Interpretação de O Alienista Por Ivan Teixeira

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  • IRNICA INVENO DO

    MUNDO

    IVAN TEIXEIRA Uma leitura de O Alienista

    IVAN TEIXEIRA professor de Literatura Brasileira na ECA-USP e na Universidade do Texas em Austin, com o ttulo de Lozano Long Professor of Latin American Studies, e autor de, entre outros, Apresentao de Machado de Assis (Ateli Editorial).

    TEATRO DO MUNDO

    onsensualmente, admite-se que O Alienista adota

    o assunto da loucura como instrumento de stira

    cincia do sculo XIX, mais especicamente ao

    cienticismo de orientao positivista1. Todavia,

    possvel supor que a denncia irnica da cincia

    e a investigao humorstica da loucura exercem

    funo subsidiria em argumento mais abran-

    gente. Essa nova hiptese de leitura, que aqui se

    prope, possibilita o entendimento do texto como imitao

    burlesca da histria do mundo, particularizada no pastiche

    do processo de hierarquizao de uma pequena cidade do

    interior do Brasil. Assim, apoiado no motivo da loucura,

    o tema central da novela ser a disputa pelo poder, e no

    1 O exemplo mais acabado e mais bem fundamentado dessa posio talvez seja o de Ktia Muricy (1988, pp. 21-49). Trata-se de livro til ao conhecimento do que, ento, se tomava como contexto da obra de arte literria.

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    propriamente o exame de uma situao de

    fora previamente estabelecida. O texto

    incorpora a insnia como condio para dis-

    cutir no apenas o exerccio, mas, sobretudo,

    a constituio da autoridade. Visto que tudo

    nessa novela stira, a luta entre as diver-

    sas instncias do poder faz-se representar

    por meio da deformao. Assim, convm

    reconhecer e analisar no apenas uma,

    mas diversas caricaturas no texto: contra

    a autoridade religiosa, contra a autoridade

    mdica, contra a autoridade poltica e contra

    o desejo de autoridade popular. Acima de

    todos esses desenhos distorcidos, paira a

    denncia irnica do suposto abandono das

    virtudes e da adeso generalizada ao erro.

    Na novela, a irracionalidade no se associa

    apenas insnia, mas, principalmente, fa-

    lncia dos princpios. Imaginada conforme

    os padres editoriais de A Estao, revista

    feminina de formao e entretenimento do

    Segundo Reinado, a cidade de Itagua ser

    tanto metonmia da moralidade europia

    quanto metfora dos costumes do Rio de

    Janeiro oitocentista.

    Ao parodiar o estilo das narrativas his-

    tricas, O Alienista compe um arremedo

    dos padres mdios de conduta produzidos

    pela idia de civilizao. Vem da que, entre

    as diversas insinuaes semnticas do texto,

    deve-se destacar a tpica do desconcerto do

    mundo. Mundo que se constri em sentido

    inverso ao da razo, no propriamente por

    causa da loucura, mas pela perverso das

    matrizes do comportamento. A narrativa

    imagina o cenrio completo de uma cidade,

    com os principais elementos da constituio

    dos poderes, do estabelecimento dos concei-

    tos, do controle das atitudes, da inveno dos

    valores e da escolha das festas de celebrao.

    Nessa farsa agitada e espirituosa, produz-se

    um retrato deformado das quatro instn-

    cias que constroem o mundo, determinam

    sua ordem e regulam sua representao: a

    Igreja, a Cincia, a Cmara de Vereadores

    e o Povo todas igualmente agitadas por

    ambies, disfarces e estratgias. Em meio

    s sugestes temticas decorrentes do mote

    de que a loucura entra em todas as casas e

    do motivo da altercao entre os poderes, a

    novela esconde um simulacro distorcido da

    histria social do homem. Na conuncia

    cmica daquelas quatro foras, salienta-se a

    disputa pelo domnio de uma sobre as outras.

    Por essa e outras noes que se discutem

    adiante, possvel imaginar que O Alienista

    talvez seja o texto mais densamente poltico

    de Machado de Assis.

    Alm disso, a vertigem acelerada da

    ao produz tambm o efeito de arremedo

    da idia de progresso, em cujo movimento

    se insurge, a cada instante, a voz da pr-

    pria Histria, explicitando e comentando,

    com sardnica irreverncia, as fontes e

    os processos pelos quais se instituem os

    registros que do eternidade ao efmero.

    Ao escolher o passado colonial de um pas

    independente como palco para o teatro de

    sombras alegricas da novela, Machado

    de Assis logrou construir um espao m-

    tico propcio idia de fundao razo

    pela qual traz cena alguns dos motivos

    bsicos do discurso histrico sobre a for-

    mao dos povos: cidade, religio, cincia,

    linguagem, poltica, exrcito, justia, sa-

    de, revolta social, divulgao da notcia,

    registro ocial dos fatos, acumulao de

    riqueza e bem-estar coletivo. Se o tema

    do amor apenas aludido, sobeja a idia

    de procriao e de organizao da fam-

    lia, igualmente importante no conjunto

    de tpicas que instituem o discurso do

    surgimento da cidade, que s se consolida

    com a instalao do hospcio.

    A chave do procedimento retrico de

    O Alienista a agudeza, entendida como

    sbito movimento da inteligncia em favor

    de imagens imprevistas e contundentes. A

    comear pela motivao do casamento de

    Bacamarte, passando pela frustrao de

    suas expectativas quanto fertilidade da

    esposa, pelo espanto dos acessos de loucura

    dos primeiros pacientes, pela insurreio

    popular dos Canjicas, pela reverso dos

    critrios de classicao da demncia, at a

    surpresa nal do autoconnamento do cien-

    tista tudo sucede em ritmo vertiginoso de

    sinapses inesperadas, produzindo efeitos de

    riso engenhoso, sem deixar de ser ao mesmo

    tempo fcil e estridente. Impondo-se como

    obra-prima de ecincia retrica, o texto

    condena o uso desabrido da eloqncia,

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    o que, alis, no passa de artifcio para a

    produo de mais humor. Da mesma for-

    ma, surge o desenho desgurado no s da

    idia de revoluo social, como tambm de

    revoluo cientca. Alm de ironizar a faci-

    lidade com que as massas apiam os falsos

    lderes, a novela ridiculariza o processo de

    formao da opinio pblica, que sustenta

    o poder, sem deixar de ser dominada pela

    propaganda do mesmo poder.

    No insistente processo de signicao

    irnica de O Alienista, a criao da Casa

    Verde no representa apenas o triunfo da

    racionalidade cientca, mas tambm o

    ideal de modernizao da cidade pela in-

    terveno da medicina. No prprio mbito

    dessa cincia, Simo Bacamarte, ao preterir

    os cuidados do corpo em favor do estudo

    da alma, encarnaria um grau avanado da

    suposta evoluo do pensamento cientco.

    Assim, no espao ccional de uma pequena

    cidade sul-americana entrariam em jogo as

    sombras, humoristicamente deformadas, de

    algumas matrizes importantes da histria e

    do pensamento europeu, o que compat-

    vel com a estrutura alegrica do texto. Por

    isso, ele opera com tipos e situaes que

    encarnam idias gerais, e no com noes

    que pudessem produzir efeito de singula-

    ridade. Por outro lado, o texto produz uma

    metfora especca do Segundo Reinado

    brasileiro, a qual consiste na identicao

    de Simo Bacamarte com a imagem impe-

    rial de Pedro II. Igualmente empenhados

    na racionalidade, na cincia e no bem-estar

    coletivo, ambos instalaram hospcios nas

    respectivas cidades. Conforme o mesmo

    jogo de aluses eloqentes, padre Lopes

    representa as dissimulaes da Igreja, em

    constante oposio ao poder ilustrado da

    razo. Os vereadores, alheios ao interesse

    pblico, simbolizam a poltica; o barbeiro,

    obediente ao estmulo do impulso, o povo;

    o boticrio, servil e oportunista, a pusi-

    lanimidade; D. Evarista, obcecada pelas

    aparncias, a vaidade, etc.

    Com o propsito de adensar a investiga-

    o da matria e da forma em O Alienista,

    considerem-se as seguintes indagaes: qual

    seria o ncleo do debate de que participa a

    alegoria de seu texto? Em que controvrsia

    especca intervm seu metaforismo? A que

    questes culturais respondem as insinuaes

    de sua construo artstica? Em que matria

    histrica se particularizam suas tpicas?

    Que discursos sociais se mimetizam em

    sua intriga? Entendendo-se por pensamen-

    to aquilo que emerge da conuncia das

    partes de um enunciado, responder a essas

    interrogaes equivale a passo decisivo no

    processo de denio como hiptese de

    conhecimento do logos da novela, isto , do

    sentido geral da narrativa. Pela perspectiva

    do presente ensaio, o logos dessa novela

    decorrer da observao dos seguintes as-

    pectos de sua estrutura: do signicado da

    ao e da pintura dos caracteres; do nexo

    entre os acontecimentos da fbula; do estilo

    e das nuanas da elocuo; e da relao da

    prpria narrativa com os textos (verbais ou

    no) que ela representa. O exame desses

    componentes conduzir ao entendimento do

    modo de imitao praticado na obra, forne-

    cendo instrumentos para sua classicao

    no s como forma literria supostamente

    autnoma, mas tambm como correlato

    artstico de discursos preexistentes, de que

    ela se apropria e com os quais dialoga.

