Interpretação Clínica do Hemograma nas...

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Interpretação Clínica do Hemograma nas Infecções NEWTON KEY HOKAMA Médico hematologista-hemoterapeuta da Divisão Hemocentro da Faculdade de Medicina (Unesp) - Botucatu, São Paulo. PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO Professor titular de Hematologia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina (Unesp) - Botucatu, São Paulo. Por que analisar o sangue? No PaleolíticoSuperior. um hominídeo registrou, nas paredes de uma caverna (em Trois-Frêres. França).o que interpretamos como a primeira evidência (pré) histórica da relação entre o sangue e os fatos da vida: um animal ferido por inúmeras setas e pedras, sangrando pela pele, boca e nariz. Na Antiguidade, os médicos gregos notaram que o sangue de algumas pessoas doentes coagulava rapidamente, e formava uma lenta crusta phlogistica. considerada como o humor responsável pelas doenças, base "fisiopatológica" das sangrias como "medida terapêutica" . No século XVII, Anton van Leeuwenhoek, ao desenvolver o microscópio. inaugura a análise citológica do sangue.Sahli. no século passado. desenvolveu método para dosagem de hemoglobina, com base na propriedade pigmentar desta molécula. Paul Ehrlich, também no século passado, com suas pesquisas. desenvolveu colorações para os leucócitos. permitindo a identificação das células sangüíneas como as conhecemos até os dias de hoje. A simples observação da decantação dos eritrócitos em sangue anticoagulado in vitro (velocidade de hemossedimentação ou VHS) começou a ser utilizada como parâmetro de atividade de doença no início deste século. Além do fascínio que o sangue sempre exerceu sobre a curiosidade humana, a facilidade em obter amostras para análise, seja através da punção digital. venosa. arterial ou até por sangria cruenta, permitiu sua instrumentalização na análise laboratorial. Mas a utilidade do hemograma (a análise citológica do sangue através de parâmetros laboratoriais qualitativos e quantitativos) na prática médica se baseia nas seguintes constatações: · Com freqüência as alterações sangüíneas (quantitativas e qualitativas) ocorrem secundariamente a.2s processos patológicos (de natureza local ou sIStêmica). · As alterações sangüíneas podem ser monitorizadas, permitindo a análise evolutiva dos processos patológicos. · As doenças primárias do sangue se manifestam predominantemente por alterações qualitativas (morfológicas) e(ou) quantitativas. O que é sangue? É um tecido constituído de: /Eritrócitos · Células-Plaquetas /Linfócitos '-Leucócitos,Monócitos /Eosinófilos Granulócitos" Neutrófilos Basófilos · Plasma (água,nutrientes, eletrólitos. catabólitos, hormônios. proteínas. lipídeos, etc.) 38 MARÇO, 1997 !Em) VOL.72 · N?3

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Interpretação Clínicado Hemograma nas Infecções

NEWTON KEY HOKAMAMédico hematologista-hemoterapeuta da Divisão Hemocentroda Faculdade de Medicina (Unesp) - Botucatu, São Paulo.

PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADOProfessor titular de Hematologia do Departamento de ClínicaMédica da Faculdade de Medicina (Unesp) - Botucatu, SãoPaulo.

Por que analisar o sangue?

No PaleolíticoSuperior. um hominídeoregistrou, nas paredes de uma caverna (emTrois-Frêres. França).o que interpretamos como aprimeira evidência (pré) histórica da relaçãoentre osangue e os fatos da vida: um animal ferido porinúmeras setas e pedras, sangrando pela pele,boca e nariz.

Na Antiguidade, os médicos gregos notaramque o sangue de algumas pessoas doentescoagulava rapidamente, e formava uma lentacrusta phlogistica. consideradacomo o humorresponsável pelas doenças, base "fisiopatológica"das sangrias como "medida terapêutica" .

No século XVII,Anton van Leeuwenhoek, aodesenvolver o microscópio. inaugura a análisecitológica do sangue.Sahli. no século passado.desenvolveu método paradosagem dehemoglobina, com base na propriedade pigmentardesta molécula. Paul Ehrlich, também no séculopassado, com suas pesquisas. desenvolveucolorações paraos leucócitos. permitindo aidentificação das células sangüíneascomo asconhecemos até os dias de hoje.

