Interpretação ECG

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1 Análise sistematizada do ECG Anibal Albuquerque Introdução O electrocardiograma (ECG) é o registo da actividade eléctrica do coração, à superfície do corpo. Essa actividade eléctrica pode ser captada, amplificada e apresentada sob a forma de um registo (em papel / ficheiro informático) ou em “display” contínuo num ecrã de um monitor. O conhecimento da actividade eléctrica do coração data de meados do século XIX. No início do séc. XX, Einthoven criou o ECG com 3 derivações bipolares (DI,DII,DIII), com colocação de “eléctrodos” nas extremidades (fig. 1). Definiu o triangulo de Einthoven, e deu nome às ondas do ECG utilizando letras sequenciais do alfabeto (P,Q,R,S,T). Em meados do séc. XX são introduzidas por Goldberger as 3 derivações unipolares das extremidades (aVR,aVL,aVF), e data de 1954 o consenso sobre a criação do ECG de 12 derivações, que se mantém até aos dias de hoje. Apesar de “antigo” o ECG continua a ser, actualmente, uma ferramenta essencial na prática médica. É um exame complementar de diagnóstico muito simples, barato, reprodutível e de fácil execução à cabeceira do doente, e um instrumento essencial de monitorização no doente crítico. Não dá informação fiável sobre a estrutura ou actividade mecânica do coração e, por isso, a interpretação do ECG deve ser sempre integrada no contexto clinico, para maximo benefício da sua utilização. Portanto, a clínica é determinante. Em medicina do doente crítico, por exemplo, a análise “dirigida” e imediata do ECG é essencial para a decisão terapêutica, em função do contexto e gravidade da situação é o caso da distinção entre ritmo desfibrilhável ou não desfibrilhável na paragem cardiorespiratória, ou a observação do supradesnivelamento do segmento ST (versus não-supradesnivelamento) num doente com suspeita de síndrome coronário agudo. Todavia, aquilo que aqui se propõe, é muito mais uma metodologia para a análise “asséptica” do ECG, e não para o diagnóstico electrocardiográfico de nenhuma doença. Mesmo as arritmias e perturbações da condução que, essas sim, são identificadas pelo ECG e exigem frequentemente uma intervenção terapêutica directa, o ECG não define a doença que lhes dá origem. Este texto não é exaustivo, nem pretende ser. Pretende ser simples e muito prático. Não tem um “rigor milimétrico”; o ECG não se vê à lupa… mas à beira do doente. E é para isso que esperamos que sirva. (Figura 1)

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Interpretação ECG, Medicine

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Page 1: Interpretação ECG

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Análise sistematizada do ECG

Anibal Albuquerque

Introdução

O electrocardiograma (ECG) é o registo da actividade eléctrica do coração, à superfície do corpo.

Essa actividade eléctrica pode ser captada, amplificada e apresentada sob a forma de um registo (em papel / ficheiro

informático) ou em “display” contínuo num ecrã de um monitor.

O conhecimento da actividade eléctrica do coração data de

meados do século XIX. No início do séc. XX, Einthoven criou o ECG

com 3 derivações bipolares (DI,DII,DIII), com colocação de

“eléctrodos” nas extremidades (fig. 1). Definiu o triangulo de

Einthoven, e deu nome às ondas do ECG utilizando letras

sequenciais do alfabeto (P,Q,R,S,T). Em meados do séc. XX são

introduzidas por Goldberger as 3 derivações unipolares das

extremidades (aVR,aVL,aVF), e data de 1954 o consenso sobre a

criação do ECG de 12 derivações, que se mantém até aos dias de

hoje.

Apesar de “antigo” o ECG continua a ser, actualmente, uma ferramenta essencial na prática médica. É um exame

complementar de diagnóstico muito simples, barato, reprodutível e de fácil execução à cabeceira do doente, e um

instrumento essencial de monitorização no doente crítico. Não dá informação fiável sobre a estrutura ou actividade

mecânica do coração e, por isso, a interpretação do ECG deve ser sempre integrada no contexto clinico, para

maximo benefício da sua utilização. Portanto, a clínica é determinante. Em medicina do doente crítico, por exemplo,

a análise “dirigida” e imediata do ECG é essencial para a decisão terapêutica, em função do contexto e gravidade da

situação – é o caso da distinção entre ritmo desfibrilhável ou não desfibrilhável na paragem cardiorespiratória, ou a

observação do supradesnivelamento do segmento ST (versus não-supradesnivelamento) num doente com suspeita

de síndrome coronário agudo.

Todavia, aquilo que aqui se propõe, é muito mais uma metodologia para a análise “asséptica” do ECG, e não para o

diagnóstico electrocardiográfico de nenhuma doença. Mesmo as arritmias e perturbações da condução que, essas

sim, são identificadas pelo ECG e exigem frequentemente uma intervenção terapêutica directa, o ECG não define a

doença que lhes dá origem.

Este texto não é exaustivo, nem pretende ser. Pretende ser simples e muito prático. Não tem um “rigor milimétrico”;

o ECG não se vê à lupa… mas à beira do doente. E é para isso que esperamos que sirva.

(Figura 1)

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Princípios do ECG

As células cardíacas auto-despolarizam-se; esta capacidade (automaticidade) é maior nas células do nó sinusal. O

ritmo intrínseco mais rápido desta estrutura suprime a automaticidade normal das outras células cardíacas.

O estimulo sinusal é conduzido ao restante miocárdio. A condução do estimulo eléctrico através das várias células

cardíacas (condutibilidade) é muito rápida, todavia não é uniforme. E no ECG é possível ser analisada a condução do

estimulo eléctrico através do coração e, eventualmente, a existência de perturbações da condução.