    No se trata de buscar a legitimao de

    Machado de Assis pela suposta incrustao

    de acontecimentos da histria do Brasil

    em seu texto. Ao contrrio, os presumveis

    fatos exteriores obra de arte sero, aqui,

    entendidos como geradores de discursivi-

    dades, isto , como matrizes de questes

    discursivas e de textos que participam das

    matrias com as quais o autor trabalha

    durante o processo de construo retrica

    do enunciado. Assim, nos termos de Louis

    Montrose (Teixeira, 2006, pp. 31-56), o en-

    saio propor o esboo de uma investigao

    das relaes entre a ccionalidade do texto

    e a textualidade da histria. Pode-se dizer,

    por conseguinte, que a narrativa se con-

    gura como resposta alegrico-humorstica

    a questes desencadeadas por trs sries de

    eventos que determinam o surgimento de

    tpicas importantes no repertrio cultural

    do Segundo Reinado: dissidncias entre

    o Estado e a Igreja, postas em evidncia

    pela Questo Religiosa; consolidao da

    prtica psiquitrica no Brasil, observada a

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    partir da criao do Hospcio de D. Pedro

    II; e discusso em torno da unidade do

    Imprio Brasileiro, motivada, sobretudo,

    pelas revoltas do Perodo Regencial. An-

    tes, porm, de examinar a relao de O

    Alienista com essas matrizes discursivas, o

    ensaio prope algumas notas para o estudo

    das conexes de sua forma literria com a

    linguagem do veculo em que foi publicado

    pela primeira vez.

    RELAES DISCURSIVASComo se sabe, O Alienista foi publicado

    pela primeira vez em A Estao: Jornal

    Ilustrado para a Famlia, entre outubro de

    1881 e maro de 1882. Alm dessa narrati-

    va, de inmeros contos, diversos poemas e

    algumas resenhas, Machado publicou nas

    pginas dessa revista a novela Casa Velha

    e o romance Quincas Borba. Sendo uma

    revista de moda feminina, A Estao deve

    ser classicada como instituio de cultu-

    ra, no sentido intrnseco do termo, pois,

    ao falar de roupa e de agasalho, produzia

    igualmente noes essenciais sobre gesto

    social, intimidade domstica, moralidade,

    lazer, sade, higiene e religio. Dicil-

    mente se achar uma pgina explcita de

    doutrina religiosa nessa publicao, mas o

    cristianismo aparente das elites europias

    manifesta-se a cada pormenor das matrias

    constitudas, entre outras, por modelos

    de costura, esquemas de bordado, gravuras

    edicantes, exposies culturais, notcias

    de msica erudita, anncios e resumos de

    conferncias, objetos de decorao, frases

    exemplares e propaganda de remdios e de

    bens de consumo. Sendo, obviamente, uma

    publicao destinada s camadas ricas e

    letradas do pas, havia tambm uma seo

    de teatro, de crtica literria, de poesia, de

    crnica, de romance e de contos. A revista

    era concebida, escrita, traduzida e impressa

    em Berlim, embora o padro e o referencial

    de cultura fossem, basicamente, parisienses.

    Todavia, a partir de 1879, criou-se a mencio-

    nada seo literria, redigida e impressa no

    Brasil, pela Livraria Lombaerts. Machado

    de Assis era o principal colaborador dessa

    parte, tendo exercido funo decisiva em

    seu perl editorial, ainda que os termos

    precisos dessa participao no estejam

    plenamente denidos pelas pesquisas no

    assunto. A colaborao de Machado na

    revista foi intensa at 1891. Ao lado dele,

    colaboravam escritores representativos do

    tempo, entre os quais se contam: Alusio

    Azevedo, Raimundo Correia, Alberto de

    Oliveira e Olavo Bilac.

    Concebida para essa revista de formao

    e de entretenimento, a charge de O Alienista

    concentra-se, sobretudo, em pormenores de

    natureza tica, de modo que se ressaltem

    propriedades antes genricas do que pro-

    priamente singulares dos discursos mime-

    tizados. Entendida como exagero de traos

    conhecidos pelo observador, a caricatura

    deixa-se entender como denncia por meio

    do ridculo. Ao produzir deformao bvia,

    prope a correo moral, promovendo o riso

    a partir de perspectiva imprevista diante da

    matria escolhida. Sendo manifestao do

    gnero demonstrativo e variante da stira

    potica, o desenho caricatural no pretende

    estimular medida prtica contra o assunto

    representado, como se observa na nalidade

    do discurso deliberativo e do judicial. Ao

    traduzir para a linguagem verbal algumas

    propriedades do desenho burlesco das colu-

    nas dos jornais, a novela machadiana parece

    apropriar-se do conceito de Jonathan Swift,

    segundo o qual a stira seria uma espcie

    de espelho em que o observador reconhece

    todas as faces possveis, exceto a sua prpria

    (in Cuddon, 1999, pp. 780-4).

    De fato, a stira de O Alienista, sendo

    alusiva, prefere a denncia conceitual

    acusao direta de pessoas ou de institui-

    es. Pode-se supor ainda que, em vez de

    ofender, essa modalidade de texto costuma

    ser apreciada como exerccio dos direitos

    e deveres da cidadania. Normalmente, as-

    socia-se idia de progresso cultural e de

    elevao do esprito. Recolocando o texto

    em seu tempo, possvel imaginar que a

    funo primordial da stira na novela talvez

    tenha sido fornecer s camadas letradas

    do Segundo Imprio um repertrio artis-

    ticamente renado, do qual se extrassem

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    as coordenadas crticas com que enfrentar

    conceitualmente o aspecto moral de ques-

    tes histricas, associadas ao exerccio da

    vida social nas camadas que consumiam

    arte. Particularmente, deve-se levar em

    conta o perl de um suposto pblico femi-

    nino. Uma sociedade complicada como a

    do Rio de Janeiro oitocentista no poderia

    se aproximar do modelo de civilizao

    europia se desfavorecesse o surgimento e

    a consolidao de artistas que, pela crtica,

    legitimassem as instituies e os valores

    das camadas dirigentes locais. Se a crtica

    fosse alegrica, irnica, elegante e alusiva,

    tanto melhor, porque estaria de acordo com

    o padro supostamente requintado da revista

    e com a presumvel tolerncia daqueles

    que a tornavam possvel no Brasil. Assim,

    Primeiro captulo de O Alienista, em A Estao, Rio de

    Janeiro, 15 de outubro de 1881

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    em favor do sentido histrico da novela,

    preciso admitir que O Alienista dialoga com

    as demais sees da revista, ajustando-se

    aos propsitos de suas matrias, destinadas

    a um modelo de pblico feminino que ento

    se formava no Rio de Janeiro.

    Em princpio, tais leitores deveriam

    se divertir ou se instruir com os chistes e

    denncias que eles prprios estimulavam

    contra as provveis imperfeies de sua

    classe. No se trata de considerar os leitores

    do ponto de vista emprico, isto , como

    pessoas isoladas que formassem um presu-

    mvel pblico, mas supor os protocolos e

    as regras segundo as quais se veiculam as

    mensagens e se formulam os signicados.

    Cada perodo e cada grupo social preguram

    um leitor hipottico com o qual a maioria

    se parece e cujos padres os indivduos

    incorporam. Contribuem para a constituio

    desse leitor no s o sistema de alfabetiza-

    o de uma sociedade, mas tambm seus

    valores, suas convices e seus princpios

    mais gerais sua episteme. A partir desse

    sistema de organizao do conhecimento,

    surgem as especicaes e suas possveis

    singularidades, tal como seria admitir uma

    provvel distino entre, diga-se, as leitoras

    de A Estao e os leitores da Gazeta de

    Notcias. Mesmo assim, esse presumvel

    perl decorre antes da construo do texto

    e de ndices culturais inscritos nele do que

    Pargrafo nal de O Alienista, na verso de A Estao, de 15 de maro de 1882, e na de

    Papis Avulsos, 1882. O texto da novela praticamente o mesmo em ambas as edies, exceto

    pela alterao essencial do ltimo pargrafo e por outras pequenas mudanas ao longo da

    novela. O ltimo pargrafo parece ter sido reescrito com o propsito de tornar o texto mais

    concentrado, delimitando-o ao assunto, ao confronto alegrico entre a cincia e a teologia. A

    composio tipogrca da revista foi utilizada para a edio em volume

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    do possvel conhecimento objetivo do leitor

    ou de um grande nmero deles2.

    A formulao de um leitor hipottico de

    O Alienista pode fornecer certa diretriz de

    entendimento de alguns aspectos especcos

    da novela, como a denncia do mau uso da

    linguagem e as distores da funo social

    da imprensa. Quanto ao primeiro tpico,

    o narrador da novela no poupa o prprio

    Simo Bacamarte que, em casa, adotava

    locues como louros imarcescveis, que,

    pela lgica do texto, pressupe exagero

    imprprio de um sbio. Assim tambm, os

    leitores de A Estao, pregurados como

    supostos cidados virtuosos, deveriam,

    como hiptese de particularizaes de um

    sistema cognitivo em formao, pautar-se

    pelo comedimento na comunicao diria.

    Em manifestaes pblicas, sugeria-se

    igualmente que fosse evitado o modelo

    de linguagem enfeitada do rapaz bronco

    e vilo e de Martim Brito, personagens

    que foram recolhidas Casa Verde por

    banalizarem o estilo agudo e engenhoso da

    poesia seiscentista. Tal advertncia contra

    os supostos exageros poticos se aplica

    evidentemente literatura oitocentista em

    geral, para a qual se pleiteia implicitamente

    o presumvel equilbrio da escola realista

    e de suas variantes modernas, como o Par-

    nasianismo, cujos poetas publicavam em

    A Estao, ao lado de Machado. Tambm

    os retores do Iluminismo chamavam en-

    fermos e loucos aos poetas seiscentistas,

    por julgarem que na poesia deles a fantasia

    trabalhava mais do que a razo, tal como

    se v codicado em Francisco Jos Freire

    (1759, pp. 166-75) e Lus Antnio Verney

    (1747), autores, respectivamente, da Arte

    Potica ou Regras da Verdadeira Poesia e

    do Verdadeiro Mtodo de Estudar3.