A simples observaçãoda decantaçãodoseritrócitos em sangue anticoagulado in vitro(velocidadede hemossedimentação ou VHS)começou a ser utilizadacomo parâmetro deatividade de doença no início deste século.

Além do fascínio que o sangue sempre exerceusobre a curiosidade humana, a facilidade emobter amostras paraanálise, seja através dapunção digital. venosa. arterial ou até por sangriacruenta, permitiu sua instrumentalizaçãona análiselaboratorial.

Mas a utilidade do hemograma (aanálisecitológica do sangue através de parâmetroslaboratoriaisqualitativos e quantitativos) na práticamédica se baseia nas seguintes constatações:

· Com freqüência as alterações sangüíneas(quantitativas e qualitativas) ocorremsecundariamente a.2sprocessos patológicos (denatureza local ou sIStêmica).

· As alterações sangüíneas podem sermonitorizadas, permitindo a análise evolutivados processos patológicos.

· As doenças primárias do sangue se manifestampredominantemente por alteraçõesqualitativas(morfológicas)e(ou)quantitativas.

O que é sangue?

É um tecidoconstituído de:

/Eritrócitos· Células-Plaquetas /Linfócitos

'-Leucócitos,Monócitos /EosinófilosGranulócitos" NeutrófilosBasófilos

· Plasma(água,nutrientes, eletrólitos.catabólitos, hormônios. proteínas. lipídeos, etc.)

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Como o sangue é produzido?

As células sangüíneassão produzidasnamedula óssea, originárias, em comum, de umapopulaçãode células pluripotentes (célulastronco).que produzem células progenitoras específicaspara as séries mielóide (eritróide, granulocítica,monocitária, plaquetáría)e linfóide, recrutadasapartir de estímulos especificos que controlam aproliferação. A diferenciação ocorre através daexpressão gênica diferenciada de cadacélulaprogenitora específica.

Devido à sobrevida relativamente curta destascélulas, a taxa de proliferação na medula óssea é amaior do organismo. Além disso, a produção dascélulas pode aumentar em até seis a 10 vezes, emcircunstâncias de maior demanda.

Quais são os dados do hemograma?

Eritrograma

Contagem de glóbulos vermelhos - Milhões pormm3de sangue.Dosagem de hemoglobina - g/1OOmlde sangue.Hematócrito - Relação(%) volumeglobular/volume sangüíneo.Volume corpuscular médio - Fentolitro.Hemoglobina corpuscular média - Picograma.Concentração de hemoglobina corpuscular média- g/1OOmlde sangue.Percentual de reticulócitos - % em relaçãoaototal de glóbulos verm~lhos.Descrição morfológica dos eritrócitos.

Leucograma

Contagem de leucócitos - Milhares por mm3desangue.Contagem diferencial dos leucócitos (relativa eabsoluta).Descrição morfológica dos leucócitos.

Plaquetograma

Contagem de plaquetas - Milhares por mm3desangue.Descrição morfológica das plaquetas.

Comentários

Descrição do observado no esfregaço e sobre oconjunto de descrições.

Qual a relação entre infecção e hemograma7

A proliferação de microrganismosdesencadeará. no tecido infectado, um conjunto

de alterações como resposta do hospedeiro frenteà agressão,que se denomina resposta de faseaguda.

_~ s células sangüíneas são produzidas namedula óssea,originárias, em comum, deuma população de célulaspluripotentes(célulastronco), que produzem célulasprogenitoras específicaspara assériesmielóide {eritróide,granulocítica,monocitária, plaquetáriaJe linfóide,recrutadasa partir de estímulosespecíficosque controlam a proliferação.A diferenciaçãoocorre através daexpressãogênica diferenciada de cadacélula progenitora específica

Esta resposta envolve o organismo como umtodo, independentemente do tecido injuriado.Embora o fígado seja órgão importante, devido àprodução das principaisproteínas que regulamesta resposta (ex.:proteína C-reativa).a medulaóssea tem contribuiçãofundamental na efetivaçãodo processo inflamatório,através da liberação eaumento na produção dos leucpcitos,principalmente os neutrófilos. E esta respostamedular que podemos observar no hemograma.

