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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo -‐ SP – 05 a 09/09/2016
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Sonhos e sintomas dos jovens estagiários1
Isabel Vieira LOPES2 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Resumo Este artigo pretendeu, sob os conceitos da semiótica, analisar a construção do imperativo do sucesso e da performance, e a captura dos corpos pelas empresas nas campanhas de processo seletivo de estágio das 3 das 10 empresas mais desejadas pelos jovens, contrapondo-a com uma pesquisa realizada com 130 universitários sobre os excessos de trabalho e as motivações por trás de tal auto exploração. Foram utilizados autores como Nietzsche, Flusser, Freire Filho e Chul-Han. Ao longo da pesquisa, vimos que 67% dos estudantes consideram sucesso profissional o mais importante em suas vidas e que as empresas criam discursos modalizadores afetivos para capturar os corpos. O lado negativo é que as empresas reduzem o tempo livre dos jovens, já que 43% ficam mais de 2 horas além do horário por reconhecimento e 73% acham que isso influenciará na contratação. É preciso pensar em limites. Palavras-chave: Trabalho; imperativo do sucesso; semiótica discursiva
INTRODUÇÃO
O papel do trabalho na humanidade sofreu diferentes transformações ao longo do tempo e
só recebeu validade social gradualmente, como aponta Lowith (2014). Até o início do
século XV, por exemplo, as sociedades gregas e romanas consideravam o trabalho uma
prática ligada apenas às necessidades básicas da sociedade e era uma forma de tortura e
privação da liberdade e grandeza do ser humano. Já para os cristãos, o trabalho era uma
consequência direta do pecado e do castigo, sendo símbolo de penúria, fadiga e sofrimento.
Foi aos poucos que essa visão mudou e que o trabalho passou a ser percebido, em
meados do século XVIII, como um esforço físico e intelectual que almejava algum objetivo
com potência de transformação da sociedade. Agora o trabalho burguês preenche de sentido
a vida humana e “[...] se transformou no meio preferível para atingir a satisfação e o
sucesso, a fama, o gozo e a riqueza. O homem da época burguesa não apenas deve, mas
1 Trabalho apresentado no IJ 02 - Publicidade e Propaganda do XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestranda em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e graduada em Comunicação Social pela ESPM. E-mail: 2 Mestranda em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e graduada em Comunicação Social pela ESPM. E-mail: [email protected]
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quer trabalhar, pois uma vida sem trabalho não parecia digna de ser vivida” (Lowith, 2014,
p.288).
Foi ao longo da era industrial que o trabalho começou a ser extremamente
valorizado por possibilitar a ampla transformação da natureza, das coisas e da sociedade, e
por fazer do labor um símbolo da liberdade. Agora, a existência exacerbada do capital
constitui a própria existência e vida humana, isto é, o trabalhador ao viver somente pela
mercadoria e pelo capital, tornou-se alienado e produtor não apenas de bens, mas de si
mesmo, fazendo do sujeito capitalista um escravo de seu próprio trabalho (Hegel apud
Lowith, 2014).
Deste modo, o trabalho permanece um aspecto fundamental da manutenção do
sistema produtivo e dos aparelhos ideológicos hoje em dia, e muitas virtudes, afetos e
efeitos benéficos foram atribuídos ao trabalho com a ajuda da mídia, do Estado e da própria
sociedade para lhe dar sentido e para fazer caminhar este agenciamento maquínico que
inclui não apenas a produção de bens, mas também a mistura e captura de corpos
(Lazzarato, 2006). É o caso não apenas da busca por riqueza, bens de consumo e status,
como também da busca por identidade, propósito de vida, integração social e comando do
próprio destino. Como resume Morin (2001), há alguns motivos que dão sentido e
motivação ao trabalho: “realizar-se e atualizar competências; adquirir segurança e ser
autônomo; relacionar-se com os outros e estar vinculado a algum grupo; contribuir com a
sociedade; ter um sentido na vida, o que inclui ter o que fazer e manter-se ocupado”
(Oliveira et al., 2004).