    A tpica iluminista da linguagem como

    indicador de insnia ou de prudncia do fa-

    lante prossegue em outro sentido na novela,

    servindo de parmetro para caracterizar a

    insensatez de pessoas que se deixam levar

    pelo efeito supostamente fcil de imagens

    revolucionrias, como aquela adotada

    pelo barbeiro Porfrio (Bastilha da razo

    humana), que seria logo imitado por indi-

    vduos com menos juzo do que ele. Esse

    o momento em que surge uma provocante

    pardia da estrutura dos levantes populares,

    que toma por modelo a revoluo de 1789,

    vista com reservas pelas monarquias oito-

    centistas. Alm de ironizar a adeso s frases

    de efeito imediato, a novela ridiculariza o

    processo de formao da opinio pblica.

    Sobretudo quando esta se deixa enganar

    pelo uso oportunista da imprensa, posta

    prova no engraado episdio da matraca,

    veculo primitivo de divulgao social, mas

    ironicamente to ecaz quanto os jornais

    da poca de publicao de O Alienista.

    Esse ser tambm o tema de O Segredo

    do Bonzo, outra narrativa alegrica de

    Papis Avulsos.

    REVISTA, LUZES, MULHERA leitura de A Estao, que ser tanto

    mais reveladora quanto mais se aproximar

    de sua verso primitiva em papel, indica

    que a revista possua uma diretriz conceitual

    extremamente ajustada ao ideal de desen-

    volvimento com tica e com rigor com-

    portamental. No vem ao caso desnudar,

    pela perspectiva de hoje, as incongruncias

    intrnsecas das foras sociais que facultaram

    o surgimento e a manuteno to prolongada

    de uma revista como essa. O que importa,

    no caso, que o veculo se deixa entender

    como uma fala pequena, mas signicativa

    do enorme discurso social do perodo,

    que tanto se pode entender como cristo,

    monrquico, capitalista ou simplesmente

    romntico e burgus. Preocupado em pro-

    duzir coerncia no caos da moralidade es-

    cravista, o discurso ocial da revista institui

    a tica e o combate ao mau uso da imprensa

    como uma de suas preocupaes bsicas.

    De fato, se se observarem os contnuos

    cuidados dos diretores de A Estao com

    a suposta franqueza de suas colunas, com a

    lisura dos anncios de seus produtos, com

    a exatido das justicativas para o aumento

    de preo das assinaturas, com o zelo contra

    a concorrncia desleal de outros rgos e,

    sobretudo, com o alegado rigor tico do

    veculo, poder-se- imaginar que o epis-

    dio da matraca se deixa interpretar como

    2 Com variantes, essa noo aplica-se ao conceito de au-tor. Adotei essa perspectiva em Semiosfera & Inveno do Autor (Teixeira, 2007, pp. 317-49). Consultar The Situation de Wolfgang Iser (1980, pp. 3-19).

    3 Na carta stima do Verdadeiro Mtodo de Estudar, destinada ao exame da potica, Verney arma o seguinte sobre o princi-pal poeta da Fnix Renascida: Quando eu li algumas das Jornadas de Jernimo Baa, tive compaixo do dito religioso e assentei que a jornada que devia fazer era da sua casa para o hospital. Esta sorte de poetas so doidos, ainda que no furiosos (Verney, 1747, p. 182).

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    possvel traduo artstica do pressuposto

    administrativo da prpria revista tambm

    ela declaradamente empenhada na divul-

    gao das Luzes e na luta contra o engodo

    e a m-f. Alis, a escolha de Machado de

    Assis para redator e organizador da seo

    brasileira de A Estao pode plenamente se

    justicar pelo projeto de criao e difuso de

    uma imagem urbana e civilizada da revista.

    Eram freqentes as aluses presena dele

    no corpo editorial como garantia de bom

    gosto, de boas maneiras, de bom portugus

    e de excelncia artstica. Esse tipo de refe-

    rncia ao principal colaborador e coorde-

    nador das matrias ocorre, com freqncia,

    por meio de cartas de leitoras, de resenhas

    sobre livros escritos por ele, de editoriais

    que o mencionam ou que ele prprio assina

    e de versos que ele produz para lbuns de

    senhoras, como estes, publicados em 29 de

    fevereiro de 1880:

    NUM LBUM

    Faz-se a melhor harmonia

    Com elementos diversos;

    Mesclam-se espinhos s ores:

    Posso aqui pr os meus versos.

    Um ano aps a publicao desses versos,

    A Estao edita uma resenha sobre Mem-

    rias Pstumas de Brs Cubas, assinada por

    Abdiel, em 28 de fevereiro de 1881. Nela,

    o autor alega preferncia do romancista

    por tipos alegricos que encarnem os v-

    cios genericamente concebidos como a

    avareza, o egosmo, a presuno e a ambi-

    o. Destaca tambm a clareza de estilo, o

    humor e o pessimismo losco. Antes de

    proclamar o direito do autor ao generalato

    do batalho das letras, o crtico ressalta a

    suposta funo social das Memrias Ps-

    tumas em seu tempo:

    E o novo livro do Sr. Machado de Assis

    satisfaz cabalmente estas exigncias, porque

    o tipo do heri foi colhido ao vivo de entre a

    multido; porque representa como entende

    um escritor consciencioso, o Sr. Urbano

    Duarte a luta do egosmo estril e brutal

    de Brs Cubas e o altrusmo do Quincas

    Borba; e positivo que esta luta interessa,

    melhora e aperfeioa o esprito do leitor

    (A Estao, X ano, no 4, p. 40)4.

    Como se v, as Memrias, pela perspec-

    tiva do tempo, no fugiam dos propsitos

    formativos geralmente atribudos arte.

    Sem deixar de ser grande texto para padres

    do sculo XXI, o romance apropriava-se de

    perspectiva prevista pela potica da cultura

    de seu tempo, que certamente admitia o

    imprevisvel como resultado de combina-

    es previstas pelo cdigo oitocentista. Em

    31 de janeiro de 1891, A Estao (edio

    para o Brasil) transcreve nota do Correio

    do Povo, em que se l:

    Foi ontem distribudo o 1 nmero do 20

    ano da Estao, compreendendo, como de

    costume, o Correio da Moda, informaes,

    moldes, gurinos, gravuras e um suplemen-

    to literrio em cujas pginas gura, entre

    outras coisas, trs captulos de Quincas Bor-

    ba, o interessante romance de Machado de

    Assis (A Estao, XX ano, no 2, p. 10).

    Essa nota cotidiana de jornal reitera a

    bvia lio de que se deve respeitar a sin-

    gularidade histrica de qualquer obra de

    arte. Ensina tambm que a excelncia de

    um texto no o coloca acima da materiali-

    dade de sua cultura. A crtica contida nas

    grandes obras machadianas no o afasta de

    seu tempo, assim como no singulariza o

    seu pensamento. O conhecimento de suas

    relaes com a discursividade do ambiente

    de produo pode dizer muito sobre o modo

    de sobrevivncia dessa arte, impondo ao

    crtico atual a diculdade do exame das

    nuanas de sua voz no s com relao ao

    grupo a que ela se lia, mas tambm com

    relao aos grupos de que se afasta na

    mesma poca. Evidentemente, a leitura de

    hoje no deve se pautar pela suposta inte-

    leco dos primeiros leitores de Machado,

    mas a perspectiva histrica talvez pudesse

    discutir alguns pressupostos atuais que,

    desconsiderando dados objetivos de potica

    cultural, procuram deslocar o autor de seu

    lugar para atribuir-lhe idias e propsitos

    talvez incompatveis com a lgica de seu

    4 Hlio de Seixas Guimares (2004, pp. 352-5) transcreve a resenha na ntegra. Trata-se de livro repleto de documentos, informes e anlises interes-santes.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.77, p. 149-169, maro/maio 2008 157

    repertrio. Em 15 de setembro de 1884, A

    Estao publicou a carta de uma leitora que,

    ao recomendar a uma amiga os contos de

    Histrias sem Data, queixa-se de que seu

    marido roubara o exemplar de seu cesto de

    costura para o ler no trabalho. Em seguida,

    a mesma leitora produz linhas de crtica

    literria, em que se observam certo humor

    irnico e certa desenvoltura frasal.

    A carta encena a aproximao entre a

    leitora e o livro de que fala. Nesse caso, ser

    talvez desnecessrio enfatizar que tanto a

    leitora quanto a obra assumem condio

    ccional, pois se interpretam como hip-

    teses lgicas na produo de um efeito de

    linguagem ou de um jogo cultural. Parece

    evidente tambm o propsito editorial de

    insinuar que a leitura dos contos e do jornal

    incrementa a capacidade de percepo, de

    expresso e de participao dos assinantes

    da revista. Observe-se que a signatria da

    carta informa que, tendo lido os contos de

    Histrias sem Data na verso primitiva das

    folhas da Corte, sente renovado prazer em

    os reler, ento, na forma mais elegante e

    pausada de livro. provvel que essa carta

    tenha sido escrita pelo prprio Machado

    de Assis, entendido como diretor literrio

    do jornal. Certamente, esse no teria sido

    o primeiro caso de ironia promocional nas

    letras do Brasil e do mundo5. Todavia, a

    determinao da autoria no importa tanto

    quanto a suposio de que a publicao

    dessa carta participa do processo de ins-

    tituio da imagem pblica da mulher no

    Segundo Reinado, que, alm de se dedicar

    ao lar, aprecia boa literatura e l mais de

    um jornal, visto que os contos do mencio-

    nado volume foram quase todos editados

    na Gazeta de Notcias.