Como o tecido infectado se comunica com amedula óssea?

Os monócitos são células mononuclearesproduzidas na medula óssea. Quandoamadurecem, são liberados para o sangue e, apósalgumas horas em circulação (de 36 a 106 horas).entram nos diversos tecidos do organismo e setransformam em macrófagos teciduais. Estesmacrófagos podem sobreviver meses nos tecidos.

Macrófagos teciduais

Fígado: células de Kupffer.Macrófagos do baço, linfonodos e sinusóidesmedulares.Sistema nervoso central: microglia.Rim: células mesangiais.Osso: osteoclastos.Pleura: macrófagos pleurais.Pulmão: macrófagos alveolares.

A morte tecidual secundária à invasão dosmicrorganismos e a própria presença dos

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patógenos desencadearã9a produção deglicoproteínas IL-l (interleucina-l) e FNT-a (fatorde necrose tumoral a) pelos macrófagos teciduais,que atuarão em nível local e a distância, através daliberação destas moléculas parao sangue. Estassubstâncias estimularão células mesenquimais(células endoteliais, fibroblastos), linfócitos eoutros monócitos para produzirem IFN (interferon),GM-CSF (granulocytic and monocytic - colonystimulating factor) e G-CSF(granulocytic - colonystimulating factor), fatores de crescimento queincrementarão a produção de monócitos eneutrófilos pela medula óssea.

o s monócitos são células mononuclearesproduzidas na medula óssea. Ouandoamadurecem, são liberados para o sanguee, após algumas horas em circulação(de 36 a 106 horas), entram nos diversostecidos do organismo e se transformamem macrófagos teciduais. Estesmacrófagos podem sobreviver meses nostecidos

Por que aumentar a produção de neutrófilos?

Os neutrófilos segmentados ou maduros sãocélulas móveis, fagocíticas, com a funçãoespecializadade destruir microrganismos. Sãoconstituídos de três tipos principais de grânulos(primários, secundários e terciários), que contêmenzimas digestivas. Morfologicamente apresentamnúcleo filiforme, segmentado e sem capacidadede replicação;a coloração habitualmente utilizada(Wright e derivados) revela cor levementecinza-rosadado citoplasma, que difere da acidofilia(eosina)dos grânulos dos eosinófilos, e dabasofilia dos grânulos dos basófilos, característicaque justifica o seu nome (grânuloscom afinidadeneutra para corantes).

Os neutrófilos são, verdadeiramente, ossoldados (Infantaria)do processo inflamatório.Produzidose armazenadosna medula óssea, sãoliberados para o sangue periférico através demediadores químicos produzidos pelo processoinflamatório. Receptores presentes em suasuperfície permitem a entrada e migração dosgranulócitos nos tecidos lesados através dasvênulas pós-capilaresadjacentes ao tecidoinflamatório.

As células endoteliais, estimuladas pela IL-l eFNT,expressam selectinas E e P e ICAM-l(intercellular adhesion molecule-1), que fixam ogranulócito neste local e iniciam sua ativação.Aderidos ao endotélio, os neutrófilos destruirão aintegridade da membrana basal subendotelial coma liberaçãode proteases e a penetrarão.

O tecido injuriadotambém produzirásubstâncias quimiotáticas solúveis, tais comopeptídeos bacterianos, fragmento C5a, IL-8 eLTB4,que sinalizam e controlam a movimentaçãodos neutrófilos em direção ao processoinflamatório.

A fagocitose da bactéria pelo neutrófilo ocorrepela mediaçãode opsoninas (imunoglobulinasefragmentos C3b do complemento). A palavraopson, derivada do grego, traduz sua natureza:aperitivo! ! !

A bactéria fagocitada permanecerá no interiorde uma vesícula fagocítica, revestida pelamembrana do granulócito. A fusão com asvesículas que contêm os grânulos e as enzimasformará o vacúolo digestivo, destruindo omicrorganismo.

De maneira inversa ao eritrócito, que utiliza aprodução de NADPH pela via das pentoses comoagente redutor, o neutrófilo consome este NADPHparaa produção de radicais reativos (oxidantes),através de reduções parciaisdo oxigênio. Atransformação de O2em O2-(radicalsuperóxido),H202 (peróxido)e OH- (radicalhidroxila)no interiordos vacúolos digestivos levaráà oxidaçãodoscomponentes celularesdos microrganismos, aomesmo tempo que lesará o neutrófiloirreversivelmente.

