolha do contexto e dos sujeitos com os quais pesquisar, escolha essa que requer,

por parte do pesquisador, sensibilidade e postura ética.

O contexto e os sujeitos constituem, conjuntamente, o campo da pesquisa, o qual impõe

ao pesquisador o desafio de vivenciá-lo ativamente, exercendo seu papel de

observador/participante, considerando, igualmente, a importância do outro pesquisado e

analisando de que forma e em que medida esse outro exerceu influência no processo de

construção da investigação. Nesse sentido, toda a experiência do campo ganha significado: as

questões iniciais, as dúvidas surgidas no decorrer do percurso, as surpresas, as descobertas que

possibilitam novos rumos. Este desafio, vivido inicialmente no campo, se converte,

posteriormente, em desafio de escrita. É preciso descrever e analisar, no texto de apresentação

da pesquisa, toda a trajetória vivida de forma ética, estética e cientificamente correta

(GUIMARÃES, 2008).

A natureza peculiar das pesquisas em ciências humanas, especialmente no tocante à

alteridade, encontra respaldo em Bakhtin (2009), ao defender a criação de uma filosofia voltada

para essa área do conhecimento. Bakhtin propõe pensar o objeto das ciências humanas de

maneira dialógica, considerando o outro e sua importância como alguém que tem consciência,

valores e visões de mundo que diferem dos nossos. Nessa perspectiva, o texto escrito, traduzido

por discurso, será sempre um embate ideológico de enunciados, na medida em que traduz

muitas vozes e múltiplos discursos, os quais constituem o (e são constituídos pelo) pesquisador.

Assim, “[...] o discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica

em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e

objeções potenciais, procura apoio, etc.” (BAKHTIN, 2009, p. 128). O conceito de dialogia é

fundamental para Bakhtin, representa as tensões e contradições presentes nos discursos, falados

ou escritos. Abrange o

[...] espaço de luta entre as vozes sociais (uma espécie de guerra dos

discursos), no qual atuam forças centrípetas (aquelas que buscam impor uma

certa centralização verboaxiológica por sobre o plurilinguismo real) e forças

centrífugas (aquelas que corroem continuamente as tendências

centralizadoras, por meio de vários processos dialógicos tais como a paródia

e o riso de qualquer natureza, a ironia, a polêmica explícita ou velada, a

hibridização ou a reavaliação, a sobreposição de vozes etc.). (FARACO, 2006,

p. 67).

As ideias presentes no conceito de dialogia nos remetem a questionar nosso papel

enquanto pesquisadores, na medida em que a pesquisa se constitui pela imbricada relação

pesquisador/pesquisados/outros. De maneira alguma pesquisamos, pensamos ou escrevemos

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sozinhos, pelo contrário, nos encontramos em contínuo diálogo: conosco mesmos, com os

sujeitos do campo, com companheiros, com orientadores, com autores. A produção do

conhecimento assim entendida é marcada pela associação de distintos saberes e diferentes

vozes.

Em “O autor e o herói” Bakhtin (1997) oferece outras importantes contribuições para a

pesquisa em ciências humanas. Neste texto, concebendo a escrita como um ato de criação, o

autor analisa o envolvimento do autor na construção da personagem, descrevendo-a como uma

relação de empatia, produtiva e criadora, que possibilita ao autor uma visão global do herói,

uma visão de “acabamento”. Podemos aplicar esse princípio bakhtiniano à relação do

pesquisador com o objeto, o campo pesquisado e os sujeitos. A visão do acabamento é

construída, por um lado, pela identificação, e, por outro, pelo distanciamento, pois “[...] é nossa

relação que determina o objeto e sua estrutura e não o contrário; é somente quando nossa relação

se torna aleatória, como que caprichosa, quando nos afastamos da relação de princípio que

estabelecemos com as coisas e com o mundo, que o objeto se nos torna alheio e fica autônomo,

começa a se desagregar [...]” (BAKHTIN, 1997, p. 26-27).

O que possibilita ao autor dar acabamento ao herói é o fato de ele saber tudo a respeito

do herói, até mesmo o que o próprio herói não sabe, conformando o excedente da visão. O herói,

por sua vez, oferece ao autor o princípio do acabamento, embora este seja construído pela visão

de mundo e valores do autor. Essa relação de troca – autor/herói, pesquisador/campo pesquisado

– é marcada pelo princípio da exotopia, “[...] o achar-se fora ou colocar-se fora de uma maneira

única, absolutamente outra, não equiparável, singular [...]” (PONZIO, 2010, p. 10), posição que

permite ao autor tecer seu herói. A posição exotópica permite ao autor distanciar-se, olhar de

um lugar exterior para poder enxergar algo que é inacessível para o próprio herói. Em uma

palavra, o acabamento é dado por intermédio de dois movimentos inter-relacionados –

proximidade/identificação e distanciamento.

Aplicando os conceitos bakhtinianos de excedente da visão e exotopia às nossas

considerações, podemos ponderar que o pesquisador tem a possibilidade de enxergar, no campo

e nos sujeitos da pesquisa, algo a mais que eles, pela sua posição exterior, exotópica. O

excedente da visão somente é possível porque, “quando contemplo um homem situado fora de

mim e à minha frente, nossos horizontes concretos [...] não coincidem. Por mais perto de mim

que possa estar esse outro, sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa,

e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver [...] (BAKHTIN, 1997, p. 42). O

excedente da visão é alcançado pela posição peculiar do pesquisador: de um lugar que é só seu,

enxerga o que não é visto pelos sujeitos. Desse modo, é a exotopia que possibilita o excedente,

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uma vez que “[...] o excedente de minha visão, com relação ao outro, instaura uma esfera

particular da minha atividade, isto é, um conjunto de atos internos ou externos que só eu posso

pré-formar a respeito desse outro e que o completam justamente onde ele não pode completar-

se” (Idem, p. 45).

No entanto, a posição exotópica requer postura ética por parte do pesquisador, na relação

eu/outro. É preciso colocar-se no lugar do outro a partir de seu sistema de valores, o que

representa um desafio. Como formar uma imagem do outro, sem, de antemão, impregnar-lhe

com meus próprios valores e visão de mundo? Essa postura exige compreensão da visão do

outro como alguém que difere de mim, para depois voltar à minha posição, de posse daquilo

que dele abstraí e não lhe era conhecido. Faz-se necessário, num primeiro momento, identificar-

se com o outro, e, em seguida, distanciar-se dele, a fim de dar-lhe o acabamento, “[...] emoldurá-

lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de

meu desejo e de meu sentimento” (BAKHTIN, 1997, p. 45).

Consideramos, pois, na construção de nossa pesquisa, que temos o desafio de dialogar

com os outros do campo pesquisado, sujeitos que participaram ativamente desse processo. É

preciso compreender a criança pequenininha em suas mais distintas formas de interação, na

tentativa de analisar seus gestos, manifestações, reações, linguagens. Igualmente, devemos

considerar as professoras, portadoras de trajetória profissional, saberes, vivências. Há que se

entender que esse diálogo, de forma nenhuma neutro, apresenta possibilidades e limites.

Com base no pensamento de Bakhtin (1997, 2009), podemos dizer que o campo da

pesquisa constitui terreno fértil, oferece inúmeras possibilidades de observação e

ressignificação do objeto, provoca a construção de novos sentidos. Ademais, a interlocução

com os autores que orientam a produção do discurso escrito se reveste da interpretação e dos

sentidos atribuídos pelo próprio pesquisador, possibilitando um olhar que é, no campo da

pesquisa, predominantemente seu: o olhar teórico que advém das abstrações necessárias para a

compreensão da realidade concreta para além da externalidade, dos fenótipos. É nessa

perspectiva que ensejamos construir nossa pesquisa ao discutir as interações verbais e a

linguagem oral das crianças pequenas. Não temos a pretensão de abarcar todo o conhecimento

produzido nesse campo, nem de apresentar verdades absolutas. Discorreremos sobre o que nos

foi possível apropriar até o presente, com base em uma das várias correntes teóricas existentes,

aquela que elegemos para mediar nosso olhar, explicitada na sequência.

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2.1 A opção teórico-metodológica

Tendo como objeto de estudo o desenvolvimento da linguagem oral de crianças na

creche, nossa investigação se assenta nos fundamentos teóricos e metodológicos da Teoria

Histórico-Cultural, comumente ligada ao seu principal representante, L. S. Vigotski24. Nessa

abordagem, objetivamos compreender o processo de desenvolvimento da linguagem oral na

etapa da primeira infância. Dessa forma, nosso enfoque se encaminha para o desenvolvimento

da linguagem oral da criança pequena no contexto interativo da creche, tendo o conceito de

linguagem como categoria fundante, associado a outros: interação; atividade de comunicação;

práticas pedagógicas e mediação. Para tanto, buscamos dialogar com autores pertencentes ao

grupo do que se convencionou chamar Escola de Vigotski25, o que inclui, também, o trabalho

de seus colaboradores e sucessores. Assim, para elucidar tais conceitos, nos ancoramos na

interlocução com Vigotski (2001, 2009, 2012a, 2012b), Zaporozet26; Lísina27 (1986), Lísina

24 Lev Semiónovich Vigotski (1896-1934): Psicólogo russo, que, ao lado de outros grandes pesquisadores,

particularmente Rubinstein, elaborou os fundamentos da psicologia marxista. Desenvolveu, em conjunto com seus

colaboradores, pesquisas no campo da psicologia geral, infantil e pedagógica, partindo da compreensão

materialista do psiquismo humano. Dessa concepção, elaborou uma série de postulados teóricos e metodológicos,

os quais deram origem a outros, a exemplo da teoria da atividade, de Leontiev. Dentre suas principais obras,

destacamos: O significado histórico da crise da psicologia, escrito em 1927 (VIGOTSKI, 1996); Pensamento e

linguagem, publicada originalmente em russo em 1934, e, no Brasil, em 2001, com o título A construção do

pensamento e da linguagem (VIGOTSKI, 2001). Em Espanhol, encontramos uma coleção de cinco volumes

intitulada Obras Escogidas, publicada pela editora Visor, contendo seus principais textos. Em algumas de suas

obras traduzidas do espanhol para o português, com frequência são encontradas algumas distorções relativas à

tradução, problema apontado por Duarte (2011) e Prestes (2012). Fonte para mais informações: DAVÍDOV, V.,

SHUARE, M. Datos sobre los autores. In: DAVÍDOV, V., SHUARE, M.(Org.). La Psicología Evolutiva y

Pedagógica en la URSS (Antología). Moscou: Editorial Progresso, 1987. p. 338-344.

25 A grafia do nome do autor aparece de distintas formas em suas obras, bem como em textos de autores

contemporâneos que o estudam: Vigotskii, Vigotski, Vygotski. Neste estudo, fizemos a opção por utilizar a versão

em português do seu nome (Vigotski), mais comumente adotada por pesquisadores do Brasil. No entanto, quando

se tratar de citações, será mantido o nome como escrito nos originais. 26 Alexandr Vladimirovich Zaporózhets (1905-1981): Psicólogo e professor de destaque, que trabalhou com

Vigotski em pesquisas desde sua época de estudante. Realizou pesquisas sobre a teoria da atividade, percepção e

pensamento da criança pré-escolar. Elaborou a teoria do desenvolvimento da percepção infantil, considerando os

aspectos sociais. Seu estudo mais importante se converte na elaboração da teoria da personalidade, como resultado

da educação e do ensino. São algumas de suas principais obras, em russo: O desenvolvimento dos movimentos

voluntários, publicada em 1960; A psicologia das crianças de idade pré-escolar, publicada em 1964; O

desenvolvimento da percepção na primeira infância e na idade pré-escolar, publicada em 1966. Em espanhol,

encontramos a obra El desarrollo de la comunicación em la infancia (ZAPOROZET; LÍSINA, 1986), publicado

originalmente em Moscou, em 1974. Fonte para mais informações: DAVÍDOV, V., SHUARE, M. Datos sobre los

autores. In: DAVÍDOV, V., SHUARE, M.(Org.). La Psicología Evolutiva y Pedagógica en la URSS (Antología).

Moscou: Editorial Progresso, 1987. p. 338-344.

27 Maia Ivánovna Lísina (1929-1983): Conhecida psicóloga e professora, trabalhou com Zaporózhets como sua

monitora. Foi responsável pelo início das pesquisas sobre a primeira infância, representando uma nova área na

psicologia infantil. Foi a primeira pesquisadora a empreender estudos sistemáticos sobre a origem da comunicação

das crianças, que, ao lado de outros trabalhos, formaram a teoria psicológica do desenvolvimento da criança. Possui

mais de 100 publicações, traduzidas em vários idiomas. São algumas de suas principais obras, em russo:

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(1986, 1987), Leontiev28 (1978a, 1978b, 1998), Luria29 (1986, 1988b) e Elkonin30 (1987).

Situados nosso objeto de estudo e a base teórico-metodológica na qual se sustenta este trabalho,

faz-se necessário enfocar a própria teoria, destacando alguns de seus princípios, bem como o

Particularidades evolutivas e individuais da comunicação com os adultos nas crianças, do nascimento aos sete

anos, sua tese de doutorado, publicada em 1974; Particularidades da comunicação nas crianças da primeira

infância durante as ações realizadas conjuntamente com os adultos; O desenvolvimento da comunicação nos pré-

escolares, capítulo IV, publicada em 1974; Investigações sobre problemas de psicologia evolutiva e pedagógica,

publicada em 1980. Em espanhol, algumas de suas publicações incluem: El desarrollo de la comunicación em la

infancia (ZAPOROZET; LÍSINA, 1986); La actividad de comunicación y su desarrollo (ILIASOV, I. I.;

LIAUDIS, V. Ya., 1986); La génesis de las formas de comunicación en los niños (DAVÍDOV, V., SHUARE, M.,

1987). Fonte para mais informações: DAVÍDOV, V., SHUARE, M. Datos sobre los autores. In: DAVÍDOV, V.,

SHUARE, M.(Org.). La Psicología Evolutiva y Pedagógica en la URSS (Antología). Moscou: Editorial Progresso,

1987. p. 338-344.

28 Alexei Nikolaévich Leóntiev (1903-1979): Importante psicólogo e professor, colaborador de Vigotski, com

quem, juntamente com Luria, elaborou a teoria da origem histórico-social das funções psíquicas superiores, em

1920. No mesmo período, realizou uma pesquisa sobre a memória e a atenção voluntárias. A partir de 1930,

dedicou-se à elaboração da teoria da atividade, fundamento para a compreensão da atividade material objetal como

fonte da origem e desenvolvimento dos processos psíquicos do homem, estudo essencial para a psicologia

marxista. Elaborou, em colaboração com outros pesquisadores como Bozhóvich, Galperin, Zaporózhets e

Zinchenko, investigações teóricas e experimentais a respeito da estrutura e gênese da atividade humana e seu papel

na formação dos processos psíquicos do desenvolvimento ontogenético. Obras mais importantes: O

desenvolvimento do psiquismo, publicada em 1959 (LEONTIEV, 1978a) e Atividade, consciência e personalidade,

publicada em 1975 (LEONTIEV, 1978b). Fonte para mais informações: DAVÍDOV, V., SHUARE, M. Datos

sobre los autores. In: DAVÍDOV, V., SHUARE, M. (Org.). La Psicología Evolutiva y Pedagógica en la URSS

(Antología). Moscou: Editorial Progresso, 1987. p. 338-344.

29 Alexandr Románovich Luria (1902-1977): Eminente psicólogo soviético, fundador de uma nova área da

psicologia, a neuropsicologia. Suas pesquisas integraram campos teóricos antes estudados separadamente, como a

neurologia, a psicologia e a linguística. Incialmente, interessou-se pela psicologia experimental e psicanalítica.

Mais tarde, com o intuito de estudar as alterações de comportamento de soldados feridos à bala, dedica-se à

medicina, especializando-se em neurologia. Do fim dos 40 ao final dos anos 50, se volta novamente para a

psicologia, estudando o desenvolvimento psicológico da criança, na perspectiva de seu mestre Vigotski. Após esse

período, retoma a tendência neuropsicológica, buscando uma formulação linguística dos fenômenos

neuropsicológicos. A despeito dos variados campos em que atuou, a linguagem constituiu o ponto comum de seus

interesses, possibilitando articulação entre a neurologia e a psicologia. Retomando questões propostas por Pavlov

e Vigotski, abriu uma nova área de estudos dentro da neuropsicologia, a neurolinguística. São destaques entre suas

principais obras, todas publicadas em Moscou: Estudos sobre história do comportamento (junto com Vigotski),

publicada em 1930, A afasia traumática, em 1947, Funções corticais superiores no homem, em 1962, e Questões

básicas de neurolinguística, em 1975, dois anos antes de sua morte. Fonte para mais informações: SPRITZER, S.

Apresentação do autor e da obra. In: LURIA, A. R. Pensamento e linguagem: as últimas conferências de Luria.

Porto Alegre: Artes Médicas, 1986. p. 7-9.

30 Daniil Borisovich Elkonin (1904-1984): Um dos mais importantes psicólogos russos, trabalhou sob a direção de

Vigotski e dedicou sua vida ao estudo de questões de interesse desse autor, aliando o trabalho de investigação com

o de professor. Seus interesses de pesquisa foram bastante amplos, vindo a desenvolver estudos psicológicos sobre

a criança da primeira infância, da idade pré-escolar, escolar e adolescente. Estudou o desenvolvimento da

personalidade da criança, a formação do pensamento, da linguagem e a assimilação da leitura e da escrita, e dedicou

especial atenção para o estudo da periodização do desenvolvimento psíquico da criança e as atividades de cada

período de vida, desenvolvendo, junto com Leontiev, o conceito de atividade principal. Seus trabalhos incluem

mais de 100 publicações, destacando-se: Psicologia Infantil, publicada em 1960 e A psicologia da formação da

personalidade e os problemas da comunicação, publicada em 1980. Fonte para mais informações: DAVÍDOV,

V., SHUARE, M. Datos sobre los autores. In: DAVÍDOV, V., SHUARE, M.(Org.). La Psicología Evolutiva y

Pedagógica en la URSS (Antología). Moscou: Editorial Progresso, 1987. p. 338-344.

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contexto histórico que marcou seu surgimento. Para tanto, abordaremos brevemente a

constituição da psicologia marxista, fundamento da Teoria Histórico-Cultural.

Em seu texto intitulado Vigotskii, Luria (1988a) apresenta, na perspectiva de Vigotski,

a crise da psicologia ocorrida no início do século XX, que provocou mudanças significativas

nesta ciência. Essa crise se deu mediante as críticas feitas a dois tipos de psicologia existentes

na época: de um lado, a psicologia puramente experimental, que se preocupava apenas com os

resultados obtidos em laboratório, sem considerar as influências externas que as pessoas

sofriam. Para Vigotski, a psicologia experimental deixava de lado todos os processos

psicológicos superiores do homem, vindo a classificá-la como naturalista. De outro lado,

encontrava-se a psicologia fenomenológica, que tratava dos fenômenos deixados de lado pela

psicologia naturalista, no entanto, fazendo isso apenas de modo descritivo. Ambas as

psicologias não conseguiam, segundo ele, romper com o idealismo, já que não conseguiam

explicitar o fenômeno da consciência, que restava relegado a explicações distanciadas da

ciência.

Analisando essas duas abordagens, Vigotski considerou, pois, que nem um nem outro

modelo poderia dar conta de estudar as funções que diferenciam os seres humanos dos animais

ou as funções psíquicas superiores, tema central de seus estudos. Foi então que Vigotski, Luria

e Leontiev iniciaram uma grande revisão da psicologia, em 1925. Para tanto, serviram-se de

estudos anteriores, como os de Kurt Lewin, Heinz Werner, Willian Stern, Karl Buhler, Pavlov

e Piaget, dentre outros. Com base nesses trabalhos acerca dos processos mentais, linguagem e

pensamento da criança e fortemente influenciados pelas ideias marxistas, a troika31 procedeu à

elaboração de uma nova psicologia, a psicologia experimental das funções psíquicas

superiores.

Nessa elaboração, Vigotski, “maior teórico do marxismo” dentre os três pensadores

segundo Luria, buscou em Marx o seu método de análise: “Influenciado por Marx, Vigotski

concluiu que as origens das formas superiores de comportamento consciente deveriam ser

achadas nas relações sociais que o indivíduo mantém com o mundo exterior” (LURIA, 1988a,

p. 25). Com base nesse princípio, estava certo de que a criança não é somente um produto do

seu meio ambiente, mas é igualmente ativa na construção desse meio, pensamento basilar para

31 Denominação que caracterizava o grupo de pesquisadores russos formado por Luria, Leontiev e Vigotski, sendo

liderado por este último. Os três pesquisadores, movidos por interesses comuns, passaram a realizar uma revisão

da história e da psicologia na Rússia e no restante do mundo, com vistas à criação de uma nova maneira de estudar

os processos psíquicos do homem.

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sua compreensão acerca da inter-relação entre os processos biológicos e culturais e de como

esta íntima relação produz as funções psicológicas das crianças e dos adultos.

O autor (1988a) aponta três aspectos presentes na teoria de Vigotski: instrumental,

cultural e histórico. O aspecto instrumental relaciona-se ao modo de funcionamento das funções

psicológicas complexas, as quais operam com a ajuda de estímulos auxiliares, produzidos pela

própria pessoa ou apropriados nas experiências sociais. O aspecto cultural diz respeito à forma

como a sociedade organiza as tarefas que a criança enfrenta ao longo de seu desenvolvimento,

bem como os meios mentais e físicos que a criança pequena usará para resolver tais tarefas.

Trata-se da cultura produzida historicamente, que medeia o desenvolvimento das capacidades

humanas dos indivíduos. O aspecto histórico está, portanto, diretamente ligado ao cultural, e

representa o papel ativo do homem no domínio do seu ambiente e comportamento, por

intermédio dos instrumentos, inventados e refinados no decurso da história dos homens.

Tomando como base esses três elementos fundantes da teoria de Vigotski, Luria destaca algo

essencial para a compreensão do desenvolvimento infantil:

Todos os três aspectos da teoria são aplicáveis ao desenvolvimento infantil.

Desde o nascimento, as crianças estão em constante interação com os adultos,

que ativamente procuram incorporá-los à sua cultura e à reserva de

significados e de modos de fazer as coisas que se acumulam historicamente.

(LURIA, 1988a, p. 27).

Daí resulta o postulado de Vigotski de que o desenvolvimento da criança se dá primeiro

no plano social, para depois acontecer de forma individual, concepção que se faz sumamente

importante para nossa investigação. Apenas no início de seu desenvolvimento, as crianças

reagem ao meio por intermédio dos processos naturais, herdados biologicamente. Mediante o

contínuo processo de interação com o Outro, entendido como “[...] um lugar simbólico ocupado

pelos inúmeros parceiros das relações sociais da criança ao longo da sua história social e

pessoal” (PINO, 2005, p. 37), e inserção nas práticas culturais, aparecem os processos mais

complexos, superiores e especificamente humanos. Em princípio isto ocorre, necessariamente,

por intermédio da interação com o Outro, caracterizando um processo interpsíquico, período

em que os adultos cumprem papel de agentes mediadores do contato da criança com o mundo.

Esse processo de descoberta e interpretação do mundo, inicialmente realizado em colaboração

com o Outro, sofre alteração à medida que a criança cresce, e se torna capaz de realizá-lo

internamente, vindo a tornar-se processo intrapsíquico, formador do psiquismo. A esse respeito

Luria (1988a, p. 27) escreve: “[...] é através desta interiorização dos meios de operação das

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informações, meios estes historicamente determinados e culturalmente organizados, que a

natureza social das pessoas tornou-se igualmente sua natureza psicológica.”

Diante dessa concepção, é possível afirmar que os aspectos naturais, biologicamente

herdados pela criança ao nascer, constituem a base sobre a qual dar-se-á todo seu

desenvolvimento. No entanto, isso não é suficiente, pois apenas pela presença dos aspectos

sociais, manifestos nas interações e na colaboração com os outros, dentre esses os adultos, o

desenvolvimento cultural da criança ocorrerá; somente assim o desenvolvimento pode passar

do plano interpsíquico para o plano intrapsíquico, fazendo com que a criança, no

desenvolvimento gradual de suas funções psíquicas (percepção, memória, atenção, linguagem)

seja capaz de interpretar e compreender o mundo à sua volta de forma cada vez mais consciente.

Para Vigotski, as funções psíquicas superiores dos seres humanos surgem dessa estreita relação

entre os fatores biológicos caraterísticos do homem e os fatores culturais, construídos ao longo

da história humana.

Evidenciadas a teoria que embasa nossa investigação e a concepção de criança que dela

emerge, apresentamos, a seguir, os fundamentos metodológicos centrais adotados por Vigotski

em suas pesquisas, os quais se fazem pertinentes ao nosso estudo. Segundo Shuare (1990), a

psicologia soviética foi formulada em estreita relação com a filosofia, sendo este “[...] um traço

que a diferencia marcadamente de outros sistemas científicos e que representa seu ponto de

partida metodológico” (SHUARE, 1990, p. 11, tradução nossa). Esta necessidade se justifica

em razão de a ciência possuir uma natureza sociocultural, e por isso exercer influência na

concepção do mundo das pessoas. Para a autora, “[...] uma das características mais notáveis da

psicologia soviética é que, desde seu início, se tem definido nesta questão como ciência que

busca em uma concepção filosófica determinada – o materialismo dialético e histórico – os

marcos metodológicos [...]” (p. 11, tradução nossa). Assim, as teorias científicas respondem a

uma concepção de homem, especialmente as ciências humanas, e seus resultados precisam

apresentar uma concepção de mundo e enfoque filosófico.

Shuare explica que as orientações metodológicas das ciências gerais e humanas se

dividem em níveis, sendo que a metodologia filosófica constitui o nível superior, “[...] cujo

conteúdo são os princípios gerais do conhecimento e o sistema categorial da ciência, como

sistema de premissas e princípios orientadores da atividade cognitiva” (E. G. YUDIN apud

SHUARE, 1990, p. 13, tradução nossa). Esses princípios, no entanto, não devem ser seguidos

como regras fechadas, antes, devem servir de orientação na construção do conhecimento

científico. Nessa perspectiva, o papel da filosofia é realizar a crítica do conhecimento do ponto

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de vista de suas condições de aplicação e de seus fundamentos metodológicos, e interpretar os

resultados da ciência a partir de uma determinada visão de mundo.

A respeito da relação de Vigotski – principal representante da psicologia soviética –

com a filosofia, Romanelli (2011) relata que o mesmo transitou por diversos campos do

conhecimento em suas pesquisas, mantendo interesse especial pela filosofia e pelas artes,

sempre preocupado em estabelecer princípios metodológicos específicos para a psicologia. A

autora afirma, também, que o marxismo não foi o único referencial que fez parte da produção

intelectual de Vigotski, mas exerceu forte influência em suas investigações, sobre o que

comenta Duarte (2007, p. 80): “[...] a obra de Vigotski não pode ser bem compreendida se

tentarmos separá-la de seus fundamentos filosóficos, especialmente aqueles mais diretamente

ligados ao universo da filosofia marxista [...].” Romanelli explica que esta concepção filosófica

que orientou os trabalhos de Vigotski tem como base central a ideia de que o homem se constitui

historicamente, a partir de suas relações sociais. A autora evidencia que

Da mesma forma que Marx, em O Capital, analisou algumas categorias

genéricas da economia capitalista (como, por exemplo, a mercadoria),

procurando estudá-las dialeticamente para assim desvendar o funcionamento

social, Vigotski também procurou estudar dialeticamente categorias ou

estruturas específicas do ser humano que pudessem desvendar o

funcionamento psíquico. Ele as reconheceu nas “funções psíquicas

superiores” – memória lógica, atenção voluntária, formação de conceitos,

imaginação, entre outras –, buscando compreender, na inter-relação dinâmica

e no desenvolvimento dessas funções, o processo de formação social da

consciência. (ROMANELLI, 2011, p. 205).

Dessa forma, Vigotski estabelecia, a partir de suas pesquisas, um conjunto de princípios

que pudesse ser aplicado a qualquer estudo no campo da psicologia. Zanella e outros (2007)

apresentam alguns desses princípios: a relação problema/método/técnicas de investigação; a

relação singular/coletivo e suas implicações metodológicas; a história e a dialética como

fundamentos metodológicos. A questão da relação entre problema, método e técnicas de

investigação advém dos questionamentos que Vigotski fez acerca da psicologia de sua época,

a qual se encontrava marcada por várias tendências teórico-metodológicas de cunho metafísico

e indefinição do objeto de estudo, o que o fez concluir que essas tendências não serviam de base

para uma psicologia geral. De acordo com Zanella (2007, p. 27), “[...] era necessária a criação

de uma psicologia geral, social e dialética, onde a investigação do humano superasse a

determinação mecanicista da materialidade sobre o homem [...].” Foi então que Vigotski

redimensionou o objeto da psicologia, ao estudar o homem na sua totalidade, considerando que

o mesmo é constituído na e pela história mediante as relações sociais. Portanto, o objeto define

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o método e as escolhas metodológicas em busca do problema. Esta forma empregada por

Vigotski no estudo do sujeito está em consonância com o princípio da dialética que considera

a vinculação e interdependência dos fenômenos (SHUARE, 1990), o que implica a necessidade

de considerar a infinitude do conhecimento.

A relação entre singular e coletivo na metodologia pressupõe a compreensão do homem

como um ser histórico e cultural, que apesar de se constituir mediante a relação com outros

homens, é, também, sujeito singular da história. O homem é assim analisado em seu contexto,

“[...] pois o próprio psiquismo é constituído historicamente na complexa e indissociável relação

sujeito e sociedade” (ZANELLA et al., 2007, p. 28).

Isso implica a necessidade de considerar as relações entre os diferentes sujeitos que se

relacionam na realidade concreta que compõe o todo, a fim de analisar a totalidade, sendo a

totalidade compreendida no movimento dialético que considera aquilo que é e também aquilo

que pode vir a ser. Assim, conhecer o sujeito é compreendê-lo nas suas relações, bem como as

condições dessas relações, sendo o homem constituído por sua realidade, na relação entre os

processos de objetivação e apropriação: o homem se apropria daquilo que criou e essa

apropriação faz surgir nele novas necessidades, que exigirão novas atividades (DUARTE,

1999).

Shuare (1990) assevera que, para a dialética, a fonte do desenvolvimento do objeto é a

unidade e luta dos contrários. Há um movimento interno no desenvolvimento do objeto, em sua

formação, por isso a fonte do desenvolvimento deve ser buscada dentro do próprio objeto e nas

suas relações com o contexto. Isso resulta em que não se pode buscar a explicação do objeto

apenas pela determinação mecânica de sua causa. É fundamental encontrar conceitualmente o

sistema no qual o objeto adquire suas características particulares, o que se traduz pela

reprodução do concreto “[...] por meio de abstrações de um tipo especial, chamadas abstração

inicial, célula de partida ou abstração substancial. Por sua vez, estas abstrações iniciais podem

expressar-se como unidades de análise do objeto [...]” (SHUARE, 1990, p. 19, tradução nossa).

Foi nesta perspectiva que Vigotski estudou a relação entre pensamento e linguagem. Ao criticar

a forma como esse estudo vinha sendo realizado, segundo orientação geral que explicava o

pensamento e a linguagem como universalidades abstratas, sem considerar as regularidades

concretas de ambos e sem considerar, ainda, sua natureza integral, Vigotski propôs “[...] uma

análise que segmentasse o complicado conjunto em unidades. Por unidade entendemos o

resultado da análise que, diferente dos elementos, goza de todas as propriedades fundamentais

características do conjunto e constitui uma parte viva e indivisível da totalidade” (VYGOTSKI,

2001, p. 19, grifos do autor). Essa abordagem permitiu a Vigotski a compreensão de que a

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75

palavra nasce da íntima relação entre o pensamento e a linguagem. Neste sentido, a análise das

relações é fundamental para a compreensão do todo, pois isolar elementos significa perder a

compreensão, tanto das partes quanto da totalidade.

A questão que envolve a história e a dialética como fundamentos da metodologia se

relaciona com o princípio anterior, refere-se à constituição histórica do homem, em movimento

e contexto, através das apropriações da cultura acumulada no decurso da história da

humanidade, fato que requer o estudo dos fenômenos como movimentos dialéticos, produtos da

história, carregados de tensões e contradições. A história é assim entendida como o movimento

em que o sujeito se apropria da realidade, tornando-se singular nesse processo. No entanto, de

acordo com Bissoli (2005, p. 95), “[...] o desenvolvimento de cada homem não é a repetição do

desenvolvimento histórico da humanidade. O indivíduo desenvolve-se, na ontogênese, sobre a

base historicamente produzida por outros homens.” É, pois, considerando sua dimensão

histórica que o homem deve ser estudado, a partir de sua constituição em um dado contexto

social, permeado por múltiplos fatores e relações. Vigotski esclarece:

[...] o estudo histórico, diga-se de passagem, simplesmente significa aplicar as

categorias do desenvolvimento à investigação dos fenômenos. Estudar algo

historicamente significa estudá-lo em movimento. Esta é a exigência

fundamental do método dialético. Quando em uma investigação se abarca o

processo de desenvolvimento de algum fenômeno em todas as suas fases e

mudanças, desde que surge até desaparecer, isso implica evidenciar sua

natureza, conhecer sua essência, já que só em movimento o corpo demonstra

que existe. Assim, pois, a investigação histórica da conduta não é algo que

complementa ou ajuda o estudo teórico, senão que constitui seu fundamento.

(VYGOTSKI, 2012a, p. 67-68, tradução nossa).

Zanella e outros (2007) sintetizam os princípios acima descritos destacando a

necessidade de: analisar o processo ao invés do produto, o que pressupõe analisar o objeto de

pesquisa a partir do que ele foi, resultante de um processo histórico e dialético; considerar o

aspecto histórico e social do fenômeno, buscando suas origens; analisar o fenômeno para além

da mera descrição, procurando estabelecer as relações que o expliquem; considerar o objeto na

sua totalidade, sem fragmentá-lo em elementos, mas ponderar sobre as unidades de análise, uma

vez que estas, ao contrário dos elementos, conservam as propriedades do todo; buscar os

sentidos daquilo que foi expresso, no contexto da interlocução, visto que o pensamento não

encerra em si tudo aquilo que o sujeito expressou verbalmente.

No estudo das formas superiores de conduta, Vigotski (2012a) se contrapõe às

tendências de cunho fenomenológico utilizadas pela velha psicologia, que se preocupavam

apenas com a descrição dos processos e defende o emprego de uma psicologia dos processos

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íntegros, baseada na análise estrutural, que une a análise e o enfoque integral da personalidade.

Essa perspectiva consiste em destacar os elementos de um processo e diferenciá-los,

considerando que cada processo constitui um fenômeno autônomo, mas composto por partes

que possuem as propriedades do todo. Para ilustrar tal perspectiva, Vigotski utiliza o exemplo

da análise química da água: a molécula H2O é um elemento real da água e não pode explicar

sua formação se seus componentes – hidrogênio e oxigênio – forem analisados separadamente.

Assim, Vigotski considera que um processo ou fenômeno psicológico acontece em etapas e

cada etapa forma um todo. Propõe, então, o estudo das relações entre os elementos que o

constituem, uma análise “[...] que não perde de vista o caráter integral do objeto estudado [...]”

(VYGOTSKI, 2012a, p. 99, tradução nossa).

Para explicar seu método, Vigotski apresenta três pontos fundamentais que conduziram

suas investigações 1) análise do processo e não do objeto. Trata-se de uma perspectiva histórica,

de estudar os processos em movimento, considerando as mudanças ocorridas, o que equivale a

analisar “[...] toda forma superior de conduta não como um objeto, senão como um processo, e

a estudá-lo em movimento, para não ir do objeto a suas partes, senão do processo a seus

momentos isolados” (VYGOTSKI, 2012a, p. 101, tradução nossa); 2) análise explicativa e não

descritiva. Esse aspecto diz respeito à necessidade de ultrapassar a mera descrição dos

fenômenos, com base em características apenas externas. A título de exemplo, Vigotski afirma

que, externamente, a linguagem da criança de um ano e meio é semelhante à do adulto, o que

faz parecer que ela já relaciona, com essa idade, o signo ao significado. No entanto, quando

analisados geneticamente, não há semelhança entre ambos os processos. Desse modo, faz-se

necessário descobrir as diferenças internas apesar das semelhanças exteriores, buscar o

conteúdo interno e a origem do processo; 3) ênfase no processo e não no produto, o que significa

uma análise dinâmica, que não se interesse pelo resultado acabado de um fenômeno, “[...] senão

o próprio processo de aparição ou o estabelecimento da forma superior tomada em seu aspecto

vivo” (VYGOTSKI, 2012a, p. 105, tradução nossa).

Com efeito, considerando o movimento próprio da dialética, analisamos o objeto de

nossa pesquisa a partir de seu contexto concreto, o que abrange a creche selecionada, seu

contexto sociocultural, sua história, sua conjuntura política, as pessoas que nela atuam, as

práticas pedagógicas, as crianças e as relações sociais ali estabelecidas. Objetivamos, no

conjunto dessa análise, compreender como as interações adulto-criança e criança-criança

concorrem para o desenvolvimento da linguagem oral das crianças em situação de creche.

Concebendo o método como eixo central da investigação, adotamos os postulados teórico-

metodológicos da Teoria Histórico-Cultural por nós assinalados, tendo como princípio a

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compreensão do objeto em seu movimento de constituição e mudança, isto é, inserido na

realidade concreta, contraditória e determinada por múltiplos fatores. Dessa forma, procuramos

utilizar as técnicas e instrumentos de produção dos dados para enfocar o objeto sob diferentes

perspectivas.

No conjunto das considerações acima, passamos a descrever a trajetória percorrida na

construção da pesquisa, explicitando técnicas e instrumentos que possibilitaram o diálogo com

os seus sujeitos, que permitiram a aproximação com as crianças bem pequenas e as professoras

do Maternal I da creche Municipal Maria Ferreira Bernardes, no ano de 2014. Ao narrar o

processo de construção da pesquisa, evidenciamos como se deu o movimento de produção e

registro dos dados, além de como procedemos na escolha do campo, e de como fomos, mediante

a aproximação com os sujeitos e os achados de campo (MINAYO, 2010), redimensionando e

delineando nosso objeto de pesquisa. Narrar esse processo significa expor, detalhadamente, a

tessitura da investigação: as dúvidas; as escolhas; as inquietações; os acertos; as falhas; as

descobertas; as surpresas.

2.2 A inserção no campo: observar, participar, fotografar e filmar para construir a

pesquisa

O interesse em pesquisar na creche surgiu da vontade de desenvolver uma pesquisa de

relevância, necessidade e impacto para a educação das crianças pequenas, face o momento atual

de ampliação das creches em Manaus, já caracterizado no início deste capítulo. Tínhamos em

mente a premência de acompanhar de perto esse processo, com vistas a conhecer como se

constrói qualitativamente a educação oferecida no espaço institucional da creche. Essa

necessidade se evidencia ainda mais se considerarmos as funções que a creche deve

desempenhar no desenvolvimento infantil. É preciso, pois, olhar para o que se passa no interior

dessa instituição, para as práticas pedagógicas ali estabelecidas.

Aliada a esse aspecto, encontra-se a necessidade de pesquisas na área da educação

infantil na região Norte, ainda pouco representada no cenário de investigações sobre a infância

institucionalizada, sobretudo na creche. Em estudo recente sobre pesquisas que abordaram a

primeira infância na creche, Silva (2013) aponta que, nesta região, entre os anos de 1997 a 2011,

a produção acadêmica se resumiu a apenas um trabalho. Na realidade de Manaus, desde o início

da recente história das creches, em 2008, duas pesquisas foram realizadas (CARVALHO, 2011;

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PINHO, 2013)32. Nosso estudo pode representar mais uma contribuição local para a educação

infantil.

No entanto, ao sermos atraídas pelo universo bastante particular da creche, inicialmente

não tínhamos ideia exata do que pesquisar nela. Ao lermos os noticiários locais que abordavam

o assunto, percebíamos que as pessoas envolvidas no processo de ampliação expressavam,

geralmente, uma concepção equivocada sobre o papel da creche, qual seja, de que a mesma é

(apenas) um lugar onde as mães podem deixar seus filhos pequenos para poderem trabalhar.

Foi aí que começamos a pensar em pesquisar os aspectos pedagógicos, uma exigência na

educação dos bebês e crianças pequenas no interior dessa instituição. Mas isso era ainda muito

vago. Começava, então, a (célebre) busca pelo objeto da pesquisa.

Nesse processo de busca, enfatizamos o papel fundamental da orientação. Recebemos

da Profa. Michelle Bissoli a tarefa de pensar, com o coração, a respeito do assunto, definindo

três aspectos essenciais: o “quê”; o “como”; e o “por que”. Enquanto respondíamos as questões

propostas, concomitante à revisão da literatura feita no banco de teses da CAPES, fomos

definindo (temporariamente) o objeto da pesquisa.

Na revisão da literatura, buscamos teses defendidas entre os anos de 2008 a 2013

referentes à Educação Infantil, em específico à creche. A escolha do referido período se deve

ao fato de priorizarmos trabalhos mais recentes, investigações realizadas nos últimos cinco

anos. No levantamento dos trabalhos, usamos os termos educação infantil, creche, trabalho

pedagógico na creche, e funções da creche para refinamento de busca, tomando como critério

os títulos e os resumos. Dessa forma, identificamos, no banco de teses da CAPES, cinco

trabalhos no período em questão, e duas pesquisas locais (dissertações), dos quais procedemos

à leitura integral. Nesses estudos, pudemos identificar diferentes objetos: relações entre crianças

e adultos e das crianças entre si na creche (GUIMARÃES, 2008); o pensar e o fazer da creche

(BAHIA, 2008); o papel das interações entre a professora e as crianças (COSTA, 2011);

representações de professoras sobre a educação de bebês e crianças pequenas na creche

(FERRAZ, 2011); a qualidade da educação das crianças na creche (ZUCOLOTO, 2011); a

construção do currículo da creche (CARVALHO, 2011); o trabalho pedagógico na creche e o

32 Referimo-nos às dissertações de Mestrado A construção do currículo da e na creche: um olhar sobre o cotidiano,

estudo realizado por Raquel Neiva de Souza Carvalho, em 2011, e O que você fala, professor, tem importância?

O trabalho pedagógico na creche e o desenvolvimento da linguagem oral da criança, pesquisa feita por Evellyze

Martins Reinaldo Pinho, em 2013, ambas na Universidade Federal do Amazonas, sob orientação da Professora

Michelle de Freitas Bissoli.

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desenvolvimento da linguagem oral (PINHO, 2013). Como se vê, a produção científica sobre

educação de crianças em creches no Brasil não foi tão expressiva no período pesquisado.

Na leitura dos trabalhos citados, uma discussão bastante evidenciada se deu em torno

das funções sociopolítica e pedagógica da creche – cuidar e educar –, o que, segundo as DCNEI

(BRASIL, 2009b), deve ser feito de forma indissociável e por intermédio das interações e

brincadeiras. Daí que, ao lado do nosso interesse pelos aspectos pedagógicos, brotou também o

interesse pelas interações sociais que emergem na dinâmica das práticas pedagógicas.

Ressaltamos que a leitura dos trabalhos citados foi fundamental, sobretudo no que

respeita à adoção dos procedimentos metodológicos, uma vez que as teses levantadas se

caracterizaram por pesquisas feitas com crianças e não sobre crianças, direção na qual

pretendíamos caminhar. Todavia, em que pese a importância dos procedimentos de leitura

realizados para situar o problema da pesquisa, este ainda não nos estava claro. Não havia ainda

precisão quanto ao que desvelar no ambiente da creche.

De novo o papel vital da orientação, que, dessa vez, nos instigou a ir até o campo de

pesquisa, em caráter exploratório, a fim de vivenciar um pouco a realidade peculiar daquela

instituição. Fomos à creche escolhida. Nesta ocasião, fomos apresentadas pela gestora ao grupo

de professoras, momento em que explicamos o motivo de estarmos ali, conversamos um pouco

com elas, dizendo apenas que estávamos fazendo uma “pesquisa sobre creches”.

Nesse primeiro momento, ainda no ano de 2013, frequentamos a creche por uma

semana. Observamos seus espaços, seu cotidiano, sua rotina, seus fazeres. Conversamos com

as professoras. Brincamos com as crianças. Prestamos atenção em muitas falas. Uma fala se

repetia em diferentes vozes: “[...] tem que dar banho, tem que alimentar, tem que colocar pra

dormir [...], o pedagógico fica comprometido.” Esse discurso revela a compreensão dual, ainda

existente, acerca do papel da creche como instituição que, embora deva “[..] assegurar a

educação em sua integralidade, entendendo o cuidado como algo indissociável ao processo

educativo” (BRASIL, 2009b), nem sempre tem sua função entendida claramente.

É fato que as ações de cuidar se fazem bastante presentes. E essa demanda é real, uma

vez que a creche abriga bebês e crianças bem pequenas, incapazes de cuidar de si mesmas,

realidade que coloca o cuidado como uma necessidade imperiosa. No entanto, isto não significa

fragmentar o trabalho com as crianças em ações de cuidar e ações de educar, separando o que

é do âmbito do cuidado daquilo que se entende como pedagógico, segundo argumenta

Guimarães (2008, p. 37):

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De acordo com a legislação, educar e cuidar são ações indissociáveis e

complementares no cotidiano da educação infantil. Delimitam o que é

específico do trabalho com as crianças pequenas. No entanto, nas práticas

cotidianas, constituem-se diversas formas de viver estas duas ações de modo

fragmentado. A ação de educar é compreendida como instruir e transmitir

conhecimentos (ensinar as cores, os nomes dos objetos, etc.), numa

perspectiva de tutela da ação da criança e de sua compreensão do mundo.

Cuidar é considerado como atender às demandas de sono, higiene,

alimentação, proteger ou “tomar conta”, numa intenção disciplinadora.

Claro está que a professora33 de creche educa uma criança pequena enquanto lhe

dispensa cuidados: nas diversas situações do cotidiano, ao relacionar-se com ela, seja cuidando,

brincando ou conversando, estará cooperando com a formação de sua inteligência e

personalidade. Ou seja, não se consegue separar aquilo que é, por sua natureza, inseparável.

Assim, foram aparecendo, no campo a ser investigado, alguns aspectos que, coincidentemente,

faziam parte do nosso interesse inicial. Percebemos, pela observação, que se destacava um

problema: o desafio de articular, nas rotinas de cuidado da creche, as ações pedagógicas.

Ressaltamos que o fato de ter vivenciado em caráter exploratório o ambiente da creche, aliado

ao trabalho de revisão da literatura, foi de substancial importância para o processo de definição

do problema, num primeiro momento.

O critério adotado para a escolha da creche foi o de que esta pertencesse ao sistema

público de ensino, por consideramos que o Estado é responsável por garantir atendimento

educacional às crianças até cinco anos de idade em creches e pré-escolas, conforme texto

anunciado no artigo 208, inciso IV da Constituição Federal. No âmbito desse critério, a seleção

da creche para a realização do estudo se deu por intermédio de contato prévio com a gestora,

Gicélia Maria Pereira Leal, que, tendo sido nossa aluna no curso de Pedagogia34 e também no

curso de Especialização em Educação Infantil35, ao assumir a direção da creche Municipal

Maria Ferreira Bernardes, solicitou colaboração do Grupo de Educação Infantil36 do qual

fazemos parte na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Pensamos, então, que a

pesquisa seria uma oportunidade de estar ali presente e contribuir de alguma forma.

33 Utilizamos a nomenclatura “professora” para nos referirmos às profissionais que atuam com as crianças

pequenas, em virtude da predominância do gênero feminino na educação infantil, sobretudo na creche. Cabe dizer

que na creche investigada todas as professoras em exercício eram do sexo feminino. 34 No âmbito do programa Especial de Formação Docente da Rede Pública (PEFD), ministrado pela Universidade

Federal do Amazonas. 35 Realizado pela Universidade Federal do Amazonas, em convênio com o Ministério da Educação e Secretarias

Municipais de Educação. 36 Referimo-nos ao Grupo de Pesquisa Teoria Histórico-Cultural, Infância e Pedagogia, cadastrado no Diretório

dos Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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Como resultado do contato exploratório com o campo, decidimos, inicialmente, que o

foco do trabalho seriam as interações, tendo por base duas questões: Como o trabalho de cuidar

e educar pode promover interações entre adultos e crianças e das crianças entre si, de modo a

possibilitar a apropriação dos objetos culturais e das relações sociais importantes para o seu

desenvolvimento? De que modo a formação continuada in loco, pautada na reflexão sobre a

prática, pode contribuir para a superação da falsa dicotomia entre cuidar e educar, presente nas

práticas cotidianas da creche? Observando o cotidiano da creche, no fundo, desejávamos

responder a nós mesmas algumas perguntas: Que trabalho pedagógico é possível realizar com

as crianças na creche, sendo que exigem tantos cuidados, que tomam tanto tempo? O que é

possível realizar para além dos cuidados? Que práticas pedagógicas são possíveis,

especialmente com as crianças bem pequenas?

Definido inicialmente nosso foco de estudo, outra decisão precisava ser tomada.

Precisávamos determinar com quais crianças iríamos trabalhar, quais, dentre as crianças bem

pequenas e pequenas, seriam nossos sujeitos. Pela natureza do estudo e especificidade do

objeto, decidimos delimitar uma turma, elegendo a Turma do Maternal I para a observação,

aquela que seria tomada como parâmetro para o estudo. Essa escolha, no entanto, não excluiu

as demais crianças, visto que, na rotina da creche, há vários momentos de atividades coletivas,

momentos esses que proporcionam relações, que possibilitam diferentes trocas entre os

pequenos e permitem visualizar interações entre crianças de idades diferentes, aspecto

importante para a investigação. Esclarecemos que a opção pela referida turma, com crianças

entre 1 a 2 anos de idade, se deu em virtude do próprio objeto da investigação. Tínhamos,

portanto, como sujeitos participantes de nossa pesquisa, sete crianças entre 1 e 2 anos de idade

e suas respectivas professoras, dez sujeitos no total.

Tendo em mente o processo de interação entre adultos e crianças e destas entre si,

voltamos a frequentar a creche, já em 2014, participando de seu cotidiano por um período de

oito meses, aproximadamente. Numa primeira etapa, de março a abril, já com a aprovação da

investigação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFAM, fizemos observações de caráter

exploratório do seu cotidiano, uma espécie de diagnóstico, com vistas a conhecer a organização

da instituição. Nesta ocasião, levantamos informações gerais sobre a comunidade e a instituição

quanto ao espaço físico, materiais e recursos humanos; participamos de eventos como reunião

de pais e planejamento; colhemos informações nas fichas de matrícula das crianças do Maternal

I a fim de obtermos informações preliminares sobre as mesmas; coletamos informações sobre

as professoras da referida turma a fim de traçar um perfil inicial das mesmas. A partir de maio,

iniciamos a segunda etapa, que consistiu na aproximação direta com os sujeitos. Esta fase da

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investigação se estendeu até outubro. A princípio, apresentamos a pesquisa para as professoras,

esclarecendo os objetivos, sua natureza e os procedimentos que adotaríamos na condução da

mesma. Nessa ocasião, as professoras Creuza, Cristiane e Valmirene concordaram em

participar diretamente, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE-

professoras), exigência da pesquisa que envolve pessoas. Adotamos procedimento semelhante

com os pais das crianças, dos quais obtivemos autorização escrita (TCLE-pais) para a

participação de seus filhos. As fotografias e videograções, usadas como recurso metodológico,

foram contempladas nos termos de consentimento. A divulgação das imagens, assim como a

identificação, tanto das crianças quanto das professoras, foi feita mediante assinatura de um

termo de autorização (Apêndices C e D).

Antes de prosseguirmos na descrição dos procedimentos que balizaram a pesquisa, faz-

se necessário dizer que, para compreender o objeto de nossa investigação, assumimos o

pressuposto de sua historicidade. Embora saibamos que existem lacunas no campo pesquisado,

constituídas por práticas nem sempre desenvolventes para as crianças, decidimos construir

nossa pesquisa sob a perspectiva participativa. Ao adotarmos essa perspectiva, não

almejávamos apenas coletar dados, ao invés disso, tencionávamos produzi-los em colaboração

com os sujeitos pesquisados. Dessa forma, as professoras participantes foram convidadas a

atuar no processo de produção e reflexão dos/sobre os dados, momentos que possibilitaram

reflexão acerca da própria prática. Com esta forma de conduzir o processo da pesquisa, nosso

desejo era escapar às tradições de cunho prescritivo. Buscando outra forma de olhar o campo,

realizamos uma pesquisa de cunho participante, apoiada em princípios da pesquisa-formação

(BECCHI; BONDIOLI, 2003; GOMES, 2006, 2007, 2013; PERRELLI et al., 2013).

Para essa perspectiva, nosso referencial teórico principal foram as ideias de Becchi e

Bondioli (2003), ao relatarem uma experiência vivenciada em pré-escolas da cidade de Pistóia,

na Itália, incluindo pesquisadores da Universidade de Pavia e professoras da rede pública. O

objetivo da experiência, denominada pesquisa-formação, foi proporcionar às professoras

formação continuada mediante reflexão e análise da própria prática, oportunizando seu

crescimento profissional.

Esclarecemos que essa forma de proceder, assim como nossa pesquisa, encontra-se

inserida em um contexto mais amplo, ligado ao Grupo de Pesquisa Teoria Histórico-Cultural,

Infância e Pedagogia, do qual somos membros na Faculdade de Educação da Universidade

Federal do Amazonas (UFAM). Desde 2007, o grupo tem se empenhado em pesquisar e atuar

sobre a formação de professores, passando, nos últimos anos, a investigar especificamente a

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formação inicial e continuada de professores da educação infantil em uma de suas linhas, com

vistas a contribuir com o processo educativo das crianças pequenas de nossa região.

Becchi e Bondioli (2003) informam que o percurso metodológico da pesquisa-formação

possibilita a metarreflexão, permite que os sujeitos desenvolvam a autoconsciência sobre seu

próprio fazer. O formador assume o papel de pesquisador e observador externo, tornando-se

um suporte de crescimento do coletivo e elemento provocador de reflexão por parte do grupo

pesquisado. As autoras enfatizam que “[...] esse trabalho tem, em relação a outras metodologias

de pesquisa, um maior impacto sobre a realidade inicial e convoca, no que diz respeito à

discussão dos resultados e dos instrumentos utilizados, aqueles que são, de algum modo,

‘objeto’ da observação” (BECCHI; BONDIOLI, 2003, p. 9).

Perrelli et al. (2013) consideram que a pesquisa participativa evidencia o envolvimento

do pesquisador no processo de investigação, o que leva a questionar a pretensa neutralidade e

os aspectos subjetivos do trabalho científico. Para as autoras, as

Diversas modalidades de pesquisas que pretendem intervir na formação e ação

de seus participantes (pesquisa-ação, intervenção, participante, participativa,

colaborativa, crítico-colaborativa, entre outras denominações) estão atreladas

à ideia de uma deliberada aproximação, e não de distanciamento, entre o

pesquisador e o sujeito-alvo da pesquisa. (PERRELLI et al., 2013, p. 280).

Esta postura se baseia no diálogo e na escuta entre pesquisador e pesquisado, na

produção do conhecimento partilhado entre ambos e historicamente condicionado. Além disso,

a pesquisa dessa forma empreendida relativiza os lugares comumente ocupados pelo

investigador e os sujeitos pesquisados: o primeiro não se coloca em posição de observar e anotar

passivamente, ao passo que os sujeitos não constituem apenas fornecedores de dados. Tais

elementos conferem, à investigação, uma dimensão formadora, pautada na metarreflexão e na

aprendizagem conjunta. Nessa perspectiva, o pesquisador assume papel de formador, e, ao

formar, também se forma.

Para Gomes (2006), a pesquisa-formação baseia-se nos pressupostos da Pesquisa-

Ação/Colaborativa, objetivando que os participantes experimentem uma nova perspectiva de

formação, caracterizada pela autora como uma nova cultura formativa. Além disso, afirma que

esse tipo de pesquisa possibilita uma mudança significativa nas concepções prescritivas

comumente encontradas nas pesquisas e permite a participação dos envolvidos, os quais têm a

oportunidade de refletir sobre a própria prática, ressignificando-a.

Pimenta (2006) explica a reconfiguração do sentido e do significado da pesquisa-ação

enquanto pesquisa crítico-colaborativa e enfatiza as contribuições que esse tipo de pesquisa

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pode trazer para a formação docente e para a transformação na educação. Ao ancorar seus

argumentos metodológicos nos pressupostos teóricos de Thiollent, Kincheloe, Zeichner e

outros, enfatiza que este é um tipo de pesquisa que se faz com e não sobre; é feita, portanto,

com os professores no seu local de trabalho, e não sobre eles. Nas palavras da autora:

A pesquisa-ação tem por pressuposto que os sujeitos que nela se envolvem

compõem um grupo com objetivos e metas comuns, interessados em um

problema que emerge num dado contexto no qual atuam desempenhando

papéis diversos: pesquisadores universitários e pesquisadores (professores no

caso escolar). (PIMENTA, 2006, p. 26).

Citando Zeichner, Pimenta (2006, p. 26-27) afirma que “[...] a pesquisa colaborativa [...]

tem por objetivo criar nas escolas uma cultura de análise das práticas, a fim de possibilitar que

os seus professores, auxiliados pelos docentes da universidade, transformem suas ações e as

práticas institucionais.” Assim entendida, a pesquisa colaborativa utiliza os fundamentos da

pesquisa-ação e tem o papel de ampliar a consciência dos envolvidos, provocando reflexão

sobre a própria prática, com vistas à sua transformação. Os professores vão-se constituindo

pesquisadores no decorrer da pesquisa, na medida em que dela participam ativamente. Daí que,

para a autora, esse tipo de pesquisa se configura como pesquisa-ação colaborativa.

No bojo das considerações acima, esclarecemos que nossa investigação se apoiou em

alguns princípios da pesquisa-formação, especialmente no que respeita à construção conjunta

dos dados com as professoras, bem como na reflexão sobre os dados produzidos. No entanto,

sabemos que este tipo de pesquisa – em suas diversas modalidades e denominações – possui

estrutura e metodologia próprias, não adotadas integralmente por nós, em razão de optarmos

por enfocar o trabalho com as crianças. Assim, as professoras foram sujeitos da investigação e

também parceiras investigativas, à medida que seu olhar era recrutado para compor o nosso

olhar sobre as interações que aconteciam na creche e sobre sua influência no desenvolvimento

da linguagem oral dos pequenos, compondo o discurso que aqui se apresenta por múltiplas

vozes (BAKHTIN, 1997).

No tocante aos procedimentos metodológicos adotados com as crianças, nos

identificamos com Martins Filho (2011). Ao analisar pesquisas realizadas com crianças

pequenas, o autor afirma que houve um aumento desse tipo de investigação nos últimos vinte

anos no Brasil, destacando a recente preocupação em desenvolver metodologias que

considerem a criança como protagonista na pesquisa, capaz de fornecer informações sobre si

mesma. Para o autor, desenvolver pesquisas com crianças é um verdadeiro desafio, posto que

já é difícil fazer pesquisas sobre elas. Por isso, é necessário mergulhar fundo no mundo da

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criança, interagindo com ela em seu contexto, o que exige, necessariamente, o contato direto.

Acerca dos procedimentos metodológicos, enfatiza a necessidade da criatividade, do uso de

outros procedimentos, fato que tem motivado os pesquisadores a utilizar mais de uma forma de

coleta dos dados, sendo a fotografia, a filmagem, o desenho das crianças e a observação

participativa usados de forma simultânea e com mais frequência: “Há consenso nos trabalhos

examinados de que, em pesquisas com crianças, é necessário lidar com mais de um

procedimento metodológico para compreender o fenômeno que se quer estudar” (MARTINS

FILHO, 2011, p. 96). Concordando com o autor, a fim de registrar distintas formas de interação

ocorridas na sala do Maternal I, lançamos mão de diferentes procedimentos metodológicos,

combinando fotografias, videogravações e registro em diário de campo.

Com base no método histórico-dialético e adotando princípios da pesquisa-formação,

decidimos considerar a creche como espaço privilegiado de formação, e elegemos, como foco

central do estudo, as interações adulto-criança e criança-criança, bem como as práticas

pedagógicas desenvolvidas. Nossa intenção inicial consistia em observar as relações entre as

crianças e as professoras, e das crianças entre si, com vistas a refletir, no processo de formação

continuada, sobre formas de organizar o trabalho pedagógico que possibilitassem interações,

de modo a conhecer suas contribuições para o desenvolvimento psíquico na primeira infância.

Portanto, o fio condutor da investigação foi o envolvimento com professoras e crianças

pequenas na creche, o que fizemos por intermédio de variados procedimentos metodológicos:

observações participativas; entrevistas; grupos dialogais; fotografias; videogravações; registro

em diário de campo.

Esclarecendo melhor os procedimentos acima mencionados, nossa pesquisa foi

construída mediante intervenção na realidade, no desenvolvimento de práticas pedagógicas com

as crianças pequenas do Maternal I e encontros formativos com as professoras, tendo, como

objeto de análise suas práticas, registradas por meio de fotografias, filmagens e registro em

diário de campo, obtidos por intermédio de observações participativas. Dessa forma, almejamos

propiciar, no processo de construção da pesquisa, momentos de reflexão sobre a especificidade

do trabalho pedagógico com crianças bem pequenas na creche.

Voltemos ao processo de inserção no campo. Na segunda etapa da investigação, que

começou em maio e terminou em outubro de 2014 (com exceção do período de recesso),

estivemos na creche regularmente, frequentando o Maternal I três vezes por semana,

permanecendo ali cerca de três horas a cada manhã, por vezes à tarde. Esse período

compreendeu cerca de 180 horas de observação e participação. Atentas ao que se passava, íamos

fazendo anotações no caderno de campo. Em casa, procurávamos organizar as anotações,

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complementando com detalhes guardados na memória. Nesse movimento, o diálogo com os

referenciais teóricos se fazia necessário, os momentos de estudo e reflexão permitiam repensar

algumas questões, apontar outras, e interpretar (ainda que de forma inicial) o que observávamos

em campo, à luz da Teoria Histórico-Cultural. Nos primeiros dias, apenas observávamos e

anotávamos. Posteriormente, ao lado do processo de observação, começamos a fotografar

eventos de interação nos diversos momentos da rotina da sala: alimentação, cuidados, banhos,

passeios, sono, brincadeiras. Usamos esse recurso também em ocasiões de programações da

creche, nas festas comemorativas. De click em click íamos registrando as distintas formas de

interação que apareciam nesses contextos.

Dispondo de caderno para anotações e celular para registro fotográfico, procurávamos

captar as interações, ora partindo das crianças para os adultos, ora como iniciativa dos adultos

em relação aos pequenos. Entre observações, fotografias, conversas com as professoras e

participação em distintos momentos, íamos construindo o objeto da pesquisa. Assim é que

fomos, também, nos constituindo pesquisadora na creche. Nesse percurso, alguns desafios

surgiam: o emprego ético dos recursos metodológicos; o uso combinado dos mesmos; a escolha

dos momentos de seu uso; a pretensa familiaridade; o cuidado na interpretação dos dados, na

atribuição de sentidos, dentre outros.