A atribuição destes sentidos ao trabalho explica como uma pesquisa do grupo MOW
(Meaning of Work), analisado por Oliveira (2004) apontou que a maioria das pessoas
continuariam a trabalhar mesmo que tivessem condições para viver o resto da vida sem
fazê-lo. Ao verem no labor uma fonte de pertencimento, integração e, ainda, um objetivo a
ser atingido na vida, elas se submetem às suas rotineiras jornadas de trabalho sem
pestanejar. Este fenômeno acontece principalmente em virtude da passagem do trabalho
material ao imaterial, que colocou o capital humano como força produtiva principal, isto é,
o conhecimento individual, a ciência, as artes, as habilidades sociais, a capacidade de
improvisação e as qualidades de comportamento, expressivas e imaginativas (Gorz, 2005).
Esse modelo vigente faz com que os indivíduos deixem de ser apenas uma força de
trabalho para se tornar uma verdadeira empresa, um Eu S/A que deve constantemente se
modernizar, ampliar, valorizar e aperfeiçoar para se manter no mercado. Este auto
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empreendedorismo, ainda, fez surgir novos modelos de gestão empresarial, como o
cumprimento de objetivos por metas e não mais exclusivamente pela quantidade produzida.
Nesse sentido, é devendo se tornar produtor da própria vida em um mercado altamente
competitivo que o sujeito vive em busca do seu sucesso e reconhecimento.
A CAPTURA DOS CORPOS NO ESTÁGIO
Com os jovens analisados neste artigo a situação não é diferente. De acordo com
uma pesquisa realizada em 2016 pela Cia de Talentos com mais de 63 mil graduandos e
recém-formados, o mais importante em suas vidas é o sucesso profissional (67%) em
virtude da paixão pelo que fazem, pelo prazer diário no trabalho e por acreditarem que
fazem a diferença por meio de seus empregos. É neste sentido que os jovens se debruçam
sobre essas narrativas ficcionais de sucesso, performance e carreira dos sonhos para
sobreviver e dar sentido às suas vidas; 18% deles querem um trabalho significativo, outros
18% almejam reconhecimento no trabalho e 24% querem planos de aceleração de carreira
por parte das empresas.
A pesquisa aponta ainda como é importante para os jovens deixar um legado no
mundo e o desejo desses profissionais pelo “máximo desempenho físico, mental e
emocional”. Para alcançar esse legado, os jovens querem trabalhar em outros países (77%),
ter cargos de liderança nas empresas onde trabalham (37%) e abrir seu próprio negócio
(37%), mesmo que só 14% tenham começado de fato a se estruturar para isso ao longo dos
últimos 12 meses.
As empresas tem um papel importante e decisivo nesse empreendimento de si, já
que 50% dos jovens tem uma empresa do sonho em que acreditam poder se desenvolver
profissionalmente, alcançar uma boa imagem no mercado e ter uma carreira recheada de
desafios e propósito (em 2012 esse número era de 77%, uma queda que pode ser atribuída
ao desejo dos jovens por construir seu próprio negócio, como vimos). Mas como esses
jovens são atraídos pelas empresas mais desejadas? Que conjunto de enunciados, emitidos
não apenas pela mídia que dá aos jovens mapas e guias modalizadores do sucesso com seus
“passo a passo”, dicas, conselhos e frases motivadoras, como também pelas próprias
empresas, são criados e emitidos aos jovens? Observaremos essa construção através das
descrições de processos seletivos de estágio das empresas do sonho Google (1a), Ambev
(5a) e Natura (10a).
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Tomaremos para esta análise os conceitos da semiótica discursiva, que permite
compreender os esquemas de organização comuns entre os diferentes discursos aqui
analisados. Entendida como uma teoria que procura explicar os sentidos do texto pelo
exame do seu plano de conteúdo e de expressão, ela se torna relevante para
compreendermos a construção dos discursos que tem por objetivo capturar os corpos no
trabalho, como é o caso deste artigo (Barros, 2005).
Em primeiro lugar, é válido destacar que em todas as descrições dos processos
seletivos de estágio analisadas temos um enunciador empresa que se dirige a um
enunciatário jovem universitário em busca de um estágio. Através de um programa de base
de manipulação, a empresa fornece ao jovem todas as informações que julga necessárias
para que o enunciatário entre em perfeita conjunção com a empresa e se candidate ao
programa de estágio, considerado o objeto de valor dessa enunciação.