A despolarização das células do musculo cardíaco não é igual à das células do musculo liso ou do musculo

esquelético; depende também do movimento de iões através da membrana celular mas, ao nível do coração, o

processo é um pouco mais complexo, originando-se um potencial de acção. As células cardíacas são refractárias

(refractoriedade) a nova despolarização durante quase toda a duração do potencial de acção, prevenindo o

fenómeno da tetanização.

Há basicamente 2 tipos de potenciais de acção: os potenciais de “resposta rápida”, cuja despolarização depende

sobretudo da abertura e entrada rápida do ião sódio para o espaço intracelular (cardiomiócitos auriculares,

ventriculares e fibras de Purkinje), e os potenciais de “resposta lenta”, cuja despolarização depende sobretudo dos

canais de cálcio, o que acontece nas células do nó sinusal e do nó aurículo-ventricular. (fig. 2)

(Figura 2 – ver texto; ERP-periodo refractário efectivo; RRP-período refractário relativo)

No ECG é possível identificarmos ondas (actividade eléctrica das camaras

cardíacas), complexos (sequência de ondas), segmentos (períodos sem

actividade eléctrica) e intervalos (onda + segmento) (fig. 3).

A onda P representa a despolarização das aurículas, o segmento PR (ou PQ) a

repolarização auricular, o intervalo PR a condução aurículo-ventricular, o

complexo QRS a despolarização ventricular, e o segmento ST + a onda T (e a

onda U, quando existe) a repolarização ventricular. O intervalo QT (medido

desde o início do complexo QRS até ao fim da onda T) mede a duração do

potencial de acção.

(Figura 3)

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A velocidade de traçado por defeito é de 25mm/segundo. Como habitualmente o ECG está registado num papel

milimétrico, significa que 5mm correspondem a 0,2 segundos (ou seja, 200 milisegundos – ms) e 1mm corresponde a

0,04 segundos (ou seja, 40ms).

A análise do ECG tem 3 vertentes:

1. Análise do ritmo

2. Análise da condução

3. Análise morfológica

A análise da condução é integrada na análise do ritmo – quando temos perturbações da condução sino-

auricular (SA) ou aurículo-ventricular (AV).

A análise da condução é integrada na análise morfológica – quando temos perturbações da condução

intraventricular (bloqueios de ramo).

Portanto, na análise do ECG vamos basicamente considerar apenas 2 parâmetros:

1º Avaliação do ritmo cardíaco (+ as alterações da condução SA e AV). As alterações da condução SA não vão

ser consideradas, pela dificuldade da sua interpretação no ECG de superfície.

2º Avaliação morfológica (+ as alterações da condução intra-ventricular)

Na análise/monitorização do ritmo apenas necessitamos de uma derivação do ECG, idealmente o DII.

Para a análise morfológica do ECG é necessário obter um traçado com as 12 derivações clássicas:

- 3 derivações bipolares das extremidades (DI,DII e DIII).

- 3 derivações unipolares das extremidades (aVR,aVL,aVF).

- 6 derivações précordiais (V1 a V6); em algumas situações clínicas podem ser registadas derivações adicionais, como o V3R-V4R ou V7-V9.

ANÁLISE do RITMO

1º Qual é a frequência cardíaca (FC)

- número de complexos QRS que existem em 10 segundos (tira de ritmo do ECG em folha A4, velocidade do

papel 25mm/seg) X 6

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(Figura 4 - Neste exemplo, existem 11 complexos QRS em 10 segundos X 6 = 66 bpm. A “regra dos 300” não é recomendada

porque é menos rigorosa e não aplicável nos ritmos cardíacos irregulares).

Por convenção, a frequência cardíaca (FC) “normal” varia entre 60 e 100 batimentos por minuto (bpm).

Acima de 100 bpm falamos em taquicardia, e abaixo de 60 em bradicardia. Notar que, em idades pediátricas,

a FC normal é mais elevada.

2º O ritmo é regular ou irregular

a) intervalos RR ± iguais NORMAL

(Figura 5 - Este ritmo é irregular, mas é normal - o aumento da frequência cardíaca acontece na inspiração e, na expiração, por

acção vagal ao nível do nó sinusal, a frequência cardíaca diminui fisiológicamente).

b) intervalos RR completamente irregulares FIBRILHAÇÃO AURICULAR

(Figura 6 - Fibrilhação auricular com frequência cardíaca média de 66 bpm)

(Figura 7 - Fibrilhação auricular com FC média de 162 bpm. Com atenção é possível notar a irregularidade completa dos

intervalos RR, comparando com a regularidade no ECG da figura 9. Os sintomas e as alterações hemodinâmicas que esta

taquicardia determinam constituem, para além da doença de base que lhe dá origem, uma causa frequente de recurso do doente

aos serviços de urgência).

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c) intervalos RR regulares mas, ocasionalmente, um complexo QRS normal, prematuro (não precedido de

onda P sinusal) EXTRASSISTOLES SUPRAVENTRICULARES

(Figura 8 - O 6º complexo QRS é morfologicamente normal, mas prematuro, não precedido de onda P sinusal; existe todavia

uma de onda P invertida – onda P’ – extrassístole auricular).

(Figura 9 – Taquicardia supraventricular – a FC é cerca de 200 bpm, os complexos QRS são estreitos e regulares, não se

conseguem identificar ondas P. Ver algoritmo da intervenção na taquicardia de complexos estreitos, do Conselho Português de

Ressuscitação)

d) complexos QRS de morfologia aberrante EXTRASSISTOLES VENTRICULARES

As extrassistoles ventriculares podem ter várias expressões:

- isoladas (fig. 10);

- polimórficas ou multifocais (fig. 11);

- frequentes, podendo assumir um padrão repetitivo – bigeminismo (fig. 12), trigeminismo (fig. 13);

- em pares (fig. 14);

- precoces (surgem em cima da onda T precedente – o fenómeno R em T, em tempos considerado

um critério de gravidade e percursor de taqui/fibrilhação ventricular; todavia não há sustentação

científica segura a documentá-lo);

- episódios de 3 ou mais extrassistoles – taquicardia ventricular (TV). Estes episódios podem terminar

espontaneamente (taquicardia ventricular não sustentada), ou não (fig. 15). Neste último caso se,

clinicamente, o doente estiver em paragem cardiorrespiratória, trata-se de um ritmo desfibrilhável.