A tradução clínica deste processo de aumentode neutrófilos no tecido e a fagocitose, digestão ea morte destas células é: pus.

Como os neutrófilos são produzidos?

A primeira célula (vérFigura)que pode serreconhecida morfologicamente como pertencenteà linhagem granulocíticaé o mieloblasto, derivadoda populaçãode células-tronco comprometidascom a produção de granulócitos.

A mitose do mieloblasto produz doispromielócitos, células grandes com grandequantidade de grânulos azurófilos (primários).Amitose de promielócitos produziráos mielócitos,estágio em que se inicia a produção dos grânulossecundáriosou específicos, que diferenciam oconteúdo dos grânulos dos neutrófilos doseosinófilos e dos basófilos.

Os metamielócitos, produtos da mitose demielócitos, não têm capacidadede replicação.Oamadurecimento dos metamielócitos (aumento do

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número de grânulos secundáriose alongamentocom posterior segmentação do núcleo) formará oque distinguimos morfologicamente comobastonetes e neutrófilos segmentados oumaduros. Estas células podem ser liberadasparaosangue periférico ou permanecer na medula ósseacomo populaçãode reserva.

~--ô--@/{J)<~--~

/<0) '>. (j)<0-~~()) @ --~-

~Mielobla~ (Ô)-(ô) -G3- G-~

Pró-mielócito~ ~ 8-~ ~(Q)-~-~-~

Mielócito"""~ - <Ir)--@Metamielócito Bastonete

segmentado

Figura - Granulocitopoesp.

A medula óssea é constituída, portanto, de umapopulaçãogranulocítica de células em proliferação,amadurecimento e de reserva.

A produção de neutrófilos de um adulto é deaproximadamente 1011/dia.A reserva na medulaóssea é da ordem de 8 x 109.Nos processosinflamatórios, além da liberaçãodas células dereserva, a produção pode aumentar em até 10vezes o nível normal.

A neutrofilia reflete a liberação da reserva dosneutrófilos na medula óssea?

Sim e não!!!A neutrofilia é definida como o aumento do

número de neutrófilos circulantes, isto é,presentes em um dado momento (o da coleta) nosangue periférico.

Parao cálculo deste valor necessita-se de doisdados do hemograma: a leucometria (número deglóbulos brancos circulalJtes por mm3)e apercentagem de neutrófilos (contagem diferencial):

Leucometria x % de neutrófilosValor absoluto de neutrófilos =

(em neutrófilos/mm3) 100

Os valores normais situam-se entre 2.000 e7.500 neutrófilos/mm3.

-

Os neutrófilos normais, egressos da medulaóssea, podem circular (populaçãocirculante) oupermanecer marginados ao endotélio dos vasossangüíneos(populaçãomarginal).Fisiologicamente, apenas metade da populaçãototal dos neutrófilos no sangue periférico estácirculando. Portanto, é esta a parcela dosneutrófilos que mensuramos no hemograma.

Certos estímulos podem mobilizar a populaçãomarginal. produzindo neutrofilia, semnecessariamente estar envolvida maior liberaçãopela medula óssea. A adrenalinae oscorticosteróides, tanto em situações de estresse(em alguns casos, decorrentes de processosinfecciosos) como farmacologicamente, podeminduzir a mobilizaçãoda populaçãoneutrofílicamarginal. Freqüentemente ocorrerá ausênciadeeosinófilos no sangue periférico nas situaçõesacima citadas.

Situemo-nos em uma ocorrência comum naprática médica, como a coleta de exames desangue em uma criançade .três anos de idade,com suspeita de infecção. E uma experiênciaestressante tanto para a criança e seus pais,assim como para as quatro pessoas ou mais que aseguram na maca- além de ser ensurdecedora(devido aos gritos). Certamente será difícil decidirse a neutrofilia é decorrente do componente deestresse envolvido na coleta de sangue ou doprocesso infeccioso.

O que é desvio à esquerda?