Para observar e anotar, procurávamos sentar em um canto da sala que permitisse visão

privilegiada das crianças e das professoras, em cenas do cotidiano da turma. Mas fazer isso era

normalmente difícil, chegava sempre uma criança buscando nossa atenção. Ora uma queria

nosso material, ora outra trazia um brinquedo ou um livro, por vezes tínhamos que intervir

numa disputa. Então o caderno de anotações era colocado de lado. O exercício dialógico e

alteritário se impunha, neste caso com as crianças. Isto nos faz questionar o lugar da criança na

pesquisa, especialmente a criança pequena. Mello (2010) denuncia a visão de criança que

muitas vezes tem predominado nas práticas pedagógicas desenvolvidas pela escola infantil e

também nas pesquisas. Na perspectiva adultocêntrica, são vistas como incapazes, sob o prisma

do que lhes falta, de sua incompletude, por “[...] suas incapacidades em comparação com os

adultos, a limitação de sua experiência, a insuficiência de seus conhecimentos, a incapacidade

de pensar logicamente, de controlar sua própria conduta” (MELLO, 2010, p. 184). Mais adiante,

complementa:

Sem uma compreensão de que as qualidades humanas são histórica e

socialmente aprendidas e, portanto, precisam ser vivenciadas ativamente pela

criança, acabamos por impedir sua participação em atividades que ensinam

diferentes capacidades práticas, intelectuais e artísticas e que iniciam a

formação das primeiras ideias, sentimentos e hábitos morais, os traços de

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caráter, enfim, os fundamentos da personalidade e da inteligência. (MELLO,

2010, p. 185).

Faz-se necessário superar essa visão, compreendendo que a criança é ativa desde o seu

nascimento, que busca seu lugar nos distintos contextos sociais de que participa, interagindo

ativamente com os adultos, atribuindo sentido ao que lhe é apresentado. Assim é que vai, aos

poucos, se apropriando da cultura à sua volta. Dessa forma, as crianças têm muito a nos

informar, mesmo as pequenininhas, que, apesar de ainda não se expressarem verbalmente,

mantêm com os adultos e com seus pares uma relação comunicativa, que se faz por intermédio

dos gestos, do movimento, do olhar, da expressão facial, do riso, do choro, das primeiras

vocalizações, das cem linguagens anunciadas por Malaguzzi (1999).

Do mesmo modo que Guimarães (2008) em sua pesquisa sobre as relações dos bebês

com os adultos no berçário, no exercício de observar percebíamos a necessidade de escapar à

ilusão do óbvio, do familiar, do transparente. Em seu estudo, a pesquisadora considera que,

entre outras coisas, pesquisar significa compreender que nem tudo o que é familiar é conhecido,

é preciso encontrar, em meio ao que nos parece habitual, aquilo que é surpreendente, que nos

causa perplexidade. Para Amorim (2001), essa postura se traduz pelo estranhamento, no

entanto, esse é um exercício complexo, pois encontrar o novo no que nos parece habitual e

conhecido exige busca constante, e o afastar-se das “certezas.”

Kramer, Barbosa e Silva (2008) defendem o uso de estratégias do trabalho etnográfico

na pesquisa que se realiza com crianças e enfatizam a necessidade de ver e ouvir atentamente,

desenvolver a habilidade de olhar e escutar adultos e crianças em diferentes formas de interação.

Essa necessidade se dá em virtude de a pesquisa com crianças pertencer ao campo das ciências

humanas e sociais, e dessa forma, envolver, sempre, relações. Nas palavras das autoras: “[...]

ver e ouvir são cruciais para que se possa compreender gestos, discursos e ações. Este aprender

de novo a ver e ouvir (a estar lá e estar afastado; a participar e anotar; a interagir enquanto

observa a interação) se alicerça na sensibilidade e na teoria e é produzida na investigação [...]”

(KRAMER, BARBOSA, SILVA, 2008, p. 86). O olhar deve ser marcado pela perplexidade,

como se se estivesse vendo pela primeira vez. Ou seja, é preciso manter certo distanciamento,

especialmente se o campo de pesquisa é familiar para o pesquisador. A posição exotópica se

fazia necessária. No entanto, “[...] a exotopia é algo por conquistar [...] (BAKHTIN, 1997, p.

35); é difícil distinguir o limite entre a identificação e o distanciamento, movimentos que

possibilitam as supressas e o aparecimento dos achados de campo.

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Observar, anotar, responder, estar perto e procurar distanciamento a fim de desvelar o

novo. Isto se converte em autêntico desafio, sobretudo quando se pesquisa com crianças bem

pequenas. Não raras vezes nos vimos diante dessa provocação: entre a decisão de observar ou

participar; de continuar anotando ou atender uma criança; de dialogar com as professoras em

determinadas situações ou silenciar; de atribuir sentido ao que nos parecia óbvio ou buscar os

sentidos revelados. Um excerto do caderno de campo pode ilustrar o que mencionamos:

“Cheguei cedo, no início das atividades, ainda em tempo de ver as crianças sendo entregues às

professoras pelos pais. Percebo manifestações de choro passageiro, de rostinhos ainda

sonolentos, de acolhimento. Ao entrar na sala, troco de calçado37 e guardo minha bolsa. Me

detenho a observar os movimentos iniciais daquele dia. As mochilas são guardadas e as crianças

são levadas ao refeitório para receber a primeira refeição oferecida pela creche, o café da manhã.

São colocadas nas cadeiras de alimentação e estimuladas a comer: ‘Hum, que gostoso!’, ‘Isso,

Letícia, come tudo!’, ‘Tá bom, Samir?’, ‘Vamos, Isa!’, ‘Que delícia, Fernanda!’... Ainda nas

cadeiras, Creuza, Cris e Val38 se revezam na escovação dos dentes e, logo após, levam as

crianças para um passeio na área gramada em frente à entrada da creche. O dia está ensolarado,

bastante propício. “Pequenos” e “grandes” seguem caminhando de mãos dadas, aproveitando o

sol da manhã. Esta atividade é seguida de outra, agora no pátio. Creuza vai buscar alguns

carrinhos/velocípedes que ficam guardados na diretoria e os oferece às crianças. Mais

exclamações: ‘Vai Nanda, pra frente, pra trás!’... ‘Pedala, Letícia!’. Ainda no pátio, Creuza se

mostra muito animada, canta com as crianças, que reagem com alegria. Letícia bate palmas, faz

gestos. Depois, hora do lanche, seguida da hora do banho, já na sala. Uma a uma as crianças

são levadas para o espaço do banho. Ao sair dali, umas se dirigem para a caixa de brinquedos,

outras são atraídas pela música tocada no DVD, no espaço do sono. Aos poucos, todos se juntam

nesse espaço. Adultos e crianças brincam em colchonetes colocados junto à parede. Continuo

observando e anotando, sentada no chão, em um canto da sala. No entanto, as crianças começam

a me procurar, se aproximam, querem ver o que estou fazendo. Fernanda se atira no meu colo,

ergo os braços e tento continuar escrevendo, mas isto se torna quase impossível. Letícia, então,

interrompe de vez minha atividade, ao se apoderar do meu material. Tentei relutar, mas não

consegui. Sem meu caderno de anotações e a caneta, fiquei olhando a pequena rabiscar meus

escritos, enquanto segurava desajeitadamente a caneta. Mostrei-lhe uma folha em branco e

fiquei esperando. Enquanto isso, decidi recorrer à câmera do celular, a fim de fotografar. Mas

este, também, em pouco tempo viria a ser alvo de atenção...” (Diário de campo, 13 de maio de

2014).

37 Observei nos primeiros dias que as professoras mantinham na sala um chinelo de dedo para uso interno, a fim

de não contaminar o ambiente usado pelas crianças para andar, deitar e se arrastar. Resolvi fazer o mesmo,

comprando uma sandália para este fim. 38 Aos poucos fui me sentindo à vontade para usar o diminutivo dos nomes de Cristiane e Valmirene, usado por

todos na creche.

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Fotografia 16 - Letícia (1a, 5m) com material da pesquisadora

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

Apesar da pouca quantidade de crianças e da presença de três professoras, algumas vezes

nos vimos diante do dilema de apenas observar ou de participar, também, enquanto

observávamos. Diálogo e negociação marcavam esses momentos. Tínhamos sempre em mente

o cuidado para que nossa participação não parecesse intromissão. Sentíamo-nos à vontade para

participar em determinados momentos, noutros um pouco menos, em outros não. Brincávamos

com as crianças, atendíamos aos seus pedidos, intervínhamos em disputas, acalmávamos

choros, oferecíamos colo. Arriscamo-nos a ajudar inclusive na hora das refeições,

especialmente o almoço. Nesse momento, todas as mãos eram bem-vindas. Percebemos isso

certo dia quando vimos Creuza equilibrando nas mãos dois pratos de comida, tentando

alimentar duas crianças ao mesmo tempo. Aproximamo-nos e perguntamos “posso ajudar?”, ao

que ela respondeu prontamente me entregando o prato. A partir de então, tivemos participação

ativa nesse momento, nos sentindo cada vez mais à vontade nesta função. No entanto, o mesmo

não ocorria quando se tratava dos banhos e trocas de fraldas. Não ousávamos oferecer ajuda.

Considerávamos invasivo para com as crianças. Percebíamos, dessa forma, que havia um limite

para nossa participação, o que evidenciava nosso papel enquanto pesquisadora. Ao mesmo

tempo, percebíamos que a observação participante possibilitava a interação necessária com as

crianças e as professoras, favorecendo a criação de vínculos de confiança entre nós e elas. Na

medida em que íamos participando dos diversos momentos da rotina da sala, podíamos sentir a

atitude positiva das professoras, encontrávamos respaldo por meio de um olhar de aprovação,

um sorriso, um balançar afirmativo de cabeça, um ‘pedido de socorro’, às vezes.

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Mas também houve falhas. E olhar de não aprovação. No contexto do que comentamos

acima sobre o limite naturalmente imposto ao pesquisador no campo, transcrevemos outro

excerto do caderno de anotações:

“Após o almoço, as crianças estão na sala do sono, deitadas nos colchonetes, prontas para

dormir. Luzes apagadas, sala na penumbra, professoras ao lado das crianças, ninando. Sento

discretamente num canto da sala, aproveito para observar esse momento, tenho pouco registro

do mesmo. Silêncio. Em um dado instante, Creuza conversa baixinho com Letícia, que não quer

dormir. Aproveito para combinar algo com a professora, visto que daqui a pouco vou embora.

Letícia nota minha presença. Fica ainda mais desperta... percebo certa irritação por parte de

Creuza. Me despeço rapidamente e saio da sala.” (Diário de campo, 23 de maio de 2014).

Percebendo claramente nossa intromissão e inconveniência naquele momento,

deixamos a creche preocupada naquele dia. Enviamos mensagem à Creuza, pedindo desculpas.

Perdão aceito, nos dias seguintes procuramos ter mais cautela, sobretudo nos momentos que

antecediam o sono. Às vezes, quando queríamos observar esses eventos, o fazíamos do lado de

fora, através de um vidro transparente colocado na parede que divide o espaço de atividades do

espaço de dormir.

Contudo, a interação com as crianças e as professoras, estar com elas em diversos

momentos e situações, foi possibilitando maior delineamento da pesquisa, o estabelecimento

inicial de algumas categorias, com base nas categorias teóricas estabelecidas a princípio, antes

da entrada no campo. Observando e registrando eventos de interação, almejávamos conhecer

as especificidades das relações que se davam entre as crianças e os adultos e entre as próprias

crianças na creche. Pretendíamos analisar, em conjunto com as professoras, qual o papel

daquelas interações para o desenvolvimento psíquico.

Conjuntamente ao processo de observação, a fotografia foi se fazendo mais presente.

Começamos a fotografar com mais frequência, usando esse recurso metodológico para captar

os eventos de interação, no intuito de analisá-los mais tarde. Com o mesmo objetivo, mais

adiante usamos a filmagem, sentindo necessidade de usar a videogravação em determinados

momentos, em vez da fotografia. Combinadas à observação participante, a fotografia e a

filmagem foram utilizadas para registrar diferentes momentos de interação entre as crianças e

entre estas e os adultos. No decorrer da pesquisa, alguns desses registros funcionaram como

elementos mediadores, usados em momentos de conversa com as professoras como

instrumentos de reflexão sobre a prática e sobre as relações estabelecidas na sala. Entretanto, o

uso da fotografia e da filmagem como recursos metodológicos envolvia delicadas questões. Em

que momentos usar? Como fazer isso sendo o menos intrusa possível? Seria possível inserir

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esses recursos de maneira natural no cotidiano da sala? Como potencializar a fotografia e a

filmagem no sentido de provocar reflexões por parte das professoras?

Gobbi (2011) relata que a fotografia vem sendo bastante utilizada nas pesquisas com

crianças, servindo de auxílio para as mesmas, contribuindo para revelar o que não foi possível

obter pela observação, ou, ainda, sendo o próprio objeto da pesquisa. Nas ciências sociais, é

comumente empregada como recurso metodológico ou como fonte documental, servindo de

ponto de partida para estudos diversos. Enfatiza que as fotografias “[...] constituem importantes

fontes que permitem reflexões sobre os mais variados temas, e, neste caso em especial, sobre a

educação de meninos e meninas pequenos, em diferentes situações no cotidiano pedagógico”

(GOBBI, 2011, p. 131, grifos nossos). As considerações da autora nos auxiliaram quanto ao

uso apropriado desse recurso, que exige certos cuidados, por nós pontuados: 1) A fotografia

constitui um recurso eficaz, fonte de informação quando o pesquisador se encontra ausente do

objeto de investigação. No entanto, na elaboração da construção narrativa, deve ser vista como

uma representação, o que exige que seu uso seja combinado a outros textos, como os escritos.

Portanto, as imagens não devem substituir os textos escritos, antes, devem ser usadas em

articulação com esses, como fontes documentais, e não como elementos ilustrativos; 2) Na

análise das imagens, é preciso dotar o olhar de certo estranhamento, procurando escapar à

familiaridade do cotidiano. Faz-se necessário o exercício da criticidade e da reflexão sobre a

constituição das imagens que se deseja analisar; 3) As fotografias devem ser tomadas como

textos imagéticos, “[...] que informam sobre as relações estabelecidas entre meninos e meninas

nos diferentes espaços, com outras crianças e com adultos” (Idem, p. 138).

Identificamo-nos com algumas pesquisadoras que, assim como nós, lançaram mão

desse recurso (LOPES, 2004; GUIMARÃES, 2008; COSTA, 2011; GARCEZ; DUARTE;

EISENBERG, 2011), as quais apontam que a fotografia e a filmagem podem constituir

importante material de pesquisa, permitindo visualizar aspectos difíceis de serem apreendidos

por outros meios, tais como gestos, expressões e movimentos de bebês; sentidos atribuídos por

crianças a fotografias produzidas por elas mesmas; formas de interações produzidas entre

crianças e adultos; reações de crianças diante da leitura de imagens produzidas pelo

pesquisador; interações de crianças com marcadores de tempo. Em todas essas questões,

fotografias e videogravações foram tomadas como aliados na construção metodológica,

auxiliando na produção do conhecimento. Nas referidas pesquisas encontramos o relato de

tensões e dificuldades semelhantes às que enfrentamos, fato que marcou nossa identificação

com essas investigações.

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Guimarães (2008) usou a fotografia para registrar as relações das crianças com os

adultos e das crianças entre si no berçário de uma creche. As fotografias também serviram como

suporte no compartilhamento da pesquisa com as professoras e a diretora da instituição, para

perceber o sentido que as primeiras atribuíam ao seu trabalho. A pesquisadora aborda os

cuidados éticos que envolvem o uso desse recurso em seu estudo. Relata que, para fotografar,

se colocava em um canto da sala onde não fosse vista e desligava o flash da máquina,

procurando não chamar a atenção, pois “[...] a inclusão da fotografia como recurso

metodológico na pesquisa com crianças e na pesquisa das relações entre adultos e crianças na

creche promove diferentes interferências e consequências na pesquisa e na realidade

pesquisada” (GUIMARÃES, 2008, p. 115).

Convém mencionar que a pesquisa de Guimarães (2008)39 teve importância

fundamental para a nossa. O estudo foi tomado como parâmetro em virtude do tema, dos

procedimentos metodológicos, bem como de alguns dos aportes teóricos utilizados. Baseada

teoricamente na perspectiva filosófica e antropológica, a autora registrou, por meio da

observação participante e da fotografia, a capacidade dos bebês, seu potencial cognitivo, as

transgressões e ações que passam muitas vezes despercebidas pelos adultos. Guimarães revelou

a potência comunicativa dos bebês, apontando para as professoras outra forma de olhar as

crianças e a possibilidade de refletir sobre seus movimentos. Em nossa pesquisa, ancorada na

Teoria Histórico-Cultural, utilizamos procedimento semelhante junto às professoras,

trabalhando com as interações. Todavia, no decorrer da investigação, a comunicação também

foi emergindo como parte do processo de desenvolvimento das crianças e como fruto das

relações estabelecidas.

O estudo de Costa (2011) também enfocou as interações entre adultos e crianças na

creche, registradas por intermédio da fotografia e da filmagem. A autora enfatiza que o uso

desses recursos foi importante por possibilitar a análise aprofundada de imagens e situações

vividas no campo. Nesta investigação, o uso da máquina fotográfica gerou, a princípio, certa

euforia entre as crianças, minimizada na continuidade da pesquisa.

Guimarães (2008, p. 115) assevera que a presença da câmera interfere no campo,

evidencia a presença do pesquisador e do registro, portanto seu uso requer cuidados: “O ato de

fotografar atravessa o campo, contribuindo no desenho do objeto da pesquisa. A presença da

39 Referimo-nos à pesquisa de Doutorado intitulada Relações entre crianças e adultos no berçário de uma creche

pública na cidade do Rio de Janeiro: técnicas corporais, responsividade, cuidado, realizada por Daniela de

Oliveira Guimarães, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) em 2008, orientada por

Sonia Kramer.

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câmera e os momentos do “clique” promovem alterações no curso dos acontecimentos,

evidenciando nuances e provocando surpresas.” Mudança de foco nas cenas capturadas,

procurar não atrair a atenção dos sujeitos a fim de não provocar mudanças em seu

comportamento e desligar o flash da câmera foram alguns cuidados relatados em sua pesquisa.

No processo de registro por meio da fotografia não estivemos imunes a essas questões.

Embora tivéssemos autorização das professoras e dos pais das crianças e apesar de termos

explicitado os objetivos de tal procedimento, não nos sentíamos completamente à vontade.

Fotografar o cotidiano da sala, colocar em cena os fazeres, os gestos, as expressões, os

movimentos, a subjetividade de crianças e adultos, foi um ato complexo, a princípio. Tal como

Guimarães (2008), a fim de amenizar esse incômodo, conversamos com as professoras,

explicando como nos sentíamos, e, sempre que possível, compartilhávamos com elas as

fotografias à medida que íamos registrando. Desse modo, o processo foi se fazendo mais

natural, como parte integrante do cotidiano. Por vezes, mostrávamos as fotos também para as

crianças, observando suas reações diante da própria imagem.

Fotografia 17 - Fernanda (1a, 2m) olhando a

própria imagem

Fotografia 18 - Letícia (1a, 4m) beijando a

própria imagem

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014. Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

Esse movimento favoreceu superar o incômodo gerado pela presença da câmera, de

modo que fotografar já não representava um ato invasivo. Tendo o diálogo e a negociação como

princípios, esse processo redundou em ricas trocas. Algumas vezes éramos chamadas por elas

mesmas para registrar um evento. Ouvíamos um “Arlene, olha aqui!”, ao que corríamos e

pegávamos a máquina, às vezes o celular. Em algumas ocasiões, quando chegávamos na creche

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após um dia de ausência, ouvíamos relatos do tipo “Ah, ontem você perdeu!...”, em referência

a algum evento ocorrido entre as crianças e que consideraram importante para a pesquisa.

Algumas vezes esses eventos eram registrados e compartilhados conosco. Em certo momento,

decidimos fazer isso de maneira sistemática, solicitando que a cada semana uma delas ficasse

responsável por registrar, por meio de fotografia ou filmagem, aquilo que, ao seu olhar, fosse

importante, relevante para a pesquisa. Esses registros, somados aos nossos, iam fazendo parte

dos encontros formativos com as professoras, proporcionando a metarreflexão, sobre o que

consideram Becchi e Bondioli (2003, p. 9): “[...] o momento de retorno dos dados e das

discussões sobre o que foi observado pelos pesquisadores-avaliadores (externos ou internos) é

fundamental, visto que quem foi “objeto” de análise é chamado para ser participante ativo de

um processo de reflexão sobre as próprias práticas [...]”. Gobbi (2011, p. 140) complementa

esse pensamento. Ao discutir sobre o efeito das imagens, comenta que estas devem ser capazes

de provocar reflexão e mudança: “Pode-se inferir que as imagens perdem sua importância

quando, ao chegarem até as pessoas, não desorganizarem suas convicções e pensamentos, nem

mesmo suas práticas pedagógicas, ou o próprio contexto escolar.”

Procedimento semelhante foi adotado por Lopes (2004), que realizou uma pesquisa-

intervenção com o uso da fotografia, tendo por sujeitos alunos com deficiência, para quem

propunha a leitura de imagens. Para a pesquisadora, “[...] a foto, assim como outros objetos

simbólicos, pode ser o ponto de partida para o movimento para dentro de nós mesmos que nos

leva a rememoração e a construção de narrativas envolvendo fatos e emoções” (LOPES, 2004,

p. 104). Acerca da fotografia como recurso metodológico nesse tipo de pesquisa, enfatiza seu

caráter dialógico e alteritário. A fotografia aí utilizada permite a leitura de determinado

momento, se presta à interpretação de quem a observa, possibilita negociar sentidos, se

convertendo em um outro. O ato fotográfico envolve vários elementos, incluindo quem

fotografa, as pessoas fotografadas, o cenário e o espaço. Por isso, sua análise não pode ser feita

apenas com base no registro fotográfico isoladamente. De acordo com a autora,

O foco de investigação deve envolver o ato fotográfico como um todo, a

aproximação e compreensão dos diferentes papéis desempenhados pelo

fotógrafo e pelo modelo, as diversas leituras e análises realizadas por aquele

que produz a imagem e por aquele que a observa. Nesse sentido, o ato

fotográfico abre espaço para uma experiência sensível, dialógica e alteritária

envolvendo o eu e o outro. Desempenhando diversos e mutáveis papéis, há o

encontro entre esse eu-outro, entre fotógrafo-câmera-modelo, entre fotógrafo-

imagem-espectador e diferentes possibilidades de discurso são construídas no

fluxo da experiência do ato fotográfico. (LOPES, 2004, p. 107).

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Acerca da videogravação, Garcez, Duarte e Eisenberg (2011) discutem seu uso pelas

pesquisas qualitativas, afirmando que este recurso foi utilizado por muitos pesquisadores, os

quais “[...] indicam que o uso adequado da imagem em movimento, aliada ao áudio, permite

capturar aspectos difíceis de serem captados com outros recursos” (GARCEZ; DUARTE;

EISENBERG, 2011, p. 251). As autoras relatam que usaram a videogravação para registar as

interações das crianças com marcadores de tempo na creche e afirmam que, em se tratando da

pesquisa qualitativa, o vídeo permite registrar o contexto da interação, além de possibilitar as

revisões necessárias, o que auxilia na organização de sua análise. Outras vantagens do uso desse

recurso para o pesquisador são apontadas: corrigir falhas no processo da pesquisa, ao assistir o

vídeo; observar a própria atuação, perceber como está interagindo com os sujeitos da pesquisa;

rever sua atuação. Tal como mencionam as autoras, usamos a filmagem de forma mais

sistemática no âmbito do que passamos a relatar em seguida, quando sentimos dificuldade de

registrar certos eventos por intermédio da escrita e da fotografia ao mesmo tempo, quer dizer,

quando desejávamos captar imagem, som e movimento. A videogravação se convertia, então,

no meio mais adequado de registro.

No contexto do que estamos descrevendo, em meio ao processo de olhar, participar,

fotografar e filmar eventos de interação entre as crianças e as professoras e entre as próprias

crianças, nosso olhar foi sendo atraído para um novo foco, conforme já sinalizamos acima.

Tendo iniciado a pesquisa diretamente na sala de referência em maio, em meados de junho

começamos a notar, no conjunto das relações estabelecidas na sala, as vocalizações das

crianças, como parte de sua comunicação com os adultos e entre elas. O processo inicial de

desenvolvimento da linguagem oral dos pequenos saltava aos nossos olhos. No caderno de

campo, escrevemos o seguinte registro:

“Tenho percebido certa evolução em relação à linguagem oral das crianças. Elas estão falando

muito, em diversas ocasiões. Repetem o que os adultos falam, imitam sons de objetos e animais,

vocalizam ao pedir e apontar um objeto, apontam cartazes no pátio e falam os nomes de coisas

neles presentes. Hoje o Samir (1a, 2m) pediu banana, apontando para a figura de uma num

cartaz e dizendo para Val ‘nana’. Kauã (1a, 6m) também tem vocalizado bastante, ao interagir

com as professoras e comigo. Penso que devo dar atenção a este fato...” (Diário de campo, 09

de junho de 2014).

Certo dia, na hora do almoço, esfriávamos a comida de Letícia (1a, 6m). A pequena,

com fome, nos olha e diz “já!”, como querendo nos apressar. “Calma, estou esfriando sua

comida, está quente”, foi nossa resposta, ao que ela insistiu dizendo “já, já, já!”. Sorrimos e

cuidamos em alimentá-la. Esse episódio nos motivou ainda mais a dar um novo enfoque para a

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pesquisa, qual seja, as interações verbais, a comunicação que emerge daí. Dessa forma, um

novo objetivo foi delineado: compreender como as interações possibilitam o desenvolvimento

da linguagem oral nas crianças de um a dois anos de idade em situação de creche. Na

emergência desse novo objeto, concordamos com Guimarães (2008), quando afirma que “[...]

o uso da fotografia como recurso metodológico, aliado à observação participante das práticas

da creche, permite dar visibilidade (através da postura crítica do observador-pesquisador) aos

movimentos comunicativos das crianças e aos relacionamentos [...]” (GUIMARÃES, 2008, p.

122, grifos nossos).

De fato, nosso objetivo inicial precisava ser melhor balizado, pois pretendíamos olhar

as interações para conhecer suas contribuições para o desenvolvimento psíquico na primeira

infância. O desenvolvimento do psiquismo infantil, que ocorre nos diferentes estágios que

compreendem o desenvolvimento da criança, mediante a atividade-guia em cada um desses

estágios (LEONTIEV, 1988), é algo bastante amplo, mesmo considerando apenas o período da

primeira infância, de zero a três anos. Portanto, decidimos enfocar a linguagem oral, em

consonância com o que Vigotski (VYGOTSKI, 2012b) assinala quanto ao estudo de cada idade

da criança. Para nosso teórico principal, ao se estudar cada idade, há que se destacar as novas

formações que aí surgem, traduzidas como o novo que se forma nesta etapa e que não existia

antes. Assim, buscamos estudar a linguagem oral das crianças pequenas tendo em mente que

“[...] a principal nova formação central da primeira infância está vinculada à linguagem, graças

à qual a criança estabelece relações distintas daquelas que o bebê estabelece com o meio social,

quer dizer, se modifica sua atitude perante a unidade social de que o mesmo forma parte”

(VYGOTSKI, 2012b, p. 356, tradução nossa).

A partir desse delineamento, nosso foco passou a ser constituído pelas interações

verbais. Interessava saber de que forma interagiam as crianças e as professoras na atividade de

comunicação; que necessidades engendravam tais interações; que motivos, por parte das

crianças ou dos adultos, estavam na base dessa atividade; que meios a favoreciam. Sobretudo,

desejávamos compreender como ocorre o desenvolvimento da linguagem oral no contexto

interativo da creche. Para dar visibilidade aos eventos, intensificamos o uso da videogravação,

visto que o recurso permite captar, ao mesmo tempo, imagem, som, e movimento, conforme já

comentamos.

Em um dos encontros formativos com as professoras, compartilhamos com elas o novo

objeto da pesquisa. Nesta ocasião, discutimos algumas ideias com base nos referenciais teóricos

do trabalho, especialmente o texto A atividade de comunicação e seu desenvolvimento

(LÍSINA, 1986). Decidimos, a partir daí, intensificar com as crianças o desenvolvimento de

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atividades que favorecessem a oralidade, como a conversa, leitura e contação de histórias, por

exemplo. Nossa participação nos próximos dias seguiu nesta direção, bem como os encontros

formativos.

Após a definição do desenvolvimento da linguagem oral como objeto de pesquisa,

realizamos, junto aos bancos de teses e dissertações, uma nova busca de trabalhos defendidos.

Encontramos apenas quatro trabalhos que abordaram a linguagem da criança, todos em nível

de mestrado: dois referentes à linguagem oral da criança pré-escolar, um a respeito dos recursos

comunicativos utilizados pelo bebê em diferentes espaços, incluindo a creche, e somente um

sobre o desenvolvimento da linguagem no ambiente da creche. É importante destacar que

existem muitos estudos sobre creche, muitos deles apresentados por Martins Filho (2011),

Cacheffo (2011), Silva (2013), Rocha e Kramer (2013), mas não sobre o desenvolvimento da

linguagem oral na creche. Este fato torna ainda mais evidente a importância de nosso estudo.

Dentro da perspectiva socioconstrutivista40 que une Wallon e Vigotski, Ramos (2006)

buscou examinar a interação de crianças entre si e com educadoras de creche, utilizando, como

nós, videogravações como ferramenta metodológica, com crianças de 06 a 20 meses de idade. A

autora evidenciou que as crianças recorrem às imitações, gestos, olhar, choro e vocalizações

diversas para expressar significados. A pesquisa destaca que as imitações se fizeram bastante

presentes entre as crianças, como um recurso comunicativo substituto da linguagem

desenvolvida, e as brincadeiras foram apontadas como compartilhamento de significados pelas

crianças e como contextos de emergência desses significados.

A investigação de Costa (2007) é parte integrante de estudos mais amplos da área da

linguagem da Universidade Federal do Espírito Santo, identificando-se com o nosso pela

abordagem histórica, cultural e social, além dos recursos metodológicos utilizados.

Conformando um estudo de caso, a investigação abordou o trabalho realizado com a linguagem

oral em uma instituição de educação infantil. Por intermédio de observações participantes,

entrevistas, fotografias e videogravações, a autora registrou e analisou eventos de interações

verbais, evidenciando a contribuição do estudo para a reflexão a respeito do lugar que a

linguagem oral ocupa nas práticas da educação infantil, em especial da pré-escola. A autora

enfatiza a necessidade da utilização da sala de aula como espaço onde as crianças possam se

40 Cabe destacar que utilizamos aqui essa denominação em respeito ao que consta no trabalho a que nos referimos,

embora seja importante nos posicionar em relação a ela. Não compartilhamos da filiação dos estudos de Vigotski

à chamada abordagem socioconstrutivista, que une perspectivas bastante díspares quanto ao desenvolvimento da

criança, desconsiderando a essencialidade do social que é elemento fundante desse processo para Vigotski e seus

colaboradores, conforme temos discutido ao longo deste trabalho.

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expressar e, ao mesmo tempo, utilizar as brincadeiras como atividades que possibilitem seu

desenvolvimento.

Elmôr (2009) também utilizou o estudo de caso para investigar os recursos

comunicativos e linguísticos (verbais e não-verbais) utilizados por um bebê no primeiro ano de

vida em diferentes espaços com distintas pessoas (mãe, babá, irmã, educadoras, coetâneos e o

câmera). Pertencente à área da psicologia, a pesquisa baseou-se na perspectiva teórico-

metodológica da Rede de Significações e noção de “campo interativo”, buscando verificar,

além dos recursos comunicativos, os aspectos que diferenciavam a interação do bebê com os

distintos interlocutores e a comunicação estabelecida com eles. Como resultado, a autora aponta

que o bebê pesquisado se utilizou de vinte (20) diferentes tipos de recursos comunicativos de

acordo com os parceiros com quem interagiu, pelo que destaca que os bebês se comunicam de

forma ativa e podem ter preferências quanto às suas interações, evidenciando a importância da

creche nas relações da criança.

Marques (2012) trata do papel da linguagem no desenvolvimento cognitivo da criança

no contexto da educação infantil. O objetivo de sua investigação consistiu em entender como a

linguagem oral se apresenta nas práticas da pré-escola, a partir das ideias de Piaget, Vigotski,

Bruner e outros autores. Por intermédio da intervenção junto a professores de educação infantil,

a autora constatou a importância da linguagem oral no desenvolvimento infantil, apesar de

apontar as limitações de tempo para uma análise mais profunda do tema em questão,

especialmente por envolver a formação docente. Os resultados da pesquisa destacam a

necessidade de planejamento consciente e intencional por parte do professor para a qualidade

do trabalho com a linguagem oral.

Evidenciamos também aqui a pesquisa de Pinho (2013), já citada nesse trabalho, no

contexto das pesquisas locais realizadas. A investigação, que se aproxima da nossa pelo objeto

e base teórica, reflete acerca do desenvolvimento da linguagem oral na criança de zero a três

anos, da importância atribuída pelas professoras a esse processo, além do papel da comunicação

que se dá entre a professora e as crianças. Tendo sido realizada em uma creche local por

intermédio de observações participantes, autoscopias e entrevistas, a autora salienta a

necessidade de as professoras considerarem a fala das crianças no interior da creche e de

aprofundarem seus conhecimentos a respeito do desenvolvimento da linguagem e do

pensamento da criança.

Tendo, pois, a linguagem oral como foco mais recente da pesquisa, algumas questões se

fizeram presentes: como as interações possibilitam o desenvolvimento da linguagem oral?

Como o trabalho pedagógico na creche pode propiciar interações verbais significativas?

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Mantivemos, assim, o foco nas interações, sobretudo as verbais. Para organizar a observação

dos eventos neste segundo momento, tomamos como base teórica as ideias de Lísina (1987),

sobre a origem da comunicação nas crianças. Alicerçada no conceito de atividade de Leontiev,

Lísina concebe a comunicação como um tipo especial de atividade, que envolve: o objeto da

atividade comunicativa, como sendo os sujeitos envolvidos na comunicação, ora como sujeitos,

ora como objetos; a necessidade que a gerou; os motivos da comunicação; as tarefas

comunicativas, colocadas pelas pessoas durante a comunicação; as operações e meios que

possibilitam a comunicação entre as pessoas. Essas categorias subsidiaram nossa observação,

em especial os motivos e necessidades presentes nos eventos de comunicação.

Destacamos, nesta parte do trabalho, a trajetória empreendida na pesquisa, o processo

de transfiguração vivenciado: como começou; o que foi ficando mais evidente e aparecendo,

pouco a pouco; que objetivos fomos delineando. Queremos destacar, no entanto, que os

objetivos propostos inicialmente foram essenciais, na medida em que possibilitaram o

redimensionamento do objeto de estudo. Por seu intermédio, fomos enxergando melhor o

campo, fomos desenhando a própria investigação.

Como pesquisadores, sabemos que, embora tenhamos que traçar, a priori, objetivos,

questões e problemas relativos à investigação, essas opções não devem servir para engessar o

trabalho, porque no acontecer da pesquisa outras questões podem surgir, novos olhares podem

aparecer, diferentes leituras podem lançar luz ao objeto pesquisado e, nesse movimento, surgirá

a necessidade de se mudar o pensado inicialmente. Desse modo, acrescentar, tirar, sobrepor,

complementar, pode ser primordial em termos metodológicos. Concordando com o poeta

António Machado (1983), “faz-se caminho ao andar.”

A respeito dos recursos metodológicos pouco usuais em pesquisas de outros campos do

conhecimento, compreendemos que o pesquisador possui autonomia na escolha do método e

das técnicas que irá utilizar, desde que mantenha o caráter de cientificidade que a pesquisa

requer, e obedeça aos critérios de responsabilidade, rigor, fundamentação teórica e filosófica.

Igualmente, a pesquisa qualitativa, por pertencer a um campo cujos limites são pouco definidos,

permite algumas transgressões, permite ao pesquisador o exercício da criatividade, e até mesmo

da ousadia em relação aos instrumentos metodológicos. Isto se aplica ainda mais quando se

trata de pesquisar com crianças pequenas, como já discutimos anteriormente. Sobre este

aspecto, Domingues (2006, p. 178) esclarece:

Talvez bricolage seja o termo que explique melhor esse trilhar metodológico,

apresentando-o como algo dinâmico, que não se constitui só uma coisa ou só

outra, o que não significa indefinição, mas a organização da pesquisa

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considerando as condições da participação do pesquisador e a natureza do

objeto em foco.

Independente do objeto a ser investigado, das escolhas metodológicas e das técnicas

utilizadas na produção de dados, Bakhtin (2009) nos autoriza a dizer que é necessário manter

postura ética com o campo pesquisado, além de responsividade com os outros com quem

dialogamos, pois esses outros representam as vozes que nos constituem como pesquisadores,

que compõem o contexto e a própria pesquisa. Neste sentido, pesquisar é uma atividade

altamente compartilhada, mediada por signos41, os quais, por sua vez, refletem e refratam a

realidade. Refletem na medida em que trazem junto de si um significado; refratam porque cada

indivíduo, ao interpretar a realidade, também a recria, através de suas experiências pessoais.

É esta a concepção que adotamos na construção de nossa pesquisa, a qual reiteramos ao

organizar o material produzido, signos expressos em fotografias e videogravações que retratam

uma realidade, mas que carecem de nossa interpretação. E que, em certa medida, foram

interpretados por Creuza, Cristiane e Valmirene. Pensamos ser este o caminho possível para a

construção de sentidos, para o exercício da autoria compartilhada.

No final do processo de observação e ida sistemática à creche, em outubro de 2014,

realizamos um encontro com as professoras, participando que estaríamos encerrando, por ora,

a pesquisa de campo. Deixamos claro, no entanto, que poderíamos retornar pontualmente à

creche, caso fosse necessário complementar uma informação, esclarecer alguma dúvida, ou

fazer algum registro adicional. Esta abertura se estende, ainda, para o ano corrente, posto que

duas das professoras permanecem na creche, com as mesmas crianças, agora no Maternal II.

Encerramos o encontro agradecendo pela abertura, colaboração e parceria. Pedimos desculpas

pelas possíveis falhas e intromissões. Abaixo um depoimento de Creuza.

“Não existe maneira de você estar com a gente sem ser intrusa, mas no sentido bom da palavra.

Porque você participou. Eu até pensei que ia ser uma coisa assim... que a pessoa vem, anota,

fotografa, vai embora... Não! Você realmente participou, você amou nossas crianças, você ama,

interagiu com elas. Também quero te parabenizar por você ser essa pessoa interessada que haja

mudança na educação. Porque a gente sabe que tudo isso é uma contribuição. E digo mais, você

tem perfil para ser professora de creche, pela afetividade, que a gente não costuma ver em

pessoas que estão no mestrado, doutorado, de interação com crianças pequenas. Acha lindo,

mas não vai lá limpar caca, como você fez. Então nos sentimos muito à vontade com você. Em

momento algum nos sentimos constrangidas. Às vezes eu até esquecia que você estava aqui

41 Em Bakhtin (2009) podemos conceituar signo como o conjunto da cultura criada pela humanidade para

possibilitar a comunicação: palavras, imagens, desenhos, números, símbolos, sendo a palavra o signo por

excelência, por ser constituída de significado e permitir a expressão do pensamento verbal, formando a consciência

dos homens.

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fazendo um trabalho, né... realmente eu esquecia. Não foi em momento algum pra gente

constrangedor ou chato. Você observou e valorizou nosso esforço de fazer o melhor, porque

sabemos que não fazemos o melhor, mas a gente tenta, dentro das condições que a gente tem.

Você também interagiu com nossas colegas, participou de tudo, foi muito legal isso. A gente

vai sentir muita falta tua, espero que venha nos ver de vez em quando.” (Creuza)

2.3 A organização dos dados e algumas reflexões sobre o papel formador da pesquisa

Após o encerramento da pesquisa na creche, procedemos a um mergulho nos dados. A

organização dos dados coletados/produzidos possibilitou estabelecer as categorias de base

empírica, com base nas categorias teóricas – linguagem; interação; atividade de comunicação;

práticas pedagógicas e mediação –, aquelas que orientaram nosso olhar no campo. A partir

dessa organização, elaboramos a proposta de escrita da tese.

Antes de apresentar um quadro com as categorias de base empírica, que emergiram do

campo, gostaríamos de registrar algo mais sobre os dados. Uma confissão, ou quase isso. Diz

respeito à natureza da pesquisa, à forma como procedemos no retorno e análise dos mesmos

junto às professoras. Após organização sistemática das fotografias e videogravações e eleição

das categorias para a escrita da tese, alguns aspectos da gestão e prática pedagógica ficaram

evidentes e nos inquietaram bastante, a ponto de querermos voltar à creche e discuti-los com as

professoras. Alguns desses aspectos foram tratados no decorrer dos encontros formativos, no

entanto, pela forma como ficaram aparentes, e pela frequência com que apareceram, achamos

que mereciam mais atenção, mais discussão. Mas talvez isso seja uma outra história, e fique pra

uma outra vez...

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Quadro 4 - Categorias de base empírica

EVENTOS INTERATIVOS COM EMERGÊNCIA DA LINGUAGEM

ORAL

1. Interações comunicativas diretas

(desencadeadas pela própria

necessidade das situações de

comunicação)

- Rotinas: refeições, trocas, higiene pessoal

e sono

- Brincadeiras sem objetos, música e dança

- Colos, atenção e conversa

- Passeios, deslocamentos e festas

2. Interações comunicativas

mediadas por objetos (provocadas

pelas situações de manipulação dos

objetos)

- Brincadeiras e ações com objetos

- Atividades linguísticas, artísticas e

exploratórias: contação de história e

exploração de livros, pintura e Cesto dos

tesouros

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

Conforme o quadro acima, a análise dos dados nos possibilitou organizar os eventos de

interação (entre as crianças e as professoras e das crianças entre si) em dois grupos: 1)

Interações comunicativas diretas: eventos desencadeados pela própria necessidade das

situações de comunicação, não motivados por objetos. Trata-se de atividades desenvolvidas

dentro ou fora da sala de referência, relativas às rotinas (de cuidado do corpo), às brincadeiras

sem o uso de objetos, movimentos corporais (música e dança), à atenção dispensada às crianças,

aos passeios e deslocamentos e algumas programações da creche; 2) Interações comunicativas

mediadas por objetos: eventos de natureza prática-situacional (LÍSINA, 1986, 1987), que

envolveram brincadeiras e ações com a presença de objetos, atividades linguísticas (contação

de história e exploração de livros pelas crianças), artísticas e exploratórias (pintura e Cesto dos

tesouros).

Após a apresentação das categorias emergentes do campo, mostramos, em seguida, a

sistematização do material coletado na pesquisa, inspirada em Guimarães (2008). O acervo

compreende um total de 352 fotografias e 25 vídeos curtos, com duração média entre 10 a 25

minutos. As fotografias estão assim organizadas:

- 35 fotografias de espaços da creche sem a presença de adultos ou crianças.

- 18 fotografias de espaços da sala de referência do Maternal I.

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- 72 fotografias relativas a 15 eventos de interações entre adultos e crianças e destas

entre si. Os eventos representam sequências de acontecimentos, cenas que revelam a

comunicação que se deu em meio às relações construídas na sala, por intermédio das práticas

pedagógicas. Os referidos eventos encontram-se classificados mais abaixo, cada qual com o

número de fotos correspondentes.

- 230 fotografias que não constituíram eventos. São acontecimentos da rotina da sala e

de algumas programações da creche, evolvendo outras turmas. Estão agrupadas de acordo com

as categorias estabelecidas no quadro acima.

Todos os vídeos (25) constituem eventos. Em relação a esses, vale ressaltar que, embora

em um mesmo evento se observe mais de uma categoria, procuramos classificá-los mediante

aquela que ficou mais evidente na filmagem.

De todo o acervo utilizamos 33 fotografias e 13 eventos42. No decorrer do trabalho, na

apresentação e análise dos eventos, usamos a identificação “v” ou “f” (videogravação ou

fotografia) após a numeração, a fim de informar se o mesmo foi registrado por meio de vídeo

ou fotografia. Para proceder a análise dos eventos filmados, seguimos orientações propostas

por Pinheiro, Kakehashi e Angelo (2005), Loizos (2008) e Garcez, Duarte e Eisenberg (2011).

Acerca da análise de vídeos em pesquisa qualitativa, Loizos (2008, p. 149) indica que “[...] o

pesquisador deverá então dar conta de diversas tarefas: exame sistemático do corpus de

pesquisa; criação de um sistema de anotações em que fique claro por que certas ações ou

sequências de ações devam ser categorizadas de um modo específico; e finalmente, o processo

analítico da informação colhida.”

Dessa forma, tendo em mente que a análise do material filmado exige, num primeiro

momento, a seleção das imagens e das falas mais significativas com base nos objetivos da

investigação e do referencial teórico assumido (PINHEIRO; KAKEHASHI; ANGELO, 2005),

utilizamos os vídeos combinando duas formas distintas, mas inter-relacionadas: a)

transcrevendo as gravações (eventos de interação); b) mantendo o mesmo formato do material

como originalmente produzido (vídeo), portanto, tomando os vídeos como textos; (GARCEZ;

DUARTE; EISENBERG, 2011)43. No momento das transcrições, em alguns casos agregamos,

42 Cada evento é composto de várias imagens, tanto os registrados por meio de fotografia quanto os registrados em

videogravação, que foram editados pelo Programa de computador Movie Studio Platinum 13. Porém, não

contabilizamos o número de imagens de cada evento, mas o evento como um bloco. 43 Garcez, Duarte e Eisenberg (2011) comentam que muitos pesquisadores realizam a transcrição das gravações,

transformando o texto audiovisual em texto escrito. Embora as autoras apontem certas limitações quanto ao uso

desse procedimento – perda de qualidade, dificuldade em descrever de forma detalhada gestos, olhares e

entonações da voz, e simplificação do material audiovisual –, lançamos mão dessa técnica em razão da mesma

mostrar-se adequada ao nosso objeto de estudo. Transcrevemos os eventos com vistas a analisar a situação como

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às descrições, anotações registradas no diário de campo, aspectos observados e anotados após

o encerramento das videogravações. Na descrição e análise dos eventos ao longo do trabalho,

usamos imagens dos vídeos, editadas pelo programa Movie Studio Platinum 1344. O programa

permite fragmentar vídeos em intervalos de tempo desejados, obtendo-se uma sequência de

imagens.

De forma sintética, adotamos os seguintes procedimentos na organização, classificação

e análise das videogravações: 1) Transferência dos vídeos gravados para o computador,

organizando-os em pastas identificadas por data, a princípio; 2) Revisão do material gravado e

organização em subpastas, de acordo com as categorias de base empírica estabelecidas; 3)

Edição e fragmentação das imagens videogravadas com a utilização do programa Movie Studio

Platinum 13, possibilitando a escolha das cenas relevantes; 4) Codificação dos fragmentos,

associando-os aos conceitos teóricos. Nesta etapa fomos fazendo lembretes curtos acerca do

conteúdo das cenas, relacionados aos conceitos-chave da pesquisa. Esse procedimento

favoreceu a seleção dos eventos utilizados na análise; 5) Transcrição/descrição do conteúdo das

cenas que se relacionavam aos conceitos teóricos e categorias emergentes; 6) Classificação dos

eventos (quadro 5); 6) Descrição e análise dos eventos, em diálogo com o referencial teórico.

A seguir, um quadro com a relação dos eventos.

Quadro 5 - Eventos classificados por número, nome e forma de registro.

Nº do

Evento

Nome Forma de Registro

Foto Qtd

fotos

Vídeo

1 Um brinquedo, dois jeitos de brincar X 5

2 Samir aprendendo a se calçar X 4

3 Brincando de comidinha X 4

4 Eu tenho um cachorrinho X 4

5 Vamos encaixar X

6 Brincando de esconde-esconde X

7 Disputa na dança X

8 Samir reclama colo da Val I X 4

9 Samir reclama colo da Val II X 4

10 Vamos ouvir história? X

11 Hora da história! X

um todo, as interações vividas na creche entre adultos e crianças e entre as próprias crianças, estabelecendo diálogo

com os fundamentos histórico-culturais concernentes à emergência da linguagem oral nas crianças pequenas. 44 Disponível em: http://www.sonycreativesoftware.com/moviestudiope

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12 Explorando livros na espera do banho X

13 Cristiane negocia com Arthur X

14 Explorando o baú de livros X

15 Letícia guardando o baú de livros X

16 Identificando o boi X

17 Isadora faz um pedido X

18 Malcriação do Samir X

19 Procurando o au au X

20 Estou de olho em você X

21 Explorando um cesto de frutas e legumes X

22 Explorando um cesto de embalagens X

23 Guardando livros X

24 Explorando tinta de gelatina X

25 Explorando tinta de amido X

26 Brincando na piscina X

27 Esperando e conversando X

28 Comer comer! X

29 Banho da Letícia X 4

30 Banho do Samir X 4

31 Banho da Fernanda X 4

32 Conversando na hora do banho X

33 Um diálogo sem palavras X 5

34 Copa na creche X

35 Dia da criança X

36 Letícia com material da pesquisadora I X 6

37 Letícia com material da pesquisadora II X 6

38 Letícia com material da pesquisadora III X 3

39 Letícia com material da pesquisadora IV X 6

40 Letícia com material da pesquisadora V X 9

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

As situações listadas acima constituem eventos, sequências de momentos de interação

entre crianças e adultos e das crianças entre si, marcados pela negociação, pelo encontro, pelas

regras que compõem a vida coletiva na instituição. Procuramos classificá-los e nomeá-los de

acordo com o que ficou mais evidente no âmbito das categorias estabelecidas.

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Para Corsaro (1985, apud GUIMARÃES, 2008, p. 127), eventos de interação na

educação infantil são sequências de ações compartilhadas entre dois ou mais atores que se

relacionam em alguma área e desejam chegar a um sentido comum. Nessa perspectiva, os

eventos se dão mediante abertura e negociação de sentidos.

De acordo com Bondioli (2003), os eventos acontecem no contexto do que denomina

“jogo social”, entendido como as práticas vivenciadas que permeiam o cotidiano das

instituições de educação infantil, “[...] a trama que regula a partitura das diversas situações que

orbitam o dia-a-dia infantil” (BONDIOLI, 2003, p. 59). O jogo social compreende todas as

situações de aprendizagem organizadas pela professora, sobretudo aquelas de natureza social,

relativas ao convívio coletivo fora do círculo familiar da criança, responsáveis por formar sua

socialidade.

Portanto, captamos, através de fotografias e filmagens, momentos de interação que

colocam em cena crianças e suas professoras em atividade de comunicação, com ou sem o uso

da palavra. São interações verbais e não verbais, ora desencadeadas pela criança, ora por

iniciativa das professoras na regência do jogo social (BONDIOLI, 2003). Para atender ao

objetivo final de nossa investigação, decidimos privilegiar as primeiras, compreendendo sua

importância para o desenvolvimento da linguagem oral dos pequenos.

No contexto da pesquisa-formação, realizamos, com as professoras, um total de seis

encontros, com duração média de uma hora cada. No início do processo de investigação

acordamos, em conjunto com as professoras, que o horário mais adequado para este fim seria

de 16:00 às 17:00h, após a entrega das crianças para os responsáveis45. Na própria sala do

Maternal, sentadas em colchonetes na sala de repouso, e após um turno efetivo de nove horas

de trabalho de Creuza, Cristiane e Valmirene, dispúnhamos de uma hora para dialogar a respeito

de aspectos da pesquisa, previamente selecionados. Diferente dos demais dias, em que

frequentávamos a creche pela manhã, nos dias de encontro o fazíamos no período vespertino.

Em casa, no dia anterior aos encontros, selecionávamos o material necessário:

fotografias, videogravações e anotações do diário de campo. Por vezes, escolhíamos também

algum texto pertinente e levávamos como sugestão, para que as professoras lessem em casa. Na

realização dos encontros, utilizando um notebook, começávamos sempre compartilhando os

registros (feitos por nós ou pelas próprias professoras) selecionados, os quais engendravam

45 O período de permanência das crianças na creche, no ano de 2014, era de 7:00 às 16:00h. No entanto, as

professoras permaneciam até às 17:00h, para efeito de cumprimento da carga horária de trabalho. Em ocasiões

oportunas, esse intervalo de tempo era aproveitado com alguma reunião, sob a direção da coordenadora pedagógica

ou da gestora, conforme a necessidade.

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nossas conversas. A partir daí, ouvíamos seus comentários e versões acerca dos eventos

assistidos, alimentando o debate com intervenções conceituais. Vale destacar que os elementos

provocadores dos debates constituíam os próprios dados da pesquisa, produzidos em conjunto

com as professoras. O compartilhamento das fotografias e videogravações com as professoras,

sujeitos da investigação, mobilizava seu olhar, possibilitava enxergar cenas que passaram

despercebidas no cotidiano da sala e significá-las. De igual modo, o contato com a própria

imagem favorecia o exercício alteritário consigo mesmo, o ver-se de fora, podendo representar

“[...] um distanciamento crítico sobre suas atitudes, falas, olhares, sentimentos e

representações” (JOBIM E SOUZA, 2006, p. 212). No entanto,

Esse distanciamento não se desencadeia pela pura e simples presença da

imagem no vídeo ou na fotografia, mas principalmente pelo diálogo que pode

ser potencializado entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa sobre as

imagens que dispõem e juntos observam. Assim, tanto o pesquisador como os

sujeitos da pesquisa podem não apenas despertar a atenção para o que antes

não percebiam, como também construir novos sentidos sobre o que é visto, re-

significando aquilo que se mostrava familiar aos olhos de ambos. (JOBIM E

SOUZA, 2006, p. 212).

O retorno dos dados favorecia o olhar atento para as formas de interação e comunicação

que se davam entre as crianças e as professoras e entre os pequenos e possibilitava a construção

de sentidos por nós e pelas professoras. Tal como afirmam Becchi e Bondioli (2003, p. 9), “[...]

retornar um conjunto de dados observados dentro de um percurso de análise do cotidiano

significa, pois, dar início a um processo de conscientização do grupo de professores convidados

para refletir [...] sobre o que se faz realmente e sobre o que se poderia fazer [...].” No interior

desse movimento, surgiam as intervenções feitas por nós junto às crianças, numa espécie de

retroalimentação do processo. No conjunto das discussões e reflexões acerca do observado,

negociávamos propostas de atividades com as crianças. A este respeito, nossa ênfase recaía

sobre a necessidade de que tais propostas fossem realizadas de forma sistemática e intencional,

sendo inseridas no planejamento, como atividades permanentes.

Convém relatar um fato que ilustra nossas considerações. Notamos, no início das

observações, que as crianças tinham pouco contato com livros, havendo poucos momentos em

que os pequenos pudessem manusear e brincar livremente com esse recurso. Na sala, havia

apenas alguns livros, suspensos em uma pequena prateleira fixada na parede (ver fotografia 14,

p. 62), usados pelas professoras para contação de história. Durante os encontros, por meio de

registros, fomos chamando a atenção para este fato, acentuando a importância da escuta das

histórias lidas, “[...] da inserção dos bebês e das crianças bem pequenas em contextos de

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encontro com a leitura na creche [...]” (FARIA; VITA, 2014, prefácio, p. VIII), com vistas ao

desenvolvimento linguístico. Acordamos, então, a criação de um cantinho de livros. Utilizamos,

para este fim, uma caixa tipo baú, segundo sugestão das professoras. Desse modo, adquirimos

alguns livros, que se juntaram aos que já existiam na sala e uma caixa foi adicionada a outras

duas ocupadas com brinquedos, conforme se vê na imagem abaixo.

Fotografia 19 - Crianças explorando livros

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

Ainda com relação à dimensão formadora da pesquisa e organização dos encontros

formativos, de acordo com as observações que íamos fazendo do cotidiano da sala, inserimos,

por vezes, algum material complementar referente ao objeto da pesquisa, para subsidiar o

debate: um vídeo curto sobre o trabalho com a linguagem oral, um pequeno trecho de livro para

ser lido e comentado ou um livro como sugestão de leitura. A convite da coordenadora

pedagógica da creche, participamos, também, de algumas reuniões de planejamento, momento

em que apresentávamos, a todo o grupo de professoras da instituição, reflexões teóricas acerca

do trabalho pedagógico na creche, em especial as interações e a linguagem oral. Todos os

encontros eram registrados por meio de audiogravação, que, somadas aos registros fotográficos

e videogravações, formavam o acervo da pesquisa, construído coletivamente. Nesta forma de

proceder, concordamos com Jobim e Souza (2006), quando enfatiza que

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A pesquisa-intervenção apresenta-se, portanto, como instauração de modos de

discursividade entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa. Nesta abordagem,

o pesquisador se vê como um sujeito que tem consciência de que sua presença

no campo não representa apenas uma interferência, mas é responsável por

desencadear um determinado tipo de produção de linguagem. Tal postura

representa a recusa à concepção de neutralidade no campo da pesquisa, bem

como questiona a hierarquia dos saberes. Isto significa dizer que os

interlocutores, pesquisadores e sujeitos da pesquisa, são co-autores. Todos

participam das estratégias metodológicas de forma ativa, sendo estimulados a

buscar sempre novas soluções que vão sendo incorporadas durante o processo

de investigação. (JOBIM E SOUZA, 2006, p. 213).

Cabe ressaltar que esse processo não se deu de todo harmonioso. Embora tenhamos

estabelecido uma relação de proximidade e confiança com as professoras, a experiência, por

vezes, carregou algumas tensões. Por mais que tentássemos escapar, em certas ocasiões, o

movimento de colocar em cena as práticas educativas causava certo desconforto: discutir e

refletir sobre elas acabava adquirindo contornos avaliativos. A fim de amenizar tal desconforto,

procurávamos marcar nossa presença na sala por uma relação de parceria, diálogo e negociação.

No início de cada encontro, sempre agradecíamos pela abertura e acolhimento, reafirmando que

estávamos aprendendo juntas.

Conforme já relatamos, o espaço de tempo que dispúnhamos para a realização dos

encontros era de aproximadamente uma hora, no final do dia, após nove horas de trabalho com

as crianças. É compreensível que as professoras estivessem cansadas. Não obstante, na maioria

das vezes houve receptividade e interesse por parte das mesmas. Em outras ocasiões, no entanto,

notávamos que o cansaço parecia prevalecer. Nesses momentos, prometíamos não nos

demorarmos. O fator tempo limitava, também, o aprofundamento das discussões teóricas;

alguns conceitos eram abordados, mas não havia tempo suficiente para discuti-los em

profundidade. Esse fator nos causava certo desconforto, um sentimento meio frustrante na volta

para casa.

Em que pese todo esforço por nós empreendido no sentido de construir um percurso

participativo de investigação, face às tensões relatadas, não sabemos em que medida a

metodologia por nós adotada junto às professoras contribuiu para sua formação em contexto.

Buscamos apoio nos fundamentos da pesquisa-formação, embora não os tenhamos adotado

integralmente como estratégia teórico-metodológica. Consoante as considerações de Gomes

(2006), esse tipo de experiência possibilita olhar para a profissão de educadoras de crianças

pequenas, bem como para a construção de sua identidade, a partir do olhar do outro. A autora

enfatiza que o processo de reflexão sobre a prática transforma-se na prática da autoconsciência,

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uma vez que “[...] as mudanças em educação só ocorrem quando os educadores se convencem

disso [...]” (GOMES, 2006, p. 196).

Aplicando a tese de Vigotski (2000) a respeito da natureza cultural do desenvolvimento

do ser humano, diremos que todas as funções psíquicas – e aqui destacamos a capacidade de

reflexão e análise – desenvolvem-se socialmente, a princípio, vindo a ser internalizadas de

forma individual pela mediação do outro, momento em que, integradas à psique do indivíduo,

passam a funcionar autonomamente. Vigotski (2000, p. 24) declara que “[...] qualquer função

psicológica superior foi externa – significa que ela foi social; antes de se tornar função, ela foi

uma relação social entre duas pessoas.” Esse processo resulta na autoconsciência descrita por

Gomes (2006), em permanente construção, já que entremeada por diferentes condicionantes

que ora permitem, ora obstruem esse processo.

Dessa forma, cientes da complexidade que envolve a formação docente e

compreendendo a formação da professora de creche como um processo em construção

(CERISARA, 2002; CUNHA; CARVALHO, 2002; ONGARI; MOLINA, 2004; GOMES,

2006, 2007), cremos que esse trabalho representou uma modesta mediação, cujo alcance não

somos capazes de mensurar, posto que o objeto do estudo é o desenvolvimento da linguagem

oral em crianças – cerne de nossas discussões no capítulo que segue. Trataremos de como as

interações concorrem para o processo de desenvolvimento da comunicação e da linguagem oral

da criança, de acordo com os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural.

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3 INTERAÇÕES E O DESENVOLVIMENTO DA COMUNICAÇÃO E DA

LINGUAGEM ORAL NA PRIMEIRA INFÂNCIA

___________________________________________________________________________

As coisas que a gente fala

Saem da boca da gente

E vão voando, voando

Correndo sempre pra frente

Entrando pelos ouvidos

De quem estiver presente.

[...]

Mas às vezes as palavras

Vão entrando nas cabeças,

Vão dando voltas e voltas,

Fazendo reviravoltas

E vão dando piruetas.

Quando saem pela boca

Saem todas enfeitadas.

Engraçadas, diferentes,

Com palavras penduradas.46

(RUTH ROCHA)

Refletir sobre o desenvolvimento da linguagem oral a partir da perspectiva histórico-

cultural remete a pensar sobre o próprio processo de desenvolvimento infantil, sobre como a

criança se torna pessoa, sobre como expande suas potencialidades. Pensar a emergência da

oralidade em crianças bem pequenas requer, igualmente, questionar algumas concepções acerca

do desenvolvimento da linguagem oral das crianças, as quais consideram ser esse um processo

46 Excerto da poesia “As coisas que a gente fala”, da escritora Ruth Rocha, publicada em sua obra do mesmo título,

pela Editora Salamandra (2012).

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natural, que ocorrerá de forma espontânea, bastando a criança estar inserida em um meio

falante.

A visão naturalizante sobre o desenvolvimento da linguagem oral perpassa, muitas

vezes, os distintos espaços sociais de educação da criança, incluindo família e instituições

educativas. Decorre daí uma concepção a-histórica e simplista de um processo bastante

complexo. Esse intrincado processo, uma vez encarado como inato, seja por pais ou professores,

pode acarretar perdas ou atrasos no desenvolvimento dos pequenos, não apenas no que respeita

à fala, mas também à formação de outras capacidades, como o pensamento, a percepção, a

memória, a linguagem escrita, todas mediadas pela linguagem verbal. Se compreendido como

inato, nada pode ser feito para nele atuar, exceto esperar: não há necessidade de se comunicar

ativamente com a criança; de se importar com suas primeiras manifestações de linguagem, que,

podem, ao serem interpretadas, converter-se em choro, sorriso, expressões, sons, e movimentos,

e com elas interagir significativamente; de ouvir atentamente suas primeiras palavras; de inseri-

las em contextos ricos de comunicação; de lhes contar e ler histórias, entre outras atividades

que favorecem a formação da linguagem oral.

O enfoque Histórico-Cultural nos convida a olhar o desenvolvimento da linguagem oral

sob outro prisma, sob seu ponto de vista histórico, fortemente vinculado ao meio social.

Consoante seus princípios, todas as funções psíquicas humanas, incluindo a linguagem oral,

não se desenvolvem espontaneamente; antes, são produto das relações humanas. Bebês e

crianças pequenas aprendem e se desenvolvem pela apropriação da cultura, configurando um

processo de formação de capacidades humanas dependente da comunicação, como afirma

Leontiev (1978a). Esse processo de maneira alguma se dá isoladamente; ao contrário, ocorre

nas interações sociais por intermédio da colaboração com outras pessoas.