Os complexos QRS podem não ser todos iguais – taquicardia ventricular polimórfica, mais

frequentemente “torsades de pointes”. Adicionalmente, é necessário distinguir a TV do ritmo

idioventricular acelerado (RIA), em que a FC da taquicardia é inferior a 120bpm.

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(Figura 10 - O 5º complexo QRS é prematuro, não precedido de onda P sinusal, e de morfologia diferente dos complexos QRS

normais; é um QRS largo o que, embora possa ser difícil de apreciar na derivação DII, é facilmente detectável na derivação V1

simultânea. Trata-se de uma extrassístole ventricular – não é possível todavia garantir, em absoluto, não se tratar de uma

extrassístole supraventricular com condução ventricular aberrante. Uma característica que pode ajudar, em alguns casos, em

determinar a origem ventricular da extrassistole é o facto de ter uma pausa compensadora completa, ou seja, o intervalo RR que

inclui a extrassistole é exactamente o dobro do intervalo RR normal).

(Figura 11 - Neste exemplo há 4 extrassistoles ventriculares, de 2 focos – um representado pelo 2º e 10º complexos QRS, e outro

pelo 4º e 8º complexos QRS).

(Figura 12 – Extrassistoles ventriculares em bigeminismo – após cada complexo QRS normal precedido de onda P, há uma

extrassistole ventricular).

(Figura 13 – Extrassistoles ventriculares em trigeminismo).

(Figura 14 – Neste traçado observa-se extrassistoles ventriculares monomórficas muito frequentes – isoladas, 1º e 3º complexos

QRS do traçado e, seguidamente, 2 pares).

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(Figura 15 – Taquicardia ventricular sustentada. Se o doente estiver em paragem cardíaca trata-se de um ritmo desfibrilhável. De

outra forma, agir segundo o algoritmo da taquicardia de complexos largos do Conselho Português de Ressuscitação).

3º Ondas P

a) sempre positivas em DII RITMO SINUSAL

b) não tem ondas P positivas em DII ondas P negativas em DII RITMO AURICULAR NÃO-SINUSAL

(ou auricular ectópico) (fig. 16)

ondas F negativas em DII,DIII,aVF FLUTTER AURICULAR

ondas f “caóticas” em DII e V1 FIBRILHAÇÃO AURICULAR

c) não tem actividade auricular vísivel, mas o ritmo é regular RITMO JUNCIONAL

- QRS é estreito, mas pode ser largo se houver bloqueio de ramo (circunstância em que pode

ser difícil de distinguir de um ritmo idioventricular);

- pode haver ondas P’ invertidas em DII após o QRS (fig. 19).

(Figura 16 – Ritmo auricular ectópico. A despolarização auricular faz-se “de baixo para cima” e não a partir do nó sinusal, dando

origem a uma onda P’ invertida a preceder o complexo QRS e não, como deveria, uma onda P positiva em DII. Confirmar que não

houve troca de electrodos nas derivações das extremidades).

(Figura 17 – Flutter auricular típico. As ondas de flutter, ondas F, são invertidas em DII, têm uma frequência de cerca de

300/min, e dão este aspecto em “dentes-de-serra”. A FC é cerca de 75 bpm, pelo que se trata de um flutter auricular com

bloqueio 4:1).

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(Figura 18 – Flutter auricular típico. Observa-se uma taquicardia de complexos estreitos com uma FC aproximada de 150 bpm.

Todavia, durante a realização de massagem do seio carotídeo, o grau de bloqueio aumenta transitoriamente de 2:1 para 4:1 e

detecta-se, após o 5º complexo QRS no traçado, o aspecto típico em “dentes-de-serra”).

(Figura 19 – Ritmo juncional. A despolarização auricular, neste caso uma onda P’ invertida em DII e positiva em V1, aparece após

o complexo QRS).

(Figura 20 –“Wandering pacemaker”, ou ritmo auricular multifocal. Neste ECG, o ritmo sinusal representado pelas ondas P dos 3

últimos complexos QRS alterna com 1 ou mais focos ectópicos auriculares; esta disritmia pode ocorrer em pessoas normais).

4º Relação ondas P – complexos QRS

a) 1:1 NORMAL

Qual é o intervalo PR >3 < 5mm NORMAL

> 200ms (± > 5mm) BAV do 1ºgrau

< 110ms (± < 3mm) pré-excitação (WPW, outros

padrões de pré-excitação)

(Figura 21 – O ritmo é sinusal, a FC de 60 bpm e a relação ondas P:complexos QRS é 1:1. Todavia, o intervalo entre o início da

onda P e o início do complexo QRS é superior a 5mm – bloqueio AV do 1ºgrau. Na realidade não se trata de um verdadeiro

bloqueio, antes um atraso da condução aurículo-ventricular que não origina qualquer perturbação do ritmo).

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(Figura 22 – Padrão de Wolf-Parkinson-White. O intervalo PR é curto, menos de 3mm, porque o QRS começa mais cedo – pré-

excitação ventricular, aqui representada por uma onda delta no ramo ascendente da onda R.)

b) sempre mais 1 onda P que complexos QRS (3:2, 4:3, 5:4, etc), com intervalo PR a aumentar até 1 onda P

que não é conduzida BAV 2ºgrau Mobitz I (Wenckbach).