Tradicionalmente, os esquemas didáticos queilustram o processo de maturação dos granulócitosposicionam as células mais jovens à esquerda, demaneira que a direção da maturação ocorre daesquerda para a direita.

O desvio à esquerda ou desvio maturativo é ojargão utilizado quando da presença de maiorquantidade de bastonetes e(ou) de células maisjovens da série granulocítica (metamielócitos,mielócitos, promielócitos e mieloblastos).

A faixa de normalidade de valores absolutosparaos bastonetes é de 150 a 400 bastonetes pormm3.

A resposta inicial da medula óssea frente aoprocesso infeccioso é de liberaçãoda populaçãode neutrófilos de reserva. O estímulo para oaumento da produção ocorrerá simultaneamente,resultando na resposta proliferativa. Além doaumento da populaçãogranulocítica, ocorrerá aaceleraçãodo processo de maturação e liberaçãodas células, com conseqüente desvio à esquerdano sangue periférico.

Contudo, o desvio à esquerda, reacionalaoprocesso infeccioso, é caracteristicamente

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escalonado. isto é. com proporção de célulasmaduras maior que as células jovens, refletindo ahierarquia que ocorre na produção dos neutrófilos.

Dados citológicosdos neutrófilos quase sempreestarão presentes no desvio à esquerda:granulações tóxicas ou grosseiras, corpos deD6hle e vacuolizações citoplasmáticas(analogicamente. imagine que este é oequipamento do soldado para a guerra).

I radicionalmente, os esquemasdidáticos que ilustram o processo dematuração dos granulócitos posicionamas células mais jovens à esquerda, demaneira que a direção da maturaçãoocorre da esquerda para a direita. Odesvio à esquerda ou desvio maturativo éo Jargão utilizado quando da presença demaior quantidade de bastonetes eiou} decélulas mais jovens da série granulocítica(metamielócitos, mielócitos,promielócitos e mieloblastos}

Exemplo de leucocitose (aumento de leucócitos)com desvio à esquerda

Leucometria =20.000/mm3.Bastonetes = 10%.Valor absoluto de bastonetes =2.000/mm3.

Exemplo de leucocitose com desvio à esquerda,escalonado

Leucometria =20.000/rnm3.Bastonetes =10% - valor absoluto = 2.000/mm3.Metamielócitos =6% -valor absoluto = 1.200/mm3.Mielócitos = 2% - valor absoluto =400/mm3.Escalonamento: Bastonetes > metamielócitos >mielócitos.

o desvio à esquerda não-escalonado traduz,fisiopatologicamente, a liberação de granulócitosjovens em processo de produção não-hierarquizado,associado à disfunção da medula óssea.

Pode haver algum tipo de alteração que simuleo desvio à esquerda?

A anomalia de Pelger-Hüet é um defeitobenigno no processo de diferenciação dos

neutrófilos. que não apresentam a característicamultissegmentação. do núcleo, predominando asformas bilobadas. E transmitida por genesautossômicos dominantes, com freqüência de umem cada 6 mil nascimentos, não acarretandoqualquer alteração funcional. Laboratorialmente,estes neutrófilos maduros são facilmenteconfundíveis com bastonetes e, portanto, com apotencialidade de levar um indivíduoportadordesta anomalia com gastroenterocolite para umalaparotomiaexploratória.quando. erroneamente, ojulgamento laboratorialse sobrepõe ao clínico.

Pode ocorrer neutropenia no curso de umainfecção?

Sim. por vários motivos.O hemograma avaliao sangue periférico. Como

já vimos anteriormente, no caso dos neutrófilos.avaliamos a populaçãocirculante.

Mesmo que a produção esteja aumentada.pode estar ocorrendo um consumo tecidual maiorque a capacidadede liberaçãodos neutrófilos.como no agravamento dos processos infecciosos.Nestes casos, é comum a neutropenia estaracompanhada de desvio à esquerda, escalonado.evidenciando a proliferação granulocíticapreservada.Quando o agravamentodo processoinfeccioso é acompanhadode coagulaçãointravasculardisseminada, freqüentemente aplaquetopenia estará associada, além dealterações nos eritrócitos (hemáciasfragmentadas.esquistócitos, policromasia).