A linguagem oral, longe de ser fruto apenas de maturação do organismo e representar a

simples associação entre objetos, palavras e fatos, é um processo interno cuja gênese é

constituída pelas relações entre as pessoas: pelas interações sociais a criança vivencia a

linguagem (de forma interpsíquica) para, progressivamente, dela se apropriar e fazer uso (de

forma intrapsíquica), resultado de um processo de internalização. É dessa forma que as palavras,

frases, vão, pouco a pouco, permeando o universo dos pequenos, compondo sua forma verbal

de expressão, penetrando seu pensamento, formando sua consciência.

Contrapondo-nos, pois, às concepções de cunho naturalizante sobre a linguagem, não a

entendemos como uma capacidade que a criança carrega desde o nascimento – embora necessite

da base biológica – e que se desenvolve autonomamente; assumimos o pressuposto histórico-

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cultural de que esta capacidade humana, como todas as demais, é, inicialmente, externa a ela e

será internalizada mediante a apropriação da cultura, por intermédio das relações sociais.

Com base nesse pressuposto, objetivamos compreender como as interações possibilitam

o desenvolvimento da linguagem oral nas crianças de um a três anos de idade em situação de

creche. Inicialmente, abordaremos o desenvolvimento psíquico e sua periodização nos aspectos

mais gerais, no intuito de apresentar um panorama do desenvolvimento e da dinâmica que

envolve a passagem de uma etapa a outra. Em seguida, enfocaremos o período da primeira

infância, juntamente com a formação da linguagem oral, concebida por nós como resultante da

atividade peculiar de comunicação que ocorre em contextos interativos, favorecendo,

sobremaneira, o desenvolvimento psíquico da criança como um todo. Encerrando o capítulo,

abordaremos brevemente a relação entre pensamento e linguagem, privilegiando os aspectos

que se vinculam à formação da linguagem na primeira infância.

3.1 O desenvolvimento psíquico e sua periodização

A Teoria Histórico-Cultural concebe o ser humano como produto da história, e se

contrapõe à ideia de que, ao nascer, ele já possui todas as suas potencialidades. Nessa

perspectiva, o que o homem é ou pode vir a ser é resultado de um processo histórico e cultural,

o que equivale a dizer que tudo o que o sujeito é resulta de suas vivências e experiências, nada

vem pronto, mas é construído historicamente. Entendido dessa forma, o homem é visto como

um ser histórico e cultural, que se constitui nas relações sociais, por intermédio da linguagem

(VIGOTSKI, 2001; 2009; 2012a). Leontiev (1978a, p. 267) sintetiza essas ideias ao afirmar:

“Podemos dizer que cada indivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá quando

nasce não lhe basta para viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado

no decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana” (grifo do autor).

Para Leontiev (1978a), o homem é colocado diante de riquezas culturais que são

heranças das gerações passadas, delas faz uso e as multiplica, deixando assim sua marca na

história, fazendo perpetuar esse processo. Para que possa “[...] adquirir o que foi alcançado no

decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana”, o homem deve se apropriar das

coisas existentes no mundo: das artes, das ciências, da linguagem, em síntese, da cultura. Esse

processo de apropriação, definido pelo autor “[...] como o resultado de uma actividade efectiva

do indivíduo em relação aos objectos e fenómenos do mundo circundante criados pelo

desenvolvimento da cultura humana” (1978a, p. 271), é um processo de formação das

faculdades especificamente humanas e tem como característica principal a formação de funções

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psíquicas novas, ou seja, por intermédio da apropriação dos objetos culturais, o indivíduo

desenvolve novas capacidades.

Concordando com Leontiev, compreendemos que cada criança, desde o momento do

nascimento, é imersa em um mundo permeado de riquezas culturais, que lhes são desconhecidas

a princípio: a linguagem oral, a escrita, as ciências, as artes, os brinquedos, as brincadeiras, as

músicas, as cantigas de roda, as histórias, os contos, a poesia. Tudo constitui um repertório de

criações humanas do qual a criança vai, aos poucos, se apropriar no curso de seu

desenvolvimento, dependendo de suas condições de vida e educação. Sendo a criança um

sujeito histórico e cultural, seu desenvolvimento vai ocorrer nas interações, nas relações, na

convivência com os adultos e com companheiros da mesma idade e de outras idades. Nas

palavras de Leontiev (1978a, p. 271-272), “[...] a criança não está de modo algum sozinha em

face do mundo que a rodeia. As suas relações com o mundo têm sempre por intermediário a

relação do homem aos outros seres humanos; a sua actividade está sempre inserida na

comunicação” (grifo do autor). Esse processo em que a criança paulatinamente entra em contato

com o mundo que a rodeia e constrói suas primeiras impressões ao relacionar-se com ele,

depende da comunicação com as pessoas, é um processo eminentemente educativo, que tem

início por ocasião do nascimento e perdura por toda sua existência. Leontiev (1978a, p. 272,

grifos do autor) esclarece:

As aquisições do desenvolvimento histórico das aptidões humanas não são

simplesmente dadas aos homens nos fenômenos objetivos da cultura material

e espiritual que os encarnam, mas são aí apenas postas. Para se apropriar

destes resultados, para fazer deles as suas aptidões, “os órgãos da sua

individualidade”, a criança, o ser humano, deve entrar em relação com os

fenômenos do mundo circundante através doutros homens, isto é, num

processo de comunicação com eles. Assim, a criança aprende a atividade

adequada. Pela sua função, este processo é, portanto, um processo de

educação.

O processo educativo assim descrito, entendido como a transmissão da cultura humana

às novas gerações e por estas apropriada, começa na mais tenra idade, seja no âmbito familiar

ou escolar. Dessa forma, a creche, como instituição educativa, cuja função precípua é cuidar e

educar, de forma inseparável, de bebês e crianças bem pequenas, assume papel relevante nessa

tarefa. Um olhar cuidadoso para o cotidiano desse espaço pode captar rostos atentos, olhos

curiosos, pés e mãos que desejam explorar, mentes ávidas a descobrir, qual o Pequeno Príncipe

de Saint-Exupéry (1991) a conhecer planetas. São bebês e crianças bem pequenas que, em

condições adequadas de vida e educação, e respeitadas suas especificidades de

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desenvolvimento, poderão aprender qualquer coisa, visto que seu potencial é ilimitado; porque

trouxeram, ao nascer, uma única aptidão: a de formar aptidões (LEONTIEV, 1978a).

As primeiras relações sociais estabelecidas com a criança constituem, portanto,

substrato para o desenvolvimento psíquico. É no contexto de interações entre as crianças e os

adultos e destas entre si que os pequenos falam, ouvem, ampliam seu vocabulário, brincam,

imaginam, sentem, aprendem, constroem relações, formam aptidões, desenvolvem-se. A

creche, por sua vez, constitui espaço propício para essas relações, desde que nela sejam

respeitadas as especificidades de desenvolvimento das crianças e intencionalmente organizadas

situações de interação, brincadeira e aprendizagem.

A fim de situar as crianças por nós observadas na creche quanto ao momento de

desenvolvimento em que se encontram, abordaremos os aspectos mais gerais do

desenvolvimento psíquico, relacionando-o ao desenvolvimento da linguagem – uma das

principais capacidades que se formam na primeira infância, medidora do processo de

constituição cultural da criança (PINO, 2005). Ao elucidar os elementos fundamentais que

concorrem para o desenvolvimento da criança, desejamos esclarecer que a formação da

linguagem segue a mesma dinâmica. Nosso aporte teórico para tal abordagem é constituído

pelos conceitos defendidos por Vigotski (2012a, 2012b), Elkonin (1987) e Leontiev (1988).

Vigotski (2012a) nos convida a estudar o desenvolvimento psíquico do ponto de vista

cultural, afirmando que o mesmo não é resultado da formação de processos naturais, embora a

base natural e biológica do homem contribua para que ele ocorra: esta base constitui o alicerce

sobre o qual dar-se-á o desenvolvimento cultural; no entanto, ela não o determina. Para o autor,

é necessário considerar a estrutura e a gênese47 da formação dos processos psicológicos, sem

fracioná-los em elementos isolados. Desse modo, estudar o desenvolvimento psíquico da

criança, na vertente histórico-cultural, significa estudar a criança concreta, inserida no meio

social e cultural, de onde surgem as premissas para a formação de suas capacidades

especificamente humanas.

Na estrutura que move o desenvolvimento cultural da criança, Vigotski classifica o

primeiro estágio, aquele marcado pelas particularidades biológicas como primitivo, sendo o

ponto de partida para as novas estruturas que se formam posteriormente, denominadas

superiores, já que “[...] representam uma forma de conduta geneticamente mais complexa e

47 Ao propor o estudo da gênese dos processos psicológicos, Vigotski pretende estudar sua origem, do ponto de

vista histórico e social, sobre o que declara: “Para o psicólogo genético, a explicação histórica é a melhor de todas

as possíveis. Para ele, a resposta à pergunta de ‘que representa a forma de conduta dada?’ significa descobrir sua

origem, a história de seu desenvolvimento até o momento atual” (VYGOTSKI, 2012a, p. 139).

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superior” (VYGOTSKY, 2012a, p. 121, tradução nossa). Mais adiante, complementa: “A partir

daí, começa a destruição e a reorganização da estrutura primitiva e a passagem a estruturas do

tipo superior” (Idem, p. 122).

As estruturas superiores são mediadas por signos, do mesmo modo que o trabalho

humano é realizado por intermédio das ferramentas. Ao utilizar o conceito de signo com base

no conceito de ferramenta utilizado por Marx, Vigotski o relaciona a um conceito mais geral, o

de atividade mediadora, entendida como a forma de o homem atuar no mundo. Assim, tanto a

ferramenta quanto o signo cumprem a função mediadora da atividade do homem, sendo que a

primeira exerce influência externa, enquanto que o segundo tem influência interna, psicológica.

Vigotski (2012a, p. 94, tradução nossa) esclarece que a ferramenta “[...] é o meio da atividade

exterior do homem, dirigida para modificar a natureza”, ao passo que o signo “[...] é um meio

para sua atividade interior, dirigido para dominar o próprio ser humano.” O que une os dois

conceitos é que ambos possuem caráter social.

Com base em Marx, Vigotski afirma que o homem, ao transformar a natureza, muda a

si próprio. Sendo assim, a atividade externa do homem apresenta um significado social e

psicológico, na medida em que concorre também para o desenvolvimento do psiquismo. A este

respeito Vigotski escreve:

[...] O domínio da natureza e o domínio da conduta estão reciprocamente

relacionados, como a transformação da natureza pelo homem implica também

a transformação da sua própria natureza. [...] A aplicação dos meios auxiliares

e a passagem pela atividade mediadora reconstrói pela raiz toda a operação

psíquica à semelhança de como a aplicação das ferramentas modifica a

atividade natural dos órgãos e amplia infinitamente o sistema de atividade das

funções psíquicas. Tanto um como outro, o denominamos, em seu conjunto,

com o termo de função psíquica superior ou conduta superior. (VYGOTSKY,

2012a, p. 94-95, grifos do autor, tradução nossa).

Na compreensão de que o signo é, antes de tudo, um meio de relação social que se

materializa nas palavras, nas imagens, nos objetos, e de que as operações com os signos

constituem a base das funções psicológicas da criança, devemos considerar o desenvolvimento

da criança como um processo que tem, na relação dialética entre sua origem biológica e

sociocultural, a sua essência. No entanto, os elementos socioculturais se destacam, na medida

em que é por seu intermédio que se dá o desenvolvimento social do psiquismo, possibilitando

o nascimento cultural da criança. Apesar do fato de que “[...] as funções naturais continuam

existindo dentro das culturais” (VYGOTSKI, 2012a, p. 132), estas últimas, por representar

formas superiores de conduta, possuem suas próprias leis de funcionamento, que são internas,

formam a personalidade e possibilitam a relação da pessoa com o mundo.

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Vale destacar, aqui, uma das principais vias do desenvolvimento cultural da criança

enfatizada por Vigotski, qual seja, a imitação. Superando a concepção intelectualista de que a

imitação seria a reprodução mecânica de uma forma de conduta, o autor (2012a) deixa claro

que esta cumpre um papel fundamental no desenvolvimento infantil: é por seu intermédio que

a criança atua com os signos culturais pela primeira vez (sejam eles palavras, gestos, símbolos

etc.), imitando o que realizam os adultos ou parceiros mais experientes. A imitação é, assim, a

concretização do que a criança é capaz de realizar com a ajuda ou mediação de outras pessoas

e que está, assim, em vias de se tornar uma capacidade sua – ideia expressa pelo conceito de

Zona de Desenvolvimento Próximo (VIGOTSKII, 1988; VYGOTSKI, 2001, 2012b) ou,

segundo Prestes (2010), Zona de Desenvolvimento Iminente48. Este conceito equivale a tudo

aquilo que hoje a criança é capaz de realizar em uma ação colaborativa, ou seja, com a ajuda

do adulto ou de outra criança, mas que conseguirá fazer de forma independente amanhã. Nesse

sentido, a criança apenas imita aquilo que está dentro de sua zona de desenvolvimento iminente,

ou em processo de formação em seu psiquismo. O evento a seguir elucida nossa fala.

___________________________________________________________________________

Evento 2f: Samir aprendendo a se calçar

Data: 08/09/2014

Integrantes: Samir (1a, 8m) e professora Creuza

___________________________________________________________________________

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

48 Ao propor o termo Zona de Desenvolvimento Iminente, Prestes (2010) informa que as primeiras traduções desse

conceito para o português foram realizadas a partir de traduções em inglês, designando-o como Zona de

Desenvolvimento Proximal ou Zona de Desenvolvimento Imediato. No entanto, segundo a autora, essas traduções

não consideraram o essencial ao conceito – a relação entre desenvolvimento e instrução, e a colaboração de outra

pessoa. Prestes (2010, p. 168) enfatiza que “[...] quando se usa zona de desenvolvimento proximal ou imediato não

está se atentando para a importância da instrução como uma atividade que pode ou não possibilitar o

desenvolvimento. Vigotski não diz que a instrução é garantia de desenvolvimento, mas que ela, ao ser realizada

em uma ação colaborativa, seja do adulto ou entre pares, cria possibilidades para o desenvolvimento.”

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Na primeira imagem, Samir tenta, sozinho, calçar a sandália que havia escapado do seu

pé esquerdo. Passa um bom tempo esforçando-se em realizar a ação, tantas vezes executada

pelos adultos. Apesar do esforço, o pequeno não obtém muito sucesso, pelo que Creuza se

aproxima e o auxilia na tarefa, conforme vemos na segunda imagem. Samir participa ativamente

enquanto Creuza o ajuda: observa com atenção, apoia e empurra o pé até que se encaixe por

completo no calçado. Quando, finalmente, consegue colocar a sandália com a colaboração de

sua professora, ele comemora sorrindo e batendo palmas. Sabemos que a ação, ainda não

realizada de forma autônoma por Samir, mas desempenhada com sucesso perante a mediação

de Creuza, logo será executada por ele de forma independente. O calçar-se sozinho encontra-

se, nesse momento, em processo de formação, em sua zona de desenvolvimento iminente

(Diário de campo, 08 de setembro de 2014).

A despeito de alguns animais também demonstrarem a capacidade de imitação, na

criança, esta se difere essencialmente. Os animais o fazem sem conteúdo racional, de maneira

exclusivamente reflexa e limitada, ao passo que a criança, ao imitar, demonstra compreensão

do significado da ação de outra pessoa. Ou seja, o processo de imitação, na criança, implica um

determinado nível de entendimento daquilo que está sendo imitado. Assim sendo, a imitação se

converte em um aspecto importante no desenvolvimento das formas superiores de

comportamento e, em específico, da linguagem. No início do domínio da linguagem verbal,

com frequência observamos que as crianças repetem palavras e frases pronunciadas pelos

adultos com quem convivem. A título de ilustração, citamos uma ocasião em que Letícia (1a,

7m) saiu toda arrumada do banho e, ao ouvir nosso elogio “que linda!”, prontamente se pôs a

repetir a exclamação.

A palavra, concebida por Vigotski como forma privilegiada de signo verbal, é

assimilada pela criança a partir do meio social e tem um papel decisivo no domínio de sua

conduta: na medida em que se desenvolve, a criança vai, aos poucos, adotando para si as formas

sociais de comportamento que os adultos praticaram com ela. Da relação com as pessoas, da

comunicação com os adultos e outras crianças, resulta a complexificação da linguagem e o

enriquecimento da lógica infantil. A linguagem vivenciada pela criança coletivamente, num

primeiro momento, é por ela internalizada, vindo a se converter em linguagem própria, interna.

E somente dessa forma pode se transformar em pensamento discursivo. Nas palavras de

Vigotski (2012a, p. 147, tradução nossa), “[...] a linguagem, que a princípio, é um meio de

comunicação com os demais, e somente mais tarde, [adquire a] forma de linguagem interna, se

converte em um meio de pensamento, fazendo-se assim de todo evidente a aplicabilidade desta

lei à história do desenvolvimento cultural da criança.”

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O conceito de internalização empregado por Vigotski se faz sumamente importante

neste trabalho, uma vez que é por seu intermédio que a criança assimila as formas de conduta

do meio social. Mediante a internalização, a criança assimila as formas de conduta superior

vivenciadas externa e socialmente: usos, costumes, valores, linguagem, enfim, todas as

capacidades humanas, construídas no decurso da história. O conceito é descrito por Smolka

(1992, p. 328):

[...] o fenômeno da “internalização” tem sido designado, em diferentes

perspectivas teóricas, por diferentes termos que carregam distinções

conceituais sutis: apreensão, apropriação, assimilação, incorporação,

interiorização [...]. Como tais, esses termos geralmente referem-se a uma

esfera da atividade particular do indivíduo, ou do movimento de aprendizagem

em relação à realidade física e cultural: relacionados a um conteúdo específico

transmitido pelos outros; concernentes à atividade prática partilhada; ou ainda

dizendo respeito ao processo de (re)construção interna e transformação das

ações e operações; o que esses termos designam está relacionado à questão de

como um indivíduo adquire, desenvolve e participa das experiências culturais.

Vigotski (2000, p. 28-29) explica como ocorre a intervenção do social sobre o

psiquismo:

O desenvolvimento segue não para a socialização, mas para a individualização

de funções sociais (transformação das relações sociais em funções

psicológicas [...]). Toda a psicologia do coletivo no desenvolvimento infantil

está sob nova luz: geralmente perguntam como esta ou aquela criança se

comporta no coletivo. Nós perguntamos: como o coletivo cria nesta ou aquela

criança as funções superiores? Antes era pressuposto: a função existe no

indivíduo em forma pronta, semi-pronta, ou embrionária – no coletivo ela

exercita-se, desenvolve-se, torna-se mais complexa, eleva-se, enriquece-se,

freia-se, oprime-se, etc. Agora: a função primeiro constrói-se no coletivo em

forma de relação entre as crianças, – depois constitui-se como função

psicológica da personalidade.

Vigotski enfatiza a centralidade da linguagem para as relações sociais e para a auto-

regulação e aponta sua íntima relação com o conceito acima exposto, uma vez que possibilita a

transformação de funções sociais em individuais. A atividade com signos permite a passagem

das relações diretas, de ordem instintiva, para um tipo superior de relação, mediada, “[...] cujo

traço fundamental é o signo graças ao qual se estabelece a comunicação” (VYGOTSKI, 2012a,

p. 148, tradução nossa). Assim, a comunicação mediada pelo signo é resultante da primeira

forma de comunicação direta. As primeiras formas de comunicação da criança com o adulto,

como o choro, o grito, o riso, as expressões, se convertem, mais adiante, em comunicação

baseada na palavra, sobre o que Vigotski (2012a, p. 18, grifos do autor, tradução nossa) declara:

“Na idade do bebê se encontram as raízes genéticas das formas culturais básicas de

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comportamento: o emprego de ferramentas e a linguagem humana.” Nesse contexto, a imitação

e as interações sociais ganham relevo, como propulsoras do desenvolvimento das capacidades

e da personalidade da criança.

Consideramos oportuno, aqui, apontar as três etapas que compreendem o

desenvolvimento cultural da criança, segundo Vigotski. O autor recorre ao filósofo Hegel para

ilustrar esta composição, descrevendo a história do gesto indicativo, para, a partir daí, formular

a lei geral do desenvolvimento psíquico. Apresentar essa discussão se faz necessário, uma vez

que, para o autor, o gesto indicativo cumpre papel fundamental no desenvolvimento da

linguagem da criança. Inicialmente, o gesto do bebê representa uma tentativa de alcançar um

objeto que não se encontra ao seu alcance. Movimenta os braços em direção ao objeto desejado,

mas sem sucesso. Esse é o gesto em si. No entanto, quando a mãe ou o Outro entra em ação

interpretando o movimento da criança como indicação, a situação muda, transformando o gesto

em gesto para os outros. Ao interpretar o movimento da criança e satisfazer sua necessidade de

pegar o objeto, a mãe atribui sentido à sua ação, inicialmente fracassada. Isto vai possibilitar

que, mais adiante, a criança relacione sua tentativa de alcançar o objeto com a situação,

percebendo seu movimento como indicação que permite conquistar o que deseja. O movimento,

em vez de se dirigir para o objeto, se dirige para outra pessoa, se torna um meio de relação, um

gesto para si. Apesar de o movimento manter sua característica inicial de gesto em si e para os

outros – uma vez que é compreensível para outras pessoas –, o gesto para si revela que a criança

tomou consciência dele (ainda que de forma elementar). Vigotski (2012a, p. 149, tradução

nossa) afirma que “[...] a criança, portanto, é a última a tomar consciência do seu gesto. Seu

significado e funções se determinam a princípio pela situação objetiva e depois pelas pessoas

que rodeiam a criança [...].”

A princípio, a criança não tinha consciência do significado de seu gesto indicativo. No

entanto, quando seu movimento, mediado e interpretado por outra pessoa, se torna consciente

para ela, sua relação com o meio se modifica. O gesto, que antes teve um significado social,

passa a ter significação individual, psicológico para a criança. Agora ela “sabe” que se quiser

um objeto, um brinquedo qualquer que não possa alcançar por si mesma porque está longe dela,

basta apontá-lo para a mãe ou outra pessoa (criança mais velha) próxima a ela. A influência dos

elementos sociais na constituição das funções psíquicas consiste em que “[...] passamos a ser

nós mesmos através de outros; esta regra não se refere unicamente à personalidade em seu

conjunto senão à história de cada função isolada” (VYGOTSKI, 2012a, p. 149, tradução nossa).

Em outra passagem, essa ideia é complementada pela relação entre o interno e o externo na

formação da personalidade:

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A personalidade torna-se para si aquilo que ela é em si, através daquilo que

ela antes manifesta como seu em si para os outros. Este é o processo de

constituição da personalidade. Daí está claro, porque necessariamente tudo o

que é interno nas funções superiores ter sido externo: isto é, ter sido para os

outros, aquilo que agora é para si. Isto é o centro de todo o problema do interno

e do externo. (VIGOTSKI, 2000, p. 24).

Conforme assinalamos acima, o exemplo do gesto indicativo guarda estreita relação

com o desenvolvimento da linguagem e de todo o psiquismo da criança. No que respeita à

linguagem, Vigotski estabelece três funções que a mesma desempenha na medida em que é

apropriada pela criança. Primeiramente, a palavra tem que possuir um significado, de maneira

que haja ligação entre a palavra e aquilo que ela representa. Em segundo lugar, essa ligação

entre a palavra e o objeto que designa é utilizada como meio de comunicação pelo adulto que

se relaciona com a criança. A terceira função da linguagem se relaciona diretamente à criança,

quando, por intermédio do adulto, a palavra passa a ter significado para ela e passa a mediar a

sua conduta. Dessa forma, a palavra tem significado primeiro para os outros, depois para a

criança, sendo esse um complicado processo, que detalharemos mais adiante.

Desses princípios, torna-se compreensível para nós que o desenvolvimento da criança

seja a conjugação de dois planos distintos e, ao mesmo tempo, interligados: o social e o

individual; o externo e o interno, não dual, mas em relação dialética. Da proposição de que

todas as funções antes de serem psicológicas foram relações entre as pessoas, Vigotski (2012a,

p. 150) elabora a lei que revela a gênese do desenvolvimento cultural da criança afirmando que

“[...] toda função no desenvolvimento cultural da criança aparece em cena duas vezes, em dois

planos; primeiro no plano social e depois no psicológico, a princípio entre os homens como

categoria interpsíquica e logo no interior da criança como categoria intrapsíquica” (tradução

nossa).

A sequência de fotografias abaixo se refere a um evento ocorrido na creche observada,

na hora do almoço. A situação de interação entre as duas crianças exemplifica bem as

considerações acima.

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__________________________________________________________________________

Evento 20v: Estou de olho em você

Data: 12/08/2014

Integrantes: Samir (sem blusa, 1a, 4m) e Kauã (1a, 8m)

___________________________________________________________________________

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

Neste evento de interação, Samir e Kauã esperam pela refeição sentados na cadeira de

alimentação. Enquanto isso, iniciam um diálogo sem palavras. Começam por se dar as mãos

amigavelmente e, em seguida, passam a medir forças, puxando o braço um do outro. Samir,

demonstrando que a brincadeira não o estava agradando, reproduz para Kauã um gesto que a

professora Creuza fazia às vezes para ele, em tom de brincadeira, quando o pequeno

“aprontava” algo. O gesto consiste, como vemos nas imagens, em aproximar dos olhos os dedos

indicador e médio, e depois apontá-los na direção de alguém, como se se dissesse “estou de

olho em você!” (Diário de campo, 12 de agosto de 2014). Este pequeno exemplo mostra que

Samir reproduziu em um contexto significativo um gesto por ele internalizado na experiência

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social mediada pela comunicação, na interação com a professora. Dito em outras palavras,

assimilou individualmente algo que foi vivenciado na realidade exterior, social.

A partir das reflexões apresentadas, podemos apontar, na perspectiva histórico-cultural,

o conceito de desenvolvimento. Em contraposição às concepções que o consideram um

fenômeno quantitativo, de amadurecimento de funções presentes no organismo desde o

nascimento ou como a acumulação de mudanças isoladas no comportamento, Vigotski

conceitua o desenvolvimento infantil como sendo

[...] um complexo processo dialético que se distingue por uma complicada

periodicidade, a desproporção no desenvolvimento das diversas funções, a

metamorfose ou transformação qualitativa de umas funções em outras, um

entrelaçamento complexo de processos evolutivos e involutivos, o complexo

cruzamento de fatores externos e internos, um complexo processo de

superação de dificuldades e de adaptação. (VYGOTSKI, 2012a, p. 141,

tradução nossa).

Vimos que o conceito de desenvolvimento apontado por Vigotski, longe de ser algo

simples, carrega em si a complexidade. No pequeno trecho acima, a palavra “complexo”

aparece quatro vezes, do que podemos depreender que o desenvolvimento da criança é um

processo marcado por relações que se dão por rupturas, saltos e superações. E seus resultados,

os “produtos”, não são lineares, mas divergentes. Essas intrincadas relações incluem mudanças

qualitativas e não apenas quantitativas, avanços e retrocessos de processos, fatores externos e

internos, superação e adaptação ativa ao meio externo.

Segundo Zaporózhets (1987), o desenvolvimento ocorre em dois níveis distintos, mas

inter-relacionados. Trata-se dos níveis funcional e evolutivo. Ao concordar com Vigotski

(1988; 2001) em que os processos de aprendizagem e desenvolvimento não são idênticos e em

que a aprendizagem promove o desenvolvimento, o autor indica que quando a criança assimila

um novo conhecimento ou capacidade se encontra no nível funcional de desenvolvimento, fato

que tem grande importância para a formação de seu psiquismo. O acúmulo das etapas de

desenvolvimento funcional, que produzem mudanças parciais na personalidade, culmina no

desenvolvimento evolutivo, que representa a reestruturação global da consciência e da

personalidade da criança. A respeito dos dois conceitos, Zaporózhets escreve:

Sem pretender dar uma definição exata dos correspondentes conceitos

assinalaremos somente que o desenvolvimento funcional, que pode

transcorrer nos limites de um mesmo nível evolutivo, nos limites de uma

mesma “formação psicológica” sem levar por si à reestruturação da

personalidade infantil no conjunto, consiste em mudanças parciais de algumas

propriedades e funções psíquicas, mudanças ligadas com a assimilação, por

parte da criança, de conhecimentos e procedimentos de ação isolados. À

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diferença disso, o desenvolvimento evolutivo se caracteriza não tanto pela

assimilação de conhecimentos e capacidades isoladas quanto por

transformações mais gerais da personalidade infantil, pela formação de um

nível psicofisiológico novo, de um novo plano de reflexo da realidade, o que

está condicionado pela reestruturação radical do sistema de relações da criança

com as pessoas que a rodeiam e pela passagem a novos tipos de atividade.

(ZAPORÓZHETS, 1987, p. 236, tradução nossa).

Como vimos, o desenvolvimento funcional é responsável pela formação de processos

específicos e mantem estreita relação com a atividade-guia49 da criança, aquela que mobiliza

seu desenvolvimento na etapa dada, segundo Leontiev (1988). A atividade-guia é propulsora

do desenvolvimento funcional, na medida em que possibilita à criança a assimilação de novos

conhecimentos e formas de atuação do mundo social, ampliando sua relação com o meio e

elevando o grau de seu desenvolvimento psíquico. Dessa forma, o desenvolvimento funcional

permite a passagem ao novo tipo de desenvolvimento, o evolutivo.

Ocorre que o desenvolvimento se complexifica ao longo da vida, transcorrendo de

maneira distinta nos diversos períodos que compreendem a infância. Em consonância com os

fundamentos histórico-culturais, apresentamos uma periodização do desenvolvimento psíquico

que não concebe os períodos de vida da criança como estanques, desvinculados. Antes,

considerando a gênese do processo, a Teoria nos mostra que em cada etapa ocorrem mudanças

significativas na psique da criança, resultando na formação de capacidades que constituirão

base para as seguintes, e que as mudanças surgidas em cada etapa reorganizam toda a sua vida,

enriquecendo sobremaneira suas relações com as pessoas e com o mundo. Nessa abordagem,

nosso enfoque central serão os elementos constitutivos da linguagem na primeira infância, etapa

que nos interessa em específico e que será tratada mais detidamente.

Vigotski (2012b) e seus colaboradores, ao estudar a dinâmica das idades no

desenvolvimento infantil, apresentam uma concepção de periodização que refuta as correntes

tradicionais que perduraram por muito tempo na psicologia e, em alguns aspectos, continuam

vigentes até hoje. Contradizem, com seus pressupostos, as correntes que se baseiam em aspectos

biogenéticos, segundo as quais a ontogênese seria a reprodução da filogênese, estando o

desenvolvimento predeterminado, sem sofrer as influências do meio social; contestam a

49 A atividade que orienta o desenvolvimento da criança, enfocada pela Teoria Histórico-Cultural, foi traduzida,

no Brasil, como atividade principal ou predominante (LEONTIEV, 1988; ELKONIN, 1987). No entanto, com

base nos estudos de Zoia Prestes (2010), que analisou as traduções de Vigotski no Brasil e suas implicações na

educação, optamos por utilizar o termo atividade-guia. Segundo a autora, a denominação atividade principal

pressupõe aquela que a criança seja obrigada a realizar, ou a que mais desempenha, pelo que defende a denominação atividade-guia, como sendo um tipo especial de atividade, que conduz o desenvolvimento psíquico.

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estruturação da periodização baseada em aspectos físicos ou biológicos do desenvolvimento,

como a dentição ou a maturação sexual, por exemplo, e enfatizam que esses aspectos isolados

não revelam as mudanças que ocorrem no desenvolvimento, nem suas forças motivadoras;

igualmente, contrariam os estudos de caráter descritivo, que, sem considerar as peculiaridades

do desenvolvimento infantil em todas as etapas, enfatizam apenas seus aspectos externos.

Vigotski (2012b) assevera que ao estudar os diversos períodos, estágios e fases do

desenvolvimento infantil, é preciso considerar as leis internas do desenvolvimento, aquilo que

influencia seus aspectos externos, o que se esconde por trás do comportamento exterior da

criança. Compreender o desenvolvimento infantil, nesta perspectiva, exige questionar as

mudanças que marcam o curso do desenvolvimento, buscar as razões que levam a criança a agir

dessa ou daquela maneira, entender porque seu comportamento muda em determinadas fases.

Esta concepção vê o desenvolvimento como um processo contínuo de automovimento, que,

combinando elementos sociais e individuais, é marcado pelo surgimento, em cada período, de

novas formações, assim caraterizadas:

Entendemos por formações novas o novo tipo de estrutura da personalidade e

de sua atividade, as mudanças psíquicas e sociais que se podem produzir pela

primeira vez em cada idade e determinam, no aspecto mais importante e

fundamental, a consciência da criança, sua relação com o meio, sua vida

interna e externa, todo o curso de seu desenvolvimento no período dado.

(VYGOTSKI, 2012b, p. 254-255, tradução nossa).

As novas formações representam as mudanças significativas em cada período do

desenvolvimento da criança, nos aspectos psicológicos e sociais, e reorganizam, de forma

peculiar, toda a sua personalidade e, sobretudo, ampliam seu nível de consciência. Uma vez

reestruturada a personalidade da criança, sua conduta, suas relações com o meio circundante e

consigo mesma também mudam radicalmente (BOZHÓVICH, 1987). Para Leontiev (1978a),

as novas formações são “órgãos fisiológicos” do cérebro, que aparecem durante o

desenvolvimento individual, responsáveis pelas novas aptidões e funções específicas que se

formam mediante o desenvolvimento cultural do homem.

Ao considerar a dinâmica do desenvolvimento da criança, Vigotski (2012b) aponta que

em períodos estáveis o desenvolvimento é caracterizado por transformações moleculares,

lentas, quase imperceptíveis, ocasionando mudanças igualmente lentas na personalidade da

criança; durante esse tempo estável nenhuma mudança significativa é capaz de reestruturar

todas as relações da criança. No entanto, em momentos de viragem – que ocorrem sempre no

limite entre uma etapa e outra –, o acúmulo de mudanças internas dá espaço a uma formação

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qualitativamente nova, dando a impressão de uma capacidade nova que surgiu de repente no

desenvolvimento da criança.

Segundo o autor (2012b), cada período de desenvolvimento constitui uma estrutura, um

todo único, responsável por formações globais e dinâmicas – as novas formações –,

classificadas como centrais e parciais. As formações centrais são aquelas que influem mais

diretamente sobre o desenvolvimento, possibilitando a reestruturação da personalidade,

constituem as linhas centrais de desenvolvimento. As formações parciais estão relacionadas

com aspectos isolados da personalidade e com as novas formações de períodos anteriores, são

as chamadas linhas acessórias de desenvolvimento.

É importante salientar que existe uma correlação entre as linhas, de maneira que, em

determinado período, um processo que era acessório pode se transformar em central e vice-

versa. A este respeito, convém mencionar um exemplo apontado por Vigotski, já que o mesmo

se relaciona diretamente à nossa investigação. O desenvolvimento da linguagem (que

abordaremos no tópico seguinte) surge na primeira infância, ao lado da principal formação

desse período: ocorre em estreita ligação com os indícios elementares de consciência social e

objetal da criança. Portanto, essa formação está diretamente incluída na linha central de

desenvolvimento na primeira infância. No entanto, no período seguinte, a idade escolar, passa

a ser vinculada à linha acessória. No primeiro ano, por sua vez, o balbucio é o preparo para a

linguagem oral, estando vinculado, nesse período, às linhas acessórias de desenvolvimento. A

respeito da dinamicidade entre as linhas centrais e acessórias de desenvolvimento na aquisição

da linguagem, Vigotski (2012b, p. 263, tradução nossa) esclarece que “[...] um mesmo processo

de desenvolvimento verbal pode figurar na qualidade de uma linha acessória durante o primeiro

ano, chegando a ser linha central de desenvolvimento na primeira infância para converter-se de

novo em linha acessória nas seguintes etapas de idade.”

Articulando as contribuições de Elkonin (1987) e Leontiev (1988) a respeito da

periodização do desenvolvimento psíquico da criança e da atividade-guia de cada período,

respectivamente, e traçando um paralelo com as linhas de desenvolvimento das quais trata

Vigotski (2012b), queremos apresentar, aqui, os aspectos mais gerais da periodização,

objetivando uma aproximação com os elementos que constituem premissas para a formação da

linguagem. O período da primeira infância, interesse especial de nosso estudo, será tratado com

especificidade no tópico seguinte.

O autor que se dedicou de maneira acurada ao estudo da periodização e das atividades

de cada período foi Elkonin (1987), que, ao lado de Leontiev (1988), elaborou o conceito de

atividade-guia – conceito que conduziu o estudo sobre as forças motrizes do desenvolvimento

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psíquico. Elkonin vinculou este conceito aos princípios da periodização, uma vez que a

passagem de um estágio a outro está condicionada à mudança no tipo predominante de

atividade. Mantendo e, ao mesmo tempo, atualizando as contribuições de Blonski e Vigotski

do início do século XX a respeito do tema, Elkonin apresenta os princípios da periodização do

desenvolvimento psíquico:

- o desenvolvimento psíquico da criança ocorre mediante suas condições sócio-

históricas;

- cada período evolutivo influencia o desenvolvimento psíquico geral;

- o desenvolvimento psíquico é um processo que não ocorre de forma linear, antes é

caracterizado por saltos, rupturas e superações;

- a passagem de um período a outro envolve rupturas com formas anteriores de

comportamento, para dar lugar a comportamentos qualitativamente novos. As rupturas

são inerentes ao próprio desenvolvimento e podem desencadear momentos críticos.

Segundo Elkonin (1987), o desenvolvimento psíquico da criança é subdividido em

épocas/etapas, estágios e fases, sendo que a passagem de um período a outro pode vir

acompanhada por momentos críticos, mais ou menos intensos. Sendo assim, as épocas são

separadas entre si por crises mais agudas, que provocam mudança qualitativa no

desenvolvimento psíquico e a reestruturação da personalidade da criança. Os estágios são

períodos que sofrem, em sua passagem de um a outro, crises menos agudas. As fases são

momentos da vida infantil não separados entre si bruscamente, configurando momentos

estáveis.

De acordo com Vigotski (2012b), a periodização do desenvolvimento infantil é marcada

por etapas estáveis e períodos críticos. As idades caracterizadas por crises constituem um tipo

específico de desenvolvimento e são opostas às idades estáveis. Durante as crises ocorrem

mudanças bruscas e significativas na personalidade da criança em um curto espaço de tempo,

representando “[...] pontos de viragem no desenvolvimento infantil que tem, às vezes, a forma

de agudas crises” (VYGOTSKI, 2012b, p. 256, tradução nossa). O autor aponta algumas

características dos períodos críticos: a) apesar de aparecer em idade cronológica relativamente

semelhante entre as crianças, seus limites são indefinidos; b) as crianças se tornam difíceis,

apresentam resistência ao processo educativo, podendo ter queda no rendimento escolar, além

de viver conflitos com as pessoas de seu convívio e consigo mesmas; c) as crianças buscam

maior autonomia, resistindo à intervenção do adulto; d) o ritmo de desenvolvimento diminui se

comparado ao dos períodos estáveis, vindo a ocultar as mudanças positivas próprias desse

momento.

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Das peculiaridades dos períodos críticos apontadas por Vigotski, entendemos que todo

período de transição pode se converter em momento crítico, havendo a necessidade de romper

com formas antigas e adotar novas formas. É o que ocorre com o desenvolvimento psicológico,

conforme explica Bissoli (2005, p. 155): “Sabemos que todos os momentos revolucionários são

críticos, dado o caráter de ruptura com as formas anteriores, que os caracteriza, e o deflagrar de

novos processos, que os marca.”

Neste sentido, Vigotski enfatiza que é preciso considerar os dois lados das crises, os

aspectos positivos que emergem dos períodos críticos e que deles necessitam. Esse período se

caracteriza pela extinção do velho, quer dizer, das formas de comportamento da fase anterior,

é um processo de “desenvolvimento inverso”. Não obstante, ocorre também um processo

criador: apesar de ficarem em evidência processos de involução, se formam importantes traços

da personalidade da criança, que são dependentes deles. O lado negativo dos períodos críticos

“[...] é tão somente a faceta inversa ou velada das mudanças positivas da personalidade que

configuram o sentido principal e básico de toda a idade crítica” (VYGOTSKI, 2012b, p. 259,

tradução nossa).

Faz-se necessário esclarecer que Leontiev (1988) apresenta concepção distinta de

Vigotski (2012b) a respeito das crises, para quem estas são inevitáveis. Concordamos com o

autor, ao considerar que as crises surgem apenas quando o lugar que a criança ocupa nas

relações sociais não possibilita que ela avance em suas capacidades psíquicas, quando suas

funções psíquicas lhe permitem tomar parte no mundo adulto de forma mais autônoma, mas

suas capacidades são ignoradas. Dessa forma, “[...] as crises não são absolutamente

acompanhantes do desenvolvimento psíquico. Não são as crises que são inevitáveis, mas o

momento crítico, a ruptura, as mudanças qualitativas no desenvolvimento. A crise, pelo

contrário, é a prova de que um momento crítico ou uma mudança não se deu em tempo”,

(LEONTIEV, 1988, p. 67).

Em relação à periodização do desenvolvimento psíquico, assumimos posição

semelhante à Bissoli (2005), a qual adotou uma denominação própria para especificar aquilo

que é denominado como épocas, estágios e fases, originalmente. A autora classificou de

momentos do desenvolvimento aqueles períodos que se distinguem por uma atividade-guia e

que, sozinhos, não reestruturam a personalidade da criança. À soma de momentos que

possibilitam a transformação da personalidade em seu conjunto, caracterizando o

desenvolvimento evolutivo, denominou etapas, tal como Elkonin (1987).

Bissoli (2005, p. 150) justifica sua denominação apresentando a origem etimológica da

palavra momento – do latim momentum, que significa movimento, mudança, curto período de

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tempo, entre outros significados – e esclarece sua escolha: “Optamos por utilizá-la por

entendermos que, por seus significados, essa palavra sugere a dinamicidade que caracteriza os

períodos do desenvolvimento psíquico, a sua forma não-estanque, ultrapassando o significado

de fases e estágios.” Por julgarmos coerente a posição de Bissoli e concebermos, igualmente,

que a presença de crises no desenvolvimento não é questão central para nós, tomaremos de

empréstimo sua classificação, a saber, momentos e etapas.

De acordo com Elkonin (1987), em cada etapa do desenvolvimento psíquico, formada

por dois momentos distintos e interdependentes, a relação da criança com o mundo circundante

é mediada, ora predominantemente pelas relações com as pessoas, ora com os objetos sociais:

num primeiro momento, a relação se estabelece com o mundo das pessoas – portadoras do uso

social dos objetos e dos comportamentos socialmente aceitos – e, no momento seguinte, o

mundo dos objetos é o foco das relações. Esse último se apresenta como aquele composto pelos

objetos sociais, cujas funções devem ser apropriadas pela criança, mediante seu uso. Ambas as

formas estão condicionadas à atividade-guia da criança que, juntamente com outras, possibilita

inúmeras aprendizagens.

Faz-se necessário compreender a vinculação existente entre o que Elkonin denomina

“mundo das pessoas” e “mundo dos objetos” nos dois momentos que constituem cada etapa do

desenvolvimento da criança. É importante assinalar o movimento constante entre ambos: em

cada etapa, há a princípio o predomínio das relações das crianças com o “mundo das pessoas”,

o que cria os motivos que conduzem as atividades-guia dos pequenos durante toda a etapa e, no

segundo momento, o predomínio de sua relação com o “mundo dos objetos”, mediada pelas

pessoas. O “mundo dos objetos” com o qual a criança se relaciona é composto pelos objetos

sociais criados pelo homem no decurso da história da humanidade – instrumentos, máquinas,

objetos usados na vida diária, utensílios, brinquedos –, que possuem uma função social e

carregam em si as capacidades e habilidades de sua criação histórica. A criança precisa aprender

a utilizá-los, precisa deles se apropriar, o que significa reproduzir, para si, as capacidades e

habilidades neles cristalizadas. Isto apenas pode ser feito por intermédio das pessoas mais

experientes, mediante o processo educativo. Sendo assim, a relação que a criança estabelece

com as pessoas, e que caracteriza o primeiro momento de desenvolvimento de cada etapa, é o

que deflagra, no segundo momento, a atividade com os objetos por elas utilizados. Esse

processo de assimilação dos objetos mediante seu uso e domínio dos procedimentos

socialmente elaborados resulta na formação da criança como pertencente à sociedade da qual

faz parte. A este respeito, Elkonin (1987, p. 115, tradução nossa) assinala:

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[...] existem bases para supor que a assimilação, pelas crianças, das tarefas,

dos motivos e das normas das relações existentes nas atividades dos adultos

se realiza por meio da reprodução ou modelação dessas relações na atividade

própria das crianças e em suas comunidades, grupos e turmas. É notório que

durante tal assimilação o pequeno enfrente a necessidade de dominar novas

ações objetais, sem as quais é impossível realizar a atividade adulta. Dessa

forma, pois, o adulto aparece diante da criança como portador de novos e cada

vez mais complicados procedimentos de ação com os objetos, de padrões

socialmente elaborados, indispensáveis para orientar-se na realidade

circundante. Assim, a atividade do pequeno dentro dos sistemas “criança -

objeto social” e “criança - adulto social” representa um processo único no qual

se forma sua personalidade.

Nesse sentido, o mundo das pessoas e o mundo dos objetos se expressam pelo sistema

criança-adulto social e criança-objeto social, representando a maneira como a criança se

relaciona com o mundo à sua volta em cada momento de desenvolvimento, o que é determinado

por sua atividade-guia. Existe, como vimos, uma relação de interdependência entre os dois

sistemas, uma vez que as relações com as pessoas, no primeiro momento, é o que faz com que

a criança se interesse pelos objetos por elas utilizados nas relações sociais, dando origem ao

segundo momento. De igual modo, o conhecimento e o uso dos objetos, bem como todas as

operações intelectuais com eles realizadas no segundo momento, serão mediados pelas pessoas

e, nessa dinâmica, induzem a criança a retomar seu interesse pelas relações interpessoais, dando

origem a uma nova etapa de desenvolvimento.

Dessa forma, cada momento do desenvolvimento da criança é caracterizado por uma

atividade-guia, vinculada à linha central de desenvolvimento do período, e a outras tantas que

fazem parte da vida da criança, e que cumprem um papel secundário, ligadas, portanto, às linhas

acessórias do desenvolvimento psíquico. A atividade-guia, para Leontiev (1988), é propulsora

do desenvolvimento em cada momento, formando processos psíquicos importantes, que

culminam no desenvolvimento evolutivo.

Leontiev (1988) aponta três aspectos que caracterizam a atividade-guia: 1) Ela é a

atividade em cuja forma surgem outros tipos de atividades e dentro da qual eles são

diferenciados; 2) É aquela na qual processos psíquicos particulares tomam forma ou são

reorganizados; 3) É a atividade da qual dependem, de forma íntima, as principais mudanças

psicológicas na personalidade infantil, observadas em um certo período de desenvolvimento.

Nas palavras do autor:

Designamos por esta expressão não apenas a atividade que frequentemente

encontramos em dado nível do desenvolvimento de uma criança. [...]

chamamos atividade principal aquela em conexão com a qual ocorrem as mais

importantes mudanças no desenvolvimento psíquico da criança e dentro da

qual se desenvolvem processos psíquicos que preparam o caminho da

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transição para um novo e mais elevado nível de desenvolvimento.

(LEONTIEV, 1988, p. 122).

Atividade-guia é, portanto, aquela que mais influencia o desenvolvimento da criança em

determinado momento, possibilitando o surgimento de outras atividades. Ela se transforma em

cada momento de desenvolvimento e seu conteúdo depende das condições concretas de vida da

criança, tendo influência tanto na própria etapa em que se inscreve nessa condição como sobre

todo o desenvolvimento psíquico.

Das sucintas discussões até aqui empreendidas, apresentamos, abaixo, um quadro com

a sistematização da periodização do desenvolvimento psíquico, de acordo com Elkonin (1987),

Vigotski (2012b) e Leontiev (1988).

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Quadro 6 - Periodização do desenvolvimento psíquico de acordo com Elkonin (1987), Leontiev (1988)

e Vigotski (2012b).

Etapas de

desenvolvimento

Idade

aproximada

Atividade-guia

Forma de relação

DE

SE

NV

OL

VIM

EN

TO

PS

ÍQU

ICO

Pri

mei

ra I

nfâ

nci

a

0-1 ano

Comunicação

emocional direta

Mundo das pessoas

Crise do primeiro ano

1-3 anos

Manipulação dos

objetos

Mundo dos objetos

Crise dos três anos

Infâ

nci

a

3-6 anos

7-10 anos

Jogos e atividades

lúdicas

Escolarização

Mundo das pessoas

Mundo dos objetos

Crise da adolescência

Ad

ole

scên

cia

10-14 anos

14-18 anos

Comunicação

íntima pessoal

Atividade

profissional de

estudo

Mundo das pessoas

Mundo dos objetos

Fonte: Elaboração da autora.

No quadro acima, vemos que a primeira etapa do desenvolvimento psíquico é a primeira

infância, aquela que se dá do nascimento aos três anos de idade, formada pelo momento de

comunicação emocional direta com as pessoas e pelo momento de manipulação dos objetos. A

segunda etapa do desenvolvimento é a infância, que compreende a idade entre três e dez anos

de idade, formada pelo momento dos jogos e atividades lúdicas e pelo momento de

escolarização. A terceira etapa é a adolescência, que ocorre entre dez a dezoito anos de idade,

composta pelo momento de comunicação íntima pessoal e pelo momento de atividade

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profissional de estudo. A denominação de cada momento representa a própria atividade-guia

que o marca, aquela que aí governa o desenvolvimento, conforme já assinalamos.

É importante esclarecer que os limites de idade entre os momentos e as etapas no curso

do desenvolvimento psíquico dependem de seu conteúdo, o qual resulta das condições

históricas reais de existência em que se dá o desenvolvimento da criança. Isto significa que não

é sua idade cronológica que determina as etapas de desenvolvimento, mas sim as condições

histórico-sociais do contexto em que essa criança vive. Sabemos que cada contexto cultural e

histórico produz diferentes infâncias e distintos modos de ser criança. Tais contextos são

determinantes, portanto, para o desenvolvimento psíquico, bem como para a atividade em cada

momento de desenvolvimento, como ressalta Leontiev:

[...] Nem o conteúdo dos estágios nem sua sequência no tempo, porém, são

imutáveis e dados de uma vez por todas. [...] cada nova geração e cada novo

indivíduo pertencente a uma certa geração possuem certas condições já dadas

de vida, que produzem também o conteúdo de sua atividade possível, qualquer

que seja ela. Por isso, embora notemos um certo caráter periódico no

desenvolvimento da psique da criança, o conteúdo dos estágios, entretanto,

não é, de forma alguma, independente das condições concretas nas quais

ocorre o desenvolvimento. É dessas condições que esse conteúdo depende

primariamente. (LEONTIEV, 1998, p. 65).

Em relação ao desenvolvimento psíquico, mencionamos, ainda, um último aspecto, que

diz respeito ao processo de transição de uma etapa de desenvolvimento à seguinte. Essa

transição é provocada pela mudança do lugar que a criança ocupa nas relações sociais, sua

situação social de desenvolvimento, conforme Vigotski (2012b). Por intermédio das relações

com as pessoas e do domínio dos objetos, a criança se apropria de conhecimentos e habilidades

do meio social, passando a compreender essa dinâmica enquanto dela participa ativamente.

Mediante tal apropriação, a criança busca mudar sua situação social de desenvolvimento. Nesse

processo, suas capacidades psíquicas são ampliadas, propiciando relações mais complexas com

o meio social. Esse fato gera uma reorganização em sua atividade e ela passa para uma nova

etapa do desenvolvimento psíquico. Dessa forma, a mudança da atividade-guia e a transição de

uma etapa de desenvolvimento a outra é resultado de um processo evolutivo no

desenvolvimento da criança, uma necessidade interior socialmente mediada pelas relações

interpessoais e pelos objetos sociais. É resultante de novas necessidades, novos sentidos, novas

formas de perceber o mundo.

Vigotski (2012b) esclarece que o meio social é a verdadeira fonte do desenvolvimento,

é o que possibilita a transformação do social em individual, de maneira que a situação social de

desenvolvimento constitui o ponto de partida para todas as mudanças produzidas em cada etapa.

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Ao estudar esse conceito, Singulani (2016, p. 25, grifo nosso) menciona que “[...] o estudo da

situação social de desenvolvimento conduz à análise do conjunto das condições em que a

criança se encontra para o desenvolvimento psíquico, o que envolve o lugar que ela ocupa nas

relações, as suas necessidades [...]”. Assim, a condição social de desenvolvimento, ou, em

outras palavras, a forma como o meio social se relaciona com a criança em determinada idade,

é o que propicia o surgimento das novas formações, que surgem no início de uma etapa e se

consolidam no final, reestruturando toda a personalidade da criança e influenciando seu

posterior desenvolvimento.

Após discutir os traços gerais do desenvolvimento psíquico e compreender sua

dinâmica, passaremos a abordar, especificamente, a etapa que interessa à pesquisa.

Apresentamos o quadro com toda a periodização no intuito de dar visibilidade ao panorama

geral do desenvolvimento. No entanto, vamos nos deter apenas na primeira infância, etapa que

caracteriza as crianças diretamente observadas nesta pesquisa, com idade entre um a dois anos.

Nessa abordagem, nosso enfoque será o desenvolvimento da linguagem oral e da comunicação

– objeto de nossa investigação –, posto que os demais aspectos do desenvolvimento infantil já

foram abordados satisfatoriamente por outras pesquisas (SINGULANI, 2009; TEIXEIRA,

2009; MAGALHÃES, 2011; SCUDELER, 2015, entre outras).

Nosso pensamento será aqui conduzido a partir dos conceitos de Vigotski (2001, 2009,

2012a, 2012b), Elkonin (1987), Leontiev (1978b), Luria (1986), Lísina (1986, 1987),

Zaporozet; Lísina (1986) e Mukhina (1995).

3.2 A atividade de comunicação da criança e a linguagem no primeiro ano de vida

A primeira infância que, como já vimos, compreende a idade de zero a três anos de

idade, é a primeira etapa do desenvolvimento infantil. Nela, por intermédio da comunicação

íntima com as pessoas do seu entorno, num primeiro momento, e pelo manuseio de objetos, no

segundo momento, a criança desenvolve a linguagem oral. Em ambos os momentos –

comunicação emocional direta com as pessoas, entre zero e um ano de idade, e manipulação

dos objetos, de um a três anos aproximadamente –, o domínio da linguagem implica o papel

(inter)ativo da criança e a colaboração do adulto, responsável por apresentar aos pequenos o

mundo dos objetos e das palavras. Por linguagem adotamos a concepção de Luria (1986, p. 27),

para quem esta representa “[...] um complexo sistema de códigos, formado no curso da história

social.”

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Essa etapa do desenvolvimento psíquico tem importância essencial, é o período de maior

intensidade do desenvolvimento da criança, física e psicologicamente, posto que nela ocorrem

suas primeiras aprendizagens. Se levarmos em conta que o bebê nasce dotado apenas de uma

base biológica – que isoladamente não mobiliza seu desenvolvimento – e a capacidade para

formar capacidades, compreendemos a relevância dos primeiros anos de vida para um novo tipo

de nascimento pelo qual passará, mediante a assimilação da experiência social: o nascimento

cultural. O domínio da linguagem, que se configura como parte essencial desse

desenvolvimento cultural, constitui uma das mais importantes capacidades formadas na e pela

criança nesse período, e reflete a constituição do desenvolvimento psíquico: o social

transformando-se no individual; os reflexos inatos convertendo-se em reflexos condicionados,

educados, por meio da influência do adulto. Isto coloca em evidência a importância das

interações, das relações sociais para a formação da linguagem.

É importante lembrar que, segundo Vigotski (2012b), cada momento do

desenvolvimento é marcado pelo surgimento de uma formação nova. As neoformações, de

origem social e orgânica, conjuntamente, são constituídas pelas funções psíquicas que se

formam na criança mediante suas condições concretas de vida, e modificam sua relação com as

pessoas, com o meio e consigo mesmas. Nos dois momentos que definem a primeira infância,

tais formações se encontram estreitamente vinculadas ao desenvolvimento da linguagem.

No primeiro ano de vida, a atividade de comunicação emocional direta com as pessoas

é a atividade-guia, aquela que baliza o desenvolvimento da criança nesse momento. Ela é

decorrente da situação social de desenvolvimento do bebê, possuidor de uma forma especial de

sociabilidade, que, de acordo com Vigotski (2012b), é marcada por dois aspectos fundamentais.

O primeiro diz respeito à imaturidade de suas funções biológicas, fato que o coloca na condição

de total dependência do adulto. O bebê depende do adulto para o alimentar, cuidar, ninar, mudar

de posição e locomover; suas necessidades vitais, físicas e emocionais, são satisfeitas por

intermédio de outra pessoa. Assim, suas primeiras formas de contato com o mundo são

socialmente mediadas. O adulto representa seu centro psicológico, a fonte de todas as suas

impressões visuais e auditivas, tornando-se o elemento mediador de sua relação com tudo o que

o rodeia, característica que confere ao bebê sua natureza social, desde os primeiros meses de

vida. O segundo aspecto que determina a situação social de desenvolvimento do bebê está

relacionado ao fato de que, de sua interação com o adulto, marcadamente íntima e pessoal,

nasce a necessidade de comunicação, que se faz, nesse momento, de forma bastante peculiar,

por intermédio da linguagem sem palavras (por parte da criança). A união dessas duas

características – dependência completa do adulto e necessidade de comunicação – determina a

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situação social de desenvolvimento da criança, de tal maneira que “[...] o desenvolvimento do

bebê no primeiro ano se baseia na contradição entre sua máxima sociabilidade (devido a

situação em que se encontra) e suas mínimas possibilidades de comunicação” (VYGOTSKI,

2012b, p. 286, tradução nossa).

A necessidade de comunicação com o adulto no primeiro ano de vida não é algo inato,

nem surge espontaneamente no bebê. Pelo contrário, é uma necessidade criada, condicionada à

relação que o adulto estabelece com a criança. Nasce da aproximação do adulto, da atenção que

dispensa ao bebê na rotina diária e intensa que inclui todos os cuidados necessários à sua

sobrevivência: alimentação, banho, troca de fralda, sono, acalanto, afetos. Em meio a essa

prática de cuidados, enquanto o adulto fala com a criança mesmo antes que ela compreenda o

que está sendo dito, a necessidade de comunicação se instaura. A fala do adulto, nesse contexto,

torna-se uma atitude antecipadora, capaz de produzir na criança a necessidade de comunicação.

O início da necessidade de comunicação surge já a partir do segundo mês de vida, após

o período pós-natal do recém-nascido e o começo do período lactente50. O recém-nascido

apresenta uma situação de passividade social devido à especificidade de sua vida psíquica,

momento de vivências não diferenciadas, marcadas pelo afeto e sensações não diferenciadas,

não separação entre si mesmo e as coisas, e percepção disforme das situações que o rodeiam.

Disso resulta uma completa carência de comportamento social, uma vez que, “[...] para uma

verdadeira comunicação, são absolutamente imprescindíveis os processos psíquicos graças aos

quais a criança ‘toma consciência’ de que alguém cuida dela e por isso reage diante dessa pessoa

de maneira distinta que ante as demais” (VYGOTSKI, 2012b, p. 283, tradução nossa). No

entanto, Vigotski afirma que esse estágio inicial da vida psíquica do bebê – vinculado

especialmente aos centros subcorticais51 de seu cérebro – sofre mudanças, vindo a integrar-se

às formações nervosas e psíquicas superiores do estágio lactente. Assim, no segundo mês de

vida, surgem as primeiras reações sociais do bebê, indicando a importante mudança que ocorre

na sua vida psíquica.

No primeiro semestre do primeiro ano, entre o segundo e o terceiro mês de vida, surgem

no bebê novas formas de conduta. A passividade do período pós-natal se converte em interesse

50 Em Vigotski (2012b) podemos afirmar que o período pós-natal é o período do recém-nascido, que compreende

o primeiro mês de vida do bebê, sendo, depois disso, considerado lactente até o décimo segundo mês. 51 O recém-nascido possui os centros cerebrais imaturos, especialmente o córtex cerebral, responsável pela

atividade da consciência, fato que confere imaturidade ao sistema nervoso central. Não obstante, dispõe de uma

rudimentar vida psíquica, devido aos centros subcorticais, sobre o que Vigotski (2012b, p. 280) esclarece: “O

córtex cerebral está relacionado, segundo parece, tão só com as manifestações das formas superiores da atividade

consciente, porém a vida de nossas atrações, instintos e afetos mais simples depende, provavelmente, de forma

mais direta, dos centros subcorticais que, em certa medida, já funcionam no recém-nascido” (tradução nossa).

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receptivo, expressado pelas primeiras vivências lúdicas, pelo funcionamento mais eficaz dos

órgãos sensoriais, e pelas primeiras manifestações sociais de prazer ou surpresa frente à

presença do adulto. Nesta fase, seu interesse começa a voltar-se, também, para os estímulos do

mundo exterior. Segundo Vigotski,

Começam a predominar na criança as impressões visuais; algo depois começa

a ouvir, ainda que a princípio tão só aos sons que ela mesmo emite. Intenta

agarrar os objetos, os toca com suas mãos, os lábios, a língua, manifestando

grande atividade. Neste período se desenvolvem ainda as atitudes manuais que

tanta importância têm para todo o desenvolvimento psíquico. [...] Assim, pois,

o início do período mencionado desperta na criança um determinado interesse

pelo mundo exterior e a possiblidade de ultrapassar em sua atividade os limites

de suas atrações diretas e tendências instintivas. Dir-se-ia que para a criança

surge o mundo exterior. (VYGOTSKI, 2012b, p. 287, tradução nossa).

No segundo semestre, entre o quinto e o sexto mês ocorrem, igualmente, mudanças

significativas na relação da criança com o mundo exterior. Essa fase é marcada pelo interesse

ativo do bebê diante das situações que o cercam. Diminuem as horas de sono durante o dia, e o

bebê demonstra um número maior de reações ativas e movimentos expressivos enquanto

desperto. Surgem os primeiros movimentos de defesa, manifestações de alegria, reações de

grito a movimentos negativos, primeiros desejos, reações sociais diante de uma criança da

mesma idade, procura de brinquedos que se perderam de sua vista. Essas novas formas de

comportamento da criança atestam “[...] uma atividade que ultrapassa os limites da resposta ao

estímulo, uma busca ativa de estímulos, ocupações, que se manifestam no incremento

simultâneo de reações espontâneas ao longo do dia” (VYGOTSKI, 2012b, p. 287, tradução

nossa). Nesse estágio surge, ainda, a imitação, capacidade fundamental para o desenvolvimento

posterior da criança. No que respeita à linguagem, por seu intermédio, o bebê assimila os

primeiros sons que se converterão, mais tarde, em fala.

