Interpretacao no cinema
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO - PPGT
MESTRADO EM TEATRO
DANIEL OLIVEIRA DA SILVA [DANIEL OLIVETTO]
A “VOZ” INVÍSIVEL DO ATOR SOBRE O CINEMA BRASILEIRO:
A BUSCA POR DISCURSOS SOBRE FORMAÇÃO
E TÉCNICAS DE INTERPRETAÇÃO E OS RELATOS
DE LEONA CAVALLI E MATHEUS NACHTERGAELE
FLORIANÓPOLIS - SC
2011
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DANIEL OLIVEIRA DA SILVA [DANIEL OLIVETTO]
A “VOZ” INVÍSIVEL DO ATOR SOBRE O CINEMA BRASILEIRO:
A BUSCA POR DISCURSOS SOBRE FORMAÇÃO
E TÉCNICAS DE INTERPRETAÇÃO E O RELATOS
DE LEONA CAVALLI E MATHEUS NACHTERGAELE
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Teatro do Centro de Artes da
Universidade do Estado de Santa Catarina -
UDESC, como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Teatro.
Orientadora: Dra. Maria Brígida de Miranda
FLORIANÓPOLIS - SC
2011
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DANIEL OLIVEIRA DA SILVA [DANIEL OLIVETTO]
A “VOZ” INVÍSIVEL DO ATOR SOBRE O CINEMA BRASILEIRO:
A BUSCA POR DISCURSOS SOBRE FORMAÇÃO
E TÉCNICAS DE INTERPRETAÇÃO E A OS RELATOS
DE LEONA CAVALLI E MATHEUS NACHTERGAELE
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Artes da
Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Teatro.
BANCA EXAMINADORA:
Orientadora: _____________________________________________
Profa. Dra. Maria Brigida de Miranda
Universidade do Estado de Santa Catarina
Membro: __________________________________________________
Profa. Dra. Fátima Costa de Lima
Universidade do Estado de Santa Catarina
Membro: _________________________________________________
Prof. Dr. Maurício de Bragança
Universidade Federal Fluminense
Florianópolis, 9 de Setembro de 2011
4
Para minha mãe, Eunice, pois quando éramos
bons meninos havia sempre uma “saída surpresa”
rumo a uma sala de cinema.
Para meu pai, José Carlos, que há um tempo
carregava na pasta do trabalho um recorte de
jornal com uma foto do filho ator...
5
AGRADECIMENTOS
_________________________________________________________________
Aos meus irmãos, Patrícia e Marcelo, por acreditarem em mim mesmo quando nenhum de nós
entende nada do que eu estou dizendo.
Aos meus comparsas da Cia. Experimentus: Sandra, Marcelo e Jô, que seguram a barra
mesmo quando me esqueço de pedir, e que me deixam atuar com eles e dirigi-los!
Aos meus amigos que me empurram, me puxam e lêem meus pensamentos...
Ao Renato Turnes, pela contribuição neste trabalho, e pela nossa amizade telepática. Ao
Vicente Concilio, pelas observações sempre certeiras e por ser meu amigo nas horas mais
malucas. Ao Igor Lima por me encorajar na inscrição do mestrado. Ao Malcon Bauer pelas
nossas sessões de filmes e por sua paixão pelo cinema que sempre me inspirou. Ao Ricardo
Tromm, pelos sequestros-relâmpago de almoço, pelo bolo de chocolate e pelas nossas
conversas sobre cinema desde o final do século passado(!). À Mariana Pederneiras pelos seus
serviços de “tele entrega” e “chofer” e acima de tudo, por me adotar como irmão. À Grazi
Meyer pelo “não se leve tão a sério!”. Aos meus “maridos” Henry Schimitz e Felipe Nyland
por acalmar os momentos tensos em casa com um “vai dar certo!”. Aos “ex-maridos”
Samantha Cohen e ao André Sarturi por todo o carinho e colaboração...
Aos meus colegas de turma do Mestrado (2009) pelas tantas conversas e estímulos. Aos
professores que deram base para estes últimos dois anos e meio de estudo. À Profa. Bebel
Orofino, pelas suas contribuições tão carinhosas. À Profa. Vera Collaço e ao Prof. José
Ronaldo Faleiro pelas preciosas contribuições no exame de qualificação. À Profa. Fátima
Lima e ao Prof. Maurício de Bragança pelas igualmente preciosas palavras no exame final.
Ao Michael Nyman (que nem sabe que eu existo), pelas trilhas sonoras de filmes que
embalaram as noites de escrita e leitura.
À Mila e Sandra, nossas secretárias do Programa de Pós-Graduação em Teatro, por toda a
paciência, eficiência e gentileza de sempre!
À Leona e Matheus pela inspiração e pelos seus relatos.
À minha amiga (e irmã mais madura) Sandra Knoll, pela revisão ortográfica, pelas primeiras
aventuras no teatro e por toda a confiança e dedicação!
À minha super orientadora, Brígida Miranda, que simpatizou, entendeu, provocou, empurrou,
corrigiu, refletiu, se divertiu, me acalmou, e deu chão e pra esse novo salto...
...E aos os atores que passaram nos filmes dos meus olhos (desde menino).
A TODOS (é preciso dizer): ‘Obrigado’ é pouco!
6
RESUMO
________________________________________________________________
Esta dissertação de mestrado considera a escassez de publicações sobre interpretação para
cinema e principalmente de discursos escritos e publicados por atores, e propõe uma
reflexão sobre a invisibilidade da “voz” do ator na teoria sobre seu ofício no cinema. Como
objeto de pesquisa foram escolhidos dois dos mais representativos intérpretes da produção
contemporânea de cinema no Brasil, Leona Cavalli e Matheus Nachtergaele, dois atores
oriundos do teatro que começaram suas carreiras cinematográficas sem possuir formação
específica para o trabalho frente às câmeras na segunda metade da década de 1990, período
que passa a ser denominado no Brasil como “Cinema da Retomada”. Os depoimentos destes
dois atores, portanto, dão base ao estudo, criando um diálogo entre os conceitos abordados em
suas experiências práticas e a as ideias de pesquisadores, diretores e críticos de cinema que se
dedicaram em seus estudos a discutir o trabalho de atores e atrizes nesta linguagem artística.
Assim, serão também abordados temas como a preparação de elencos, o uso de “não-atores”
na produção nacional e a criação de elencos mistos, o processo criativo de atores em
momentos de ensaio, laboratório e preparação, além de experiências criativas no set de
filmagem que propõem ao ator um espaço de criação e colaboração.
Palavras-chave: ator – cinema – preparação de atores – co-criação – formação – não-ator
7
ABSTRACT
_____________________________________________________________
The present study considers the scarcity of publications about acting in the cinema and
especially of speeches written and published by actors, and proposes a reflection about the
invisibility of the actor´s "voice" in the theory about his craft in this art. As a research
subject were chosen two of the most representative interpreters of contemporary film
production in Brazil, Leona Cavalli and Matheus Nachtergaele, two actors from the theater
that begins their film careers without having specific training to work in front of cameras,
in the second half of 1990´s, a period that is now called in Brazil as “Cinema da
Retomada” ("Cinema of Recovery."). The testimonies of these two actors, therefore,
underlie the study, creating a dialogue between the concepts covered in their practical
experiences and ideas of researchers, directors and film critics who have dedicated their
studies to discuss the work of actors and actresses in this language. So, are also addressed
issues such as preparation of casts, the use of "non-actors" in the national production and
the creation of mixed casts, the creative process of actors in times of rehearsal, laboratory
and preparation, and creative experiences on the set which propose to the actors a place of
creation and collaboration.
Keywords: actor - film - preparation of actors - co-creation - education - non-actor
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SUMÁRIO
_______________________________________________________________
INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 11
CAPÍTULO I – AS MEMÓRIAS DE UM MENINO CINÉFILO E A BUSCA DE UM
ATOR ADULTO POR “VOZES” DE ATORES DE CINEMA ........................................ 18
1.1 PRIMEIROS CONTATOS PESSOAIS COM O CINEMA ........................................ 19
1.2 “COMO ELES FAZEM ISSO?”: O DISCURSO (IN)VISÍVEL DE ATORES DE
CINEMA SOBRE SEU OFÍCIO ............................................................................................ 27
1.2.1 Paralelos com o teatro .................................................................................................. 27
1.2.2 O ator e a escrita sobre o cinema: uma “voz” invisível? .............................................. 28
1.2.3 Procedimentos gerais e recorte desta pesquisa ............................................................. 29
1.3 PESQUISA DE CAMPO: MAPEANDO MATERIAIS SOBRE O ATOR EM
ACERVOS DO SUL E SUDESTE BRASILEIRO................................................................. 31
1.3.1 Recorte e metodologia do mapeamento ....................................................................... 31
1.3.3 Resultados .................................................................................................................... 31
1.3.3 Descrição dos principais materiais encontrados .......................................................... 35
CAPÍTULO II - ATORES E ATRIZES DO CINEMA BRASILEIRO: DO “CINEMA DA
RETOMADA” AO “CINEMA PÓS-RETOMADA” ......................................................... 39
2.1 UM NOVO CINEMA BRASILEIRO .............................................................................. 40
2.1.1 Contexto político e econômico.................................................................................... 40
2.1.2 “Carlota Joaquina”: o público de volta às salas .......................................................... 44
2.1.3 O cinema brasileiro vai ao Oscar ................................................................................ 46
2.1.4 Outras premiações e reconhecimentos no exterior ..................................................... 48
2.1.5 “Central do Brasil”: auge e início do fim da retomada? ............................................. 50
2.1.6 “Cidade de Deus”: um outro divisor de águas? .......................................................... 56
2.2 O “CINEMA PÓS-RETOMADA” .............................................................................. 60
2.2.1 A Globo Filmes e conquista de um novo mercado ..................................................... 61
2.2.2 Outros tipos de produção deste período ...................................................................... 62
2.2.3 Premiações e destaques de filmes brasileiros no “Pós-Retomada” ............................. 63
2.2.4 Atores deste período: Teatro, Cinema e Televisão ...................................................... 64
2.2 UM NOVO INTERESSE PELO ATOR? .................................................................... 65
2.2.1 Os preparadores de ator ............................................................................................... 65
2.2.2 O ator como um “co-criador” ...................................................................................... 69
9
CAPÍTULO III – OS RELATOS DE LEONA CAVALLI: ASPECTOS TÉCNICOS E
FORMATIVOS DO ATOR NO CINEMA .......................................................................... 72
3.1 A TRAJETÓRIA DE UMA ATRIZ DO TEATRO AO CINEMA .............................. 73
3.2 UMA VOZ VISÍVEL E AUDÍVEL ............................................................................ 76
3.3 OS FILMES DE LEONA CAVALLI .......................................................................... 77
3.3.1 “Um Céu de Estrelas”: câmera, público, tempo e continuidade ................................. 77
3.3.2 “Amarelo Manga”: o caos criativo no set ................................................................... 81
3.3.3 “Contra Todos”: o ator como um co-criador .............................................................. 83
3.3.4 “Cafundó”: o controle sobre o enquadramento .......................................................... 86
CAPÍTULO IV – ENTREVISTA COM MATHEUS NACHTERGAELE ...................... 88
CAPÍTULO V – FORMAÇÃO E TÉCNICA NO DEPOIMENTO DE MATHEUS
NACHTERGAELE ............................................................................................................ 117
5.1 O PRIMEIRO CONTATO COM A CÂMERA ......................................................... 118
5.2 COMPOSIÇÃO DE PERSONAGENS ..................................................................... 122
5.3 A CONCENTRAÇÃO .............................................................................................. 124
5.4 O ENTENDIMENTO SOBRE O PROCESSO VIVIDO ......................................... 125
5.5 O “BAILADO” COM A CÂMERA E O CONTROLE DO CORPO ....................... 126
5.6 COLABORATIVIDADE E PREPARAÇÃO ........................................................... 128
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 131
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA .................................................................................. 136
ENTREVISTAS E WEBSITES ......................................................................................... 140
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .................................................................................... 141
10
“Encarnação do vínculo entre o espectador e o
filme, vetor privilegiado do imaginário, o ator
cinematográfico segue sendo um mistério, e a
pergunta permanece intacta: o que é um ator de
cinema?”
Jacqueline Nacache
11
INTRODUÇÃO
________________________________________________________________
O trabalho de atores e atrizes no cinema sempre me despertou um interesse
apaixonado desde os tempos de menino cinéfilo e, quanto mais os via nas telas, mais
aumentava a minha curiosidade. “Como eles fazem isso?”, eu sempre me perguntava. Já
adulto e, no âmbito desta pesquisa de Mestrado, a questão que norteia o estudo que veremos a
seguir é muito semelhante a do menino cinéfilo: O que os atores de cinema contemporâneo
dizem sobre técnicas de interpretação e sobre sua formação nesta linguagem?
O objetivo inicial do trabalho era refletir sobre estes dois aspectos: técnica e formação
de atores de cinema, esmiuçando as estratégias de construção de personagens e a relação dos
atores com a câmera. Segundo parecia inicialmente, a pesquisa seguiria um percurso similar a
diversas investigações sobre atuação no campo do teatro. Considerando a expressiva
quantidade de estudos produzidos e publicados sobre atores e atrizes no teatro desde o final do
século XIX, parecia possível refletir paralelamente sobre os procedimentos criativos ligados à
atuação no cinema, tomando como base as “vozes” teóricas de atores, diretores, historiadores,
críticos e pesquisadores. No entanto, ao buscar as “vozes” dos atores de cinema, ou mesmo
publicações sobre atores escritas por terceiros, relatando sobre aspectos que tocam a questão
central deste estudo, me deparei com o que em princípio parecia uma absoluta ausência destes
discursos e, este silêncio inicial, determinou a realização de uma pesquisa de campo em
acervos sobre cinema, com o intuito de averiguar se isto se tratava de uma ausência de
publicações ou um problema de acesso no contexto do acervo local de obras sobre o ator.
No Primeiro Capítulo desta dissertação apresento inicialmente minhas motivações
pessoais em relação a este tema, o que torna oportuno inclusive relatar o percurso de um
menino cinéfilo que depois se tornou um ator adulto e suas curiosidades sobre o processo
criativo de atores e atrizes de cinema. Em seguida descrevo o processo inicial de busca
12
bibliográfica e de levantamento de publicações sobre atuação no cinema. Além de constatar a
escassez de publicações sobre o ator nesta linguagem, o levantamento permitiu traçar uma
comparação entre a quantidade de publicações sobre direção, estética e recepção, fotografia,
história e a outros aspectos técnicos da produção fílmica, esboçando alguns percentuais para
análise. Dão base a esta discussão os estudos de pesquisadores como Jacqueline Nacache e
Filipe Furtado, no que diz respeito à invisibilidade dos discursos sobre atores e de discursos
de atores sobre seu ofício.
Se a ausência dessas publicações parecia tornar inviável alguma resposta à pergunta
inicial da pesquisa (o que os atores de cinema contemporâneo dizem sobre técnicas de
interpretação e formação para cinema?), este fato acabou por mostrar também a necessidade
de fazer recortes mais precisos. O primeiro recorte estabelecido ocorreu no sentido espacial: a
produção de longas metragens de ficção brasileira; e o segundo recorte no sentido temporal: o
cinema brasileiro contemporâneo. Esses recortes ajudaram a definir uma produção específica
de cinema brasileiro, uma época à qual pertencem os atores cujos discursos busquei encontrar.
Ao fim do primeiro capítulo, além de apresentar os dados quantitativos do
levantamento bibliográfico, descrevo alguns dos materiais encontrados que darão base aos
capítulos seguintes.
No Segundo Capítulo situo o contexto escolhido para estudo, a produção de longas
brasileiros a partir dos anos de 1995, período conhecido como “Cinema da Retomada” (1995
a 1998 ou 2002) e “Cinema Pós-Retomada” (1998 ou 2002 aos dias atuais). Este momento da
produção nacional, por ser ainda muito recente, possui limites temporais imprecisos, tendo em
vista que a própria teoria produzida sobre este contexto encontra-se em pleno
desenvolvimento. Os limites entre as fases denominadas como “Cinema da Retomada” e
“Cinema Pós-Retomada”, portanto, não são um consenso entre os pesquisadores da área, o
que veremos detalhadamente também neste capítulo.
“Carlota Joaquina: Princesa do Brazil” (1995), dirigido por Carla Camuratti é o filme
marco deste momento de retomada brasileiro que sucede a crise do governo do então
presidente Fernando Collor de Mello (1989-1991), e que dá início a um processo lento de
crescimento na quantidade de longas-metragens brasileiros sendo lançados a cada ano. Esse
visível (porém, lento) crescimento, a volta do público brasileiro às salas de cinema que
exibiam a nova produção nacional e uma repercussão positiva dos filmes brasileiros no
exterior são alguns dos fatores que desenham esse novo contexto do nosso cinema e que darão
base ao estudo como recorte temporal e espacial.
13
No Segundo Capítulo foi possível compreender o tipo de ator que faz parte deste novo
momento da produção nacional para, então, retornar à questão inicial sobre o ofício do ator de
cinema e realizar seu desdobramento em questões específicas e, por meio destas, estabelecer
novos recortes que possibilitassem compreender também as relações e distinções entre as
práticas do ator no teatro e no cinema.
Desse modo foi possível chegar às seguintes questões: Como atores com formação que
se inicia no teatro começaram a trabalhar em cinema? Em que medida sua formação teatral
serviu de base para seus primeiros trabalhos? Há um interesse e/ou oportunidade pela escrita
sobre suas experiências em cinema? Como desenvolveram suas formações para a câmera? Em
cursos preparatórios ou ao longo das próprias experiências cinematográficas?
Para responder a estas questões foram escolhidos um ator e uma atriz vindos do teatro
e que se tornaram desde os primeiros anos da Retomada, dois dos principais nomes de uma
nova geração de atores do nosso cinema: Leona Cavalli e Matheus Nachtergaele. Neste
sentido definiu-se também a necessidade de entrevistá-los, tendo em vista que, até então, não
haviam materiais escritos por estes atores.
No entanto, no primeiro ano desta pesquisa, 2009, é lançado o audiolivro “Caminho
das Pedras”, de autoria de Leona Cavalli, no qual podemos encontrar seus relatos escritos e,
também, sua voz gravada em um CD que faz parte da publicação. Trata-se de um tipo de
material raro no gênero, não apenas pelo formato multimídia, mas por ser um livro escrito por
uma atriz que compara suas experiências no teatro e na televisão com seus processos no
cinema.
Para a análise do trabalho do ator Matheus Nachtergaele, foi primordial a realização de
uma entrevista na qual pudéssemos encontrar em sua “voz” as respostas para as questões
lançadas, além de outras que puderam ser destacadas em seus relatos.
Tendo eles passado por processos colaborativos no teatro e no cinema, como estes
atores percebem suas contribuições na autoria do filme como um todo? A respeito disso,
apresentaremos também no Segundo Capítulo alguns procedimentos de preparação de elencos
de cinema, tais como ensaios, laboratórios e ainda a descrição de algumas experiências no set
de filmagem que propõem aos atores e atrizes desses processos, distintas interferências e
colaborações na escrita criativa do diretor e do roteirista.