O fenômeno de Shwartzman. que tem comoresultante a agregaçãode neutrófilos mediada porcomplemento, principalmente do fragmento C5a.pode ocorrer na síndrome da angústia respiratóriado adulto, levando à vasculopatia oclusiva,consumo de plaquetas e neutropenia.

A neutropenia também pode ocorrer devido aalterações na produção dos neutrófilos. Algunsantibióticos (notadamente o cloranfenicol),antiinflamatórios não-hormonais.drogas utilizadasno tratamento da Aids, quimioterapia oncológica eaté mesmo antitérmicos (derivadosdaaminopterina, como a dipirona) podem afetar aprodução e a sobrevida de neutrófilos.complicando o processo infeccioso.

A tuberculosemiliar,assim como a formajuvenil (visceral)da paracoccidioidomicosejuvenil einfecções associadasà Aids podem acometer amedula óssea, levando à insuficiência na produçãotanto dos neutrófilos como dos eritrócitos e dasplaquetas.

Em certas situações. como nas endotoxemiaspor bactérias Gram-negativas.maior marginaçãodos neutrófilos pode resultar em neutropenia.

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J neutropenia também pode ocorrerdevido a alterações na produção dosneutrófilos. Alguns antibióticos{notadamente o cloranfenicol},antiinflamatórios não-hormonais, drogasutilizadas no tratamento da Aids,quimioterapia oncológica e até mesmoantitérmicos {derivados da aminopterina,como a dipironaJpodem afetar a produçãoe a sobrevida de neutrófilos, complicandoo processo infeccioso

Pacientes que apresentam neutropeniasecundária à produção inadequadapor disfunçãoda medula óssea têm grande suscetibilidade ainfecções, geralmente de evolução grave,principalmente quando os neutrófilos sãoinferiores a 500/mm3,em valores absolutos. Nestasituação a neutropenia é fator predisponente àinfecção e a principal atitude médica é ainvestigação do distúrbio medular.

~rQue alterações possoencontrar nosmonócitos?

Os monócitos têm grande importância noprocesso inflamatório, em nível tecidual, devido asua importância na fagocitose, eliminação demicrorganismos e, principalmente, como célulaapresentadorade antígenos.

Na reação de fase aguda notamos poucasalterações na contagem absoluta dos monócitos.Podemos observar a monocitose nos processosinfecciosos agudos na fase de convalescençaoudevido à cronificação da doença.A monocitose(>500/mm3 em va10resabsolutos) pode ocorrernos processos inflamatórios de evolução crônica,como ocorre em doenças infecciosas como atuberculose, paracoccidioidomicose,sífilis,endocardite bacterianasubaguda,febre tifóide epor protozoários).

A monocitopenia pode ocorrer secundariamenteà endotoxemia ou no uso farmacológico deglicocorticóides.

E nos Jinfócitos?

Os linfócitos são células que respondem deforma específica aos antígenos. Em outraspalavras,a atuaçãodo linfócito, através daprodução de anticorpos (Iinfócitos B) ou por

-

citotoxicidade (linfócitos TI. somente ocorre após oreconhecimento de um determinado antígeno porum linfócito, predeterminado a reconhecê-Io comotal.

A lesão tecidual (ou celular) e(ou)a presença demicrorganismo são estímulos paraa respostaimune dos linfócitos. Estes antígenos sãoapresentados aos linfócitos em nível local (o tecidoinfectado) e(ou) nos órgãos linfóides (linfonodos,placa de Peyer,anel de Waldeyer, baço, fígado,etc.).

Através do reconhecimento do antígeno, oslinfócitos específicos são ativados, proliferam esofrem modificações estruturais que possibilitarãoefetuar a resposta imune (plasmócitos e linfócitosT citotóxicos).

Na reação de fase aguda o hemogramafreqüentemente demonstrará linfocitopeniaabsoluta «1.500/mm3), refletindo a mobilizaçãodos linfócitos em nível tecidual paraoreconhecimento antigênico. Na fase deconvalescença,a contagem de linfócitos pode seelevar discretamente, retomando aos níveisnormais posteriormente.

A linfocitopenia absoluta também pode ocorrersecundariamente ao próprio estresse ou serdecorrente do uso de corticosteróides.