    STIRA MENIPIANo perodo em que colaborava em A

    Estao, cujo discurso era aparentemente

    apoltico ou suprapartidrio, Machado no

    deixava de escrever tambm para a Gazeta

    de Notcias, jornal de ostensiva participa-

    o poltica e que apoiava abertamente as

    mudanas que se consolidariam no nal dos

    anos 1880. O repertrio tcnico do artista, de

    invulgar acuidade em seu tempo, facultava-

    lhe as variaes necessrias de tom, de tal

    modo que os textos produzissem os efeitos

    adequados a cada veculo, sem desgurar o

    perl a um tempo unitrio e multvoco de

    sua escrita, sempre atenta s inexes da

    histria. Assim, demonstrvel a premis-

    sa de que a adoo da stira menipia em

    Machado associa-se necessidade dialtica

    de ajustar o texto ao veculo a que se des-

    tinava. Tratava-se de fazer o texto parecer

    com o jornal, com o leitor e com o tempo

    de sua produo. Sendo muito particular e

    concreto, esse tempo preconizava, como

    ocorre ainda hoje, uma arte um pouco

    acima das condies de seu ambiente de

    produo. Deveria imitar o tempo sem se

    confundir com ele. Nada melhor para isso

    do que a potica da forma livre. Nos ter-

    mos do prprio Machado, por forma livre

    entende-se a incorporao da extravagncia

    fantasiosa, do humor disparatado e do pes-

    simismo irnico. A escolha de semelhantes

    princpios produz uma espcie hbrida de

    narrativa, sem ncleo que a dena de ma-

    neira conclusiva. Um dos predicados mais

    importantes dessa potica libertina talvez

    seja a suspenso do efeito de ordem e o apego

    ostensivo inverso articiosa, ao disfarce

    e simulao. A apropriao machadiana

    da forma livre poder ser interpretada como

    emprego de um sistema de signos que an-

    tecede o usurio e que tem vida prpria,

    embora adquira propores inconfundveis

    na articulao operada pelo escritor.

    A expresso stira menipia (Mer-

    quior, 1972)6 indica simultaneamente um

    gnero e uma espcie literria: o primeiro

    termo comporta a idia de riso, de crtica

    e deboche; o segundo implica a noo de

    pardia, de absurdo e imaginao. Como

    se sabe, a stira menipia ou tradio luci-

    nica abandona o equilbrio previsto pelos

    gneros puros da tradio clssica e coloca

    a fantasia a servio da criao de situaes

    extravagantes, a partir das quais se instaura,

    em termos bizarros, a fuso de elementos

    pertencentes a gneros distintos da histria

    literria, em que o srio se mistura com o

    5 Marlyse Meyer (2001, pp. 73-107), em Estaes, levanta a hiptese de que essa carta tenha sido escrita pelo prprio Machado de Assis. Acho muito demonstrvel essa suposio.

    6 Com o ttulo alterado para O Romance Carnavalesco de Machado, esse ensaio reve-lador foi reeditado como pre-fcio da edio das Memrias Pstumas da Editora tica, So Paulo, 1975, pp. 5-9. Hoje, com o ttulo restaurado, pode ser lido em: Merquior, 1990, pp. 331-42.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.77, p. 149-169, maro/maio 2008158

    cmico, o elevado com o baixo, o regular

    com o irregular, o novo com o velho e

    assim por diante. A menipia promove fre-

    qentes exageros e contnuas caricaturas,

    que resultam no humor irreverente, cujo

    dispositivo tcnico mais importante ser a

    pardia ou imitao burlesca de estruturas

    consagradas da cultura. Incorpora a fantas-

    magoria, o dilogo, o aplogo, a fbula e

    outras formas mgicas de produo textual,

    em que smbolos e alegorias instituem um

    simulacro engenhoso que no se patenteia

    como representao do real, mas como dis-

    toro de verdades estabelecidas. O principal

    trao da menipia talvez consista em que ela

    imita discursos e declara que o faz; prefere

    reetir sobre a cultura, no sobre a natureza.

    Parece descrer das essncias, entendendo-as

    como noes construdas. Alinha-se com os

    sostas, no com Plato. Sendo espao da

    mobilidade e do relativo, essa modalidade de

    texto parece descrever o gnero polimorfo de

    O Alienista, que, assim como o Humanitismo

    de Quincas Borba, satiriza no o homem,

    mas aquilo que os homens falam do homem

    (Teixeira, 2005, pp. IX-LII).

    ALTAR & TRONOSem deixar de se constituir em pardia

    do estilo histrico da formao da cidade,

    O Alienista ser, sobretudo, uma caricatura

    especca dos desentendimentos do clero

    com o Estado, ocorridos no Brasil entre 1872

    e 1875. Na trama da novela, a Igreja no s

    vigia, como procura orientar os movimen-

    tos de Simo Bacamarte. Esse pormenor,

    alis, ser um dos enigmas da narrativa,

    que, em meio ao crescente prestgio da

    cincia, como que esconde a camalenica

    autoridade da Igreja sobre aquela noo

    que se projeta at o nal do texto, quando

    o vigrio da cidade pronunciar o veredicto

    sobre a insanidade do alienista. Por essa

    perspectiva, Simo Bacamarte, impondo-se

    como o mais elevado grau de racionalidade

    civil, ser metfora no apenas do imperador

    Pedro II, mas do prprio governo ilustrado

    da razo. A coerncia e a dedicao exces-

    sivas sero o trao burlesco de sua gura,

    em cujo desenho se misturam um elogio e

    um escrnio. Sua face cmica decorre do

    exagero da convico no poder moderador

    do juzo, propriedade que, no obstante, o

    torna o primeiro e nico na cidade. Padre Lo-

    pes, por outro lado, ser interpretado como

    encarnao das inltraes dos arranjos de

    corte e do suposto bom senso, orientados

    para o controle disfarado da populao.

    Nesse sentido, as insinuaes contra a

    Igreja no consistiriam propriamente em

    caricaturar sua disposio para o mando,

    mas em ironizar os artifcios empregados

    para dissimular essa mesma disposio. No

    primeiro captulo, em meio ao escndalo

    do motivo da loucura, escondem-se duas

    aluses disputa entre o padre Lopes e

    Simo Bacamarte.

    Depois de divulgar o dogma da infalibi-

    lidade do papa, Pio IX divulgou, em 1864,

    a encclica Quanta Cura, em cujas diretri-

    zes destaca-se o propsito de reconquista

    e de intensicao do poder espiritual da

    Igreja sobre certos setores supostamente

    autnomos da sociedade. Seguiu-se bula

    o documento conhecido como Syllabus,

    em que se enumeravam e se condenavam

    supostos excessos de liberdade do poder

    civil contemporneo. Entre os objetos das

    interdies, contavam-se as sociedades

    secretas, particularmente a maonaria.

    Procurando aplicar a diretriz catlica ao

    Brasil, o bispo de Olinda, D. Vital de Oli-

    veira, determinou a proibio da presena

    de maons nas irmandades religiosas de

    sua jurisdio, no que foi seguido por D.

    Antnio de Macedo Costa, bispo de Belm.

    Conforme a Constituio Imperial do Bra-

    sil, as relaes da Igreja com a Coroa eram

    reguladas pelo padroado, regime segundo o

    qual os membros do corpo eclesistico eram

    considerados funcionrios do Estado, de-

    vendo, no limite, obedincia ao imperador.

    O Estado manifestou-se contra os interditos

    episcopais. Como os bispos relutassem em

    sobrepor a Coroa ao Vaticano na questo

    da suposta prerrogativa espiritual da Igreja

    sobre a sociedade, o Conselho de Estado,

    presidido por Pedro II, condenou ambos os

    bispos a quatro anos de priso com trabalho

  • REVISTA USP, So Paulo, n.77, p. 149-169, maro/maio 2008 159

    forado, sob o argumento de desrespeito

    Constituio. O Vaticano protestou, e a

    populao brasileira cou dividida. Houve

    vasta mobilizao poltica e cultural, at que,

    em 1875, os bispos foram anistiados. Diante

    da necessidade poltica de recuo ttico, o

    imperador ter-se-ia declarado vencido, mas

    no convencido. At a primeira metade do

    sculo XX, a historiograa representava

    esse conito, conhecido como Questo

    Religiosa ou questo epscopo-manica,

    como uma das causas da proclamao

    da Repblica (Vianna, 1977, pp. 169-72;

    Fausto, 1994, pp. 229-30).