Dentre as características acima descritas, que marcam o primeiro ano de vida do bebê,

Vigotski (2012b) estabelece uma divisão que caracteriza o desenvolvimento e a evolução de

sua relação com as pessoas e com o mundo circundante: 1) período de passividade (pós-natal);

2) período de interesse receptivo (segundo ao sexto mês); e período de interesse ativo (sexto

ao décimo segundo mês). A partir do segundo mês de vida, quando se incrementam as

manifestações sociais da criança, as formas embrionárias de comunicação com o adulto, em

conjunto com o aumento de suas possibilidades vão, gradativamente, favorecendo seu contato

e interesse ativo pelo ambiente próximo. Em outras palavras, o crescente interesse pelo mundo

vem acompanhado da necessidade de atividades comunicativas.

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Lísina (1986, 1987) estudou detalhadamente a gênese da comunicação em crianças de

zero a sete anos de idade, enfocando sua centralidade nas interações entre crianças e adultos e

sua importância para o desenvolvimento psíquico. A autora define a comunicação como uma

“[...] atividade mutuamente orientada de dois ou mais participantes da atividade, cada um dos

quais atua como sujeito, como indivíduo” (LÍSINA, 1987, p. 275-276, tradução nossa). Sua

especificidade reside no fato de estar sempre dirigida à individualidade de outra pessoa, sujeito

da comunicação, e ocorrer apenas em situação de interação, na medida em que “[...] os

participantes manifestam uma atividade mútua e específica, como resultado da qual cada um

deles, alternadamente, se converte ora em sujeito ora em objeto da atividade de comunicação e

a ação de cada um supõe a ação de resposta do outro estando internamente a ela dirigida.” Com

base no conceito de atividade de Leontiev (1988), Lísina considera a comunicação como um

tipo especial de atividade que acontece no interior das relações, em conjunto com outras

atividades.

Enquanto um tipo peculiar de atividade, a comunicação se orienta por um motivo, uma

necessidade, que decorre dos contextos interativos nos quais se estabelece. Como esses

contextos engendram diferentes tipos de interação e a criança pequena possui necessidades

próprias – novas impressões, atividade dinâmica, reconhecimento e apoio – Lísina (1986)

aponta três categorias de motivos de comunicação: cognitivos, práticos e pessoais. Os motivos

cognitivos surgem pela necessidade que a criança tem de novas impressões, novas experiências;

os motivos práticos manifestam-se mediante a necessidade de atividade prática da criança, em

colaboração com o adulto; os motivos pessoais são decorrentes da interação entre a criança e o

adulto, constituindo a atividade de comunicação propriamente dita.

Convém destacar que a dinâmica da atividade comunicativa estudada por Lísina guarda

relação com a periodização do desenvolvimento psíquico estudada por Elkonin (1987) e

abordada por nós no item anterior. Ao definir e caracterizar os dois momentos que formam a

primeira infância (comunicação emocional direta com as pessoas e manipulação dos objetos),

Elkonin apoiou-se nas investigações de Lísina e seus colaboradores. Desse modo, na base dos

motivos da comunicação encontra-se a relação da criança com as pessoas e com os objetos. Isto

significa dizer que, no primeiro momento, quando a atividade-guia é a relação com as pessoas,

os motivos de sua atividade são emocionais, embora as relações entre os bebês e as pessoas de

seu entorno despertem, progressivamente, a necessidade de manipulação dos objetos que os

adultos demonstram e utilizam. Justamente por isso, a partir do sexto mês a atenção do bebê

começa a ser atraída para os objetos à sua volta por intermédio da relação estabelecida com as

pessoas, representando a gestação do segundo momento, quando a atividade-guia será o

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manuseio dos objetos sociais, passando os motivos a serem cognitivos, de aprendizagem do uso

dos objetos e operações mentais com eles, favorecendo sobremaneira a formação do intelecto.

Mas é importante enfatizar que o adulto (o outro social) permanece com um papel importante

para a criança nesse momento: passa de centro psicológico da criança a colaborador em suas

ações.

Na perspectiva de Lísina (1987, p. 276, tradução nossa), a comunicação tem por

fundamento as interações, sejam quais forem seus motivos, razão pela qual a caracteriza como

“[...] determinada interação das pessoas, no curso da qual elas compartilham diferente

informação com o objetivo de estabelecer relações ou unir esforços para alcançar um objetivo

comum”. Como resultado da comunicação, cada pessoa envolvida pode formar uma imagem

de si mesmo e do outro: o auto-conhecimento e o conhecimento das pessoas, a valoração de si

mesmo e dos outros.

Este aspecto tem importância essencial para o desenvolvimento psíquico da criança

pequena, que ainda não é capaz de regular sua própria conduta. É o adulto o responsável pela

formação da consciência infantil, que, inicialmente, se vai formando fora da criança, mediante

a intervenção que ele exerce sobre ela. Sempre que o adulto se dirige à criança, lhe dá atenção,

fala com ela, lhe diz o que pode e o que não pode fazer, está colaborando com a formação de

sua consciência, construída, desse modo, externa e socialmente, para ir, gradativamente, sendo

internalizada pelo pequeno. Esse processo é demorado e apenas se manifesta mais tarde, por

volta dos três anos de idade, no limite entre a primeira infância e a infância.

A sequência de fotografias abaixo apresenta um evento ocorrido na sala de referência e

exemplifica nossas considerações.

___________________________________________________________________________

Evento 23v: Guardando livros

Data: 24/09/2014

Integrantes: Arthur (2a, 3m), Letícia (1a, 9m) e professora Creuza

___________________________________________________________________________

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Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

Era a hora do almoço e as crianças estavam sendo preparadas para ir ao refeitório. Arthur

vai saindo da sala com um livro na mão. A professora Creuza o chama e pergunta: “Arthur, o

livro, onde fica?” O pequeno volta para a sala e arremessa, com força, o livro que segura em

uma das mãos, no baú de livros, de maneira que este cai no chão. Creuza, então, chama sua

atenção dizendo “Assim, Arthur? Jogando? Direito, Arthur!”. Arthur volta, pega o livro do chão

e o coloca dentro do baú, olhando para a professora para mostrar que cumpriu sua ordem. Neste

momento, Letícia, demonstrando compreensão da cena, se apressa em guardar no baú um livro

que tinha na mão, olhando em seguida para a professora, como se pedisse aprovação pelo feito,

e começa a apanhar outros livros que se encontravam espalhados pelo chão, guardando-os no

devido lugar. Após concluir a tarefa, fecha o baú e fita-o por uns instantes, em pé diante dele.

Creuza demonstra aprovação pela atitude das crianças exclamando “Isso, muito bem!”. Logo

após, as crianças são conduzidas para o refeitório (Diário de campo, 24 de setembro de 2014).

Percebemos, neste evento de interação entre as crianças e a professora, que a linguagem

foi usada para a regulação da conduta. Arthur foi advertido por não ter colocado de forma

correta o livro no seu lugar e chamado para que o fizesse. Letícia, percebendo a situação, foi

motivada a guardar o livro que tinha consigo, além de juntar outros que se espalhavam pelo

chão da sala. Esse pequeno exemplo evidencia como vai se estruturando o funcionamento

psíquico dos pequenos: engendrado pelas relações sociais, por intermédio da comunicação e da

linguagem, conformando um processo educativo, humanizador por excelência.

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A partir desse evento de interação, apresentamos a periodização da atividade de

comunicação estabelecida por Lísina (1986; 1987) e Zaporozet e Lísina (1986). São

distinguidas quatro formas de comunicação que ocorrem nos primeiros sete anos de vida da

criança: pessoal-situacional (0 a 6 meses); prática-situacional (6 meses a 2 anos); cognitiva

não-situacional (3 a 5 anos); e pessoal não-situacional (6 a 7 anos). Com vistas a oferecer maior

clareza sobre a atividade comunicativa da criança pequena, apresentamos abaixo um quadro

com esta periodização.

Quadro 7 - Periodização da atividade de comunicação da criança, de acordo com Lísina (1986; 1987)

e Zaporozet e Lísina (1986).

Idade/Período

Forma de comunicação

Motivos

Características

0 a 6 meses

(Bebê)

Comunicação pessoal-situacional

Pessoais

O bebê responde à presença do

adulto por meio de reações

emocionais, que constituem a

base da comunicação em

idades posteriores.

6 meses a 2

anos

(Primeira

infância)

Comunicação prática-situacional

Práticos

A criança realiza a atividade de

manuseio dos objetos materiais

que a rodeiam e atraem sua

atenção em colaboração com o

adulto, que lhe ensina o uso

convencional dos mesmos.

3 a 5 anos

(Pré-escolar)

Comunicação cognitiva não-

situacional

Cognitivos

A criança sente necessidade de

aprofundar o conhecimento

sobre os objetos, o que é feito

em interação com o adulto,

independentemente da situação

imediata.

6 a 7 anos

(Pré-escolar

médio e maior)

Comunicação pessoal não-

situacional

Pessoais

A criança se comunica com o

adulto a fim de compreender os

fenômenos e processos do

mundo social; as pessoas com

quem a criança se comunica

vão exercer influência sobre

sua personalidade.

Fonte: Elaboração da autora.

A comunicação pessoal-situacional, que tem lugar nos primeiros seis meses de vida do

bebê, acontece antes que se forme a comunicação propriamente dita. Dá-se mediante o

complexo de animação, “[...] uma ação complicada, que tem por objetivo a comunicação com

os adultos e que se realiza por meios especiais” (ELKONIN, 1987, p. 116, tradução nossa). No

complexo de animação, o bebê, que já reage às influências do adulto, expressa, em resposta

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ativa aos estímulos provocados por sua presença, reações de concentração, sorriso, vocalização

e movimento. De acordo com Lísina (1987, p. 288, tradução nossa),

[...] Os componentes do complexo de animação servem de base para que o

bebê comece a diferenciar no meio circundante a pessoa adulta

(concentração), realizar a comunicação mímica (sorriso) e especificamente

vocal (vocalizações pré-linguísticas) com o adulto e atrai-lo ativamente para

a comunicação (excitação motora).

A comunicação pessoal-situacional é fruto da relação íntima que se estabelece entre o

bebê e o adulto. É uma forma de interação que caracteriza a dependência do bebê em relação à

situação e à pessoa que cuida dele, sua situação social de desenvolvimento. Por causa disso, se

torna a atividade predominante da criança nesse período de vida, independente de qualquer

outra atividade. Essa forma peculiar de comunicação, que se realiza por meios mímico-

expressivos, tem papel importantíssimo no desenvolvimento psíquico da criança. A interação

com os adultos, sua atenção e cuidados, resultam na elevação do tônus vital da criança, e

influem sobre todo o seu desenvolvimento, estabelecendo a necessidade de novas impressões

(BOZHOVICH, 1981), cuja importância é essencial para que o bebê se torne progressivamente

ativo na relação que estabelece com as pessoas e com os objetos a sua volta. A relação íntima

que se manifesta em cuidados também resulta em processos de percepção, pela criança, da ação

dos adultos, o que, mais tarde, será transferido para a relação com os objetos. Na relação com

os objetos, no momento posterior, a criança desenvolverá fortemente seus processos cognitivos.

Fica claro que tais reações não se formam naturalmente no bebê. Antes, são

condicionadas pelo processo de comunicação, sendo, portanto, sociais por sua natureza. Em

suas pesquisas com bebês de até seis meses de vida, Lísina (1987) observou, por meio de provas

experimentais, que o grau das manifestações emotivas dos bebês depende da qualidade do

contato com o adulto, sendo mais intenso quando o estímulo é mais direto, incluindo o olhar, a

fala e o sorriso. O bebê responde com vocalização aos estímulos que incluem a linguagem,

quando o caráter de sua excitação desencadeia o funcionamento de seu aparato vocal.

Igualmente, quando se encontra aconchegado pelo adulto, na posição junto ao peito, a

intensidade de suas reações diminui, em razão de sentir-se seguro, ao passo que, estando

afastado do adulto, reage de forma a chamar sua atenção por meio dos recursos comunicativos

de que dispõe: vocalização, sorriso, choro, excitação.

Pino (2005) destaca que a comunicação com o Outro constitui o elemento fundamental

para que a criança supere as limitações iniciais de sua existência – resultantes da imaturidade

de seu aparato bioneurológico – que impedem seu contato com o meio e o conhecimento de si

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mesma. Nesse sentido, a comunicação com as pessoas torna-se condição para seu acesso ao

meio cultural, desconhecido a princípio, mas aos poucos apropriado. Conforme o autor,

[...] a sensorialidade e a motricidade, que vão articulando-se progressivamente

ao longo dos primeiros meses, permitem à criança expressar suas necessidades

por meio de movimentos que, ao serem interpretados pelo Outro (em

particular, a mãe) como sinais dessas necessidades, se transformam em atos

significativos, mesmo se a criança ainda o ignora. Cria-se dessa forma um

primeiro circuito de comunicação gestual que modelará as primeiras relações

da criança com o Outro. É por intermédio desse circuito inicial de

comunicação, o qual irá ampliando-se cada vez mais, que a criança é

introduzida de forma progressiva no universo cultural dos homens; um

universo que funciona com formas muito mais complexas de comunicação-

expressão, como é o caso da fala. (PINO, 2005, p. 157, grifo do autor).

Zaporozet e Lísina (1986) enfatizam que a interação com o adulto constitui o

fundamento para o desenvolvimento psíquico da criança e a ausência dessa relação pode

resultar em sérios transtornos em suas capacidades motora, sensorial, intelectual e cognitiva. A

relação emocional estabelecida satisfatoriamente com o bebê nos primeiros seis meses de vida

favorece positiva e fortemente seu desenvolvimento cognitivo. As reações vocais iniciais,

surgidas mediante o contato emocional direto com o adulto, se convertem, para o bebê, em

meios de comunicação com as pessoas do seu entorno, se intensificando cada vez mais no

processo de interação com elas. A importância dessa intercomunicação para a linguagem

consiste em que a mesma serve de fundamento para o posterior desenvolvimento da fala.

A partir do segundo semestre de vida, há um declínio no complexo de animação,

momento em que surge outra forma de comunicação com o adulto, a comunicação prática-

situacional. A comunicação marcadamente emocional começa a ser mediada pelos objetos. A

criança demonstra interesse em manipular os objetos a sua volta e sua atenção já não está

centrada somente no adulto. Um novo tipo de relação se inicia e o adulto atua como organizador

das situações de brincadeira com o bebê. As formas, a natureza e o conteúdo da comunicação

se enriquecem. Nas palavras de Lísina,

Os meios expressivo-mímicos conservam seu significado durante a

comunicação. Inclusive se fazem mais ricos e variados: aparecem olhares,

sorrisos de diversos matizes, a mímica vai se diferenciando e precisando. [...]

Aparece toda uma categoria de novos meios de comunicação em forma de

locomoções e atividades de objeto transformadas. (ZAPOROZET; LÍSINA,

1986, p. 163, tradução nossa).

Vigotski (2012b, p. 303) destaca que a comunicação que surge no bebê a partir do sexto

mês de vida é uma necessidade específica da criança: “[...] O desejo ativo de comunicar-se se

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manifesta no segundo semestre pelo fato de que a criança busca o olhar de outra pessoa, lhe

sorri, balbucia, estende os braços, se lhe sujeita e chora quando se afasta dela” (tradução nossa),

o que expressa claramente que a criança se subordina ao adulto, tamanha a necessidade de

estabelecer elos comunicativos com ele. Percebe-se, também, a progressiva evolução das

formas de manifestações sociais da criança, passivas num primeiro momento, e mais tarde

ativas, tanto em relação aos adultos quanto a outras crianças de sua idade, dando início às

reações primárias de domínio, protesto e submissão, dentre outras.

Na base da complexificação da comunicação e consequente início da atividade objetal

encontra-se a intelectualização dos movimentos descrita por Vigotski (2012b), como parte do

processo de maturação do cérebro do bebê, que aparece em seu desenvolvimento depois da

formação dos reflexos condicionados primários. Nessa fase, que se inicia a partir do primeiro

semestre de vida, o bebê realiza as primeiras manipulações dos objetos do entorno e demonstra

traços de pensamento instrumental, ao utilizar, de forma elementar, um ou outro objeto como

ferramenta, com finalidade específica, como alcançar algo, por exemplo.

Magalhães (2011) realizou uma investigação observacional a respeito da atividade da

criança no primeiro ano de vida, vindo a constatar a validade atual da periodização proposta

por Elkonin (1987), desde que a qualidade da relação adulto-bebê seja satisfatória. De acordo

com sua pesquisa, a comunicação emocional com o adulto impulsiona o bebê para novas

descobertas e possiblidades de relação com o mundo circundante. A autora concluiu “[...] que

a comunicação emocional direta com o adulto é a atividade-guia no primeiro ano de vida, e a

partir da segunda metade do período [6 meses] passam a ascender significativamente os

movimentos reiterativos e concatenados com os objetos [...]” (MAGALHÃES, 2011, p. 8).

Assim, a comunicação prática-situacional nasce da interação prática da criança com o

adulto, em forma de colaboração. A criança desenvolve a necessidade de que o adulto esteja

junto com ela, em estreita relação com suas ações. Os motivos da comunicação são de ordem

prática, relacionados aos motivos cognitivos e pessoais, e tem como fundamento a manipulação

dos objetos. Esta forma de comunicação ocorre em conjunto com a aquisição da linguagem, o

que permite à criança compreender melhor as pessoas ao seu redor e comunicar-se com elas por

meio da palavra. Gradativamente, à medida que participa de contextos comunicativos mais

ricos, a atividade comunicativa da criança vai passando de situacional, vinculada à presença

dos objetos, para se converter em comunicação cognitiva não-situacional. A partir de então, a

linguagem deixa de ter apenas um cunho prático, vindo a tornar-se intelectual, momento em

que “[...] as crianças passam a uma forma mais elevada de atividade comunicativa” (LÍSINA,

1986, p. 130, tradução nossa). Isso possibilita que a criança, além de compreender a linguagem

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145

das pessoas com quem convive, se comunique ativamente com elas, sendo capaz de inserir na

comunicação elementos que não estejam presentes na situação. As crianças podem, dessa

forma, falar a respeito de coisas e acontecimentos ausentes, complexificando e enriquecendo o

conteúdo de sua atividade comunicativa.

No final do primeiro ano, se o bebê teve oportunidade de utilizar objetos e brinquedos

de forma intensa, sua inteligência prática desenvolve-se, baseada no pensamento visual-direto.

Por seu intermédio, realiza ações com sentido, sendo capaz de utilizar um objeto como

ferramenta para alcançar outro, por exemplo. Essa fase, que antecede à fala efetiva, favorece o

desenvolvimento de estratégias simples para alcançar determinados objetivos. Dessa forma, a

atividade de manipulação dos objetos, que principia já no sexto mês de vida, carrega em si o

germe de ações mais elaboradas e complexas que têm lugar no momento seguinte do

desenvolvimento psíquico, quando esta se converte em atividade-guia, o que confirma que a

periodização da atividade de comunicação guarda estreita relação com aquela proposta por

Elkonin para explicar a dinâmica do desenvolvimento psíquico.

Como vimos, a atividade da criança se complexifica e enriquece mediante a atividade

conjunta com o adulto, de quem busca aprovação para suas ações com os objetos. Nesse

contexto, a partir do décimo mês de vida, ocorre, segundo Vigotski (2012b, p. 288, tradução

nossa), uma importante viragem no desenvolvimento. “[...] Desaparecem os movimentos

[próprios do período de interesse receptivo], e se inicia o desenvolvimento de formas de

comportamento mais complicadas: a primeira utilização da ferramenta e o emprego de palavras

para expressar o desejo.” Mas, de que forma a criança pequena chega a assimilar a linguagem

para se expressar por meio das palavras? Como se dá, a princípio, essa importante aquisição?

Segundo Vigotski (2012a), o desenvolvimento da linguagem oral está diretamente

vinculado ao desenvolvimento cultural da criança e se enquadra no contexto da lei geral do

desenvolvimento psíquico. A esse respeito, Davídov (1987, p. 6, grifos do autor, tradução

nossa) escreve:

Inicialmente, a criança realiza a apropriação (ou assimilação) das formas de

cultura que têm uma expressão sinalizadora-simbólica na atividade coletiva.

No processo de realização dessa atividade, quer dizer, no processo de

comunicação, se estruturam no indivíduo diferentes funções psíquicas,

correspondentes às distintas formas de cultura. [...] Todas as funções psíquicas

superiores [...] existem inicialmente em forma de relação social, de vinculação

e comunicação social das pessoas, de sua atividade coletiva, existem

primeiramente por meio dos “signos externos”, em forma interpsíquica.

Porém logo, no processo de interiorização estas funções adquirem a forma

intrapsíquica (ou propriamente interna, psíquica) e começam a existir como

atividade individual do homem, que se apoia nos signos internos.

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Em conformidade com a lei que regula o desenvolvimento de todas as funções psíquicas

superiores, Vigotski (2012a) afirma que a linguagem oral se forma sobre a base dos instintos

inatos, hereditários que, gradualmente, vão se transformando em reflexos condicionados, por

meio da experiência social. Podemos compreender o significado dos reflexos condicionados no

contexto da discussão que Vigotski faz sobre o desenvolvimento da conduta da criança. Para o

autor (2012a), o desenvolvimento da conduta compreende três etapas: a dos instintos inatos ou

hereditários, a dos reflexos condicionados, que são as reações aprendidas sob determinadas

condições, e a do intelecto, responsável pelas reações intelectuais, de adaptação a situações

novas. Essas etapas se encontram vinculadas, de maneira que uma não desparece no surgimento

da outra. Vigotski (2012a, p. 145, tradução nossa) esclarece: “[...] a etapa velha não desparece

quando nasce a nova, senão que é superada pela nova, é dialeticamente negada por ela, se

traslada a ela e existe nela.”

Ainda nas primeiras semanas de vida, os reflexos inatos, incondicionados, que se

expressam pelas primeiras manifestações vocais do recém-nascido (choro, grito), vão se

convertendo em reflexo condicionado, aprendido. As primeiras vocalizações condicionadas do

bebê são generalizadas, possibilitam, por exemplo, que a criança se manifeste vocalmente ao

ver sua mãe ou o adulto que cuida dela. Inicialmente, essas reações se estendem para qualquer

pessoa, porém, mais tarde se diferenciam e surgem somente na presença da mãe ou de alguém

usando suas roupas ao alimentá-lo. Tais reações não se desenvolvem isoladamente, fazem parte

de um conjunto de outras reações do bebê em resposta às impressões externas do ambiente

circundante. No entanto, aos poucos, vão se destacando, se tornando reações vocais

independentes.

Assim, Vigotski (2012a, p. 170-171, tradução nossa) destaca que as reações vocais

desempenham duas funções nos primeiros seis meses de vida do bebê: a) A primeira função é

a emocional (reação incondicionada), que revela os estados de satisfação ou insatisfação do

bebê, quando “[...] a reação vocal é o sintoma de uma reação emocional geral que expressa a

existência ou a perturbação do equilíbrio da criança com o meio”; b) A segunda função, que

surge quando a reação vocal se transforma em reflexo condicionado, é a função de contato

social (reação condicionada), que aparece já no primeiro mês de vida do bebê, como “[...] um

reflexo vocal educado, condicionado, como resposta à voz das pessoas de seu entorno.”

De acordo com o desenvolvimento das reações vocais da criança descritas por Vigotski,

depreendemos que as relações positivas com os adultos constituem, desde a mais tenra idade, o

fundamento para o desenvolvimento do bebê em todos os aspectos. São essas relações que

propiciam a educação dos reflexos instintivos, a transformação de reações elementares em

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reações mais elaboradas. Esse aspecto, ao lado do desenvolvimento orgânico do bebê, permite

que ele avance, pouco a pouco, na percepção do mundo à sua volta: de um conjunto de

impressões desorganizadas, a princípio, a uma forma de discernimento mais concatenado das

pessoas e das coisas que o cercam.

Vigotski (2012a) esclarece que embora as reações vocais da criança pequenininha

constituam substitutos da linguagem, não são, todavia, linguagem no verdadeiro sentido da

palavra, não se traduzindo em linguagem articulada, uma vez que tais reações não se vinculam

ao seu intelecto. O requisito para a linguagem se constituir como tal é sua união com o

pensamento, o que vai ocorrer somente mais tarde, por volta dos dois anos de idade. Portanto,

a primeira fase de desenvolvimento da linguagem, que vai até um ano e meio aproximadamente,

não guarda relação alguma com o desenvolvimento das reações intelectuais da criança, ou seja,

com seu pensamento. O autor explica este fato, evidenciando que

[...] É quase impossível atribuir a uma criança de um ano e meio uma

consciência ou pensamento [verbal]. Quando a criança grita, o que menos se

pode supor é que sabe por experiência o que vai suceder entre o grito e as

ações sucessivas das pessoas que lhe rodeiam ou que seu grito possa

comparar-se com nossas ações intencionais ou comunicações quando falamos

para influenciar as pessoas. (VYGOTSKI, 2012a, p. 171, tradução nossa).

Vigotski (2001, 2009, 2012a) nos auxilia a compreender a complexa relação entre

pensamento e linguagem, afirmando que essa relação muda quantitativa e qualitativamente ao

longo do desenvolvimento da criança. Sua tese central consiste em que pensamento e linguagem

possuem raízes genéticas diferentes e seu desenvolvimento segue linhas distintas e

independentes.

No início do desenvolvimento infantil, a criança apresenta uma fase pré-verbal no

desenvolvimento do pensamento e uma fase pré-intelectual no desenvolvimento da linguagem.

Isso significa que pensamento e linguagem não se relacionam, a princípio. Essa relação só

surge, cresce e se desenvolve no próprio processo de evolução do pensamento e da linguagem.

A fase pré-verbal ou pré-linguística do pensamento se caracteriza pelas primeiras ações

com indícios intelectuais da criança, entre o décimo e o décimo primeiro mês de vida

aproximadamente, momento em que a criança demonstra reações rudimentares de pensamento,

sem vinculação à fala. Seu intelecto é prático, como já assinalamos acima, expresso pelas

primeiras manipulações com sentido sobre os objetos, as ações orientadoras externas, que

permitem à criança alcançar um resultado prático. Por intermédio das ações orientadoras

externas a criança realiza ações correlativas, sendo capaz de aprender a selecionar e juntar

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objetos de acordo com sua forma, tamanho e cor, montar e desmontar um brinquedo, encaixar

peças em brinquedos de encaixe, e ações instrumentais, ao tentar alcançar um objeto distante

com um pau ou substituí-lo caso necessite de um mais comprido (MUKHINA, 1995).

Nas imagens abaixo algumas crianças participantes de nossa pesquisa exercitam sua

inteligência prática por meio do brincar. Na primeira imagem, Arthur (camiseta branca, 2a, 2m)

e Samir (camisa listrada, 1a, 4m) brincam encaixando peças no brinquedo de encaixe, sob a

orientação da professora Cristiane. Por meio de tentativas, conseguem encaixar as peças no

lugar correspondente ao seu formato. Na segunda imagem, também em colaboração com

Cristiane, da esquerda para a direita encontram-se Miguel (1a, 9m) Samir (1a, 4m), Kauã (1a,

8m) e Fernanda (1a, 5m), todos envolvidos na atividade de encaixar partes separadas de bolas

de acetato. Também por tentativas e erros, as crianças vão testando as metades das bolas,

buscando acomodá-las umas às outras até conseguirem encontrar os pares corretos e encaixá-

los formando as bolas inteiras. Das crianças que aparecem brincando nesta atividade, somente

Arthur e Kauã já se expressavam por meio da linguagem oral nesse momento, as demais ainda

não falavam. No entanto, todas conseguiram realizar a atividade de encaixe dos brinquedos. Ou

seja, todas as crianças, independente de dominar a linguagem verbal, obtiveram sucesso na

atividade por intermédio de sua inteligência prática.

Em ambas as situações é importante destacar a colaboração da professora, o que

caracteriza uma atividade conjunta, com sua intervenção. A participação do adulto nas ações

da criança pequena contribui para suas descobertas e propicia aprendizagens, tendo em vista

que ela ainda não domina os procedimentos de ação com os objetos, cuja apropriação necessita

do outro.

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Fotografia 20 - Crianças no brinquedo de

encaixe

Fotografia 21 - Crianças com brinquedos de

encaixar

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014. Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

A fase pré-intelectual da linguagem consiste nas primeiras formas de comunicação, já

apresentadas anteriormente: grito, balbucio, vocalizações e primeiras palavras da criança

pequena. Esses recursos comunicativos não estão, a princípio, vinculados ao pensamento.

Trata-se de uma linguagem emocional, de contato social, sobre o que Vigotski (2012a, p. 166-

167, tradução nossa) escreve: “A princípio a criança está na fase primitiva, natural ou pré-

verbal: grita, articula idênticos sons em diversas posições; é uma atividade puramente externa.

Nesta etapa, quando necessita exigir algo recorre a meios naturais, se apoia em reflexos diretos

ou condições.”

Quanto fala a criança que se encontra na etapa pré-verbal? O estudo “Análise do

desenvolvimento da atividade da criança em seu primeiro ano de vida” (MAGALHÃES, 2011)

revelou, em percentual, as atividades de um grupo de crianças entre quatro a onze meses de

idade. Nas crianças com até seis meses, a fala esteve ausente, sendo encontradas as seguintes

atividades: contato sensorial com objetos (38%); contato sensorial com adultos (31%);

locomoção e equilíbrio motor (16%); contato sensorial com crianças (11%); e manipulação do

próprio corpo (4%). Entre as crianças com seis a doze meses, o contato com objetos aumentou

para 55% e diminuiu o contato com os adultos (18%); a atividade de locomoção e equilíbrio

motor passou a 18% e o contato com outras crianças caiu para 7%, como também a manipulação

do próprio corpo (1%); a fala foi apontada com frequência de apenas 1%, estando “[...]

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diretamente vinculada ao desenvolvimento do córtex e, consequentemente, à mediação do

adulto” (MAGALHÃES, 2011, p. 103).

Apesar de falar pouco, na etapa pré-verbal as crianças se expressam por intermédio de

recursos comunicativos próprios e o fazem com muita frequência. Mukhina (1995) acentua a

importância de tais recursos, afirmando que constituem antecedentes para a assimilação da

linguagem desenvolvida. Por intermédio da comunicação emocional com o adulto, o bebê

começa a imitar os sons que ouve, a princípio, pelo balbucio, com o qual “[...] aperfeiçoa o

movimento dos lábios, da língua e da respiração. Com essa preparação, a criança poderá no

futuro assimilar os sons de qualquer língua” (MUKHINA, 1995, p. 85). Depois começa a

compreender a linguagem também através do adulto, que lhe faz perguntas do tipo “onde está

isso?”, “o que é aquilo?”, o que cria na criança uma reação de orientação e, dessa forma, ela

começa a relacionar os objetos aos seus nomes. Ao final do primeiro ano de vida, a criança já

faz essa relação com grande parte dos objetos que a cercam, embora não se trate, ainda, do

domínio efetivo da linguagem, mas da linguagem compreensiva.

A compreensão da linguagem do adulto gera na criança a necessidade de interação maior

com este. Pelo crescente manuseio de objetos como brinquedos, utensílios, vestimentas, a

criança sente necessidade de conhecer o nome de novos objetos. Isto faz com que a linguagem

assuma um papel ativo no seu desenvolvimento, favorecendo e ampliando seu contato com as

pessoas.

Uma mudança significativa no desenvolvimento da linguagem ocorre por volta dos dois

anos de idade, segundo Vigotski (2001, 2009, 2012a), quando as linhas do desenvolvimento do

pensamento e da linguagem, até então separadas, se unem, originando uma forma nova de

comportamento, especificamente humana. A partir desse encontro, que representa um momento

primordial no desenvolvimento da criança, a linguagem se intelectualiza e o pensamento se

verbaliza. Para o momento, quando ainda estamos discutindo o desenvolvimento da linguagem

do bebê no primeiro ano de vida, isto é o que nos interessa. Mais adiante, ao enfocar a criança

de um a três anos, retomaremos essa ideia.

Como resultado de todo o desenvolvimento alcançado pelo bebê no primeiro ano,

Vigotski (2012b) anuncia a principal nova formação desse período de vida: surge na criança

uma forma primária de “consciência”, denominada proto-nosotros. Essa forma embrionária de

consciência está relacionada ao fato de o bebê não ter consciência de si, a princípio; os membros

de seu corpo são para ele objetos, porque não se distingue deles, vindo a separar-se aos poucos,

pela manipulação dos mesmos. Igualmente, uma vez que todas as suas vivências e experiências

se realizam mediante a atividade conjunta e em situações concretas, o bebê não se vê separado

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da mãe e das outras pessoas. Sua mãe é, para ele, uma extensão do seu próprio corpo, até o fim

do primeiro ano aproximadamente, quando consegue caminhar sozinho. Portanto, a consciência

proto-nosotros surge da situação social de desenvolvimento do bebê, razão pela qual o pequeno

age no mundo por intermédio de outra pessoa. Sua situação biológica e social é o que produz

esse tipo de consciência.

Vigotski (2012b, p. 305, tradução nossa) afirma que a gênese da nova formação se

encontra vinculada aos fatores internos de crescimento orgânico e maturação do bebê, “[...] um

ser que cresce e se desenvolve, que muda, e sua vida, mais que um girar constante na mesma

direção e a repetição incessante de situações idênticas, é um movimento ascendente em espiral,

vinculado às mudanças qualitativas da própria situação.” Em decorrência desse

desenvolvimento e face às relações peculiares que estabelece desde cedo com as pessoas que o

rodeiam, ele e os outros constituem uma só estrutura, fato que caracteriza a categoria proto-

nosotros, significando a primeira forma de consciência que surge no bebê, uma consciência

coletiva, em que o “nós” antecede o “eu”. Assim, o primeiro ano de vida da criança é marcado

pelo início de sua consciência.

Em consonância com os princípios do desenvolvimento, paulatinamente, à medida que

a criança age sobre os objetos e se percebe sujeito de suas ações, essa consciência elementar

vai dando origem a outro tipo de consciência, mais elevada. Compreendemos, dessa forma, que

a consciência embrionária proto-nosotros, o “nós”, contém o gérmen da consciência de nível

superior, o “eu”, que vai se formando aos poucos, até se manifestar de forma mais acentuada

no final da primeira infância, aos três anos de idade aproximadamente, momento em que o jogo

de papéis passa a ser a atividade-guia da criança e esta começa a referir-se a si mesma como

“eu”. A partir de então, a criança adquire progressivamente a consciência do eu52, se percebe

como sujeito nas relações de que toma parte no mundo circundante. Luria (1988b, p. 196)

esclarece:

A criança, no estágio sensório-motor de seu desenvolvimento, ainda não faz

distinção entre si e o mundo exterior, e o reflexo dos estímulos diretos

recebidos por ela não vai além das impressões elementares ou de respostas

motoras difusas. Na criança, pouco antes do período pré-escolar, estas formas

primitivas de consciência são substituídas por formas mais complexas de

análise das informações, formadas com o desenvolvimento das ações

manipuladoras e a percepção de objetos que surgem em suas bases, com os

traços de seletividade e a constância característica desta percepção. É nesse

importante período do desenvolvimento infantil que encontramos as formas

52 A questão do desenvolvimento da consciência da criança pequena, por sua complexidade e importância, merece

um estudo à parte. Posteriormente, pretendemos aprofundar o tema, no âmbito das atividades de pesquisa junto

aos alunos do curso de Pedagogia com os quais atuaremos.

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iniciais de distinção entre o eu e o mundo circundante, o aparecimento da auto-

consciência [...] e as formas primárias de controle voluntário consciente do

movimento [...].

3.2.1 A linguagem autônoma

Discutiremos, ainda, uma questão importantíssima relativa ao desenvolvimento da

linguagem da criança no primeiro ano de vida, tratada por Vigotski (2012b) no contexto da

crise do primeiro ano – a linguagem autônoma. Com respeito à referida crise, Bozhóvich (1987)

assinala que a psicologia infantil menciona com mais frequência os períodos críticos das crises

de 3, 7, e 12-16 anos, tendo sido a crise de um ano acrescentada por Vigotski. Relatamos

anteriormente nossa concepção a respeito das crises no desenvolvimento da criança, afirmando

que para nós a questão é relativa neste trabalho. No entanto, faz-se necessário enfocar a crise

do primeiro ano devido ao seu conteúdo. Ao pôr em foco o assunto, concordamos com

Bozhóvich (1987, p. 255, tradução nossa), para quem as crises representam “[...] períodos de

transição de uma etapa de desenvolvimento a outra. [...] surgem no limite entre duas idades e

sinalizam a culminância da etapa precedente de desenvolvimento e o começo da seguinte.”

De acordo com Vigotski, (2012b), o conteúdo da crise de um ano compreende três

momentos: a) a aquisição da capacidade de locomoção por meio do andar; b) o período

incubado de formação da linguagem, que dura em torno de três meses; e c) a aparição das

primeiras manifestações de protesto e oposição em relação ao adulto. Dos três elementos,

Vigotski destaca a formação da linguagem, deixando ausente de suas discussões os outros dois,

justificando sua escolha pelo fato de que a linguagem se relaciona mais diretamente com o

surgimento da consciência infantil e com as relações sociais da criança.

O período da linguagem autônoma infantil, que dura do final do primeiro ano até por

volta de um ano e nove meses aproximadamente, constitui uma etapa de transição entre o

primeiro período do desenvolvimento da linguagem – o período da comunicação sem linguagem

(0 - 1 ano) – e o segundo período, de domínio da linguagem (1,9 - 3 anos). Esse período

transitório explica como a criança passa do período pré-linguístico (fase pré-intelectual que

abordamos acima) ao domínio da linguagem. A linguagem autônoma, é, pois, a ponte para a

linguagem verbal.

Mas em que consiste a linguagem autônoma da criança? Quais são suas características?

Segundo Vigotski (2012b), é uma linguagem própria da criança, como indica sua denominação.

O autor distingue quatro peculiaridades básicas que a caracterizam: 1) diferencia-se da

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linguagem do adulto pelo seu aspecto fônico, externo, ou seja, sonoro. Trata-se de uma

linguagem parecida com a nossa, mas em pedaços, às vezes deformada; 2) distingue-se da

linguagem do adulto também pelo aspecto semântico, interno, o significado. A criança usa uma

palavra exclusivamente sua para denominar uma série de coisas diferentes que se relacionam

entre si de alguma forma. Assim, pode usar a palavra “quá” para se referir a um pato na água,

a qualquer líquido, ou a uma moeda que tenha o desenho de um pato; 3) requer compreensão

do que está sendo expressado pela criança por parte do adulto para que ele possa se comunicar

com ela. Essa comunicação depende da situação concreta, quando o objeto a que a criança se

refere está presente; 4) é uma linguagem agramática: as palavras e seu significado não se

vinculam de forma coerente, pelo fato de utilizar leis distintas de coesão e união de palavras.

Vigotski (2012b, p. 327, tradução nossa) esclarece que na linguagem autônoma

[...] as crianças aplicam uma palavra, um significado a todo um conjunto de

coisas que os adultos designam cada vez com uma só palavra. Os significados

das palavras autônomas infantis não coincidem com os nossos, nenhuma delas

pode ser corretamente traduzida para nossa linguagem.

O autor também explica que se denomina autônoma “[...] porque parece estar

estruturada de acordo com suas próprias leis distintas das que regem a linguagem autêntica.

Esta linguagem tem outro sistema fônico, distinto significado, outras formas de comunicação e

coesão” (VYGOTSKI, 2012b, p. 330, tradução nossa). Mujina (1981) concorda com Vigotski

afirmando que a linguagem autônoma é pouco parecida com a dos adultos, constituindo frases

de uma só palavra, geralmente não utilizada por eles.

A partir da caracterização da linguagem autônoma, Vigotski levanta duas teses a

respeito da mesma: a) A primeira consiste em que essa forma de linguagem é uma etapa

imprescindível, fazendo parte do desenvolvimento verbal de toda criança; b) A segunda se

refere ao fato de que, sendo um período de transição entre o período pré-verbal e o verbal, seu

prolongamento para além do segundo ano de vida denuncia anormalidade no desenvolvimento

linguístico.

Algumas outras características importantes marcam a linguagem autônoma. Ela

depende da situação visual-direta, tem a função de indicar e denominar, mas não possui a função

simbólica, aquela que substitui os objetos presentes. Por seu intermédio a criança só é capaz de

expressar o que vê, de indicar e nomear apenas os objetos que estiverem em seu campo de visão.

A fala da criança na linguagem autônoma é formada por palavras isoladas, sem relação de

comunalidade, quer dizer, sem relação hierárquica entre si; nesse período, uma só palavra

concentra em si vários significados específicos. A palavra “pá” pode significar uma pedra

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amarela, pedras de qualquer cor e a saboneteira com sabonete amarelo, por exemplo. Assim, o

significado da palavra na linguagem autônoma é situacional, não é constante.

Em vários momentos tivemos a oportunidade de observar a linguagem própria das

crianças por nós investigadas. Nas imagens abaixo algumas delas estão envolvidas em uma

atividade de pintura. Preparamos tintas feitas de gelatina e levamos os pequenos para a área

externa da creche. Da esquerda para a direita, encontram-se Samir (1a, 7m), Letícia (1a, 10m),

Arthur (2a, 3m) e Kauã (1a, 11m) concentrados na atividade. À certa altura, quando Samir

intentou usar a tinta da bandeja que se encontrava um pouco distante dele, apontou em direção

ao objeto e pediu “aua”, referindo-se à tinta (fotografia 23). Para ele, naquele momento de seu

desenvolvimento linguístico, ambos os líquidos (tinta e água) podiam ser chamados pela mesma

palavra. A relação lógica era somente sua, cabendo ao adulto interpretar seu pedido de acordo

com o contexto da situação.

Fotografia 22 - Crianças pintando Fotografia 23 - Samir pede “aua”

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014. Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

Aspecto de igual relevância diz respeito à relação entre a linguagem autônoma da

criança e seu pensamento. Da mesma forma que o significado das palavras na linguagem

autônoma depende da situação concreta, o pensamento também se vincula à situação visual-

direta: a criança não pensa longe da situação que engendrou sua fala. Por isso, nesse período o

pensamento tem algumas características do pensamento verbal, mas não se desliga do visual-

direto. Vigotski (2012a, p. 335, grifos do autor, tradução nossa) explica a relação existente entre

as duas formas de pensamento:

O nexo entre o pensamento verbal e o visual-direto se manifesta com a

máxima evidência no fato de que nas palavras são possíveis somente as

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relações que refletem as relações diretas entre as coisas, quando os

significados das palavras da linguagem autônoma não estão em relação de

comunalidade entre si, quer dizer, quando um significado não tem relação com

outro como, por exemplo, móvel está em relação de comunalidade com a

palavra cadeira.

Por essa razão o pensamento é dependente das impressões diretas, da percepção da

criança. A linguagem reflete o que a criança vê, suas impressões e não o seu pensamento

propriamente dito, já que a criança não a utiliza para deduzir ou analisar. A linguagem

autônoma é um momento importante do desenvolvimento da linguagem e representa também

uma etapa especial do pensamento. A linguagem da criança precisa alcançar um certo nível

para que seu pensamento também avance. Como as palavras da linguagem autônoma não têm

um significado constante, mas variam de acordo com o contexto, nelas não existe a

simbolização, em que cada palavra substitui determinado objeto. Sua função é apenas

indicativa, vindo a função nominativa, significadora, aparecer somente mais tarde. No entanto,

na sua essência, a linguagem autônoma contém características da linguagem desenvolvida,

constituindo a principal formação da idade crítica de transição do primeiro para o segundo ano

de vida. Seu caráter é transitório, adquirindo uma forma superior no próximo momento da

primeira infância.

É importante ressaltar que Vigotski estabelece uma distinção entre as conquistas da

criança nas idades críticas e nas idades estáveis, esclarecendo que as conquistas das idades

críticas são transitórias, ao passo que nas idades estáveis as conquistas são permanentes, a

exemplo do que ocorre com as capacidades de andar, falar, escrever e muitas outras, que

ocorrem nos períodos estáveis do desenvolvimento. Afirma que, sendo a linguagem autônoma

própria da idade de transição, sua continuidade seria considerada anormal. Ao se formar a

linguagem autêntica, a autônoma desaparece no final da idade crítica, por volta de um ano e

nove meses mais ou menos. A importância genética da idade crítica se encontra no fato de ser

uma ponte de transição: a criança necessita dela para avançar do período pré-linguístico ao

verbal no desenvolvimento da linguagem.

No entanto, devemos compreender o desaparecimento da linguagem autônoma como

algo relativo, se considerarmos o aspecto dialético presente no desenvolvimento psíquico. Ao

discutir as novas formações que surgem no curso do desenvolvimento da criança, Vigotski

(2012b) assevera:

No desenvolvimento das idades críticas o essencial é a aparição de formações

novas muito peculiares e específicas como demonstram as investigações

concretas. Diferenciam-se das formações novas de períodos estáveis por ter

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caráter transitório, quer dizer, não se conservam como tal na etapa crítica nem

se integram como somas imprescindíveis na estrutura integral da futura

personalidade. Extinguem-se e são assumidas pelas formações novas da

seguinte idade estável, se incluem nela como instâncias subordinadas,

carecem de existência própria, se diluem e transformam até tal ponto que sem

uma análise especial e detalhada é às vezes impossível descobrir a existência

dessa transformada formação do período crítico nas aquisições do seguinte

período estável. As formações novas como tais desaparecem com o advindo

da idade seguinte, porém seguem existindo em estado latente dentro dela;

carecem de vida independente, se limitam a participar tão somente naquele

desenvolvimento subterrâneo que nas idades estáveis gera, como temos visto,

formações qualitativamente novas. (VYGOTSKI, 2012b, p. 260, grifos e

tradução nossos).

Assim, entendendo que uma formação não desparece por completo na presença de outra,

mas apenas passa a integrar uma formação mais complexa na nova etapa de desenvolvimento,

devemos compreender que a linguagem autônoma, que tem lugar no período crítico do primeiro

momento de desenvolvimento da criança, é uma fase transitória, uma ponte entre a linguagem

pré-verbal e a verbal. De uma linguagem completamente distinta – no aspecto fônico,

semântico, quase incompreensível para os adultos, com leis gramaticais próprias –, se converte

em linguagem autêntica, desenvolvida, por volta dos dois anos de idade, quando da união do

pensamento e da linguagem.

3.3 A linguagem oral nos três primeiros anos de vida

A união do pensamento e da linguagem – importante acontecimento que dá origem à

linguagem verbal – ocorre já no segundo momento da primeira infância (1-3 anos), o momento

da manipulação dos objetos, quando o interesse da criança se volta para os objetos à sua volta

e a ação com estes se converte na sua atividade-guia. A criança sente necessidade de conhecer

os objetos, de saber para que se destina cada coisa, cada objeto que utiliza, e deseja utilizá-los

de acordo com o uso que os adultos fazem deles. Mas esse domínio é realizado em colaboração

com os adultos. É na interação com as pessoas com quem convive que a criança vai descobrir

o uso social dos objetos.

Nesse momento, a comunicação emocional direta perde sua força, vindo a ser

substituída pela atividade com os objetos. Isto se justifica porque, como já vimos, o interesse

da criança, ainda no sexto mês de vida, se volta para os objetos e vai aumentando à medida que

sente necessidade de novas impressões e, em colaboração com o adulto, vai ampliando seu

contato com o mundo e conhecendo cada vez mais novos objetos presentes no seu entorno.

Segundo Leontiev (1978a), pela assimilação dos objetos a criança desenvolve suas capacidades

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tipicamente humanas ao se apropriar dos resultados do desenvolvimento histórico da

humanidade e da cultura neles encarnados, pois o conhecimento do homem, suas aptidões e

maneiras de usar os objetos ficam sintetizados nos objetos por ele criados, como também nos

produtos intelectuais de sua criação. Isto se aplica, igualmente, ao desenvolvimento da

linguagem e do pensamento.

Entre um e dois anos de idade, as crianças pertencentes à nossa pesquisa encontravam-

se nesse momento do desenvolvimento, no período da linguagem autônoma, portanto, no limiar

da linguagem verbal. No que respeita à atividade-guia que marca esse momento, observamos

que a atividade com os objetos, de fato, mediava a comunicação entre as crianças e as

professoras na maior parte do tempo. Em quase todos os momentos da rotina da creche, os

objetos se faziam presentes. Na sala de referência, as crianças traziam sempre à mão um

brinquedo ou um livro e se dirigiam por conta própria com frequência às caixas onde ficavam

guardados, procurando as professoras para utilizá-los junto com elas. Por vezes, também se

entretinham sozinhas brincando e manuseando brinquedos e livros, como mostram as imagens

abaixo.

Fotografia 24 - Isadora imitando telefone Fotografia 25 - Letícia e Arthur brincando

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014. Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

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Fotografia 26 - Crianças escolhendo brinquedos Fotografia 27 - Samir com carrinho

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014. Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

Observamos, durante o período em que estivemos na creche, o intenso uso dos objetos

pelas crianças, pelo que concordamos com Elkonin (1987, p. 117, tradução nossa) quando

afirma que “[...] há bases para supor que precisamente a atividade principal na primeira infância

é a objetal-instrumental, na qual tem lugar a assimilação dos procedimentos, socialmente

elaborados, de ação com os objetos.” Em meio a esse processo, a criança adquire uma das mais

importantes capacidades desse momento de desenvolvimento: por intermédio da interação com

o adulto, nas diversas situações de uso dos objetos, vai, aos poucos, substituindo suas formas

emocionais de se comunicar e começa a utilizar a palavra, passando por uma mudança

expressiva, ao apropriar-se da linguagem. Elkonin comenta que parece haver uma contradição

entre o fato de a manipulação dos objetos constituir a atividade-guia da criança nesse momento,

a despeito de ser tão intenso o uso da linguagem oral, pelo que escreve:

De um ser privado da palavra, que utiliza para a comunicação com os adultos

meios emocionais mímicos, a criança se converte em um ser falante que

emprega um léxico e formas gramaticais relativamente ricos. No entanto, a

análise dos contatos verbais da criança mostra que a linguagem é utilizada por

ela, fundamentalmente, para organizar a colaboração com os adultos dentro

da atividade objetal conjunta. [...] Em consequência, o intenso

desenvolvimento da linguagem, como meio para organizar a colaboração com

os adultos, não contradiz a tese de que a atividade principal nesse período é a

atividade objetal [...]. (ELKONIN, 1987, p. 117-118, tradução nossa).

Na perspectiva de Vigotski (2012b), inicialmente a manipulação dos objetos é

estritamente situacional. A criança pequena é movida pela situação imediata, por aquilo que vê,

de maneira que sua relação com o meio exterior se faz pelo que acontece na base do aqui e

agora. Por isso, mantém com os objetos uma relação visual-direta, fato que determina sua

consciência, limitada apenas àquilo que sua percepção apreende de seu campo visual. Sendo

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prisioneira da própria situação, a criança, nesse momento, não é capaz de falar daquilo que não

vê ou ouve diretamente na situação presente; suas funções sensoriais e motoras atuam somente

na situação concreta. Assim, a percepção visual-direta tem caráter afetivo, constitui o substrato

da consciência da criança pequena. Baseada em Vigotski, Bozhóvich (1987, p. 251, tradução

nossa) caracteriza a consciência da criança:

L. Vigotski analisou a consciência da criança como um sistema psicológico

complexo que tem um caráter bastante estável, porém que se desenvolve

durante toda a vida. Ele mostrou que no processo de ontogênese esta área do

psíquico, organizada sistemicamente, tem uma determinada lógica de

desenvolvimento. De acordo com sua concepção, na primeira infância a

consciência se distingue pelo caráter não diferenciado e não autônomo das

funções psíquicas, que neste período se encontram em dependência direta da

percepção, somente em cujo contexto atuam (memória em forma de

reconhecimento; pensamento em forma de impressões tidas afetivamente, nas

quais ainda não se diferenciam os objetos do mundo circundante; inclusive as

emoções do bebê se prolongam enquanto o estímulo que o provocou se

encontra em seu campo perceptivo).

Devido a esse fato, a percepção é a primeira função psíquica a se desenvolver, sendo o

novo que aparece na primeira infância, ao lado da linguagem. Leontiev (1978b, p. 26, tradução

nossa) analisou a teoria da consciência defendendo a perspectiva marxista, para a qual a

consciência “[...] é uma forma qualitativamente nova da psique [...], no homem aparece pela

primeira vez no processo em que se foram estabelecendo o trabalho e as relações sociais.”

Segundo a concepção de Leontiev, a consciência está vinculada à atividade humana, surge da

comunicação entre os homens mediante a linguagem, sendo a linguagem a consciência prática,

real.

Com base em Leontiev (1978b), compreendemos que a consciência da criança pequena

– restrita ao que sua percepção capta do que vê imediatamente – é a consciência proto-nosotros,

rudimentar ainda. Leontiev argumenta que a realidade não é o reflexo direto daquilo que nossos

órgãos dos sentidos percebem, que as imagens não são influência unilateral do objeto sobre

esses órgãos. Pelo contrário, a percepção requer um processo de assimilação, de recepção ativa

por parte do sujeito. Por isso, nossa percepção não é o resultado direto daquilo que nossos

órgãos dos sentidos captam do mundo exterior. Por meio da atividade, realizamos uma espécie

de tradução dos objetos exteriores, que atuam sobre os órgãos dos sentidos e, dessa maneira, se

forma em nós a imagem psíquica da realidade, ou a primeira forma de consciência que ainda

não é – por conta da situação social de desenvolvimento da criança pequena, cujas atividades

são realizadas sempre em colaboração com os adultos – uma consciência de si, mas de um

“nós”. Leontiev nos auxilia a compreender que não são os órgãos dos sentidos que percebem

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as imagens, mas sim o homem por intermédio deles: a percepção forma e é formada pela

consciência, que se caracteriza por especificidades em cada momento do desenvolvimento.

Leontiev (1978b, p. 49, tradução nossa) enfatiza que “[...] os processos de percepção estão

incluídos nos vínculos vitais, práticos, do homem com o mundo, com os objetos materiais e que

por isso necessariamente estão subordinados – em forma direta ou indireta – às propriedades

dos objetos mesmos.” Assim, a consciência na primeira infância está diretamente vinculada à

atividade objetal manipulatória da criança, ao desenvolvimento de sua percepção.

A aquisição da linguagem, no entanto, liberta a criança da percepção imediata, alterando

as características próprias desse momento. Por seu intermédio, a criança se desprende da

situação e passa a se relacionar de outra forma com os objetos e com as pessoas; passa a se

perceber separada da situação e, assim, começa a se formar nela a consciência de si mesma, a

consciência do eu. Essa mudança na consciência altera, também, a situação social de

desenvolvimento da criança, que começa a adquirir autonomia, já não depende mais

exclusivamente do adulto para satisfazer suas necessidades, para se locomover, para atuar no

ambiente. A linguagem se converte na força motriz do desenvolvimento, das novas relações

com o meio: usada como meio de comunicação, passa a mediar as relações da criança, razão

porque “[...] representa a linha central de desenvolvimento da criança dessa idade e muda

radicalmente suas relações com o meio circundante” (VYGOTSKI, 2012b, p. 350, grifos e

tradução nossos). Luria (1986, p. 32-33, grifos do autor) discorre sobre o que representa o

domínio da linguagem pelo homem. Para o autor, a aquisição dessa capacidade é um marco

divisor na existência humana.

O enorme ganho do homem que domina uma linguagem desenvolvida

consiste em que seu mundo se duplica. O homem sem a linguagem só se

relacionava com aquelas coisas que observava diretamente, com as quais

podia manipular. Com a ajuda da linguagem, que designa objetos, passa a se

relacionar com o que não percebe diretamente e que antes não entrava em sua

experiência. A palavra duplica o mundo dando ao homem a possibilidade de

operar mentalmente com objetos, inclusive na ausência destes. [...] o homem

possui um mundo duplo, que inclui o mundo dos objetos captados diretamente

e o mundo das imagens, ações, relações e qualidades que são designadas pelas

palavras. O homem pode evocar voluntariamente estas imagens,

independentemente da presença real dos objetos, e dirigir voluntariamente

este segundo mundo. Pode dirigir não apenas sua percepção, suas

representações, mas também sua memória e suas ações; [...] duplicando o

mundo, a palavra assegura a possibilidade de transmitir a experiência de

indivíduo a indivíduo e a possibilidade de assimilar a experiência das gerações

anteriores.

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Mas como se forma a linguagem na criança? Vamos retomar a questão introduzida por

nós anteriormente. Já sabemos que pensamento e linguagem se desenvolvem, a princípio,

independentemente um do outro; que a criança pequena demonstra os primeiros traços de

inteligência prática por meio da atividade objetal antes de começar a falar; e que, mesmo sem

falar, já vive a linguagem, compreende a linguagem dos outros. Sabemos também que as linhas

de desenvolvimento do pensamento e da linguagem, antes separadas, se cruzam aos dois anos

de idade aproximadamente, momento em que a linguagem se torna intelectual e o pensamento

se faz verbal. Com base na teoria de Stern53 acerca do desenvolvimento da linguagem, Vigotski

(2001) afirma que, nesse momento, a criança faz “a maior descoberta de sua vida”, descobre

que cada coisa tem seu nome, e passa a nomear os objetos à sua volta, por sua própria iniciativa.

Duas características interligadas marcam essa importante mudança na vida da criança. Em

primeiro lugar, ela amplia de forma ativa seu vocabulário, interessando-se por saber o nome

das coisas. Consequentemente, passa a dominar um número maior de palavras, o que enriquece

sobremaneira o seu vocabulário.

Antes desse momento, a criança assimila palavras a partir da comunicação com as

pessoas, como já vimos, porém, o faz de maneira isolada, como resposta ou para denominar

objetos, pessoas ou ações. Mas a aquisição da linguagem, nesse contexto, é limitada à influência

direta do adulto e de outras crianças mais velhas, o que equivale a dizer que a criança aprende

as palavras apenas por intermédio das pessoas do seu entorno. A partir da unificação do

pensamento e da linguagem, a situação muda radicalmente. A criança sente, por si mesma, a

necessidade de saber a denominação das coisas que a rodeiam, vindo a interessar-se por

conhecer o nome de cada objeto novo que encontra. A criança que se encontra na fase intelectual

de desenvolvimento da linguagem oral “[...] sente a necessidade da palavra e trata ativamente

de apropriar-se do signo [socialmente vinculado] pertencente a cada objeto, do signo que lhe

serve para nomear e comunicar-se” (VYGOTSKI, 2001, p. 104, tradução nossa). O autor

comenta que é como se o pequeno descobrisse a função simbólica da linguagem.

53 Willian Stern (1871-1938) estudou o desenvolvimento da linguagem a partir da perspectiva intelectualista,

segundo a qual a criança, entre um ano e meio a dois, descobre a relação entre signo e significado, tornando-se

consciente da função simbólica da linguagem. Apesar de discordar de Stern, Vigotski reconhece que seu estudo

trouxe importantes contribuições para a compreensão do desenvolvimento da linguagem humana. Ao abordar o

encontro das linhas do pensamento e da linguagem, Vigotski (2001, p. 104) escreve: “Stern é quem tem descrito

antes e melhor que outros este acontecimento transcendental no desenvolvimento psíquico da criança. Tem

mostrado como se desperta nele a vaga consciência da importância da língua e a vontade de conquistá-la” (tradução

nossa). Para esta discussão, consultar: VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas II. Madrid: Machado Grupo de

Distribución, 2001.

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Vigotski (2001) reflete sobre o que significa a intersecção do pensamento e da

linguagem na vida da criança. De acordo com o autor, a descoberta pela criança do nome das

coisas somente acontece em uma etapa avançada do desenvolvimento do pensamento e da

linguagem, porque para “descobrir” a linguagem a criança precisa pensar.

Faz-se necessário recordar que entre seis meses a dois anos de idade, a atividade

comunicativa da criança é prática-situacional (ZAPOROZET; LÍSINA, 1986), o que equivale

a dizer que sua comunicação é baseada nas vivências imediatas, no que acontece no seu

ambiente próximo. O entorno social concreto é o que motiva a comunicação da criança com o

adulto nesse momento. Essa forma de comunicação é engendrada pelas interações da criança

com o adulto, mediante a ação com os objetos materiais e ocorre em estreita relação com a

aquisição da linguagem, favorecendo a compreensão, por parte da criança, da linguagem do

adulto. É dessa forma que os pequenos passam a utilizar a palavra – mesmo antes de falar e,

depois, falando gradativamente –, para comunicar-se com as pessoas do seu entorno. Assim, no

curso dos dois primeiros anos de vida a compreensão da linguagem do adulto permite que a

criança supere, aos poucos, os limites impostos pela comunicação situacional e passe da

comunicação prática baseada na manipulação dos objetos em colaboração com o adulto à

comunicação intelectual, incrementada pela vinculação do pensamento à linguagem.

A comunicação situacional da qual falamos acima cumpre a primeira função da

linguagem, qual seja, a comunicativa; é por intermédio das relações estabelecidas com as

pessoas que surge a atividade comunicativa da criança. A linguagem que nasce nesse contexto

é, portanto, social, razão pela qual Vigotski (2001) afirma que inicialmente a linguagem da

criança é somente social. A linguagem social, multifuncional a princípio, evolui até tornar-se

uma função independente, convertendo-se, gradualmente, na chamada linguagem egocêntrica,

uma etapa transitória entre a linguagem social (externa) e a individual (interna).

3.3.1 A linguagem egocêntrica

A linguagem egocêntrica, que “[...] representa um dos fenômenos de transição das

funções interpsíquicas às intrapsíquicas, quer dizer, da forma de atividade social coletiva da

criança à suas funções individuais” (VYGOTSKI, 2001, p. 309, tradução nossa), se manifesta

já na primeira infância, por volta dos três anos de idade, vindo a consolidar-se na infância pré-

escolar, dos três aos seis anos. Com base em suas pesquisas experimentais, Vigotski afirma que

essa forma peculiar de linguagem se converte, progressivamente, em instrumento do

pensamento e isso pode ser observado pelo fato de que a criança, no interior de determinadas

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atividades, ao se deparar com alguma dificuldade que necessita resolver, fala para si mesma

sobre o problema enfrentado e sobre as possíveis soluções, demonstrando que usa a linguagem

para autorregular-se (falar consigo mesma).

Trata-se de um processo complexo, que surge da internalização de formas sociais de

comportamento. Na criança pequenininha, se manifesta quando o domínio de suas ações pelo

adulto é transferido para suas funções psicológicas individuais e esta começa a ser capaz de

regular suas próprias ações. Os adultos regulam o comportamento da criança, falando a todo

momento o que ela pode e o que não pode. No decorrer do desenvolvimento, a criança vai

internalizando todos os “não pode”, os “assim não”, ou os “faça assim”, repetindo para si

mesma o que os outros falam para ela. Assim, podemos afirmar que a origem da linguagem

egocêntrica é a linguagem social.

Sendo a linguagem egocêntrica uma etapa de transição do externo para o interno,

Vigotski a relaciona à linguagem interna partindo das pesquisas de Piaget54 e aponta três grupos

de características que a distinguem: funcionais, estruturais e evolutivas. Quanto às

características funcionais, a linguagem egocêntrica conduz o pensamento da criança, na medida

em que esta começa a verbalizar/regular suas ações. Sua função é intelectual e não surge

repentinamente na criança, mas aparece quando a palavra expressa o processo e o resultado de

sua ação, refletindo sua atividade intelectual prática e possibilitando a tomada de consciência.