Muitas infecções virais (mononucleoseinfecciosa, citomegalovírus, varicela, hepatites,adenovírus, sarampo, parotidite epidêmica) edoenças como a tuberculose, toxoplasmose ebrucelose podem ap'resentarlinfocitose absoluta(> 5.000/mm3)no diagnóstico. Os pacientes commononucleose infecciosa ou coqueluche podemapresentar linfocitose extremamente elevada(> 15.000/mm3).

A presença de linfócitos atípicos acompanhafreqüentemente as linfocitoses secundáriasaprocessos infecciosos. Na mononucleoseinfecciosa a percentagem de linfócitos atípicospode ser superior a 20% do total de linfócitos.Estes linfócitos periféricos reacionaissãopredominantemente de origem T, embora o vírusEpstein-Barr infecte apenasos linfócitos B.

Como a maioria das doenças infecciosas queapresentam linfocitose ao diagnóstico ocorrem nafaixa pediátrica,a presença concomitante deanemia, quadro purpúrico, plaquetopenia e(ou)dores ósseas deve levantar a suspeita clínica deleucemia linfoblástica aguda, devido a quatrofatores importantes: a. manifestações clínicassemelhantes (febre, anorexia, emagrecimento,adenomegalias, hepatosplenomegalia);b. grandeincidência desta doença entre os dois e 10 anosde idade; c. importância do diagnóstico clínicoprecoce para melhor resposta terapêuticacurativa; d. erros de interpretação citológica na

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diferenciação entre linfócitos atípicos (reacionais) elinfoblastos (tumoraisl.

E os eosinófilos?

Como citado anteriormente, os eosinófilos sãomobilizados paraos tecidos no estresse. Portanto.na reaçãode fase aguda, a ausênciade eosinófilosé comum.

Nos processos alérgicos (asma,rinite, drogas,alimentar, urticária) a eosinofilia (>250/mm3) é odado do hemograma mais relevante.

Infestações parasitáriassão. provavelmente, amaior causa de eosinofilia em nosso País.Pacientescom paracoccidioidomicoseou comaspergilose broncopulmonar também podemapresentar eosinofilia.

Conclusõesfinais

Optamos. ao abordar este tema, por uma visãogeral, que possa ser útil paraa interpretação dohemograma. notadamente do leucograma, nabeira do leito de um paciente com quadroinfeccioso.

Esta opção justifica-se pela possibilidade quedispomos, na atualidade.de "dissecarmos" oseventos biológicos e analisá-Iossob o prisma doclinico, embora tenhamos simplificado,propositadamente. o conhecimento fisiopatológicosobre o assunto.

o_ptamos, ao abordar este tema, por umavisão geral, que possa ser útil para ainterpretação do hemograma,notadamente do leucograma, na beira doleito de um paciente com quadroinfeccioso. Esta opção justifica-se pelapossibilidade que dispomos, naatualidade, de "dissecarmos" os eventosbiológicos e analisá-Ios sob o prisma doclínico, embora tenhamos simplificado,propositadamente, o conhecimentofisiopatológico sobre o assunto

O esquema de trabalho utilizado no passadobaseava-sena tabulação dos dados do hemogramamais comuns em determinada populaçãocomdeterminada doença ou infecção. Portanto. asconclusões tinham efeito de práticaepidemiológica.

O hemograma reflete o momento da suacoleta. Quandoanalisamosas alterações nosleucócitos. percebemos que analisamos aprodução. liberaçãoe o trânsito destas célulaspelo sangue periférico em direção aos tecidosonde. efetivamente. cumprirão sua função.

Um paciente anteriormente saudávelquedesenvolve infecção fulminante pode apresentar.em cinco ou seis coletas em um mesmo dia.hemogramas com resultados completamentediferentes. refletindo, dinamicamente. a evoluçãoclínica.

Outro objetivo desta abordagem foi evidenciarque as alterações provocadas por agentesinfecciosos seguem-se à agressão tecidualconseqüente à proliferação dos microrganismos.da reaçãode defesa e do próprio estresse doorganismo frente à injúria.

Concluindo. o hemograma não faz diagnósticode infecção. Muito menos revela o agenteetiológico. O exame de sangue que certamenteidentifica a presença de microrganismos (bactériase fungos), ou quanto a reatividade ao Gram. é ahemocultura.