Em geral são fornecidas informações breves sobre a empresa, a descrição do
programa de estágio e suas funções e objetivos, as etapas do processo seletivo (que variam
de empresa a empresa, mas que no geral inclui provas online de conhecimentos gerais e de
perfil do candidato, dinâmicas de grupo e entrevistas com os gestores da companhia) e
depoimentos de atuais estagiários da empresa sobre a experiência que estão tendo.
O tom usado pelas empresas é sempre eufórico, alegre e positivo, ao mesmo tempo
que firme e sério ao tratar do futuro profissional de um candidato. O enunciatário é a estrela
do discurso. Ele é colocado sempre em primeiro plano, como protagonista de sua carreira,
em que a empresa é apenas um suporte para que o jovem alcance seus sonhos e objetivos.
O enunciador sempre deixa claro sua imponência no mercado para seduzir o
enunciatário; o Google aponta que um funcionário pode fazer a diferença na vida de mais
de 425 milhões de usuários, a Ambev convida a trabalhar “com as marcas que você adora”,
mostrando em uma tabela marcas conhecidas de bebida, como Skol, Brahma, Guaraná e
Budweiser, e a Natura mostra em números o tamanho do seu corpo de funcionários e da sua
presença ao redor do mundo, se declarando “a maior empresa multinacional Brasileira de
produtos de beleza e higiene pessoal”.
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Figura 01 – Detalhe da página de estágio do Google
O estagiário, mesmo no início de sua carreira, pode ser protagonista de toda essa
potência produtora da empresa. O Google destaca, como visto na figura 01, que o novo
funcionário pode ser a voz dos produtos e serviços da empresa, pode ser campeão da sua
cultura corporativa, transformar produtos inovadores em soluções para clientes e apontar o
futuro da companhia. Tudo isso participando, como destacam Ambev e Natura também, da
rotina da empresa, de projetos inovadores e de processos importantes.
Neste sentido, os enunciadores empresas tem o papel de formação de competências
e de provocar a “sonhar grande e realizar sem limites”, como destaca a Ambev. O Google
instiga a aquisição de saberes ao dizer que “os estagiários no Google trazem questões e
constroem respostas”, enquanto a Natura demonstra isso ao dizer que seu programa de
estágio “tem como objetivo promover uma jornada de aprendizado aos participantes, o
exercício do aprender fazendo, da experimentação pratica, compartilhando aprendizados e
conhecimentos”. Segundo a empresa, o estagiário será desenvolvido em competências
técnicas e comportamentais, como resiliência, capacidade de construir e manter
relacionamentos, protagonismo e comprometimento com a resolução de problemas.
O papel destes pontos que constroem o discurso do programa de estágio é a
estratégia sensível de “[...] racionalização dos afetos como estratégia, como modo de
persuadir, seduzir o outro” (Freire Filho, 2011, p.195), isto é, o discurso é criado com base
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na imersão nos universos simbólicos do consumo e na sua profusão de apelos à
sensibilidade, aos sentimentos e desejos latentes e fetichistas dos jovens que querem ser
estagiários em grandes empresas. Essa construção de afetos ao trabalho é o que fará a
máquina produtiva girar, por assim dizer, já que haveria uma conjunção entre um
funcionário que quer se desenvolver e se tornar um grande profissional e uma empresa que
quer desenvolver um funcionário para melhorar seus resultados.
Um outro aspecto importante das páginas de programa de estágio são os
depoimentos dos funcionários. Eles são exemplos de sanções positivas do discurso que o
enunciador está propondo ao enunciatário, buscando criar um efeito de verdade ao mostrar
ao leitor que aquela empresa vai lhe proporcionar experiências fundamentais para seu
sucesso profissional.
Figura 02 - Ambev
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Um dos depoimentos da Ambev, por exemplo e como visto na figura 02, é: “Na hora do
café, ouvi gente que não me conhecia comentando sobre um projeto ‘superinteressante’ que
estava rolando. Era meu! E eu tinha acabado de chegar”.