Vigotski nos explica:

Temos podido observar, como, a princípio, as expressões egocêntricas que

acompanham a atividade prática infantil refletem e assinalam o resultado final

ou os principais momentos de mudança na atividade prática; como, à medida

que a atividade da criança evolui, esta linguagem se desloca mais e mais para

o centro e, finalmente, para o início da dita atividade, assumindo a função de

planificar e dirigir as ações futuras. Temos podido observar como a palavra,

expressando o resultado da ação, se funde com essa ação, e como,

precisamente porque imprime e reflete os aspectos estruturais mais

importantes da atividade intelectual prática, a palavra começa a perfilá-la e a

dirigi-la, subordinando-a a uma intenção e a um plano, elevando-a a categoria

de atividade consciente. (VYGOTSKI, 2001, p. 52, tradução nossa).

54 Jean William Fritz Piaget (1896-1980) apresenta ponto de vista diferente de Vigotski a respeito da linguagem

egocêntrica. Para o epistemólogo suíço, a linguagem egocêntrica não cumpre papel relevante no desenvolvimento

da criança; seria apenas manifestação do pensamento egocêntrico da criança, vindo a desaparecer por completo.

Vigotski (2001, p. 49) explica: “A linguagem egocêntrica da criança aparece diante de nós nas descrições de Piaget

como um acessório da atividade infantil, como um reflexo da natureza egocêntrica de seu pensamento. Neste

período da infância, a lei suprema é o jogo; como diz Piaget, a forma inicial de pensamento é uma certa miragem,

expressada na linguagem egocêntrica” (tradução nossa). A despeito de opor-se às asserções teóricas de Piaget,

Vigotski destaca o valor de suas pesquisas, sobretudo para a compreensão do pensamento infantil. Para conhecer

essa discussão, consultar VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas II. Madrid: Machado grupo de distribución, 2001.

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Vigotski estabelece, ainda, uma semelhança funcional entre a linguagem egocêntrica da

criança e a linguagem interna do adulto, afirmando que ambas são linguagem para si, diferentes

da linguagem social, que tem função comunicativa e de relação interpessoal.

No tocante às características estruturais, a linguagem egocêntrica é incompreensível

para os outros, se isolada do seu contexto concreto. Isto se justifica porque se trata de uma

linguagem condensada, abreviada; a criança não tem necessidade de explicar para si mesma o

que lhe é claro. O aspecto evolutivo se refere ao destino da linguagem egocêntrica no curso do

desenvolvimento da criança. Como processo intermediário entre a linguagem externa e a

interna, sua frequência vai diminuindo até se transformar em linguagem interna. É importante

destacar que ela não desaparece, mas se interioriza mais tarde, na idade escolar.

A linguagem egocêntrica é, ao mesmo tempo, externa e interna. É externa porque é

vocalizada; por seu intermédio, a criança fala em voz alta consigo mesma. Nos aspectos

funcional e estrutural, no entanto, é interna; representa uma forma de planejamento interior das

ações da criança, estando diretamente vinculada ao seu pensamento. No curso do

desenvolvimento da linguagem, sua transformação em linguagem interna representa uma

evolução do pensamento da criança. Vigotski (2001, p. 311, tradução nossa) escreve que um

dos resultados mais importantes de sua investigação “[...] é a constatação de que as

características estruturais da linguagem egocêntrica, reflexo de seu distanciamento da

linguagem social e responsáveis pela sua ininteligibilidade para os demais, não se reduzem com

a idade, senão que aumentam. São mínimas aos três anos e máximas aos sete. Por conseguinte,

não desaparecem, mas evoluem.”

O que vai diminuindo progressivamente é a frequência da linguagem egocêntrica, que

vai se reduzindo mais e mais na idade escolar. Mas suas características estruturais diferenciadas

vão aumentando e se incrementando. Contraditoriamente, sua vocalização, ou seja, sua parte

sonora, vai se reduzindo e sua configuração interna e seu procedimento de ação vão se

distanciando da linguagem externa, de maneira que sua forma vocalizada tende a atrofiar-se e

desaparecer. Isto ocorre porque a vocalização se torna desnecessária. Desse fato resulta um

aparente desaparecimento da linguagem egocêntrica. Mas essa extinção é apenas ilusória, pois,

na verdade, representa um progresso evolutivo, o nascimento de uma forma nova de linguagem,

a linguagem interna.

A diminuição das manifestações externas da linguagem egocêntrica simboliza, portanto,

progresso, porque evidencia a abstração do aspecto sonoro da linguagem, sua distinção da

linguagem comunicativa e a capacidade cada vez maior de a criança pensar por intermédio das

palavras, de operar com a palavra de forma abstrata. Como bem argumenta Vigotski,

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A linguagem interna é uma linguagem muda, silenciosa. Essa é sua principal

característica. Precisamente nesta direção, no incremento paulatino dessa

diferença, é para onde avança a evolução da linguagem egocêntrica. Sua

vocalização descende até zero, convertendo-se em linguagem muda. Assim

deve ser se a linguagem egocêntrica representa uma etapa evolutiva inicial no

desenvolvimento da linguagem interna. (VYGOTSKI, 2001, p. 313, tradução

nossa).

A razão pela qual a linguagem se torna interior é sua variação de função. Passa de

externa à egocêntrica e depois à interna. Num primeiro momento, no interior das interações

sociais, a linguagem serve apenas como meio de comunicação; gradualmente, vai se

convertendo também em instrumento do pensamento, evoluindo, finalmente, para pensamento

genuinamente verbal. Nesse sentido, Vigotski (2001) destaca que a linguagem se realiza

mediante a regra geral do desenvolvimento das funções psíquicas superiores. Esse movimento

compreende quatro etapas fundamentais.

A primeira é a chamada etapa primitiva ou natural, caracterizando as operações que se

apresentam como nas primeiras fases do comportamento. Trata-se do substrato natural ou

biológico das funções psíquicas superiores, que constitui a base das formas culturais do

comportamento humano. Aqui se incluem a linguagem pré-intelectual – composta pelas formas

primitivas de comunicação, expressas pelo balbucio sem vinculação inicial com o pensamento

–, e o pensamento pré-verbal, marcado pelo intelecto prático, sem conexão com a fala.

A segunda etapa é a etapa da “psicologia ingênua”, denominação análoga ao que os

pesquisadores da inteligência prática classificam de “física ingênua”55. Nesta etapa a criança se

relaciona com seu próprio corpo ou com os objetos de forma tateante e experimental, o que

evidencia que ainda não domina as operações psíquicas, ainda que as utilize. No que respeita à

linguagem, a criança demonstra uma evolução significativa, no entanto, faz uso de estruturas e

formas gramaticais sem a compreensão das relações lógicas dessas formas: “[...] domina as

orações subordinadas, as formas de linguagem do tipo “porque”, “como”, “se”, “quando”, “pelo

contrário” ou “porém”, muito antes de chegar a dominar as relações causais temporais,

condicionais, adversativas, etc.” (VYGOTSKI, 2001, p. 109, tradução nossa).

A terceira etapa é a do signo externo, em que as operações psíquicas são realizadas por

intermédio do uso dos signos externos: a criança usa os dedos para contar e objetos para lembrar

de algo, por exemplo. Em relação ao desenvolvimento da linguagem, esta etapa corresponde à

55 Vigotski (2001, p. 108, tradução nossa) esclarece: “Denominam “ingênua” a experiência dos animais ou das

crianças no âmbito das propriedades físicas do próprio corpo e das coisas que o rodeiam, de objetos e instrumentos.

Experiência ingênua que determina fundamentalmente o uso de instrumentos por parte da criança e as primeiras

operações de sua inteligência prática,”

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linguagem egocêntrica da criança, que permite que os pequenos comecem a regular seu

comportamento a partir da fala que acompanha suas atividades.

A quarta etapa é denominada etapa do “crescimento para dentro”, quando a operação

externa se converte em operação interna e, ao ser internalizada, reconfigura-se profundamente,

complexifica-se. Trata-se, por exemplo, do cálculo mental e da chamada memória lógica,

operações psíquicas mediadas por signos interiores. No desenvolvimento da linguagem,

corresponde à fala interna: as palavras já internalizadas – do plano externo ao interno (PINO,

2005) – medeiam as operações do pensamento e não carecem de vocalização para conduzir os

comportamentos da criança. Cabe mencionar que existe uma relação dinâmica entre as

operações externas e internas, de maneira que uma pode se transformar na outra a qualquer

momento. Esse fato pode ser elucidado pela linguagem interna quando esta se prepara para ser

exteriorizada, na elaboração de um discurso, por exemplo.

A linguagem interna constitui um processo bastante complexo, cujas características

mereceriam um trabalho a parte, distanciando-se dos objetivos de nossa investigação por se

localizar para além do período a que dedicamos nosso trabalho, fugindo aos objetivos de nossa

investigação. Por essa razão, não nos ocuparemos dela nesse momento56.

Tomando como parâmetro a idade das crianças na fase da creche, destacamos aqui a

assertiva oportuna de Vigotski de que “[...] as particularidades estruturais e funcionais da

linguagem egocêntrica aumentam com o desenvolvimento da criança. Aos três anos, a diferença

entre a linguagem egocêntrica e a comunicativa é quase nula” (VYGOTSKI, 2001, p. 312,

tradução nossa). Essa afirmação nos mostra que as crianças da creche se encontram, ainda, no

início da linguagem egocêntrica. As formas de linguagem predominantes desse momento são a

linguagem pré-verbal, a linguagem autônoma e a linguagem verbal, sendo a linguagem interna

um processo em devir. Esse fato aponta para a creche a função de ampliar e intensificar as

vivências comunicativas da criança por intermédio da prática pedagógica organizada em ricas

experiências de interação, visto que as relações das crianças com os adultos e destas entre si são

a base para esse desenvolvimento.

56 Mais tarde, planejamos estudar a linguagem interna, como continuidade dessa investigação.

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3.3.2 O início do processo de formação de conceitos

Vimos que a partir da junção do pensamento e da linguagem, a linguagem da criança

passa por profundas mudanças; torna-se cada vez mais intelectual, mantendo estreita relação

com seu pensamento. Mas, como se caracteriza o pensamento da criança nesta fase? Vamos

abordar essa questão no contexto da investigação de Vigotski (2001) acerca da formação de

conceitos, um processo que principia na pequena infância, mas se estabiliza apenas bem mais

tarde, na adolescência. A formação dos conceitos genuínos é possível somente na adolescência

por tratar-se de uma operação intelectual complexa que envolve a utilização de todas as funções

psíquicas (atenção, percepção, associação, comparação, análise e síntese). A criança pequena

ainda não possui a capacidade de formar o conceito propriamente dito, uma vez que não dispõe

de todas as funções intelectuais citadas já desenvolvidas. Por conseguinte, utiliza, em sua

linguagem, palavras que se assemelham, externamente, ao verdadeiro conceito, o que faz com

que sejam interpretados equivocadamente pelo adulto que não conhece as especificidades desse

processo.

Na perspectiva de Vigotski, o pensamento conceitual fundamenta-se nas condições

concretas de vida, sendo a formação de conceitos um processo eminentemente histórico, que se

desenvolve mediante o uso funcional. Tal formação tem como substrato a palavra, usada, num

primeiro momento, como instrumento de comunicação e, mais tarde, como meio de

pensamento. Para estudar experimentalmente o processo de formação de conceitos, Vigotski

utilizou o método de dupla estimulação funcional, desenvolvido por seu colaborador L. S.

Sájarov. O experimento consiste em apresentar à criança figuras de cores, formas e espessuras

distintas, com nomes fictícios, para que a mesma faça agrupamentos e defina os critérios para

denominar determinado grupo de objetos.

A investigação realizada por Vigotski (2001) e colaboradores demonstra que o processo

de desenvolvimento de conceitos é formado por três fases fundamentais, que se desdobram em

várias etapas distintas: 1ª fase) pensamento sincrético; 2ª fase) pensamento por complexos; e 3ª

fase) pensamento pré-conceitual. Esclarecemos que as três fases que compõem a formação dos

conceitos estudadas por Vigotski evidenciam o desenvolvimento do pensamento verbal, o

encadeamento do intelecto e da linguagem na elaboração conceitual. Em consonância com o

objeto de nossa pesquisa, vamos tratar apenas do pensamento sincrético (que emerge na

primeira infância) e do pensamento por complexos (que vai aparecendo paulatinamente na

criança pequena, até se consolidar na idade pré-escolar), visto que o pensamento pré-conceitual

é característico da idade escolar, que não se aplica às crianças por nós observadas.

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A fase do pensamento sincrético, “[...] a mais frequente no comportamento da criança

pequena [...]” (VYGOTSKI, 2001, p. 135, tradução nossa), é caracterizada por agrupamentos

baseados em impressões subjetivas. A criança realiza aglomerações desorganizadas de acordo

com sua percepção do objeto, que “[...] revela a extensão difusa e não direcionada do

significado da palavra, ou do signo que a substitui, em uma série de elementos relacionados nas

impressões perceptivas da criança, porém sem unidade interna” (Idem, 2001, p. 135, tradução

nossa). Assim, nessa fase, o significado da palavra para a criança não está definido por

completo, é um conjunto vago e sincrético de objetos isolados, que, para ela, se relacionam

entre si em alguma imagem. O pensamento e a ação da criança se baseiam em suas percepções,

o que resulta em relações entre as coisas que não correspondem às convencionais e sintetizadas

socialmente numa palavra. Muitas palavras usadas pelas crianças que se encontram nessa fase

coincidem com as dos adultos, pelo fato de ambas se referirem aos mesmos objetos. Vigotski

nos esclarece que

A criança se comunica com os adultos usando palavras com sentido. Entre as

numerosas conexões sincréticas estabelecidas com as palavras, estas

agrupações de objetos sincréticas e desorganizadas, são também em grande

parte o reflexo de relações objetivas, na medida que essas relações objetivas

coincidem com os vínculos criados pelas impressões e percepções da criança.

Por isso em muitos casos o significado de suas palavras podem coincidir com

o significado dessas mesmas palavras na fala dos adultos, sobretudo quando

se referem a objetos concretos do entorno da criança. (VYGOTSKI, 2001, p.

136, tradução nossa).

A primeira fase da formação de conceitos, ou fase sincrética, caracterizada

principalmente pelo fato de a criança atribuir nomes aos objetos com base em impressões

subjetivas, se divide em três etapas distintas. Na primeira, os agrupamentos sincréticos que

correspondem ao significado da palavra são feitos por tentativa e erro, os objetos são agrupados

por acaso. Assim, os nomes atribuídos às coisas e aos conjuntos pelas crianças pequenas não

são resultado de conexões objetivas entre os objetos, mas de suas impressões e ideias, o que faz

com que se diferencie da forma adulta de nomeá-los. Na segunda, a criança realiza

agrupamentos com base em seu campo visual. Assim, se dois objetos estiverem dispostos em

contiguidade espacial ou temporal ou assim forem percebidos pela criança, podem receber o

mesmo nome. Na terceira etapa, a imagem sincrética que equivaleria ao conceito tem uma base

mais complexa. A criança se apoia nos agrupamentos de objetos realizados anteriormente e

atribui a estes um único significado, ou nome: recombina objetos de diferentes agrupamentos,

mas ainda utiliza para isso uma coerência incoerente. Essa forma de nomear os objetos, “[...]

sem suficiente fundamento interno, sem suficiente afinidade e relação entre seus elementos

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integrantes, revela a extensão difusa e não dirigida dos significados da palavra [...]” (p. 135) e

isso acontece dadas as características da percepção da criança pequenininha, bem como de sua

apropriação das palavras e suas propriedades.

Por isso, antes de passar à caracterização da fase do pensamento por complexos,

consideramos importante centrar nossa discussão em torno da percepção da criança na primeira

infância, tendo em vista que sua percepção é a base para os agrupamentos sincréticos acima

descritos. Já temos conhecimento de que a percepção da criança surge por meio da atividade

com os objetos (que envolve pessoas e suas ações), como bem acentua Mukhina (1995, p. 132-

133): “A percepção da criança durante toda a primeira infância está estreitamente relacionada

com ações objetais. A criança define com grande exatidão a forma, o tamanho, a posição no

espaço ou a cor dos objetos, quando precisa realizar determinada ação, dentro de suas

possibilidades.”

Segundo Vigotski (2012b), ainda antes dos três anos de idade se forma na criança uma

percepção estável, semântica, aquela que possibilita perceber determinado objeto ou situação

como um todo, ao invés de perceber suas características isoladas. Mas isso não acontece

naturalmente; como vimos, decorre das influências educativas dos adultos. A percepção

semântica possibilita que ao olhar para um carrinho de brinquedo, por exemplo, a criança

destaque, além da cor, forma, os traços gerais que compõem o brinquedo, o seu significado:

perceba um carrinho. Trata-se de uma percepção imbuída de sentido. O interesse da criança

expresso por suas perguntas do tipo “o que é isso?” ou “quem é?”, comprovam a existência de

sua percepção constante. A percepção semântica é generalizada, faz parte de uma estrutura mais

completa, a estrutura da generalização, quer dizer, “[...] a inclusão do objeto dado em uma

determinada classe de objetos” (VYGOTSKI, 2012b, p. 358, tradução nossa). Pela afirmativa

de Vigotski, podemos compreender que a criança utiliza uma forma peculiar de generalização

na fase do pensamento sincrético, ao realizar agrupamentos baseados na percepção visual-

direta, situacional.

Faz-se necessário destacar o papel da linguagem para a percepção, o que tem a ver com

o surgimento da percepção imbuída de sentido da realidade, que possibilita à criança atribuir

sentido às coisas que se passam e são captadas ao seu redor. Vigotski (2012b) afirma que essa

questão está relacionada com o significado das palavras, pois toda palavra é generalização e

abstração. A palavra é uma abstração do pensamento; o estudo de Vigotski sobre a formação

de conceitos nos mostra isso. Por trás do significado da palavra se encontra uma generalização,

porque, com uma mesma palavra denominamos diferentes objetos. É preciso, no entanto,

atentar para o fato de que a generalização da criança é diferente da que faz o adulto, “[...] ainda

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que para a criança a palavra já tenha significado e designe o objeto com a mesma palavra que

nós, a generaliza por outras vias, quer dizer, a estrutura da generalização da criança é diferente”

(VYGOTSKI, 2012b, p. 360, tradução nossa). Este fato é facilmente comprovado pelo

desempenho das crianças nas provas experimentais utilizadas por Vigotski e seus colaboradores

no estudo do desenvolvimento dos conceitos e atesta a necessidade do diálogo com as crianças

que, se por um lado, amplia seu vocabulário, por outro, também medeia o desenvolvimento da

percepção do significado e sentido das palavras, que vai progressivamente deixando de ser

difusa e se tornando semântica, integral.

A generalização que se dá pelo domínio da linguagem e pela emergência de funções

mentais que ela evoca é essencial para a comunicação, porque permite que a criança

compreenda a fala do adulto, altamente generalizada. Sabemos que a compreensão da

linguagem social antecede o domínio da linguagem pela criança, o que nos mostra que a

capacidade de generalizar começa a se formar antes mesmo da expressão da criança, ao

identificar e “denominar” os objetos do mundo físico, mesmo antes de falar propriamente.

Nesse momento a criança inicia, ainda que de forma embrionária, o processo de análise e

síntese. Trata-se de ações intelectuais, que têm continuidade com a formação de conceitos.

Assim, a generalização permite à criança perceber os objetos no plano da generalização visual-

direta, situacional, como também no plano da generalização verbal. Isto representa o

enriquecimento da abstração, pois a representação do objeto por intermédio da abstração

presente na palavra é mais complexa que na simples percepção. Dessa forma, a inserção na

linguagem conduz a criança ao mundo das abstrações, à percepção semântica, à visão mais

organizada do mundo circundante. A percepção semântica carrega em si o germe da

generalização, o que faz com que a criança, em condições concretas, domine cada vez melhor

a linguagem e se comunique de uma forma mais rica com as pessoas e consigo mesma. No

entanto, é preciso atentar para o fato de que

[...] as generalizações da criança são diferentes de nossas generalizações [...].

a criança concebe a realidade, compreende os acontecimentos que se dão ao

redor dela não inteiramente, como nós compreendemos. Nem sempre o adulto

pode transmitir à criança toda a plenitude de significado de determinada

ocorrência. A criança compreende por partes, não integralmente, compreende

um aspecto do assunto, não compreende outro; entende, mas entende à sua

maneira, processando, recortando de seu próprio jeito, retirando apenas parte

daquilo que lhe explicam. (VIGOTSKI, 2010, p. 690).

Abaixo apresentamos uma situação ocorrida na creche pesquisada, no intuito de

exemplificar nossas considerações.

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________________________________________________________________________________

Evento 16v: Identificando o boi

Data: 08/10/2014

Integrantes: Kauã (1a, 10m) e a pesquisadora

___________________________________________________________________________

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

As crianças brincavam livremente na sala de referência, quando Kauã pegou um livro

que estava lendo e o levou até mim, que me encontrava sentada no chão, observando. Comecei,

então, a contar-lhe a história do livro, apontando os animais que apareciam, conforme se vê nas

imagens. Enquanto eu contava a história, Kauã falava repetidamente boi, boi, apontando para

algo no livro. Era como se ele não estivesse ouvindo minha narrativa, detendo sua atenção

apenas no que lhe interessava – o boi (que eu não estava enxergando). Ocorre que, a princípio,

eu não compreendi claramente sua fala, embora insistente, pois não havia identificado, entre os

animais que apareciam na história, nenhum boi. Mas, Kauã continuou apontando para algo bem

pequeno nas ilustrações, insistindo em me mostrar seu boi. Foi então que finalmente enxerguei

a menor figura entre todas. Lá num cantinho da página, bem pequeno e quase escondido, estava

mesmo o boi (Diário de campo, 08 de outubro de 2014).

Esse evento nos mostra que a percepção semântica de Kauã, com apenas um ano e dez

meses de idade, ainda não havia se desenvolvido por completo. Sua capacidade de perceber a

situação como um todo, como uma estrutura semântica, ainda estava se formando, razão pela

qual se deteve, naquela parte da história, em apenas um dos animais presentes, por mais que eu

tentasse chamar sua atenção para os outros animais. No entanto, por meio de sua percepção em

vias de construção, o pequeno enxergou algo que a pesquisadora, com sua percepção semântica,

desenvolvida, não foi capaz de visualizar...

A situação evidencia como cada pessoa se apropria de maneira singular dos signos e das

práticas sociais. A apropriação feita por Kauã pode ser caracterizada como não linear, não

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previsível, (im)pertinente, segundo Smolka (2000). Na perspectiva dessa autora, o fato de o

pequeno não ter captado o todo da situação pode ser, equivocadamente, visto como

inapropriado, sinalizando algo como uma dificuldade de aprendizagem. O que seria esperado,

ou “apropriado” nesse caso? Que Kauã prestasse atenção na história que lhe contávamos, que

percebesse os animais que lhe mostrávamos, ao invés de deter sua atenção naquele boi tão

pequeno! Para Smolka (2000, p. 32), “[...] tal análise baseia-se numa noção de apropriação

comumente relacionada à idéia de desempenho e realização de ações bem-sucedidas pelo

indivíduo.” Nessa perspectiva, apropriar-se significa realizar algo correta e adequadamente, ou

seja, de forma pertinente. Porém, “[...] tornar próprio não significa exatamente, e nem sempre

coincide com tornar adequado às expectativas sociais. Existem modos de tornar próprio, de

tornar seu, que não são adequados ou pertinentes para o outro” (Idem, p. 32, grifos da autora).

Isso demonstra uma característica importante do desenvolvimento da linguagem e do

pensamento da criança bem pequena que, a princípio, parecem contraditórios entre si. Segundo

Vigotski, “[...] o desenvolvimento da linguagem da criança pequenininha, embora externamente

se desdobre da palavra para um encadeamento progressivo de palavras e frases, percorrendo o

caminho que vai da parte para o todo, ocorre semanticamente de maneira diferenciada”

(BISSOLI, 2014, p. 846), o que significa que uma palavra dita pela criança, como no caso da

repetida palavra “boi”, no evento acima descrito,

[...] representa, por seu significado uma frase completa, uma oração de uma

só palavra. No desenvolvimento do aspecto semântico da linguagem, a criança

começa pelo todo, pela oração e somente depois passa a dominar as diferentes

unidades semânticas, os significados das palavras distintas, dividindo seu

pensamento aglutinado, expresso em uma oração de uma palavra, em uma

série de significados verbais isolados entrelaçados. (VYGOTSKI, 2001, p.

297, tradução nossa).

Por esse motivo, cabe ao adulto estar atento ao que a criança expressa, ainda que não

fale com fluência, utilizando palavras aparentemente isoladas. É importante considerar que

O pensamento da criança surge inicialmente como um todo difuso e

indiferenciado e, precisamente por isso, deve expressar-se, no plano verbal,

como uma só palavra. É como se a criança elegesse para seu pensamento, uma

veste verbal sob medida; quando vai se diferenciando seu pensamento, à

medida que ele se configura a partir de partes distintas, sua linguagem passa

da parte, da palavra, ao todo composto. Reciprocamente, o progresso da

criança desde a palavra até a oração diferenciada permite que o pensamento

avance da unidade global para as partes bem definidas. (VYGOTSKI, 2001,

p. 298, tradução nossa).

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Voltando à formação dos conceitos, vamos abordar a segunda fase, denominada por

Vigotski (2001) como pensamento por complexos, que supera o pensamento sincrético da fase

anteriormente descrita. Esta forma de pensamento é caracterizada por agrupamentos baseados

em elementos objetivos, significando que “[...] as generalizações criadas [...] são, quanto à sua

estrutura, complexos de objetos ou elementos agrupados não somente sobre a base de conexões

subjetivas estabelecidas na percepção da criança, senão fundadas em relações objetivas

realmente existentes entre os objetos” (VYGOTSKI, 2001, p. 138, tradução nossa). Nesta fase,

a criança já começa a agrupar objetos de maneira a formar complexos de acordo com as suas

semelhanças. O pensamento por complexos representa um grau mais elevado no pensamento

da criança; por seu intermédio, ela deixa de confundir as relações fundadas em suas impressões

com as relações objetivas. Assim, o sincretismo vai sendo substituído pelo pensamento

objetivo, favorecendo as generalizações, as sínteses.

Vigotski comenta que a linguagem dos adultos carrega muitas lembranças do

pensamento por complexos, a exemplo do emprego de sobrenomes, que são uma forma de

agrupamento por semelhanças. Quanto à criança, é como se ela pensasse por sobrenomes na

fase dos complexos, ou como se os significados das palavras fossem sobrenomes dos objetos

agrupados em complexos. Todavia, o autor afirma que “[...] a criança que se encontra no estágio

do pensamento em complexos pensa, como significado da palavra, nos mesmos objetos que os

adultos, graças ao que resulta possível a mútua compreensão, porém o pensa de outra forma,

seguindo outro procedimento, com ajuda de outras operações intelectuais” (VYGOTSKI, 2001,

p. 154, tradução nossa).

Da mesma forma que o conceito, o complexo é generalização. No entanto, a diferença

consiste em que o complexo se forma a partir de qualquer ligação, ao passo que o conceito é

baseado em apenas um tipo de conexão, lógica e abstrata. Outra diferença entre um complexo

e um conceito reside na diversidade ou na unidade de conexões em que se baseiam. Os conceitos

são formados por relações de agrupamentos de objetos com caraterísticas comuns, de maneira

que “[...] todos os elementos se relacionam com o todo, expressado no conceito, através do qual

se relacionam também com os restantes elementos do mesmo modo, com uma conexão do

mesmo tipo” (VYGOTSKI, 2001, p. 139-140, tradução nossa, grifos do autor). Contrariamente,

os vínculos que unem os elementos do complexo são diversos.

Em sua investigação, Vigotski observou que o pensamento por complexos se desdobra

em cinco etapas sucessivas, que vamos caracterizar brevemente: associação; coleção; cadeia;

complexo difuso e pseudoconceito. Antes, porém, de adentrar nelas, é importante mencionar

que não se tratam de fases estritamente separadas entre si, que se apresentam em uma sequência

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linear: aparecem no pensamento da criança simultaneamente, dependendo da situação, da

conversa entabulada com ela, do conhecimento a respeito de um tema. Permanecem no

pensamento do adulto que, embora possa pensar conceitualmente, não o faz a todo tempo.

No complexo de associação, a criança agrupa objetos por ligações associativas, com

base em algum atributo comum entre eles. As palavras nomeiam objetos relacionados entre si,

ao invés de se referir a objetos isolados. Como exemplo, a criança chama “au-au” a cachorros

de verdade ou de brinquedo, a qualquer animal de quatro patas, ou ainda a objetos alongados.

No complexo de coleção, são feitos agrupamentos tomando em conta apenas um atributo, sendo

os objetos agrupados de acordo com sua função, não por semelhança. Rotineiramente, a criança

forma conjuntos de utensílios, como “copo, prato e colher”, ou de brinquedos, por exemplo e,

muitas vezes, chama a todos os objetos que compõem a coleção pelo mesmo nome. O complexo

em cadeia se refere aos agrupamentos feitos com base em apenas um atributo; a criança agrupa

objetos com base em um atributo secundário, deixando de lado os demais traços.

Exemplificando, a criança usa a palavra “quá” para denominar um pato, qualquer líquido, ou

uma moeda com desenho de uma águia. No complexo difuso a criança agrupa objetos a partir

de associações indeterminadas, atribuindo a um mesmo grupo objetos diferentes, com base nas

impressões visuais e no conhecimento que tem dos objetos. Agrupa distintos objetos sob um

mesmo nome, como se seu pensamento desse saltos, configurando o que, no senso comum,

costuma-se chamar “imaginação fértil” infantil. A fase do pseudoconceito se refere às

generalizações da criança semelhantes às do adulto no aspecto externo, mas diferentes

internamente do verdadeiro conceito. Ao separar objetos, a criança baseia-se, ainda, em

associações concretas, ao invés de guiar-se pelo conceito. Esse complexo é a ponte de ligação

entre o pensamento por complexos e o pensamento conceitual.

Os pseudoconceitos são a forma mais duradoura de complexos, sendo predominantes

na idade pré-escolar. Sua existência revela “[...] que os complexos infantis correspondentes ao

significado das palavras não se desenvolvem livre e espontaneamente segundo as diretrizes da

própria criança, senão seguindo determinadas direções pré-estabelecidas já para o

desenvolvimento do complexo pelo significado dado às palavras na fala do adulto”

(VYGOTSKI, 2001, p. 147, tradução nossa). Vemos, portanto, que a criança não cria por si os

significados das palavras, antes, já os encontra prontos. No processo de assimilação da

linguagem dos adultos, ela vai se apropriando do significado concreto das palavras, o que

favorece a comunicação verbal, uma vez que os seus complexos coincidem com os complexos

ou com os conceitos dos adultos. No entanto, embora os significados estáveis das palavras

conduzam o pensamento da criança na formação dos conceitos, seu pensamento não funciona

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como a cópia do que se fala à criança; segue caminhos próprios e diretamente relacionados ao

desenvolvimento intelectual em cada fase. Sobre essa questão, Vigotski assevera:

A linguagem de quem rodeia a criança, com seus significados estáveis e

constantes, predetermina as causas do desenvolvimento de suas

generalizações. Canaliza sua atividade em uma direção determinada,

estritamente delimitada. Porém, dentro desse caminho prescrito, a criança

pensa de forma correspondente ao seu nível intelectual. Os adultos, ao

servirem-se da linguagem para comunicar-se com ela, podem determinar a

direção do desenvolvimento de sua generalização e seu destino, quer dizer, a

generalização resultante. Porém, não podem transmitir-lhe sua forma de

pensar. A criança assimila deles somente os significados já elaborados das

palavras; não os objetos e complexos concretos, que tem que eleger por si

mesma. (VYGOTSKI, 2001, p. 148, tradução nossa).

A função dos pseudoconceitos é possibilitar a comunicação. A palavra, que serve como

meio de comunicação e compreensão mútua entre a criança e o adulto, tem para ambos o mesmo

significado, tornando-se portadora do conceito. Mas o verdadeiro conceito se desenvolve tarde

no pensamento da criança, ao passo que a compreensão verbal começa cedo. Devido a isso,

Vigotski enfatiza que existe uma contradição entre o fato de a criança desenvolver tardiamente

o conceito, mas compreender o que ele representa, ainda que de forma incompleta, bastante

cedo, mediante a comunicação verbal. O autor afirma que tal contradição é resolvida pelo

pseudoconceito, que possibilita a compreensão. A esse respeito, Mujina (1981, p. 66, tradução

nossa, grifos nossos) declara que “[...] a criança adquire sua maior experiência graças a

comunicação verbal com os adultos. Assimila conceitos, modos de raciocínio elaborados pela

humanidade. Imitando o adulto aprende a estruturar corretamente os julgamentos e a tirar

conclusões.”

Pela natureza funcional do pseudoconceito, ele representa uma ponte entre o

pensamento por complexos e o pensamento por conceitos. O pseudoconceito, enquanto um tipo

de complexo, contém, desde cedo, o embrião do futuro conceito. Nesse contexto, a

comunicação com os adultos é fundamental, “[...] se converte assim em um potente motor, em

um poderoso fator de desenvolvimento dos conceitos infantis57 (VYGOTSKI, 2001, p. 151,

tradução nossa).

É importante mencionar, ainda, que apesar de o adolescente e de o adulto serem

potencialmente possuidores das funções intelectuais necessárias para formar conceitos

genuínos, seu pensamento desliza, com frequência, para o terreno escorregadio dos

57 O início do processo de formação dos conceitos pela criança é outro tema que objetivamos estudar

posteriormente, dando prosseguimento a essa pesquisa.

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pseudoconceitos. Cotidianamente, a fala habitual do adulto não se manifesta pelo verdadeiro

conceito, antes se expressa por intermédio de pseudoconceitos, ideias gerais sobre as coisas do

dia-a-dia.

3.4 Relações entre pensamento e linguagem

Após discutir a formação da comunicação e da linguagem que, como vimos, ocorre em

vinculação direta com o pensamento, gostaríamos, ainda, de abordar brevemente os elementos

essenciais da complexa relação existente entre pensamento e linguagem na perspectiva de

Vigotski – que a destaca reiteradamente em suas investigações – e Luria. Centraremos nossa

atenção especialmente nos aspectos pertinentes à formação da linguagem na primeira infância

– objeto de nosso estudo –, enfocando o significado da palavra, concebido por Vigotski (2001)

como a unidade entre o pensamento e a linguagem.

De acordo com Vigotski (2001), o significado reflete a união dos processos do

pensamento e da linguagem e só existe na medida em que o pensamento se associa à palavra e

nela se encarna. Para o autor, a palavra é sustentada pelo pensamento e este pela palavra, de

maneira que um ilumina o outro. O significado é, assim, um fenômeno da linguagem – a própria

palavra em seu aspecto sonoro e significativo – e um fenômeno do pensamento, constituindo

generalização. Esses processos se encontram tão intimamente ligados que “[...] uma palavra

carente de significado não é uma palavra, é um som oco. Por conseguinte, o significado é o

traço necessário, constitutivo da própria palavra” (VYGOTSKI, 2001, p. 289, tradução nossa).

O significado possui, portanto, caráter tanto verbal quanto intelectual e, sendo generalização,

possibilita ao homem a apreensão da realidade para além da percepção sensorial e perceptual

imediata; permite a comunicação sobre algo que não está presente na situação concreta. Nessa

perspectiva, a inter-relação entre pensamento e linguagem revela como o pensamento se

transforma em palavra e como a palavra se converte em pensamento.

Mas, e as palavras? De onde vêm, de que forma são apropriadas pelas pessoas? Luria

(1986) nos auxilia nessa compreensão, abordando a pré-história da linguagem e a origem da

palavra na ontogênese. O autor declara que, apesar da existência de muitas teorias que procuram

explicar a origem da palavra, pouco se sabe a respeito da origem da linguagem. Entretanto,

apoiado em Engels, faz uma forte suposição a esse respeito: “Possuímos uma ampla base para

pensar que a palavra, como signo que designa um objeto, surge do trabalho, das ações com

objetos, e que é na história do trabalho e da comunicação, como repetidamente assinalou

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Engels, onde se deve buscar as raízes do surgimento da primeira palavra” (LURIA, 1986, p.

28).

A suposição de Luria é de que a palavra, no início da história da humanidade, nasce no

interior do trabalho e da comunicação surgida nesse contexto, estando, portanto, fortemente

vinculada com a prática. Fora desse contexto a palavra não teria vida independente; seu uso era

prático, e, dessa situação dependia o significado, que mudava de acordo com a circunstância

que a gerava. Portanto, nas primeiras etapas de desenvolvimento da linguagem, a palavra

possuía um caráter simpráxico – expressava o resultado de uma ação laboral concreta conjunta.

Em continuidade à história do desenvolvimento da linguagem, Luria (1986, p. 29, grifos

do autor) faz outra importante dedução: “Pelo visto, toda a história posterior da linguagem [...]

é a história da emancipação da palavra do terreno da prática, da separação da fala como

atividade autônoma e seus elementos – as palavras – como um sistema autônomo de códigos.”

Essa ideia equivale à formação da linguagem, de seu uso para denominar objetos e expressar

ideias; representa a independência da palavra do contexto simpráxico e a passagem da

linguagem ao sistema sinsemântico, “[...] quer dizer, como sistema de signos que estão

enlaçados uns aos outros por seus significados e que formam um sistema de códigos que podem

ser compreendidos, inclusive, quando não se conhece a situação” (Idem, p. 29).

Compreendemos, com Luria, que ao pouco conhecimento sobre a pré-história da

linguagem e sua origem histórico-social contrapõe-se o conhecimento sobre a origem da palavra

na ontogênese, no desenvolvimento da criança pequena, fato favorável ao nosso estudo. Para o

autor, a ontogênese (desenvolvimento da criança), nunca repete a filogênese (desenvolvimento

da espécie). Evidentemente, no desenvolvimento da linguagem, a criança não assimila as

palavras mediante o processo de trabalho, mas pela apropriação da experiência social, em

comunicação com o Outro, conforme já demonstramos. Mas o autor comenta que, em certa

medida, a formação ontogenética da linguagem representa a emancipação da palavra de seu

contexto prático, simpráxico, e isto também pudemos evidenciar na elaboração teórica de

Vigotski: no início do domínio da linguagem, a fala da criança pequeninha é situacional, ela só

é capaz de falar daquilo que vê e ouve diretamente. A linguagem surgida nesse contexto é social

e serve para denominar os objetos do entorno. Vejamos o que Luria (1986, p. 30-31, grifos do

autor) relata:

O início da verdadeira linguagem da criança e a aparição da primeira palavra,

que é o elemento desta linguagem, está sempre ligado à ação da criança e à

sua comunicação com os adultos. As primeiras palavras da criança, diferentes

de seus primeiros sons, não expressam seus estados, mas sim estão dirigidos

ao objeto e o designam. No entanto, essas palavras possuem no início um

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caráter simpráxico, estão fortemente enlaçados com a prática. [...] mesmo que

a primeira palavra da criança se dirija ao objeto, ainda é inseparável da ação,

ou seja, possui um caráter simpráxico.

Esta etapa da linguagem descrita por Luria pode ser assim caracterizada: uma mesma

palavra pode ter vários significados; as palavras são acompanhadas de entonação e gestos, que

conferem seu significado; o significado da palavra é difuso, dependente do contexto que a

engendrou; surge depois do primeiro ano de vida. Por tais caraterísticas, consideramos que esse

processo inicial de desenvolvimento da linguagem descrito por Luria corresponde à linguagem

autônoma retratada por Vigotski (2012b). Algum tempo depois, a criança adquire, de forma

elementar, a morfologia da palavra – esta adquire o status de substantivo, passando a ter um

significado objetal e, ao invés de designar uma situação, desliga-se de seu contexto simpráxico.

Na medida em que Luria efetuou seus estudos sobre a linguagem a partir das investigações de

Vigotski, encontramos aqui mais uma relação. O autor afirma que nesta etapa a criança

(aproximadamente entre 1,6 - 1,8 anos de idade) aumenta sobremaneira o seu vocabulário, não

se contenta com as palavras amorfas que antes utilizava e sente necessidade de adquirir novas

palavras que denominam, além de objetos, qualidades, ações e relações. No nosso

entendimento, essa explosão linguística condiz com o momento em que pensamento e

linguagem se encontram, explicando “[...] a passagem da fala simpráxica à fala sinsemântica”

(LURIA, 1986, p. 31), pelo que o autor conclui:

Deste modo, a observação da ontogênese facilita-nos fatos complementares

que permitem considerar que a palavra nasce de um contexto simpráxico,

separando-se progressivamente da prática, e converte-se em um signo

autônomo, que designa um objeto, uma ação ou uma qualidade (e mais adiante

uma relação). É neste momento que ocorre o verdadeiro nascimento da palavra

diferenciada como elemento do complexo sistema de códigos da língua.

(LURIA, 1986, p. 31).

Esclarecido o surgimento da palavra, podemos retomar a questão da relação entre

pensamento e linguagem. Conforme nossas discussões acerca do desenvolvimento da

linguagem no item anterior, o pensamento verbal se forma por intermédio da linguagem, com

base em dois aspectos distintos, mas inter-relacionados: os aspectos fonético (externo) e

semântico (interno). O aspecto fônico, externo, é o lado sonoro da linguagem, relacionado à sua

natureza verbal; o aspecto semântico, interno, constitui o significado, é o que dá sentido ao que

falamos, e permite interpretar o que ouvimos, vemos e lemos. Assim, a linguagem é composta

por uma faceta verbal e outra significativa. Essas duas facetas não aparecem já prontas no

desenvolvimento, não se desenvolvem juntas, e também não são idênticas, embora se

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relacionem mutuamente. Cabe, então, questionar de que maneira essa relação configura o

desenvolvimento da linguagem da criança.

Vigotski (2001) nos ajuda a compreender que o aspecto fônico da linguagem se

desenvolve das partes para o todo, ao passo que, no aspecto semântico, o desenvolvimento é

inverso, segue do todo para as partes. Portanto, no domínio do lado externo da linguagem e do

seu significado, a criança percorre caminhos opostos. Ao assimilar o lado externo, verbal da

linguagem, a criança pronuncia palavras, depois frases e, mais tarde, combinação de frases –

segue da parte para o todo; mas, sua percepção segue do todo integral para as partes. Isso

significa que ela, embora em sua fala se expresse por uma só palavra, se refere a toda uma

situação concreta e não apenas ao objeto que a palavra enunciada designa. Essa relação oposta

“resulta que o caminho do desenvolvimento dos aspectos semióticos [semânticos] e fonético da

linguagem infantil não só não constituem uma cópia espelhada, senão que em certo aspecto são

opostos um ao outro” (VYGOTSKI, 2001, p. 396, tradução nossa).

Conforme já mostramos, o pensamento inicial da criança é difuso e independente da

linguagem. Disso decorre a sua linguagem autônoma que dá lugar, em pouco tempo e com a

progressiva vinculação entre pensamento e linguagem, à linguagem convencional ainda que

com características específicas: ser expressa por palavras soltas, que muitas vezes são as

mesmas para se referir a objetos bastante diversos, agrupados com base no pensamento por

complexos. À medida que avança em seu pensamento, quando começa a perceber o mundo de

forma mais ordenada, sua linguagem também evolui, passando da palavra ao todo. Do mesmo

modo, esse progresso impulsiona seu pensamento, que se encaminha do todo às partes

definidas. Nas palavras de Vigotski,

[...] O pensamento se reestrutura e se modifica ao transformar-se em

linguagem. O pensamento não se expressa na palavra, senão que se realiza

nela. Por isso, os processos de desenvolvimento dos aspectos semântico e

verbal da linguagem, dirigidos em sentido contrário, constituem em essência

somente um, graças precisamente a suas diferenças opostas. (VYGOTSKI,

2001, p. 298, tradução nossa).

No início do processo de desenvolvimento da linguagem, durante muito tempo, a

palavra é para a criança um atributo do objeto, representa mais uma propriedade que um

símbolo, pois “[...] as palavras estão ligadas para a criança unicamente com os objetos a que se

referem” (VYGOTSKI, 2012b, p. 363, tradução nossa). Como resultado, ela domina primeiro

a estrutura externa da palavra, sua parte sonora, e somente mais tarde assimila sua estrutura

interna, seu significado. Recordando as etapas de domínio do signo já descritas nesse trabalho,

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(primitiva, “psicologia ingênua”, signo externo e “crescimento para dentro”), a criança que

considera a palavra como uma propriedade do objeto se encontra na etapa da psicologia

ingênua, que possibilita a assimilação da estrutura externa do signo.

Vigotski (2001, p. 181, tradução nossa) esclarece o domínio das estruturas externa e

interna da linguagem pela criança reiterando que “[...] a princípio, a criança assimila a conexão

externa entre a palavra e o objeto e não a relação interna entre o signo e o significado, fato que

se produz, além disso, segundo as leis que regulam o desenvolvimento do reflexo condicionado

em virtude do simples contato dos estímulos.” Ao fazer essa afirmação, o autor rechaça a teoria

intelectualista de Stern, segundo a qual a criança descobre o significado das palavras ao se

unirem o pensamento e a linguagem, por volta dos dois anos de idade. Para Vigotski, os

significados das palavras evoluem.

À princípio, a palavra se relaciona diretamente aos objetos, cumprindo a função de

indicá-los e nomeá-los, mas não de representá-los – a palavra ainda não constitui um signo para

a criança. Mukhina afirma que a função semiótica – em que as palavras são usadas como signos,

para substituir objetos ou ações – surge na criança depois dos dois anos de idade. Conforme a

autora, “[...] a função semiótica surge inicialmente em relação a uma atividade prática e somente

depois influencia a linguagem e permite à criança pensar com palavras. Para que a criança

chegue a dominar a função semiótica, ela precisa assimilar as operações objetais e

posteriormente separar a operação do objeto” (MUKHINA, 2005, p. 140-141). Como a criança

se relaciona com os objetos de forma concreta, mantendo com estes uma relação visual-direta

e percebe as palavras como denominações dos objetos com os quais atua, quando começa a

dominar a linguagem, ela fala muitas coisas, nomeia objetos e pessoas, aponta-os, mostra

figuras em livros, no entanto, o faz de forma não consciente: fala, mas não domina o significado

do que está falando. Nesse sentido,

Ainda que a criança dessa idade já saiba falar, desconhece, como é natural, a

própria palavra. Para ela, a palavra é como um cristal transparente através do

qual enxerga o que se oculta atrás dele, porém não vê o próprio cristal. Por

isso lhe resulta tão difícil organizar a palavra. Toda a linguagem da criança

nessa idade é completamente inconsciente [não consciente] [...]. Se

quiséssemos determinar até que ponto é consciente a criança da palavra como

tal, veríamos claramente que atrás da palavra somente está o objeto de que se

fala, que não diferencia ainda a palavra do objeto como sucede em idades

posteriores. (VYGOTSKI, 2012b, p. 364, tradução nossa).

Para Vigotski, essas características estruturais (semântica) e funcionais (indicativa e

nominativa) da palavra seguem direção oposta. A denominação do objeto pela criança é mais

forte nela que no adulto, pelo fato de a palavra representar para ela uma propriedade do objeto

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enquanto para o adulto a palavra tem um caráter mais abstrato. Assim, a palavra tem uma

relação mais estreita com o objeto para a criança do que a palavra do adulto: ela é, para os

pequenos, uma denominação que não se separa dos objetos denominados. Por essa razão,

inicialmente a criança não distingue o significado verbal e o objeto, o significado e a forma

sonora da palavra. Em poucas palavras: ela não assimila o significado da palavra; não realiza a

sua abstração. No curso do desenvolvimento, essa distinção entre objeto e seu significado ou

representação verbal surge mediante a sofisticação progressiva da generalização, no longo

processo de formação dos conceitos verdadeiros. Vejamos um exemplo.

Fotografia 28 - Letícia denomina formas Fotografia 29 - Kauã denomina animais

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014. Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

As crianças estão envolvidas na atividade de exploração de livros. Letícia (1a, 9m)

observa um livro de formas (primeira imagem) e Kauã (1a, 10m) escolhe um livro de animais,

entregando-o para a professora Creuza (segunda imagem). Creuza fala os nomes das figuras e

dos animais que aparecem nos livros e solicita às crianças que repitam. Com sua linguagem

verbal iniciante, os pequenos repetem os nomes pronunciados por Creuza. Em seguida, a

professora aponta as figuras perguntando “o que é isso?”. Letícia e Kauã nomeiam corretamente

a maioria das figuras, à medida que lhes são mostradas. Sabemos, no entanto, que o domínio

das palavras demonstrado por Letícia e Kauã, nesse momento de seu desenvolvimento

linguístico, é apenas externo: dominam o lado fonético da linguagem, não sua faceta semântica.

Mantendo uma ligação visual-direta com os desenhos apontados nos livros, os nomes das

formas e dos animais são, para eles, uma parte dos objetos, ao invés de representar seus

significados. As palavras não constituem, para eles, representações simbólicas. Apesar de

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nomear corretamente os desenhos dos livros, as duas crianças ainda levarão um longo tempo

até dominar os conceitos a eles correspondentes.

É importante destacar que o processo de formação de conceitos pela criança é dinâmico

e gradual, como já discutimos. A esse respeito, Vigotski sustenta duas teses, que representam

dois momentos na formação dos conceitos infantis. Primeiro, os significados das palavras

infantis se desenvolvem. A assimilação do significado de uma palavra não se dá de uma vez por

todas, como algo pronto e acabado. Embora se tenha a impressão de que a criança compreende

as palavras a elas dirigidas pelo adulto, e mesmo que as empregue corretamente, dando a

sensação aparente de que ela apreendeu o seu significado completamente, a aquisição de uma

palavra é apenas o início de um processo que terá continuidade. Vejamos na fala do próprio

autor:

[...] no momento em que se aprende uma palavra nova, o processo de

desenvolvimento não termina, senão que somente começa. No momento de

assimilação inicial, a nova palavra não se acha no final, senão no princípio de

seu desenvolvimento e durante este período é sempre uma palavra imatura. O

desenvolvimento interno paulatino de seu significado conduz à maturação da

própria palavra. O desenvolvimento do aspecto semântico da linguagem

resulta aqui e em todo lugar o processo fundamental e decisivo no

desenvolvimento do pensamento e da linguagem da criança. (VYGOTSKI,

2001, p. 284, tradução nossa).

Na segunda tese sobre a formação dos conceitos, Vigotski afirma que todos os sistemas

fundamentais das funções psíquicas da criança dependem do nível alcançado por ela no

desenvolvimento das palavras. Isto significa que a consciência e, com ela, as funções psíquicas

dependem do desenvolvimento do pensamento e da linguagem. O desenvolvimento do

pensamento é o que permite também a intelectualização de todas as outras funções, é o que

possibilita que a criança se comporte de maneira racional. Por intermédio do domínio da palavra

e seu significado, funções que atuavam de forma automática passam a atuar de forma

consciente, revelando que “[...] o grau de desenvolvimento do pensamento infantil, o grau de

desenvolvimento de suas categorias, são as premissas psicológicas do desenvolvimento de um

determinado sistema de pensamento infantil consciente ou não consciente” (VYGOTSKI, 2001,

p. 401, tradução nossa).

Portanto, ao lado da linguagem e do pensamento, se desenvolve, também, a consciência

da criança, que vai acompanhá-la durante as próximas etapas de sua vida, complexificando-se.

Mediante o domínio da linguagem surge a estrutura semântica e sistêmica da consciência, ou

seja, a possibilidade de tomada de consciência sobre a realidade. “Por estrutura sistêmica da

consciência deve compreender-se, a meu juízo, a peculiar relação recíproca das funções

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isoladas, quer dizer, que em cada período de idade as funções determinadas se inter-relacionam

e formam um determinado sistema da consciência”, afirma Vigotski (2012b, p. 362, tradução

nossa). Assim, a consciência sistêmica significa que a formação da consciência engloba uma

série de funções que influem umas sobre as outras (linguagem, atenção, memória, pensamento,

dentre outras). Isto nos mostra que a consciência é o resultado da união e do funcionamento de

diferentes sistemas interdependentes.

Bozhovich (1981) concorda com Vigotski ao afirmar que, na primeira infância, a

percepção constitui a função predominante, mas que, aos poucos, vai se juntando a outras

funções, formando uma estrutura. Dessa forma, a autora nos auxilia na compreensão da

estrutura sistêmica da consciência, considerando que

[...] no processo de desenvolvimento ontogenético outras funções psíquicas

substituem paulatinamente a percepção, dominante nessa idade: primeiro a

memória, logo o pensamento. Trata-se daquelas funções psicológicas que,

respondendo as tarefas de desenvolvimento da criança como totalidade

biossocial, se encontram, na idade correspondente, em um período ótimo de

sua formação. É como se a função diferenciada subordinasse a si as restantes,

determinando com ela o caráter da integração que tem lugar na idade dada,

quer dizer, o caráter de estrutura sistêmica da consciência infantil.

(BOZHOVICH, 1981, p. 251, tradução nossa).

Na primeira infância, a percepção é a função dominante, o centro em torno da qual atua

o restante das outras funções psíquicas. A consciência semântica tem caráter de generalização

e é o que permite a assimilação do significado das palavras e possibilita a comunicação. À

medida que a criança percebe semanticamente, as palavras adquirem significado (ainda que

inicial) e a consciência passa a atuar de maneira cada vez mais independente da situação

concreta, por intermédio da palavra. A palavra é, assim, um instrumento interno que faz com

que toda a estrutura da consciência se altere, passando a atuar mediada pelo signo, como

enfatiza Vigotski (2012b, p. 362, tradução nossa): “[...] a mudança de sistema das inter-relações

das funções se acham estreita e diretamente vinculado com o significado das palavras, com o

fato de que o significado das palavras começa a mediar os processos psíquicos.”

O que vai provocar uma mudança radical nessa situação é, pois, a consciência semântica,

o domínio progressivo do significado da palavra, a generalização. O domínio da linguagem

modifica a própria percepção, na medida em que a criança é capaz de fazer as primeiras

generalizações, isto é, colocar os objetos percebidos no interior de uma categoria lógica,

específica nos primeiros anos de vida. Isso complexifica a percepção da realidade, a relação da

criança com o mundo, influenciando os sentidos dados às situações em que ela se encontra, o

que compreende certo grau de tomada de consciência. Por essa razão, Vigotski (2012b) afirma

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que a nova formação central da primeira infância é a consciência vinculada à linguagem – a

consciência prática, que existe primeiro para os outros e depois para a própria criança. Apoiado

em Marx, Vigotski declara que a consciência nasce em conjunto com a linguagem, quando a

criança, por volta dos dois anos, começa a nomear os objetos por meio de sua atividade em

colaboração com os adultos, no processo de comunicação.

De fato, sem linguagem não pode haver consciência, eis por que ela se acha ligada à

nova formação da primeira infância, etapa em que se desenvolvem diferentes funções. É a

linguagem que está na base dessas funções, na medida em que, por seu intermédio, a criança

começa a pensar abstratamente por meio do signo, tendo seu pensamento mediado pela palavra.

Fica clara a influência do pensamento e da linguagem para o desenvolvimento psíquico da

criança. À medida que avança no domínio das palavras e compreende seu significado, todas as

suas funções mentais vão, progressivamente, se alterando e complexificando-se, de maneira

que “[...] a linguagem converte-se paulatinamente na principal via de acesso à experiência

social. Com a assimilação da linguagem muda a percepção, a mentalidade, a memória e, de

forma geral, todos os processos psíquicos da criança” (MUKHINA, 1995, p. 127). Luria (1986,

p. 33) complementa nosso pensamento, argumentando que

[...] com a aparição da linguagem como sistema de códigos que designam

objetos, ações, qualidades e relações, o homem adquire algo assim como uma

nova dimensão da consciência, nele se formam imagens subjetivas do mundo

objetivo que são dirigíveis, ou seja, representações que o homem pode

manipular, inclusive na ausência de percepções imediatas. Isto consiste na

principal conquista que o homem obtém com a linguagem.

Por tudo o que discutimos a respeito do processo de formação da linguagem da criança

pequena, nos indagamos sobre o papel do adulto nesse movimento. De que maneira os adultos

com quem a criança convive – seja na creche ou no ambiente doméstico – podem contribuir

para o desenvolvimento da sua linguagem e do seu pensamento? Que atividades devem propor

a fim de que a criança possa exercitar suas capacidades comunicativas?

Como vimos, as relações sociais estabelecidas entre adultos e crianças no contexto da

Educação Infantil assumem um papel fundamental no processo de desenvolvimento da

linguagem oral das crianças pequenas. Assim, faz-se necessário pensar e organizar a creche

como um ambiente educativo propício às interações. Na rotina ali estabelecida, as crianças

convivem juntas em diversos momentos e são colocadas em situações que favorecem o encontro

entre elas: na acolhida, nas brincadeiras, nas refeições, nos instantes que antecedem o sono,

entre outras. Ao atentar para essas situações, a professora pode em muito contribuir para que

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ricas trocas se efetivem. Ao mediar olhares, movimentos, risos, choros, gestos, conversas e

conflitos, a professora de creche estará contribuindo para a formação da linguagem dos

pequenos, pois essas situações favorecem a apropriação da linguagem oral.

Considerando que o meio é a verdadeira fonte do desenvolvimento, é preciso tornar a

creche um espaço de múltiplas e ricas vivências, um espaço que favoreça a apropriação da

linguagem por meio de riquezas culturais como as cantigas de roda, as canções infantis, as

histórias, a literatura infantil, as brincadeiras, o teatro e muito mais. Tudo isso constitui um

repertório cultural universal, cuja função é promover o desenvolvimento infantil. É preciso que

a criança se aproprie desses elementos. E esse processo não é de forma alguma espontâneo. A

apropriação se faz sempre pela mediação, por intermédio das relações com as pessoas

(DUARTE, 1999).

O processo pedagógico – mediado pelas distintas “linguagens” – requer um trabalho

cuidadosamente planejado, sistemático e intencional, para que possa cumprir o papel de

promover o desenvolvimento da linguagem infantil. E mais, deve ocorrer, na creche, tendo por

base as interações. Para tanto, não é suficiente que as crianças estejam em contato com

brinquedos diversos, jogos, livros ou outros recursos. Ou que sejam colocadas sozinhas diante

da TV assistindo a filmes e músicas. É preciso que haja intenção pedagógica por parte da

professora, mediadora das primeiras apropriações de bebês e crianças pequenas nesse espaço.

Há que se planejar ricos momentos de relações entre as crianças e destas com os adultos, de

trocas, de vivências e brincadeiras coletivas.

Conhecendo que a formação de conceitos pela criança é um processo longo e complexo

que começa na mais tenra infância, é dever do trabalho pedagógico na creche ampliar e

complexificar a linguagem oral da criança, por intermédio da comunicação e do diálogo

permanente com ela em todos os momentos, com vistas a interferir na sua linguagem interior,

a linguagem atrelada ao pensamento, que surge um pouco mais tarde. A comunicação da criança

com os adultos tem um papel fundamental no desenvolvimento da linguagem oral; quando as

crianças se comunicam apenas entre si, o conteúdo de sua linguagem não se enriquece, tendo

em vista que a linguagem do adulto é para elas o modelo ideal. Nesse sentido, é preciso que o

adulto fale corretamente com a criança enquanto se comunica com ela, que utilize uma

linguagem desenvolvida desde cedo, pois a criança se encontra em processo de

desenvolvimento, inclusive das formas socialmente aceitas de linguagem (VIGOTSKI, 2010).

Nossa defesa é em favor de uma educação humanizadora na creche, caracterizada como

“processo de formação das qualidades humanas” (MELLO, 2007, p. 86); que as crianças

tenham a possibilidade de desenvolver ao máximo suas potencialidades linguísticas e

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comunicativas, por intermédio de um trabalho educativo realizado por professoras que

compreendem a importância da comunicação, que deem visibilidade às diversas manifestações

de interações existentes no interior da creche, com vistas às necessárias intervenções. No

próximo capítulo, ao analisar as interações comunicativas observadas na turma do Maternal I,

nossas discussões serão pautadas pela concepção de que, “[...] na perspectiva histórico-cultural,

é responsabilidade do processo educativo organizar intencionalmente as condições adequadas

para proporcionar a máxima apropriação das qualidades humanas pelas novas gerações” (Idem,

p. 89).

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4 EVENTOS DE INTERAÇÃO E EMERGÊNCIA DA LINGUAGEM ORAL NO

COTIDIANO DO MATERNAL I

___________________________________________________________________________

Vem meu ursinho querido

Meu companheirinho

Ursinho Pimpão

Vamos sonhar aventuras

Voar nas alturas

Da imaginação

Como na história em quadrinhos

Eu sou a sininho

Você Peter Pan

Vamos fazer nossa festa

Brincar na floresta

Ursinho Tarzã

Enquanto o sono não vem

Eu sou Chapeuzinho

Você meu galã [...].58

(EDGARD POÇAS)

“Vem meu ursinho querido... enquanto o sono não vem eu sou Chapeuzinho, você meu

galã...” era o som da voz da Professora Creuza cantando baixinho para adormecer as crianças,

na maioria das vezes em que tivemos a oportunidade de observar esse momento da rotina.

Deitados em seus colchonetes na sala de repouso – após almoçar, escovar os dentes e ter as

fraldas trocadas –, Arthur, Fernanda, Isadora, Kauã, Letícia, Miguel e Samir iam, lentamente,

fechando os olhos e adormecendo. A hora do repouso era parte integrante dos momentos que

compunham o cotidiano da turma e marcavam a vida na creche. Outros momentos antecediam

58 Excerto da música “Ursinho Pimpão” (Mi Osito Pelón); versão em português de Edgard Poças, interpretada pelo

grupo infantil “A Turma do Balão Mágico”, em 1983.

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e sucediam a esse, pela ordem59: entrada; desjejum; escovação; banho de sol; atividade

permanente; lanche; banho; almoço; lanche; atividades diversificadas/direcionadas; banho;

jantar; escovação; saída.

Neste capítulo, vamos nos dedicar à análise da emergência da linguagem oral na turma

do Maternal I, em meio ao que se passava no cotidiano. Para tanto, selecionamos nove

eventos60, dentre aqueles apresentados no capítulo dois (p. 104-105), nos quais buscamos

conhecer a influência das interações adulto-criança e criança-criança para o desenvolvimento

da linguagem oral das crianças em situação de creche. No conjunto das análises, objetivamos

elucidar como o trabalho pedagógico na creche pode contribuir para que ocorram interações

verbais significativas entre crianças e adultos. Aqui, os conceitos sobre o desenvolvimento da

comunicação e da linguagem – discutidos no capítulo 3 – retornarão, e outros podem se fazer

necessários, uma vez que a análise será empreendida à luz da Teoria Histórico-Cultural e de

autores contemporâneos acerca do trabalho pedagógico na creche.

A questão da organização do tempo e dos espaços (ligadas entre si) não é nosso objeto

de análise e não se encontra diretamente contemplada em nossos objetivos, mas constitui pano

de fundo para nossa análise, a base sobre a qual se deram as interações verbais por nós

observadas. O assunto nos interessa na medida em que se encontra vinculado ao nosso

questionamento quanto à responsabilidade do trabalho pedagógico em organizar e proporcionar

situações em que as crianças desenvolvam suas capacidades comunicativas e vivenciem

experiências de uso da linguagem verbal. Dessa forma, inicialmente vamos tecer algumas

considerações a esse respeito, traduzindo os termos apontados acima, o que equivale a descrever

um pouco do dia-a-dia na creche.