    A divergncia entre o poder civil e o po-

    der religioso ocasionou enorme bibliograa,

    tanto entre intelectuais quanto entre artistas e

    jornalistas do tempo (Vianna, 1944). A carica-

    tura das revistas ilustradas, ento em franco

    desenvolvimento no Brasil, acompanhou de

    perto o conito, tendo produzido discurso

    com tendncia anticlerical. Segundo Herman

    Lima, o assunto manteve-se tardiamente na

    imprensa, com efeitos que se fariam notar at

    meados de 1880. Em 1875, Rafael Bordalo

    Pinheiro, sintetizando o desfecho do conito,

    publicara, em O Mosquito, uma charge em

    que o imperador recebe golpes de Pio IX, com

    a legenda: Anal deu a mo palmat-

    ria! (in Lima, 1963, pp. 238-47). Machado

    de Assis acusado de se calar diante da

    polmica, diferentemente de vrios amigos

    Caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro, em O Mosquito, Rio de Janeiro, 18 de setembro

    de 1875. O presente ensaio estabelece relao discursiva entre essa caricatura, tomada

    metonimicamente, e a alegoria de O Alienista. Reproduzida de Lima, 1963, p. 245

  • REVISTA USP, So Paulo, n.77, p. 149-169, maro/maio 2008160

    de gerao, que teriam se entregue ao debate

    (Pontes, 1939, pp. 196-205). Tendo, na juven-

    tude, acusado o clero brasileiro de sobrepor

    a aparncia da liturgia essncia da religio,

    o artista preferiu omitir-se nos momentos

    de tenso poltica do episdio. Sete anos

    aps o trmino da crise, manifestou-se por

    meio da co de O Alienista, empregando

    a alegoria e o ceticismo irnico contra todas

    as foras em jogo, particularmente contra a

    Igreja. Assim, o presente ensaio prope o

    entendimento da novela como uma espcie

    de frase ou interveno nesse debate. Como

    se tem demonstrado, o artista optou por se

    manifestar por meio do humor alegrico,

    produzindo um espantoso caso de enigma

    literrio, at hoje inobservado pela histria

    de sua leitura.

    Como se viu anteriormente, o o con-

    dutor da fbula de O Alienista consiste na

    encenao pardica da luta pelo controle

    social, singularizada em momento agudo

    da disputa entre a Igreja e a cincia, que

    dominam as verdadeiras hipteses de co-

    mando, visto que a poltica (vereadores e

    povo) nada mais faz do que se desgastar em

    gestos de retrica inoperante diante da de-

    cisiva fora das duas outras instituies. Ao

    resumir as crnicas da cidade de Itagua, o

    narrador incorpora ironicamente a viso do

    senso comum, que tende a excluir a Igreja

    da luta pelo poder. Assim, o narrador, que

    debocha abertamente da cincia e da pol-

    tica, trata a Igreja com especial deferncia,

    insinuando talvez a noo ccional de que,

    com esse poder, devem-se empregar todos

    os recursos da retrica da dissimulao.

    Nas veladas insinuaes da autoridade do

    padre Lopes sobre Bacamarte, vislumbra-

    se o interminvel debate entre a teologia e a

    cincia, empenhadas com igual obstinao

    em apresentar a melhor hiptese sobre a

    origem do mundo e os meios de govern-

    lo. No primeiro captulo, escondidas em

    meio ao estardalhao do motivo da loucura,

    escondem-se duas aluses disputa entre

    o padre Lopes e Simo Bacamarte.

    Quando, depois de se formar na Europa

    e de conquistar a conana do prprio rei

    de Portugal, Simo Bacamarte retornou a

    Itagua, a organizao social da cidade acha-

    va-se praticamente concluda. Faltava-lhe

    um hospcio que, libertando os loucos dos

    descuidos das casas e das ruas, os recolhesse

    num s espao teraputico, regido pelo rigor

    cientco, pela objetividade tcnica e pela

    compreenso humana. Esses seriam os prin-

    cpios dominantes na psiquiatria europia

    entre o nal do sculo XVIII e a primeira

    metade do sculo XIX (Foucault, 2005).

    Alm de superar as diculdades materiais

    para a implantao do progresso, o alienista

    ter de lutar com as demais instncias do

    poder comunitrio. O primeiro a se mani-

    festar contra o novo mtodo foi o vigrio,

    que interpreta o projeto como resultado da

    perda do juzo e procura combater o mdico

    por meio de sua esposa:

    Olhe, D. Evarista, disse-lhe o padre

    Lopes, vigrio do lugar, veja se seu marido

    d um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de

    estudar sempre, sempre, no bom, vira o

    juzo (Assis, 1882).

    Depois de aprovada a criao da Casa

    Verde, a voz da Igreja, ainda no primeiro

    captulo, manifesta-se outra vez. Simo

    Bacamarte descobrira que o Alcoro asso-

    ciava o predomnio da razo prtica do

    pecado, donde nasce o respeito que deve

    aos loucos. O mdico escolheu a reexo

    como epgrafe para o edifcio, mas, por

    evitar desacordo com o padre, atribui-o

    tradio da doutrina catlica:

    A idia pareceu-lhe bonita e profunda, e

    ele a fez gravar no frontispcio da casa; mas,

    como tinha medo ao vigrio, e por tabela

    ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito

    VIII, merecendo com essa fraude, alis pia,

    que o padre Lopes lhe contasse, ao almoo,

    a vida daquele pontce eminente (Assis,

    1882, p. 6).

    Com isso, instaura-se denitivamente a

    tpica do debate entre a cincia e a teologia,

    que se particulariza na aluso especca do

    caso brasileiro. Como se v, o tema central

    de O Alienista estabelece-se com clareza

    j no primeiro captulo, mas o humor de-

    corrente da loucura e da revoluo popular

  • REVISTA USP, So Paulo, n.77, p. 149-169, maro/maio 2008 161

    conduziu a tradio de leitura a engano de

    percepo. Resultou da a transformao do

    acessrio em essencial. Na verso jornalsti-

    ca do texto, a seqncia como tinha medo

    ao vigrio, e por tabela ao bispo possui

    a seguinte redao: como tinha medo ao

    vigrio, e por tabela Inquisio. O vo-

    cbulo Inquisio pertence aos tempos

    remotos da ao da novela; o termo bispo

    associa-se ao presumvel sistema de vigiln-

    cia da Igreja no Segundo Reinado, contra

    o qual se colocava o discurso anticlerical

    da recente tradio do Realismo: sob a

    aparncia de Simo Bacamarte e do padre

    Lopes, vem-se frente a frente o imperador

    e D. Vital de Oliveira. Por outro lado, ao

    conceber um sbio brasileiro como adepto

    da cultura rabe, o artista talvez preten-

    desse relativizar o domnio dos padres do

    Ocidente, insinuando que as divergncias

    entre as religies se reduzem poltica e

    nomenclatura. Tal ceticismo irnico, sendo

    tpico da stira menipia, explica a estrutura

    humorstica de O Alienista, assim como d

    unidade aparente disperso dos outros

    contos de Papis Avulsos (Teixeira, 2005,

    pp. IX-LIII).

    No segundo captulo, a enumerao en-

    graada de casos de loucura deixa meio na

    sombra mais duas encenaes do confronto.

    A primeira motiva-se na altercao sobre o

    rapaz que misturava lnguas em seus discur-

    sos, fenmeno que o padre justica como

    herana da confuso de Babel, divergindo de

    Bacamarte, que optava por uma explicao

    cientca da suposta molstia:

    O vigrio no queria acabar de crer. Qu!

    um rapaz que ele vira, trs meses antes,

    jogando peteca na rua!

    No digo que no, respondia-lhe o alienis-

    ta; mas a verdade o que Vossa Reverends-

    sima est vendo. Isto todos os dias.

    Quanto a mim, tornou o vigrio, s se pode

    explicar pela confuso das lnguas na torre

    de Babel, segundo nos conta a Escritura;

    provavelmente, confundidas antigamente

    as lnguas, fcil troc-las agora, desde

    que a razo no trabalhe

    Essa pode ser, com efeito, a explicao

    divina do fenmeno, concordou o alienista,

    depois de reetir um instante, mas no

    impossvel que haja tambm alguma ra-

    zo humana e puramente cientca e disso

    trato

    V que seja, e co ansioso. Realmente!

    (Assis, 1882, p. 9).

    O arremate do dilogo reitera a vigilncia

    do padre sobre o cientista. Mesmo assim, o

    motivo, devido dissimulao retrica do

    texto, no se evidencia tanto quanto o tema

    da loucura e o da revoluo, que, tem-se

    visto, sendo secundrios, sero, todavia,

    mais aparentes. Pginas adiante, no mesmo

    captulo, o debate entre ambos atenua-se em

    trocadilho conciliador, embora o momento

    seja essencialmente mais agudo, pois, ao rei-

    vindicar o poder espiritual da prpria Casa

    Verde, o cientista fora advertido de que o

    domnio da espiritualidade era prerrogativa

    da Igreja, e no da cincia. Esse ser, por

    certo, o momento de maior conexo entre a

    novela e a Questo Religiosa, como deixa

    ver o exame das relaes entre o texto da

    novela e o discurso da histria:

    Simo Bacamarte comeou por organizar

    um pessoal de administrao; e, aceitando

    essa idia ao boticrio Crispim Soares,

    aceitou-lhe tambm dous sobrinhos, a quem

    incumbiu da execuo de um regimento

    que lhes deu, aprovado pela cmara, da

    distribuio da comida e da roupa e assim

    tambm da escrita, etc. Era o melhor que

    podia fazer, para somente cuidar do seu

    ofcio. A Casa Verde, disse ele ao vigrio,

    agora uma espcie de mundo, em que h

    o governo temporal e o governo espiritual.