Conceitualmente dão base ao Segundo Capítulo os estudos de autores como Lúcia
Nagib, Arthur Autran, Amir Labaki, Pedro Butcher, Melina Izar Marson, Eduardo Escorel e
Filipe Furtado, pesquisadores que tem se debruçado sobre a reflexão acerca do cinema
14
brasileiro dos anos posteriores a 1995. No que diz respeito ao trabalho ator deste período,
apenas dois estudos recentes embasam este capítulo: a dissertação de Mestrado (2005) e a tese
de Doutorado (2010) da pesquisadora paulista Walmeri Ribeiro, que abordam,
respectivamente, o trabalho de preparadores de elenco e a ideia de co-autoria do ator em
produções brasileiras do “Cinema da Retomada” e do “Cinema Pós-retomada”; filmes que
envolvem preparadores em suas equipes, um profissional cada vez mais requisitado em um
momento em que parece se apresentar um interesse renovado pelo trabalho de atores e atrizes
na criação de filmes.
No Terceiro Capítulo apresento uma reflexão sobre o trabalho de Leona Cavalli
tomando como base os depoimentos da atriz no audiolivro “Caminho das Pedras” (2009). A
partir dos relatos de experiências de Cavalli buscaremos relacionar as questões que compõem
esta pesquisa com os procedimentos que a própria atriz destaca em seu discurso sobre a
atuação para cinema nos seguintes filmes: “Um Céu de Estrelas” (1996), “Amarelo Manga”
(2001), “Contra Todos” (2002) e “Cafundó” (2006). Também neste capítulo são apresentados
o depoimento do cineasta e pesquisador Rubens Rewald, em entrevista concedida em maio de
2009 e as ideias de outros teóricos do cinema como Michael Rabiger e James Naremore, além
do diretor Rogério Sganzerla, que discutem aspectos técnicos apresentados por Cavalli e
expõem questões relacionadas à colaboração do ator em experiências que se assemelham a do
filme “Contra Todos”.
No Quarto Capítulo apresento a entrevista realizada com o ator Matheus Nachtergaele
em dezembro de 2010. Uma vez que não há uma obra escrita pelo ator, como no caso de
Cavalli, esta entrevista é apresentada na íntegra, sem cortes, deixando que o ator escolha a
partir de suas experiências, quais filmes, vivências e procedimentos criativos possibilitam
responder de forma mais eficaz as questões levantadas.
No Quinto Capítulo destaco a partir de experiências selecionadas na entrevista de
Nachtergaele os momentos que nos ajudam a discutir seu trabalho no cinema, comentando
seus relatos sobre os seguintes longas metragens: “O Que é Isso Companheiro” (1997),
“Central do Brasil” (1998), “O Auto da Compadecida” (2000), “Amarelo Manga” (2001),
“Tapete Vermelho” (2006) e “Baixio das Bestas” (2007). Os depoimentos são comentados a
partir das ideias de autores que refletem sobre os aspectos ligados à técnica de atuação e
formação tais como Nikita Paula, Eric Portman e Patrick Tucker.
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Na última parte do trabalho faço minhas considerações finais comparando as respostas
destacadas nos depoimentos de Cavalli e Nachtergaele, relacionando distintos aspectos
ligados à técnica de atuação e a formação destes dois atores.
Esta abordagem nos permite apresentar e comparar depoimentos de atores sobre
questões que dizem respeito ao seu ofício no cinema, um tipo de discurso pouco produzido
nos estudos teóricos sobre este campo artístico. Enquanto no campo teatral podemos refletir
por meio da presença cada vez maior de publicações escritas por atores (ou mesmo por meio
dos escritos de diretores, pesquisadores, críticos e historiadores que se dedicam ao estudo
sobre atuação), no cinema, aspectos ligados à composição de personagens, formação e à
colaboração de atores e atrizes na escritura fílmica, por exemplo, ainda não parecem gerar
tamanho interesse de discussão e publicação.
Esta dissertação de Mestrado busca refletir, portanto, a partir das vozes de dois atores
de grande presença e repercussão no cinema brasileiro contemporâneo suas relações com a
construção dos filmes dos quais participaram no que diz respeito à construção de personagens,
formação, colaboração e, ainda, sobre algumas distinções técnicas e estéticas entre seus
trabalhos no teatro e no cinema.
Primeiramente, a escolha dos atores que dão “voz” a esta pesquisa ocorreu de maneira
bastante afetiva. Cavalli e Nachtergaele são dois dos primeiros atores do cinema brasileiro
que atraíram minha admiração e minha curiosidade na adolescência de cinéfilo, momento em
que nascia em mim - mesmo que ainda não soubesse - o desejo de me tornar um ator. Suas
carreiras cinematográficas nascem exatamente no momento inicial do que veio a se chamar no
Brasil de “Cinema da Retomada”, período em que diversos adolescentes (como eu naquele
momento), lotavam as sessões escolares de cinema para assistir um filme de cunho histórico e
produzido em nosso país: “Carlota Joaquina: Princesa do Brazil” (1995), dirigido por Carla
Camuratti. Depois de me impressionar com “Carlota Joaquina”, filme cuja qualidade não
correspondia à minha ideia ingênua sobre a produção nacional, comecei a me interessar pelo
cinema brasileiro, e ao assistir filmes com Cavalli e Nachtergaele estes dois atores passaram a
ser para mim duas novas estrelas de cinema nacional entre as muitas internacionais que eu
tanto admirava. Intérpretes que como muitos dos que preencheram as telas ao longo da
história da sétima arte, despertaram um grande fascínio de um menino cinéfilo e, depois, de
um ator adulto.
O antropólogo, sociólogo e filósofo francês Edgar Morin (1989) desenvolveu um
estudo sobre o papel destes “seres” por vezes mitológicos no imaginário dos espectadores
16
cinematográficos, no qual ele afirma haver praticamente uma religião envolvendo o fenômeno
de identificação entre espectador e estes “seres”. Estas estrelas, desejadas em função do apelo
midiático dado à sua vida pessoal e à sua presença misteriosa na tela, atuam num limite
extremo entre sua personalidade e o outro que representa, despertando por este motivo, o
fascínio de multidões que se apaixonam por eles e por seus filmes.
O desejo pessoal e afetivo por estudar o trabalho de Cavalli e Nachtergaele, no
entanto, acabou revelando que as trajetórias destes dois atores se tocam em outros aspectos
que justificam sua escolha como “vozes” a serem analisadas nesta pesquisa. Ambos tornaram-
se, no começo dos anos de 1990, dois dos mais promissores atores do teatro paulista e
chamaram atenção de cineastas que os apresentaram um novo caminho de formação: o
cinema. Seus primeiros trabalhos no cinema são dois dos mais emblemáticos filmes do
“Cinema da Retomada”: “Um Céu de Estrelas” (1996) e “O Que é Isso Companheiro?”
(1997), respectivamente. Sem formação anterior para cinema, ambos lançaram-se em seus
primeiros longas e tornaram-se dois dos mais representativos atores de nossa produção. Suas
carreiras percorrem até os dias atuais, tendo eles, ainda, atuado em telenovelas, minisséries,
voltado aos palcos, consolidando, assim, uma carreira como atores que trabalham entre estes
três territórios muito distintos: teatro, cinema e televisão.
A partir dos discursos de Cavalli e Nachtergaele, buscarei refletir sobre os seguintes
aspectos: 1) procedimentos técnicos de composição de personagens; 2) apropriação de
procedimentos teatrais em suas experiências no cinema; 3) interferência de sua criação como
atores no projeto final da direção e do roteiro, a partir de depoimentos sobre experiências em
que estas colaborações se apresentam de forma muito distinta e 4) interesse pelo registro,
reflexão e publicação sobre suas experiências.
Portanto, além de falar da “voz” do ator como sujeito que escreve sobre seu trabalho
no cinema (uma “voz” na teoria sobre a atuação), a reflexão também terá como eixo a sua
“voz” dentro dos próprios processos criativos a partir de suas interferências colaborativas
(uma “voz” na criação cinematográfica).
Uma vez que estamos diante de uma “voz” quase invisível de atores e atrizes no
discurso sobre sua arte no cinema, não houve um objetivo nesta pesquisa de estudar um grupo
específico de filmes definido previamente, ou mesmo um período menor dentro do contexto
abordado que fosse escolhido como recorte por mim. Desse modo, os próprios atores
escolhem as experiências de cinema que melhor falam de seu trabalho, nos oferecendo a
possibilidade de refletir sobre suas atuações a partir destas experiências. Cabe observar
17
também que, os depoimentos que serão comentados com o objetivo de responder às perguntas
do estudo, têm formatos distintos. Assim, o depoimento de Cavalli tem formato de audiolivro,
uma escrita selecionada pela atriz, e editada tanto para a leitura quanto para a sua fruição em
audio. O depoimento de Nachtergaele, por sua vez, tem o formato de entrevista, e, portanto, é
uma fala espontânea que busca responder as perguntas por mim estabelecidas. De todos os
modos, são os atores que destacam em suas experiências os filmes, personagens, momentos
marcantes e procedimentos que serão posteriormente comentados e comparados1.
O formato desta dissertação dividida em cinco capítulos e as considerações finais
dialoga, portanto, com as dificuldades encontradas pelo próprio trajeto, ou seja, a baixa
produção de materiais escritos sobre atores e por atores, e as formas distintas de depoimentos
encontrados para a análise dos discursos dos atores estudados, buscando contribuir para as
reflexões acerca deste artista tão misterioso: o ator de cinema.
1 Em três viagens de pesquisa de campo (maio de 2009, junho e dezembro de 2010) busquei realizar uma
entrevista com a atriz Leona Cavalli para que seu depoimento pudesse ter o mesmo formato do relato de
Matheus Nachtergaele. No entanto, não foi possível a realização da entrevista por imprevistos na agenda da atriz.
Mesmo assim, pelo fato de haver um livro escrito por ela, material que nos oferece possibilidades de dialogar
com suas ideias, optei por manter sua voz no estudo, conduzindo a escrita do trabalho a partir de documentos
distintos.
18
CAPÍTULO I
________________________________________________________________
AS MEMÓRIAS DE UM MENINO CINÉFILO E A BUSCA DE UM ATOR
ADULTO POR “VOZES” DE ATORES DE CINEMA
“Ator, o que é? Aquele por quem, nos anos da inocência,
vamos ao cinema. Aquele que, pela sua simples
presença, nos promete e nos oferece um código de
emoções e sentimentos, regras morais e políticas,
comportamentos sociais ou sorrisos [...] Cada ator
transporta consigo não só seu corpo e o seu olhar, mas a
sua moral e o seu repertório. [...] Quem são e de que são
feitos aqueles cujo registro (cuidadosíssimo e limitado)
permite que através deles, por eles, muito se diga e tudo
se veja?”
Jorge Silva Melo e João Bernard da Costa
19
1.1 PRIMEIROS CONTATOS PESSOAIS COM O CINEMA
Desde pequeno, no começo da década de 1980, quando nem imaginava ser ator, as
idas ao cinema eram o meu programa preferido nos domingos em que eu e meus dois irmãos
saíamos para um “passeio surpresa” com minha mãe, às vezes no Cine Iporanga, outras no
Cine Roxy ou no Cine Indaiá, localizados no Gonzaga, bairro nobre da cidade de Santos –
São Paulo, onde, segundo meu olhar de menino, os fins de semana eram agitados por todas as
classes em busca de diversão. Essas salas eram situadas na Avenida Ana Costa, próximo à
praia. Havia também outras salas como o Cine Arte (um pequeno cinema com cerca de 30
lugares, situado no calçadão da praia (Posto 4), o qual me lembro de frequentar quando já
podia tomar o ônibus sozinho, por volta dos 14 anos. Talvez existissem alguns cineclubes ou
outras salas de exibição em galerias, mas estas eram as que frequentávamos.
Fachada dos Cines Indaiá I e II (acima)2 e Cine Arte – Posto 4
3
2 Imagem disponível em http://salasdecinemadesp2.blogspot.com/2008/03/indaia-santos-sp.html .
3 Imagem disponível em: http://www.melhordesantos.com/2010/09/cine-arte-posto-4-reabre-com-filme.html
20
Estes pareciam ser, pelo menos em Santos, os tempos dos “cinemas de rua” 4
, ou seja,
as salas de exibição que não se localizavam dentro de shoppings. Passados alguns anos, o
Iporanga (com suas três salas) e o Indaiá (com duas salas) encerraram sua programação. O
primeiro deu lugar a um pequeno shopping, o Pátio Iporanga. E o Cine Indaiá, cujo edifício
abrigava também o Indaiá Hotel, passou por uma grande reforma que ampliou o número de
leitos, ocupando os espaços onde antes eram exibidos os filmes. Hoje resta apenas o Cine
Roxy na mesma avenida. Depois da ampla criação de salas de cinemas em shoppings, muitos
dos cinemas de rua no Brasil foram vendidos e, em parte dos casos, transformados em Igrejas
Evangélicas.
Aos 12 anos minha curiosidade pelo cinema começou a ficar mais forte, e não tardou
para que eu me tornasse um daqueles “cinéfilos de carteirinha”. Em meados da década de
1990 as locadoras de vídeo proliferaram-se no meu bairro, e eu, então com cerca de 14 anos,
fiz amizade com os balconistas de todos os estabelecimentos do bairro e comecei a descobrir
as maravilhas de poder escolher filmes não apenas pela disponibilidade da distribuição nas
salas de cinema, mas também pelos acervos de locadoras que ofereciam filmes de todas as
partes do mundo e de todos os tempos.
Hoje, olhando este momento com certa distância, penso que essa admiração e fascínio
pelo cinema estimularam o desejo de trabalhar como ator. Sempre me interessei pelos astros e
estrelas americanos, ingleses e franceses (e muito mais por seus coadjuvantes). Depois
comecei a conhecer os atores do cinema brasileiro, pois ainda na década de 1990 parecia
haver um consenso entre as famílias de que uma criança não podia ver filmes nacionais na
TV, já que estes eram conhecidos como “filmes de sacanagem” 5. Mesmo tendo visto muitos
dos filmes de Renato Aragão e “Os Trapalhões” em nossos passeios surpresa, o primeiro
contato que me lembro de ter tido com um tipo de produção distinta no contexto do cinema
4 Termo usado no contexto regional paulista para diferenciar os cinemas que não se localizavam em shoppings,
mas em edifícios cujas instalações eram utilizadas apenas para exibição de filmes. Segundo Nabil Bonduki: “A
desertificação das ruas nas cidades contemporâneas é um dos sintomas mais graves da decadência da civilização
urbana (...). A morte dos cinemas de rua é um dos resultados mais graves desse processo. Embora nos últimos
anos o número de salas de cinema tenha se elevado significativamente em São Paulo, em decorrência do
aumento dos multiplex nos shoppings, é notável o encerramento das atividades dos cinemas que se abrem
diretamente para as calçadas ou localizados nas galerias tradicionais. Processo semelhante aconteceu em
praticamente todas as cidades brasileiras”. (BONDUKI, Nabil. Cinemas de rua e a desertificação do espaço
público em São Paulo. In: Revista Carta Capital, 13 de Janeiro de 2011. Edição On Line. Acesso em
17/02/2011. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/cultura/cinemas-de-rua-e-a-desertificacao-do-
espaco-publico-de-sao-paulo.
5 A programação televisiva no início da década de 1990 exibia diversas produções da chamada
“pornochanchada”, obras produzidas na década de 70 e 80 com forte apelo erótico. Esses filmes eram
normalmente exibidos após a meia noite.
21
nacional ocorreu em 1995 com a estreia de “Carlota Joaquina – Princesa do Brazil”, filme
dirigido por Carla Camurati, que assisti no Cine Indaiá. Lembro que minha mãe ficou
preocupada com o fato de a escola nos levar para ver um filme nacional no cinema. Lembro
sempre de ouvir: “cinema brasileiro só tem sacanagem e o som é sempre ruim!”. Aos 15 anos
reconheci nesse filme outro tipo de cinema brasileiro, um exemplo que não correspondia ao
que eu sempre ouvia falar. E a percepção que o cinema brasileiro poderia ser tão bom quanto
qualquer outro exemplo estrangeiro foi despertada em mim por este filme. Vivíamos o início
do que veio a se chamar de “Cinema da Retomada”, do qual falaremos mais adiante e, embora
não me lembre de ter ouvido ou lido sobre esse termo naquela época, percebia um momento
distinto, o qual a escola havia me proporcionado.
Posteriormente pude assistir a filmes como “O Quatrilho” (1996), de Fábio Barreto,
“Como Nascem os Anjos” (1996), de Murilo Salles, “Quem Matou Pixote?” (1996), de José
Joffily, “Um Céu de Estrelas” (1997), de Tata Amaral, “O que é Isso Companheiro (1997), de
Bruno Barreto, entre outros que começaram a ser lançados nos cinemas, tornando visível aos
meus olhos de adolescente uma retomada real da produção de filmes brasileiros6.
Cartaz do filme “Como Nascem os Anjos” (1996) 7 (à dir.).
Cassiano Carneiro e Luciana Rigueira em “Quem Matou Pixote?” (1996) 8 (à esq.).
6 Por volta de 1998, a Revista Isto É lançou a coleção de VHS “Isto É Cinema Brasileiro”, que disponibilizou à
preços acessíveis nas bancas diversos títulos dessa nova produção que não conseguiram uma grande distribuição
nas salas de cinema.
7 Imagem disponível em: http://www.cineplayers.com/filme.php?id=10023
8 Em: http://www.meucinemabrasileiro.com.br/filmes/quem-matou-pixote/quem-matou-pixote01.jpg
22
Percebo que o trabalho dos atores e atrizes de cinema sempre me atraiu a atenção.
“Como se faz isso?”, eu me perguntava. Talvez essa pergunta tenha me levado a buscar
respostas em cursos de teatro, ou mesmo em outras experiências em que tentei, já na
adolescência, me aproximar de trabalhos artísticos. Aos 12 anos tinha amigos um pouco mais
velhos do que eu no bairro e que frequentavam um grupo de teatro amador no SESI – Santos.
Comecei então, ir aos ensaios para bisbilhotar. Aos sábados e domingos eu acompanhava os
bastidores de suas apresentações (às vezes via um mesmo espetáculo várias vezes), até que me
convidaram pra entrar numa turma de meninos e meninas da minha idade em aulas que
aconteciam durante as manhãs. Ali pisei no palco pela primeira vez e tive que dizer algum
texto. Lembro do papelzinho amassado na coxia e da mão tremendo antes de entrar. A
experiência no curso durou pouco, mas durante os anos seguintes (entre 1993 e 1997) fiz parte
de alguns trabalhos de escola, mas sempre preferia os “bastidores”. Estudava em uma escola
pública da Zona Noroeste de Santos, a Escola Estadual de Primeiro e Segundo Grau Prof.
Benevenuto Madureira, e não havia professor de teatro durante o período em que estudei ali,
então as iniciativas de se produzir alguns trabalhos teatrais resumiam-se sempre a cenas e
esquetes sobre temas de outras disciplinas, trabalhos realizados com apoio de alunos que já
haviam cursado aulas de teatro fora da escola. Nestes trabalhos sempre preferi estar por perto
da cena e não atuar, ou fazer algum coadjuvante.