4.1 O cotidiano da creche e do Maternal I

Barbosa (2006, p. 35) afirma que “[...] rotina é uma categoria pedagógica que os

responsáveis pela educação infantil estruturam para, a partir dela, desenvolver o trabalho

cotidiano nas instituições de educação infantil.” O conceito implica planejamento e, portanto,

intencionalidade por parte de quem organiza a vida na escola da infância. A partir dessa

concepção, a autora utiliza o termo rotinas para se referir ao conjunto de ações que configuram

o tempo e o espaço em creches e pré-escolas. Com Barbosa entendemos que a constituição da

59 Conforme o Quadro da Rotina estabelecido pela creche e fixado em todas as salas de referência (ANEXO C). 60 Fizemos a seleção dos eventos a serem alvo de análise com base nos seguintes critérios: qualidade da interação;

emprego da linguagem oral e vinculação aos conceitos teóricos.

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rotina no tempo e no espaço educativo tem origem histórica, tendo sido construída em distintas

áreas da atividade humana, como os monastérios, as indústrias e os hospitais. Dessa forma, “[...]

ao longo dos séculos XIX e XX, constituiu-se um processo de institucionalização das crianças

pequenas e uma rotinização de sua educação, com base no projeto moderno de racionalização,

higienização, psicologização, divisão do trabalho, controle e normatização” (BARBOSA, 2006,

p. 69).

Bondioli e Gariboldi (2012) enfocam o cotidiano da creche e as atividades que fazem

parte dele: as rotinas; a brincadeira; as atividades de aprendizagem (incluindo as linguísticas);

excursões, passeios e festas. À semelhança de Barbosa (2006), esses autores não falam de

“rotina”, mas de “rotinas”; no entanto, o termo é empregado com sentido distinto, como sendo

uma das atividades, no conjunto de todas as outras, que compõem o cotidiano da creche:

Por rotinas entende-se aquelas situações cotidianamente preparadas nas

creches que têm como objetivo principal o cuidado do corpo infantil: as

refeições, as trocas, a higiene pessoal e o sono. Elas distinguem-se pela

repetição do seu ciclo ao longo da jornada e pela presença de “rituais” que as

tornam facilmente reconhecíveis e previsíveis. (BONDIOLI; GARIBOLDI,

2012, p. 21).

No contexto por nós investigado, o dia-a-dia das crianças se desenrolava pelo conjunto

de atividades elencadas no "quadro da rotina”, momentos ritualizados que emolduravam as

ações, o tempo e as relações da turma. Em um dia de observação, nos detivemos a registrar essa

rotina no diário de campo:

“Tudo começa às 7:00h, quando as crianças chegam à creche e, ainda sonolentas, são entregues

para as professoras, na sala de referência. Nesse momento, normalmente, há um rápido diálogo

dos pais com as professoras, envolvendo preocupações com a criança: algo relativo ao

comportamento ou à saúde, como o lembrete de um remédio por exemplo. Algumas vezes há

uma “puxada de orelha”, alguma cobrança por parte das professoras a respeito de algo que

deixou de ser cumprido pelos pais; e esses, por seu turno, às vezes reclamam de algum arranhão

ou mordida percebidos em casa. Enfim, o momento de entrega da criança constitui uma espécie

de “ajuste de contas” apressado. Isto revela uma das especificidades da creche, no que respeita

à relação com a família, uma relação que necessita de parceria e proximidade, mais que em

qualquer outra etapa da educação. Após a despedida dos pais, as crianças recebem os primeiros

cuidados; como os dias normalmente são quentes, têm suas roupas e calçados trocados, ficando

com uma roupa bem leve ou apenas de fraldas e, em seguida, são levadas para o refeitório para

o café da manhã. Nas cadeiras de alimentação recebem leite ou suco, biscoito e uma fruta. Com

o auxílio e estímulo das professoras, as crianças se alimentam. Após a higiene bucal, por volta

das 8 horas, seguem para um passeio na área externa da creche, um “banho de sol”. O início da

manhã, geralmente com tempo bom, é propício à atividade, que termina no pátio, com as

crianças brincando nas casinhas que ficam ali ou em carrinhos/velocípedes. No retorno, tomam

outro lanche no refeitório: algo simples como uma fruta, um suco ou mingau. Em torno de 9h15

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as crianças são conduzidas de volta para a sala. O calor e o suor, provocados pelo clima da

região e pela movimentação das crianças, exigem um banho. O “momento” do banho dura

aproximadamente uma hora. Creuza, Cris e Val se revezam, dando banho nas crianças,

individualmente. Enquanto uma criança toma banho, algumas brincam livremente nas caixas

de brinquedos e outras assistem DVD. Um a um, os pequenos vão saindo do fraldário,

juntando-se aos outros, que brincam. Limpinhos, cheirosos e arrumados, saem com semblante

feliz e como querendo ouvir as exclamações costumeiras dos adultos: “nossa, que lindo(a)!”,

“Olha como tá bonito(a)!” “Hum! Que cheiroso(a)!”. Entre o término desse momento até o

horário do almoço há um espaço de, aproximadamente, 45 minutos, tempo ocupado com uma

atividade na própria sala: contação de história, exploração de livros, música e/ou movimento,

por exemplo. Às 10h50 começa a movimentação do almoço. Aventais são colocados nas

crianças, que se reúnem próximo da porta, seguindo em direção ao refeitório, onde se juntam,

às 11 horas, todas as turmas da creche. Acomodadas nas cadeiras de alimentação, esperam

enquanto sua comida é esfriada. De pé, na frente das crianças, as professoras as alimentam.

Colherada após outra, em meio a frases de incentivo e elogio, a preocupação é alimentar bem a

criança. Por volta de 11h30, ainda nas cadeiras de alimentação, é feita a higienização bucal e

os pequenos, liberados das cadeiras, seguem para a sala. Após terem as fraldas trocadas, se

encaminham “espontaneamente” para a sala de repouso, deitando-se, cada um, em seu

colchonete costumeiro. O momento do sono dura até, aproximadamente, 13h30. Marca o fim

do horário matutino e o início do vespertino.” (Diário de campo, 20 de maio de 2014).

Em outra ocasião, fizemos o registro do período vespertino:

“O período da tarde é bastante “curto”. Após um período consideravelmente longo de sono

(duas horas aproximadamente), as crianças vão, uma a uma, acordando e saindo da sala de

repouso. Procurando um adulto, se dirigem para a sala de atividades. Quando todas se levantam,

recebem um suco ou uma fruta. Por volta de 14 horas às 14h30 segue-se uma atividade, à

semelhança do que ocorreu pela manhã. Concomitantemente, começa o banho da tarde, um

pouco menos demorado que o da manhã. Às 15 horas é servida uma sopa como jantar. Após

esse momento, começa a movimentação para a saída: escovação, arrumação das mochilas,

algum lembrete na agenda. A espera pelos responsáveis ocorre na própria sala; as crianças se

entretêm brincando até a chegada do pai/mãe ou outro responsável da família, às 16 horas.

Sorrisos, abraços e manifestações de carinho fazem parte do reencontro, e, em seguida, os

pequenos são levados para casa.” (Diário de campo, 27 de maio de 2014).

Salvo em dias de programação e/ou comemoração de alguma data, essas são as

atividades que configuram o dia-a-dia na creche. O estabelecimento de uma rotina é algo

positivo em instituições educativas. Organizar o tempo e planejar situações garante segurança

à criança, que, por vivenciar atividades que se repetem sistematicamente, começa a perceber a

existência de ordem no ambiente da creche. Conhecendo a sucessão das situações, a criança

vai, aos poucos, adquirindo autonomia para agir e movimentar-se no espaço. Além disso, a

regularidade das atividades auxilia na construção de suas primeiras noções de tempo

(BONDIOLI; GARIBOLDI, 2012; BARBOSA, 2006; OLIVEIRA et al., 2011).

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No entanto, Barbosa (2006) diferencia rotina de cotidiano, afirmando que o cotidiano é

mais abrangente, abarca os rituais, as atividades que se repetem diariamente, mas também

possibilita a inserção do inesperado. Assumimos a perspectiva da autora, ao advertir que as

rotinas podem tornar-se instrumento de alienação, quando as atividades de um determinado

contexto passam a ser vividas mecanicamente, como ações sem sentido, em si. Para evitar que

isto aconteça, as rotinas precisam deixar espaço para aquilo que não estava previsto, para o

movimento, próprio do cotidiano. A abertura para a inovação constitui, assim, a possibilidade

de que o cotidiano da creche não seja vivido como rotina rotineira, excessivamente fechada e

rígida. Neste sentido, Oliveira et al. (2011) trazem importantes contribuições quanto à

organização das situações educativas na creche:

[...] devemos considerar a riqueza da dinâmica social típica do ser humano,

sempre em movimento, sempre repensando significações. Daí que, planejar as

ações educativas não se refere propriamente à previsão de uma sequência de

atos que serão obrigatoriamente cumpridos (rotinas), cabendo ao professor

controlar para que as crianças participem obedientemente da mesma. Tal ideia

contraria a visão de criança ativa, motivada, capaz de decidir, que busca agir

com o outro, a interagir com ele [...]. (OLIVEIRA et al. 2011, p. 90).

Na observação dos diversos momentos da turma, identificamos as duas dimensões do

cotidiano: aquelas situações que se repetiam diariamente mais ou menos no mesmo formato; e

aquelas em que os adultos ou as próprias crianças rompiam com a padronização imposta pelo

tempo e pela rotinização das ações, abrindo espaço para o inesperado e possibilitando ricas

interações, verbais ou apenas relacionais. Com frequência, as crianças quebravam a rotina

imposta pelos adultos, como no evento abaixo:

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Evento 19v: Procurando o au au

Data: 21/08/2014

Integrantes: Arthur (bermuda azul, 2a, 4m), Samir (1a, 6m), Letícia (1a, 10m),

professoras Valmirene e Creuza

___________________________________________________________________________

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

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Fonte: Diário de campo, 21 de agosto de 2014.

Neste evento de curta duração a mesmice foi quebrada pela curiosidade das crianças, ao

perceberem o que se passava fora da rotina e chamou sua atenção. Enquanto os adultos se

preocupavam com o atraso do almoço, os pequenos acrescentaram, ao momento rotineiro da

refeição, um elemento novo. O latido do cachorro – percebido apenas por eles – favoreceu a

interação das crianças entre si e propiciou a comunicação. Utilizando a linguagem autônoma

(VYGOTSKI, 2012b), própria de seu período de desenvolvimento, as crianças produziram um

discurso inteiro e se comunicaram por intermédio de suas palavras peculiares – au au.

Poderíamos traduzir esse discurso: tem um cachorro aqui, ele está latindo! Mas onde ele se

encontra? Não o estamos vendo, mas escutamos seu latido. Onde ele se escondeu? A professora

Val demonstrou entender a conversa das crianças quando pergunta “cadê o au au?”,

empregando ainda mais sentido ao que estava sendo observado pelas crianças. Evidentemente,

a rotina tinha que seguir, era preciso almoçar. Entretanto, o evento nos mostra a importância de

visualizar as descobertas infantis e significá-las. Embora a linguagem autônoma seja

situacional, dependente do contexto em que ocorre, a situação poderia ser retomada em outro

As crianças chegam ao refeitório para o almoço. No entanto, por conta de um atraso, a

comida ainda não está pronta. Alguns são logo acomodados nas cadeiras de alimentação,

mas outros ficam dando voltas pelo espaço do refeitório, enquanto Creuza e Cris conversam

com a cozinheira a respeito do atraso. Nesse momento, Arthur é atraído pelo som de um

cachorro, que havia entrado na creche e latia. O pequeno se põe a olhar através dos

quadrados na parede que separa a segunda entrada da entrada principal da instituição. Logo

em seguida, Samir também escuta o latido e se junta a Arthur. Quando Letícia ouve os

latidos do cão, corre para juntar-se aos meninos, que se encontram com os olhos fitos nas

brechas da parede, procurando o cachorro que latia. Começa uma gritaria: “au au! au au!”.

Agachada junto às crianças, a professora Val acompanha sua movimentação, perguntando

“cadê o au au?”. Provavelmente alguém tenha posto o cachorro para fora e o latido cessa,

mas as crianças continuam eufóricas e “conversam” entre si; Arthur pronuncia algumas

palavras, ao passo que Samir e Letícia repetem au au. Creuza, então, se aproxima e chama

as crianças para irem almoçar. Ao notar que os pequenos não querem sair dali a professora

diz: “o au au? Eu vou dar comida pro au au, tá? É o cachorro...”, e os três são levados para

as cadeiras de alimentação.

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momento, fazendo evocar a memória por meio da linguagem das crianças a respeito do

ocorrido. Conversar com a criança sobre o que ela percebe no seu entorno, constitui importante

ferramenta para o enriquecimento da capacidade comunicativa.

Popova (1985) considera que as atividades que envolvem meios de transporte e animais

exercem grande influência para o desenvolvimento da linguagem:

Os animais e os diferentes tipos de transporte se encontram em movimento em

condições naturais; isto desperta e mantém a atenção involuntária das

crianças. [...] A observação de animais e dos diferentes tipos de transporte

deixa uma profunda marca na memória da criança. Depois de certo tempo se

podem evocar as impressões recebidas anteriormente e provocar nela a

conversação. (POPOVA, 1985, p. 36, tradução nossa).

Em relação ao planejamento do tempo, Oliveira et al. (2011) destacam que a creche

normalmente organiza suas atividades com base no “relógio biológico”, relativo aos cuidados

físicos. No entanto, a autora enfatiza que há outros relógios a considerar, como o “relógio

histórico”, aquele que introduz no cotidiano da creche o que se passa “lá fora”, no âmbito das

práticas sociais, e o “relógio psicológico”, determinado pela noção de tempo de cada criança, e

pelo reconhecimento do tempo individual de aprendizagem.

A sequência de ações do “relógio biológico” [que é transformado pela cultura]

(alimentação, sono, banho, trocas etc.), por vezes, é praticada de forma um tanto rotineira e

padronizada, sem levar em consideração as necessidades individuais e os ritmos próprios de

cada criança. Bondioli e Gariboldi (2012) argumentam que tais ações, apesar de serem vividas

coletivamente, não podem negligenciar a atenção individualizada à criança, possibilitadora de

comunicação e troca. O horário do sono exemplifica bem a questão: nem todas as crianças têm

sono ao mesmo tempo e algumas dormem mais, outras menos. No entanto, segundo o horário

estabelecido na rotina [constatado em nossas observações], o momento é uniforme, pelo que

concordamos com Bondioli e Gariboldi (2012, p. 23) quando afirmam que “[...] o ritualismo

dos momentos de rotina, deve, portanto, prever certa margem de flexibilidade. Os ritmos de

sono não podem ser iguais para todos [...].” Barbosa (2010, p. 13, grifos nossos) endossa nossas

considerações, comentando que nem sempre existe sincronia nos horários de sono dos

pequenos, razão pela qual “[...] enquanto alguns dormem, outros ficam acordados,

possibilitando intervenções pontuais de seus educadores.”

Por outro lado, a atenção individualizada à criança nas rotinas de cuidado se convertem

em momentos relacionais promotores de interação e aprendizagem. O momento do banho,

incluindo o vestir e arrumar a criança, por exemplo, pode constituir um momento rico de

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comunicação e apropriação das práticas socioculturais de cuidado com o corpo, uso de

vestimentas, calçados e objetos de higiene. Vejamos como isto se deu no evento apresentado a

seguir:

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Evento 31f: Banho da Fernanda

Data: 27/05/2014

Integrantes: Fernanda (1a, 4m) e professora Creuza

___________________________________________________________________________

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

Fonte: Diário de campo, 27 de maio de 2014

É a vez do banho da Fernanda. A pequena está feliz. Sorri, procura alcançar os brinquedos

próximos da banheira, brinca com a água. Creuza conversa com ela durante a atividade:

“vamos lavar a cabeça, Nandinha? Isso, agora esse bumbum...”. O momento é tranquilo e

transcorre em clima de confiança e segurança. Ao secar e vestir Fernanda, Creuza incentiva

e permite sua participação, como se pode observar nas imagens. Há comunicação, troca e

consideração da pequena como sujeito, que é capaz de aprender sobre o cuidado de si,

enquanto é cuidada pelo outro.

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O banho de Fernanda foi parte inerente das rotinas de cuidado na turma do Maternal I.

Poderia ter sido apenas uma ação rotineira de lavar o corpo da criança. Longe disso, podemos

perceber que a dimensão interativa/comunicativa esteve presente o tempo todo. Desencadeada

por motivos pessoais (LÍSINA, 1987), a interação entre a professora e a criança, nesse

momento, propiciou a atividade comunicativa: Creuza fala com Fernanda, participa à pequena

o que está fazendo, lhe dá atenção, busca sua participação. Fernanda, que se encontra no período

pré-verbal do desenvolvimento da linguagem (VYGOTSKI, 2012a), responde com o olhar, o

sorriso, os gestos e participa ativamente. Apesar de ainda não se comunicar por intermédio da

palavra, Fernanda, de posse de sua primeira forma de consciência – a consciência coletiva

proto-nosotros (VYGOTSKI, 2012b) – compreende a linguagem de Creuza e percebe que a

situação lhe oferece segurança. Desses elementos resulta seu envolvimento na atividade

comunicativa direta com a professora e o sentimento de satisfação demonstrado em seu rosto,

conforme se vê nas imagens apresentadas.

Vale destacar os elementos que estiveram presentes no momento do banho, os quais

conferiram qualidade à interação entre Fernanda e a professora: tranquilidade; afetividade;

sensibilidade; postura ética; envolvimento; comunicação e atenção individual. Por tudo isso é

que consideramos que o momento excedeu o cuidado mecânico, em si, configurando um

cuidado ético e responsivo.

Hevesi (2011a) aborda a importância de o adulto prestar atenção ao que se passa com a

criança e em suas atitudes, que muitas vezes passam despercebidas, impedindo que a mesma

participe dos cuidados com seu corpo. Estar atento à criança “[...] facilita o trabalho da

educadora e amplia seu significado porque não se limita a alimentar e trocar a criança de

maneira mecânica” (HEVESI, 2011a, p. 86). O cuidado que excede o âmbito mecânico favorece

um interesse mais abrangente pela criança, incluindo seu comportamento, desenvolvimento e

personalidade.

Em relação à linguagem, Hevesi (2011b) faz referência a alguns estudos que

constataram o retardo na linguagem das crianças que frequentam creches. Conforme a autora,

as razões apontadas para este fato revelam que as profissionais falam pouco com as crianças, e,

quando o fazem, a linguagem se limita a ordens e proibições. Os estudos denunciaram que esse

tipo de comunicação com a criança se baseia em respostas impessoais, sem conteúdo e com

vocabulário pobre. Em contrapartida, ressalta a importância da professora se dirigir

constantemente à criança de forma verbal, de comunicar-se com ela, especialmente nos

momentos dos cuidados e considera que essa forma de comunicação permite aliar as duas

funções básicas da creche: cuidar e educar.

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Siebert (1998) também enfatiza a necessidade de prestar atenção na criança para além

dos cuidados físicos, como alguém que se comunica com o corpo. Embasada em pesquisas

italianas, a autora destaca que “[...] crianças muito pequenas, nutridas e cuidadas com toda a

perfeição, do ponto de vista material, mas sem uma relação humanamente satisfatória, tendem

a uma passividade total, a sofrerem gravemente de doenças e muitas morrem [...] (SIEBERT,

1998, p. 81). Segundo Siebert, os adultos são inclinados a fazer separação entre mente e corpo

ao se relacionarem com as crianças pequenas, mediante as seguintes concepções de corpo:

corpo como invólucro – quando o adulto realiza os cuidados da criança considerando-a como

um objeto, sem lhe falar, olhar e escutar; corpo a ser enchido e esvaziado – o relacionamento

se baseia nas atividades de nutrição e evacuação; corpo móvel – o adulto limita a exploração

dos objetos e ambientes pela criança por intermédio do cuidado exagerado em defesa de sua

segurança; corpo falado – quando o adulto utiliza a palavra para regular o comportamento da

criança, que ainda não fala de si. Contra a postura que fragmenta corpo e psique, a autora advoga

uma relação enriquecedora com a criança, que a considere como sujeito que sente, que possui

ritmo próprio e se expressa, também, de maneira peculiar.

É importante lembrar que a interação com o adulto é a base do desenvolvimento psíquico

da criança (ZAPOROZET; LÍSINA, 1986); e que a comunicação surgida nesse contexto vai

complexificando-se cada vez mais, de modo a ampliar os contatos da criança com o mundo das

pessoas e com o mundo dos objetos, possibilitando a formação gradual da linguagem oral, em

todas as suas etapas e formas: linguagem pré-verbal (primeiro ano); linguagem autônoma (1

ano-1,9); linguagem verbal (1,9-3 anos); linguagem egocêntrica (3-6 anos); linguagem interna

(7 anos em diante)61 (VYGOTSKI, 2001, 2012a, 2012b). Para tanto, é fundamental utilizar uma

linguagem clara e desenvolvida para se comunicar com a criança, desde cedo. Apoiada em

Vigotski, Bissoli (2014) reforça nossa discussão:

Para compreender a importância efetiva do meio e das pessoas como fonte do

desenvolvimento psíquico em geral e, especialmente aqui, do

desenvolvimento da linguagem, cabe recordar o fato de que, desde o princípio,

ainda que a criança balbucie ou mesmo que não articule as palavras, o adulto

deve falar com ela com uma linguagem gramatical e sintaticamente

desenvolvida, com um rico vocabulário, com temas interessantes e

enriquecedores de suas relações com o mundo das pessoas e com o mundo dos

objetos. (BISSOLI, 2014, p. 847).

Concordando com Hevesi (2011b), o banho de Fernanda nos fala a respeito da

indivisibilidade entre o cuidar e o educar na creche. O evento nos mostra claramente que não

61 Idades aproximadas.

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existe separação entre as duas ações quando se trata de bebês e crianças bem pequenas. O

trabalho pedagógico na creche se efetiva justamente por intermédio do exercício conjunto de

cuidar e educar e nisto consiste sua especificidade. Conforme ordenam as DCNEI, não há outro

caminho para a construção de um currículo na e para a creche, senão o da “[...] integralidade,

entendendo o cuidado como algo indissociável ao processo educativo” (BRASIL, 2010, p. 18).

Nesse contexto, trazemos o exemplo do Instituto Lóczy, estabelecido na rua do mesmo

nome, na cidade de Budapeste (Hungria), fundado em 1946 pela médica pediatra Emmi Pikler.

O instituto, que inicialmente atendia crianças órfãs e/ou abandonadas, é hoje uma referência na

educação da criança pequena, sendo difundido na literatura como o “modelo Lóczy”62. A

metodologia63 desenvolvida em Lóczy é pautada no cuidado atencioso à criança durante as

rotinas de cuidado (higiene, alimentação e sono), ações realizadas com carinho e sem pressa,

considerando as necessidades individuais e reações das crianças. Esse método de trabalho inclui

observação atenta às crianças, comunicação com ela em todos os momentos de atendimento

oportunizando sua participação ao invés de imposição, conhecimento de cada criança, trabalho

coletivo por parte das educadoras e documentação sistemática do desenvolvimento da criança

(FALK, 2011).

A organização da vida das crianças em Lóczy segue quatro princípios fundamentais e

indissociáveis: 1) Incentivo à atividade autônoma: a partir da visão de uma criança capaz, os

ambientes e materiais são organizados de forma a possibilitar a movimentação segura da

criança, sem a intervenção direta do adulto, cujo papel é estimular constantemente sua atividade

motora; 2) Relações pessoais baseadas no afeto: um educador de referência cuida da criança

durante o tempo que ela permanecer na instituição, atendendo-a de forma carinhosa e

individualizada nas atividades de atenção pessoal (alimentação, banho, trocas e exames

médicos) e acompanhando sua atividade espontânea; 3) Favorecimento da tomada de

consciência de si e do entorno: as crianças são informadas sobre todas as atividades do

cotidiano, sendo solicitadas a participar ativamente; 4) Manutenção da saúde física: por

62 Sob a direção de Emmi Pikler e sua principal colaboradora Judit Falk, o Instituto Lóczy – atualmente Instituto

Emmi Pikler – desenvolveu investigações a respeito do desenvolvimento das crianças de 0 a 3 anos nos aspectos

físico e psíquico. O modelo foi adotado por vários países como China, Argentina, Peru, Equador, Estados Unidos,

Alemanha, França e Itália. No Brasil, a partir de 2002 o modelo vem sendo divulgado e se encontra em fase inicial

de implantação. Na cidade de Santo André (SP), o “Jardim dos Pequeñitos” utiliza o método Lóczy desde 2010,

sob a direção de Valéria Andreetto, presidente da Organização Mundial para Educação Pré-Escolar (OMEP).

Outras duas iniciativas vêm aplicando os princípios de Emmi Pikler: a instituição denominada “Ninho Jardim de

Infância”, em Minas Gerais, e a escola “Giordano Bruno”, em Florianópolis (AZEVEDO, 2013). Objetivando

promover formação para profissionais da primeira infância interessados nessa abordagem, a “Rede Pikler-Lóczy

Brasil”, criada em 2007, oferece cursos, seminários e congressos. Para conhecer mais:

http://www.redepiklerloczybrasil.com/; http://www.redepiklerloczybrasil.blogspot.com.br/. 63 Também conhecida como abordagem Pikler-Lóczy.

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intermédio da observação diária sobre sua alimentação e seu entorno, cada criança recebe um

regime individualizado (DAVID; APPELL, 2012).

A abordagem Pikler-Lóczy auxilia na compreensão da especificidade do trabalho com

bebês e crianças pequenas na creche e na superação da divisão, ainda existente, entre o cuidar

e o educar; contribui, ainda, para pensar a organização dos espaços e tempos, bem como a

importância das interações entre crianças e adultos na escola da infância. Ao prefaciar a obra

“Educar os três primeiros anos: a experiência de Lóczy”, a professora Suely Mello afirma que

o desafio posto hoje para as instituições que atendem crianças de zero a três anos “[...] é o de

avançar para além do anúncio do cuidar e educar em busca de práticas que concretizem esse

cuidado e educação numa perspectiva humanizadora” (MELLO, 2011, p. 5).

Especialmente para nossa pesquisa, o referencial que aborda a metodologia de Lóczy se

mostra fundamental: evidencia um cuidado que educa; ajuda a perceber a importância das

interações estabelecidas entre adultos e crianças pequenas para o desenvolvimento psíquico;

destaca o valor da comunicação verbal que se dá enquanto a educadora se ocupa da criança e

antecipa o que vai lhe suceder; ressalta o incentivo à autonomia da criança como um princípio

educativo. Nesse sentido, o evento a seguir é bastante elucidativo:

__________________________________________________________________________________

Evento 28v: Comer, comer!

Data: 24/09/2014

Integrantes: Arthur (2a, 5m), Samir (1a,7m), Kauã (1a, 11m), Letícia (1a, 11m),

professoras Creuza, Cristiane e Valmirene

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Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

Fonte: Diário de campo, 24 de setembro de 2014.

Arthur, Samir, Kauã e Letícia almoçam em meio às seguintes falas:

Creuza – Vamos comer, Letícia?

Letícia – comê!

Val – O do Kauã não mistura muito não, que ele não gosta (se dirigindo à Creuza).

Creuza – Já... tem que pegar. Isso! (Ensinando Letícia a segurar a colher).

Creuza – Segura Kauã, assim... (Kauã também é ensinado a segurar a colher).

Creuza – A colher é muito grande, bem que podiam mandar uma colher menorzinha, né?

Viradinha, pra treinar... eles precisam passar por um processo mais doloroso que os outros

(comenta conosco, que estamos filmando).

Creuza – Deixa eu te ajudar, senão tu não come (falando com Letícia, enquanto lhe oferece

uma colherada de comida).

Creuza – Kauã, come com o feijão... só come o macarrão...

Val – Já... (cortando o alimento do prato de Arthur e lhe devolvendo a colher).

Creuza – Come mais, Kauã... olha, a galinha tá gostosa (enquanto o pequeno maneia a

cabeça rejeitando a comida).

Cris – Come, Kauã...

Arlene – O Kauã come pouco, né?

Cris – Ele comia melhor, só que esses dias ele adoeceu... e ainda não tá muito bem.

Kauã – Agu (pedindo água para Creuza).

Cris – Samir, come mais um pouco...

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Durante a refeição, Creuza, Cris e Val conversam, se olham e falam sobre as crianças

enquanto as alimentam. Conhecem suas preferências, procuram respeitá-las e se preocupam em

que se alimentem bem. O incentivo à autonomia dos pequenos se dá por intermédio do ato de

ensiná-las a segurar a colher a fim de comerem sozinhas. Por sua vez, as crianças demonstram

interesse na aprendizagem e satisfação em conseguir segurar a colher. A situação aponta que

“[...] a criança que consegue algo por sua própria iniciativa e por seus próprios meios adquire

uma classe de conhecimentos superior àquela que recebe a solução pronta” (FALK, 2011, p.

27). Bondioli e Gariboldi (2012, p. 22) fazem importante consideração a esse respeito: “[...] o

alcance da autonomia (no comer, na higiene) não é um valor em si, mas um êxito de um

processo que se pode dizer obtido quando é acompanhado do prazer de fazer por si, e é para ele

que deve tender a organização e a condução da atividade de rotina.” Trata-se de considerar a

criança como sujeito que aprende não de forma passiva, mas por intermédio de sua própria

atividade, tal como assevera Mello (2014, p. 52):

É importante enfatizar que o desenvolvimento da inteligência e da

personalidade, seja do bebê, seja da criança maior, sempre acontece por meio

da atividade da criança: não enquanto ela espera, nem enquanto observa a

educadora ou educador, ou mesmo as outras crianças fazendo coisas, nem

apenas ouvindo as explicações dos adultos, ou recebendo o banho, sendo

trocada passivamente ou recebendo a alimentação. A criança aprende quando

é sujeito da atividade que a envolve e, por isso, o desafio que se apresenta ao

trabalho da educadora e do educador é organizar situações e ambientes em que

a criança possa, em tempo integral, e desde pequenininha, ser sujeito de

atividades que provoquem e possibilitem seu desenvolvimento.

A interação comunicativa surgida no momento da refeição foi bastante rica e propiciou,

por parte das crianças, o uso, ainda que tateante, da colher, habilidade necessária para que os

pequenos cheguem a comer de forma autônoma. O êxito e o prazer experimentados por elas se

inserem nos sistemas “criança-objeto social” e “criança-adulto” (ELKONIN, 1987), dois

processos intimamente vinculados, caracterizados, respectivamente, pela apropriação dos

objetos sociais e suas formas de uso, mediada pelo outro social, neste caso, suas professoras.

Nesse contexto, a utilização da colher integra a atividade-guia das crianças, a manipulação dos

objetos – própria da etapa do desenvolvimento psíquico em que se encontravam (ELKONIN,

1987; LEONTIEV, 1988; VYGOTSKI, 2012b). Aqui tem lugar “[...] o domínio dos

procedimentos, socialmente elaborados, de ação com os objetos. [...] impossível sem a

participação dos adultos que os mostram às crianças, os cumprem junto com estas” (ELKONIN,

1987, p. 116, tradução nossa).

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202

Sobre as atividades com objetos Elkonin (2009, p. 216) esclarece: “[...] denominamos

ações com os objetos os modos sociais de utilizá-los que se formaram ao longo da história e

agregados a objetos determinados.” O autor segue explicando que esses procedimentos não se

acham naturalmente colocados nos objetos. Quem domina os modos de uso – seja dos objetos

de uso convencional, como os utensílios, ou os de natureza lúdica, a exemplo dos brinquedos –

são os adultos. Portanto, a criança não pode, sozinha, se apropriar dos modos de utilizá-los.

Faz-se necessário frisar que:

O processo de aprendizagem das ações com os objetos, ou seja, com coisas

que têm certa importância social, estritamente determinada, transcorre na

criança somente na atividade conjunta com os adultos. Estes vão transmitindo

pouco a pouco à criança o processo de execução do ato, que começa a realizar-

se com autonomia. Durante a atividade conjunta produz-se, além de uma

interação ‘prática’ entre o adulto e a criança, um trato pessoal, no qual a

criança busca o estímulo e o elogio do adulto. (ELKONIN, 2009, p. 220).

Sabemos, no entanto, que essa apropriação não ocorre de uma vez por todas: sendo o

desenvolvimento infantil (e a formação das capacidades humanas a ele inerentes) um processo

que se dá em saltos, rupturas e superações, haverá, ainda, algumas tentativas e erros, várias

ocasiões de comida derramada fora do prato (e há que se oportunizar isto), até que Arthur,

Samir, Kauã e Letícia consigam utilizar a colher (mais tarde o garfo e a faca) com a mesma

destreza com que o fazem os adultos.

Cabe destacar, nesse processo, a mediação realizada por intermédio das professoras, o

papel de sua colaboração na ação das crianças. Por meio da colaboração – por parte do adulto

ou de um parceiro mais experiente –, partindo-se do nível de desenvolvimento real da criança

(suas capacidades já formadas), é possível intervir em sua zona de desenvolvimento iminente,

que comporta suas capacidades em vias de maturação (VIGOTSKII, 1988; VYGOTSKI, 2001,

2012b). Podemos aplicar à situação acima descrita a assertiva de Vigotski (2012b, p. 268,

tradução nossa) de que “[...] aquilo que hoje [a criança] pode realizar em colaboração com o

adulto ou sob sua direção, poderá realizá-lo por si mesmo no dia de amanhã.”

O conceito de Zona de Desenvolvimento Iminente se relaciona diretamente ao de

colaboração/mediação, se lembrarmos que o desenvolvimento mental da criança se dá no/pelo

meio social, em íntima relação com o Outro. É o meio social que fornece à criança as formas

de comportamento humano, a forma ideal, nos dizeres de Vigotski, além de todos os

instrumentos da cultura material e imaterial. Sabemos que a apropriação de tudo isso pela

criança, no entanto, não se fará espontaneamente, antes, será resultado da ação colaborativa,

entendida como “[...] a origem imediata do desenvolvimento das propriedades individuais,

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203

internas, da personalidade da criança [...]” (VYGOTSKI, 2012b, p. 270, tradução nossa). Dessa

forma, os processos em vias de maturação intelectual se transformam em capacidades

plenamente ativas. Dito em outras palavras, mediante a colaboração, capacidades ainda

adormecidas são trazidas à vida, expressão utilizada por Prestes (2010). Como já afirmamos,

isto ocorre tanto por intervenção do adulto, como também entre pares, como nas imagens

abaixo, onde Kauã (1a, 10m) ajuda Isadora (1a, 9m) a calçar sua sandália.

Fotografias 30 e 31 - Kauã ajuda Isadora a calçar sua sandália

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

O ensino incide sobre a zona de desenvolvimento iminente, sobre os momentos

favoráveis para a criança aprender certas habilidades. Vigotski (2012b) indica que há períodos

propícios para cada tipo de aprendizagem, denominados prazos ótimos, quando o ensino de

habilidades, conhecimentos e atitudes é mais proveitoso, significando que em determinada

idade algumas funções necessárias para aquelas aprendizagens se encontram prontas.

Entretanto, isto não equivale a esperar pelo amadurecimento de tais funções para, somente

depois, iniciar o ensino. O ensino tardio é tão prejudicial quanto o precoce; há um limite inferior

de possibilidades de aprendizagem em cada idade, mas também existe um limite superior, pelo

que Vigotski (2012b, p. 270-271, tradução nossa) argumenta:

Como podemos explicar o fato de que uma criança de três anos dotada de um

maior grau de maturidade, de memória, compreensão, motricidade e outras

propriedades, que são as premissas indispensáveis para a aprendizagem da

linguagem, a assimile com maior dificuldade e menos proveito que uma

criança de um ano e meio com um grau indubitavelmente menor de

maturidade de ditas premissas? A causa disso, pelo visto, consiste em que o

ensino se apoia nem tanto nas funções e propriedades já maduras da criança

como naquelas que estão amadurecendo. O período de maturação das funções

correspondentes é o mais propício ou ótimo para o tipo adequado de

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204

aprendizagem. E se compreende se tomarmos em conta o fato de que a criança

vai se desenvolvendo ao longo do próprio processo de aprendizagem, e não

termina um determinado ciclo de desenvolvimento.

Certamente, nosso autor de referência não está afirmando que uma criança de um ano e

meio se expresse melhor por meio da palavra que uma de três anos. Seu pensamento é o de que

uma criança menor, por se encontrar em período de aquisição da linguagem oral, no prazo ótimo

de assimilação da linguagem verbal, desenvolve esta capacidade mais facilmente que uma

criança que, porventura, seja privada dessa possibilidade, e venha a desenvolvê-la somente mais

tarde. O que podemos extrair de suas palavras é que, quando determinada função ou capacidade

da criança encontra-se em vias de maturação ou desenvolvimento, este é o melhor momento de

trazê-las à vida. Vigotski deixa claro, portanto, que o ensino move o desenvolvimento, uma vez

que não ensinamos para a criança o que ela já saber fazer, mas sim aquilo que não sabe, mas

poderá fazer se for ensinada. Neste sentido, as palavras de Mello (1999, p. 23) são apropriadas

e complementam nossas considerações:

[...] fica claro que o papel da instituição de atendimento infantil é dirigir o

trabalho educativo para estágios de desenvolvimento ainda não alcançados

pela criança. Ou seja, o trabalho educativo deve ser um motor para novos

conhecimentos e novas conquistas psíquicas, a partir do nível real de

desenvolvimento da criança: de seu desenvolvimento consolidado, daquilo

que ela já sabe. Essa discussão enfatiza não só a importância da interferência

intencional do adulto, mas também do trabalho em grupos de crianças de

diferentes idades e níveis de desenvolvimento, onde quem sabe ensina quem

não sabe. O educador deve, portanto, intervir, provocando avanços que de

forma espontânea não ocorreriam.

Como esse princípio se relaciona com a aquisição da linguagem? Como favorecer, na

creche, o desabrochar da linguagem oral? De que maneira se pode mediar e interpretar os

primeiros intentos de comunicação da criança pequenininha, ainda no estágio da comunicação

emocional, propiciando o avanço de suas capacidades linguísticas, rumo à comunicação verbal?

Mediante a perspectiva histórico-cultural que orienta nosso estudo, acreditamos que esse

processo se realiza no interior da atividade-guia da criança, aquela que mobiliza seu

desenvolvimento em cada etapa e momento de vida. Na etapa da primeira infância, quando dois

momentos marcam a vida da criança (comunicação emocional direta e manipulação dos

objetos),

A iniciativa antecipadora dos adultos de falar com ela antes que ela seja capaz

de responder ou entender e de aproximar objetos para ela ver e pegar, cria nela

novas necessidades: a necessidade de comunicação e de manipulação dos

objetos. Nessa atividade com objetos, a criança acumula experiências que

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205

formam as premissas para o desenvolvimento do pensamento. Inicialmente

esse desenvolvimento do pensamento acontece através das imagens daquilo

que a criança está fazendo no momento. Mais tarde, ela pensa com as imagens

que vão ficando em sua memória e, só mais tarde, o pensamento se torna

verbal. Na atividade com objetos, também acontece o desenvolvimento da

memória, da atenção e da própria linguagem oral – ao categorizar os objetos

que vai conhecendo (os pesados, os leves, os sonoros, os redondos), a criança

vai criando as condições para o desenvolvimento da fala. (MELLO, 2002, p.

12).

Relatamos, no segundo capítulo, a fala de algumas professoras da creche em relação à

demanda das rotinas de cuidado e a falta de tempo para a realização de atividades pedagógicas,

bem como nossa compreensão acerca da questão. Enfatizamos o quanto a fala é reveladora da

concepção fragmentada das ações de cuidado e educação que envolvem o trabalho na creche.

Trazemos novamente uma questão surgida nesse contexto: que possibilidades existem na

creche, para além dos cuidados? Na observação do cotidiano do Maternal I, com frequência nos

indagávamos: como inserir, nas práticas inseparáveis de cuidado e educação, vivências

promotoras da experiência da criança com as linguagens, incluindo a linguagem oral?

Em meio às atividades que envolviam as rotinas de cuidado com o corpo, as

brincadeiras, as aprendizagens, os acalantos e deslocamentos, dentre outras, as interações

verbais se davam, fazendo emergir a linguagem oral das crianças, no processo inicial de seu

desenvolvimento. Mediante um processo marcadamente social e cultural, as distintas formas de

comunicação e primeiras manifestações de linguagem oral dos pequenos iam sendo

interpretadas e mediadas pelo Outro. Esse Outro, vale lembrar, é um lugar simbólico, representa

todas as pessoas das relações sociais presentes na vida da criança (PINO, 2005), o que equivale

a dizer que, na creche, os outros que influenciam e colaboram em sua apropriação da linguagem

oral se concretizam na figura das professoras e dos parceiros.

É importante ressaltar que, a despeito de considerarmos que as crianças possuem

capacidade para interagir entre si, engendrando situações promotoras de aprendizagem

conforme já demonstramos por meio de alguns eventos, evidenciamos o protagonismo das

professoras como as pessoas responsáveis por perceber e significar esses momentos (como no

evento “Procurando o au au”), e também por organizar, intencionalmente,

experiências/vivências diversificadas de uso da linguagem oral: as brincadeiras, as

manipulações dos objetos, os passeios, as conversas, as histórias, a música, as situações em que

a criança pode falar com outros adultos na creche ou auxiliar um colega, cumprir pequenas

tarefas. Esses são exemplos de atividades que podem favorecer o potencial linguístico.

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206

Desse modo, a escola da infância se apresenta como espaço de construção de identidade

e vivências coletivas, cuja função é assegurar às crianças “[...] experiências variadas com as

diversas linguagens, reconhecendo que o mundo no qual estão inseridas, por força da própria

cultura, é amplamente marcado por imagens, sons, falas e escritas” (BRASIL, 2009a, p. 15). É

fundamental que tais experiências sejam inseridas no cotidiano da creche de forma planejada e

regular, não esporádica. A seguir, vamos analisar algumas dessas experiências vividas no

cotidiano do Maternal I, eventos mais diretamente relacionados à linguagem oral, conforme

sistematização apresentada no quadro das categorias de base empírica (p. 102). Nosso intuito é

evidenciar a emergência e a apropriação da linguagem oral na e pelas crianças, no processo de

interação entre si e com os adultos.

4.2 As interações comunicativas criança-criança e adulto-criança

Já temos conhecimento de que, segundo a lei geral do desenvolvimento das funções

psíquicas superiores da criança, todas as funções se desenvolvem, num primeiro momento,

coletivamente, como categoria interpsíquica, vindo, mais tarde, a se desenvolver

individualmente, como função intrapsíquica (VIGOTSKII, 1988). Vigotski (1988) exemplifica

a referida lei com o desenvolvimento da linguagem, afirmando que esta surge, primeiramente,

como forma de comunicação entre a criança e as pessoas do seu entorno e, somente depois,

quando se converte em linguagem interna, passa a ser uma função mental do sujeito, auxiliar

do pensamento.

O quadro que segue – cujo conteúdo é a síntese do desenvolvimento da linguagem oral

– ilustra claramente a lei geral do desenvolvimento formulada por Vigotski, e representa o

fundamento de nossa investigação. Foi organizado com vistas a subsidiar a análise e a

compreensão dos eventos interativos por nós observados na turma do Maternal I. Além de

auxiliar nas análises, nossa intenção é fornecer ao leitor uma visão mais compreensível e

resumida do processo de formação da linguagem oral, abordado antes de maneira abrangente.

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207

Quadro 8 - Desenvolvimento da linguagem oral, de acordo com Vigotski (2001, 2012a, 2012b).

Idade

aproximada

Formas de linguagem

Principais características

Lin

gu

agem

So

cial

(ex

tern

a)

Pri

mei

ra E

tap

a

0-1 ano Linguagem pré-verbal

Constitui as primeiras formas de

comunicação emocional do bebê

(grito, balbucio, vocalizações e

primeiras palavras), sem

vinculação inicial com o

pensamento. Embora seja uma

atividade puramente externa, é a

base para a assimilação da

linguagem desenvolvida.

Etapa

transitória

1 ano-1,9 Linguagem autônoma Etapa transitória entre a linguagem

pré-verbal e a verbal, em que a

criança utiliza uma forma peculiar

de linguagem para se comunicar:

diferente da do adulto quanto ao

som e ao significado; condensada;

e agramática.

Seg

un

da E

tap

a

1,9-3 anos Linguagem verbal Surge da união do pensamento

com a linguagem, momento em

que a criança passa a denominar os

objetos do seu entorno por

iniciativa própria. A linguagem se

intelectualiza e o pensamento se

verbaliza, possibilitando à criança

a ampliação ativa do vocabulário e

o domínio de um número maior de

palavras.

Lin

gu

agem

egocê

ntr

ica

Etapa

transitória

3-6 anos Linguagem

egocêntrica64

Etapa de transição do externo para

o interno, surge da internalização

de formas sociais de

comportamento, possibilitando

que a criança comece a regular

suas próprias ações com o uso da

linguagem. Gradativamente, se

converte em linguagem interna.

Lin

gu

ag

em

Ind

ivid

ua

l (i

nte

rna

)

Ter

ceir

a E

tap

a

7 anos em

diante

Linguagem interna65

Constitui uma linguagem

abreviada, para si mesmo,

representando o processo de

transformação da palavra em

pensamento. Caracteriza-se por

possuir sintaxe e estrutura

semântica próprias e por ser

reduzida foneticamente.

Fonte: Elaboração da autora.

64 Conforme já mencionamos, a linguagem egocêntrica surge, de forma elementar, por volta dos três anos de idade,

mas se firma apenas na infância pré-escolar, entre três e seis anos de idade. 65 Para compor o quadro, fizemos menção à linguagem interna, embora não a tenhamos aprofundado no decorrer

do trabalho, em razão de distanciar-se de nossos objetivos. O tema constitui importante fonte para outros estudos.

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208

Antes de iniciar o processo de análise dos eventos, faz-se necessário localizar, mais uma

vez, as crianças do Maternal I em relação à etapa do desenvolvimento da linguagem em que se

encontravam, conforme o quadro acima. Com idade entre 1 e 2 anos, podemos dizer que se

achavam na etapa transitória entre a etapa pré-verbal e a verbal: a linguagem autônoma. No

entanto, é preciso considerar a dinâmica do desenvolvimento. Com Vigotski (2012a),

compreendemos que não é possível encerrar a idade cronológica em caixinhas etiquetadas,

equivalentes a certas etapas ou períodos de desenvolvimento. Ao contrário, é preciso conceber

o desenvolvimento como um processo dialético, em que “[...] as formas inferiores não se

aniquilam, senão que se incluem na superior e continuam existindo nela como instância

subordinada” (VYGOTSKI, 2012a, p. 129, tradução nossa). Da mesma forma que o surgimento

de uma nova etapa não extingue a anterior, toda etapa vindoura já existe dentro da anterior

como gérmen. Nesse contexto, depreendemos que a linguagem autônoma – principal nova

formação da idade crítica de transição do primeiro para o segundo ano de vida – surge de forma

elementar já na etapa da linguagem pré-verbal, carregando prenúncios da etapa verbal. Em

poucas palavras, no curso do processo de apropriação da fala pela criança, é pouco provável

que se encontre uma forma de linguagem que não guarde alguma semelhança com a

antecedente, e que seja completamente diferente daquela que a substitui.

Assim, distintas etapas do desenvolvimento da linguagem e suas formas

correspondentes se mesclam e se sucedem na apropriação da fala pela criança: a linguagem pré-

verbal como a forma inicial, a linguagem autônoma como a mais frequente do final do primeiro

até quase o início do segundo ano, mas ainda carregando traços da pré-verbal, e, aos poucos, se

convertendo em linguagem verbal, que, por sua vez, traz indícios da linguagem egocêntrica,

que logo será interna. Trata-se de um movimento contínuo, não linear, nem tampouco uniforme.

Vejamos o que nos dizem as autoras italianas Albanese e Antoniotti (1998, p. 203):

[...] existe uma continuidade entre linguagem gestual pré-linguística e o início

da linguagem verbal, ambas complementando e interagindo, mesmo quando a

linguagem verbal alcança seu pleno desenvolvimento. De fato, quando a

criança começa a penetrar o seu mundo de relações com a verbalização,

transforma a sua comunicação não-verbal em uma espécie de reforço para a

verdadeira linguagem.

Esse dinâmico processo cujo início estamos retratando, resulta no domínio pleno da

linguagem pela criança, e, consequentemente, mais tarde, culmina na construção de conceitos.

Paralelamente, a linguagem desenvolvida permite o uso da palavra como reflexo da

consciência, uma vez que “[...] a consciência se reflete na palavra do mesmo modo que o sol

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em uma pequena gota de água” (VYGOTSKI, 2001, p. 346, tradução nossa). Ao apresentar o

quadro que sintetiza esse processo, almejamos que o mesmo seja visto didaticamente não da

forma estática como se mostra, mas em movimento, como tentamos explicar. Passemos aos

eventos, divididos em duas categorias: interações comunicativas diretas e interações

comunicativas mediadas por objetos.

4.2.1 As interações comunicativas diretas

Os eventos aqui agrupados foram provocados pela própria necessidade das situações de

comunicação, não sendo motivados por objetos. Traduzem cenas do cotidiano da turma,

envolvendo brincadeira sem o uso de objetos, atividade de movimento e atenção dispensada à

criança. Trata-se da atividade comunicativa cujos motivos são pessoais (LÍSINA, 1987),

engendrada pela interação das crianças com os adultos e entre elas mesmas. O fundamento

desse tipo de comunicação é a atividade-guia da criança no primeiro ano de vida – a

comunicação emocional direta (ELKONIN, 1987; LEONTIEV, 1988; VIGOTSKI, 2012b).

Na sequência, o primeiro evento, uma situação de interação adulto-criança e criança-

criança.

__________________________________________________________________________________

Evento 4f: Eu tenho um cachorrinho

Data: 16/10/2014

Integrantes: Samir (1a, 8m), Kauã (1a, 11m), Letícia (1a, 11m), Isadora (1a, 11m) e

professora Val

___________________________________________________________________________

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Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

Fonte: Diário de campo, 16 de outubro de 2014.

O evento revela a beleza e o encanto de ser professora de crianças pequeninhas na

creche; evidencia o valor das atividades simples que se realiza com os pequenos; nos mostra a

A professora Val canta com Samir, Kauã, Letícia e Isadora:

“Eu tenho um cachorrinho chamado Loló

Eu tenho um cachorrinho chamado Loló

Ele rola, rola, rola, rola, rola, pelo chão

Ele rola, rola, rola, rola, rola, pelo chão

Mas ele é mansinho e muito brincalhão

Ele bate, bate, bate, sua patinha pelo chão

Ele bate, bate, bate, sua patinha pelo chão.”

Enquanto canta, Val realiza os movimentos que acompanham a cantiga, e os pequenos

observam atentamente, imitando: girar um braço ao redor do outro à frente do corpo e bater

os pés no chão. A atividade, marcada pelo envolvimento das crianças, é acompanhada por

muita alegria e entusiasmo. Ao imitar os movimentos do cachorrinho Loló feitos pela

professora, as crianças vibram de contentamento. Letícia não se satisfaz em ficar sentada

como os outros, e, de pé, sapateia e dá risadas. Samir também sai do seu lugar e rola pelo

chão. Quando Val para de cantar, Kauã e Letícia pedem bis, exclamando ‘novo!’ (Isadora

e Samir falam ainda poucas palavras nesse momento), e a brincadeira se repete por várias

vezes.

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importância da mediação do adulto na experiência lúdica da criança; demonstra que a

capacidade de falar e imitar com sentido surge em contexto de comunicação e interação. Nesse

conjunto de elementos, destacamos a qualidade da interação que se deu entre as crianças e a

professora durante a atividade, fato que favoreceu o envolvimento lúdico das crianças.

A brincadeira vivida coletivamente constitui importante fonte de crescimento social,

cognitivo e afetivo da criança. Especialmente na pequena infância, é influenciada pelo ambiente

e pelas pessoas com quem a criança convive, e nisto reside a necessidade da organização

intencional de situações que propiciem “[...] comportamentos e interações lúdicas, [entendidos

como] ações e trocas iniciadas, realizadas e concluídas pelo puro prazer que elas causam a quem

delas participa e para quem nelas está envolvido” (BONDIOLI; GARIBOLDI, 2012, p. 24). Na

observação da turma, foram raros os momentos em que observamos as crianças interagindo

entre si autonomamente, sem organização e participação por parte do adulto; se o faziam, não

tinha o mesmo caráter, e o conteúdo da interação não era tão profícuo. Não estamos, todavia,

negando a capacidade que as crianças pequeninhas têm de produzir relações entre si, de buscar

seus pares e com eles se comunicar com linguagem própria, de trocar olhares, gestos,

sentimentos. Apresentamos alguns eventos onde foi possível visualizar os pequenos em

situações de trocas entre eles mesmos, o que comprova que são maximamente sociais. Vigotski

(2012b) nos mostra que a criança é sociável desde a mais tenra idade; no primeiro ano de vida,

o bebê é possuidor de uma sociabilidade peculiar, por meio da qual se relaciona com o ambiente

próximo e realiza as primeiras brincadeiras com o adulto. No entanto, embora sejam sociáveis

e gostem de brincar juntas, elas precisam ser motivadas para isso, razão por que sublinhamos o

papel da professora na organização de experiências lúdicas significativas e envolventes.

As brincadeiras contribuem para o processo de humanização da criança, para o

desenvolvimento de suas capacidades humanas, especialmente o movimento, a afetividade e a

ludicidade; por seu intermédio, as crianças desenvolvem a faculdade de sentir e tornam-se

sujeitos das interações. Vale lembrar, no entanto, que segundo a Teoria Histórico-Cultural o

brincar é uma capacidade que deve ser aprendida, como todas as demais, fato que coloca o

adulto como o organizador e motivador das brincadeiras infantis. Isto significa que as atividades

lúdicas devem ocupar um lugar privilegiado nas práticas educativas da creche: longe de serem

entendidas como atividades a se realizar apenas quando não há o que fazer, devem ser

intencionalmente planejadas como parte do cotidiano de meninos e meninas que frequentam a

creche (BISSOLI, 2006). Destacando o valor das atividades lúdicas para o desenvolvimento da

criança, Bissoli (2006, p. 21) comenta que estas

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212

[...] são uma forma privilegiada de interação com o outro, contribuindo para a

socialização da criança. E socializar-se significa vivenciar experiências que se

tornam o substrato das capacidades humanas de cada indivíduo. O brincar

favorece a apropriação da cultura, estando aí incluídos os valores, o

movimento, a linguagem, as formas de relacionar objetos e situações, a

atenção, a memória, a imaginação, o domínio do próprio comportamento.

Nesse contexto, vale lembrar que a brincadeira é, de acordo com as DCNEI, um dos

eixos que devem conduzir as propostas curriculares da educação infantil. Desse modo, as

brincadeiras cantadas – que incluem diferentes, mas relacionadas linguagens –, possibilitam

que as crianças se expressem por intermédio do movimento, brinquem com as palavras e imitem

personagens (BRASIL, 2009a). Sem o conhecimento da importância desse tipo de atividade

para o desenvolvimento da criança, corre-se o risco de desconsiderá-la, julgá-la simples e/ou

desnecessária. Na ótica adulta talvez o seja. No entanto, tudo aquilo que para nós é simples,

para a criança pequena é uma fonte de aprendizagem: escutar e aprender uma canção, imitar

sons, repetir movimentos e gestos, compreender o sentido de uma cantiga.

Apesar do pouco domínio da linguagem verbal, por meio da linguagem compreensiva

que antecede à fala, as crianças entendem a letra da música de modo a imitar os movimentos.

A consciência semântica, que capta a situação (VYGOTSKI, 2012b), embora embrionária nesta

etapa de desenvolvimento, permite que os pequenos signifiquem o que está sendo expresso,

atribuindo sentido à brincadeira. Por intermédio dessa percepção generalizada, se alegram,

sorriem, imitam, e pedem para brincar outra vez, exclamando uma frase de palavra única –

“novo!”.

Já sabemos que uma palavra pronunciada pela criança no princípio do desenvolvimento

linguístico – quando domina o lado sonoro e verbal da linguagem – não representa apenas uma

simples palavra, mas uma frase inteira, em alguns casos, um texto. No evento acima,

poderíamos traduzir a palavra “novo” por orações que expressaram o desejo das crianças de

que a professora cantasse a música outra vez, como algo do tipo “cante de novo”, “gostamos da

brincadeira e queremos continuar brincando”. Neste caso, não é a palavra “novo” que deve ser

tomada isoladamente, antes, a tradução por nós inferida equivale à situação em seu conjunto.

Devemos recordar que a assimilação das facetas verbal e significativa da linguagem

percorrem caminhos opostos. O domínio da faceta verbal da linguagem (fonética) ocorre das

partes para o todo: a criança pronuncia sons, palavras, frases simples e complexas.

Contrariamente, o domínio semântico se encaminha do todo para as partes. Por esta razão,

Vigotski (2012a, p. 127, tradução nossa) afirma que “[...] a forma externa do desenvolvimento

da linguagem, tal como se apresenta em seu aspecto fenotípico, é enganosa. [...] As

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213

investigações têm demonstrado sem nenhuma dúvida que a forma primária ou inicial da

linguagem infantil é uma estrutura afetiva complexa e não diferenciada.”

Vejamos um exemplo em que a linguagem começa a superar esta fase inicial de

comunicação por meio de uma só palavra. No evento de interação adulto-criança que segue,

Isadora (1a, 10m) tenta pronunciar um conjunto de palavras para realizar um pedido.

__________________________________________________________________________________

Evento 17v: Isadora faz um pedido

Data: 08/10/2014

Integrantes: Isadora (1a, 10m) e a pesquisadora

___________________________________________________________________________

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

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Fonte: Diário de campo, 08 de outubro de 2014.

A fala de Isadora demonstra o progressivo avanço da etapa pré-verbal à verbal no

desenvolvimento da linguagem. A fim de conseguir o que deseja, a pequena se comunica por

intermédio de sua elementar linguagem verbal, utilizando várias “palavras”, complementadas

pelo gesto indicativo (VYGOTSKI, 2012a). Porque uma vez – quando Isadora era bebê –, seu

gesto em si foi interpretado por sua mãe ou outra pessoa, transformando-se em gesto para

outros, nesta situação ela foi capaz de usar o gesto de maneira significativa, para si, como

auxílio à sua fala, para conseguir o que desejava. Em uma palavra: por intermédio da mediação

do Outro, a situação foi internalizada por Isadora (PINO, 2005).

Isto nos mostra que a linguagem da criança se desenvolve no processo de interação com

o Outro; que as pessoas com quem a criança convive constituem sua referência; que à medida

que cresce, a criança sente necessidade de comunicar-se com os demais, e complexifica sua

fala, utilizando todos os recursos comunicativos de que dispõe; que a atividade comunicativa

cujo conteúdo e motivo é a necessidade da própria criança, impulsiona favoravelmente sua fala;

que a consciência vai acompanhando o desenvolvimento da linguagem, permitindo perceber

As crianças foram levadas para um banho de piscina na área externa e, de volta para a sala,

estavam sendo trocadas e arrumadas no fraldário. Isadora, que aguardava sua vez, assiste

um DVD na sala de repouso. Quando o DVD chega ao final, ela vai até mim reclamando

que a música acabou e, apontando para a TV, pede que eu ligue o aparelho novamente. A

pequena me olha, vocaliza várias palavras que eu não consigo compreender e gesticula,

apontando em direção à TV. Chegando mais perto da TV e gesticulando insistentemente,

Isadora fala algo como “ê, ei, é, a, eei, ó, a”. Segue-se um diálogo entre ela e eu:

- Oi Isa, o que você quer?

- Asitô.

- Assistir de novo?

- É.

- Ah tá, entendi.

Religo o DVD e pergunto:

- Quem é essa?

- Aa, din.

- Isso mesmo, a Galinha Pintadinha!

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que as pessoas atribuem significado àquilo que se deseja comunicar. Para contribuir com a

linguagem relacional da criança nesse momento, os adultos precisam criar nela a necessidade

de comunicação. É importante estimulá-la a falar, mesmo que à sua maneira, e, à medida que

cresce, expressar suas ideias com palavras. “Se os adultos adivinham cada desejo da criança,

nesta não aparece estímulo algum para desenvolver a fala” (MUJINA, 1981, p. 62, tradução

nossa).

Com Vigotski (2012a) aprendemos que o gesto indicativo exerce um papel fundamental

no desenvolvimento da linguagem da criança, representando, em certa medida, a base de todas

as formas superiores de comportamento: exemplifica o desenvolvimento cultural da criança (do

ser humano), a transformação de cada função social em individual, “[...] porque todo o interno

nas formas superiores era forçosamente externo, quer dizer, era para os demais o que é agora

para si” (VYGOTSKI, 2012a, p. 149, tradução nossa). Uma vez que as interações são o

fundamento do desenvolvimento das funções superiores, é preciso destacar o papel da

mediação. Quando Isadora desejou que o DVD fosse religado, procurou o adulto mais próximo

e pôs-se a expressar o que queria. Assim, para que seu pedido fosse atendido, sua linguagem,

conjugada ao gesto, precisaram ser interpretados, exigiram nossa mediação, o que significou

sua ação (PINO, 2005), tornando-a consciente, para si. Trata-se dos processos de significação

e mediação semiótica, conceitos tratados por Vigotski e discutidos por Pino (2005), cuja

concepção adotamos aqui.

Os signos, sinais inventados pelo homem – cuja função inicial é a comunicação entre as

pessoas –, quando padronizados e generalizados, adquirem a função de significar algo.

Utilizando o mesmo exemplo de Vigotski, Pino (2005, p. 146, grifos do autor) escreve que “[...]

o movimento do bebê funciona como indutor no Outro (como a mãe) de um processo de

significação que lhe permite descobrir a relação que pode existir entre o sinal (movimento de

apontar) e o objeto sinalizado. Ao atribuir-lhe uma significação, o Outro transforma o sinal em

signo.” Ou seja, um signo só se torna efetivamente um signo na medida em que é significado.

O processo de significar, por sua vez, é descrito como “[...] encontrar para coisa o signo que a

representa para si e para o Outro. É passar do plano do perceptível ao do enunciável e do

inteligível” (idem, p. 147), explicação que ultrapassa o significado etimológico, afirma o autor.

Assim, a função dos signos é comunicar e representar. No contexto de nossas discussões,

devemos lembrar que falar de signo em Vigotski é o mesmo que falar da palavra, portanto,

signo linguístico, ideia assumida por Mukhina (1995, p. 140), quando afirma que “[...] o sistema

de signos mais importante e universal é a linguagem. Os raciocínios verbais permitem ao

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homem resolver diversos problemas sem necessidade de recorrer a ações com objetos reais ou

suas imagens.” A autora nos auxilia na compreensão dos signos. Vejamos:

A utilização dos signos e de sistemas de signo é uma das particularidades mais

características do homem. A sociedade criou enormes sistemas de signos,

como a linguagem, os símbolos matemáticos ou os vários ramos da arte, que

refletem o mundo em quadros, em melodias musicais e em movimentos de

dança. Qualquer tipo de signo serve de comunicação entre humanos,

substituindo certos objetos, fenômenos, relações ou propriedades reais por

outros simbólicos. (MUKHINA, 1995, p. 139-140).

Os signos ou sistemas de signos remetem aos processos de significação, uma vez que

são dinâmicos, não existem como sistemas prontos desde o início e foram criados para

significar. Processos de significação equivalem aos “[...] modos de produção, circulação e

(re)elaboração de significação [...] expressão da capacidade criadora do homem” (PINO, 2005,

p. 149). Aplicando o conceito ao desenvolvimento cultural da criança, tais processos

representam a influência da cultura em sua constituição, incluindo os sentidos por ela

atribuídos. Já sabemos como ocorre o desenvolvimento cultural da criança (abordado no

terceiro capítulo), cabendo aqui compreendê-lo em articulação aos conceitos de significação e

mediação semiótica enfocados por Pino (2005).