Aqui se destaca o protagonismo do jovem estagiário que quer sucesso profissional e
ser reconhecido, como vimos na pesquisa da Cia de Talentos. Com o desejo de ter uma
carreira acelerada, o jovem destaca que logo nos primeiros momentos de sua experiência
como estagiário já entrou em contato com projetos importantes e de destaque dentro da
empresa, recebendo uma sanção positiva dos colegas sobre sua performance.
Figura 03 - Natura
Ao contrário dos dois únicos depoimentos que a Ambev mostra em seu site, a
Natura mostra uma coleção de 9 estagiários atuais e recém efetivados, que são perguntados
tanto como é ser estagiário na empresa quanto quais são os seus principais desafios. Aqui
todos destacam como a Natura é um ótimo lugar para trabalhar, pelo clima e cultura da
empresa, pela preocupação com o desenvolvimento do estagiário, pela oportunidade de
aprendizado diário e amadurecimento. Conforme reflete Sibilia (2008), o eu aqui se projeta
em extimidade, ou seja, suas intimidades são expostas para a construção midiatizada do self.
Suas realidades são ressignificadas como forma de gestão de si como marca e com a
intencionalidade da empresa em produzir um efeito de proximidade entre o enunciatário
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que já foi conquistado, por assim dizer, pela empresa, e o que ainda será e ainda está lendo
o site para se inscrever no programa de estágio.
Neste momento, as empresas constroem seus discursos modalizadores ao redor de
pontos nodais (Laclau e Mouffe, 2015) como desenvolvimento profissional,
experimentação prática relevante e protagonismo na empresa, ao convidar os estagiários a
participarem de projetos de destaque na companhia. Tudo colabora para transformar as
empresas no lugar perfeito para se trabalhar. Aquele em que todos os seus funcionários são
felizes, bem dispostos, proativos e comprometidos com o bem-estar e desenvolvimento um
do outro. Por mais que a realidade cotidiana seja diferente, ela não é e nem será exposta
aqui. Ela é tamponada e deixada para depois.
O site LoveMondays3, famoso por reunir o feedback dos funcionários sobre as
empresas em que trabalham, destaca alguns dos lados negativos que são tamponados por
Google, Natura e Ambev. A falta de respeito com folgas semanais e banco de horas, a
extensa jornada de trabalho por metas muito agressivas, o ambiente extremamente
competitivo que afeta as relações interpessoais, a pressão, o estresse e a baixa remuneração
são alguns dos lados negativos apontados pelos trabalhadores dessas empresas. Um ex-
funcionário do Google comentou, por exemplo, que a pressão por resultados é tão grande
que “mesmo você batendo a meta, ainda tem a cobrança de bater em 120, 130, 140%”.
Outro, que trabalhou na Natura, afirma que “todos são considerados como funcionários
24/7/365. Não passei um final de semana sem ter que atender o telefone durante meu
horário de descanso”. Já a Ambev é conhecida pelo seu modelo árduo de trabalho. Os
funcionários citam, além da falta de tempo para a vida pessoal e a baixa preocupação com a
qualidade de vida dos funcionários, um modelo de “trabalho duro e intenso, sem horários.
Acostume-se a trabalhar aos sábados e receber ligações a qualquer hora do dia. Baixa
remuneração pelo tanto de horas trabalhadas”, diz um ex-funcionário da área de vendas da
companhia.
Mas ali, naquele momento de sedução do jovem estagiário, a empresa cria a
fantasia de lugar perfeito para os objetivos do enunciatário, tornando o contraste dessa
diferença entre expectativas e realidade importante para nós nessa reflexão. Para esse
artigo, fizemos uma pesquisa com 130 estagiários de diferentes empresas, sendo 51% de
3 Site brasileiro que reúne milhares de opiniões anônimas de funcionários sobre as empresas onde trabalham, como salário, cargo, ambiente de trabalho, cultura da empresa e outros pontos. Disponível em www.lovemondays.com.br
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grande porte e 27% médio porte, principalmente nas áreas de marketing e comunicação de
empresas de bens de consumo e agências de publicidade situadas em São Paulo.