As lembranças das aulas de artes são muito remotas. Uma aula ou outra de desenho
geométrico, desenho livre e coisas desse tipo. No colegial lembro-me de fazer amizade com
uma professora de Artes que me emprestava filmes do diretor americano Alfred Hitchcock
(1899-1980), um dos primeiros diretores pelo qual passei a me interessar. Eram fitas de VHS
com dois ou três filmes gravados da TV por assinatura, que só chegou ao meu bairro por volta
de 1995 e, a partir daí, comecei a ter a possibilidade de ver filmes que nem mesmo haviam
sido lançados em vídeo.
A partir das experiências da escola, comecei a pensar que não tinha talento algum para
ser ator. Nesse momento da adolescência me apaixonei declaradamente pelo cinema e foi o
período em que mais assisti filmes na vida (chegava a ver 15 filmes em uma semana, entre
sessões de cinema, filmes alugados em vídeo e minhas buscas na TV a cabo). Frequentava
sessões de cinema nos dias de semana (já que as sessões eram mais baratas) e chegava a ver
três filmes no cinema no mesmo dia, e comecei a me interessar em dirigir cinema. Me
apaixonei por “Cantando na Chuva”9, e até hoje, mesmo tendo visto tantos outros filmes que
9 Musical dirigido por Gene Kelly e Stanley Donen, 1952.
23
possivelmente são melhores, a lembrança de assisti-lo em uma sessão de TV na madrugada,
por volta dos 13 anos, ainda insistem em mantê-lo como meu filme preferido. Colecionei
fotos, vídeos, revistas, fiz álbuns dos meus atores preferidos, me correspondi com cinéfilos de
diversos lugares do Brasil (eu era o morador “mais famoso do bairro” segundo o carteiro).
Nesta época, me correspondia com fãs do diretor britânico Alan Parker (1944 -) e da atriz
Emma Thompson (1959 -), também britânica (minhas duas obsessões na época), e trocava
informações, fotos, filmes, cartazes e outros materiais com leitores que deixavam anúncios
nas sessões de cartas da Revista SET. Em nossas correspondências falávamos sobre nossos
atores preferidos e fazíamos pequenos resumos sobre os filmes que havíamos assistido desde
a última carta, dando-lhes cotações com estrelinhas para especificar o quanto havíamos
gostado ou não dos mesmos e fazíamos nossos comentários críticos.
Entre 1996 e 1997, dos 16 aos 17 anos, trabalhei em uma locadora de vídeo do bairro
onde morava e, era também cliente de uma locadora do centro da cidade, que tinha longos
corredores de clássicos e filmes que não existiam no meu bairro. Independentemente do que
eu fosse “ser quando crescesse” penso que este período foi uma nova alfabetização dos
sentidos, dos gostos e, foi responsável por estimular novas formas de olhar o mundo: uma
espécie de alfabetização estética.
Com 17 anos (1997) comecei a pensar que o teatro poderia ser caminho para me
aproximar do cinema, conhecer pessoas, participar de processos de criação. O diretor Egbert
Mesquita, que havia ministrado minhas primeiras aulas de teatro no SESI – Santos quando eu
tinha 12 anos, estava realizando testes para entrar em sua companhia. Lá fui eu com meus
amigos que já eram do grupo, decorei um texto de uma peça que mal sabia o nome e fiz uma
cena horrorosa em que pouco se entendia o que eu dizia, pois, não sabendo o que fazer com as
mãos, levei-as à boca suplicando a alguém imaginário em cena e o resultado foi um desastre.
Não passei no teste. Um mês depois começava o Festival Santista de Teatro Amador, evento
tradicional da cidade que então estava em sua 40ª Edição. Egbert me deu um crachá pra
acompanhar os espetáculos como se fosse do grupo dele. Após o Festival ele me chamou para
participar de um curso no qual a montagem final seria “Sonho de uma Noite de Verão”, de
William Shakespeare. Ele deve ter pensado: “talento ele não tem, mas acompanhou 40 peças
no festival junto com a gente... ele deve gostar muito de teatro!”. Ali comecei a me encorajar a
atuar. Não cheguei a estrear a peça, pois meus pais decidiram se mudar para Santa Catarina, e
tive de abandonar o grupo e aquele que seria o meu primeiro personagem, o Demétrio da peça
de Shakespeare.
24
Com 18 anos mudei com minha família para a cidade de Itajaí, mesmo desejando ficar
em Santos. Voltei a São Paulo no final desse mesmo ano (1998) para prestar vestibular para o
Curso de Cinema da USP. Durante esse ano estreitei ainda mais o vínculo com o teatro, e
estava torcendo para não passar no vestibular em São Paulo e ficar em Itajaí. E foi o que
aconteceu. Voltei a trabalhar em locadora em paralelo à minha formação que se iniciava no
teatro, e em janeiro de 1999 eu e a atriz Sandra Knoll fundamos a Cia. Experimentus. Nesta
companhia trabalho até hoje.
Desde a fundação da companhia comecei efetivamente a atuar. Saímos dos empregos
que tínhamos, e usamos a rescisão de salários para a montagem de nosso primeiro espetáculo,
“A Roupa Nova do Rei” que, junto a mais alguns pequenos apoios financeiros, estreou em
outubro de 1999, permanecendo em cartaz por seis anos apresentando-se em escolas e teatros
de diversas cidades catarinenses. Começamos a “viver” de teatro, ou a “sobreviver” de teatro,
como sempre dizemos. Hoje, com quase 13 anos de atividade, a companhia criou nove
espetáculos para adultos e crianças explorando linguagens distintas a cada novo trabalho.
Nesses espetáculos, além de atuar na maioria deles, tive a oportunidade de dirigir e a
necessidade de trabalhar na produção, conceber luz, aprender a criar e montar cenários, criar
figurinos e tudo que era necessário, já que Itajaí era uma cidade sem muitos profissionais
específicos destas áreas. A vida de cinéfilo foi ficando de lado, deixando as inquietações sobre
os atores e seus feitos misteriosos guardadas em algum lugar, mas, eu continuava, agora com
menos tempo, a ver tudo o que conseguia nos cinemas e em vídeo.
No trabalho como ator na companhia, interpretei personagens caricatos, cômicos,
manipulei bonecos, me dediquei a longos períodos de treinamento corporal e vocal e, pude
experimentar em outros espetáculos uma atuação menos caricatural, o que, de alguma forma,
me estimulava a compreender como aqueles atores de cinema que sempre me inspiraram (por
parecerem reais ou cotidianos) faziam para atuar10
. Com o tempo minha curiosidade por este
registro de atuação “mais próxima do cotidiano”, foi sendo aguçada, o que então, pude
experimentar em outros trabalhos posteriores.
Em 2003 ingressei no Curso de Artes Cênicas do Centro de Artes da Universidade do
Estado de Santa Catarina (CEART – UDESC) com a perspectiva de aprofundar meus estudos
sobre o teatro, conhecer gente diferente, trabalhar com outros profissionais e, então, fui
10
Parece oportuno elucidar que aqui me refiro especificamente a uma forma de atuação desenvolvida em filmes
que exploram temáticas do cotidiano urbano, tais como em alguns dos trabalhos de diretores como Mike Leigh,
Woody Allen, entre outros. Não se trata de pensar que todo cinema propõe uma atuação cotidiana, mas que no
caso das minhas referidas experiências teatrais, eram estes tipos de filmes e atuações que despertavam o interesse
como ator, por parecerem inversos quanto à técnica de atuação.
25
amadurecendo como ator. Trabalhei como bolsista iniciação científica do Prof. Dr. André
Carreira em um projeto sobre teatro de grupo brasileiro durante quatro anos e meio, o que me
estimulou a escrever e pesquisar. O trabalho de atores e atrizes sempre foi meu objeto de
interesse, em especial o discurso destes sobre seus trabalhos. Não compreendia porque
estudávamos o trabalho de atores na maioria das vezes a partir do olhar exterior a esse ofício,
ou seja, pelo discurso de teóricos, encenadores, historiadores e, porque os discursos menos
presentes eram que passavam pela “voz” dos próprios atores.
A minha primeira experiência como ator em vídeo aconteceu apenas aos 26 anos,
durante a Graduação (2003 - 2008), quando me chamaram às pressas para uma pequena
participação em um “filme-manifesto” intitulado “Matou o Cinema e foi ao Governador”
(2006), composto por diversos curtas de diretores catarinenses11
. Meu personagem era um
sujeito contratado por um ditador para ir ao camarim de sua filha “artista” lhe fazer elogios.
Eu tinha duas falas e minha participação era minúscula, mas, nesta rápida experiência,
começava a me deparar com um novo tipo de trabalho: a atuação para as câmeras. Outros
trabalhos como ator em curtas-metragens vieram depois e, a curiosidade por este meio
artístico foi se tornando mais intensa, agora olhando um pouco mais de dentro para aquilo que
quando pequeno parecia um mistério completo.
A partir destas experiências, a pergunta “Como se faz isto?” foi ganhando novos
desdobramentos: Como um ator que vem de uma formação teatral atua nesta forma artística
tão distinta? Que princípios técnicos, que aprendizado, que noções de seu trabalho no teatro
servem ou não a esta outra forma de atuar? Como se dá a criação de um personagem nos
processos cinematográficos dos quais participaram? Minhas inquietações sobre cinema, que
estavam guardadas em algum lugar, começaram a vir à tona novamente através destas
perguntas.
Desde o ingresso no Programa de Pós-graduação em Teatro (Mestrado) do CEART –
UDESC em 2009 tenho feito estas indagações que se ampliaram em outras questões que
compõem o trabalho apresentado aqui. O projeto inicial foi organizado com o objetivo de
compreender como atores do cinema brasileiro têm lidado com estas dificuldades e em uma
primeira busca pouquíssimo material foi encontrado. Dificuldade de acesso ou um menor
11 Camila Sokolovski, Breno Turnes, Fifo Lima, Jefferson Bittencourt, Fábio Brueggeman, Maria Estrázulas,
Chico Caprário, Marco Martins, Cládia Cárdenas e Rafael Schlichting, além de Renato Turnes e Loli Menezes,
estes dois últimos dirigindo o episódio “Rosa B. B.”, no qual atuei.
26
interesse a respeito do ator na teoria sobre o cinema? Esta se tornou uma segunda pergunta
sobre a qual poderemos refletir a seguir.
27
1.2 “COMO ELES FAZEM ISSO?”: O DISCURSO (IN)VISÍVEL DE
ATORES DE CINEMA SOBRE SEU OFÍCIO
1.2.1 Paralelos com o teatro
Durante o século XX diversas experiências teatrais no ocidente tiveram como objeto
de estudo o trabalho do ator no teatro. Podemos afirmar que existe uma vasta quantidade de
materiais produzidos e publicados em diversas línguas que se debruçam sobre este tema e, que
um dos marcos iniciais deste percurso seria o trabalho do ator, diretor e pesquisador russo
Constantin Stanislavski. A partir do trabalho desenvolvido pelo mestre russo junto aos atores
do Teatro de Arte de Moscou (TAM) e do Primeiro Studio, diversos métodos e sistemas de
trabalho foram não só desenvolvidos, mas compartilhados por meio de publicações nesta área.
Para Sharon Marie Carnicke (1998), uma das principais pesquisadoras contemporâneas de
Stanislavski, seu trabalho foi a “pedra fundamental” da sistematização das técnicas de
interpretação teatral no nosso contexto.
Nos últimos anos, publicações em língua inglesa como “Acting Reconsidered” (1995)
e “Twentieth Century Actor Training” (2000) foram compêndios que trouxeram à tona em
torno de 30 pesquisas acadêmicas de reconhecidos estudiosos como Peter Thompson, Alison
Hodge e Phillipe Zarrilli (para citar apenas alguns) que se concentram especificamente na
descrição, análise e crítica dos principais métodos de preparação de ator notadamente no
contexto europeu e norte americano, mas também apontando práticas teatrais contemporâneas
na Ásia, com o trabalho de Tadashi Suzuki e, na América Latina, com Augusto Boal.
Se no teatro parece possível compreender diferentes percursos de atores em sua
formação em contextos diversos, no cinema a busca de discursos correlatos produzidos sobre
métodos e técnicas de atuação revelou pouquíssimos materiais, o que me estimulou a realizar
um levantamento bibliográfico mais detalhado para compreender se esta era apenas uma
primeira impressão. Além disso, pouco material referia-se a escritos dos próprios atores e
atrizes, uma “voz” quase oculta nos materiais sobre cinema.
Contudo, se em um primeiro momento esta ausência de discursos escritos sobre
atores/por atores parecia um empecilho (como pesquisar os processos dos atores no cinema
com tão pouco material escrito sobre eles e/ou por eles?), no decorrer das pesquisas de campo,
na coleta de dados quantitativos em diversos acervos do sul e sudeste brasileiros, conforme
28
relataremos mais adiante, a percepção destas vozes que pareciam inexistentes foi se tornando
parte do tema geral da pesquisa. Afinal, por que se escreve tão pouco sobre a técnica de
atuação na mídia cinematográfica, e porque tão poucos atores escrevem sobre seu trabalho em
cinema?.
1.2.2 O ator e a escrita sobre o cinema: uma “voz” invisível?
A pesquisadora francesa Jacqueline Nacache da Universidade Paris 7, que desenvolve
uma obra com enfoque sobre o ator do cinema norte americano e hollywoodiano, afirma que:
Os atores e as atrizes ocupam a maior parte do volume da literatura cinematográfica,
porém aparecem nela sob formas que apenas variam: entrevistas, álbuns, biografias e
memórias. Ao ator encanta mostrar-se e explicar-se: inclusive entre os bastidores,
permanece ao lado do espetáculo e da exibição, do glamour e da anedota. Desperta por
igual o interesse do fã e do profano, embora o especialista não o leve a sério (...). A
admiração que desperta está fundada em motivos vagos e difusos, como a beleza, a
celebridade, o enigma da presença (NACACHE, 2006, p. 11, tradução nossa).
Porque estas “vozes” de atores não se tornam visíveis na teoria sobre cinema? Haveria
espaço no mercado editorial para publicações escritas por atores? Por outro lado, caberia
também perguntar se haveria um interesse por parte dos atores pela escrita sobre cinema. Este
estudo não pretende responder todas essas questões. Os dois atores focados no estudo nos
responderão segundo seu ponto de vista apenas a última destas perguntas, ou seja, sobre seu
interesse pela escrita, além de nos permitir responder outras já apresentadas na introdução do
trabalho. No mapeamento bibliográfico realizado durante a pesquisa de campo, que será
apresentado a seguir, poderemos perceber que o interesse pelo ator justifica a afirmação de
Nacache sobre o apelo da vida pessoal e o destaque para publicações sobre astros e estrelas do
cinema hollywoodiano, publicações que, ao apresentar a vida pessoal dos mitos do cinema,
acabam os mitificando ainda mais. Como veremos mais adiante, as publicações cujo objeto de
discussão se refere a questões como técnica, formação e composição do ator no cinema, são
raras.
Em um plano mais recortado, podemos perceber que este interesse reduzido sobre o
trabalho do ator e a técnica de atuação para cinema nas publicações desta área registra-se
também nos estudos sobre o contexto brasileiro atual, conforme afirma o crítico paulista
Filipe Furtado:
Dentre os muitos recortes possíveis para observar o cinema brasileiro recente, um dos
mais interessantes é a figura do ator. É raro encontrar boa escrita sobre o tema, talvez
29
devido a um certo preconceito: mais visível elemento de um filme ele acaba sendo
condenado à invisibilidade (FURTADO apud CAETANO, 2005, p. 121)
Destaco aqui, então, a ideia de “invisibilidade” proposta por Furtado para substituir a
ideia anterior de “inexistência”, por parecer esboçar algo que me inquietou nesta pesquisa: a
busca por discursos pouco produzidos, por vozes que parecem inexistentes. Memórias,
biografias e entrevistas, documentos apontados por Nacache, passaram a ser lugares para
torná-los “visíveis” e estes se tornaram parte das referências desta pesquisa.
1.2.3 Procedimentos gerais e recorte desta pesquisa
Para responder a essas perguntas foi adotado como metodologia um levantamento
bibliográfico mais aprofundado em busca de discursos de atores e atrizes em livros editados
sobre cinema brasileiro a partir da década de 1990, e também em artigos, revistas, websites e
blogs de cinema, ou seja, uma literatura especializada e em língua portuguesa. Foram
realizadas também incursões na língua inglesa e espanhola, mas, a procura por estas “vozes”
de atores e atrizes sobre a arte cinematográfica, nos pareceu demonstrar uma lacuna bastante
significativa. Inicialmente o que parecia ocorrer por uma dificuldade de acesso a essas obras
foi se revelando, por meio do mapeamento bibliográfico realizado, se tratar de um assunto
talvez de menor interesse na reflexão apresentada em forma escrita e publicada sobre cinema
de uma maneira geral. Uma descrição desta pesquisa de campo é apresentada ainda neste
capítulo revelando os poucos materiais encontrados sobre o ator no cinema, e os raros
materiais escritos por atores.
A partir das pesquisas quantitativas nos acervos e websites consultados, e mediante as
afirmações apresentadas por Nacache e Furtado em seus estudos, pareceu ainda mais
instigante buscar discursos de atores e atrizes. Tais percepções nos sugeriram que um
elemento-chave deste trabalho seria a realização de entrevistas com atores para que, por meio
destas, eles produzissem discursos sobre os processos de ensaio, preparação e composição de
personagens nas experiências vividas no cinema brasileiro contemporâneo.
Para garantir um estudo aprofundado do assunto, o recorte da pesquisa foi então feito
sobre o trabalho destes dois atores de destaque da produção cinematográfica brasileira atual:
Leona Cavalli e Matheus Nachtergaele, ambos com formação que se iniciou no teatro e que,
estrearam em produções cinematográficas na segunda metade da década de 1990, período que
foi então denominado como “Cinema da Retomada”. Este momento da nova produção
30
cinematográfica brasileira foi assim denominado por pesquisadores como Lúcia Nagib12
e
Amir Labaki13
, por apresentarem uma nova safra de produções brasileiras que começa no
mandato do Vice-presidente da República Itamar Franco (1992-1994), após o impeachment do
então Presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992). Segundo Amir Labaki (1998):
A partir de meados da década de 90 começa a se esboçar a retomada da produção de
longas-metragens, devido, sobretudo, a uma nova legislação de incentivos fiscais
(“Lei do Audiovisual”, de 1993). A produção logo se reergue, ainda que sem alcançar
as marcas médias da era Embrafilme14
(...). Não menos importante tem sido o
aparecimento de uma nova geração de cineastas em geral vinculados à “primavera do
curta”15
. O primeiro sucesso de bilheteria da retomada deve-se a um deles, à ex-atriz
Carla Camurati. “Carlota Joaquina, Princesa do Brazil” uma comédia escrachada
sobre o fim do período colonial, supera em 1995 a marca de um milhão de
espectadores (LABAKI, 1998, p. 19).