O desenvolvimento psíquico da criança é marcadamente cultural e, uma vez que a

cultura se materializa nas obras humanas caracterizadas pela significação, seu desenvolvimento

cultural equivale ao processo em que ela vai se apropriar das significações que o homem atribui

às coisas. Entretanto, Pino enfatiza que essa apropriação não é dada, não ocorre naturalmente;

antes, depende das condições concretas de existência da criança, de seu acesso aos bens

materiais e imateriais, científicos e tecnológicos, portadores de significações. Consideramos

que a privação a tais bens, provocados por desigualdades que produzem diferentes infâncias e

crianças, constitui fator limitador daquilo de que podem se apropriar as crianças no curso de

seu desenvolvimento cultural, e, em última análise, de suas significações.

Em que pese a realidade sócio histórica de cada criança, seu desenvolvimento cultural

requer a transformação de suas funções biológicas, a internalização das características culturais

da humanidade, o que será feito pela mediação do Outro. Por intermédio do processo de

apropriação ou internalização, a criança vai passar do plano sensorial ao da representação

simbólica, reproduzindo os símbolos inventados pelo homem por meio da atividade simbólica,

cuja gênese é o entorno social, como reitera Pino (2005, p. 159, grifos do autor):

Sua origem deve ser procurada no campo social, campo das relações sociais

em que os sistemas sígnicos inventados pelo homem nos revelam a verdadeira

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significação que as coisas têm para eles e que, portanto, terão para a criança;

pois é com os homens e por intermédio deles que ela descobrirá a significação

e o valor das coisas que fazem parte do mundo criado por eles. Isso coloca a

questão da “mediação semiótica” [...], caminho de passagem da criança do

estado de ser biológico para o de ser cultural.

Mediante a perspectiva de Pino, podemos definir o termo mediação semiótica como os

elementos histórica e culturalmente criados para favorecer a comunicação entre as pessoas –

signos – que contribuem para a apropriação que cada indivíduo faz da cultura; por seu

intermédio, a criança poderá desenvolver-se culturalmente, transpondo as limitações de suas

funções biológicas. Esse processo opera na criança por meio de dois modos complementares:

1) internalização daquilo que é próprio do ser humano – a mediação semiótica cumpre o papel

de conversor, em que “[...] os signos permitem transformar o que é alheio à criança – os modos

de falar, de agir, de pensar etc. dos outros – em algo que lhe seja próprio, sem deixar de ser

próprio dos outros” (Idem, p. 160); 2) capacitação da criança para se relacionar com o meio

social e com as pessoas utilizando os meios simbólicos – neste caso, “a ‘mediação semiótica’

permite à criança apropriar-se do saber humano que a capacita a interpretar o mundo e lhe dá

condições para comunicar-se com os outros” (ibid.).

Podemos agora voltar ao evento de Isadora e aplicar os conceitos acima descritos, uma

vez que o gesto indicador foi utilizado por Vigotski como exemplo do desenvolvimento

cultural. De acordo com Pino (2005), o movimento de apontar se encaminha do plano biológico

para o plano cultural, por intermédio da mediação do Outro, que significa a ação da criança,

“[...] indica-lhe, mesmo que ela ainda não se dê conta disso, que está sendo incorporada no

repertório das funções humanas, as quais conferem às ações finalidades e intencionalidades que

podem ser interpretadas pelos outros” (ibid., p. 161-162). Para o autor, isto se dá mediante três

momentos: 1) Ato natural, em si – o gesto é um dado da natureza, realizado por meio de funções

biológicas da criança, que o faz voluntariamente, mas não sabe direito o que está fazendo. Seu

gesto representa um sinal que carece de interpretação, de significação. No caso de Isadora, esse

momento foi vivido bem antes de sua entrada na creche; 2) Interpretação do dado em si – o

gesto da criança é interpretado pelo Outro, torna-se para o outro que, ao fazer isso, lhe confere

significação. Para a criança, o gesto continua no plano biológico, mas o adulto o interpreta no

nível simbólico; 3) Internalização da situação – a criança internaliza a situação por meio da

intervenção do Outro, que significa seu gesto. Esse momento, que provoca uma mudança no

ato natural, ou seja, na própria criança, pode exigir a vivência em outros contextos e demorar

um longo tempo. Foi o que aconteceu com Isadora: seu gesto, inicialmente biológico, em si,

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tornou-se agora um ato simbólico, para si. Uma vez significado o movimento de Isadora, ela

poderá, cada vez mais, transpor o gesto em si para um gesto para si.

Essa mudança de realidade possibilita que a criança compreenda melhor, perceba

melhor, fale melhor, se comunique de forma mais clara, enfim, que ela se relacione de forma

significativa com as pessoas, com o meio e consigo mesma. Dito de outra forma, a transposição

do plano biológico para o plano cultural modifica todo o psiquismo da criança, que se amplia e

incorpora novas funções. Assim, o movimento de apontar atesta que

[..] é possível acompanhar, passo a passo, na criança esta mudança em si, para

outros, para si nas funções da fala. Antes de tudo a palavra deve possuir

sentido (relação com as coisas) em si (ligação objetiva, e se ela não existe –

não há nada); depois a mãe [ou outra pessoa] a usa funcionalmente como

palavra; depois – a criança. (VIGOTSKI, 2000, p. 25).

Compreendemos que, embora o gesto indicativo seja uma situação que envolve os três

momentos conforme demonstrado por Vigotski e interpretado por Pino, no desenvolvimento

cultural da criança esse processo se dá por etapas, vindo a completar-se apenas no terceiro

momento, quando o ato deixa de ser biológico, transformando-se em cultural, simbólico. Os

dois primeiros momentos são vividos quando a criança é ainda bebê, com Outros da família, de

forma mais direta. O terceiro momento “[...] pode exigir a vivência de outras situações

semelhantes” e também “[...] pode levar mais tempo do que se pensa” (PINO, 2005, p. 166).

Queremos, ainda, destacar um aspecto relevante. Pino comenta que palavras e gestos continuam

coexistindo, tanto na linguagem da criança quanto na do adulto. Vimos isso no caso de Isadora:

para conseguir o que desejava, a pequena se fez entender utilizando as duas formas de expressão

– sua linguagem verbal tateante e o gesto.

Cabe destacar que, em relação às palavras enunciadas por Isadora na situação descrita,

ocorre o mesmo que em relação aos gestos. As palavras ditas pela criança, ainda não

convencionalmente, também precisaram ser significadas pelo adulto. E a entabulação de um

diálogo com a criança permitiu a ela perceber, por um lado, que seus esforços comunicativos

surtiram um efeito no comportamento do outro – o que é importante para que a comunicação

tenha sentido para a criança – e, por outro lado, as tentativas de significação feitas por nós para

as “palavras” de Isadora, permitiram que ela percebesse a necessidade de usar

convencionalmente as palavras – o que se nota pelo esforço em emitir sons que nos fizessem

compreender o que ela desejava, próximos àqueles que enunciamos.

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O próximo evento de interação criança-criança demonstra um nível mais elevado de

significação por parte das crianças, embora quase sem o uso de palavras. Por sua vez, a

linguagem do adulto foi usada como regulador da conduta.

__________________________________________________________________________________

Evento 7v: Disputa na dança66

Data: 17/09/2014

Integrantes: Isadora (1a, 9m), Samir (1a, 6m), Kauã (1a, 11m), professoras Val e Creuza

___________________________________________________________________________

66 Registrado pela professora Valmirene – em um dia em que não nos encontrávamos na creche –, a quem oportuna

e carinhosamente agradecemos.

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Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

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Fonte: Diário de campo, 17 de setembro de 2014.

Neste evento, vamos destacar dois aspectos que o configuraram: a interação das crianças

entre si e a mediação da professora Creuza. O evento demonstra que as crianças, embora

ainda não com linguagem convencional, apresentam "palavras" que portam significados

bastante amplos: mesmo com pouca verbalização devido ao domínio rudimentar da linguagem

verbal, a interação foi fecunda de significados.

As ações e reações das crianças no curso da situação revelam sua capacidade de

estabelecer relações afetivas e comunicativas, mesmo antes do domínio da fala. Na primeira

imagem, vemos Isadora aproximar-se de Kauã e comunicar-se expressivamente com o amigo

por intermédio do olhar e do gesto. Sem pronunciar uma única palavra, Isadora comunicou sua

Isadora, Samir e Kauã assistiam DVD e dançavam ao som da música, enquanto a professora

Valmirene filmava a atividade. Isadora resolve dançar com o Kauã. Aproxima-se dele e lhe

estende a mão, convidando-o (primeira imagem). Samir, demonstrando que não se agradou

do fato de ter sido preterido por Isadora, tenta separar os dois, puxando o braço de Kauã.

Valmirene intervém na disputa dizendo “Samir, vem Samir, deixa ela dançar com o Kauã.”

Mas o pequeno não desiste e faz várias tentativas para separar Isadora e Kauã. De novo

Valmirene: “vem Samir, deixa a Isa dançar com o Kauã.” Kauã, falando “dexa”, segura

firme nas mãos de Isadora e tenta afastar Samir, que parece se conformar com a situação ao

ficar olhando os dois dançarem por um tempo. Após alguns minutos, nova investida de

Samir; dessa vez, ao puxar o braço de Kauã, ele o derruba e, em seguida, lhe dá um tapa,

pelo que o colega se põe a chorar. “Cuidado!”, adverte a professora. Quando Kauã consegue

se levantar, recebe outro tapa de Samir (sétima imagem), vindo a chorar novamente. Nesse

momento, a professora Creuza – que reunia as crianças para levá-las ao refeitório – entra na

sala e presencia a cena, dando uma bronca em Samir: “o que é isso? Epa! Não! Não,

senhor!”. O pequeno é sentado em um colchonete e a bronca continua:

- Sente aqui e pare já com isso! Pare de bater! Vai ficar aqui agora! Isso é feio, não pode

bater no coleguinha!

- Ram! Resmunga Samir, bravo.

- Não faz “ram” pra mim, não gosto! Vai ficar aí!

O “ram!” de Samir continua, e ele fica de castigo. Kauã, que observava o colega sendo

corrigido, se aproxima dele e pronuncia seu nome: “Mil”. Em seguida lhe estende a mão e

o ajuda a levantar-se. Segurando na mão de Samir, os dois seguem para o refeitório.

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intenção a Kauã, que demonstrou contentamento e respondeu prontamente, conforme se pode

observar em sua expressão corporal e facial. Na segunda imagem, Samir olha para o rosto de

Isadora enquanto puxa o braço de Kauã, como querendo falar-lhe do “ciúme” que estava

sentindo ao vê-la de mãos dadas com o Kauã. Tendo convivido um tempo razoável com as

crianças, compreendemos o sentimento e as tentativas de Samir, já que ele e Isadora eram muito

amigos e sempre brincavam juntos. Chama atenção também a expressividade corporal de Kauã

(segunda e terceira imagens) no intuito de resistir às investidas de Samir e manter-se seguro à

Isadora. As imagens revelam que lhe parecia muito importante vencer a disputa instaurada!

Igualmente persistente, Samir não desiste de afastar Kauã de Isadora. Foram várias suas

tentativas, até mesmo quando parecia ter se conformado, e apenas parou quando foi

surpreendido pela voz da professora Creuza. Nesse momento, é interessante notar a expressão

assustada das três crianças (oitava imagem), como se soubessem o que viria depois do conflito.

Após ser advertido pela professora e ficar de castigo, o olhar de Samir (arrependido?)

acompanha os colegas indo para o refeitório (décima imagem), até a aproximação de Kauã, que

lhe oferece perdão e lhe salva do castigo. E o que dizer do olhar do Samir para o Kauã na

penúltima imagem, quando, depois de tudo, o amigo lhe oferece a mão? Agradecimento?

Surpresa? E da atitude de Kauã em perdoar o amigo? Na contramão da generosidade

demonstrada por Kauã, os comentários das professoras Creuza e Cristiane no final do evento

denotam a significação do mundo adulto ao episódio:

- Não chame ele não, Kauã (Creuza).

- Oh meu Pai, ainda é solidário! (Cristiane)

- Isso, meu filho... olha, já perdoou o amigo! Ai, meu Pai... vamos... (Creuza)

Musatti (1998) discute a complexidade das relações entre as crianças da creche e indica

que elas constroem distintos tipos de relações, as quais são marcadas por sentimentos de

pertencimento coletivo, afetividade, conflitos e agressividade. Em consenso com as DCNEI,

que estabelecem as interações como uma das bases do currículo da educação infantil, a autora

salienta que as relações entre as crianças devem conduzir as propostas educacionais da creche:

[...] as crianças não são indiferentes à presença, atividade e sentimentos das

outras crianças; elas não consideram os seus coetâneos somente como

obstáculo ao desenvolver de sua própria atividade, desejos e afetos; com eles

entrelaçam atividades, jogos e relações afetivas [...]. Além disso, parece que

as crianças em idade de creche desenvolvem uma alta e sofisticada capacidade

de produzir estratégias interativas diferentes, em função do parceiro do qual

aprendem a conhecer precocemente os estilos interativos e com o qual

entrelaçam relações diferentes. A leitura das relações específicas que se

estabelecem entre as crianças tomadas individualmente, e entre cada uma

destas e a globalidade da coletividade infantil, deve constituir o objeto de uma

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reformulação das intervenções educacionais. (MUSATTI, 1998, p. 200-201,

grifos da autora).

Em seu texto “Importância dos períodos iniciais de vida na formação da personalidade

infantil”, Zaporózhets (1987) traz algumas considerações acerca da origem e importância das

relações sociais da criança pequena no curso de seu desenvolvimento evolutivo. Na perspectiva

do autor, as primeiras relações emocionais da criança, inicialmente com a mãe, com as pessoas

próximas e, mais tarde, ampliadas para um círculo mais amplo que envolve outras pessoas e

crianças da mesma idade, se enriquecem e se modificam no processo de desenvolvimento

evolutivo da criança, constituindo o fundamento de sentimentos sociais mais complexos. É

como se houvesse uma transferência desses sentimentos humanos do particular para o geral, de

tal maneira que a criança seja capaz de estabelecer com outras pessoas relações tão profundas

como as do círculo familiar. Igualmente, as relações negativas com adultos do entorno ou a

comunicação emocional não satisfatória podem afetar desfavoravelmente a personalidade,

transformando a criança em um adulto incapaz de desenvolver empatia pelo outro.

Zaporózhets (1987, p. 247, tradução nossa) oferece orientações importantes visando a

educação moral dos pequenos, as quais achamos por bem apontar aqui. Na organização da vida

coletiva da criança, é importante que ela seja ensinada a “[...] colaborar com outras crianças e

com os adultos, a levar em consideração não somente seus próprios interesses, estritamente

pessoais, mas também as necessidades dos que a cercam [...].” Isso fará com que a criança seja

capaz de, no futuro, colocar-se no lugar de outra pessoa, sendo empática com os problemas dos

outros, qualidade necessária para relações morais mais complexas, próprias da vida adulta. O

trabalho pedagógico visando a este fim envolve atividade lúdica, prática e plástica e a

comunicação das crianças entre si e com os adultos. “Sobre suas bases deve realizar-se a

formação orientada daquelas propriedades e qualidades espirituais para cujo surgimento se

criam as premissas mais favoráveis na primeira infância e que [...] constituem o mais valioso

da personalidade humana madura” (Idem, tradução nossa).

Em relação ao desenvolvimento da linguagem, o evento “disputa na dança” evidenciou

a linguagem de uma só palavra. Mais uma vez nos deparamos com a fala de vocábulo único, o

que nos mostra a predominância desse tipo de fala nessa idade. O “ram” do Samir demonstra

toda a sua indignação, tanto por ter sido preterido na dança, quanto por estar de castigo. É como

se se sentisse injustiçado duplamente. A professora demonstra compreender o fato de que a

criança se expressa por intermédio de uma só palavra, mas por meio dela enuncia todo um texto,

um posicionamento diante da situação, além de seus sentimentos. A mediação é interessante,

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porque ela atribui significado à expressão do Samir. O mesmo pode ser observado em relação

à atitude de Kauã para com Samir. O “Mil” que representa o nome do amigo de castigo não é

apenas isso. Expressa um sentimento de solidariedade e de desculpas ao amigo que bateu nele.

Demonstra uma compreensão da situação, da fala da professora, da expressão “ram” de

Samir. À expressão de protesto de Samir podemos empregar as considerações de Musatti (1998,

p. 200), para quem “[...] os comportamentos agressivos [...] devem ser interpretados na

perspectiva do processo de aquisição da própria identidade (desenvolvimento da representação

do Eu) que se realiza nesses anos.”

A comunicação surgida durante a interação das crianças é caracterizada como

situacional pessoal (LÍSINA, 1987), significando que não se trata de uma comunicação que tem

por base a ação sobre objetos, o que demonstra sua maior complexidade: seu substrato é a

própria situação imediata, seus motivos são as pessoas, e se realiza por intermédio de meios

expressivos. Nesse contexto, podemos compreender as manifestações corporais e faciais de

Isadora, Samir e Kauã no desenrolar do episódio, acrescidas de sua fala iniciante. Conforme já

discutimos mais acima (evento 4f), Vigotski (2012a) trata dessa questão quando discute que

uma palavra da criança equivale a um texto e que a aparência é simples, embora haja uma

complexidade nessa comunicação. Ramos e Rosa (2012, p. 92) destacam o valor das interações

entre as crianças para o incremento da comunicação e da linguagem verbal:

No âmbito do desenvolvimento da linguagem verbal, as ações interativas das

quais a criança participa viabilizam oportunidades de estabelecimento de

formas de relação com o outro, de experimentações e de usos de seus recursos

para se comunicar com o parceiro, do exercício de escolhas e de (re)criação,

de ampliação da percepção sobre si e sobre o outro e a evolução de seu

pensamento. São argumentos que situam a interação social como locus

promissor do desenvolvimento da linguagem infantil, qual seja, um contexto

e um recurso de apreensão e compartilhamento de significados que as crianças

dinamicamente exploram com as professoras e com os parceiros de idade.

Cabe destacar também que a mediação do adulto enquanto alguém que expressa

extensivamente aquilo que percebe que as crianças estão dizendo, ou, em outras palavras, que

significa sua interação comunicativa, é importante para a ampliação da forma de expressão da

própria criança. Neste caso, o adulto cumpre o papel do Outro responsável por mediar o

processo de significação da própria criança. “Significação que traduz a postura do homem

perante a natureza quando ele se tornou capaz de nomeá-la, entender como funciona, interpretar

seus sinais criando modelos explicativos e dizer aos outros o que ele percebe, sente e pensa dela

e dele mesmo” (PINO, 2005, p. 167, grifo do autor). Todas essas capacidades fazem parte do

desenvolvimento cultural da criança, desde que suas condições de vida e educação o permitam.

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Contudo, para que isto ocorra, a mediação do Outro é crucial, na medida em que ele é o detentor

da significação.

Em relação ao papel do adulto como mediador, acentuamos ainda um último aspecto,

que diz respeito à regulação da conduta por meio da palavra. No evento em questão, isto se deu

quando a professora corrigiu Samir, que, por sua imaturidade psíquica não consegue, nesse

momento, auto regular-se. Vigotski (2000, p. 25) pergunta e responde: “[...] de onde vem o

poder da palavra sobre a conduta? Da real função do comando.” Na sequência, ele exemplifica

o poder da palavra com a relação estabelecida entre chefe e subordinado, significando que as

funções psicológicas têm origem nas relações entre as pessoas, e que a palavra é usada para o

domínio da conduta. Dessa forma, a palavra hoje usada pela professora, e também por todos os

Outros que participam do processo educativo de Samir em diferentes contextos, será

gradativamente internalizada pelo pequeno, o que o capacitará a regular, por si mesmo, sua

conduta. Luria (1986) descreve esse processo como ato voluntário, cuja gênese é a

comunicação da criança com o adulto. O autor afirma que “[...] no início, a criança deve se

subordinar à instrução verbal do adulto para, nas etapas seguintes, estar em condições de

transformar esta atividade ‘interpsicológica’ em um processo interno ‘intrapsíquico’ de auto-

regulação (LURIA, 1986, p. 95).

Em síntese:

A análise dos três eventos agrupados na categoria “interações comunicativas diretas”

evidenciou que a linguagem oral [da criança pequena na creche] que emerge de contextos

comunicativos não motivados por objetos, exige, necessariamente, um contato mais próximo

com o Outro – adulto ou companheiro de idade –, visto que seus motivos são as pessoas

envolvidas na interação.

O incipiente domínio da linguagem verbal da criança no segundo ano de vida, que se

encontra em fase embrionária, faz com que ela utilize diferentes recursos expressivos para se

comunicar: gestos, olhares, sorrisos, choros, expressões faciais e corporais acompanham suas

palavras e proto-palavras67. Esse domínio elementar da fala, no entanto, não impede que a

67 Em analogia ao termo proto-nosotros que Vigotski (2012b) utiliza para denominar o primeiro tipo de consciência

da criança, uma consciência que surge antes da consciência do “eu”, portanto, ainda não individualizada. De igual

maneira, quisemos demonstrar que as proto-palavras da criança representam suas palavras tateantes, ainda não

desenvolvidas por completo.

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criança compreenda, ainda que à sua maneira, a linguagem convencional do adulto, e também

que expresse seu estado emocional diante das situações que vivencia. A linguagem

compreensiva possibilita, então, que os pequenos se comuniquem e interajam amplamente com

as pessoas.

A fala é caracterizada por orações compostas de uma só palavra [às vezes duas ou mais],

por meio da qual a criança expressa toda uma situação. Nesta etapa, a linguagem condensada

possui função de indicar, nomear, fazer pedidos, afirmar, negar e protestar. Trata-se da

linguagem social, atividade externa da criança. Outra característica importante reside no fato

de que a fala é situacional, depende estritamente do contexto concreto em que se deu. Esse traço

é próprio da criança na primeira infância: a situação presente é tudo que lhe interessa, razão

pela qual ela não é capaz de agregar ao fato presente elementos do passado ou conhecimentos

acerca de outras coisas (VYGOTSKI, 2012b).

Em qualquer circunstância ou função desempenhada, a fala da criança requer sempre a

mediação do adulto significando sua linguagem, para que adquira significado para ela mesma,

especialmente em se tratando da comunicação pessoal. É o adulto que vai interpretar os sinais,

os gestos, as frases de palavra única – signos utilizados pela criança sem que ela tenha

consciência clara de seus significados –, que, porque significados pelo adulto num primeiro

momento, serão gradativamente significados por ela própria, no processo de internalização.

Dessa forma, a linguagem, que constitui uma forma de mediação semiótica porque é composta

por signos, vai sendo também significada pela criança de forma individual, adquirindo sentidos

pessoais. Se as condições concretas de existência forem favoráveis, esse processo capacitará a

criança para interpretar o mundo e comunicar-se com os outros cada vez melhor (PINO, 2005).

4.2.2 As interações comunicativas mediadas por objetos

Os eventos aqui apresentados foram desencadeados pelas situações de manipulação dos

objetos e incluem brincadeira e ação com objetos e atividades de aprendizagem linguística

(contação de história e exploração de livros pelas crianças). Trata-se da atividade comunicativa

prática-situacional (LÍSINA, 1986, 1987), para as quais os motivos são práticos, vinculados a

motivos cognitivos e pessoais; as ações com os objetos em colaboração com o adulto –

organizador das situações – constitui seu fundamento.

A comunicação que surge desse contexto é baseada, portanto, na atividade-guia do

segundo momento da primeira infância (1-3 anos) – a manipulação dos objetos (ELKONIN,

1987; LEONTIEV, 1988; VIGOTSKI, 2012b).

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O primeiro evento se refere a uma interação adulto-criança e foi motivado pela

brincadeira.

__________________________________________________________________________________

Evento 3f: Brincando de comidinha

Data: 08/10/2014

Integrantes: Kauã (1a, 11m) e professora Creuza

___________________________________________________________________________

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

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Fonte: Diário de campo, 08 de outubro de 2014.

A sequência de imagens seguida do relato aponta o processo inicial de construção de

significados por Kauã; e como esse processo vai favorecendo o desenvolvimento de sua fala.

Por intermédio da atividade objetal – atividade que mais oportuniza seu progresso nesse

momento –, em interação com a professora, ele vivencia uma experiência lúdica expressa pelo

brincar. Mas o que significa a brincadeira de Kauã, próximo aos dois anos de idade, quando ele

se encontra no segundo momento da primeira infância?

Elkonin68 (2009) estudou o jogo como elemento essencial do desenvolvimento da

criança, tratando a brincadeira infantil como o jogo protagonizado, o jogo de papéis. No sentido

amplo, o autor define o jogo como sendo “[...] uma atividade em que se reconstroem, sem fins

utilitários diretos, as relações sociais” (ELKONIN, 2009, p. 19). Em se tratando da criança,

concebe o jogo como uma de suas atividades principais, forma evoluída de jogo de papéis e de

atividade lúdica. O jogo assim interpretado por Elkonin tem lugar um pouco mais tarde no

desenvolvimento da criança, no primeiro momento da infância (3-6 anos), quando sua

atividade-guia constitui os jogos e atividades lúdicas (quadro 6, p. 132). Nesse momento, “[...]

através do jogo de papéis, as aspirações afetivas da criança tornam-se mais complexas, à medida

68 Como psicólogo e professor, Elkonin conheceu Vigotski em 1931 e tornou-se seu auxiliar, vindo a estudar a

brincadeira infantil apoiado em suas ideias. Após o falecimento de Vigotski em 1934, o autor russo integrou-se ao

grupo deixado pelo colega, agora liderado por Luria (LAZARETTI, 2011).

Kauã está na sala de atividades. Vai até a caixa de brinquedos e escolhe alguns objetos.

Com um garfo grande, um potinho pequeno e uma cumbuca maior, ele começa, sozinho, a

brincar de comidinha. O pequeno se entretém brincando assim por um pouco de tempo. Em

seguida, vai até a professora Creuza [na sala de repouso], levando junto os brinquedos e a

convida para brincar com ele. Entrega-lhe seus “utensílios” e a professora entra na

brincadeira. Os dois conversam:

- Faz, Queuza.

- Fazer comidinha pra você?

- É.

- Hum! Tá gostoso?

- Isso, come tudo!

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que ela, também, sofistica suas formas de perceber as relações sociais, o adulto, suas atitudes

e, imitando-o, deseja ser como ele” (BISSOLI, 2005, p. 188).

Concordando com os estudos de Elkonin ao mencionar sua concepção a respeito do

jogo, Vigotski (2012b, p. 349, tradução nossa) aborda o tema no contexto da primeira infância,

dizendo que “[...] o jogo é uma relação peculiar com a realidade, que se caracteriza por criar

situações fictícias, transferir as propriedades de um objeto a outro.” Com esta definição, nosso

autor principal afirma solucionar a questão do jogo na primeira infância, onde esse elemento

surge de forma primária já no primeiro ano de vida. Conforme Vigotski (2012b, p. 349),

Há jogos na primeira infância. Todos sabemos que a criança dessa idade

alimenta sua boneca, lhe aconchega, pode fingir que bebe de uma taça vazia,

etc. Creio, porém, que seria perigoso não ver a diferença essencial entre esse

“jogo” e o jogo no próprio sentido da palavra na idade pré-escolar quando se

criam situações fictícias. As investigações nos demonstram que os jogos com

significados variáveis, com situações fictícias, aparecem em forma rudimentar

só ao final da primeira idade. Somente no terceiro ano de vida nos jogos da

criança se introduzem elementos de imaginação. Estas manifestações

“lúdicas” são, naturalmente, bastante exíguas [...], derivam diretamente da

própria situação.

Neste “jogo”, a criança brinca com a boneca agindo de forma semelhante ao que sua

mãe faz com ela ao cuidar-lhe, sem, no entanto, representar os papeis sociais que mais tarde

estarão presentes no verdadeiro jogo: a boneca não é sua filha, e ela não é sua mãe. Essa é a

natureza do “jogo” de Kauã, um quase jogo. Ao brincar de comidinha, ele não estava criando

uma situação fictícia em que a professora substituísse sua mãe o alimentando, por exemplo.

Nem tampouco seria capaz de, nesse contexto, usar qualquer objeto que servisse de vasilha ou

garfo, como fazem as crianças maiores. Nesta idade, o pequeno Kauã ainda não é capaz de

simbolizar, usar um objeto no lugar de outro; como explica Vigotski, não consegue transferir

as propriedades de um objeto a outro no jogo em si. O jogo em si ocorre numa determinada

situação, é restrito ao contexto, assim como a linguagem. A criança mais imita do que cria uma

situação, pois não é capaz de representar algo que não existe concretamente. Da mesma forma

que ela é dependente da situação imediata, não sendo capaz de falar de algo que não vivencia

diretamente, também não é capaz de criar uma situação fictícia, representando algo que não está

vendo. Dessa forma,

Na primeira infância temos um quase jogo ou o “jogo em si”. Objetivamente

já se trata de um jogo para a criança, porém, não é, todavia, um jogo [...] a

criança pequena repete uma série de ações relacionadas, por exemplo, com

uma boneca que, no entanto, não fazem parte de uma situação, quando com

esta boneca vão a alguma parte, o médico vai vê-la, etc.; não existe uma

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história coerente representada na prática, não existe dramatização no

verdadeiro sentido da palavra nem tampouco uma ação determinada no plano

da situação criada pela própria criança. (VYGOTSKI, 2012b, p. 350, tradução

nossa).

Entretanto, o quase jogo de Kauã é de substancial importância para o seu

desenvolvimento. Na primeira infância, por intermédio da atividade lúdica a criança se

desenvolve amplamente nos seguintes aspectos: movimentos, consciência corporal, memória,

pensamento visual por ações e por imagens, gestos, comunicação e linguagem. O brincar

favorece sua apropriação do mundo circundante, e desde os primeiros meses de vida as

manipulações iniciais com os objetos e as brincadeiras com o próprio corpo podem ser incluídas

na atividade lúdica (BISSOLI, 2005). Ao discutir a origem do jogo na ontogênese, Elkonin

(2009) localiza a atividade lúdica que se realiza no decorrer da primeira infância como premissa

para o jogo protagonizado da infância, vindo a tratá-la no conjunto das ações com os objetos.

Nesse âmbito, o “jogo” da primeira infância é objetivado – os objetos são utilizados pela criança

conforme seu significado direto. Apoiando-se na pesquisa de Frádkina, Elkonin descreve as

etapas sucessivas em que se dá esse processo de apropriação, as quais pontuamos sucintamente.

As ações da criança com os objetos são derivadas das ações do adulto que cuida

dela. A criança atua somente com os objetos utilizados em colaboração com o

adulto, imitando-o.

A criança amplia as ações assimiladas na atividade conjunta com o adulto, e passa a

utilizar outros objetos; sua assimilação é decorrente da observação das ações dos

adultos e ela ainda não é capaz de substituir um objeto por outro, embora

aparentemente o faça. No entanto, quando isso ocorre, o objeto não é usado como

substituto de outro, mas como condição para a realização de uma ação específica,

que representa fatos isolados do seu cotidiano e dos adultos com quem convive.

A transferência da ação com um objeto para outro começa a aparecer. A criança

aprendeu a usar um pente de verdade, e passa a pentear sua boneca ou seu bichinho

de pelúcia com o mesmo pente. Pode usar também um objeto que substitua o pente

para pentear, e expressar verbalmente as ações imaginárias enquanto as realiza: usa

um pote vazio e alimenta sua boneca dizendo “come a sopinha”, o que indica a

criação de uma situação lúdica.

Amplia-se a capacidade de simbolização, quando a criança passa a utilizar alguns

objetos para substituir outros; geralmente, os objetos não têm importância lúdica

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especifica, podendo ser pedrinhas ou palitos, que são usados com os brinquedos

convencionais ou com objetos de uso doméstico.

A criança passa a utilizar seu próprio nome durante as ações com os objetos,

significando que se percebe como sujeito de suas ações. Mais tarde, ela passa

também a atribuir a si o nome de um adulto durante a realização uma atividade

realizada por ele, em comparação de suas ações às dos adultos, sem, contudo,

assumir o papel do mesmo. No final da primeira infância, entre dois e meio e três

anos, aparecem os primeiros sinais do jogo de papel. A boneca representa uma

pessoa e a criança fala como se fosse a boneca, realizando, inicialmente, apenas uma

ação: ou dá banho ou penteia a boneca. Aqui tem lugar a fala protagonizada.

Complexifica-se a estrutura das situações lúdicas. Duas ou mais ações sem vínculo

entre si são realizadas pela criança: embala a boneca, anda com ela, lhe dá de comer

e, em seguida, a coloca no carrinho para passear. Trata-se de ações sem relação entre

si.

Mediante o conhecimento de novos objetos e suas funções, as funções lúdicas da

criança também se ampliam, e ela passa a realizar várias ações com o mesmo objeto:

oferece um copo para a boneca beber, e depois usa o mesmo copo para dar banho na

boneca. Suas ações ainda não guardam semelhança lógica com os acontecimentos

reais da vida. A situação muda no final da primeira infância, quando, por volta dos

três anos, surgem os jogos que representam ações coordenadas. A criança dá banho

na boneca, a veste, e depois a coloca para dormir.

Dessa forma, Elkonin (2009, p. 230) caracteriza o desenvolvimento da atividade lúdica

na primeira infância como “[...] o trânsito da ação univocamente determinada pelo objeto,

passando pela utilização variada deste, para as ações ligadas entre si por uma lógica que reflete

a lógica das ações reais na vida das pessoas. Isso já é o ‘papel em ação’”. Esses são os

antecedentes do jogo protagonizado que se manifestará mais adiante.

Existe uma relação recíproca entre as atividades lúdicas da criança pequena e o

desenvolvimento de sua fala, de maneira que uma capacidade influi sobre a outra. A

complexificação do jogo rumo à construção do simbólico depende da linguagem, ao passo que

esta progride na brincadeira em colaboração com os adultos. Como bem lembra Elkonin, (2009)

o jogo não surge de maneira espontânea, mas com a ajuda dos adultos. A atitude de Kauã

comprova isso; vimos que ele começou a brincar sozinho, próximo à caixa de brinquedos, mas

logo procurou a professora para compartilhar sua brincadeira.

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Por intermédio de situações lúdicas como a vivenciada por Kauã, a criança pode,

paulatinamente, afastar-se da realidade e criar símbolos para representá-la. “Pode usar um

boneco como um bebê, ou um toquinho de madeira como um sabonete, fazendo com esses

objetos gestos correspondentes. [...] tais aquisições possibilitam à criança novas formas de

trabalhar com os símbolos, até que pode usar signos para representar o objeto ou a situação”

(OLIVEIRA et. al., 2011, p. 62). Por outro lado, sabemos que o domínio da linguagem oral

muda a relação da criança com o meio. Ao se apropriar da fala, ela será capaz de falar de coisas

que não vê diretamente e também imaginar situações [por meio do pensamento que também

avança com a linguagem], construir novas brincadeiras e significações. É por meio da fala que

a criança pode se distanciar da situação imediata, inserindo, na comunicação, elementos que

não se encontram presentes no acontecimento. Mas esse é um processo que leva tempo, como

já vimos.

As palavras usadas por Kauã (“faz, Queuza”) sinalizam sua participação ativa na

brincadeira, bem como o nível de significação que ele já atribui às ações dos adultos. Sua

linguagem, nesse contexto [e em outros por nós observados], constitui uma frase com sentido,

e revela que ele se encontra no princípio da etapa verbal da linguagem, embora não tenhamos

notado, nele, a presença dos indicadores descritos por Vigotski quando pensamento e linguagem

se unem nesta etapa – aumento ativo do vocabulário e interesse pelo nome das coisas e

conhecimento de maior número de palavras. As ações de Kauã indicam, também, como seu

pensamento colaborou no planejamento das mesmas: escolha dos objetos; procura da professora

e linguagem utilizada. Isto nos mostra que “[...] a criança constrói assim conhecimentos

conforme estabelece relações que organizam e explicam o mundo. Isso envolve assimilar

aspectos dessa realidade, apropriando-se de significados sobre a mesma, através de processos

ativos de interação com outras pessoas e objetos, modificando ao mesmo tempo sua forma de

agir, pensar e sentir” (OLIVEIRA et. al., 2011, p. 64).

Vale recordar que a linguagem surgida em situações que envolvem ações com objetos

cumpre a função de organizar a comunicação e a atividade da criança com o adulto. Nesse caso,

as próprias manipulações dos objetos tornam-se o meio de comunicação da criança com o

adulto. A comunicação é, assim, mediada, nesse momento, por suas ações objetais (ELKONIN,

1987).

Entendendo a importância da atividade lúdica para o desenvolvimento da linguagem

oral da criança pequena, nos questionamos a respeito do trabalho pedagógico na creche. O que

pode ser feito, a fim de que o brincar não seja visto sob a ótica do senso comum, como uma

atividade qualquer que a criança pode realizar sem intervenção do adulto [em alguns casos até

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pode, mas não sempre], e, por isso, não necessita ser planejada com intencionalidade? Que

brincadeiras podem ser programadas como fonte de interação comunicativa entre crianças e

adultos e entre as próprias crianças? Sabendo que na perspectiva de Vigotski a aprendizagem

impulsiona o desenvolvimento, ressaltamos a importância da intencionalidade da professora no

estabelecimento de atividades desenvolventes na creche.

Popova (1985) discute a relação entre as atividades lúdicas e o desenvolvimento da

linguagem na primeira infância. Segundo a autora, tais atividades favorecem sobremaneira a

linguagem ativa dos pequenos, que se desenvolve no segundo ano de vida, devendo ser alvo

das práticas educativas. As atividades com brinquedos – por meio das quais a criança pode

descobrir propriedades, comparar e escolher os de sua preferência – devem visar, além da

manipulação e exploração, a ação com eles, uma vez que o domínio da ação precede a

assimilação das palavras. A organização dessas práticas envolve dois momentos: primeiro, os

brinquedos devem ser utilizados em colaboração com o adulto, para que, num segundo

momento, sejam utilizados pela criança de forma independente. No primeiro momento tem

lugar a apresentação dos objetos para a criança e a realização de ações acompanhadas de

palavras. Ao brincar por conta própria, a criança tem a oportunidade de imitar as ações

realizadas pelo adulto, se dirigir a este – como aconteceu com Kauã – e expressar-se por meio

de sons e/ou palavras.

Popova enfoca qual deve ser a postura da professora nos momentos da brincadeira

independente da criança. Durante a brincadeira independente, a criança realiza ações distintas

com os objetos: específicas – em que os objetos são usados de acordo com sua finalidade;

investigativas – relativas à exploração das propriedades e formas dos objetos; e não específicas

– manipulações que não guardam relação com o uso ou finalidade dos objetos. As ações de

natureza específica são especialmente potencializadoras da fala; no seu interior “[...] a

linguagem começa a manifestar-se como uma atividade independente da brincadeira [...]

(POPOVA, 1985, p. 42, tradução nossa). Contudo, a intervenção do adulto se faz necessária.

Nesses momentos, é importante dirigir perguntas à criança sobre o que ela está fazendo e prestar

atenção em suas respostas a fim de organizar corretamente a comunicação oral. Caso a criança

apresente dificuldades no emprego das palavras, nomear os brinquedos que ela utiliza pode

auxiliar bastante, assim como organizar brincadeiras que envolvam sua utilização.

A autora russa chama atenção também para a mudança de ambiente que a criança

enfrenta ao começar a frequentar a creche, o que pode influenciar negativamente no

desenvolvimento de sua linguagem. Nesse momento, a criança se defronta com uma nova

realidade, um ambiente novo com pessoas igualmente desconhecidas aos quais deverá adaptar-

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se. Sua nova situação social exigirá dela um novo tipo de comunicação. Popova ressalta que

isto é comum no segundo ano de vida, pelo que a professora deve organizar atividades

individuais – sobretudo com brinquedos – que favoreçam um contato mais próximo com a

criança. Por intermédio da brincadeira, a professora pode descobrir que brincadeiras a agradam,

que palavras ela já domina, enfim, pode conhecê-la melhor. Além disso, é interessante

Conversar com os pais, estabelecer que palavras o pequeno utiliza em casa.

As observações particulares e as informações obtidas dos pais contribuem para

determinar até que ponto a criança compreende o que lhe é dito, e qual é seu

repertório léxico, se sabe utilizar as palavras das respostas nas perguntas. Tudo

isso abre a possibilidade de a educadora dirigir orientadamente o

desenvolvimento da linguagem da criança durante as atividades planejadas em

grupos, ou em diferentes momentos do dia, e na brincadeira independente.

(POPOVA, 1985, p. 43, tradução nossa).

Bissoli (2006) também oferece orientações oportunas sobre a organização das atividades

lúdicas na educação infantil, esclarecendo que o enriquecimento da experiência lúdica da

criança significa enriquecer suas vivências culturais, uma vez que sua cultura lúdica é

referenciada pela cultura geral em que vive. Assim, ao ampliar as experiências lúdicas da

criança, a professora favorece seu contato com a cultura geral e com a cultura lúdica em

particular. “Ampliar as experiências culturais das crianças é criar nelas novas necessidades. É

abrir as portas para aquelas experiências que enriquecem a faculdade do sentir [...]”, comenta

Bissoli (2006, p. 21). Conforme a autora, embora as crianças não sejam iguais e se relacionem

de modos diferentes, alguns princípios podem ser apontados para a organização dessas

experiências. Destacamos dois princípios básicos, ambos de responsabilidade do adulto: o

primeiro afirma que o adulto deve ser parceiro nas brincadeiras, e o segundo que ele deve prover

brinquedos variados. O adulto é parceiro de brincadeira quando

[...] inventa brinquedos junto; quando se transforma em uma personagem do

faz-de-conta; quando organiza espaços para que as brincadeiras aconteçam;

quando fica de fora, observando e percebendo as interações entre as crianças

e promove momentos em que grupos diferentes brinquem juntos; quando traz

uma caixa cheia de fantasias para as crianças vestirem em frente ao espelho

da sala, para construírem inúmeras histórias; quando canta ou conta histórias

(diariamente!); quando ensina uma brincadeira de quando era criança e pede

para que alguém lá da casa das crianças venha contar também sobre os seus

brinquedos... [...]. (BISSOLI, 2006, p. 22).

Quanto aos brinquedos que envolvem o segundo princípio, eles precisam ser portadores

de sentidos e incentivar a exploração pelas crianças, além de favorecer interações. Sucatas

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também são recomendadas. São múltiplas as possibilidades de objetos e materiais, com os quais

se pode criar e recriar dezenas de situações lúdicas:

Materiais de pintura, modelagem, desenho. Blocos de diversos tamanhos, com

e sem encaixe para os jogos de construção. Caixas com roupas, sapatos,

maquiagem e objetos que lembrem os diferentes papéis sociais. Cordas, piões,

petecas, saquinhos, bambolês. Jogos da memória, quebra-cabeças, jogos de

botão, dados, trilhas... Pedrinhas, figurinhas e outros pequenos objetos

colecionáveis. Carrinhos, bonecas, miniaturas. Embalagens vazias... [...].

(Idem, p. 23).

Vimos que as atividades lúdicas podem contribuir intensamente para o desenvolvimento

da linguagem oral e que esta requer um cuidadoso trabalho, que não se realiza eficazmente sem

intencionalidade e sem o entendimento de sua importância para o desenvolvimento amplo da

criança. Neste sentido, para além do profundo conhecimento teórico sobre o desenvolvimento

infantil, a professora de crianças pequenas há de conservar muito da criança em si, tem que ser,

também, um pouco criança. É a professora que ensina, na maior parte do tempo, sentada no

chão; que se veste para trabalhar com roupas que lhe deem mobilidade; que se movimenta; que

por vezes está despenteada; que sorri, que brinca de casinha, de boneca, de carrinho, de bola,

de coisas “desimportantes”, de inventar coisas...; que canta e assiste DVDs com músicas

infantis; que conta histórias imitando sons e fazendo expressões; que intervém em disputas; que

afaga e oferece colo; que se emociona diante da simplicidade e da beleza das pequenas coisas;

que se encanta com as descobertas e acha graça das palavras “deformadas” do mundo adulto.

Bissoli (2005) considera que as atividades lúdicas devem acompanhar todas as etapas do

desenvolvimento psíquico da criança, desde a mais tenra idade até o início da adolescência, e

deveriam, também, fazer parte da vida do homem. No entanto,

As condições alienantes, impostas pelo modo de produção capitalista, é que

são responsáveis pela exacerbação do utilitarismo, que não permite, a todos,

dedicarem-se ao lúdico, à arte, à filosofia, à ciência. Daí a premissa de que

valorizar o lúdico na educação da criança é, também, investir em sua

humanização: nas imensas possibilidades de criar, de expressar-se, de

desenvolver capacidades e vivências especificamente humanas. É refletir [...]

sobre a essencialidade de um processo educativo que permita, ao homem, a

superação das amarras que o prendem em um mundo hostil à universalização

[...]. (BISSOLI, 2005, p. 181).

Considerando as reflexões da autora, não deveríamos achar um privilégio ser professora

dos pequenos, com quem se pode viver o lúdico intensamente, mesmo frente às condições

alienantes, impostas pelo modo de produção capitalista? Ao fazer essa ponderação, não

estamos afirmando que o trabalho na escola da infância se resume à brincadeira. Temos

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conhecimento das atividades menos “lúdicas” que envolvem o trabalho na creche, que

constituem, objetivamente, tarefas cansativas por vezes, como as atividades da rotina de

cuidados. Dar banho, trocar fraldas, carregar no colo e alimentar são tarefas que exigem esforço

físico e podem causar cansaço, sobretudo quando realizadas várias vezes durante o dia. Mas

também podem ter um tom lúdico, se pensarmos que o conceito de atividade lúdica inclui aquilo

que fazemos emocionalmente envolvidos, sem preocupação com lucros, cuja importância

reside no próprio processo (KISHIMOTO, 2003).

No próximo evento a interação criança-criança foi motivada por outros objetos que não

o brinquedo. Ele ocorreu no mesmo dia que o anterior, em horário distinto. O episódio se deu

entre duas crianças e foi marcado pela ação com objetos e a linguagem verbal de uma delas.

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Evento 40f: Letícia com material da pesquisadora V

Data: 08/10/2014

Integrantes: Letícia (1a, 11m) e Kauã (1a, 11m)

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Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

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Fonte: Diário de campo, 08 de outubro de 2014.

Foram muitas as vezes em que Letícia tomou de empréstimo nosso diário de campo. Por

conta disso, chegamos a cogitar a criação de uma categoria chamada “apoderamento”, mas,

priorizando as interações comunicativas de emergência da linguagem oral mais diretamente,

abandonamos a ideia. Diante de suas investidas, algumas vezes cedemos, outras vezes tentamos

negociar, e em outras ocasiões tivemos que dizer não, explicando-lhe que precisávamos do

material, lhe oferecendo um outro objeto.

Neste evento queremos destacar o envolvimento de Letícia com os objetos, sua ação

com eles e a linguagem surgida nesse contexto. As imagens evidenciam que ela se manteve

concentrada na manipulação dos objetos, apesar de todos os esforços de Kauã para chamar sua

atenção. Kauã fez várias tentativas, usou diferentes estratégias para obter um pouco de atenção

da amiga – provavelmente queria brincar com ela –, mas foi tudo em vão. Letícia não queria

brincar, só estava interessada, naquele momento, no caderno e na caneta que havia conseguido.

Ela passava as folhas do caderno e rabiscava com muito entusiasmo. As palavras que falava

Pela quinta vez Letícia se apodera do meu material. Uma música é tocada no DVD, e, de

início, ela tenta rabiscar meu caderno e continuar assistindo a música, mas depois sua

atenção se volta completamente para o caderno e a caneta. Kauã se aproxima e tenta chamar

sua atenção de várias formas: a observa de perto, inclina a cabeça em direção ao seu corpo,

toma-lhe a tampa da caneta e lhe calça a sandália. Nada disso adiantou. Letícia ignora a

presença do amigo que a observa, empurra-o quando ele se encosta nela, toma a tampa da

caneta de volta falando “não, Kauã!”, e continua sua atividade enquanto ele coloca a

sandália em seu pé. Tudo o que lhe importava era fazer uso dos objetos que havia

conquistado. Absorta, a pequena rabisca várias páginas do caderno, folheia suas páginas,

observa as gravuras da capa. Em alguns momentos ela “escreve” no caderno e fala alto,

narrando o que está escrevendo: “catoze!”, “b!”, “bi!”, “cadalo!”, “i!”, “a!”. Depois de um

tempo, concentra sua atenção na caneta, tirando e colocando a tampa por diversas vezes.

Ela passa um bom tempo realizando esta ação. Em seguida, a professora Creuza aparece na

sala chamando as crianças para almoçar, ao que Letícia exclama “qué não!”, e trata de se

esconder atrás de mim, sem largar a caneta. Paro de filmar e me envolvo na situação,

tentando convencê-la a ir almoçar. Quando a professora insiste com a pequena ela

novamente responde “qué não!”, até que é levada para o refeitório, mesmo contra sua

vontade.

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enquanto “escrevia” eram exclamações vibrantes. A caneta foi demoradamente explorada. A

pequena admirava e tocava o objeto, tirava e colocava sua tampa sem cansar. A ação parecia

ser um jogo desafiador para ela. Percebemos, então, que sua admiração vinha do fato de ela ter

descoberto que a tampa da caneta podia ser colocada tanto no bico quanto no fundo do objeto.

Podemos observar na quinta e sexta imagens que ela põe a tampa no bico da caneta, ao passo

que na sexta imagem seu olhar está direcionado para o fundo, onde já havia encaixado a tampa.

O encantamento de Letícia por um objeto tão pequeno é compreensível. Com Vigotski

(2012b) entendemos que as crianças da primeira infância mantêm com os objetos uma relação

afetiva de atração ou repulsão, de maneira que cada objeto lhe estimula a realizar, com ele,

alguma ação. Ao descrever esse efeito coercitivo dos objetos, Vigotski (2012b, p. 342, tradução

nossa) argumenta que “[...] a criança dessa idade se acha no mundo dos objetos e das coisas

como num campo de forças onde sobre ela o tempo todo atuam objetos que lhe atraem e

repelem.” Assim, os objetos orientam a ação da criança pequena. Diante de um objeto qualquer,

a criança nunca tem uma reação neutra. Do mais simples ao mais complexo, os diferentes

objetos impelem a criança à ação: um cadarço amarrado de sapato lhe estimula a desamarrá-lo,

um botão na blusa da mãe a tocá-lo, um carrinho a desmontá-lo, uma boneca a vesti-la ou tirar-

lhe a roupa, uma tomada a colocar o dedo, um telefone celular a deslizar os dedos pela tela

(desde bebê!). Essa forte atração está relacionada com a dependência que a criança tem da

situação presente, o que explica a importância que os objetos concretos têm no interior de cada

situação.

Em que pese o interesse pelos objetos ser uma característica da criança pequena, a

curiosidade de Letícia pelo nosso material nos leva a uma ponderação. E é apenas uma

ponderação. Será que o fato de Letícia buscar tantas vezes nosso material e também não querer

deixá-lo, nesse episódio, não estaria, de algum modo, relacionado à ausência deles (ou de

materiais similares) em seu cotidiano na creche? A criança é atraída de forma especial pelos

objetos novos, que a estimulam a explorá-los e a descobrir suas propriedades (ELKONIN,

2009). O caderno e a caneta constituíam novidades para a pequena. Quem sabe se papel, giz de

cera, tintas, ou mesmo caneta ou lápis fossem oferecidos a ela como parte do cotidiano, sua

relação com eles não fosse mais natural?

Quanto aos aspectos relacionados à linguagem no episódio de Letícia, é interessante

notar sua “escrita” acompanhada da fala, o que demonstra sua significação do ato de escrever.

Ela pronunciava palavras e letras enquanto escrevia, o que nos leva a supor que provavelmente

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realizasse atividade semelhante em casa69. Sua fala sinaliza um progressivo avanço no

desenvolvimento da linguagem oral, em que sua exclamação (“não, Kauã!”) aparece como

expressão do desejo de que o amigo a deixasse em paz. Sua resposta ao chamado da professora

para almoçar também indica esse avanço. O “qué não!” de Letícia mostra sua recusa, significa

que ela queria continuar na sala rabiscando o caderno, em vez de ir almoçar. Mas a negação da

pequena pode ter outra razão, de acordo com as considerações de Oliveira et. al. (2011, p. 56),

com as quais concordarmos. A autora afirma que:

[...] para chegar a individuar-se, a criança precisa muitas vezes opor-se ao

outro. Para se sentir diferente dos pais, ou da professora, com quem se sente

até certo ponto fundida, a criança opõe-se a suas vontades e ordens através de

repetidos “nãos”. [...]. Parece responder “não” pelo simples prazer de dizer

“não”. No entanto, o faz para se reconhecer como diferente do outro, como

alguém que tem vontades distintas.

A fala de Letícia situa-se no início da linguagem verbal e anuncia uma forma de

linguagem mais intelectualizada, que faz uso do signo – a palavra – para comunicar-se.

Obviamente, como acabamos de afirmar, esse processo está só começando para Letícia, em fase

ainda embrionária, pois sua comunicação, nesse momento, é prática-situacional, cuja principal

característica consiste no “[...] desenvolvimento da comunicação dentro da interação prática da

criança e do adulto, e a relação da atividade comunicativa com esta interação” (LÍSINA, 1986,

p. 129, tradução nossa). Lísina trata da importância dessa forma de comunicação para a

atividade-guia e para a linguagem da criança, afirmando que ela “[...] conduz ao ulterior

desenvolvimento e à transformação qualitativa da atividade objetal das crianças (de algumas

ações em direção aos jogos processuais), ao surgimento e desenvolvimento da linguagem”

(idem).

Mujina (1981) amplia a discussão acerca da relação entre a atividade objetal e a

linguagem. Em sua perspectiva, tal relação consiste em que “[...] a acumulação de impressões

extraídas da atividade material serve de base para o desenvolvimento da linguagem da criança.

Somente quando a palavra está apoiada pelas imagens do mundo real, esta é assimilada com

êxito” (MUJINA, 1981, p. 62, tradução nossa). Nesse sentido, mediante a atividade em

colaboração com o adulto, a criança vai, aos poucos, compreendo a relação entre as palavras e

as coisas.

69 A mãe de Letícia nos revelou que a estimula desde cedo. Lia para ela quando estava grávida, e sempre utilizam

[mãe e pai] linguagem convencional para se comunicar com ela, além de lhe comprar muitos livros. Ela nos contou

um fato interessante sobre o primeiro livro que leu para Letícia ainda na barriga, intitulado “Um ursinho e seus

amigos”. Sempre que ela se mexia muito na barriga, a mãe lia e o bebê se acalmava. Quando nasceu, toda vez que

estava muito agitada, sua mãe lia o mesmo livro para acalentá-la e isto a tranquilizava.

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A interação da criança com o adulto e sua influência para a assimilação dos

procedimentos de ação com os objetos e a aquisição da linguagem é bastante enfatizada pelos

teóricos. Conforme já afirmado anteriormente, o adulto é o portador de tais procedimentos,

representando a forma ideal, razão pela qual constitui referência para a criança. No entanto,

entendemos com Pino (2005), que muitos Outros participam de seu desenvolvimento cultural.

No caso de Letícia, vimos que sua atividade foi mediada pelos objetos, com a participação –

embora ela tenha tentado ignorar – de Kauã, com quem se comunicou por gestos e palavras.

Trata-se de um processo de significação social, assim descrito por Leontiev (1978a, p. 171,

grifos do autor):

Desde as primeiras etapas do desenvolvimento do indivíduo que a realidade

concreta se lhe manifesta através da relação que ele tem com o meio; razão

por que ele a percebe não apenas sob o ângulo das suas propriedades materiais

e do seu sentido biológico, mas igualmente como um mundo de objectos que

se descobrem progressivamente a ele na sua significação social, por

intermédio da actividade humana.

Isto constitui a base inicial sobre a qual se dá a aquisição da linguagem, a

apropriação da comunicação verbal.

Apresentamos, na sequência, um evento de interação adulto-criança. A situação foi

organizada pela professora Valmirene e demonstra como a contação de história e o contato com

livros se inscrevem nesse processo, constituindo ricas atividades linguísticas, facilitadoras da

linguagem oral das crianças.

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Evento 11f: Hora da história!

Data: 05/08/2014

Integrantes: Letícia (1a, 9m, blusa azul), Fernanda (1a, 7m, blusa branca), Kauã (1a,

10m, blusa verde-escuro), Arthur (2a, 4m, blusa verde-claro), Samir (1a, 5m, sem blusa)

e professora Val

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Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

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A professora Val mostra um livro para as crianças. Na sala se encontram Letícia, Fernanda,

Kauã, Arthur e Samir. Inicialmente, Val apresenta um “livro de coisas” para os pequenos,

perguntando-lhes os nomes dos objetos que se encontram nele:

Val – Olha que lindo! O que será que tem aqui? Vamos ver, vamos ver... Olha só, que lindo!

Arthur – A bola!

Val – Que cor é essa, Arthur?

Arthur – A bola.

Val – Qual é essa cor aqui?

Arthur – A bola.

Val – É a bola. Qual é a cor da bola?

Arthur – Vemelha.

Val – Vermelha, muito bem, Arthur! E esse aqui, qual é o nome dele?

Arthur – O ussu.

Val – O urso! Vamos ver o outro.

Arthur – O tem, é o tem!

Val – Isso mesmo Arthur, é o trem! Olha, lá vem o trem, pi, piiii, pi, piiii!...

Assim, a professora vai virando as páginas do livro, mostrando as figuras e perguntando

seus nomes, criando um pequeno enredo para acompanhar a atividade. Somente Arthur

participa efetivamente, falando os nomes. As outras crianças permanecem sentadas e atentas

por um tempo, depois começam a se dispersar, vindo, em seguida, a se juntar ao redor de

Val. A atividade continua:

Val – Quem é esse aqui? (Referindo-se à figura de um palhaço).

Arthur – É Patati. (Fazendo menção a um dos integrantes da dupla de palhaços brasileiros

Patati e Patatá).

Val – Patati? É? É o palhaço, né?

Arthur – É o paaço.

Val – Isso, é o palhaço!

Val – E isso aqui? (Referindo-se a um balão, na quarta imagem).

Samir – Bó. (De pé, na frente da professora).

Val – É o bo, né Samir? É o balão.

Arthur – Balão é no céu, avoa no céu.

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Fonte: Diário de campo, 05 de agosto de 2014.

Neste evento queremos evidenciar, especialmente, a linguagem de Arthur durante a

interação, bem como a atividade linguística organizada pela professora. A situação revela como

a apropriação da linguagem oral ocorre de maneira peculiar nas diferentes etapas do

desenvolvimento da linguagem.

Colocando em destaque a própria atividade, consideramos que a interação comunicativa

entre a professora e as crianças por intermédio do livro constituiu um claro exemplo de

mediação semiótica (PINO, 2005), no contexto do desenvolvimento cultural dos pequenos.

Nesse caso, o livro se destacou como um elemento propulsor da linguagem das crianças. No

entanto, conforme Vigotski (2012a), o desenvolvimento das funções psíquicas (que se dá

culturalmente) não ocorre de forma imediata, pelo contrário, se faz sempre mediado: envolve o

signo, a criança e o Outro. A mediação da professora, sua colaboração durante a atividade foi

o que provocou as significações das crianças, a interpretação que elas fizeram das imagens e,

consequentemente, suas falas – processo que equivale ao início da internalização da linguagem

convencional. É fácil imaginar que a exploração dos livros pelas crianças de forma autônoma,

sem a colaboração da professora, não teria favorecido sua linguagem da maneira como

aconteceu. Entretanto, é importante acentuar que

Val – E esse aqui? (Era a figura de um piano, na quinta imagem).

Arthur – É tocá.

Val – Como é o nome?

Arthur – Tocá.

Val – Ah, é de tocar? É? É o piano.

Arthur – É pá tocá.

Val – Isso, serve pra tocar.

Val – E esse aqui, serve pra quê? A bicicleta, serve pra quê?

Arthur – Pá bincá!

Val – Isso mesmo, serve pra brincar, né?

O livro termina e Val pega outro, agora da história do Bambi. Ela conta a história, que

prende a atenção de todas as crianças, com exceção de Kauã, que havia se dispersado. Mas,

de novo, somente Arthur participa ativamente, falando: “esse aqui é o Bambi!” (se

levantando, na nova imagem). “O caçador!” (na décima imagem). As outras crianças apenas

escutam, atentamente, até o final.

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[...] a mediação necessária do Outro não impede que seja ela [a criança] o

sujeito do processo de internalização das funções culturais [...]. A mediação

do Outro é condição necessária, mas não suficiente para que ocorra esse

processo, pois ele implica uma transformação ou conversão da qual ela é o

principal agente, tenha ou não consciência disso. (PINO, 2005, p. 154, grifo

do autor).

Isto significa que é a criança quem vai processar as informações advindas do meio por

intermédio de sua atividade cerebral, dadas as suas condições concretas de vida e as

oportunidades que se lhe forem oferecidas em seu meio cultural.

Ao prefaciar a obra “Ler com bebês”, Barbosa (2014) concebe a atividade com livros

na creche como uma prática sociocultural que favorece o desenvolvimento linguístico da

criança. A autora aponta algumas ações que podem auxiliar a professora de creche na

organização dessa prática: possibilitar o encontro tranquilo e instigante das crianças com

diversos tipos de livros, procurando escapar aos critérios dos sistemas de classificação

exclusivamente. As crianças devem ser colocadas em contato com livros para deles fazer uso

de acordo com suas possibilidades de desenvolvimento – tocar, cheirar, manusear, folhear,

explorar, brincar; criar espaços de faz-de-conta que oportunizem à criança inventar muitos

jeitos de explorar os livros; oferecer livros de imagens, que despertem o sentido do olhar e

provoquem a imaginação infantil; criar situações de leitura de histórias e de poesias em voz

alta, a fim de que a criança tenha contato com a palavra escrita e vivencie a sua escuta.

Assim como Barbosa, Mantovani (2014) – professora italiana cujas pesquisas deram

origem à obra citada –, também considera o livro como um objeto cultural, argumentando que

o mesmo “[...] é um instrumento barato, prazeroso e essencial para estimular curiosidade,

compreensão verbal, análise perceptiva, reconstrução de fatos e produção verbal: repertórios

essencialmente cognitivos, fundamentais para um rico desenvolvimento” (MANTOVANI,

2014, p. 154, grifo da autora). Com base em experiências de formação, Mantovani sugere três

formas de apresentar o livro para as crianças na creche: o livro para análise perceptiva –

permite à criança o reconhecimento de objetos e situações familiares, a princípio, e imagens

mais complexas, posteriormente; o livro com função identificatória – a criança tem a

possibilidade de identificar seus sentimentos e experiências com os vividos pelas personagens

das histórias; o uso do livro como objeto cultural específico – seu uso requer compreensão e

interesse por parte da criança, o que equivale ao seu repertório cognitivo e linguístico. Em todas

as situações, “[...] o papel do adulto é fundamental como mediador do uso e do significado do

livro” (idem, p. 156).

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No intuito de contribuir com o trabalho pedagógico na creche, vale apresentar as

indicações de Mantovani quanto às escolhas do livro. As sugestões, oferecidas pela autora a

partir de suas pesquisas com bebês e crianças pequenas, estão divididas em seis níveis etários

e foram organizadas por nós no quadro abaixo.

Quadro 9 - Critérios de escolha do livro na creche com base na idade da criança, de acordo com

Mantovani (2014).