(Figura 23 – Fenómeno de Wenckbach – o 2º complexo QRS aqui representado é precedido de uma onda P com intervalo PR

normal; no complexo QRS seguinte o intervalo PR aumentou e, a seguir, há uma onda P – mais difícil de ver porque cai em cima

da onda T precedente – que não é conduzida. Posteriormente o ciclo repete-se: 3 ondas P para 2 complexos QRS, ou seja, grau de

bloqueio 3:2. O intervalo PP é ± constante).

c) intervalo PR constante, mas ondas P ocasionalmente sem complexo QRS seguinte (inclui bloqueio 2:1)

BAV 2ºgrau Mobitz II.

(Figura 24 – Bloqueio AV do 2º grau 2:1 – Mobitz II)

d) ondas P com ritmo regular, complexos QRS com ritmo regular (complexos estreitos ou largos, com FC

geralmente lenta), sem relação entre os 2 ritmos (dissociação AV) BAV 3º grau ou completo.

(Figura 25 – Bloqueio AV do 3º grau com complexos QRS estreitos. Existe uma dissociação AV completa; identificam-se 14 ondas

P com ritmo regular, algumas “escondidas” no QRS ou nas ondas T, e apenas 5 complexos QRS que determinam a frequência

cardíaca efectiva).

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(Figura 26 – Bloqueio AV do 3º grau com complexos QRS largos. Nesta situação o ritmo de escape ventricular é habitualmente

infrahisiano e a bradicardia é, tendencialmente, mais grave que no BAV completo com complexos QRS estreitos).

5º Qual é a duração do QRS

- estreito (QRS < 3mm) normal (ritmo suprahisiano, acima do feixe de His)

- largo (QRS ≥ 3mm) largo ritmos suprahisianos:

- bloqueio de ramo

- padrão de WPW (à custa da onda delta)

- outras situações (CMH por exemplo)

ritmos infrahisianos

- ritmo idioventricular

- pacemaker ventricular

(Figura 27 – Pacemaker com captura ventricular; observa-se uma espicula antes do QRS, o “spike”, que traduz a condução do

estimulo eléctrico artificial desde o gerador até à ponta do cateter. Em contacto com o endocárdio a despolarização – captura -

ventricular é feita a partir desse ponto. Não é possível sistematizar a análise morfológica do ECG – como a ponta do cateter está

em contacto com o endocardio do ventrículo direito a morfologia do QRS de captura é, habitualmente, uma morfologia de BRE, o

que até nem é o caso no exemplo apresentado).

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(Figura 28 – Pacemaker normofuncionante em doente com fibrilhação auricular; existem complexos QRS estreitos com ritmo

irregular, alternando com complexos de captura ventricular com ritmo regular).

(Figura 29 – Pacemaker em doente com fibrilhação auricular; apesar do ritmo regular do pacemaker mantêm-se os critérios para

hipocoagulação oral permanente).

(Figura 30 – Pacemaker bi-cameral: observa-se um “spike” a preceder a onda P, pelo cateter colocado na aurícula direita, e outro

“spike” a preceder o complexo QRS, pelo cateter ventricular).

ANÁLISE MORFOLÓGICA

Nenhuma alteração morfológica, por mais típica que seja, pode sobrepor-se á avaliação clínica.

1º QRS largo Bloqueio ramo direito (BRD) seguir para 2º e avaliar eixo (apenas) no plano frontal

Bloqueio de ramo esquerdo (BRE)

Ritmo ventricular / pacemaker ventricular

WPW

Análise morfológica termina aqui

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2º QRS estreito (ou BRD) avaliar eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal e, excepto BRD, também no plano

horizontal.

A) QRS plano frontal avaliar em DI,DIII,DIII

a. entre -30º e +90º (QRS “positivo” em DI e DII) NORMAL

b. < -30º desvio esquerdo do eixo (QRS “positivo” em DI, e “negativo” em DII e DIII)

i. Ondas Q patológicas em DII,DIII,aVF (antecedentes de enfarte?)

ii. Hipertrofia ventricular esquerda (procurar outros critérios de HVE)

iii. Bloqueio fascicular anterior esquerdo (BFA)

c. > + 90º desvio direito do eixo (QRS “negativo” em DI, e “positivo” em DII e DIII)

i. Troca de cabos dos membros superiores

ii. Hipertrofia ventricular direita (procurar outros critérios de HVD)

iii. Bloqueio fascicular posterior (BFP) – raro

A B C

(Figura 31 – 3 ECGs onde é possível observar A-um eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal normal, B-um desvio esquerdo e,

por último, C-um desvio direito. Neste último caso pensar sempre num possível erro técnico frequente – troca de cabos dos

membros superiores).

O BRE é, por natureza, um bloqueio bifascicular (BFA + BFP).

Outro bloqueio bifascicular frequente é o BRD + BFA (fig. 32).

Designa-se de bloqueio trifascicular um bloqueio bifascicular com PR longo (BAV do 1º grau); não é

exactamente a mesma coisa que bloqueio AV completo.

(Figura 32 – Bloqueio bi-fascicular: BRD + BFA. O complexo QRS é largo e em V1-V2 observa-se um padrão rsR’/rR’ típico do BRD.

O eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal é inferior a -30º. Não tem critérios de HVE ou ondas Q patológicas em DII,DIII,aVF

que poderiam condicionar o desvio esquerdo do eixo, pelo que o desvio esquerdo é diagnóstico de BFA)

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(Figura 33 – Não é um BRD, apesar do padrão RR’ em V1. Da mesma forma as ondas Q patológicas em DII, DIII e aVF não têm

qualquer significado patológico. A análise morfológica deste ECG limita-se à identificação de um padrão de WPW, neste caso

tipo A. Identifica-se um PR curto e ondas delta “típicas” em DI e V3-V5 – ver página 8).

(Figura 34 – Troca de cabos dos membros superiores no primeiro ECG; observe as diferença no 2º ECG, corrigido, sobretudo o

eixo no plano frontal. Já a troca de cabos dos membros inferiores não tem qualquer importância).