Neste contexto de retomada - que estudaremos melhor no Segundo Capítulo - diversos
atores oriundos do teatro começam suas carreiras no cinema e, com o aumento da produção de
filmes, tem tido a possibilidade de atuar em diversos trabalhos, construindo uma experiência
contínua no fazer cinematográfico.
12
NAGIB, Lucia. O cinema da retomada: Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Editora 34,
2002.
13 LABAKI, Amir. O cinema brasileiro: de ‘O Pagador de Promessas’ a ‘Central do Brasil’. São Paulo:
Publifolha, 1998.
14 Empresa Brasileira de Filmes.
15 Período entre 1986 e 1994 em que houve uma grande e criativa produção de curtas-metragens de ficção, uma
renovação dos documentários e a criação de núcleos estáveis de curtas de animação. O marco deste grupo de
produções seria o curta-metragem “Ilha das Flores” de Jorge Furtado, que venceu em 1991 o Urso de Ouro no
Festival de Berlim. Segundo Labaki, o cinema brasileiro só não desapareceu neste período por conta desta nova
vitalidade na produção de curtas (LABAKI, 1998, p. 18).
31
1.3 PESQUISA DE CAMPO: MAPEANDO MATERIAIS SOBRE O
ATOR EM ACERVOS DO SUL E SUDESTE BRASILEIRO
Dentre as produções bibliográficas encontradas que se dedicam à apresentação da
estrutura de produção de filmes, foi observado que a maioria possui capítulos sobre a direção,
o roteiro, a produção, a fotografia, entre outros, mas, salvo algumas exceções, nenhum
capítulo sobre o trabalho do ator. Pouco material foi encontrado sobre a atuação no cinema ou
sobre o trabalho dos preparadores de atores, ou mesmo sobre os métodos de direção de ator.
Menor ainda era o número de materiais escritos pelos próprios atores falando sobre suas
experiências, não apenas no Brasil, mas também no exterior.
No caso brasileiro, as pesquisas na área de cinema têm como veículo importante as
publicações SOCINE – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, que reúne
os maiores estudiosos da área no país. Em 14 de anos de existência do SOCINE, das quatro
publicações disponíveis em seu website16
, o número de artigos e resumos expandidos
publicados é de aproximadamente 500 trabalhos, e, destes, apenas quatro dedicam-se ao
trabalho de atores, ou seja, menos de 1% do total de obras.
Este é apenas um dos exemplos que se apresentam no campo dos estudos sobre cinema
que evidenciam as baixas quantidades de produções sobre o ator, como veremos mais adiante
no detalhamento do levantamento bibliográfico realizado.
1.3.1 Recorte e metodologia do mapeamento
Para elaborar um levantamento quantitativo da produção bibliográfica sobre atuação
no cinema, optou-se por demarcar cinco capitais do sul-sudeste do país17
, todas elas cidades
que possuem cursos superiores de cinema.
Foram consultadas bibliotecas de instituições de ensino de cinema e acervos diversos
das seguintes capitais: Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo.
Apenas em São Paulo, Rio de Janeiro e Florianópolis foi possível realizar a busca presencial
nas bibliotecas destas instituições de ensino, além de outros acervos destas cidades, o que
representou uma possibilidade de registrar in loco materiais existentes nestes contextos e
16
VII, VII, XI e XIII Anais do SOCINE. Disponível em: http://www.socine.org.br/index.asp.
17
Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo
32
estabelecer percentuais dedicados ao ator18
. Já no que diz respeito à pesquisa virtual, foram
consultados os acervos nas cidades de Curitiba e Porto Alegre, além de outros acervos de duas
das cidades já visitadas presencialmente: Rio de Janeiro e São Paulo. Nestas duas últimas fez-
se necessário a pesquisa virtual como complemento na coleta de dados, tendo em vista que a
pesquisa presencial nestas cidades foi prejudicada por duas greves dos funcionários da USP,
ou mesmo pelas próprias dificuldades de verba que, apesar do importante incentivo, nos
permitiu visitas mais curtas19
. Outra etapa da busca virtual foi realizada em websites de
editoras e bancos de teses e dissertações20
, o que representou um aporte bastante significativo
deste mapeamento bibliográfico. Esta parte da pesquisa englobou acervos de diferentes
estados brasileiros, não se restringindo, portanto, às capitais do sul e sudeste.
1.3.2 Resultados
A seguir apresento os dados coletados dispostos em três tabelas distintas: a) Pesquisa
Presencial nos Acervos de Universidades e Centros de Estudos de Cinema, tabela que reúne
os materiais encontrados durante as saídas de campo realizadas nas cidades de Florianópolis,
São Paulo e Rio de Janeiro; b) Pesquisa Virtual nos Acervos de Universidades e Centros de
Estudo sobre Cinema, nos quais não foi possível a visita nas viagens realizadas para as
cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, além dos dados de dois acervos nas cidades de
Curitiba e Porto Alegre; c) Pesquisa Virtual – Catálogos de Editoras e Bancos de Teses e
Dissertações.
18
Foram visitados os seguintes acervos: Biblioteca Central da Universidade do Estado de Santa Catarina –
UDESC, Biblioteca da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Biblioteca da UNISUL (Florianópolis);
Biblioteca Cinemateca Brasileira, Biblioteca do Itaú Cultural, Biblioteca da Fundação Armando Álvares
Penteado – FAAP, Biblioteca do Museu Lasar Segall (São Paulo); Biblioteca da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro – UNIRIO, Biblioteca da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Escola de Cinema
Darci Ribeiro (Rio de Janeiro). 19
Acervos consultados virtualmente: Biblioteca da Faculdade de Artes do Paraná – FAP (Curitiba - PR);
Biblioteca da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (Porto Alegre - RS); Biblioteca da
Universidade Federal Fluminense – UFF (Niterói - RJ); Biblioteca da Universidade de São Paulo – USP (São
Paulo). Quanto a este último acervo, nas duas saídas de campo, realizadas em novembro de 2009 e junho de
2010, a Universidade se encontrava em Greve dos Funcionários, tornando possível apenas a busca virtual de seu
acervo.
20
Websites e banco de teses e dissertações consultadas virtualmente: Editora Annablume, Editora Cosac &Naify,
Editora Perspectiva, Jorge Zahar, Martins Fontes, E-papers, Publifolha, Editora Sete Letras, Editora Escritutras,
Azougue Editorial, Companhia das Letras, Banco de Teses e Dissertações – CAPES, Biblioteca Digital
Brasileira de Teses e Dissertações.
33
a) Pesquisa Presencial – Acervos de Universidades e Centros de Estudo sobre Cinema
ACERVO CIDADE
TOTAL
DE
TÍTULOS
SOBRE
CINEMA
TÍTULOS SOBRE ATORES E ATRIZES NO CINEMA
Total de
Títulos
sobre
Atuação
no
Cinema
Biografias
de Atores
escritas
por
terceiros
Autobio
grafias
Materiais
escritos
por atores
Total de
obras
sobre
atores e
atrizes
Percentual
de obras
sobre
atores e
atrizes**
UDESC Fpolis. 661 2 7 1 0 10 1,5%
UFSC Fpolis. 650 4 11 1 2 18 2,7%
UNISUL Fpolis. 2001 4 19 1 1 25 1,2%
UNIRIO R. Janeiro 120 2 1 3 0 6 5,0%
UFRJ R. Janeiro 1212 4 0 0 0 4 0,5%
Escola Darcy
Ribeiro
R. Janeiro 1300 0 1 0 0 1 0,1%
Cinemateca
Brasileira
S. Paulo 11.780 49 2 0 6 57 0,5%
FAAP S. Paulo 4.912 4 240 5 1 250 5,0%
Itaú Cultural S. Paulo 626 5 1 0 1 7 1,0%
Museu Lasar
Segall
S. Paulo 38.117 1.427 - - 1427* 3,7%
* Neste acervo não possível fazer o detalhamento dos materiais sobre atuação.
** Cálculo efetuado com base na relação entre os itens “Total de Obras sobre Cinema” e “Total de Obras sobre
Atores e Atrizes”
b) Pesquisa Virtual – Acervos de Universidades e Centros de Estudo sobre Cinema
ACERVO CIDADE
TOTAL DE
TÍTULOS
SOBRE
CINEMA
TÍTULOS SOBRE ATORES E ATRIZES NO CINEMA
Total de
Títulos
sobre
Atuação
no
Cinema
Biografias
de Atores
escritas
por
terceiros
Autobio
grafias
Materiais
escritos
por atores
Total de
obras
sobre
atores e
atrizes
Percentual
de obras
sobre
atores e
atrizes**
FAP Curitiba 972 6 7 0 0 13 1,2%
UFGRS P. Alegre 2953 7 15 1 0 23 0,8%
UFF Niterói 1606 62* 29 3 0 94 6,0%
USP São Paulo 6859 7 3 0 4 14 0,2%
* Das 62 obras deste item 58 referem-se a reportagens e entrevistas em revistas e periódicos e apenas 4 livros sobre atuação
em cinema.
34
c) Pesquisa Virtual – Catálogos de Editoras e Bancos de Teses e Dissertações
ACERVO
TOTAL DE
TÍTULOS
SOBRE
CINEMA
TÍTULOS SOBRE ATORES E ATRIZES NO CINEMA
Total de
Títulos
sobre
Atuação
no
Cinema
Biografias
de Atores
escritas
por
terceiros
Autobio
grafias
Materiais
escritos
por atores
Total de
obras
sobre
atores e
atrizes
Percentual
de obras
sobre
atores e
atrizes**
Editora
Annablume
30 1 0 0 0 1 0,3%
Editora
Cosac
&Naify
14 0 0 0 0 0 0%
Editora
Perspectiva
51 3 0 0 0 3 4,5%
Jorge Zahar 26 0 0 0 1 1 4,5%
Martins
Fontes
11 0 0 0 0 0 0%
E-papers 8 0 0 0 0 0 0%
Publifolha 6 0 0 0 0 0 0%
Editora Sete
Letras
7 0 0 0 0 0 0%
Editora
Escritutras 10 0 0 0 0 0 0%
Azougue
Editorial 8 0 0 0 0 0 0%
Companhia
das Letras 7 0 0 0 0 0 0%
Banco de
Teses e
Dissertações
–CAPES
2387 11 0 0 0 11 0,5%
Biblioteca
Digital
Brasileira de
Teses e
Dissertações
726 7 0 0 0 7 1,0%
A partir desta pesquisa virtual e presencial nos 27 acervos mencionados podemos
perceber que os percentuais de materiais produzidos sobre atuação em cinema não alcançam
mais do que 6% do material disponível sobre cinema. Cabe destacar que esta marca de 6%,
no caso da pesquisa virtual do acervo da UFF – Universidade Federal Fluminense, diz
respeito a um total de 94 títulos, sendo que 58 destes títulos referem-se a entrevistas e
reportagens sobre atores em revistas e 29 a biografias de grandes astros e estrelas, sendo
35
que, apenas 4 publicações são centrados em aspectos como técnica e formação de atores e
atrizes no cinema.
Neste sentido, também é oportuno destacar o exemplo da Biblioteca da FAAP – SP,
na qual podemos perceber um número alto de obras sobre atores e atrizes. No entanto, dos
250 títulos encontrados sobre atores e atrizes neste acervo apenas 4 referem-se a publicações
sobre atuação escritas por pesquisadores e 1 escrita por ator ou atriz, descrevendo e
analisando procedimentos criativos. Os 245 títulos restantes são biografias e autobiografias
de astros e estrelas de cinema, tipos de publicações que costumam dar atenção à vida
pessoal, aos escândalos, e aos momentos emblemáticos de suas vidas, apresentando a
carreira destes atores de forma panorâmica e, de certa forma, romanceada. Os processos
interiores de criação, os métodos empregados, isto é, os procedimentos de atuação no
cinema, ocupam uma área de interesse aparentemente muito reduzido.
1.3.3 Descrição dos principais materiais encontrados
Um dos autores encontrados neste mapeamento que dedicou um capítulo de sua
publicação sobre cinema para refletir sobre o trabalho de atores e atrizes foi o pesquisador
italiano Antonio Costa. Em “Compreender o Cinema”, Costa problematiza a questão
ausência de estudos sobre o ator:
Entre os aspectos menos conhecidos e analisados no cinema devemos,
paradoxalmente, recordar o fenômeno do ator cinematográfico, o papel da recitação
no processo de produção de um filme, o problema das relações entre a técnica do
ator e todas as outras técnicas que sustentam a linguagem cinematográfica. Dizemos
paradoxalmente porque o ator cinematográfico foi, desde o final dos anos [de 19]10,
o elemento com o qual mais fácil e diretamente se identificou o cinema. Ainda hoje,
embora tenham passado muitas décadas desde o fim da idade de ouro de Hollywood
e que a política de autores21
tenha conquistando novos adeptos e tenham imposto
novos estrelismos (dos autores, dos diretores de fotografia ou, como afirmam alguns,
dos próprios efeitos especiais), o ator permanece um elemento fundamental
(COSTA, 1987, p. 236).
Este fenômeno é também apresentado pela pesquisadora francesa Jacqueline
Nacache no que diz respeito aos estudos sobre o ator no cinema francês e americano, objeto
21
Lançado pelo diretor François Truffaut na revista francesa “Cahiers Du Cinéma” em 1955, a noção de
“política dos autores” é um movimento teórico que buscou reclamar ao ofício do diretor do cinema a função de
autor do filme, em um período marcado por práticas criativas que sofriam grande pressão dos produtores e das
grandes estrelas de cinema.
36
de pesquisa ao qual a autora dedicou três de seus livros. Um destes estudos, “El Actor de
Cine”, é uma das poucas obras encontradas que nos permitem visualizar um panorama sobre
o ator no cinema, passando por diversos momentos emblemáticos da produção fílmica no
ocidente. No que diz respeito à ausência de estudos sobre o ator no cinema, a autora afirma
que:
De uns vinte anos para cá, cada vez mais existe um número frequente de
comentaristas que prestam atenção ao ator cinematográfico, à sua história, suas
práticas, suas relações com a criação, o espectador, o âmbito artístico e social.
Porém, tais esforços resultam ínfimos em vista de que o âmbito dos estudos sobre
cinema segue ocupando-se de seus objetivos preferidos: centrar o enfoque nas obras,
nos diretores, as influências, os estilos; o enfoque do cinema enquanto linguagem,
enquanto relato como arte visual e sonora. O ator parece ter pouco que fazer nesta
aventura, sobretudo se levarmos em conta que ele herdou uma desvantagem que
remonta as próprias origens do teatro: a reprovação moral, social, estética que
sempre pesou sobre os histriônicos (...). Assim, não devemos estranhar que neste
contexto os estudos sobre o ator carecem de visibilidade (NACACHE, 2006, p.12,
tradução nossa).
Outras obras que podem ser destacadas no levantamento bibliográfico são os livros
de James Naremore, “Acting on Cinema” (1988), que apresenta aspectos introdutórios a
respeito do trabalho do ator no cinema e analisa oito performances de atores como Charles
Chaplin, Marlene Dietrich, Lilian Gish e Cary Grant, entre outros; o catálogo “Actor /
Actor” (1987) apresentado pela Fundação de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian
(Lisboa) que apresenta trata de temas como a identificação com as estrelas do cinema
hollywoodiano, os limites entre o teatro tradicional e o cinema deste contexto, além de
outros aspectos sobre criação de personagens.
Na língua espanhola foram encontrados títulos como: “La Dirección de Actores en
Cine” (2000) de Alberto Miralles, centrado em procedimentos de criação de personagens
nesta linguagem, e “El trabajo Del Actor de Cine” (2002), escrito pela atriz Assumpta Serna,
descrevendo o rotina dos processos criativos de cinema dos quais ela participou. Duas obras
encontradas no levantamento que centram sua discussão na relação do ator com a direção no
cinema foram escritas por Vsevolod Pudóvkin (1883 – 1953), cineasta e teórico russo, que
se dedicou a uma das primeiras reflexões sobre o ofício do ator na linguagem
cinematográfica a serem publicadas. Um de seus livros “O Ator no Cinema” (s.d.) 22
é um
22
Foi consultada a 2ª Edição da obra, lançada em português, no entanto nem a edição encontrada e, tampouco a
citação da obra em outras publicações permitiu saber precisamente saber o ano da publicação. Tendo o cineasta
vivido de 1883 a 1953, nos referimos a este livro como uma obra da primeira metade do século XX, e ainda
buscamos em outros materiais pela informação precisa sobre o ano desta publicação. Nacache cita Pudovkin
em diversos momentos do seu “O Ator de Cinema” (2006), no entanto, a obra de referência é apenas “Film
Acting” (1937), e não podemos informar se seria a mesma obra com outro título em português.
37
documento que parece propor uma discussão bastante atual no campo cinematográfico
mesmo tendo sido escrito provavelmente nos anos de 1940: a necessidade de uma relação
colaborativa entre diretor e atores em um filme. Pudovkin afirma que:
(...) para que o ator esteja em grau de compreender o que o diretor deseja, não bastam as
conversações e as relações escritas, mas é preciso um profundo estudo recíproco. Necessário
é dizer que nas atuais condições a maior parte dos diretores e dos atores (que na realidade são
bem poucos) absolutamente não se conhecem entre si. E assim o problema da criação coletiva
encontra-se ainda hoje no primeiro estágio do seu possível desenvolvimento. (...) Falando das
minhas experiências pessoais, já disse até que ponto o diretor deve levar o contacto íntimo
com os atores, afim de que o trabalho da filmagem se desenvolva naquela atmosfera de ajuda
mútua e de confiança, indispensável para a realização da criação (PUDOVKIN, s.d., p. 135 e
136)
No entanto, materiais que se dedicam a refletir sobre essa relação criativa entre
direção e atores são raros. Neste sentido podemos citar obras escritas por diretores que
apresentam pequenos capítulos sobre este aspecto, tais como: “A Forma do Filme” (1990),
de Sergei Eisenstein; “Imagens” (1996), de Ingmar Bergman; “Esculpir o Tempo” (1998), de
Andrei Tarkovski; “Por um Cinema sem Limites” (2001), de Rogério Sganzerla; “Uma
Viagem Pessoal pelo Cinema Americano” (2004), de Martin Scorcese; e o livro de
entrevistas “Conversas com Woody Allen”, (2008) produzido por Eric Lax.
No âmbito dos estudos de pesquisadores da linguagem cinematográfica, podemos
destacar capítulos dedicados ao ator, tais como os que fazem parte das seguintes
publicações: “Teoria Del Cine – La Redención de la Realidad Física” (1989), de Siegfried
Kracauer; “Estética e Semiótica do Cinema” (1978), de Yuri Lotman; e “Direção de Cinema:
Técnica e Estética” (2007), de Michael Rabiger, entre outros. Outras contribuições para a
reflexão sobre procedimentos de atuação no cinema podem ser observadas em manuais
americanos e ingleses de técnica de atuação como: “The Actor and the Câmera” (1994), de
Malcolm Taylor; e “Secrets of Screen Acting” (2003), de Patrick Tucker. Também é possível
acessar estudos como: “As Estrelas: Mito e Sedução no Cinema” (1989), de Edgar Morin,
que nos permitem refletir sobre o papel do ator como intérprete e/ou estrela de cinema.