    E o padre Lopes ria deste pio trocado, e

    acrescentava, com o nico m de dizer

    tambm uma chalaa: Deixe estar, deixe

    estar, que hei de mand-lo denunciar ao

    papa (Assis, 1882, pp. 11-2).

    muito provvel que os leitores de A

    Estao e os da edio original de Papis

    Avulsos tenham, espontaneamente, percebi-

    do a aluso dessa passagem crise poltica

    e cultural de sete anos antes, sobretudo

    porque, maneira de legenda de caricatura,

    o texto expe o nervo da controvrsia, isto

  • REVISTA USP, So Paulo, n.77, p. 149-169, maro/maio 2008162

    , patenteia o confronto entre o governo

    temporal e o governo espiritual. Como

    se v, neste ltimo sintagma, o segundo ad-

    jetivo destacado por meio do tipo itlico,

    procedimento que j se observa na verso

    da novela para revista.

    No nal do quarto captulo, em meio

    ao espanto da nova concepo de loucura

    proposta pelo mdico, o disfarce artstico

    do texto dispe as informaes de modo

    que o leitor, presumivelmente maravilhado

    pelas engenhosas idias do mdico, mal

    perceba a oposio do padre ao conceito

    ento apresentado. No obstante, o desnu-

    damento da alegoria vai se tornando cada

    vez mais claro e acaba por revelar que por

    trs da progresso do delrio do mdico,

    das ambies do povo e da inoperncia

    da Cmara o motivo central da estria

    desenha-se sombra dos signicados mais

    evidentes. Depois de considerar o novo

    conceito absurdo, padre Lopes declara que

    no merecia princpio de execuo. In-

    tensica um pouco mais a manifestao de

    seu convencimento, mas acaba por recuar,

    em nome da prudncia:

    Com a denio atual, que a de todos

    os tempos, acrescentou, a loucura e a razo

    esto perfeitamente delimitadas. Sabe-se

    onde uma acaba e onde a outra comea.

    Para que transpor a cerca?

    Sobre o lbio no e discreto do alienista

    roou a vaga sombra de uma inteno de

    riso, em que o desdm vinha casado comi-

    serao; mas nenhuma palavra saiu de suas

    egrgias entranhas. A cincia contentou-se

    em estender a mo teologia com tal

    segurana, que a teologia no soube enm

    se devia crer em si ou na outra. Itagua e o

    universo cavam beira de uma revoluo

    (Assis, 1882, p. 23).

    Como se v, o texto sugere, de fato, que

    Itagua um pouco mais do que Itagua.

    Equipara-se ao universo. Acompanhando

    a alegoria losca da novela, o vocbulo

    revoluo dessa passagem possui dupla

    funo: por um lado, anuncia a volpia

    mdica de Simo Bacamarte, que subverte

    a ordem social por meio do suposto exer-

    ccio da razo em benefcio da cidade. Por

    outro lado, sugere que, maneira de Pedro

    II na desavena com o clero, o cientista,

    encarnando o poder civil, agir luz do

    sol e com propsitos claros. A Igreja, ao

    contrrio, representando o poder religioso,

    adotar caminhos oblquos e insinuantes.

    No captulo quinto, quando se consuma a

    transferncia de boa parte da populao de

    Itagua para a Casa Verde, o padre Lopes

    recorre novamente a D. Evarista, instigan-

    do-a a moderar os presumveis excessos

    do marido:

    A propsito de Casa Verde, disse o pa-

    dre Lopes escorregando habilmente para o

    assunto da ocasio, a senhora vem ach-la

    muito cheia de gente.

    Sim?

    verdade. L est o Mateus

    O albardeiro?

    O albardeiro; est o Costa, a prima do

    Costa, e Fulano, e Sicrano, e

    Tudo isso doudo?

    Ou quase doudo, obtemperou o padre.

    Mas ento?

    O vigrio derreou os cantos da boca, ma-

    neira de quem no sabe nada, ou no quer

    dizer tudo; resposta vaga, que se no pode

    repetir a outra pessoa, por falta de texto

    (Assis, 1882, p. 35).

    A partir do captulo sexto, transfere-se

    ao povo a ao contra a Casa Verde. Aps

    o fracasso das invectivas do povo contra a

    cincia, redobra-se a autoridade do mdico,

    que recolhe os revoltosos. Coerente com a

    impessoalidade da medicina, a cincia no

    hesitar em internar a prpria esposa de Ba-

    camarte, sob o diagnstico de vaidade des-

    medida. Depois disso, recrudesce a oposio

    de padre Lopes, que solicita esclarecimentos

    sobre a recluso de D. Evarista.

    Todavia, no penltimo captulo (O

    Final do Pargrafo 4o), padre Lopes no

    resiste ao segundo conceito de loucura e ser

    internado. Mas, como a terapia lhe ofere-

    cesse a hiptese de uma fraude nobilitante,

    reduz-se imediatamente normalidade do

    erro e solto. Depois de suspeitar que ele

    prprio talvez fosse a nica pessoa com

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    retido de carter em Itagua, o alienista

    pe-se prova diante de um conselho,

    presidido por padre Lopes. Assim posto, o

    vigrio no hesita em denunciar invulga-

    res qualidades ticas no mdico o que o

    obriga a se internar. Tal como na histria

    do Brasil o Vaticano triunfou sobre a von-

    tade do imperador, no se pode negar que

    a novela termina pela vitria da teologia

    sobre a cincia: depois que padre Lopes

    encarcerou Simo Bacamarte na Casa Ver-

    de, deu-se ao trabalho de espalhar o boato

    de que jamais houvera louco em Itagua a

    no ser o alienista.

    RAZO & PODERO segundo elemento em importncia

    para uma possvel reconstituio do uni-

    verso de referncia de O Alienista seria o

    debate em torno do conceito de loucura.

    Essa controvrsia decorre, sobretudo, da

    sistematizao da prtica psiquitrica no

    Brasil, ocorrida a partir de 1841, com a

    criao do Hospcio de Pedro II. Como se

    sabe, essa foi a primeira medida importante

    do imperador. Por meio desse asilo, o go-

    verno imperial pretendia criar a imagem

    de modernidade administrativa e interes-

    se social, implantando no pas o sistema

    teraputico francs, tido como moderno

    desde o nal do sculo XVIII. A doutrina

    adotada pela nova instituio fundava-se

    no mtodo de Filippe Pinel (1745 1826)

    e Dominique Esquirol (1772 1840). Tais

    alienistas tornaram-se famosos na Europa

    por valorizarem a observao estatstica de

    pacientes e por acreditarem na hiptese da

    loucura como doena, e no como danao

    incurvel. Criado em 1841, o Hospcio de

    D. Pedro II foi inaugurado em 1852, isto ,

    trinta anos antes da redao de O Alienista.

    A grande festa de abertura, com a presena

    do imperador, indica a importncia do even-

    to para a gurao da imagem da cincia

    no Segundo Reinado, em cujo centro se

    colocava um homem de saber to variado

    quanto presumivelmente moderno. A cele-

    brao inaugural da Casa Verde, que durou

    sete dias, mimetiza a estrutura e a inteno

    desse evento imperial.

    Somente uma pesquisa especializada

    poder promover o levantamento adequado

    da presena do tema da loucura nos debates

    culturais da imprensa carioca do perodo,

    mas sabe-se que, no mbito especializado

    da medicina, a questo era debatida desde o

    Perodo Regencial. Por outro lado, a prpria

    preferncia temtica do romance natura-

    lista e a presena do assunto em crnicas

    e na co posterior de Machado de Assis

    devem ser entendidas como apropriao

    de discursos do tempo, e no como deter-

    minao de circunstncias pessoais ou de

    conhecimentos especcos do autor sobre

    psiquiatria. Visto tratar-se essencialmente

    de pardia, a linguagem de O Alienista

    opera por combinaes engenhosas de este-

    retipos populares da linguagem cientca,

    tanto no nvel dos vocbulos quando no dos

    conceitos. No se deve esquecer que se trata,

    tambm, de pastiche do estilo da literatura

    naturalista e de outras formas de texto com

    pretenses cientcas no perodo.

    Entre 15 de janeiro de 1881 e 15 de

    julho do mesmo ano, a seo literria de

    A Estao publicou uma obra intitulada

    Revelaes Fisiolgicas: O Nariz. Trata-se

    da traduo de Le Nez: LEtre Dvoile par

    sa Forme, de Alphonse Bu. A presena

    desse livro nas pginas da revista deve

    ter sido deliberao editorial de Machado

    de Assis, que tambm publicou contos

    nos nmeros em que saiu a traduo. Tal

    como se observa em diversas passagens de

    O Alienista, o captulo 49 das Memrias

    Pstumas de Brs Cubas (A Ponta do

    Nariz) imita o estilo pseudodissertativo

    das revelaes siolgicas de Alphonse

    Bu. Alguns crticos procuram demonstrar

    a presena de conhecimentos psiquitricos

    na novela. Aqui, defende-se a idia de que

    no ser preciso diploma de mdico para

    se produzirem arremedos engraados da

    tcnica do diagnstico clnico, como se

    observa no magistral ltimo pargrafo do

    segundo captulo de O Alienista.

    Evidentemente, a stira da novela no

    incide sobre o autoritarismo da cincia, mas

    sobre a iluso da vitria da razo no jogo do

  • REVISTA USP, So Paulo, n.77, p. 149-169, maro/maio 2008164

    poder. A convergncia aguda de sua ironia

    incide, como se tem visto, contra o dom-

    nio da Igreja, que, mantendo-se margem

    da luta pelo controle social, terminar por

    silenciar a cincia, neutralizando a para-

    fernlia conceitual dos tempos modernos.

    Controlando os limites entre o alvio e a

    dor, entre a sade e a doena, entre a vida

    e a morte, competir cincia mdica

    estabelecer tambm as fronteiras entre a

    loucura e o equilbrio. Fundado nessa prer-

    rogativa tradicional, Simo Bacamarte no

    se constrange em deliberar sobre a matria.