B) QRS plano horizontal avaliar nas derivações précordiais (se BRD seguir para 3º)

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a. Ondas R aumentam progressivamente de V1-V6 em relação às ondas S NORMAL

b. Rotação “anti-horária” (R de grande amplitude, eventualmente maior que as ondas S, em V1-V2

excluindo o BRD). Pode ser uma posição eléctrica normal mas, dependendo da clinica e outros

critérios, pensar em hipertrofia ventricular direita ou enfarte posterior.

c. Rotação no sentido dos ponteiros do relógio (ausência ou má-progressão das ondas R de V1-V4,

eventualmente com ondas S profundas em V5-V6) acompanha muitas vezes o BFA; pode

também, dependendo da clinica, observar-se num enfarte da parede anterior.

(Figura 35 – Evolução normal dos complexos QRS nas derivações précordiais; o eixo eléctrico médio do QRS no plano horizontal situa-se entre V3 e V4).

(Figura 36 – idem; importante a colocação correcta dos eléctrodos précordiais).

A B

(Figura 37 – No ECG da figura A observa-se má-progressão das ondas R nas derivações precordiais, ou seja rotação horária do

eixo no plano horizontal, situação que pode ter várias conotações clínicas, mas que acontece com frequência associado ao BFA.

Na figura B, observa-se uma rotação anti-horária do eixo no plano horizontal, com ondas R de grande amplitude em V1-V3; não

confundir com BRD).

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3º Análise morfológica sistematizada olhar para uma coisa de cada vez, em todas as derivações

Sequencialmente: 1º) ondas P; 2º) complexos QRS; 3º) segmento ST; 4º) ondas T; 5º) intervalo QT.

A) Ondas P – (em ritmo sinusal são sempre positivas em DII porque, neste contexto, a despolarização

auricular faz-se “de cima para baixo” a partir do nó sinual).

A análise morfológica das ondas P não tem grande interesse prático; no entanto, valorizar ondas P

maiores que 3mm em amplitude ou duração em DII).

Se o contexto clínico for de pericardite, pode observar-se um infradesnivelamento do intervalo PR (em

relação à linha de base de referência – intervalo TP).

B) Complexos QRS

a) estreito/largo

Se o ritmo é suprahisiano (sinusal, por exemplo) e o complexo QRS é largo (≥120 ms, ou seja ≥3mm)

pensar em bloqueio de ramo direito (BRD) ou esquerdo (BRE).

Empiricamente é habitual descrever um padrão de bloqueio incompleto de ramo direito (BIRD)

quando a duração do QRS é superior a 100ms e inferior a 120ms. O padrão rSr’ em V1-V2 com a

duração do complexo QRS inferior a 110ms, é considerado uma variante da normalidade.

BRD

V1 – V2 V5 – V6

BRE

b) eixos (já analisado)

c) deflecções

- ondas Q: 1ª deflecção negativa do QRS não precedida de onda R

- onda R: 1ª deflecção positiva do QRS

- onda S: 1ª deflecção negativa após a onda R

Conceito de onda Q patológica onda Q com ≥1mm de duração e uma amplitude pelo menos 1/3 da onda

R subsequente; se não existir onda R subsequente, designa-se de complexo QS. As ondas Q patológicas não

têm significado patológico em aVR e podem não ter também, isoladamente, em DIII e/ou em V1. Para terem

(Figura 38 – O QRS largo no BRD

apresenta uma morfologia RSR’ ou RR’

em V1-V2 e ondas S terminais em V5-V6;

no BRE o padrão RR’ observa-se em V5-

V6,DI e aVL).

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“significado patológico” as ondas Q patológicas devem existir em, pelo menos, duas derivações

concordantes do ECG (ver adiante o que são “derivações concordantes”).

A B

(Figura 39 – Nestes 2 ECGs observam-se ondas Q patológicas. Em A as ondas Q em DIII e aVF cumprem os critérios; de notar que,

isoladamente em DIII, a existência de ondas Q patológicas pode ser um achado normal. Em B observam-se ondas Q patológicas,

mais concretamente complexos QS, em V1-V3; este achado, embora suspeito, sem contexto clínico não é diagnóstico de enfarte

do miocárdio).

Critérios de voltagem de hipertrofia ventricular esquerda (HVE) – há vários critérios; os mais usados são:

- critério de Sokolow-Lyon (não é válido abaixo dos 40 anos): onda R em V5 ou V6 + S em V1 > 35mm

-critério de Cornell (sensibilidade 22%, especificidade 95%): onda R em aVL + onda S em V3 > 28mm

(sexo masculino), ou > 20mm (sexo feminino).

- outros critérios: - onda R em DI + S em DIII > 25mm

- onda R em aVL > 11mm

- onda R em V5 ou V6 > 25mm

- outros critérios podem ser úteis quando adicionados aos critérios de voltagem, para aumentar a

especificidade da HVE: - alterações ST-T

- desvio esquerdo do eixo QRS no plano frontal

- aumento da duração do QRS, por vezes > 3mm.

- BRE muitas vezes “mascara” uma hipertrofia e/ou dilatação ventricular esquerda.

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(Figura 40 – Neste ECG observam-se múltiplos critérios de HVE – critérios de voltagem, aumento da duração do QRS, alterações

da repolarização e desvio esquerdo do eixo no plano frontal que, neste contexto, não permite definir um bloqueio fascicular

anterior).

Critérios de hipertrofia ventricular direita (HVD) – há vários critérios, nem todos muito específicos e que

dependem, em última análise, do contexto clínico:

- R/S > 1 em V1 e R/S < 1 em V5 ou V6

- onda R em aVR > 5mm

- desvio direito do eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal

- alterações ST-T

- BRD pode traduzir dilatação e/ou hipertrofia ventricular direita.

Outras alterações do QRS

▸ “Baixa voltagem” dos complexos QRS – não tem nenhum significado patológico especifico (observa-se em

pessoas mais idosas, obesas, e doentes com enfisema ou derrame pericárdico, por exemplo).