Destes pesquisados, todos já trabalharam além do seu horário contratual, em média
3,2 dias da semana e 2 horas a mais do que o estipulado pela empresa (43%). Além da
habitual pressão por resultado e performance, quando questionados pelas motivações que os
faziam permanecer em seus trabalhos após o horário, 52% disseram querer ser reconhecidos
pelo esforço, 34% apontaram que mais ninguém poderia fazer o que fazem (por mais que
geralmente as tarefas atribuídas aos estagiários sejam de baixa complexidade), 33% querem
ser contratados e vistos como alguém responsável dentro da empresa, 31% são pressionados
pelo chefe e outros 21% ficam porque outros estagiários também permanecem na empresa
após o expediente.
Aqui voltamos ao fato de que 67% dos jovens consideram sucesso profissional o
mais importante em suas vidas. A que preço? Conforme reflete Nietzsche em A Gaia
ciência, “se vive como alguém que está sempre perdendo alguma coisa. Antes fazer algo
que não fazer nada” (Nietzsche, 2012, p.193). Nos envergonhamos do repouso e a reflexão,
como reflete o filósofo, nos causa remorso. No pouco tempo livre que temos, estamos
cansados e queremos não apenas chegar nesse horário do dia, como também nos deitar
“longa, larga e pesadamente”.
A busca pelo sucesso é árdua, longa e, em certo sentido, permanente, pois sempre
haverão novas formas de ser reconhecido. Um cargo novo, um prêmio, uma palestra, uma
vaga exclusiva no estacionamento, uma palavra positiva de algum colega. Tudo colabora
para o imperativo da felicidade, aquele que se escancara nos mapas modalizadores, guias,
livros de auto ajuda, programas de televisão e blogs, como o melhor dos mundos possíveis.
A educação à performance, ao sucesso e ao reconhecimento começa já na disciplina
escolar, que “[...] tende a ser cada vez mais um tipo de reprodução da disciplina do trabalho
com o objetivo último de inculcar o conhecimento técnico necessário à manutenção do
modo de produção econômico” (Freire Filho, 2011, p.16). Ao crescer, o indivíduo está
pronto e estimulado a uma entrega ilimitada ao labor produtivo, na busca pelo permanente
desenvolvimento de si de modo que conquistem posições privilegiadas e de vantagem nas
relações de concorrência que existem em todas as esferas da vida.
Como o objetivo do estagiário é ser contratado ao final do seu período na faculdade,
73% disseram que ficar além do horário vai ter um impacto positivo na sua possível
contratação. Ainda, 92% declararam nunca ter reportado os excessos de trabalho aos
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responsáveis pela área de Recursos Humanos, mas 81% disseram conhecer as leis de
estágio, que apontam a responsabilidade das empresas pelo cumprimento rigoroso do
horário estipulado no contrato, a fim de não prejudicar os estudos dos estagiários.
Por que os jovens se submetem a tal tipo de jornada de trabalho desde cedo em suas
carreiras? Alguns consideram que essa é uma prática importante para mostrar que são
essenciais às empresas. Como declara um deles, “isso era bem visto na minha empresa.
Quem sai no horário não esta trabalhando o suficiente”. Outros são levados pelo medo: “Na
realidade não sinto que há um impacto positivo se fico, mas certamente existe um negativo
se não fico além do horário estipulado por lei”. O compromisso pela entrega, a
demonstração de esforço, responsabilidade e o desejo e fazer o melhor para ser reconhecido
estão entre os motivos mais citados pelos jovens pesquisados, que se preocupam muitas
vezes mais com os resultados da empresa do que com suas próprias vidas: “Isso mostra que
sou proativa! E o mais importante é o sucesso da empresa do que ir para casa no horário”.
Neste ponto é interessante notar como a ficção da realidade criada pelo trabalho
ainda denota muito do trabalho material, em que quantidade de trabalho era uma importante
fonte de mensuração de performance. Aqui não importa a qualidade do trabalho dedicada
ao longo das seis horas legais de estágio, mas o quanto a mais o funcionário fica na empresa
para mostras qualidades que, teoricamente, não poderiam ser mostradas ao longo do seu
horário. Ao que parece, comprometimento, resiliência, esforço, proatividade, criatividade,
determinação e responsabilidade são características que só podem ser transmitidas aos
superiores da empresa após o expediente.