Nível/Faixa etária

Tipo de livro

Características

1º nível

(a partir dos 13-14 meses)

Livros de imagens simples

Permitem indicar objetos

familiares nomeados pelo

adulto; podem ser livros

comerciais de imagens de

animais e objetos, e também

confeccionados.

2º nível

(14-15 meses)

Série de imagens de objetos

relacionados entre si

Indicam categorias de ações:

comer, dormir, brincar etc.

3º nível

(16-18 meses)

Reconhecimento de um objeto e

da sua função

Apresentam processos de

transformações de um objeto e

objetos isoladamente e em seus

contextos (carro e imagem de

uma cidade com trânsito, por

exemplo).

4º nível

(a partir dos 18 meses)

Proto-histórias

Possuem um elemento ou

personagem em diferentes

situações; têm começo, meio e

fim, em uma sequência

primária.

5º nível

(20 a 22 meses)

Histórias curtas

Apresentam sequências de

situações em que acontecem

fatos e ações simples.

6º nível

(a partir dos 30 meses)

Histórias complexas

Textos com muitas sequências e

personagens, e acontecimentos

mais complexos.

Fonte: Elaboração da autora.

Enfocando o papel do adulto na apropriação do livro pelos pequenos, Mantovani

aconselha ainda que seja respeitado o ritmo próprio de cada criança, que, por conta de sua

percepção distinta, capta detalhes sem fazer relação com a história como um todo – como

Arthur, apontando as personagens da história que a professora estava contando. Em relação à

apresentação do livro, o adulto precisa preocupar-se em usar estratégias para manter a atenção

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das crianças, verificar sua compreensão e incentivar sua exploração autônoma em certos

momentos. Sintetizando suas considerações, a autora assevera que:

[...] o trabalho pode concentrar-se em dois pontos. Por um lado, motivar as

crianças a usar o livro, isto é, preparar situações e rotinas, ter um modo de

propor as histórias, verificar os conteúdos e a qualidade das imagens; por outro

lado, trabalhar as especificidades de compreensão verbal e de capacidade

perceptiva que a criança já tenha. Tudo isso favorece a motivação e requer um

papel ativo por parte do adulto. Podemos facilmente constatar que, quando um

livro é bem apresentado, aumenta não apenas a compreensão da criança, mas

também a sua vontade de usá-lo sozinha ou com um colega. (MANTOVANI,

2014, p. 163, grifo da autora).

A literatura infantil cumpre um papel relevante no desenvolvimento da linguagem oral.

Sua presença na creche se faz necessária, nos mais variados tipos e formas literárias. A

diversidade é um fator a considerar: tema, tipo, formato, material, funcionalidade,

complexidade e outros critérios podem guiar as escolhas do adulto. Livros que podem ser

molhados, livros com sons, em diversos formatos, pequenos, grandes, são todos bem-vindos.

Poemas, contos, recontos, fábulas, travalínguas, parlendas, quadrinhos, livro imagem, livro

informativo, todos constituem ricas formas de expressão linguística. Com as crianças menores,

inicialmente, é aconselhável utilizar os livros que priorizam os meios visuais, os quais permitem

à criança observar movimentos e ações. Mais tarde, os pequenos podem aprender a escutar a

linguagem figurada, repetir movimentos, sons e palavras a partir de livros mais complexos

(POPOVA, 1985; BISSOLI, 2005).

Vamos agora discutir a linguagem de nossas crianças no evento “hora da história”.

Vimos que no primeiro caso (seis primeiras imagens), o livro apresentado era bastante simples,

composto de figuras de animais e objetos e seus respectivos nomes. A professora fez uso dele

de forma interessante, incentivando as crianças a denominar as figuras e suas características.

Apesar de elementar, ela tenta tornar o livro mais atrativo, imitando sons e movimentos

enquanto o apresenta aos pequenos.

É importante ressaltar a diferença de idade entre as crianças, situando-as quanto ao

desenvolvimento da linguagem oral. Arthur – que participou ativamente falando e interagindo

de forma mais direta – era a criança mais velha da turma. Com dois anos e quatro meses, se

encontrava já na etapa verbal da linguagem, dando mostras disso. As outras crianças se achavam

na etapa transitória da linguagem autônoma, entre a linguagem pré-verbal e a verbal, mesclando

em sua fala características primárias da etapa verbal, conforme já assinalamos em episódios

anteriores.

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Dessa forma, Arthur identificou o primeiro objeto mostrado, a bola. No entanto, quando

perguntado sobre a cor do objeto, ele repetiu seu nome por duas vezes. Às perguntas “que cor

é essa, Arthur?” e “qual é essa cor aqui?”, ele respondeu “a bola”, ao invés de falar sua cor.

Apenas na terceira vez, quando a professora mudou a pergunta falando “qual é a cor da bola?”,

ele respondeu “vemelha”. Isto demonstra a maior facilidade em responder quando a pergunta

da professora se referia ao objeto concreto: bola e não à cor, uma ideia abstrata.

Luria (1986) deixa claro que a principal função da palavra é designar, apesar de servir

também para representar ações, qualidades e relações. “Isto significará que a palavra que possui

uma referência objetal pode tomar a forma de um substantivo (designando uma qualidade) ou

de uniões, como preposições, conjunções, (designando determinadas relações)” (LURIA, 1986,

p. 32). Porém, essa evolução quanto às funções da palavra ocorre gradativamente, à medida que

a criança vai, pouco a pouco, se apropriando da linguagem convencional ao se comunicar com

as pessoas do entorno. Luria mesmo trata da evolução desse processo no futuro: significará,

mais tarde. Esse movimento estava só começando para o pequeno Arthur. Certamente, ele já

reconhecia as cores, e esta não foi sua dificuldade, antes essa consistiu em fazer a relação. É

preciso considerar que ele obteve êxito quando a professora reformulou sua pergunta, o que nos

leva a pensar que talvez ele não estivesse compreendendo que suas duas perguntas anteriores

se referiam à cor da bola. Quando a professora juntou em sua pergunta o objeto e sua

propriedade (qual é a cor da bola?), o pequeno respondeu corretamente.

Na continuidade da atividade, quando Val mostrou a figura de um palhaço, Arthur o

denominou como “Patati”, reconhecendo-a como “palhaço” apenas quando ela o questiona (é

o palhaço, né?), ao que ele responde “é o paaço”. Isso revela um traço característico de Arthur,

próprio de sua forma de linguagem e pensamento nesse momento. Ao referir-se ao palhaço

como um palhaço especificamente (o Patati), Arthur mostra que não construiu a generalização,

o que equivale a dizer que em sua fala as palavras não correspondem a uma classe de palavras

ou a um grupo de objetos, antes, se referem a um objeto em específico (VYGOTSKI, 2010,

2012b). O “Patati” não se inclui em uma classe maior de palavras, a de palhaços. A resposta

do pequeno indica que ele é uma criança que “[...] ainda não possui as generalizações

superiores que nós chamamos de conceito, de modo que para ela a generalização tem um

caráter mais concreto, mais evidente” (VIGOTSKI, 2010, p. 690, grifos do autor). Isto é

caraterístico do seu pensamento por complexos, baseado em suas percepções.

Quanto à figura do piano mostrado pela professora, Arthur confundiu o objeto com sua

função. Quando Val lhe perguntou “como é o nome” do objeto, ele respondeu “tocá”. Então

Val lhe disse: “ah, é de tocar? É? É o piano”, ao que ele reforçou sua resposta falando “é pá

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tocá”. Parece contraditório, mas a confusão de Arthur denota dois aspectos importantes de seu

desenvolvimento linguístico: primeiro, seu repertório de palavras estava se ampliando. Como

ele sabia a função do piano sem saber seu nome? Em segundo lugar, ele faz uma importante

relação entre os objetos, indicativa de um princípio de simbolização. A imagem constava apenas

da figura de um piano, não havia ninguém tocando, no entanto, sua resposta “é pá tocá” inclui

a pessoa que realiza essa ação. Suas explicações de que a bicicleta serve para brincar e o balão

voa no céu também testificam isso, assim como demonstram o surgimento inicial da percepção

semântica do mundo circundante, uma percepção carregada de sentido, vinculada à

generalização (VYGOTSKI, 2012b). O diálogo da professora nesse momento – questionando

as respostas de Arthur – foi primordial para que ele significasse as imagens e situações. Desde

que continue a receber estímulos do meio, suas formas de falar, de perceber e se comunicar

irão, progressivamente, se desligando das impressões diretas, possibilitando-lhe a

complexificação de sua relação consigo e com os outros.

Por sua vez, o “bó” (bola) de Samir – com apenas um ano e cinco meses –, para referir-

se à figura do balão, indica sua linguagem autônoma, “[...] o período das orações formadas de

palavras disformes” (MUJINA, 1981, p. 64, tradução nossa), em que a criança denomina as

coisas segundo alguma relação própria. A fala de Samir revela que ele associou o formato do

balão ao da bola, brinquedo muitíssimo apreciado por ele. Sua linguagem, portanto, possui uma

lógica particular.

O segundo livro utilizado por Val era bem mais complexo que o primeiro, apresentando

um enredo com várias personagens em diversas situações. A história do Bambi prendeu a

atenção das crianças, que exercitaram sua linguagem compreensiva. Arthur gostava muito desse

livro. Durante nossas observações, algumas vezes ele nos procurou pedindo “Bambi” (o livro

ficava em uma prateleira suspensa, juntamente com outros poucos que compunham o acervo da

turma). Por apreciar muito aquele livro, Arthur tinha bastante familiaridade com ele, conhecia

suas personagens e também sua história, fato que favoreceu sua fala na identificação das

personagens. Em certa ocasião, quando pegamos o livro da prateleira e o entregamos, ele

sentou-se ao nosso lado e começou a nos contar a história: “ela uma vez, o caçador”... “o

caçador pegou o Bambi...”.

Dissemos que havia poucos livros na sala, que ficavam suspensos, longe do alcance das

crianças. Após conversar com as professoras sobre a importância de as crianças terem contato

mais próximo e frequente com livros, providenciamos uma quantidade maior, que foram

reunidos aos que ficavam na prateleira e colocados em uma caixa na sala de atividades. As

imagens abaixo mostram o momento em que os novos livros foram apresentados às crianças.

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Os registros falam por si. Revelam curiosidade, concentração, interesse, contentamento,

comunicação e interação. Por parte dos pequenos e também dos grandes... a partir de então, a

caixa de livros era procurada e explorada diariamente.

Fotografias 32 e 33 - Crianças explorando novos livros

Fonte: Acervo pessoal de pesquisa, 2014.

4.3 Considerações sobre o papel do meio

Com base na fala das crianças no decorrer do episódio que acabamos de analisar e por

ele engendrada, convém discutir o papel do meio, sua influência para o desenvolvimento da

linguagem oral da criança. Meio aqui entendido como aquele que “[...] desempenha o papel não

de circunstância, mas de fonte de desenvolvimento” (VIGOTSKI, 2010, p. 695, grifos nossos).

O meio exerce sua ação sobre o desenvolvimento da linguagem oral da criança desde cedo,

quando ela começa a dominar a fala e pronuncia suas primeiras palavras, soltas e indefinidas.

Isto ocorre por intermédio de sua mãe e demais pessoas do entorno, que se comunicam com ela

com uma linguagem desenvolvida. “A criança fala frases monossilábicas, mas a mãe fala com

a criança já uma linguagem gramatical e sintaticamente formada, [...] utilizando uma forma

desenvolvida da fala” (VIGOTSKI, 2010, p. 639), que constitui, para a criança, a forma final

ou ideal, o modelo a ser alcançado no final do desenvolvimento. Como o desenvolvimento da

criança, em todos os aspectos, se dá em interação com o meio, sua forma primária ou inicial

de fala se forma sobre a base da forma ideal, na medida em que as pessoas se comunicam com

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ela interagindo e influenciando sua fala. Dessa maneira, a forma final, que deverá aparecer no

final de seu desenvolvimento, surge logo cedo, se antecipa. A atitude da professora Val no

episódio tratado, falando as palavras corretamente para as crianças, se inscreve nesse contexto,

funcionando, para elas, como a forma final antecipada.

Cabe perguntar: o que ocorreria na ausência da forma ideal? Que prejuízos acarretariam

ao desenvolvimento da fala da criança o fato de ela não ter oportunidade de conviver com a

linguagem desenvolvida do Outro? Vigotski (2010, p. 695) nos explica:

[...] se no meio não há forma ideal correspondente e o desenvolvimento da

criança, por força de quaisquer motivos, toma seu curso sem perpassar essas

características específicas [...], ou seja, sem interagir com a forma final, então

a forma correspondente na criança também não se desenvolve até o fim. [...].

Isto significa que o meio é a fonte das capacidades da criança, de suas características

especificamente humanas, incluindo a capacidade de falar e se comunicar. Com Vigotski

podemos dizer que, se no lugar da forma ideal, a criança convivesse apenas com companheiros

de idade – possuidores da forma primária, portanto, no mesmo nível que ela –, sua fala se

desenvolveria, mas de modo particularmente lento e não alcançaria o padrão da forma ideal.

Essa questão nos leva a frisar, mais uma vez, a necessidade de o adulto falar corretamente com

a criança desde suas primeiras vocalizações, de se comunicar com ela com linguagem

desenvolvida, mesmo quando ela ainda não fala. Esse fator constituirá um guia para sua fala.

Faz-se necessário destacar duas características importantes sobre as influências do meio,

que se acham interligadas. Primeiro, se deve entender que o meio se modifica para a criança, à

medida em que ela se desenvolve, como também a própria criança muda. “Cada idade possui

seu próprio meio, organizado para a criança de tal maneira que o meio, no sentido puramente

exterior dessa palavra, se modifica para a criança a cada mudança de idade” (VIGOTSKI, 2010,

p. 683). Em segundo lugar, é preciso considerar as vivências: são elas que vão determinar a

influência do meio para a criança. Falar de vivência na vida da criança significa entender “[...]

de que forma ela toma consciência e concebe, de como ela se relaciona efetivamente para com

certo acontecimento” (idem, p. 686). Nesse sentido, na vivência se acham particularidades da

criança e da própria situação. Portanto, cada criança vai vivenciar as situações que o meio lhe

apresenta de acordo com suas particularidades individuais, de maneira que o mesmo

acontecimento pode ter significados diferentes para cada criança.

O problema do meio nos convida, ainda, a discutir os estímulos que a criança recebe e

capta dele, bem como sua apropriação dos mesmos. Como estímulos estamos considerando

todos os recursos materiais e imateriais dos quais já falamos, que auxiliam no desenvolvimento

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da criança (brinquedos, objetos, livros, linguagens, músicas e outros). Trata-se de criações

humanas; fazem parte da riqueza cultural construída e acumulada pelas pessoas no curso da

história (LEONTIEV, 1978a). Se levarmos em conta o progresso da humanidade e o

consequente enriquecimento da prática sócio histórica, fica claro que uma geração supera a

anterior, na medida em que se beneficia de suas criações. Como afirma Leontiev, isso possibilita

que as novas gerações subam nos ombros das que a antecederam. No entanto, conforme já

discutimos, a apropriação, pela criança, dos resultados da história, não ocorre espontaneamente;

antes, é tarefa do processo educativo, responsável por transmitir-lhe o que a humanidade criou

ao longo dos séculos e deixou como herança: linguagem, artes, ciência, costumes, objetos.

Todas essas criações precisam ser transmitidas à criança por intermédio da educação, que se

efetiva concretamente por pessoas, em casa e em instituições educativas. Para reforçar a

importância desse processo, trazemos aqui um exemplo utilizado por Leontiev (1978a, p. 272):

Se o nosso planeta fosse vítima de uma catástrofe que só pouparia as crianças

mais pequenas e na qual pereceria toda a população adulta, isso não

significaria o fim do gênero humano, mas a história seria inevitavelmente

interrompida. Os tesouros da cultura continuariam a existir fisicamente, mas

não existiria ninguém capaz de revelar às novas gerações o seu uso. As

máquinas deixariam de funcionar, os livros ficariam sem leitores, as obras de

arte perderiam a sua função estética. A história da humanidade teria de

recomeçar.

Tal é a importância do processo educativo. Dele depende a continuidade da história e o

desenvolvimento cultural da criança, que ocorre mediante sua apropriação da cultura, o que

equivale à apropriação das capacidades humanas. Ao falar de apropriação aqui, assumimos a

perspectiva de Leontiev (1978a, p. 271, tradução nossa), para quem esse processo é “[...] o

resultado de uma atividade efetiva do indivíduo em relação aos objetos e fenômenos do mundo

circundante criados pelo desenvolvimento da cultura humana.”

Além do processo de apropriação carecer do papel ativo da criança nas interações que

se estabelecem entre ela, as pessoas e os objetos, faz-se necessário dizer que ele depende das

suas condições reais de vida. Pontuar essa discussão aqui é importante, uma vez que nossa

investigação foi realizada em uma instituição pública, onde grande parte das crianças vêm de

famílias com poder aquisitivo mais baixo, razão pela qual nem todas têm acesso de forma

igualitária aos bens culturais. A limitação desse acesso conduz à limitação das possibilidades

da criança: ela vai deixar de se apropriar daquilo que deveria e a que tem direito. Se o meio é

fonte de desenvolvimento, devemos refletir sobre a necessidade da família e da creche

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oferecerem à criança um meio cultural rico, estimulante, promotor de suas infinitas

capacidades. No entanto, conforme pondera Pino (2005, p. 152),

Sabe-se por experiência quão variáveis são essas condições nas sociedades

modernas, devido não a uma suposta ordem natural, como tentam nos

convencer certas ideologias, mas à uma ordem social construída por decisões

humanas tomadas, via de regra, por grupos detentores do poder (econômico e

político) em função dos seus interesses. Sabe-se que a história social e

humana, a geral e a particular de cada povo, é feita de relações sociais

conflituosas produzidas por sistemas sociais geradores de desigualdades entre

homens (em particular, sociais e econômicas) que os afetam desde o berço.

Desigualdades que determinam, em grande medida, as possibilidades que cada

um deles tem de acesso aos bens culturais, materiais e espirituais, necessários

para a existência humana.

Consideramos que um projeto mais igualitário e menos excludente de sociedade

encontra entraves nas formas de produção capitalista às quais estamos sujeitos, gerando

exclusão, marginalidade, desemprego, violência e, sobretudo, desigualdade. Nesse contexto, os

bens culturais e materiais, bem como os direitos sociais básicos – saúde, alimentação, moradia

e educação – são negados às classes desfavorecidas economicamente, cujas oportunidades não

são as mesmas oferecidas para as classes privilegiadas, detentoras da riqueza e do poder. Esses

direitos são fundamentais para que homens, mulheres e crianças que compõem a sociedade

vivam condignamente e exerçam sua cidadania. De igual modo, a supressão desses direitos

produz uma massa de pessoas marginalizadas em sua condição humana.

Muito se falou em direito no século XX e a discussão continua em pauta no início do

século XXI: direito das mulheres, dos idosos, das minorias, dos homossexuais, dos

trabalhadores e das crianças, dentre outros. Esses direitos, mobilizados em grande parte pelos

grupos sociais, foram afirmados e muitas vezes legalizados, o que representa um avanço no

desenvolvimento da sociedade moderna. Avanço que, entretanto, ainda precisa ser concretizado

em ações efetivas que os garantam para todas as pessoas.

Em se tratando das crianças, há ainda muito a ser conquistado, pois uma infância plena

requer a garantia dos direitos citados anteriormente, negados a uma parcela considerável delas.

É possível afirmar que o direito à infância ainda não foi consolidado, o que implica a questão

da origem e da situação de classe das crianças.

A consolidação dos direitos das crianças requer, entre outros aspectos, educação de

qualidade desde a pequena infância; requer a apropriação da riqueza universal da qual fala

Leontiev, traduzida pelas experiências e situações planejadas e desenvolvidas em creches e pré-

escolas, as quais “[...] podem e devem ser o melhor lugar para a educação das crianças

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pequenas – crianças até os 6 anos –, pois aí se pode intencionalmente organizar as condições

adequadas de vida e educação para garantir a máxima apropriação das qualidades humanas [...]”

(MELLO, 2007, p. 85, grifos da autora). Nessa perspectiva, a creche, enquanto instituição

educativa, deve garantir as primeiras aprendizagens sistematizadas da criança pequena, a

ampliação de suas primeiras observações do mundo circundante e a ampliação do seu

referencial cultural. Como vimos, o domínio da linguagem oral constitui uma das principais

aprendizagens desse período e favorece todas as outras.

Portanto, na creche, as crianças devem ter acesso à cultura elaborada, aos objetos dessa

cultura, cuja apropriação faculta o desenvolvimento das funções tipicamente humanas – fala,

pensamento, imaginação, controle da vontade, consciência. Trata-se do processo de

humanização, resultante da educação humanizadora, aquela capaz de promover o

desenvolvimento das capacidades da criança em sua máxima plenitude. É preciso apostar na

capacidade dos bebês e crianças bem pequenas, acreditar que, em condições favoráveis de vida

e educação, serão capazes de se apropriar ao máximo das qualidades humanas. Qualidades que

se expressam ricamente na música, na dança, na literatura, nas artes plásticas; ou simplesmente

nas massinhas, nas tintas, na areia, no barro, na água; ou nas brincadeiras com blocos,

construções, encaixes, percursos, almofadas. Há um mundo de possibilidades...

Sabemos o quanto essa tarefa implica a questão da formação acadêmica da professora

de crianças pequenas. A formação para atuar em creches e pré-escolas demanda conhecimento

específico sobre os vários aspectos do desenvolvimento da criança, sobre suas necessidades,

exige conhecer as diferentes concepções de criança e infância, bem como os fundamentos

teórico-metodológicos que subsidiam o fazer pedagógico na educação infantil. A formação

assim entendida exige um alto nível de qualificação, nem sempre conseguido nos cursos de

formação docente. Assegurar essa formação é responsabilidade do Estado, como bem lembra

Kramer (1994, p. 20):

Garantir educação de qualidade para todas as crianças de 0 a 6 anos,

considerando a heterogeneidade das populações infantis e dos adultos que com

elas trabalham, exige decisão política e exige, também, condições que

viabilizem produção de conhecimentos, concepção, implantação e avaliação de

múltiplas estratégias curriculares para as creches e pré-escolas e para a

formação de seus profissionais.

O problema é complexo, e, por ora, nos limitamos a apontar a necessidade de refletir

sobre ele, de encontrar formas de promover formação contínua em contexto: grupos de estudo,

de leitura compartilhada, de debate, de planejamento e desenvolvimento de práticas. Ao refletir

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sobre as considerações de Mello e Farias (2010, p. 58-59) a respeito da mediação do/a

professora/a no contato da criança com a cultura elaborada, enfatizamos que é preciso capacitar

as professoras dos pequenos.

A relação que se estabelece entre a criança e a cultura é, na Educação Infantil,

mediada inicialmente pelo/a professor/a que organiza e disponibiliza os

objetos da cultura material e não material para as crianças. Quanto mais o/a

professor/a compreender o papel da cultura como fonte das qualidades

humanas, mais intencionalmente poderá organizar o espaço da escola para

provocar o acesso das crianças a essa cultura mais elaborada que extrapola a

experiência cotidiana das crianças fora da escola. É o/a professor/a quem

organiza o tempo da criança na escola. E quanto mais ele/ela compreender a

importância do afetivo – isto é, da vontade – no processo de aprendizagem e

quanto melhor perceber as formas como a criança nas diferentes idades melhor

se relaciona com a cultura e aprende, melhor organiza as condições concretas

para a realização de atividades significativas para a criança. Dessa forma,

melhor orienta o desenvolvimento infantil. Sabendo da importância da relação

criança/cultura para o desenvolvimento cultural e psíquico, intencionalmente

busca as formas adequadas para provocar nas crianças o estabelecimento de

uma relação com a cultura que favoreça o desenvolvimento das máximas

qualidades humanas nas diferentes etapas de seu desenvolvimento.

Em síntese:

A análise dos eventos classificados como “interações comunicativas mediadas por

objetos” revelou que essas situações favorecem a fala e complexificam a comunicação. Os

motivos dessa forma de comunicação são práticos, mas vinculados aos motivos cognitivos e

pessoais, uma vez que a relação com as pessoas se encontra na base da atividade-guia da criança

nesse momento – a manipulação dos objetos, por intermédio da qual a criança deseja conhecê-

los.

Os três eventos analisados (e outros apresentados no terceiro capítulo) comprovam o

forte envolvimento da criança com os objetos na etapa da primeira infância, validando

empiricamente a divisão cronológica aproximada e as respectivas atividades orientadoras de

cada momento do desenvolvimento infantil feita por Elkonin, Vigotski e Leontiev (quadro 6,

p. 132). Tal como nos eventos de comunicação direta, a fala nesse contexto é situacional, o que

a diferencia é a presença de objetos na situação, tornando-os motivo da comunicação. Essa

característica resulta em que a manipulação dos objetos parece fornecer mais elementos para a

fala da criança, de tal maneira que esse fato delineia distintamente sua linguagem. Dito de outra

forma, no interior da atividade-guia a linguagem oral se faz mais rica, e a comunicação mais

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complexa. A comunicação mediada por objetos, no lugar de meios expressivos e gestuais,

prioritariamente, conta com as palavras (ainda que sejam palavras soltas) utilizadas durante a

atividade objetal. Nesse cenário, a linguagem oral da criança apresenta as seguintes

características: expressa situações, identifica e denomina objetos, qualidades, ações e relações,

além de estimular o pensamento verbal.

Mas é preciso destacar que, apesar de a atividade objetal favorecer a comunicação e a

linguagem oral, as crianças por nós observadas falavam pouco. Em algumas situações

percebíamos que a fala não se manifestava, mesmo quando a criança podia falar. No entanto,

não estamos certos quanto a generalizar essa observação, afirmando que a criança dessa idade

fala pouco. Ao invés disso, preferimos justificar nossa análise situando as crianças na etapa de

desenvolvimento da linguagem em que se encontravam (quadro 8, p. 207). Conforme já

discutimos, todas (com exceção de Arthur) apresentavam a linguagem autônoma, mas ainda

com traços da pré-verbal, e já demonstrando indícios da verbal. Por essa razão, na análise de

alguns eventos, identificamos a criança no início da linguagem verbal. Isso é perfeitamente

compreensível, se considerarmos que a linguagem autônoma é uma ponte de transição entre a

pré-verbal e a verbal.

A exceção marcante era Arthur, o mais velho da turma. Com dois anos e meio no final

da pesquisa (outubro de 2014), por todas as características linguísticas que apresentava,

podemos acertadamente afirmar que ele era uma criança verbal: falava bastante (embora não

com linguagem convencional), perguntava pelo nome das coisas e se comunicava com

vocabulário relativamente ampliado. Essas peculiaridades demonstram a relação entre

pensamento e linguagem em sua fala, originando linguagem intelectual e pensamento verbal.

Dessa forma, sua linguagem se diferenciava da das outras crianças, pelo que concluímos que

em cada etapa de desenvolvimento da linguagem a criança se apropria distintamente da fala, e

que o próprio desenvolvimento da criança influi sensivelmente nessa apropriação. Não

podemos esquecer que o meio influencia fortemente esse processo, constituindo sua fonte; mas

também ele se modifica para a criança ao longo de seu desenvolvimento, assim como a própria

criança vai se transformando mediante sua ação.

Faz-se necessário sublinhar, ainda, o papel da mediação. A participação/colaboração do

adulto nas ações objetais, nas atividades lúdicas e de aprendizagem tem importância

fundamental para o progresso da linguagem oral da criança e consequente avanço do seu

pensamento, que passa de visual por ações ao visual por imagens, e, mais tarde, ao verbal. A

presença do adulto dá sentido à atividade dos pequenos e contribui com sua fala, na medida em

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que ele a estimula a falar, conversa com ela, lhe dirige perguntas e se interessa pelo que ela faz

e sente. Além disso, ele é sua referência, a forma ideal, detentor da linguagem desenvolvida.

Uma última questão. Talvez a mais intrigante que se apresentou para nós durante o

processo de pesquisa. Embora, como já dissemos, as crianças (menos Arthur) estivessem no

início da etapa verbal da linguagem, perto do acontecimento de união pensamento/linguagem,

não percebemos sinais indicativos das características próprias desse período: o aumento do

vocabulário e a iniciativa autônoma de perguntar o nome das coisas. Obviamente, isto indica

que a linguagem verbal estava sendo ainda gestada, pois nem a fala se havia intelectualizado,

nem o pensamento era verbal. A explosão linguística própria desse período se encontrava a

caminho, em devir. Perceber este fato, no processo de análise, esclareceu uma dúvida que nos

inquietou durante a pesquisa de campo. Uma dúvida teórica. A esse respeito nos

questionávamos com frequência: qual a dimensão do pensamento expresso na fala inicial das

crianças? Em que medida sua fala se encontra imbuída de pensamento, de intelecto? Pelos

significados amplos demonstrados por suas ações e frases monossilábicas, nos era difícil

acreditar que ali não havia pensamento, que não se tratava de fala intelectual. O “já já já” de

Letícia, o “boi” do Kauã, o “ram” do Samir nos levavam a refletir. As apropriações (im)próprias

e (im)pertinentes (SMOLKA, 2000) nos intrigavam.

No processo de estudo e análise dos dados, compreendemos que sim, existe pensamento

– pensamento prático, não verbal – e existe linguagem – pessoal, emocional, não intelectual –,

porém, separados um do outro antes dos dois anos de idade. No entanto, embora não possuam

relação inicialmente, pensamento e linguagem são dois processos com complexas relações, não

isolados um do outro. Essa relação surge, muda e cresce à medida que se desenvolve. Vigotski

(2001, p. 91, tradução nossa) nos ensina que “[...] a relação entre o pensamento e a linguagem

muda durante o processo de desenvolvimento, tanto em quantidade como em qualidade. Em

outras palavras, a evolução da linguagem e do pensamento não é paralela nem uniforme.” Além

do mais, as funções psíquicas não atuam de forma isolada. Ao se atuar – por meio da mediação

– sobre uma função, se atua sobre outras. Nessa perspectiva, intervir sobre a linguagem significa

intervir sobre o pensamento. Portanto, podemos dizer que mesmo antes da união dos dois

processos, surgem brotos de pensamento (verbal), uma fala, por assim dizer, proto-intelectual.

Assim, apesar das crianças por nós pesquisadas se distanciarem por mais de sete décadas das

crianças investigadas por Vigotski, os princípios elaborados por ele e seus colaboradores são

atuais, pelo que podemos afirmar que a Teoria Histórico-Cultural é atemporal.

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REFLEXÕES FINAIS (PARA NÃO FINALIZAR)

___________________________________________________________________________

No oculto do ventre,

o feto se explica como o Homem:

em si mesmo enrolado

para caber no que ainda vai ser.

Corpo ansiando ser barco,

água sonhando dormir,

colo em si mesmo encontrado.

Na espiral do feto,

o novelo do afecto

ensaia o seu primeiro infinito.70

(MIA COUTO)

Concluímos, por ora, nosso estudo. Ao tecer suas considerações finais importa

perguntar: o que pretendíamos com ele? Os objetivos que buscávamos foram alcançados?

Conforme anunciado na parte introdutória, nos propusemos a: compreender o processo de

desenvolvimento da linguagem oral na etapa da primeira infância, de acordo com os

pressupostos da Teoria Histórico-Cultural; conhecer a influência das interações adulto-criança

e criança-criança para o desenvolvimento da linguagem oral das crianças em situação de creche;

70 Poema “Espiral”, do escritor e poeta moçambicano Mia Couto, publicado em seu livro “Tradutor de chuvas”,

pela editora Caminho (2011).

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e elucidar como o trabalho pedagógico na creche pode contribuir para que ocorram interações

verbais significativas entre crianças e adultos.

Diante da complexidade do objeto – o desenvolvimento da linguagem oral em crianças

– e da base teórica por nós adotada – a Teoria Histórico-Cultural –, avaliar o alcance dos

objetivos acima não é tarefa fácil. Não temos plena certeza dessa conquista, e, ao dizer isto,

desejamos que nosso leitor conteste nossa afirmação. Melhor dizendo, almejamos que as

pessoas que se detiverem na leitura do nosso trabalho compreendam como se forma a linguagem

oral da criança pequena segundo os princípios da abordagem histórico-cultural. Pesquisar na

perspectiva vigotskiana implica muitos desafios e reconhecemos as limitações de um estudo

dessa natureza, às quais não estivemos imunes. Sistematizar conhecimentos sobre um tema

desenvolvido por diferentes autores em distintas épocas é um trabalho que requer todas as

funções intelectuais necessárias à formação de conceitos (percepção, atenção, associação,

comparação, análise e síntese) que, embora possam estar completamente desenvolvidas na

idade adulta, nem sempre funcionam de forma absoluta. Por vezes, a apropriação pode resultar

enganosa, nos apresentando pseudoconceitos em lugar de conceitos verdadeiros. Além disso, a

elaboração de uma tese exige que façamos escolhas. É preciso eleger autores, temas de leitura

e da própria escrita, e, nesse processo, não é possível abordar todos os conceitos relativos ao

estudo com a mesma profundidade.

Estabelecemos, a princípio, alguns conceitos com base nos objetivos da pesquisa e nas

perguntas que os delinearam: de que maneira ocorre o desenvolvimento da linguagem oral na

primeira infância segundo a perspectiva histórico-cultural?; como as interações adulto-criança

e criança-criança interferem no desenvolvimento da linguagem oral das crianças em situação

de creche?; como o trabalho pedagógico na creche pode propiciar interações verbais

significativas? Com vistas a responder tais questões, adotamos os seguintes conceitos:

linguagem; interação; atividade de comunicação; práticas pedagógicas e mediação. No entanto,

no decorrer da pesquisa, as leituras foram nos apresentando outros conceitos que se cotejavam

aos primeiros, fazendo-se necessários para o tratamento do objeto – o desenvolvimento da

linguagem oral de crianças na creche – em sua complexidade: desenvolvimento psíquico;

desenvolvimento; situação social de desenvolvimento; atividade-guia; linguagem oral;

linguagem autônoma; linguagem egocêntrica; pensamento; zona de desenvolvimento iminente;

internalização; apropriação; formação de conceitos; generalização; consciência; jogo; atividade

lúdica; mediação semiótica; significação; meio; vivência...

No curso do processo de escrita, nos vimos frente ao desafio de organizar e explicar os

diversos e entrelaçados conceitos, de forma a compor um quadro compreensível a respeito do

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desenvolvimento da linguagem oral da criança. Nesse movimento, era preciso interpretar os

teóricos e dialogar com eles, articular suas ideias e encadeá-las com nosso próprio pensamento.

Em certos momentos, a sensação que tínhamos – usando um exemplo próprio da criança – era

a de estar montando um enorme quebra-cabeça. Um puzzle de muitas peças.

No entanto, a figura do quebra-cabeça não traduz com exatidão esse processo. Falar do

desenvolvimento da linguagem implica retratar um movimento contínuo, um processo

dinâmico que se transforma. Assim, o quebra-cabeça, apesar de conter peças que compõem um

quadro/figura/tema, deveria ser substituído por algo que encerrasse certo movimento, como o

que buscamos explicar com o quadro-síntese do desenvolvimento da linguagem. Inspirados em

Vigotski (2012b) – quando afirma que o desenvolvimento do bebê é um movimento ascendente

em espiral –, pensamos em uma espiral, cuja dinâmica foi expressa no poema de Mia Couto,

usado por nós como epígrafe desse texto. Esse objeto, “[..] símbolo de evolução e de movimento

ascendente e progressivo [...]” (INFOPÉDIA, 2003-2016), representa bem a compreensão que

fomos constituindo sobre o gradativo incremento da linguagem oral da criança, o papel das

interações nesse processo e a intervenção que pode se dar pelo trabalho educativo na creche.

À medida que avançamos na apropriação dos princípios e dos conceitos da Teoria

Histórico-Cultural, fomos entendendo o desenvolvimento da criança como um processo que

ocorre nas e pelas relações com as pessoas. Na convivência com o círculo de pessoas mais

próximas, a princípio – pais, irmãos, cuidadores –, e, mais tarde, com um círculo mais amplo –

familiares, parceiros de idade e de idades distintas, professores –, o psiquismo da criança vai se

formando. É sobre esse alicerce que os pequenos irão balbuciar, compreender e falar; mais

adiante, em condições propícias de vida e educação, comunicar-se-ão de forma clara e

compreensível: com vocabulário abundante, fazendo uso simbólico das palavras. A natureza

histórica e não natural desse movimento, tal como concebido por Vigotski e seus colaboradores,

foi se evidenciando cada vez mais para nós.

Dessa compreensão, evidenciamos a constituição cultural da criança, seu segundo

nascimento, momento em que começa a atuar no mundo por intermédio dos signos:

inicialmente, assimilando e imitando gestos e palavras do meio social, para, num segundo

momento, internalizá-los e incorporá-los a seu psiquismo. É isso que caracteriza o

desenvolvimento social do psiquismo, o que possibilita que a criança se aproprie das formas

sociais de comportamento que os adultos utilizam com ela, incluindo a linguagem verbal. Por

intermédio do signo (ou da atividade semiótica), as formas iniciais de comunicação com o Outro

como o choro e o grito se transformam, paulatinamente, em comunicação pela palavra. Dessa

forma é que a linguagem, como uma das principais funções psíquicas, que se forma nos

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primeiros anos de vida da criança, se desenvolve segundo a lei do desenvolvimento psíquico

formulada por Vigotski. Primeiro socialmente, depois psicologicamente. Primeiro nas

interações, depois individualmente.

No interior do desenvolvimento cultural, em cada momento, por meio das pessoas e de

um tipo especial de atividade, a criança se relaciona com o mundo à sua volta, muito embora

outras atividades, conjuntamente à atividade-guia, permeiem, sempre, sua vida. No curso do

giro espiralado e afluente que constitui sua existência, as crianças se interessam por múltiplas

atividades, da mesma forma que se expressam por cem linguagens. Em relação às crianças com

as quais pesquisamos, apesar do predomínio das ações com objetos, presenciamos seu

envolvimento com muitas outras atividades: gostavam de assistir DVD, de dançar, imitar e

movimentar-se, de brincar de roda e esconde-esconde, de passear ao ar livre, de participar das

festas, de contato com animais, dos banhos de piscina...

Passamos, então, a discutir a comunicação e a formação da linguagem oral.

Demonstramos que, no primeiro ano de vida, por intermédio da comunicação emocional com

as pessoas – atividade-guia própria desse momento –, surge na criança a necessidade de

comunicação, enquanto o adulto cuida e fala com ela. A partir desse contato, marcadamente

íntimo e emocional, a criança começa a emitir seus primeiros sons, que se converterão em fala

posteriormente. Nesse momento, o pensamento é pré-verbal (prático) e a linguagem é pré-

intelectual (emocional), o que não impede que a criança se comunique à sua maneira,

compreenda a linguagem das pessoas ao seu redor e comece a interessar-se pelos objetos –

processo que antecede o domínio da fala. O resultado de todas essas conquistas, no final do

primeiro ano, é o início da consciência, que, pelas vivências e mediação do Outro, se vai

modificando sucessivamente ao longo do desenvolvimento. Antes do domínio da linguagem

desenvolvida, os pequenos se comunicam com uma linguagem particular, que se transformará

em linguagem autêntica no período de um a três anos. Nas diversas situações de uso dos objetos,

em interação com os adultos, a comunicação emocional dá lugar à comunicação verbal,

mediada pela palavra. A partir de então, pensamento e linguagem – antes separados – se

conectam, originando uma fala intelectual e um pensamento verbal. A criança passa a falar

bastante e ativamente, apropriando-se, gradualmente, da forma ideal de linguagem. Trata-se do

processo de apropriação do signo verbal e da função simbólica da linguagem. Destacamos os

resultados dessa aquisição para a criança: independência da percepção imediata, novas e

multifacetadas formas de relação com as pessoas, com o meio e consigo mesma, e o início da

consciência de si e da autonomia.

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Pouco a pouco a linguagem verbal – social e externa – passa a ser egocêntrica, outra

forma específica de linguagem, usada pela criança para falar consigo mesma, demonstrando

internalização da linguagem do adulto. Por sua vez, esse processo se transforma em linguagem

interna, discurso interior a serviço do pensamento, uma forma nova e evoluída de linguagem

que surge por volta dos sete anos de idade. Assim, todas as etapas do desenvolvimento da

linguagem da criança são caracterizadas pela transformação. Dialeticamente, uma forma vai

evoluindo até se transformar em outra mais complexa, revelando um genuíno movimento em

espiral.

Durante o trabalho de campo, no decorrer do processo de observação, percebemos que

existe um traço singular na apropriação da linguagem. Ela se dá de maneira única em cada

criança. Embora as crianças (o ser humano) tenham suas funções psíquicas modeladas

socialmente, há uma dimensão individual que as diferencia, o que faz com que as funções se

desenvolvam, em cada pessoa, de forma irrepetível. Por essa característica, cada criança,

individualmente, se apropria da fala de modo particular, atribuindo aos signos sentidos pessoais,

significando as vivências do meio de forma igualmente ímpar – sem perder sua essência social.

Isto explica porque algumas crianças começam a falar mais cedo ao passo que outras demoram

um pouco mais; porque algumas se comunicam com vocábulos relativamente ricos e outras

não; porque a própria pronúncia das palavras se diferencia; e porque a compreensão também se

faz distinta.

O que delineia esse processo de formação da individualidade são as condições reais de

vida e educação, as oportunidades que cada criança tem de entrar em contato com as formas

desenvolvidas de linguagem e com os objetos culturais do meio, marcadamente simbólico. Por

essa razão, enfatizamos reiteradamente a importância do trabalho pedagógico na creche, que,

enquanto instituição educativa, tem o dever de intervir positivamente na apropriação da

linguagem oral pela criança. É necessário organizar, em cada etapa de domínio da fala,

situações propiciadoras de interações comunicativas, uma vez que estas são o substrato da

linguagem. É preciso trazer à vida as funções que participam desse processo: a percepção, a

memória, a atenção, o pensamento. Nesse sentido, é interessante: falar constantemente com a

criança, usando, na comunicação com ela, a linguagem que lhe serve de modelo; interpretar e

significar seus gestos e expressões comunicativas; acompanhar suas brincadeiras e planejar

situações lúdicas coletivas; proporcionar experiências de exploração de objetos e brinquedos;

contar histórias; promover o encontro com livros e canções variadas; apresentar imagens e

conversar sobre elas; criar situações nas quais a criança precise se expressar

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significativamente... em poucas palavras, há que se criar a necessidade de comunicação na

criança.

Discutimos, ainda, uma função primordial da linguagem além de sua função

comunicadora, abordando o início do processo de formação de conceitos –, quando a palavra

se coloca a serviço do pensamento. Embora a criança pequena ainda não possa formar conceitos

em razão de não possuir as funções necessárias para tanto, ao se comunicar com o adulto, utiliza

palavras visivelmente similares às dele. No entanto, o faz sem generalizar como o adulto;

generaliza do seu jeito, sem perceber que determinado objeto pertence a uma classe, e que

objetos diferentes são denominados com uma mesma palavra. A generalização da criança –

pautada em uma lógica própria, no emprego de palavras mediante alguma relação concreta que

ela estabelece entre as coisas – possibilita compreensão e comunicação com os adultos,

representando, assim, um processo rudimentar de abstração, que terá continuidade com a

formação de conceitos.

A esse respeito aprendemos com Vigotski uma lição fundamental, que, a propósito,

merece ser destacada aqui. Na primeira infância, por intermédio da comunicação com os adultos

e do contato com o mundo, os verdadeiros conceitos se encontram em processo de incubação

na criança, o que faz com que ela se expresse por pseudoconceitos. A formação de conceitos

verdadeiros é resultado da instrução escolar, ao passo que a educação infantil deve ocupar-se

dos conceitos espontâneos e de suas primeiras aproximações com os conceitos verdadeiros.

Portanto, enquanto os verdadeiros conceitos estão sendo gestados, enquanto a fala da criança

não é generalizada em razão de ela não possuir ainda uma percepção semântica do ambiente

circundante e da linguagem, o papel da educação infantil é ampliar seu conhecimento

espontâneo, o que significa expandir suas experiências de exploração do mundo. Quanto mais

ricas forem as experiências e vivências que proporcionarmos aos pequenos, tanto mais

influiremos nesse processo, interferindo, inclusive, no longo processo de formação dos

conceitos propriamente ditos. Uma palavrinha mais merece ser dita: consideramos que não é

possível fazer isso apenas no espaço restrito de uma sala...

Nossas reflexões se encaminham, inevitavelmente, para pensar a formação da

professora de creche, especialmente se considerarmos que as professoras com as quais

pesquisamos, assim como as crianças, também foram sujeitos de nossa investigação.

Acreditamos que essas profissionais precisam ter acesso ao mesmo conhecimento que tivemos,

para que sejam capazes de ressignificar suas práticas. Julgamos que a formação inicial deveria

dar conta dessa tarefa, mas sabemos que não é bem assim, uma vez que nossa própria formação

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apresentou essa lacuna. Isso evidencia a necessidade de investir nas atividades formativas de

caráter contínuo, em nível macro e na própria creche.

Sem responsabilizar as professoras individualmente, apontamos alguns caminhos

possíveis: compromisso político que preze pela qualidade da educação, tanto quanto a

ampliação da oferta de atendimento nas creches públicas em Manaus; cumprimento da Lei do

Piso (BRASIL, 2008), que estabelece a destinação de um terço da carga horária dos professores

para as atividades de formação; compreensão de que a efetivação de práticas desenvolventes

não é um trabalho isolado que se encerra apenas na creche, antes, deve ser fruto de propostas

mais amplas, elaboradas, divulgadas e acompanhas por um conjunto de profissionais que se

dedicam a essa finalidade; formação no próprio lócus de trabalho, que contemple as

necessidades e questionamentos das professoras, o que pode ser organizado pela pedagoga da

instituição com parceria da Universidade; estudo/debate de temas pertinentes aos processos de

desenvolvimento e aprendizagem da criança pequena, possibilidade vislumbrada por nós

mediante a pesquisa.

Assim, cremos que a formação continuada em serviço é substancial para a

ressignificação da prática pedagógica. Sua realização no interior da creche pode começar por

ações simples, a exemplo de discussões/reflexões acerca do fazer cotidiano, pela leitura

partilhada de textos teóricos e/ou metodológicos, pela troca de experiências, em momentos

dedicados ao planejamento e em ocasiões de reuniões pedagógicas.

Nossa pesquisa buscou caminhar nessa direção, ainda que de forma elementar. Partindo

de observações por nós registradas, procuramos provocar, nas professoras sujeito, a reflexão da

própria prática, mediando sua formação por meio do diálogo fundamentado. A prática da

pesquisa assim realizada pode constituir uma possibilidade a mais de desenvolvimento

profissional da professora de creche. Pensando mais diretamente em nosso objeto de estudo,

destacamos que se faz necessário que a professora de bebês e crianças pequenininhas tenha

consciência da importância do seu trabalho para o desenvolvimento da linguagem e do

pensamento dos pequenos; que compreenda a influência da linguagem para todas as funções

psíquicas da criança; que tenha conhecimento dos resultados do domínio da linguagem; e saiba

que, por sua mediação a fala em si pode ser transformada em fala para si e para os outros.

Antes de apontar algumas possibilidades concretas de continuidade desse trabalho,

desejamos fazer uma autorreflexão sobre o processo da pesquisa por nós vivenciado. Discorrer

acerca desse aspecto equivale a falar um pouco de como o processo contribuiu com nossa

própria formação profissional/pessoal e atuou sobre nosso psiquismo. A construção desse

trabalho foi algo desafiador para nós. Nossas funções intelectuais mais complexas foram

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colocadas à prova. Quem agora o enxerga em sua versão “acabada”, não imagina as idas e

vindas que fizeram parte de sua tessitura, não supõe a quantidade de vezes que fizemos uso da

tecla delete. O processo de apropriação e sistematização dos conceitos – que, a exemplo do

desenvolvimento infantil, foi marcado por saltos, rupturas e superações – por vezes foi sofrido

e gerou crises, nossa orientadora e pessoas próximas bem o sabem. Mas em meio ao turbilhão

que desafiou e reorganizou nosso psiquismo, consideramos que, passo a passo, por intermédio

da indispensável mediação dos Outros – concentrada de forma especial na figura de nossa

orientadora –, fomos superando as dificuldades.

Aplicando pessoalmente os fundamentos histórico-culturais, compreendemos que esse

movimento é próprio ao desenvolvimento humano – marcha em espiral que parte das conquistas

mais simples, transformando-se qualitativa e ininterruptamente. Assim, as apropriações foram

se dando em crescente, no interior do processo de estudo, diálogo e escrita, na interpretação e

discussão de cada conceito – característica do pensamento conceitual, que avança à medida em

que se desenvolve. E foram muitas as apropriações e benefícios. Objetivamente:

conhecimento/aprofundamento da Teoria Histórico-Cultural e conceitos inerentes;

compreensão do processo de desenvolvimento infantil e da linguagem; aquisição de

conhecimentos novos; ativação do funcionamento psíquico por meio da formação de novas

conexões nervosas; maior entendimento do processo de pesquisa; aprimoramento da escrita...

Podemos, portanto, afirmar, que todo o processo de pesquisa contribuiu substancialmente com

nosso desenvolvimento pessoal e profissional, o que nos compele a ressignificar nossa própria

prática, ao retomar as atividades acadêmicas no curso de Pedagogia da Universidade Federal

do Amazonas.

Assim como o movimento da espiral, esse trabalho não se encerra aqui, não tem natureza

conclusiva, pois faz parte de um processo maior, que necessita ser aprofundado com estudos

posteriores e outros trabalhos complementares. Contudo, respondendo ao nosso

questionamento inicial a respeito do alcance dos objetivos a que nos propusemos, acreditamos

que, se não os alcançamos plenamente, os contemplamos em grande medida. Sabemos que a

tese é um trabalho situado historicamente, revelando aquilo que conseguimos até um

determinado momento – fato que sugere continuação. Nesse sentido, nossa investigação abre

um leque de possibilidades, apresenta alguns temas/assuntos que pretendemos aprofundar,

conforme indicamos ao longo da escrita. Nossa intenção é continuar pesquisando a temática da

linguagem e temas correlatos, realizando um estudo longitudinal. Acompanhando o

desenvolvimento das mesmas crianças até a idade pré-escolar (ou, quem sabe, até a escolar),

planejamos estudar: a linguagem egocêntrica; a linguagem interna; a consciência na primeira

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infância; o início do processo de formação de conceitos... intencionamos, ainda, organizar um

grupo de estudo na creche pesquisada, com as professoras que demonstrarem interesse em

participar. Nossa projeção visa à articulação ensino/pesquisa/extensão, no âmbito do nosso

trabalho com os graduandos do curso de Pedagogia, com os quais pretendemos desenvolver

projetos de extensão e pesquisas de iniciação científica.

A creche se mostrou para nós como um campo favorável para a pesquisa. Muitas outras

questões podem ser enfocadas, cujo estudo pode contribuir para o aprimoramento da educação

oferecida às crianças de um a três anos nas creches públicas de Manaus. Relacionamos algumas

possibilidades:

- O processo de adaptação da criança ao ambiente da creche;

- A organização do tempo e dos espaços na creche;

- Os materiais/mobiliários da creche e seus usos;

- As atividades-guia na primeira infância;

- A percepção na primeira infância;

- A brincadeira na primeira infância;

- A linguagem não-verbal da criança pequenininha;

- O trabalho com a literatura infantil como possibilidade de desenvolvimento linguístico;

- A construção da autonomia como princípio educativo;

- Alimentação e construção de hábitos alimentares na creche.

Da mesma forma que a construção desse trabalho constituiu uma provocação, sabemos

que há desafios para sua continuidade. No entanto, em vez de visualizar entraves, preferimos

vislumbrar possibilidades no giro incessante que perfaz nossa existência. Afinal, “se as coisas

são inatingíveis… ora! Não é motivo para não querê-las… Que tristes os caminhos, se não fora

a presença distante das estrelas!” (QUINTANA, 2007).

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281

APÊNDICES

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APENDICE A - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA

OS PAIS

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA OS PAIS

Srs. Pais ou Responsáveis por ................................................................................................

Estamos pedindo a sua autorização para que seu(sua) filho(a) participe da pesquisa que se

chama “Interações na educação infantil: o trabalho de educar cuidando em uma creche

pública da cidade de Manaus”, sob a responsabilidade da pesquisadora Arlene Araujo Nogueira.

Nela pretendemos compreender como a organização do trabalho pedagógico pode favorecer as

relações entre as professoras e as crianças e das crianças entre elas, e conhecer as contribuições

dessas relações para o desenvolvimento de bebês e crianças bem pequenas.

Essa pesquisa pode contribuir para que a educação das crianças realizada na Creche Maria

Ferreira Bernardes seja constantemente melhorada, já que todos os resultados serão apresentados e

discutidos com a equipe que trabalha na creche. Para atingir o nosso objetivo, realizaremos

observações na sala de seu(sua) filho(a) e entrevistas com as professoras das crianças. Em relação

às crianças, observaremos sua rotina na creche, e, consequentemente, seu desenvolvimento.

Também realizaremos algumas atividades coletivas, como brincadeiras, contação de histórias,

música, desenho e pintura. Pedimos seu consentimento para fazer fotografias e filmagens

envolvendo seu(sua) filho(a). É importante dizer que as fotografias e filmagens servem como

material para a pesquisa, para acompanhar o desenvolvimento das crianças. Ninguém deverá pagar

ou receber nada porque todas as despesas serão de responsabilidade da pesquisadora, que cursa

Doutorado em Educação na Universidade Federal do Amazonas.

Gostaríamos que o/a senhor/a permitisse que seu filho(a) participasse dessa pesquisa.

Esclarecemos que: 1º) o/a senhor/a pode aceitar ou não a participação do seu filho; 2º) caso

o/a senhor/a aceite, o seu filho(a) não correrá nenhum risco, nem será prejudicado por participar

dessa pesquisa; 3º) caso o/a senhor/a desista da participação de seu filho(a) na pesquisa a qualquer

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momento, ele não será prejudicado; 4º) estamos disponíveis para tirar qualquer dúvida sobre essa

pesquisa; 5º) o/a senhor/a apenas assinará esse papel quando tiver entendido o que lhe explicamos.

Em caso de dúvida, poderá comunicar-se com a pesquisadora Arlene Araújo Nogueira, na

Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas, à Av. General Rodrigo Octávio,

6200, Bairro Coroado I, CEP 69077-000, Manaus-AM, telefone: (92) 3305-4565, e-mail:

[email protected], ou ainda com sua orientadora, Dra. Michelle de Freitas Bissoli, no

mesmo endereço.

Caso o/a senhor/a queira fazer qualquer reclamação sobre a pesquisa, poderá a qualquer

momento, entrar em contato com o Comitê de Ética – CEP/UFAM, na Rua Teresina, 495,

Adrianópolis, Manaus-AM, telefone (92) 3305-5130.

Consentimento Pós–Informação

Eu,___________________________________________________________, fui informado sobre

o que a pesquisadora quer fazer e porque precisa da minha colaboração, e entendi a explicação. Por

isso, eu concordo em participar do projeto, sabendo que não vou ganhar nada e que posso sair

quando quiser. Este documento é emitido em duas vias que serão ambas assinadas por mim e pela

pesquisadora, ficando uma via com cada um de nós.

Manaus, _____de ______________de 2014.

Nome da criança: _______________________________________________________________

Nome do responsável pela criança: _________________________________________________

Assinatura do responsável pela criança: _____________________________________________

Impressão Datiloscópica

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284

APENDICE B - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

PARA A PROFESSORA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA A

PROFESSORA

Sra. Professora........................................................................................................................,

Convidamo-la a participar da pesquisa que se chama “Interações na educação infantil: o

trabalho de educar cuidando em uma creche pública da cidade de Manaus”, sob a

responsabilidade da pesquisadora Arlene Araujo Nogueira.

Com essa pesquisa, pretendemos compreender como a organização do trabalho pedagógico

pode favorecer as interações adulto-criança e criança-criança, e conhecer as contribuições dessas

interações para o desenvolvimento psíquico de bebês e crianças bem pequenas. Essa pesquisa pode

contribuir para que a educação das crianças realizada na creche seja aperfeiçoada, pois todos os

resultados serão apresentados e discutidos com a equipe que nela trabalha. Para atingir o nosso

objetivo, realizaremos entrevistas com a senhora, observações participantes na sua sala de

referência, e encontros para dialogarmos acerca do trabalho desenvolvido com as crianças. Em

relação às crianças, observaremos e participaremos de sua rotina na creche e na sala de referência,

buscando visualizar momentos de interação entre a senhora e elas e delas entre si. Realizaremos,

ainda, com as crianças, algumas atividades coletivas, como brincadeiras, contação de histórias,

música, desenho e pintura. Pedimos seu consentimento para fazer fotografias e filmagens desses

momentos. É importante dizer que as fotografias e as filmagens servem como material para a

pesquisa, para identificar e analisar processos de interação. Ninguém deverá pagar ou receber nada

porque todas as despesas serão de responsabilidade da pesquisadora, que cursa Doutorado em

Educação na Universidade Federal do Amazonas.

Esclarecemos que: 1º) a senhora pode aceitar ou não participar; 2º) caso a senhora aceite,

não correrá nenhum risco, nem será prejudicada por participar dessa pesquisa; 3º) caso desista de

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participar da pesquisa a qualquer momento, não haverá prejuízo algum para a senhora; 4º) estamos

disponíveis para tirar qualquer dúvida sobre essa pesquisa; 5º) a senhora apenas assinará esse papel

quando tiver entendido o que lhe explicamos.

Em caso de dúvida, poderá comunicar-se com a pesquisadora Arlene Araújo Nogueira, na

Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas, à Av. General Rodrigo Octávio,

6200, Bairro Coroado I, CEP 69077-000, Manaus-AM, telefone: (92) 3305-4565, e-mail:

[email protected], ou ainda com sua orientadora, Dra. Michelle de Freitas Bissoli, no

mesmo endereço.

Caso a senhora queira fazer qualquer reclamação ou deseje mais esclarecimentos sobre a

pesquisa, poderá a qualquer momento, entrar em contato com o Comitê de Ética em Pesquisa –

CEP/UFAM, na Rua Teresina, 495, Adrianópolis, Manaus-AM, telefone (92) 3305-5130.

Consentimento Pós–Informação

Eu,___________________________________________________________, fui informada sobre

o que a pesquisadora quer fazer e porque precisa da minha colaboração, e entendi a explicação. Por

isso, eu concordo em participar do projeto, sabendo que não vou ganhar nada e que posso sair

quando quiser. Este documento é emitido em duas vias que serão ambas assinadas por mim e pela

pesquisadora, ficando uma via com cada um de nós.

Manaus, _____de ______________de 2014.

Nome: __________________________________________________________________

Assinatura: _______________________________________________________________

Impressão Datiloscópica

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APENDICE C - TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM E

IDENTIDADE PARA OS PAIS

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM E IDENTIDADE – PAIS

Eu_________________________________, CPF____________, RG________________,

depois de conhecer e entender os objetivos, procedimentos metodológicos e benefícios da

pesquisa que se chama “Interações e o desenvolvimento da linguagem oral na creche: uma

abordagem histórico-cultural”, especificados no Termo de Consentimento Livre e

Esclarecido (TCLE), bem como de estar ciente da necessidade do uso de imagem e identificação

do meu (minha) filho (filha) ______________________________________, AUTORIZO,

através do presente termo, as pesquisadoras Arlene Araújo Nogueira e Michelle de Freitas

Bissoli (orientadora), a utilizar as fotografias do (da) meu (minha) filho (filha) produzidas

durante a pesquisa, com a devida identificação, para fins científicos e de estudos (tese, livros,

artigos e slides), em favor das pesquisadoras acima especificadas, obedecendo ao que está

previsto nas Leis que resguardam os direitos das crianças e adolescentes (Estatuto da Criança e

do Adolescente – ECA, Lei N.º 8.069/ 1990).

Manaus, _____ de __________ de _______.

_______________________________

Pai e/ou responsável

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APENDICE D - TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM E

IDENTIDADE PARA A PROFESSORA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM E IDENTIDADE –

PROFESSORAS

Eu_________________________________, CPF____________, RG________________,

depois de conhecer e entender os objetivos, procedimentos metodológicos e benefícios da

pesquisa que se chama “Interações e o desenvolvimento da linguagem oral na creche: uma

abordagem histórico-cultural”, especificados no Termo de Consentimento Livre e

Esclarecido (TCLE), bem como de estar ciente da necessidade do uso de minha imagem e

identificação, AUTORIZO, através do presente termo, as pesquisadoras Arlene Araújo

Nogueira e Michelle de Freitas Bissoli (orientadora), a utilizar minhas fotografias produzidas

durante a pesquisa, com minha identificação, para fins científicos e de estudos (tese, livros,

artigos e slides), em favor das pesquisadoras acima especificadas.

Manaus, _____ de ___________ de ______.

_______________________________

Professora

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APENDICE E – ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA COM AS

PROFESSORAS

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA COM AS PROFESSORAS

Pesquisa: Interações na educação infantil: o trabalho de educar cuidando em uma creche

pública da cidade de Manaus

1. Qual a sua formação?

2. Quanto tempo de experiência você tem na área de educação e na educação infantil?

3. Há quanto tempo você atua na rede deste município? E nesta creche?

4. Com se deu a escolha para o trabalho com essa faixa etária?

5. O que esperar das crianças nessa etapa de desenvolvimento?

6. O que você mais gosta no trabalho com os bebês? Por quê? Tem algo que não gosta?

7. Qual a função da creche para as crianças dessa idade?

8. O que você entende como proposta educativa para crianças dessa idade?

9. O que as crianças dessa idade deveriam aprender na creche?

10. Para você, o que significa cuidar e educar na creche?

11. Como você vê as interações que se dão entre você e as crianças e das crianças entre

elas?

12. Em sua opinião, qual o papel dessas interações para o desenvolvimento das crianças?

13. Para você, nos vários momentos da rotina da creche, as crianças têm a oportunidade de

estabelecer interações com você e também entre elas? De que maneira?

14. Para você, de que modo a formação continuada pode contribuir para seu trabalho de

educadora infantil?

15. A rede municipal tem proporcionado a você possibilidade de formação continuada? De

que maneira?

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ANEXOS

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ANEXO A – PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP

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ANEXO B – CARTA DE AUTORIZAÇÃO SEMED

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ANEXO C – QUADRO DA ROTINA DA CRECHE

PREFEITURA MUNICIPAL DE MANAUS SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO- SEMED

DIVISÃO EDUCACIONAL – IV CRECHE MUNICIPAL MARIA FERREIRA BERNARDES

TURNO MATUTINO

HORÁRIO TEMPO

ESTIMADO

ATIVIDADE

7h às 7h15 15min/tolerância Entrada dos alunos

7h15 às 7h45 30min DESJEJUM

7h45às 8h 15min Escovação

8h as 8h30 30 min Banho de Sol

8h30 às 9h 30min Atividade Permanente

9h às 9h30 30min LANCHE

9h30 às 10h 30min Atividade Permanente

10hás 11h 1h Banho

11hàs 11h30min 30min ALMOÇO

11h30 as 13h30 – 2h - Repouso

TURNO VESPERTINO

13h30 às 14h 30min LANCHE

14h às 14h30 30m Atividades

Diversificadas/Direcionadas

14h às 15h 1h Hora do Banho

15h as 15h30 30min JANTAR

15h30 15min Escovação

16h - Saída

ROTINA ESCOLAR