▸ Perturbações não-sistematizáveis da condução intra-ventricular (pequenos “entalhes” nas ondas R ou S,

sobretudo nas derivações précordiais, que não configuram bloqueios de ramo).

C) Segmento ST – valorizar desnivelamentos (elevação e/ou depressão).

Considerar a linha de base o segmento TP (desde o fim da onda T ao início da onda P

subsequente).

1. Supradesnivelamentos

a. Definir o ponto J – fim do complexo QRS e início do segmento ST

Habitualmente fácil de determinar.

Ocasionalmente observa-se uma pequena onda J após a onda R em V5-V6 (fig. 41), que pode

ser normal. Onda J de grande amplitude (onda de Osborne) foi descrita na hipotermia,

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hipercalcemia, hemorragia intracraneana ou mesmo isquemia do miocárdio, circunstâncias

onde é possível depois constatar a sua reversibilidade.

Um supradesnivelamento do ponto J em V1-V2 > 2mm, e por vezes V3, com

supradesnivelamento do segmento ST “em sela” que por vezes mimetiza um BRD (todavia

sem ondas S em V5-V6) tem sido descrito no padrão de Brugada, sobretudo o tipo 1 que é o

mais característico (raro); no padrão tipo 2 o ECG não é diagnóstico, apenas sugestivo, e

pode ser precipitado por multiplas situações, como a febre por exemplo, e por fármacos.

A B

Figura 41 – Onda J) (Figura 42 – Em A, padrão sugestivo de Brugada tipo 2; em B

reverteu).

b. Quantificar o supradesnivelamento 40-60-80ms após o ponto J (entre 1 – 2 mm após o ponto J,

não existindo consenso geral sobre o melhor momento para valorizar o supradesnivelamento).

c. Avaliar a morfologia do supradesnivelamento (linear, concavidade superior ou concavidade

inferior).

Sem grande interesse prático, é todavia descrita uma maior especificidade do

supradesnivelamento ST com concavidade inferior no enfarte do miocárdio (fig. 43).

(Figura 43 – Supradesnivelamento ST com concavidade inferior)

d. Concordância das derivações:

i. DII,DIII,aVF parede inferior

ii. V1-V4 parede anterior

iii. V4-V6,DI,aVL parede lateral

iv. V1-V2 parede posterior (infradesnivelamento em vez de supradesnivelamento) (fig.

46).

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Numa situação clínica sugestiva de SCA, para ser considerado um SCA com

supradesnivelamento do segmento ST ”exige-se” uma elevação acima da linha de base

(medida entre 1-2 mm após o ponto J):

▸ ≥ 1mm nas derivações periféricas (DII,DIII,aVF,DI,aVL)

▸ ≥ 2mm nas derivações précordiais (V1-V6)

(Figura 44 – Supradesnivelamento ST de V1-V4 “crónico”, num doente após um enfarte do miocárdio não-recente da parede

anterior, situação à qual se atribui muitas vezes a designação de “padrão aneurismático”; deve realçar-se todavia que o ECG não

serve para fazer o diagnóstico de aneurisma ventricular esquerdo).

e. Pesquisar infradesnivelamentos do segmento ST em derivações recíprocas

i. As situações de supradesnivelamentos ST de causa não-isquémica não têm

habitualmente infradesnivelamentos associados nas derivações contra-laterais (ex.:

repolarização precoce, miopericardite, cardiomiopatia hipertrófica, TEP, síndrome de

Brugada, hipertensão arterial, colecistite ou pancreatite aguda, hipertensão

intracraneana, outras).

ii. A existência de infradesnivelamentos ST em derivações recíprocas (“imagem em

espelho”) aumenta a especificidade dos supradesnivelamentos concordantes como sinal

de isquemia. O mecanismo deste fenómeno nos síndromes coronários agudos nem

sempre é bem conhecido, podendo corresponder a um fenómeno eléctrico passivo (a tal

“imagem em espelho” em derivações contra-laterais) ou isquemia mais grave,

subendocárdica.

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A B

(Figura 45 – No primeiro ECG observa-se um acentuado supradesnivelamento do segmento ST em DII,DIII,aVF – derivações

concordantes – e um infradesnivelamento “recíproco” em DI e aVL compatível, em função do contexto clínico, com um síndrome

coronário agudo, parede inferior. Em B observa-se um supradesnivelamento ST nas derivações V1-V5 compatível com um

síndrome coronário agudo, paredes anterior + lateral, ou seja, anterior “extenso”).

(Figura 47 – Supradesnivelamento ST em DII,DIII,aVF,V4-V6, que são derivações “concordantes” das paredes inferior e lateral,

com infradesnivelamento “recíproco” em V1-V3 e aVL).

(Figura 46 – ECG com supradesnivelamento ST em V5-V6, parede

lateral, e infradesnivelamento ST com ondas R de grande amplitude

em V1-V2 o que, no contexto clínico apropriado, pode ser compatível

com o “supradesnivelamento da parede posterior”).

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A B (Figura 48 – Angina de Prinzmetal. Em A, a dor torácica foi acompanhada de uma elevação acentuada do segmento ST em V1-V4,DI e aVL, com alterações recíprocas em DII,DIII,aVF e V6; para além destas alterações proeminentes do segmento ST, observa-se um bloqueio fascicular anterior e um bloqueio de ramo direito e, em termos de ritmo, 2 extrassistoles supraventriculares, o 7º e o 14º complexos QRS. Notar que o supradesnivelamento é tão pronunciado que quase parece configurar um QRS muito alargado. Em B, após alívio rápido da dor com nitratos, o supradesnivelamento ST regrediu, bem como o BRD, e as ondas T surgem invertidas em DI,aVL,V1-V3).