No contexto do cinema brasileiro, merecem destaque algumas publicações como: “O
Cinema Brasileiro no Século XX – Depoimentos” (2004), organizada e produzida por
Isabella Souza Nicolás, na qual são apresentados depoimentos curtos de diretores,
produtores e, também, muitos relatos de atores brasileiros sobre o nosso cinema; “O Vôo
Cego do Ator Brasileiro: Experiências e Inexperiências Especializadas” (2001), de Nikita
Paula, que reflete sobre as dificuldades encontradas na formação de atores de cinema no
38
Brasil em meio às crises de consolidação de uma indústria nacional e apresenta trechos de
entrevistas com diversos atores brasileiros de variados momentos do cinema brasileiro; “O
Corpo do Ator: Metamorfose e Simulacro”, de Caio César Próchno, um estudo sobre cinco
atores brasileiros no qual o autor analisa as distinções entre o corpo no cinema, no teatro e
na TV, pesquisa que tem Matheus Nachtergaele como um dos atores estudados; “Cinema:
Direção de Atores" (2003), escrito pelo cineasta Carlos Gerbase como um manual sobre o
trabalho entre diretores e atores no set de filmagem.
Ainda no contexto da produção sobre os atores brasileiros, destaco a produção da
pesquisadora paulista Walmeri Ribeiro, com dissertação de mestrado e tese de doutorado
finalizadas recentemente: “À procura da essência do ator: um estudo sobre a preparação do
ator para a cena cinematográfica” (2005) e “Poéticas do Ator no Audiovisual: O Ator Co-
criador na Produção Brasileira Contemporânea” (2010), respectivamente, nos quais são
apresentados estudos minuciosos sobre o papel do ator como um co-autor em diversas
produções recentes do cinema brasileiro, refletindo sobre a expansão da criação do ator em
processos como ensaios, preparação de elenco e laboratórios.
Apesar destes estudos descritos nos ofereceram diversas bases para a reflexão acerca
dos processos criativos de atores e atrizes em cinema, é oportuno notar que todos os
materiais mencionados apresentam “vozes” exteriores à criação do ator. Das publicações
encontradas sobre o cinema brasileiro, apenas o audiolivro de Leona Cavalli intitulado
“Caminho das Pedras: Reflexões de uma Atriz” (2009), e o livro de Assumpta Serna (2002)
já mencionado, autobiografias de atores como Shirley MacLaine, Charles Chaplin, Marlon
Brando, Laurence Olivier, entre outros materiais como entrevistas e documentos esparsos,
nos permitem “escutar as vozes” de atores e atrizes refletindo sobre seus procedimentos e
suas relações com a produção do cinema.
No próximo capítulo apresentaremos o contexto escolhido para analisar o trabalho do
ator neste estudo, o período que compreende desde o “Cinema da Retomada” até a produção
atual brasileira, e nos ocuparemos de um breve panorama deste momento para apresentar os
atores desta nova geração e outros que se mantém na ativa desde as décadas anteriores.
Assim poderemos também observar diversos trabalhos que parecem propor novos desafios e
distintos tipos de processos para estes atores, e estes vêm de encontro com as questões que
norteiam este estudo: técnica, composição e formação de atores e atrizes no cinema.
39
CAPÍTULO II
____________________________________________________________
ATORES E ATRIZES DO CINEMA BRASILEIRO:
DO “CINEMA DA RETOMADA” AO “CINEMA PÓS-RETOMADA”
“Eu me lembro que havia uma crença nos primórdios
do cinema brasileiro que era ‘não ensaiar para não
gastar’. As pessoas diziam: ‘Não ensaia muito pra não
gastar a emoção’. Mas como você pode ‘amalgamar’
um elenco sem, pelo menos, um trabalho de mesa?”
Fernanda Montenegro
40
2.1 UM NOVO CINEMA BRASILEIRO
Neste capítulo apresentaremos brevemente o contexto político e econômico dos anos
de 1990 para situar os termos “Cinema da Retomada” e “Cinema Pós-Retomada”, e,
portanto, faz-se necessário apresentar questões que envolvem o fechamento da Embrafilme –
Empresa Brasileira de Filmes (1989), para que melhor se possa compreender o papel deste
acontecimento como provocador de um momento de transição para o cinema brasileiro. Em
seguida serão apontadas algumas produções e também momentos marcantes do cinema
brasileiro deste período, desde a Retomada até a produção atual, destacando os atores e
atrizes que fazem parte deste momento, distinguindo os profissionais que vem de uma
prática na televisão antes de estrear no cinema e, outros, vindos de uma carreira teatral para
seu primeiro trabalho frente às câmeras.
O objetivo deste capítulo é apresentar um contexto em que uma nova geração de
atores, e também de diretores, estreia nas telas no cinema brasileiro, um momento de
reformulação do mercado cujas denominações são polêmicas. Leona Cavalli e Matheus
Nachtergaele despontavam nos palcos paulistas no começo dos anos de 1990, momento em
que diversos aspectos econômicos e políticos desenham novas perspectivas para o cinema
brasileiro. Cavalli e Nachtergaele começam seu trabalho no cinema em duas produções
importantes desse período: “Um Céu de Estrelas” (1996), de Tata Amaral e “O que é Isso
Companheiro” (1997), de Bruno Barreto, respectivamente. Mais adiante veremos outras
informações sobre estes filmes.
2.1.1 Contexto político e econômico
Primeiro presidente eleito por eleições diretas no Brasil depois da ditadura militar
que se estendeu de 1964 a 1985, Fernando Collor de Mello adotou em seu governo (1989-
1991) medidas inconstitucionais como o confisco de contas bancárias com objetivo de
conter a alta inflação no país, além do fechamento de diversas instituições públicas, dentre
elas, a Embrafilme – Empresa Brasileira de Filmes (BUTCHER, 2005, p. 19). Neste mesmo
ato, foram também extintas autarquias, fundações e empresas públicas e federais como a
Fundação Nacional das Artes (FUNARTE), Fundação do Cinema Brasileiro (FCB) e o
Conselho de Cinema (Concine) (MARSON, 2009, p. 15).
41
Melina Izar Marson comenta ainda sobre o impacto das medidas do governo Collor
no cinema nacional:
A concepção política adotada por Collor tratou a cultura como um ‘problema de mercado’,
eximindo o Estado de qualquer responsabilidade nesta área. Isto significa dizer que a
produção cultural passou a ser vista como qualquer outra área produtiva, que deve se
sustentar sozinha através de sua inserção no mercado. A partir das medidas adotadas – ou
melhor dizendo, a partir da ausência de medidas adotadas – toda a produção cultural foi
afetada. No caso específico do cinema, que tinha um vínculo muito forte com o Estado desde
a criação da Embrafilme, a saída de cena do governo federal foi um abalo muito forte
(MARSON, 2009, p. 11).
Estas medidas acabaram por determinar condições cada vez menos dignas de
trabalho no campo cinematográfico. Se no teatro outras alternativas pareciam possíveis para
a sobrevivência de um projeto ou grupo, como o retorno de bilheteria ou venda de
espetáculos para eventos, no o cinema, que há muito não podia contar com este tipo retorno
devido à baixa presença do público nas sessões de filmes brasileiros, se tornou cada vez
mais difícil garantir condições mínimas de realização de um projeto, os pagamentos dos
serviços de atores, diretores, roteiristas e equipe técnica, e o custeio da distribuição das obras
finalizadas no circuito nacional, dificuldade encontrada até os dias de hoje, mesmo que em
menores proporções.
Criada pelo governo militar, em 1969 a Embrafilme era a maior responsável pelo
financiamento de filmes no Brasil e mantinha a regularidade da produção por meio de uma
política de exibição que garantia “cotas de tela” para os filmes brasileiros nas salas de
cinema. Era também responsável pela distribuição dos filmes por ela financiados
(MARSON, 2009, p18). Em seu período de atuação, em especial entre o final dos anos de
1970 e o começo dos anos de 1980, suas produções atingiram cerca de 35% do mercado
nacional, com filmes como “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (1976), de Bruno Barreto, que
chegou à marca de 11 milhões de espectadores, maior bilheteria do cinema brasileiro até a
Retomada23
(BUTCHER, 2005, p. 18).
O modelo de produção da Embrafilme, no entanto, “começava dar sinais de desgaste
no começo da década de 80, quando muitas salas do interior do Brasil não resistiram à
competição da TV e começaram a fechar” (BUTCHER, 2005, p. 18), uma crise do cinema
enquanto prática social iniciada antes do fechamento da Embrafilme. Para o pesquisador
Arthur Autran:
23
Em 2010, o filme “Tropa de Elite 2”, de José Padilha foi o primeiro a ultrapassar a marca de bilheteria
atingida por “Dona Flor e seus Dois Maridos”.
42
a extinção decretada pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello em 1990 da Embrafilme e
da Fundação do Cinema Brasileiro (...) foi a pá de cal sobre uma estrutura que já há algum
tempo não funcionava a contento, sendo questionada por amplos setores da sociedade,
inclusive por boa parte dos cineastas. Mas Collor, ao invés de reformular esta estrutura ou
substituí-la por uma nova, tão somente acabou com ela e não se preocupou mais com a
questão (AUTRAN, 2000, página da internet 24
).
Após uma gestão marcada por um plano econômico fracassado, suspeitas de
corrupção e diversos escândalos, e enfrentando manifestações públicas da população que foi
às ruas protestar pelo afastamento de Collor da presidência, a Câmara autorizou a abertura
do processo de impeachment. Em 2 de Outubro de 1992 Collor foi afastado do poder
temporariamente. Em dezembro do mesmo ano, Collor renunciou ao cargo de presidente e
foi substituído por seu vice, Itamar Franco, que governou o país pelos dois anos seguintes
(FERREIRA, 2010, página da internet 25
).
Desde o fechamento da Embrafilme até as primeiras medidas criadas por Franco em
seu governo (1992-1994), o Brasil vive uma queda violenta de sua produção de longas-
metragens chegando a lançar entre dois ou três filmes por ano, até que em 1993 são
implementadas novas leis federais de incentivo à produção audiovisual baseadas na renúncia
fiscal. Com a criação destas leis de incentivo começamos um lento processo de
reestruturação da produção nacional (AUTRAN, 2000).
As duas ferramentas principais de incentivo fiscal que entram em vigor a partir deste
momento são: a “Lei de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet), de 1991, que permite a dedução
do imposto de renda de empresas privadas, públicas e de pessoas físicas a serem aplicadas
em projetos culturais de diferentes seguimentos artísticos; e a “Lei do Audiovisual” de 1993,
que permite a aplicação de 3% do imposto de renda de empresas brasileiras em obras
audiovisuais e, ainda, estimula empresas estrangeiras a investir na produção nacional a partir
da dedução de até 70% de seus impostos sobre a remessa de royalties, o que estimulou o
vínculo de diversas distribuidoras estrangeiras e as produções brasileiras de audiovisual
deste período (BUTCHER, 2005, p. 19).
24
In: Mnemocine. 11/09/2000. Acesso em 22/04/2009. Disponível em:
http://www.mnemocine.com.br/cinema/historiatextos/arturpanorama.htm
25 FERREIRA, Carlos. Collor foi o primeiro alvo do impeachment na América Latina. UOL EDUCAÇÃO:
Disponível em: http://educacao.uol.com.br/historia-brasil/ult1702u26.jhtm. Acessado em 10 de Novembro de
2010.
43
Este momento da nova produção cinematográfica brasileira começa a ser
denominado como “Cinema da Retomada”, um termo que literalmente diz respeito a uma
volta à ação, ou seja, uma volta à produção de filmes de longa-metragem no Brasil após o
choque provocado pelas medidas do governo Collor e, se torna o objeto de estudo de
pesquisadores como Lúcia Nagib26
, Luiz Zanin Oricchio27
, Amir Labaki28
, entre outros, uma
retomada que diz respeito, portanto, a este período de nova relação entre cinema e os
mecanismos de produção e não necessariamente a novo um movimento ou a uma estética
cinematográfica particular. Nagib explica o contexto e a problemática desse termo:
A expressão ‘retomada’, que ressoa como um boom ou um ‘movimento’ cinematográfico,
está longe de alcançar unanimidade mesmo entre seus participantes. Para alguns, o que houve
foi apenas uma breve interrupção da atividade cinematográfica com o fechamento da
Embrafilme, a seguir reiniciada com o rateio dos próprios recursos da produtora extinta,
através do Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro. Em três seleções promovidas entre 1993 e
1994, o Prêmio Resgate contemplou um total de 90 projetos (...) que foram finalizados numa
rápida sequência. Assim, o estrangulamento dos dois anos de Collor teria resultado num
acúmulo de filmes nos anos seguintes, produzindo uma aparência de boom. A Lei 8.685,
conhecida como Lei do Audiovisual, promulgada em 1993, aperfeiçoando leis anteriores de
incentivo fiscal, começou a dar frutos depois de 1995, acentuando o fenômeno (NAGIB,
2002, p. 13)
Além do aporte destes mecanismos, outra ação importante aconteceu no Rio de
Janeiro em 1992, quando a Prefeitura do Rio cria a Riofilme, que passou a ser praticamente
a única distribuidora de filmes brasileiros e que atuava ainda na finalização de obras que
estavam paradas por falta de recursos. A distribuidora atuou entre 1992 a 1994 também na
criação de novos espaços de exibição de programações alternativas (cinema nacional,
cinema de arte, etc) e na realização de curtas-metragens, em um momento de baixa aceitação
da produção nacional nos cinemas. Filmes como “Terra Estrangeira” (1995), de Walter
Salles Jr. e Daniela Thomas, “Menino Maluquinho – O Filme” (1996), de Helvecio Ratton,
“Pequeno Dicionário Amoroso” (1997), de Sandra Werneck, “Central do Brasil” (1998), de
Walter Salles Jr. e “Lavoura Arcaica” (2001), de Luis Fernando Carvalho, foram alguns dos
títulos que tiveram o aporte do Riofilme (BUTCHER, 2005, p. 21).
26
NAGIB, Lucia. O cinema da retomada: Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Editora 34,
2002.
27 ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinme de Novo: Um Balanço Crítico da Retomada. São Paulo: Estação Liberdade,
2003.
28
LABAKI, Amir. O cinema brasileiro: de ‘O Pagador de Promessas’ a ‘Central do Brasil’. São Paulo:
Publifolha, 1998.
44
Entre 1992 e 1994 chegam aos cinemas os primeiros filmes brasileiros realizados
após o fechamento da Embrafilme, finalizados com recursos das Leis de Incentivo e do
Riofilme, e, outros, chegam aos cinemas cerca de seis anos depois. Uma retomada da
produção começa neste período e, desde então, a quantidade de produções nacionais
lançadas a cada ano não parou de crescer. Apenas em 1995 é que observamos um primeiro
salto, com o lançamento de 12 longas-metragens que somam mais de 2,9 milhões de
espectadores, público dez vezes maior que o de 1994 (BUTCHER, 2005, p.23).
O campo cinematográfico começa um processo de retomada caracterizado pelo
lançamento cada vez maior de filmes nas salas brasileiras e por uma ampla presença em
festivais nacionais e internacionais. O Festival de Cinema de Gramado, por exemplo, um dos
mais antigos e importantes do gênero no Brasil e que havia passado por um processo de
abertura às produções ibero-americanas desde 1992, por motivo da baixa produtividade de
filmes nacionais, volta em 1996 a ter uma mostra competitiva exclusivamente nacional.
Desde esse momento pudemos acompanhar um processo de crescimento do mercado
de cinema no Brasil. A seguir apresentaremos alguns filmes e aspectos estéticos que dão
contornos ao “Cinema da Retomada” e ao cinema atual, destacando o trabalho dos atores
que fazem parte deste contexto.
2.1.2 “Carlota Joaquina”: o público de volta às salas
Dentre as produções lançadas em 1995, “Carlota Joaquina – Princesa do Brazil”
tornou-se um dos marcos deste momento de retomada. Primeiro longa-metragem dirigido
pela atriz Carla Camurati, o filme foi lançado com críticas medianas e debaixo de um grande
ceticismo por parte dos profissionais de cinema. No entanto, a produção tornou-se a primeira
desta nova fase a vender mais de um milhão de ingressos, e gerou grande interesse de
programadores por mais cópias do filme. Cinemas lotados - para surpresa de todos -, e um
primeiro “boom” que fez a imprensa referir-se, pela primeira vez, à Retomada da produção
nacional (BUTCHER, 2005, p. 24). Segundo Camurati:
Historicamente, o sucesso do Carlota não é fenomenal, se comparado com os 12 milhões de
espectadores de filmes brasileiros do passado. Mas o fato de ter vendido 1,3 milhão de
ingressos, num momento em que os filmes nacionais faziam, quando muito, 70 mil, foi digno
de nota. Carlota rendeu 10 vezes o valor investido, que foi de aproximadamente 600 mil
reais. Ficar um ano em cartaz é façanha que dificilmente se repetiria com o panorama de
distribuição atual (CAMURATI apud MATTOS, 2005, p. 199).
45
O filme de Camurati apresenta uma visão satírica sobre fatos reais da história
brasileira: a chegada do príncipe D. João de Bragança junto a sua esposa Carlota Joaquina de
Bourbon e sua corte portuguesa em 1807 ao Rio de Janeiro, fugindo das tropas
napoleônicas, um exílio que durou cerca de 13 anos nas terras brasileiras. Estrelado por
Marieta Severo e Marco Nanini, “Carlota Joaquina é um filme histórico que se alia à
tradição da chanchada brasileira introduzindo humor onde, supostamente, só haveria
sisudez” (BUTCHER, 2005, p. 24). Além disso, o filme foi realizado em um momento
político bastante conturbado:
Vivia-se um momento de baixa auto-estima, marcado por um sentimento generalizado de
desgosto e desprezo pelo país, algo que é fielmente traduzido por Carla Camurati, ao mesmo
tempo que é jogado em um confortável tempo mítico do passado. O filme termina com a
“reconstituição” daquela que teria sido sua atitude na volta a Portugal: antes de embarcar,
Carlota Joaquina teria batido os tamancos pra tirar a poeira e dito “Desta terra não levo nem o
pó!” (BUTCHER, 2005, p. 26).
Nanini e Severo em cena de “Carlota Joaquina: Princesa do Brazil” (1995) 29
.
Além de Severo e Nanini, dois atores consolidados por seu trabalho na TV e no
Teatro, o elenco é formado por vários atores oriundos dos mesmos meios como Antônio
Abujamra, Beth Goulart, Bel Kutner, Marcos Palmeira, além da então estreante Ludmila
Dayer, entre outros.
29
Imagem disponível em: http://visaoemalta2.blogspot.com/2008/09/retrato-de-um-rei-segundo-o-filme.html .