    Ao encenar a criao de um novo conceito

    para essa antiga questo, a novela pretende

    evidenciar o estatuto convencional da lou-

    cura, que, dependendo de critrio cultural,

    ser sempre entendida como um dado de

    natureza, uma verdade absoluta.

    Sendo manifestao da diferena no

    outro, a demncia ser combatida para que

    a alteridade se reduza ao mesmo. Como a

    loucura produz a surpresa, a medicina de-

    ver evitar o risco, eliminando a diferena

    por meio da recluso e da terapia. Vem da

    a autoridade do mdico, que, tradicional

    e logicamente, ser concebido como um

    aliado da sociedade na luta contra os ma-

    lefcios do desvio, da anomalia, da doena

    e da morte. O maior espanto artstico em O

    Alienista consiste em que Simo Bacamarte,

    cuja funo seria preservar a identidade do

    mesmo, assume o papel do outro, da dife-

    rena e do imprevisvel, promovendo, por

    isso, o caos e a confuso. Assim, o agente da

    ordem converte-se subitamente na origem

    da desordem. Por mais que o mdico realce

    o estatuto cientco de seu poder de deliberar

    sobre os limites da sanidade e da loucura,

    a populao de Itagua outorga-se o direito

    de, por critrios da vida prtica, contestar

    as deliberaes do cientista, visto que, em

    ltima anlise, ele determina os contornos

    do desejvel e do indesejvel.

    Pela perspectiva da novela, a demncia

    ser uma realidade mrbida com objetivi-

    dade concreta na natureza do indivduo,

    desde que sua existncia seja admitida por

    outrem. Esse ser apenas um dos parado-

    xos institudos pelas regras da co. Ela

    existe sem existir, pois requer espectador.

    Enm, como todas as coisas que se deixam

    perceber, a loucura depende de seu oposto;

    dene-se por oposio e por contraste. Por

    isso, Bacamarte a considerar, no captulo

    IV, uma ilha ou um continente perdida no

    oceano da razo. Ser ilha ou continente,

    conforme o grau de reconhecimento de sua

    propagao. V-se, com isso, que a imagem

    dual do conceito no ser, por certo, um

    simples ornato, mas um ornato funcional,

    com importncia decisiva na dialtica de

    significao do texto. Dessa dualidade

    depende outro par essencial ao sentido da

    novela: o de normalidade e desvio. Se do-

    minar a razo, a loucura ser ilha; se faltar,

    ser continente. A primeira hiptese implica

    a norma; a segunda, o extravio.

    Mas o grande diferencial para o esta-

    belecimento do conceito de loucura no

    ser apenas a alternncia de ausncia e de

    presena da razo, mas tambm a idia de

    regularidade e extenso de sua presena ou

    ausncia. Assim, a histria do conceito de

    loucura em O Alienista passa por dois mo-

    mentos, distintos e sucessivos. No primeiro,

    a sandice ser denida como resultado de

    patologia cerebral, que, excluindo a razo

    das faculdades mentais, gera o desequilbrio

    e constitui-se em exceo ou anomalia.

    Acham-se nesse caso os pacientes descritos

    no segundo captulo, Torrente de Loucos,

    como, por exemplo: o moo que, todos os

    dias, fazia um discurso com citaes em

    grego e latim; outro, que vivia imitando

    estrela; um terceiro, que, tendo matado a

    mulher e o amante dela, vivia em busca do

    m do mundo. Ser tambm o caso de um

    homem humilde que, com gestos violentos

    contra si, contava s paredes a histria de

    sua origem divina. Esse tipo de loucura, que

    coincide mais ou menos com o discurso da

    psiquiatria oitocentista, jamais atingir na

    novela o grau estatstico de dominante, per-

    manecendo, por isso, como desequilbrio,

    anormalidade, aberrao ou insnia.

    O segundo conceito de loucura no se

    dene em termos explcitos na novela, mas a

    prtica sistemtica de recluso dos pacientes

    faz supor uma lgica da nova modalidade

    de demncia, que se funda, no mais em

    manifestaes de patologia cerebral, mas

  • REVISTA USP, So Paulo, n.77, p. 149-169, maro/maio 2008 165

    no desrespeito aos princpios ticos con-

    sensualmente admitidos como timos na

    cultura ocidental, tais como: honestidade,

    coerncia, sinceridade, austeridade, leal-

    dade, modstia, parcimnia, sapincia e

    moderao vocabular. A falta de qualquer

    desses atributos, cuja presena implica o

    domnio da razo, exclui o indivduo da

    racionalidade social e o caracteriza como

    vicioso, anmalo, excepcional e desequi-

    librado. Como o critrio leva em conta a

    noo estatstica de consenso tico, esse

    conceito depender sempre do princpio de

    normalidade ou de mdia comportamental.

    No ser apenas estatstico, mas tambm

    comparativo. Por isso, a virtude tanto poder

    produzir a semelhana como a diferena,

    dependendo da amplitude de sua presena

    ou de sua ausncia para se caracterizar

    como loucura ou como sanidade. Assim, o

    esbanjamento de dinheiro ou a crena em

    maldies, indicando carncia de raciona-

    lidade, afastam as pessoas das virtudes da

    parcimnia e da sapincia, tornando-as vti-

    mas da prodigalidade e da ignorncia, vcios

    que produzem a anomalia ou o desvio. A

    estria de Costa e de sua prima encena essa

    pequena alegoria conceitual, cuja estrutura

    se projetar nos demais casos de extravio,

    de aberrao ou de perda de equilbrio que

    se observam nas personagens enumeradas

    entre o captulo V (O Terror) e o XI (O

    Assombro de Itagua). Por esse critrio,

    sero recolhidos, entre inmeros outros,

    o albardeiro Mateus (ostentao), Martim

    Brito (exagero vocabular) e a prpria D.

    Evarista (vaidade). No captulo XII, sabe-se

    que o critrio da ausncia de virtude levou

    quatro quintos da populao Casa Verde.

    O exame dessa estatstica conduz o alienista

    concluso de que a normalidade no con-

    sistia no culto da virtude, mas na adeso ao

    vcio. Isso desencadeia a soltura dos viciosos

    e a recluso dos virtuosos, porque a prtica

    da virtude torna as pessoas anormais, fora

    da regra e desequilibradas.

    E aqui surge uma variante do segundo

    conceito de loucura. Sendo raras, as virtu-

    des sero tambm frgeis, pois os poucos

    internados por causa da anomalia da pro-

    bidade convertem-se sem grande esforo

    normalidade do erro. Para demonstrar

    a teoria, a voz narrativa recorre uma vez

    mais s pequenas parbolas sobre a suposta

    inclinao do homem fraude. O primeiro

    exemplo ser o do padre Lopes, cuja tera-

    pia, como a dos demais que se extremam

    pela correo, consistir no aliciamento do

    carter, que substitui a eqidade pela pr-

    tica do logro, do embuste e das vantagens

    imerecidas. Ao constatar que o ltimo louco

    por comportamento tico foi restitudo

    sanidade das imperfeies de conduta, o

    alienista, suspeitando de que ele prprio

    fosse o nico virtuoso, interna-se para tra-

    tamento e estudo.

    POLTICA & PODERO Alienista ridiculariza tambm a noo

    de levante popular, incorporado ao discurso

    historiogrco brasileiro por ocasio das

    revoltas do Perodo Regencial e do incio

    do governo de Pedro II. Entre esses tumul-

    tos, contam-se as insurreies do exrcito

    no Rio de Janeiro (1831-32) e as vrias

    rebelies de provncia, como a Cabanagem

    (Gro-Par, 1835-40), a Sabinada (Bahia,

    1837-38), a Balaiada (Maranho, 1838-41),

    a Farroupilha (Rio Grande do Sul, 1835-45)

    e a Praieira (Pernambuco, 1848-50). No

    parece razovel extrair de O Alienista um

    pensamento sistemtico e denitivo sobre

    essas manifestaes em geral e muito me-

    nos sobre uma em particular. Todavia,

    demonstrvel a hiptese de que a rebelio

    popular gurada na novela a Revolta dos

    Canjicas satiriza alguns aspectos comuns

    no propriamente a esses movimentos,

    mas aos textos que deles se formaram na

    historiograa do Segundo Reinado. Alm

    da evidente relao pardica entre os

    nomes (em 1798, tinha havido a Revolta

    dos Alfaiates), a mais importante conexo

    entre o arremedo machadiano e o modelo

    historiogrco talvez fosse a perda de vidas

    humanas em nome de contingncias frgeis

    e passageiras, que, no obstante, se apre-

    sentam aos revoltosos e ao governo como

    verdades essenciais e inegociveis. assim

  • REVISTA USP, So Paulo, n.77, p. 149-169, maro/maio 2008166

    que se faz a histria, diro os polticos; mas

    ser essa tambm a tpica do desconcerto

    do mundo, aplicada co burlesca como

    ncleo da signicao artstica do texto. O

    motivo pelo qual Simo Bacamarte decreta

    a insanidade do barbeiro Porfrio Caetano

    das Neves, e por isso o recolhe Casa

    Verde, no ser propriamente o fato de ele

    ter liderado a revolta, mas a circunstncia

    de a revolta ter provocado onze mortos e

    vinte e cinco feridos.