O hemograma sempre será um dadocomplementar à interpretação clínica. um dadocomplementar muito útil. quando adequadamenterealizadoe corretamente interpretado.

Referências

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Endereço para correspondênciaDA NEWTON KEYHOKAMAFacu'dadede MedIcinaDIvisão Hemocen!ro - Unesp18618.QOO - Botccatc-SP

MARÇO. 1997 m VOlo 72 · N~349

Page 8: Interpretação Clínica do Hemograma nas Infecçõeshematologico.com.br/arquivos/hemograma_infeccao.pdf · A palavra opson, derivada do grego, traduz sua natureza: aperitivo! !!

Interpretação Clínica do Hemograma nas Infecções

diferenciação entre linfócitos atípicos (reacionais) elinfoblastos (tumorais).

E os eosinófilos?

Como citado anteriormente. os eosinófilos sãomobilizados para os tecidos no estresse. Portanto.na reação de fase aguda. a ausência de eosinófilosé comum.

Nos processos alérgicos (asma. rinite. drogas.alimentar. urticária) a eosinofilia (>250/mm3) é odado do hemograma mais relevante.

Infestações parasitárias são. provavelmente. amaior causa de eosinofilia em nosso País.Pacientes com paracoccidioidomicose ou comaspergilose broncopulmonar também podemapresentar eosinofilia.

Conclusões finais

Optamos. ao abordar este tema, por uma visãogeral, que possa ser útil para a interpretação dohemograma. notadamente do leucograma, nabeira do leito de um paciente com quadroinfeccioso.

Esta opção justifica-se pela possibilidade quedispomos, na atualidade,'pe "dissecarmos" oseventos biológicose analisá-Iossob o prisma doclinico.embora tenhamos simplificado,propositadamente. o conhecimento fisiopatológicosobre o assunto.

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O_ptamos, ao abordar este tema, por umavisãogeral, que possa ser útil para ainterpretação do hemograma,notadamente do leucograma, na beira doleito de um paciente com quadroinfeccioso. Esta opção justifica-se pelapossibilidade que dispomos, naatualidade, de "dissecarmos" os eventosbiológicos e analisá-Ios sob o prisma doclínico, embora tenhamos simplificado,propositadamente, o conhecimentofisiopatológicosobre oassunto

O esquema de trabalho utilizado no passadobaseava-sena tabulação dos dados do hemogramamais comuns em determinada populaçãocomdeterminada doença ou infecção. Portanto, asconclusões tinham efeito de práticaepidemiológica.

o hemograma reflete o momento da suacoleta. Quandoanalisamosas alterações nosleucócitos. percebemos que analisamosaprodução. liberaçãoe o trânsito destas célulaspelo sangue periférico em direção aos tecidosonde. efetivamente. cumprirão sua função.

Um paciente anteriormente saudávelquedesenvolve infecção fulminante pode apresentar.em cinco ou seis coletas em um mesmo dia.hemogramas com resultados completamentediferentes. refletindo, dinamicamente. a evoluçãoclínica.

Outro objetivo desta abordagem foi evidenciarque as alterações provocadas por agentesinfecciosos seguem-se à agressão tecidualconseqüente à proliferação dos microrganismos.da reaçãode defesa e do próprio estresse doorganismo frente à injúria.

Concluindo. o hemograma não faz diagnósticode infecção. Muito menos revela o agenteetiológico. O exame de sangue que certamenteidentifica a presença de microrganismos (bactériase fungos), ou quanto a reatividade ao Gram. é ahemocultura.

O hemograma sempre será um dadocomplementar à interpretação clínica. um dadocomplementar muito útil. quando adequadamenterealizadoe corretamente interpretado.

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B. COA--eS,T.D. & 3ATHNER. R. - LeukocytoslSa,d leJkope"a In: Hemata!ogy:basic prinCipIesanr1pracriee.2 ed., ChJrchdlLlvirgslone, 1995.

Endereço para correspondênciaDR NEWTON KEYHOKAMAFacu'dadede MedicinaDivisão Hemocenlro - Unesp18618-000- Botccatc-SP

MARÇO. 1997 m VOl. 72 · N~' 349