46
2.1.3 O cinema brasileiro vai ao Oscar
Em 1996 uma nova expectativa em torno da produção nacional é gerada com o
lançamento de diversos títulos. Chegaram às salas de exibição neste ano 18 longas, o que
demonstrava um crescimento significativo neste início da retomada30
. Além disso, o filme
“O Quatrilho” (1995), sétimo longa-metragem do diretor Fábio Barreto, gerou novo frisson
ao receber uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro naquele ano. O filme
tornou-se o segundo na história do cinema brasileiro a alcançar tal façanha. Trinta e quatro
anos antes “O Pagador de Promessas” (1962), de Anselmo Duarte, havia sido indicado à
mesma premiação, mas, ambos, saíram da festa sem o prêmio31
. Um novo olhar para o
cinema feito no Brasil surgia a partir de uma indicação ao prêmio máximo da indústria
hollywoodiana. Como ironiza Eduardo Escorel:
O diretor do filme teve até sua fotografia publicada envolto na bandeira nacional. Depois de
vitoriosos nos gramados americanos em 199432
, os brasileiros pareciam estar torcendo dessa
vez para receber da Academia Americana de Artes e Ciências Cinematográficas o título de
campeões do mundo de cinema (...). Essa onda de otimismo surpreendia por contrariar a
prática tradicional da mídia. De forma geral os meios de informação, refletindo o ponto de
vista das elites dominantes, sempre desprezavam o cinema brasileiro. Deram inclusive,
contribuição decisiva para sua ruína em 1990 (ESCOREL, 2005, p. 13).
Bruno Campos e Patrícia Pillar em “O Quatrilho” (1995)33
30
Em 1995 haviam sido lançados 12 títulos, em 1994, 8 títulos, e em 1993 apenas 4, o que demonstra um
crescimento bastante expressivo (BUTCHER, 2005, p. 102).
31
Nos anos seguintes foram também indicados ao mesmo prêmio os filmes: “O que é isso companheiro?”
(1997), de Bruno Barreto e “Central do Brasil” (1998), de Walter Salles. 32
O autor refere-se ao título de campeão mundial da Copa do Mundo realizada nos Estados Unidos, vencida
pelo Brasil, conquistando seu tetracampeonato.
33
Imagem disponível em: http://wp.clicrbs.com.br/santarosa/2011/06/05/cine-sesc-traz-tres-classicos-do-
cinema-a-santa-rosa-2/ .
47
Em “O Quatrilho”, Glória Pires e Patrícia Pillar, duas das mais reconhecidas atrizes
da televisão brasileira e com diversas produções cinematográficas no currículo, encabeçam o
elenco ao lado dos estreantes Alexandre Paternost e Bruno Campos. Neste sentido,
poderíamos nos questionar se os impulsos da mídia em relação a este filme não diziam
respeito apenas ao seu êxito no Oscar, mas também ao fato de ser um longa-metragem
protagonizado por duas estrelas da televisão brasileira deste momento, o que já parece
justificar um interesse distinto por parte da imprensa se compararmos com o lugar que
outros tipos de produções brasileiras encontravam na mídia.
No ano seguinte, o filme “O Que é Isso Companheiro?” (1997), dirigido por Bruno
Barreto, foi indicado para a mesma premiação, mas também não foi a vez do Brasil receber a
cobiçada estatueta. Fernanda Torres, que se mantém como uma das atrizes de maior destaque
no cinema brasileiro desde o começo dos anos de 1980, protagoniza o filme ao lado de
atores de grande reconhecimento na televisão e no teatro como Pedro Cardoso, Claudia
Abreu, Luís Fernando Guimarães, Nelson Dantas, Selton Mello, e do ator americano Alan
Arkin, vivendo o embaixador americano Charles Elbrick, sequestrado em 1969 no Brasil por
guerrilheiros de esquerda durante a ditadura militar. O filme concorreu também na mostra
oficial do Festival de Berlim e obteve boa resposta de público no exterior. “O Que é Isso
Companheiro?” marca também a estreia no cinema do ator Matheus Nachtergaele, que viria
a se tornar um dos atores de maior presença e reconhecimento no cinema brasileiro desde a
Retomada até dias atuais.
Matheus Nachtergaele e Alan Arkin em “O que é Isso Companheiro?” (1997) 34
34
Imagem disponível em: http://i47.tinypic.com/2h7duli.jpg
48
2.1.4 Outras premiações e reconhecimentos no exterior
Outro aspecto que reforçou uma valorização do cinema brasileiro no exterior foi a
realização de retrospectivas do cinema nacional no Museu de Arte Moderna de Nova York
(MoMA) em parceria com o Ministério da Cultura, com a programação de cerca de 60
eventos entre 1998 e 1999 no ciclo “Cinema Novo and Beyond” (“Cinema Novo e Depois”)
(LABAKI, 1998, p. 20).
Ainda no âmbito das premiações em eventos e festivais internacionais para filmes
brasileiros, é importante notar que as mesmas contribuíram para a visibilidade de diversas
produções dentro e fora do nosso país, seja por prêmios em festivais de grande, médio ou
pequeno porte35
.
Nachtergaele e Cavalli atuaram em filmes que conquistaram tais êxitos nos festivais
internacionais. Kenoma”, dirigido por Eliane Caffé, protagonizado por José Dumont, e que
tem Nachtergaele no elenco, recebeu em 1997 em Biarritz o Prêmio de Melhor Filme. “Um
Céu de Estrelas”, de Tata Amaral, venceu quatro prêmios no Festival de Havana (Cuba),
além de prêmios em Bogotá (Colômbia), Cretéil e Biarritz (França), e do prêmio de Melhor
Atriz para Cavalli no Festival de Trieste (Itália).
Leona Cavalli (com Paulo Vespúcio Garcia): atuação premiada em seu filme de estreia:“Um Céu de Estrelas” (1995) 36
35 Em 1996 o filme “Como Nascem os Anjos”, de Murilo Salles, recebeu prêmios nos Festivais de Huelva
(Espanha) e Toulouse (França). Neste mesmo ano o filme “Quem Matou Pixote”, José Jofilly recebeu quatro
prêmios pelo trabalho de seus atores: Cassiano Carneiro (Melhor Ator em Havana - Cuba), Luciana Rigueira
(Melhor Atriz no Festival de Cartagena - Colômbia), Tuca Andrada e Roberto Bomtempo (Melhores Atores
Coadjuvantes no Festival de Cartagena). “Terra Estrangeira”, de Walter Sallles Jr. e Daniela Thomas, venceu
prêmios no Entrevues Film Festival (França) e no Bergamo Film Meeting (Itália), neste mesmo ano35
. Em 1997
o filme “A Ostra e o Vento”, de Walter Lima Jr., venceu prêmios de Melhor Atriz (Leandra Leal) no Festival de
Biarritz (França), e ainda o Prêmio ‘CinemAvvenire’ no Festival de Veneza em 1997.
36
Imagem disponível em: http://icocultural.blogspot.com/2011/05/o-amor-esta-na-tela.html
49
Mesmo que em décadas anteriores de nosso cinema outros atores tenham obtido este
tipo de êxito no exterior, o fato da produção nacional ganhar uma maior amplitude na
quantidade de longas sendo lançados a cada ano, possivelmente estimulou que mais atores
fossem premiados em festivais internacionais. E ainda cabe destacar que estes atores não
seriam necessariamente os que se mantém em destaque desde a produção fílmica dos anos
de 1980. Muitos são atores e atrizes estreantes na linguagem cinematográfica, desde jovens
como Leandra Leal, protagonizando com 13 anos “A Ostra e o Vento”, até atrizes como
Leona Cavalli, com ampla formação no teatro e que, em seu filme de estréia, consegue atrair
grande atenção da mídia.
Leandra Leal em “A Ostra e o Vento” 37
Verifica-se também que diversos filmes receberam prêmios pelo desempenho de seus
atores, por suas funções técnicas e ao mesmo tempo por seu conjunto, ou seja, prêmios de
“melhor filme”, o que nos sugere pensar que a qualidade da atuação nestes filmes contribuiu
diretamente no desempenho destes em festivais. Mesmo com este crescente quadro de
premiações de atores, curiosamente pouco do que foi escrito sobre o cinema brasileiro do
contexto abordado, dedicou-se a falar sobre ou ouvir os atores que fazem parte deste
momento. Apenas para dar um exemplo, uma publicação de grande destaque deste período
“Cinema da Retomada: Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90” (2002), organizado pela
pesquisadora Lúcia Nagib, apresenta um valioso documento sobre os cineastas que fazem
parte deste momento de nosso cinema em entrevistas que ajudaram a fundamentar vários
estudos sobre o tema. No entanto, a voz dos atores sobre esse contexto resume-se a dois ou
três estudos na área, ou mesmo às entrevistas em revistas e nos diversos making-of criados
para publicidade ou ainda para tornar-se um documento veiculado aos filmes quando
37
Imagem disponível em: http://www.escrevercinema.com/imagiNation.htm
50
lançados em DVD. Infelizmente não existe um livro com 90 entrevistas de atores de cinema,
tipo de publicação que contribuiria para diversas outras pesquisas e, ainda, para o trabalho
de atores que começam a se aventurar em uma formação nesta área.
2.1.4 “Central do Brasil”: auge e início do fim da Retomada?
No contexto da Retomada cabe destacar que o ponto máximo em termos de
premiações internacionais fora alcançado em 1998 pelo filme “Central do Brasil” de Walter
Salles Jr., que recebeu um inédito Urso de Ouro de Melhor Filme no Festival de Berlim
(além do Urso de Prata de Melhor Atriz para Fernanda Montenegro), o Globo de Ouro38
e o
BAFTA39
de Melhor Filme Estrangeiro, e duas indicações do Oscar: Melhor Filme
Estrangeiro e Melhor Atriz (também para Montenegro), além de aproximadamente mais 30
premiações nacionais e internacionais para o filme e sua protagonista.
Cartaz americano40
(à esq.) e japonês 41
do filme de Walter Salles: grande repercussão internacional.
38
Prêmio da Associação dos Jornalistas Estrangeiros de Hollywood. 39
Prêmio da Academia Britânica de Artes Cinematográficas e Televisivas. 40
Disponível em: http://alsolikelife.com/shooting/2009/08/980-112-central-do-brasil-central-station-1998-
walter-salles/. 41
Disponível em: http://www.movieposterdb.com/poster/d432fe6a .
51
A história de Dora (Montenegro), uma “escrevedora” de cartas que se lança em uma
jornada pelo sertão nordestino em busca do pai de uma criança (Vinícius de Oliveira) que
está sobre seus cuidados, é fio condutor de “Central do Brasil”. Nagib aponta elementos do
filme de Salles que se tornarão, segundo ela, recorrentes no cinema nacional:
Filme-símbolo da retomada, segue o movimento, sugerido no título, de convergência para
coração de um país que precisa mostrar sua cara. O filme se abre com imagens frontais de
atores escolhidos entre populares, de idades, sexos, e cores variadas, que ditam cartas com
sotaques de diferentes regiões do Brasil. Evidencia-se aqui, a atitude que se tornará
recorrente no cinema brasileiro até o presente: cineastas procedentes de classes dominantes
dirigem um olhar de interesse antropológico às classes pobres e à cultura popular, com
destaque para os movimentos religiosos. Tenta-se vencer o abismo econômico entre os
realizadores e seus objetos, senão com adesão, pelo menos com solidariedade (NAGIB,
2002, p. 16).
Apesar de ter sido alvo de críticas quanto ao excessivo embelezamento do sertão
brasileiro42
e por ser um filme criado nos moldes emotivos do cinema de massa americano, o
filme teve ampla aceitação pelo público brasileiro e internacional e se destaca em nosso país
por dois motivos, conforme afirma Butcher:
Central do Brasil exerceu um papel fundamental no processo de reinserção do cinema no
coração da sociedade brasileira. Com ele, o cinema brasileiro voltou a ser motivo de
celebração. Para alguns, até, Central teria desempenhado um papel além do cultural, com
uma possível influência na recuperação da auto-estima do país, que havia chegado a um dos
seus piores momentos durante a crise moral e política do governo Collor (BUTCHER, 2009,
p. 46).
“Central do Brasil” é um dos filmes da Retomada em que podemos perceber um forte
apelo de uma estética documental e que, como muitos outros filmes deste período, apresenta
um elenco formado por atores vindos de experiências muito distintas, conforme afirma o
diretor do filme Walter Salles Jr:
O filme mistura o tempo inteiro atores profissionais, como Fernanda, Marília, Othon, que são
o melhor que podemos ter, além de tantos bons atores que estão ali, ao lado de atores
estreantes, que é o caso do Vinícius, pessoas que não são atores, e muitos atores nordestinos
de teatro. [...] A gente tem uma riqueza enorme de atores no nosso país, atores que não
chegam aqui. E a gente sempre trabalha com os atores que são aqueles que estão na televisão,
que vão de uma novela à outra, enquanto tem tanta gente pra ser descoberta. Essa é uma das
grandes coisas de se fazer cinema, essas descobertas (SALLES, 2000)43
.
42
Como no texto descrito por Ivana Bentes “Cosmética da Fome” (Jornal do Brasil, 8/7/2001).
43 SALLES, Walter. Entrevista concedida a Rubens Ewald Filho no Festival de Cinema de Berlim. 1998.
Disponível nos extras do DVD do filme Central do Brasil. Europa Filmes, 2000, s.p.
52
Fernanda Montenegro e Vinícius Oliveira em “Central do Brasil” (1998) 44
Alguns acontecimentos acidentais estimularam no processo de filmagem a
reestruturação de parte do roteiro a partir da experiência real na locação. Na cena inicial, por
exemplo, as cartas ditadas por “não-atores”, ou por pessoas escolhidas entre os passantes da
estação, foram incorporadas ao roteiro a partir da experiência no dia da filmagem,
substituindo outras escritas previamente, conforme comenta Salles:
As pessoas olhavam a mesinha da “escrevedora” de cartas na estação e diziam: ‘Eu quero
ditar uma carta’. E a gente foi percebendo que aquilo tinha uma importância vital. Aliás, você
pode perceber quando é um ator e quando não é. A gente percebia que havia uma importância
no fato de mandar aquelas cartas. Esse é um filme sobre isso. Sobre a importância dessa
comunicação, sobre a importância de olhar para o outro (SALLES, 2000 45
).
Nesse depoimento de Salles podemos perceber o interesse por características como
espontaneidade e autenticidade no desempenho dos “não–atores”, uma busca que justifica
também a escolha do então menino Vinícius de Oliveira para o elenco. Ele trabalhava como
engraxate no aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro e, um dia, pediu a Salles dinheiro
para comprar um lanche. Salles, que procurava um protagonista para o filme, convidou-o
para comer em uma lanchonete do aeroporto e ali o convenceu a ir fazer um teste para o
filme.
A respeito dos traços de cinema documental que compõem o filme, cabe destacar
que, além da experiência nesta cena de abertura, outros momentos do filme exploram esta
mescla de atores e “não-atores”, como a cena em que Montenegro e Oliveira andam pelo
44
Imagem disponível em: http://v-effekt.blogspot.com/2010/10/vhollywooddownload-orgulho-brasileiro.html .
45
SALLES, Walter. op. cit., s.p.
53
sertão do nordeste na caçamba de um caminhão, misturados a diversos “não-atores” da
própria região, ou ainda na cena em que Montenegro corre atrás do menino em meio a uma
romaria. A presença de “não-atores” em diversas cenas como essas é uma estratégia muito
utilizada por diretores que buscam uma maior aproximação com o real, substituindo atores
que criariam esses personagens, por “não-atores” em busca de uma maior legitimidade para
as situações locais apresentadas. Esta escolha tem gerado discussões bastante acaloradas na
atual cinematografia brasileira, cujos processos preparatórios apresentam cada vez mais em
suas fichas técnicas, um profissional que trabalha na formação destes “não atores”, o
preparador de elenco.
Salles dirige Montenegro e Oliveira em “Central do Brasil” 46
O trabalho de preparação de Oliveira foi realizado por Fátima Toledo47
, profissional
que tem trabalhado em diversos filmes brasileiros desde 1981, no filme “Pixote: A Lei do
46
Imagem disponível em:
http://cinematicabr.blogspot.com/2011/06/brasil-esquentai-vossos-pandeiros_27.html 47
Fátima Toledo vem trabalhando no campo cinematográfico desde “Pixote” (1982) de Hector Babenco e
dedica-se a um método de preparação baseado em princípios teatrais do método Stanislavski. Ganhou destaque
na preparação de elencos de “não-atores” e trabalhou em dezenas de filmes a partir dos anos de 1990 como:
“Central do Brasil” (1998, de Walter Salles), “Cidade de Deus” (idem), “Cidade Baixa” (2005, de Sergio
Machado), “Céu de Suely” (2006, de Karim Ainouz), “Casa de Alice” (2007, de Chico Teixeira), “Mutum”
(2007, de Sandra Kogut), “Linha de Passe” (2008, de Walter Salles e Daniela Thomas), “Tropa de Elite” e
“Tropa de Elite 2 – O Inimigo é Outro” (2007 e 2010, de José Padilha), entre outros.
54
Mais Fraco”, dirigido por Hector Babenco, trabalho em que Toledo preparou meninos de
diversos bairros da periferia de São Paulo.
Além da preparação de Vinícius para o filme o trabalho de criação com atores contou
ainda com momentos de leitura, ensaios e laboratórios cuja importância é relatada por
Montenegro, sobre o processo que começou com a leitura do roteiro:
Isso nós tivemos muito nesse filme: ler o roteiro, entender o roteiro, as cenas que se sucedem,
o porquê das cenas se sucederem daquela maneira. De repente a gente poderia começar a
filmar pelo meio, ou pelo fim, é preciso que você tenha dentro de si todo esse arco dramático
que todo roteiro tem. Como é que você começa a filmar assim? Vamos lá: “Central do Brasil.
Vamos pra lá e vamos ver o que acontece?”. Às vezes isso dá até um samba, mas é preciso se
preparar praquilo. (...) Eu já tinha vivido isso no “A Falecida” (1980) do Leon Hirzman.
Tivemos ensaios, e os chamados laboratórios (MONTENEGRO, 2000). 48
Montenegro comenta ainda sobre a retomada deste tipo de processo criativo no
cinema brasileiro deste período, um momento marcado pela presença cada vez mais forte de
preparadores de atores, processos laboratoriais e ensaios que se justificam pelo apelo do
trabalho dos preparadores na atualidade.
Isso é fundamental. Eu me lembro que havia uma crença nos primórdios do cinema brasileiro
que era “não ensaiar para não gastar”. As pessoas diziam: “Não ensaia muito pra não gastar a
emoção”. Mas como você pode “amalgamar” um elenco sem, pelo menos, um trabalho de
mesa? (...) É impossível numa história realista como era aquela [“A Falecida”] e como é esta
[“Central do Brasil”], uma história documental como é essa, você querer que todos os atores
entrem em um mesmo “diapasão”. Como é que os olhos se cruzam em um mesmo
entendimento? (MONTENEGRO, 2000). 49
No depoimento de Montenegro, podemos perceber que os trabalhos preparatórios em
desempenham um papel fundamental na criação de cinema, buscando estabelecer uma
homogeneidade dos elencos. No entanto, em “Central do Brasil”, o elenco é composto por
atores profissionais, “não-atores” formados em um processo curto de preparação e por
pessoas escolhidas entre os moradores e passantes das locações. Trata-se de um elenco
configurado a partir de pessoas com experiências muito distintas, o que nos permite
questionar até que ponto se poderia criar uma homogeneidade neste tipo de elenco, ainda
que, no caso de “Central do Brasil”, a busca por um olhar documental justifique o resultado
48
MONTENEGRO, Fernanda. Entrevista concedida a Rubens Ewald Filho no Festival de Cinema de Berlim.