    A subverso da ordem sem o critrio

    da racionalidade, que deveria instituir o

    bem comum, sustenta o sarcasmo macha-

    diano contra o movimento dos Canjicas. O

    mesmo argumento crtico preside a outras

    manifestaes do discurso unicador do

    Imprio Bragantino, tal como se observa, por

    exemplo, na Memria Histrica da Revolu-

    o da Provncia do Maranho desde 1838

    at 1840, publicada em 1848 por Domingos

    Jos Gonalves de Magalhes7. O poeta

    era admirado por Machado e aludido no

    captulo XII de O Alienista. Essa memria

    consiste em relato minucioso da revolta

    que, depois, seria conhecida como Balaiada.

    Nele, o autor sustenta a tese de que no h

    espontaneidade nas insurreies populares,

    interpretando-as como resultado de interesses

    de grupos dirigentes que, com pouca con-

    sistncia doutrinria e nenhuma convico

    moral, utilizariam desordeiros para objetivos

    contrrios aos interesses da nao. Vejam-

    se, em graa atualizada, alguns fragmentos

    das Observaes Preliminares (captulo

    I) e dos Usos e Costumes do Maranho

    (captulo II) de sua Memria:

    Nada h que espantar nos deva nesta srie

    de rebelies que desde a poca da nossa

    Independncia poltica at hoje tm arre-

    bentado nas provncias do Imprio. []

    Muitos senhores fazendeiros, imitao

    dos antigos bares, vivem sem respeito

    algum s autoridades, vingando-se por suas

    mos de particulares insultos; acoutam em

    suas terras os facinorosos que buscam o

    seu abrigo, e que em tudo se prestam s

    suas vinditas. De tal gente se escoltam e se

    fazem temveis, e to fcil lhes ordenar

    um assassinato, como o negar uma dvida,

    ou ao menos no pagar aos credores; os

    quais por sua vez, se podem, no duvidam

    empregar os mesmos meios para haver os

    seus bens. Esta a gente que incitada nos

    fez a guerra, ela a que comps o exrcito

    da rebeldia.

    Sem a sisudez do Visconde de Ara-

    guaia, a revolta de O Alienista ser tam-

    bm produzida como motim ou anarquia

    sem orientao conceitual nem programa

    de ao. Sendo uma espcie de monstro

    sem p nem cabea, a idia de revolta, tal

    como vislumbrada pelo discurso imperial

    do Segundo Reinado, ameaa a unidade

    do Estado. Por outro lado, h conexes,

    igualmente irnicas, entre a fugacidade

    do poder conquistado pelos revoltosos

    da histria brasileira e o breve perodo de

    glria dos rebeldes entre os Canjicas, que,

    maneira de alguns modelos historiogr-

    cos, se alternam no comando por meio

    de intrigas internas e traies oportunistas,

    como parece ter ocorrido na Cabanagem.

    Nos onze meses de domnio cabano, houve

    desavena fatal entre os rebeldes. Depois

    de assassinar o presidente regencial da pro-

    vncia do Par, o fazendeiro-comerciante

    Flix Antnio Clemente Melcher assumiu

    a presidncia pela fora, para, logo em

    seguida, ser deposto e morto pelo aliado

    Francisco Pedro Vinagre, que, sendo lavra-

    dor, permanece pouco tempo no governo e

    o transfere ao jornalista Eduardo Angelim,

    que imediatamente seria destitudo pelas

    foras governamentais.

    Essa parece ser a perspectiva adotada na

    pintura da Revolta dos Canjicas, para cujos

    contornos clara a adoo de dispositivos

    retricos de poemas heri-cmicos da tradi-

    o europia, entre os quais se destacam, em

    portugus, O Hissope, de Antonio Dinis da

    Cruz e Silva, e O Desertor, de Silva Alva-

    renga, ambos conhecidos e mencionados por

    Machado de Assis. Aps a revolta do captulo

    VI (A Rebelio), com gestos largos e sem

    representar ameaa real, o barbeiro Porfrio

    Caetano das Neves depe a Cmara, prende

    os vereadores e assume o poder. Depois, sai

    em busca de acordo com o padre Lopes, que

    o ignora solenemente, sem sequer admitir o

    7 Originariamente editada na Revista Trimensal do Instituto Histrico do Brasil, n. 11, 3o trimestre, 1848. Teve segunda edio no tomo VIII das Obras de D. J. G. de Magalhaens (1865, pp. 1-153). Tendo sido oferecida ao Instituto Histrico, essa Memria foi premiada pela mesma instituio com a grande medalha de ouro na sua sesso solene em 1847.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.77, p. 149-169, maro/maio 2008 167

    dilogo. Em seguida, o barbeiro esquecido

    de que o objetivo do levante era a demolio

    da Casa Verde procura apoio em Simo

    Bacamarte, na esperana de que a cincia

    legitimasse a revolta. Embora admita o di-

    logo, Simo tambm no acatar a oferta.

    Conforme a pardia do discurso histrico

    que norteia o texto machadiano, a posio

    de ambas as instituies em face do apelo

    revolucionrio evidencia a tpica da excluso

    do povo nos destinos do mando social. Diante

    do abandono dos ideais revolucionrios do

    lder, ascende outro barbeiro, Joo Pina, que

    logo ser neutralizado por foras legais do

    Rio de Janeiro.

    O ponto de vista da novela no desqua-

    lica a noo de revoluo poltica em si,

    insinuando, todavia, que esta s se justica

    pela necessidade dos motivos. Ainda no

    captulo VI, um poeta local classicara a

    Casa Verde de Bastilha da razo humana.

    Percebendo o poder da metfora, o barbeiro

    Porfrio apropria-se da imagem para, com

    ela, agregar adeptos causa da revolta. A

    inveno dessa e de outras frases de efeito

    imita com humor a suposta eccia dos cli-

    chs na comunicao popular. Mais adiante,

    no mesmo captulo, a imagem ressurge na

    voz do prprio narrador, que a adota com

    a nalidade de ironizar a carncia de mo-

    tivao histrica da rebelio, encenada em

    termos francamente maliciosos. Ao compa-

    rar a marcha dos Canjicas com a Revoluo

    Francesa, a voz narrativa, movendo-se entre

    o escrnio e o maldizer, parece sugerir que

    a representatividade numrica deve ser

    imprescindvel ao conceito de movimento

    popular:

    A ao podia ser restrita, visto que muita

    gente, ou por medo ou por hbitos de educa-

    o, no descia rua; mas o sentimento era

    unnime, ou quase unnime, e os trezentos

    que caminhavam para a Casa Verde, dada

    a diferena de Paris a Itagua, podiam ser

    comparados aos que tomaram a Bastilha

    (Assis, 1882, p. 45).

    Em lugar da defesa de princpios ou de

    causas altrusticas, os lderes da Revolta dos

    Canjicas movem-se exclusivamente pela

    vaidade do poder, sem que ao menos cogitem

    em se preparar para o exerccio do governo.

    Transitam da navalha espada com a leveza

    dos tipos cmicos de farsa popular, como

    se o manejo de uma e outra no requeresse

    nenhum preparo especco:

    Foi nesse momento decisivo que o bar-

    beiro sentiu despontar em si a ambio do

    governo; pareceu-lhe ento que, demolindo

    a Casa Verde e derrocando a inuncia do

    alienista, chegaria a apoderar-se da Cmara,

    dominar as demais autoridades e constituir-

    se senhor de Itagua. Desde alguns anos que

    ele forcejava por ver o seu nome includo

    nos pelouros para o sorteio dos vereadores,

    mas era recusado por no ter uma posio

    compatvel com to grande cargo. A ocasio

    era agora ou nunca. [] Este ia na frente,

    empunhando to destramente a espada,

    como se ela fosse apenas uma navalha um

    pouco mais comprida. A vitria cingia-lhe

    a fronte de um nimbo misterioso. A digni-

    dade de governo comeava a enrijar-lhe os

    quadris (Assis, 1882, pp. 49-50, 52).

    Observe-se que a gurao dos motivos

    do barbeiro, assim como a construo de

    sua moralidade como personagem, aproxi-

    mam-no da tradio retrica do tipo ridculo,

    sobretudo pelo evidente descompasso entre

    a altitude da ambio e a rasura da condi-

    o. Nesse sentido, concebido conforme

    o esquema potico aplicado por Machado

    na feitura de Custdio do conto O Em-

    prstimo, tambm de Papis Avulsos ,

    que se dividia igualmente entre o mpeto

    de gua e as asas de frango rasteiro.

    Como se v, a dinmica de O Alienista

    insinua o princpio de que a legitimidade do

    poder emana da razo, encarnada em feixe

    ideal de foras concntricas de virtudes

    absolutas, que associam cincia, iseno

    e verdade. Mais ou menos o perl que o

    Imprio Bragantino projetou para D. Pedro

    II. Nesse sentido, se o mdico derrotado

    como personagem, no deixa de erigir-se

    em smbolo ou emblema de moralidade

    incorruptvel. No obstante, preside ao pro-

    cesso de demonstrao daquele princpio o

    humor das aporias paradoxais, que talvez se

  • REVISTA USP, So Paulo, n.77, p. 149-169, maro/maio 2008168

    pudesse sintetizar na idia de que a razo,

    sendo causa eciente do poder e da tica,

    prova-se incompatvel com a ordem prtica

    das coisas. A razo existe, mas as pessoas

    recusam o seu domnio, donde resulta o

    desgoverno do mundo, que ca merc das

    ambies extemporneas. Excedendo o jogo

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    humorstico das rivalidades entre um padre,

    um cientista, uma Cmara e uma popula-

    o de provncia, admissvel supor que o

    sentido ltimo de O Alienista consiste na

    advertncia de que a verdadeira Histria, a

    ser composta conforme a estrutura dos fatos,

    deveria imitar a linguagem do humor.

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