Conforme o depoimento de um dos pesquisados, “as pessoas da empresa
normalmente já ficam além do horário (incluindo estagiários). Se tornou parte da cultura da
empresa considerar que pessoas que vão embora cedo não trabalham o suficiente”. Ainda,
ficar além do horário parece importante porque “mostra que você está disposto a ir além de
seus limites. Mostra que se existes algo a ser feito, você é alguém que se pode contar. É
quase que uma questão de confiança com seu chefe, uma parceria”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa cultura do excesso de trabalho demonstra o que Hegel declarou sobre sermos
escravos do capitalismo. Sobre sermos verdadeiros animais de rebanho nietzschianos, que
não conseguem se desvencilhar das narrativas criadas para sustentar a máquina capitalista e
apenas se submetem à ordem já estabelecida. O trabalhador moderno não reflete os valores
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e morais que sustentam sua existência, pois ele precisa apenas continuar existindo e se
desenvolvendo para não ficar para trás, como diria Bauman (2009). Esse efeito da busca
pela criação de um indivíduo único e singular, faz com que eles se tornem “[...] estritamente
semelhantes a todos os outros pelo fato de terem de seguir a mesma estratégia de vida”
(Bauman, 2009, p.26).
Deste modo, nos inserimos em uma sociedade que o filósofo Byung Chul-Han
chama de sociedade do cansaço. Para ele, cada época possuiu suas enfermidades
fundamentais. A bacteriológica chegou ao fim com a descoberta dos antibióticos. A viral
teve seu fim com o desenvolvimento de técnicas imunológicas. Por fim, a neuronal é a que
vivemos. Ela é marcada por doenças como a hiperatividade, o transtorno de personalidade
limítrofe, o burnout, a pressão exacerbada, o estresse, a ansiedade, os ataques cardíacos e
infartos.
Para o autor, esse fenômeno acontece pelo excesso de positividade que atinge nossa
sociedade permissiva e exaustiva, que mostra aos indivíduos que tudo pode ser possível e
alcançável desde que haja esforço para tal. Com a necessidade da iniciativa e
desenvolvimento pessoal, em que cada um se compromete a tornar-se si mesmo, o
indivíduo se encontra esgotado pelo esforço excessivo de se construir, se diferenciar e se
destacar na sociedade. Conforme o filósofo comenta, “o que causa a depressão do
esgotamento não é o imperativo de obedecer apenas a si mesmo, mas a pressão de
desempenho” (Chul-Han, 2015, p.27).
Deste modo, o excesso de estímulos, informações e impulsos fragmenta e destrói a
ação, gerando uma sobrecarga de trabalho que não representa nenhum progresso
civilizatório. Os novos modelos flexíveis de empresa, como o próprio Google, que foi
analisado aqui, e que oferece horário flexível de trabalho, comida à vontade, permite
animais no escritório, tem uma decoração alegre e jovem, e espaços lúdicos de relaxamento
e descontração, também não são tão inofensivos como parecem, já que são estratégias
utilizadas para manter os funcionários sob controle e dentro do escritório, motivados e
felizes para que realizem seus projetos à tempo e entreguem cada vez mais, como
analisamos em outras oportunidades (Lopes, 2016).
Em um cenário em que a realidade ainda é de jovens que trabalham além do horário
quando deveriam se dedicar também aos estudos, aos momentos de lazer e reflexão sem
culpa, como sugeriria Nietzsche, deveríamos não apenas refletir sobre essas práticas que
exploram o trabalho dos jovens e os submetem à pressão de acharem que estão
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demonstrando qualidades exigidas pelas empresas apenas ao trabalharem fora do horário,
mas também criar um diálogo positivo e reflexivo em faculdades e empresas. O lucro
continuará existindo e crescendo, os profissionais continuarão motivados, os acionistas
permanecerão felizes, e as pessoas poderão ver que a vida, vai muito além do dia a dia do
labor.
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