1998. Disponível nos extras do DVD do filme Central do Brasil. Europa Filmes, 2000, s.p.
49 MONTENEGRO, op. cit., s.p.
55
heterogêneo no conjunto de atores. No entanto, se pensarmos a formação tradicional do ator,
em meio a tantas experiências que buscaram no século XX sistematizar seus processos de
trabalho lhe permitindo exercer um controle de seu desempenho, caberia também questionar
qual controle tem um “não-ator” de sua performance em um filme, o que estabelece que as
relações entre um elenco seriam baseadas no diálogos entre saberes e experiências práticas
muito diferentes. Segundo comenta Yuri Lotman em “Estética e Semiótica do Cinema”:
Quando, em nome desta ou daquela estética, o ator foi substituído por um não
profissional [...] o problema consistiu sempre em substituir “o artifício” do trabalho
do ator pelo “artifício” do trabalho do realizador50
(LOTMAN, 1978, p. 156).
A busca por “não-atores” no cinema costuma gerar discussões bastante controversas,
uma vez que se substitui um profissional deste ofício por uma pessoa não especializada que
parecerá mais “espontânea” no filme e, desse modo, mais eficiente. No entanto, poderíamos
pensar que o preparador de elenco e o diretor seriam os grandes responsáveis pelos
resultados do desempenho de um “não-ator”, uma vez que este, sem experiência técnica no
ofício da atuação, possui um entendimento técnico muito distinto do que teria um ator
profissional sobre seu desempenho. Além disso, os métodos empregados nos trabalhos com
preparadores de elenco como Fátima Toledo são muitas vezes vistos de forma bastante
crítica, pelo fato destes trabalhos buscarem em alguns casos, colocar tanto “atores” quanto
“não-atores” no estado e na emoção desejados para cada cena e, o resultado desse trabalho,
muitas vezes escapa ao entendimento até dos atores mais experientes. Neste sentido, o
diretor teatral Antunes Filho comenta sobre o método de Toledo: "Posso induzir você a
chorar, mas isso não quer dizer que você seja ator. Estou utilizando você de forma
domesticada" (FILHO apud FRAIA 2009, página da internet51
).
Mais adiante falaremos sobre o crescente interesse pelos preparadores de ator no
“Cinema Retomada”, um feito que se estende até as produções atuais. Antes disso
apresentaremos alguns dos aspectos que apontam para o fim deste momento de retomada,
levando-nos ao momento que viria a ser chamado posteriormente de “Pós-Retomada”. Para
Nagib, “Central do Brasil” seria o filme que marca o auge e ao mesmo tempo início do fim
de um período para o cinema brasileiro. Segundo a autora:
50
O autor refere-se aqui ao diretor de cinema, que em certos idiomas é chamado de “realizador”.
51 FRAIA, Emílio. Como não ser ator. In: Revista Piauí. N. 28. Janeiro de 2009. Disponível em:
http://www.revistapiaui.com.br/edicao_28/artigo_866/Como_nao_ser_ator.aspx. Acesso em: 20/07/2009.
56
(...) uma vez ‘retomada’, a produção cinematográfica avança para uma outra etapa,
procurando se estabilizar e solidificar. Em janeiro de 1999 ocorre a drástica desvalorização
do real, e as empresas privadas, que já haviam se retraído após um apoio mais ou menos
indiscriminado ao cinema no início da Lei do Audiovisual, tornam-se exigentes e esquivas. A
precariedade da distribuição e exibição de filmes nacionais permanece intata. No mercado,
tanto quanto nos grandes festivais internacionais, o filme brasileiro tem presença mínima. A
Secretaria do Audiovisual, junto com cineastas, representantes políticos e outros setores
sociais, começa a discutir modos de continuidade ou substituição da Lei do Audiovisual,
inicialmente prevista para encerrar em 2003. É um momento de parar para refletir e corrigir
os erros a partir da experiência anterior (NAGIB, 2002, p. 18).
Os limites que separam o “Cinema da Retomada” e o que veio a se chamar de “Pós-
Retomada” são imprecisos. Se para Nagib, conforme citado anteriormente, o fim da
retomada ocorre com “Central do Brasil”, para outros críticos e pesquisadores o fim deste
período teria como marco o filme “Cidade de Deus” (2002), dirigido por Fernando
Meirelles, como veremos a seguir.
2.1.6 “Cidade de Deus”: um outro divisor de águas?
Baseado no livro de Paulo Lins, adaptado para o cinema por Bráulio Montovani,
“Cidade de Deus” apresenta o processo de instalação do tráfico de drogas na zona oeste do
Rio de Janeiro, e divide sua ação em três épocas, contando a história de dois meninos
amigos que seguiram rumos opostos: Buscapé se tornará fotógrafo enquanto Dadinho
(depois passando a adotar o codinome de Zé Pequeno) um dos maiores traficantes de drogas
da cidade (BUTCHER, 2005, p. 54).
Matheus Nachtergaele em cena de “Cidade de Deus”52
52
Imagem disponível em: http://tc.batepapo.uol.com.br/convidados/arquivo/cinema/matheus-nachtergaele-ator-
estreia-dois-filmes-tapete-vermelho-e-arido-movie.jhtm .
57
Dirigido por Fernando Meirelles e co-dirigido por Kátia Lund, o filme tem em seu
elenco poucos atores profissionais, tais como Matheus Nachtergaele, Graziela Moretto, Gero
Camilo e Alice Braga (então em seu primeiro longa-metragem). Quase todo o restante do
elenco é composto por jovens da própria comunidade, ou atores em começo de formação nas
oficinas do grupo Nós do Morro. Estes atores em formação e “não-atores” passaram por um
processo de formação em uma escola especialmente montada para o filme, uma experiência
também coordenada pela preparadora de elenco Fátima Toledo (BUTCHER, 2005, p. 54).
Repete-se nesta experiência a escolha de elencos mistos, como visto em “Central do
Brasil”, tendo a preparadora e os diretores do filme criado também momentos de preparação
conjunta com todo o elenco, como workshops nas locações para a composição de
personagens e das relações entre eles.
O processo de preparação contou com oito meses de trabalho de laboratórios e
treinamento, sendo que os primeiros seis meses foram conduzidos pelo diretor teatral Gutti
Fraga, da ONG “Nós do Morro”, e os outros dois meses de trabalho por Toledo. Os diretores
Fernando Meirelles e Kátia Lund acompanharam esse processo buscando estabelecer uma
relação de colaboração com o atores de maior experiência e os jovens atores do Nós do
Morro, além dos “não-atores” da comunidade, trabalhando sobre cenas isoladas do roteiro
sem disponibilizar a versão integral deste para o elenco. Neste momento, Toledo conduzia os
trabalhos de improvisação propondo estímulos para improvisações que tinham como
objetivo perceber gestos e ações que pudessem ser incorporadas pelos diretores. Foi
proposto ao ator Matheus Nachtergaele um trabalho distinto, mas o ator se negou a ter
acesso ao roteiro, pois gostaria de atuar em um mesmo nível que todo o elenco (RIBEIRO,
2010, p. 70). Como podemos perceber, o trabalho de preparação com atores profissionais,
atores em formação e “não-atores” busca explorar em alguns casos os conhecimentos e a
experiência técnica de cada integrante do elenco de maneira distinta, mas por conta da
própria rejeição de Nachtergaele em relação a um trabalho particularizado, o processo do
filme acabou possibilitando um diálogo destas experiências distintas, mas buscando igualar
o nível das atuações em um conjunto homogêneo.
O resultado foi um estrondoso sucesso de público e um filme alvo de diversas
críticas quanto ao excessivo embelezamento da violência. Depois de um longo tempo de pré-
produção e filmagem (se compararmos com a realidade das produções do cinema no Brasil
nesse momento), “Cidade de Deus” triplicou o que, a própria produtora do filme, a Lumiére,
esperava como bilheteria do filme, alcançando a marca de 3,3 milhões de espectadores,
58
repetindo o feito de “Carlota Joaquina” no sentido da superação das expectativas de público.
O filme alcançou grande repercussão internacional, estreando como hors concours no
Festival de Cinema de Cannes, na França, em maio de 2002, e foi o início de uma ampla
distribuição no exterior (FURTADO, 2002, p. 55). “Cidade de Deus” recebeu mais de 50
prêmios internacionais, e quatro indicações ao Oscar em 2004: melhor diretor, melhor
roteiro adaptado, melhor montagem e melhor fotografia, e abriu ainda as portas para
produções dirigidas no exterior por Fernando Meirelles nos anos seguintes, repetindo o feito
de diretores como Hector Babenco, Bruno Barreto e Walter Salles Jr.
Dez anos depois da crise que gerou a Retomada, alguns pesquisadores já apontavam
o fim deste momento. Se para Nagib (2002) “Central do Brasil” teria sido o auge e o fim da
Retomada, o sucesso de “Cidade de Deus” no exterior parece ter dado grande contribuição à
consolidação de uma retomada da produção de filmes no Brasil, o que para o crítico Luiz
Zanin Oricchio, tornaria esse filme o marco simbólico de transição. No entanto, enquanto
Oricchio afirma que “nenhuma atividade pode ficar se retomando a vida inteira”
(ORICCHIO, 2003, p. 24), para Butcher (2005) a Retomada seria um processo em
andamento. Segundo ele:
Pode-se, contudo, ver a retomada como um processo ainda em curso e que não
necessariamente terá um ‘fim’ ou ‘marco simbólico’. Não só o cinema brasileiro, mas cinema
no Brasil como um todo ainda está em plena fase de reestruturação, muito longe de ter
atingido um patamar ideal. (...) Houve, sem dúvida, uma profissionalização de toda a
atividade, com um grande investimento nos roteiros, na preparação dos atores, na formação
de mão de obra e em aspectos importantes como som e finalização. Mas, dentro da grande
ambição da retomada, que é a de realizar um cinema diversificado, vivo e capaz de marcar
presença em seu próprio mercado e no exterior, tudo isso ainda parece insuficiente
(BUTCHER, 2005, p. 94)
Como vimos, diversos fatores foram responsáveis por aquilo que parece ser uma real
retomada da produção nacional de longas-metragens, o que podemos perceber pelo grande
crescimento demonstrado ano a ano nos números de produções que estrearam no Brasil. No
entanto, o próprio termo “Retomada”, criado por pesquisadores e críticos da área, muitas
vezes apontando-o como “mais um rótulo da mídia”53
, não é necessariamente uma expressão
adotada pelos próprios artistas de cinema. Para Butcher, o termo “Cinema da Retomada”
equivaleria a uma outra denominação que dá título ao seu livro: “Cinema Brasileiro Hoje”.
Portanto, não estamos falando necessariamente de um movimento cujo objetivo
seria o de restaurar ou refletir sobre a estética cinematográfica nacional, a exemplo de
53
BUTCHER, 2009, p. 14).
59
movimentos como “Cinema Novo” nos anos de 1960, mas sim, de um movimento
notadamente econômico que gerou produções de estéticas muito distintas. “Diversidade” e
“Pluralidade” são expressões comumente utilizadas para definir a produção da Retomada. O
crítico e pesquisador Amir Labaki destaca algumas características deste momento plural
sintetizando os filmes desse período em três grupos de produção com as seguintes
características: a aproximação da “narrativa fílmica da linguagem televisiva”54
, e “a
retomada do diálogo com a tradição cinemanovista 55
ou independente paulista56
” (LABAKI,
1998, p. 19). Avesso a essa proposta de conjunto, o crítico paulista Filipe Furtado ironiza
sobre a ideia de “pluralidade”, afirmando que esta parece ter sido criada para “explicar
justamente a ausência de qualquer tipo de projeto, seja individual ou coletivo. (...)
Diversidade sempre houve em qualquer época e em qualquer cinema nacional, ou será (...)
que todos os filmes brasileiros produzidos em 1964 seriam parte do cinema novo?”
(FURTADO, 2003 p. da internet57
). Parece oportuno, no entanto, observar que o momento
atual não é muito distinto em relação à história de nosso cinema feito de vários ciclos como
esse, vivido desde o início dos anos de 1990 até hoje, conforme afirma a pesquisadora
Melina Izar Marson:
A história do cinema brasileiro é uma história feita de ciclos: a Bela Época (primeira década
do século XX), o período da Cinédia (década de 1920), a época da Atlântida Cinematográfica
(1940-50), a Vera Cruz (1950), o Cinema Novo (1960), o Cinema Marginal (1960-70), o
cinema da Boca do Lixo (décadas de 1970-80). Em todos esses ciclos, um ponto em comum
se apresenta em relação ao campo cinematográfico: sua constante luta pela manutenção da
produção, pela sobrevivência do fazer cinematográfico no Brasil. Em sua história de mais de
cem anos, o cinema brasileiro não conseguiu se tornar uma atividade auto-sustentável,
fazendo com que cada uma dessas etapas ou ciclos se encerrasse sem que fosse garantida a
continuidade da produção cinematográfica (MARSON, 2009, p. 12).
A seguir veremos algumas das produções que se situam no período “Pós-Retomada”,
filmes feitos depois de 2001 que apresentam novos atores que se consolidaram no cinema
brasileiro dos dias de hoje.
54
O autor exemplifica esta tendência em filmes como “O Quatrilho”, “Carlota Joaquina” e “Pequeno
Dicionário Amoroso” (LABAKI, 1998, p. 19).
55
Exemplos desta tendência seriam para o autor filmes como “O Sertão das Memórias” e “Central do Brasil”
(Idem).
56
Filmes como “Matadores” e “Um Céu de Estrelas” (Idem). 57
FURTADO, Filipe. E se o cinema de autor? In: In: Revista Contracampo. No. 48. 2003. Disponível em:
http://www.contracampo.com.br/48/cinemadeautor.htm. Acesso em: 06/07/2011.
60
2.3 O “CINEMA “PÓS-RETOMADA”
Para podermos visualizar melhor o crescimento da produção de longas-metragens no
Brasil desde a Retomada, podemos tomar por base o mapeamento realizado por Pedro
Butcher (2009), que aponta os filmes lançados de 1993 a 2007, ano a ano. A partir da
listagem apresentada por Butcher58
podemos chegar ao seguinte gráfico:
Como podemos perceber, os anos que sucedem a estreia de “Cidade de Deus”, 2003,
apresentam um crescimento de 50% no número de longas lançados no Brasil (2004 e 2005)
atingindo um crescimento de mais de 100% nos anos seguintes. A partir deste começo dos
anos 2000, uma nova produtora se lança no mercado brasileiro, a Globo Filmes, fato que
possivelmente estimulou tal crescimento nos números de produções que chegam aos
cinemas.
58
BUTCHER, 2009, páginas 102 à 118.
4 8 12 18 21 25 28
22 30 29 29
45 46
75 81
1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Longas-metragens brasileiros lançados entre 1993 e 2007
61
2.2.1 A Globo filmes e conquista de um novo mercado
Um fenômeno de destaque deste novo contexto do cinema brasileiro pode ser
percebido por meio da influência da Rede Glodo de Televisão na produção de filmes.
Butcher afirma que a emissora sempre teve influência sobre a produção cinematográfica, um
tipo influência que ocorre não apenas no Brasil. Segundo o autor:
O crescimento da televisão gerou transformações em todas as cinematografias do mundo,
mas, no Brasil, ganhou características particulares. Um único grupo midiático concentra a
produção audiovisual nacional tanto no campo narrativo (ficção), como no campo da
informação (jornalismo) conquistando um grande poder de intervenção na vida do país em
todos os seus níveis (econômico, político, social e cultural). Todos os filmes para cinema
feitos no Brasil a partir da década de 90 não escapam desse novo referencial. Eles podem ser
observados como adesões ou reações à nova hegemonia que se formou no campo do
audiovisual brasileiro, o padrão “Globo de qualidade” (BUTCHER, 2009, p. 69).
Apesar de ter sido criada em 1997, a Globo Filmes se lança no mercado
cinematográfico apenas em 2000 com uma versão compacta da série “O Auto da
Compadecida”, dirigida por Guel Arraes. Entre 1997 e 2000 a produtora havia realizado
diversas parcerias e co-produções levando às telas obras como “Guerra de Canudos” (1997),
de Sergio Rezende, filme criado em formato adaptável ao televisivo e que foi exibido como
minissérie logo após sua saída das salas de cinema. O ator e diretor Daniel Filho,
responsável por um departamento específico de co-produções cinematográficas dentro da
emissora, retomou sua carreira como cineasta dirigindo adaptações de peças teatrais como
“A Partilha” (2001, a partir da peça de Miguel Falabella) e “A Dona da História” (2003, a
partir da peça de João Falcão). O diretor foi também responsável por dois dos maiores
sucessos do cinema recente brasileiro: “Se eu Fosse Você” (2006) e “Se eu Fosse Você 2”
(2009), este último, tornando-se um dos recordistas de bilheteria nacional.
Neste contexto dos longas metragens da a produtora, os elencos são compostos
predominantemente por atores ligados à emissora: Glória Pires e Toni Ramos, por exemplo,
protagonizaram as comédias de Daniel Filho (“Se eu Fosse Você 1 e 2”). Pires atuou ainda
em outras produções da Globo Filmes como “A Partilha”, junto às atrizes Lilia Cabral e
Andréa Beltrão, duas intérpretes de peso da TV, entre outras produções. Outros atores como
Marieta Severo, Selton Mello, José Wilker, Débora Falabella, Claudia Abreu, Marco Nanini,
Pedro Cardoso e Rodrigo Santoro também se destacam nas produções e co-produções da
Globo Filmes. Essa prática de vincular os atores “globais” em várias mídias do
62
conglomerado é uma estratégia conhecida. Assim, os mesmos atores que estão nas
telenovelas da Rede Globo atuam nos filmes Globo Filmes, vão aos programas de da
emissora dando entrevistas sobre seus estas experiências, aparecem nas revistas da Editora
Globo falando sobre as mesmas e, tanto na televisão quanto nas revistas, vemos uma grande
veiculação de propaganda destes atores e seus trabalhos em cinema, consolidando uma
vantajosa indústria do “padrão Globo de qualidade”. A formação desta indústria de peso,
portanto, acaba por centralizar as atenções midiáticas em um determinado grupo de filmes,
enquanto diversas produções menores, com atores vindos de outros segmentos e/ou obras de
diretores de caráter mais autoral, caracterizariam uma espécie de “cinema independente
brasileiro” como veremos a seguir.
2.2.2 Outros tipos de produção deste período
Ao passo que a Globo Filmes se consolida como produtora de grande repercussão de
bilheteria, especula-se se não haveria, na contramão, um modelo de cinema independente
brasileiro, repetindo um feito muito comum em outras cinematografias. No cinema
estadunidense, por exemplo, ao lado das produções dos grandes estúdios, cujos elencos são
compostos por astros e estrelas de grande apelo de público, podemos perceber um amplo
movimento de produções independentes, algumas delas distribuídas por grandes estúdios,
garantindo um grande destaque em meio às premiações anuais de cinema e uma ampla
repercussão internacional.