(Figura 49 – Uma situação em que o supradesnivelamento ST, neste caso de V1-V4, “não é interpretável”. Trata-se de um BRE

que pode surgir em muitas situações patológicas. Todavia, num doente com SCA, um BRE “de novo” deve ser interpretado como

um SCA com supradesnivelamento ST – embora na literatura estejam descritos critérios que aumentam a especificidade do

diagnóstico de BRE de causa isquémica aguda, os critérios de Sgarbossa, o quadro clínico é que deve ser determinante na decisão

diagnóstica e terapêutica).

(Figura 50 – Hipertrofia ventricular esquerda. Para além dos critérios de voltagem observam-se alterações da repolarização

ventricular, entre os quais o supradesnivelamento ST de V1-V3 cuja especificidade, como sinal de isquemia, é baixa).

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2. Infradesnivelamentos

a. Definir o ponto J

b. Quantificar o infradesnivelamento do segmento ST 80ms (2mm) após o ponto J

c. Avaliar a morfologia do segmento ST (ascendente, horizontal, descendente)

d. Determinar a reversibilidade

em função do contexto clínico

▸ na doença coronária o infradesnivelamento ST pode surgir de forma espontânea

(com ou sem dor anginosa), ou induzido, numa prova de esforço por exemplo (fig.

52).

e. Concordância das derivações

i. Paredes inferior, anterior e lateral (idêntico ao supradesnivelamento)

ii. Infradesnivelamento ST em V1-V2, eventualmente com onda R de grande amplitude

pode corresponder ao supradesnivelamento ST da parede posterior (imagem recíproca).

A B

(Figura 52 – Em A observa-se um infradesnivelamento acentuado do segmento ST, concomitante com dor anginosa, que reverte

em B. Aqui representado apenas V4 e V5).

Fig. 51 – Padrões de infradesnivelamento do segmento ST, ascendente, horizontal e

descendente, respectivamente. Os dois últimos perfis são mais específicos, embora

não patognomónicos, de isquemia do miocárdio. A quantificação do

infradesnivelamento deve ser feita 80ms, ou seja 2mm, após o ponto J).

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f. Voltar ao início… e pesquisar supradesnivelamentos do segmento ST

▸ no contexto de um possível SCA, o supradesnivelamento ST “prevalece” sempre sobre os

infradesnivelamentos, mesmo que estes tenham uma maior expressão.

D) Ondas T

Em relação às ondas T, devemos reter como principio que, no ECG do adulto, as ondas T são sempre

positivas em todas as derivações, excepto em aVR que são sempre negativas.

Mas, no ECG normal é possível observar ondas T achatadas, bifásicas ou invertidas nas seguintes derivações:

DIII, aVL ou V1. Nestas situações, a polaridade da onda T tem o mesmo sentido do complexo QRS (fig. 53).

Em pessoas jovens normais (< 20 anos), sobretudo no sexo feminino, observa-se por vezes inversão T de V1-

V3, o que se convencionou chamar de “padrão juvenil”.

As alterações da repolarização ventricular (segmento ST e onda T) são frequentes. Na ausência de um

contexto clínico devem ser consideradas “inespecíficas” pois, embora mais frequentes em doentes com

patologia cardíaca, podem ser detectadas em muitas outras situações patológicas (perturbações hidro-

electrolíticas, metabólicas, fármacos, sepsis, doenças pulmonares, sistémicas ou neurológicas, patologia

abdominal aguda, etc), ou mesmo em pessoas normais (ex.: atletas).

As ondas U não são habitualmente visíveis, embora estejam descritas ondas U proeminentes em situações

de hipocaliémia (nota: não confundir a onda U com a onda P subsequente – ver fig. 57).

(Figura 53 – ECG normal. As ondas T invertidas em DIII e V1, para além de aVR, são normais porque seguem o sentido da

polaridade do QRS).

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(Fig. 54 – Ondas T invertidas em V2-V6, de grande amplitude, muito características na cardiopatia isquémica).

(Fig. 55 – Ondas T de grande amplitude nas derivações précordiais, muito características da fase “hiperaguda” do enfarte – neste

caso acompanham o supradesnivelamento do segmento ST; observa-se já ondas Q patológicas em V3).

(Fig. 56 – ECG de um adulto saudável. Ondas T de grande amplitude nas derivações précordiais, de ramos assimétricos – o ramo

ascendente é mais lento e o descendente mais rápido – bem assim como um supradesnivelamento ST de V1-V4 de tipo

“repolarização precoce”, sem significado patológico. Ondas T de grande amplitude observam-se também na hipercaliémia).

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(Fig. 57 – Neste ECG o intervalo PR é tão prolongado que a onda P pode confundir-se com uma onda U; trata-se “apenas” de um ECG com bloqueio AV do 1ºgrau).

E) Intervalo QT

O intervalo QT mede a duração do potencial de acção. Há circunstâncias clínicas, e fármacos (amiodarona,

sotalol, quinidina, outros), que aumentam a duração do potencial de acção e podem precipitar o

aparecimento de disritmias ventriculares “malignas”, entre as quais as “torsades de pointes”,

O intervalo QT, medido desde o início do QRS até ao fim da onda T, deve ser “corrigido” para a FC, através da

fórmula de Bazett:

Considera-se um valor QTc anormal superior a 450ms no sexo masculino, e 470ms no sexo feminino. A maior

parte dos ECG actualmente faz a análise automática do intervalo QT e QT corrigido.

(Fig. 58 – ECG com intervalo QT de 514ms, QT corrigido de 527ms, num doente a fazer antibioterapia, neste caso piperacilina + tazobactam. Muitos fármacos, alguns de utilização”não-cardiológica” como alguns anti-depressivos, anti-histaminicos, anti-eméticos ou antibióticos, podem provocar QT longo e risco de disritmias ventriculares, pelo que se recomenda o seu conhecimento).

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(Fig. 59 – ECG normal, de um atleta; detecta-se bradicardia sinusal, critérios de voltagem de HVE, padrão rSr’ em V1,

supradesnivelamento ST de V1-V3, e padrão de “repolarização precoce”, com ondas T de grande amplitude de V2-V4).

ECG normal em atletas Critérios de Seattle (Drezner JA, Ackerman MJ, Anderson J,et al. Br J Sports Med 2013;47:122–124)

1. Bradicardia sinusal (≥ 30 bpm) 2. Arritmia sinusal 3. Ritmo auricular ectópico 4. Ritmo juncional 5. Bloqueio AV do 1ºgrau (interval PR > 200 ms) 6. Bloqueio AV do 2ºgrau Mobitz I (Wenckebach) 7. Padrão rSR´ em V1-V2 8. Critérios de voltagem de hipertrofia ventricular esquerda 9. Padrão de repolarização precoce (elevação do ponto J e do segmento ST) 10. Elevação (com convexidade inferior) do segmento ST combinado com inversão das ondas T de V1-V4.

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Resumo

Como ler um ECG:

1º Como está o doente – qual o contexto clínico e, se na presença de doente critico, avaliação ABCDE. Nenhuma alteração do ECG, por mais típica que seja, pode sobrepor-se á avaliação clínica.

2º ECG: - qualidade do traçado - identificar e datar o registo

3º Análise do ritmo Qual a FC Ritmo regular / irregular qual a irregularidade? Actividade auricular – ondas P (ritmo sinusal), outras (P’,F,f) Relação ondas P / QRS Intervalo PR (ou PQ) – normal, curto ou aumentado Duração do QRS (estreito / largo)

4º Análise morfológica QRS estreito ou BRD avaliar o eixo no plano frontal QRS largo - se BRE, WPW, ritmo ventricular análise morfológica termina aqui QRS estreito avaliar eixo no plano horizontal Ondas P (pouco importante…) QRS (Q patológicas, critérios de voltagem de HVE, outras alterações) Segmento ST

supradesnivelamento – quantificar 1-2mm após o ponto J, concordância das derivações, infra em derivações “recíprocas”

infradesnivelamento – quantificar 2mm após o ponto J, morfologia, concordância das derivações

Onda T – invertida em avR, pode ser invertida em DIII,aVL ou V1 se QRS predominantemente negativo Intervalo QT

5ª Elaboração do relatório – sem diagnósticos clínicos e/ou laboratoriais como “enfarte”, “isquemia”, “hipercaliemia”, ou outras coisas mais difíceis de definir no ECG como “sobrecarga”.

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Elaboração de um relatório de ECG

1º caso A interpretação do ECG vai ser feita sem qualquer informação clínica. Deve aproveitar-se a análise automática que, hoje em dia, os electrocardiógrafos geralmente fornecem.

Análise do ECG:

1. FC = 66 bpm 2. Ritmo regular 3. Tem ondas P positivas em DII ritmo sinusal 4. Relação P:QRS = 1:1, mas PR > 5mm BAV do 1ºgrau 5. QRS estreito (112ms) 6. Desvio esquerdo do eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal: -42º

(na ausência de HVE ou desvio esquerdo por ondas Q patológicas em DII,DIII,aVF BFA) 7. Rotação horária do eixo eléctrico médio do QRS no plano horizontal (“má-progressão” das ondas R nas

derivações précordiais). 8. Ondas Q patológicas em V2 (complexos QS) 9. Sem desnivelamentos significativos do segmento ST 10. Ondas T achatadas em DI,V6, e invertidas em aVL (em aVR é normal). 11. Intervalo QT corrigido = 426ms (normal).

Uma proposta de relatório:

Ritmo sinusal, FC 66 bpm. Bloqueio aurículo-ventricular do 1º grau Bloqueio fascicular anterior Ondas Q patológicas (complexos QS) em V2 Alterações das ondas T – aplanamento em DI,V6 e inversão em aVL.

Comentário: No relatório final, sem conhecimento da informação clínica, em nenhuma circunstância deve constar o

diagnóstico de “enfarte do miocárdio” (embora as ondas Q em V2 o possam sugerir), ou “isquemia do miocárdio” (embora a cardiopatia isquémica possa ser a causa das alterações das ondas T observadas).

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2º caso

Análise do ECG:

1º Análise do ritmo 1. FC = 72 bpm 2. Ritmo completamente irregular 3. Não tem ondas P, mas tem ondas f fibrilhação auricular 4. Relação P:QRS – não se aplica 5. QRS largo (137ms) – pensar em bloqueio ramo 2º Análise morfológica 6. Padrão RSR’ em V1-V2, com ondas S em DI,aVL,V5-V6 BRD 7. Eixo eléctrico médio do QRS no plano frontal dentro do quadrante normal (QRS “positivo” em DI e DII). 8. Eixo eléctrico médio do QRS no plano horizontal – não se aplica (BRD). 9. Ondas Q patológicas em DII,DIII,aVF 10. Supradesnivelamento do segmento ST (1-2 mm) em DIII,aVF. 11. Ondas T invertidas em V3-V4. 12. Ondas T eventualmente invertidas/achatadas noutras derivações – análise morfológica prejudicada pelas

ondas de fibrilhação auricular. 13. Intervalo QT corrigido aumentado = 489.

Uma proposta de relatório:

Fibrilhação auricular com FC média de 72 bpm. Bloqueio de ramo direito. Ondas Q patológicas em DII,DIII,aVF. Supradesnivelamento ST ≥ 1mm em DIII,aVF. Inversão das ondas T em V3-V4. Intervalo QT corrigido prolongado.

Comentário: Qual o contexto clínico? Num doente com suspeita de SCA, tem de ser abordado como um SCA com

supradesnivelamento do segmento ST, parede inferior (DIII,aVF). A elaboração mais cuidadosa do relatório do ECG pode ficar para depois…