Muitas décadas depois do período de atividade de estúdios brasileiros como a
Cinédia, a Atlântida e a Vera Cruz, entre as décadas de 30, 40, 50 e 60, momento em que a
indústria nacional almejava se aproximar do modelo das grandes produções do cinema
estadunidense, a consolidação de uma indústria de cinema nacional no Brasil sofre a
concorrência direta das produções de estúdios americanos, e um grave problema de
distribuição das obras lançadas, o que nos permite pensar que nosso cinema estaria mais
próximo dos modelos de cinema independente, conforme afirma Furtado:
Todo o cinema brasileiro poderia ser considerado “independente” diante do poderio do
cinema americano. Mas também é fato que a Globo concentra a hegemonia audiovisual no
país (não por acaso, é chamada a “Hollywood brasileira”) e sua participação no cinema gerou
uma diferenciação interna muito grande. Criou-se, em termos de resultado, um fosso entre os
“filmes com Globo” e os “filmes sem globo”. Não seria absurdo, portanto, denominar-se o
fluxo de filmes feito longe das asas da Globo, buscando alternativas ao seu modelo em
termos de estrutura de produção e de linguagem, de um “cinema independente brasileiro”
(FURTADO, 2005, p. 80).
63
Neste contexto diversos diretores veteranos com amplo histórico no cinema
brasileiro, tais como Julio Bressane, Domingos de Oliveira, Paulo Cezar Saraceni, Rogério
Sganzerla, Sergio Bianchi, Carlos Reichenbach, foram responsáveis por diversos filmes no
contexto da Retomada que “nadaram contra a corrente” do “padrão Globo de qualidade”
(FURTADO, 2005).
Além deles, diversos diretores estreantes tornaram-se quase um símbolo da
Retomada. Tata Amaral, Beto Brant, Claudio Assis, Lírio Ferreira, Paulo Caldas, Luis
Fernando de Carvalho e Laís Bodansky foram alguns deles, e se mantiveram neste mesmo
fluxo de um possível cinema independente, que resultou em obras que representaram o
Brasil em diversos festivais e mostra internacionais.
Outro modelo de destaque na produção cinematográfica brasileira deste período
deve-se aos filmes de produtoras como a O2 e a Conspiração Filmes, que lançaram no
mercado dos longas-metragens diretores vindos da publicidade e do vídeo-clipe como
Fernando Meirelles (“Domésticas”, 2001, co-dirigido por Nando Olival, e “Cidade de
Deus”, 2003, co-dirigido por Kátia Lundi) e Andrucha Waddington (“Eu, Tu Eles”, 2000, e
“Casa de Areia”, 2005). Tanto Meirelles quanto Waddington tornaram-se diretores de grande
êxito dentro e fora do Brasil e possuem em seus currículos filmes de grande apelo de
público.
2.2.3 Premiações e destaques de filmes brasileiros no “Pós-Retomada”
Entre 2001 e 2003, outros filmes receberam premiações no exterior59
. Cavalli esteve
em dois deles: “Amarelo Manga”, de Claudio Assis, venceu prêmios em Havana, Toulouse
(França), e um prêmio na Mostra Paralela do Festival de Berlim; “Contra Todos”, de
Roberto Moreira, recebeu o prêmio de Melhor Filme no Festival de Hong Kong (China), e
deu a atriz Silvia Lourenço três prêmios de melhor atriz nos Festivais de Cartagena
59
“Bicho de Sete Cabeças”, de Laís Bodanzky, venceu o Prêmio de Melhor Filme no Festival de Biarritz
(França) e o Prêmio de Melhor Ator (para Rodrigo Santoro) no Festival de Cartagena (Colômbia). “Lavoura
Arcaica”, de Luis Fernando Carvalho, venceu o prêmio de Melhor Filme no Festival de Havana 2001, além de
outras 27 premiações internacionais como Melhor Filme e Melhor Ator (para Selton Mello). Já entre 2002 e
2003 o filme “Madame Satã”, de Karim Ainouz, venceu 13 prêmios internacionais nos Festivais de Chicago
(EUA), Havana (Cuba), Buenos Aires (Argentina), Toronto (Canadá), Huelva (Espanha), Mons (Bélgica) e
Lima (Peru), dando ao seu protagonista, o ator Lázaro Ramos, os prêmios de Melhor Ator nestes três últimos
eventos; O Invasor” (2002) de Beto Brant venceu prêmios em Havana e Sundance (EUA).
64
(Colômbia), Trieste (Itália) e Las Palmas (Espanha), este último, dividido com Cavalli em
2002;
Mesmo com um número expressivo de atores recebendo premiações por seus
trabalhos em produções deste período, caberia lembrar premiações da mesma importância
nos anos de 1980, conquistadas por filmes brasileiros em festivais como Festival de Cannes
e o Festival de Berlim, dois dos maiores e mais antigos eventos do gênero. Atrizes como
Ana Beatriz Nogueira60
, Fernanda Torres61
e Marcélia Cartaxo62
receberam prêmios nestes
festivais por suas interpretações em filmes deste período.
No âmbito das premiações nacionais cabe destacar o trabalho de outros atores como
Matheus Nachtergaele, Wagner Moura, Dira Paes, João Miguel, Hermila Guedes, Luiz
Carlos Vasconcellos, Leonardo Medeiros, Simone Spoladore, ambos vencedores de prêmios
como o Grande Prêmio Cinema Brasil, Prêmio APCA (SP), e nos Festivais de Gramado,
Brasília, Recife, São Paulo e Cuiabá.
Atores mais maduros no cinema como Fernanda Montenegro, José Dumont,
Fernanda Torres, Othon Bastos, Gloria Pires também se mantiveram em destaque no âmbito
das premiações nacionais.
2.2.4 Atores deste período: Teatro, Cinema e Televisão
Neste contexto da produção brasileira podemos perceber atores vindos de formações
muito distintas, conformando elencos mistos em diversas produções e, muitas vezes,
alternando-se entre essas três linguagens: Teatro, Cinema e Televisão. José Dumont e
Fernanda Torres, por exemplo, dois dos mais atuantes intérpretes do cinema brasileiro dos
anos de 1980 mantém-se em diversos longas-metragens produzidos desde a retomada até os
dias atuais.
Da televisão, atores e atrizes de grande reconhecimento como Glória Pires, Marília
Pêra, Fernanda Montenegro, Marieta Severo, Pedro Cardoso, Paulo Betti, Andréa Beltrão,
Tony Ramos, Murilo Benício, Marco Nanini, Claudia Abreu, Selton Mello, Maria Luisa
Mendonça, também podem ser vistos em diversas produções deste momento do cinema
brasileiro.
60
Prêmio de Melhor Atriz no Festival de Berlim (1987), por “Vera”, de Sérgio Toledo. 61
Prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes (1986), por “Eu sei que vou te amar”, de Arnaldo Jabor. 62
Prêmio de Melhor Atriz no Festival de Berlim (1986), por “A hora da estrela”, de Suzana Amaral.
65
Além deles, outros atores vindos do teatro começam uma carreira no cinema. É o
caso de atores como Matheus Nachtergaele, Leona Cavalli, Leandra Leal, ou ainda de atores
que estrearam em produções do período “Pós-retomada”, como: Leonardo Medeiros,
Wagner Moura, Lázaro Ramos, Irandhir Santos, Hermilla Guedes, Simone Spoladore, João
Miguel, Gero Camilo, Silvia Lourenço, Alice Braga, entre outros que figuram em diversas
produções.
Vinda do cinema, uma das atrizes mais representativas deste período é Dira Paes,
cuja carreira cinematográfica havia começado em 1984 na produção inglesa “A Floresta de
Esmeraldas” dirigida por John Boorman e filmado no Brasil. Atores como Gero Camilo,
Rodrigo Santoro, Alice Braga, além do cantor e ator Seu Jorge, foram alguns dos que se
aventuraram em participações em filmes internacionais.
Além de atuar em segmentos diversos, vários atores no contexto desde a retomada
até a produção atual estrearam na direção de longas-metragens de ficção e documentário
como: Carla Camurati (“Carlota Joaquina”, 1995), Selton Mello (“Feliz Natal”, 2008 e “O
Palhaço”, 2011), Matheus Nachtergaele (“A Festa da Menina Morta”, 2008), Patrícia Pillar
(“Waldick, sempre no meu coração”, 2009), entre outros.
2.3 UM NOVO INTERESSE PELO ATOR?
2.3.1 Os preparadores de ator
Como vimos anteriormente, este novo momento da produção de filmes no Brasil
parece apresentar um aspecto de grande importância para esta transição: um novo interesse
pelo trabalho do ator no cinema, o que pode ser percebido por meio dos trabalhos realizados
junto aos preparadores de elenco em períodos anteriores às filmagens. Além da preparadora
Fátima Toledo, profissionais como Sergio Penna63
e Christian Duurvoort64
têm trabalhado
em dezenas de produções do cinema desde a Retomada.
63
Ator e diretor teatral, Penna foi preparador de elenco de filmes como: “Sonhos de Peixe” (2006, de Kirill
Mikhanovsky), “Carandiru” (2003, de Hector Babenco), “Bicho de Sete Cabeças” (2001 de Laís Bodanzky),
“Contra Todos” (2002, de Roberto Moreira), “Antônia” (2006, de Tata Amaral”, “As Melhores Coisas do
mundo “ (2010, de Laís Bodanzky), “Não por Acaso” (2007, de Philippe Barcinski), “Lula, o filho do Brasil”
(2009, de Fábio Barreto), entre outros.
64 Criador do método “O Ator imaginário” Duurvoort trabalhou como preparador assistente de Fátima Toledo
em filmes como “Ensaio sobre a Cegueira” (2007, de Fernando Meirelles), “Cidade de Deus” (2002, de
Fernando Meirelles) e “Desmundo” (2001, de Alain Fresnot). Foi preparador de elenco de filmes como: “O
66
O diretor paulista Rubens Rewald, formado em Cinema pela USP no começo dos
anos de 1990 e que trabalhou com preparadores de elenco, tanto em seus curtas quanto em
seu primeiro longa-metragem, “Corpo” (2005, co-dirigido por Rossana Foglia), comenta em
uma entrevista que a presença cada vez mais frequente de preparadores de atores seria um
fenômeno que ocorre em consonância com outros aspectos de transição entre o cinema dos
anos de 1980 e de 1990. Segundo Rewald, o processo do filme “Bicho de Sete Cabeças”
(1997)65
, cujo trabalho de preparação foi realizado pelo ator e diretor teatral Sergio Penna -
que depois viria a trabalhar em diversos outros longas - teria sido um divisor de águas neste
sentido. Mesmo que já existissem profissionais trabalhando como preparadores de elenco na
década de 1980, como a própria Fátima Toledo, para Rewald este seria um fenômeno
característico da Retomada, no qual há um desejo cada vez maior por uma profissionalização
de atores. Assim, o trabalho realizado por Penna no filme teria tornado aparente pela
qualidade das atuações a importância tanto do preparador nas equipes de cinema quanto dos
processos que dedicam um tempo anterior às filmagens para ensaios, laboratórios e outros
procedimentos. Rewald afirma:
(...) acho que os novos diretores assumiram que eles não entendiam muito de atores. Os
velhos diretores acho que não (...) Não estou nem falando do Cinema Novo, não. Ali tinha o
Glauber que entendia muito de teatro e de ator. Ele tinha sua forma de interpretação. E depois
tem o Arnaldo Jabor e o próprio Cacá Diegues. Eu estou falando de diretores posteriores a
isso, diretores que tinham uma reclamação frequente dos atores que se sentiam como se
fossem um tripé de luz no set. E todo o investimento era muito em função da mise en scéne e
da luz. E quando chegava na hora dos atores era algo do tipo: “faz aí!”. Nem se tinha esse
tempo de ensaio. E acho que de uns 10 anos pra cá começou a ter essa preocupação.
Começou-se a ter consciência de que, assim como se tem um diretor de fotografia, um editor
de som, um diretor de arte, precisaria haver um diretor de ator, principalmente no momento
da preparação (REWALD, 2009, s.p. 66
).
Estes procedimentos, no entanto, costumam representar custos adicionais bastante
altos para qualquer produção de cinema, pelo fato de se manter elenco e preparadores
remunerados durante os períodos de pré-produção, o que parece ser uma das justificativas
para o fato de serem pouco comuns no cinema, uma arte em que o tempo de duração de um
projeto está totalmente relacionado com as possibilidades de orçamento, e que no Brasil,
Banheiro do Papa” (2005, de Cesar Charlone), “A Via Láctea” (2005, de Lina Chamie), “Jogo Subterrâneo”
(2003, de Roberto Gervitz), “Noel, o Poeta da Vila” (2004, de Ricardo Van Steen), entre outros.
65 Filme dirigido por Lais Bodanzki, e que tem no elenco atores como Rodrigo Santoro, Gero Camilo, Cássia
Kiss e Othon Bastos, entre outros.
66 Entrevista realizada durante a primeira pesquisa de campo, em maio de 2009 na cidade de São Paulo.
67
muitas vezes, determina produções feitas com orçamentos baixíssimos. No entanto,
conforme podemos perceber pelo comentário de Rewald, com a Retomada estes processos
começam a ser vistos como prioritários em muitas produções, elevando consideravelmente o
nível das atuações no cinema brasileiro. Rewald aponta, assim, três aspectos que foram
importantes para a produção de cinema neste contexto brasileiro:
1) esse foco no jogo dos atores, que faz com que o diretor tenha mais carinho pelos atores,
preste mais atenção, observe outros filmes, estude mais, construa suas próprias estratégias e
dedique um tempo maior a isso, e por isso acho que tem esse período de preparação; 2) a
entrada desses preparadores [de elenco] no mercado; e 3) a volta a uma produção regular
consistente, porque a melhor forma de um ator conhecer o meio é fazendo. [...] Atores como
o Leonardo Medeiros, Wagner Moura, Lázaro Ramos, Selton Mello, que são de uma
categoria que é a de “atores de cinema”. Fazem teatro também, televisão, mas tem uma média
de dois filmes por ano. Isso faz com que você tenha não só mais experiência, mas mais
confiança pra propor ao diretor (REWALD, 2009 67
).
Além de uma nova geração de atores que tem estreado no cinema brasileiro desde
então, e que tem desenvolvido uma formação contínua como atores de cinema, diversos
diretores desde a Retomada realizaram seus primeiros longas investindo em processos
anteriores às filmagens, o que, para o preparador de elenco Sergio Penna, reafirma um novo
interesse pelos processos dos atores. Penna afirma:
Essa geração nova de diretores tem trabalhado ao lado dos atores, e você vê isso no resultado.
Você pega o trabalho da Tata Amaral com “Um Céu de estrelas”, do Beto Brant com “O
Invasor”, Laís Bodansky com “Bicho de sete cabeças”, Roberto Moreira com “Contra
Todos”, Toni Venturi, uma série de diretores cuja marca é o trabalho absolutamente ligado
com os atores (PENNA apud RIBEIRO, 2005, p. 68).
Neste contexto, a preparadora de atores Fátima Toledo criou um método que se
tornou amplamente divulgado e pode ser considerada a mais requisitada entre os
preparadores no Brasil. Toledo observa que seu método estabelece uma distinção em outras
formas de trabalho com atores no cinema: “Hoje, tenho espaço para discutir aspectos do
roteiro; os meus atores podem criar cenas que não estão no roteiro" (TOLEDO apud FRAIA,
2009, p. da internet 68
). Seu trabalho é, no entanto, bastante controverso entre os criadores no
cinema, por serem baseados na indução do ator ou “não-ator” a estados os quais ele não
67
REWALD, op. cit., s.p.
68 FRAIA, Emílio. Como não ser ator. In: Revista Piauí. Número 28. Janeiro de 2009. Disponível em:
http://www.revistapiaui.com.br/edicao_28/artigo_866/Como_nao_ser_ator.aspx. Visitado em: 20/07/2009.
68
possui um entendimento do processo, ou seja, do caminho trilhado para se chegar ao
resultado cênico.
Exemplo disso é o "manifesto" que o ator Pedro Cardoso divulgou no último Festival do
Rio69
. Nele, Cardoso criticava a perda de autonomia do ator e questionava a opção de
diretores em trabalhar com preparadores de elenco. Dizia que "o haver agora no mercado
desses amestradores de atores faz parte da desautorização do ator como autor do seu próprio
trabalho". "Quer dizer que nem o seu próprio trabalho é o ator que faz?!", ironizou Cardoso
(FRAIA, 2009 70
).
O método desenvolvido pela preparadora foi aplicado em dezenas de produções que
mesclam em seus elencos atores profissionais, atores em formação e “não-atores” que nem
sempre participam das mesmas sessões de trabalho. Apresentando um resultado marcante no
trabalho de formação de atores iniciantes e de “não-atores” em produções como “Cidade de
Deus”, Toledo, no entanto, é uma profissional contrariada pelos atores profissionais. Neste
sentido, Rewald afirma que:
[...] Muitos atores não gostam muito desse trabalho dos preparadores. O método da Fátima,
por exemplo, ele dá uma equalizada no trabalho do elenco. O que se está pensando não é nos
bons atores, mas nos menos experientes. Atores mais experientes talvez não gostem tanto
desse trabalho. Mas, acho que esse foi um ganho pro cinema brasileiro. Não é uma
unanimidade o que vou dizer, mas acho que o nível de atuação no cinema brasileiro hoje está
em outro patamar, e muito disso se deve a esse trabalho com os preparadores (REWALD,
2009 71
).
Segundo Ribeiro, o trabalho de Toledo parte sempre do roteiro, embora a preparadora
não goste de distribuir o roteiro na íntegra, para não gerar uma antecipação e/ou ideias fixas
sobre as personagens. Toledo começa, portanto, o trabalho a partir estímulos de cenas
presentes no roteiro para propor improvisações aos atores e, buscando um aprofundamento
no trabalho dos atores, são exploradas as aproximações e distinções entre os personagens,
assim como as relações entre personagens e espaço, e a criação dos diálogos, tudo sendo
testado no processo de preparação (RIBEIRO, 2010, p. 85).
Contudo, por mais que profissionais como Toledo desempenhem um papel
importante, e que os resultados destes processos tenham tornado visíveis uma melhora na
qualidade das atuações nos filmes produzidos a partir da Retomada, parece oportuno
questionar se o diretor nesses casos não estaria se eximindo de uma função importante de
69
Festival de Cinema do Rio de Janeiro 2008. 70
FRAIA, op. cit., s.p. 71
REWALD, op.cit., s.p.
69
seu trabalho: a direção de atores. Processos criativos como estes, portanto, ampliam a
discussão sobre o papel da direção no cinema. O cineasta Rogério Sganzerla, falecido em
2004, chegou a afirmar em seu livro de 2001, “Por um Cinema sem Limites”, que “o
verdadeiro cineasta, sobretudo hoje, não é o perfeito diretor de elenco” (SGANZERLA,
2001, p. 58). O trabalho de preparador de atores, neste sentido, se tornou uma nova
alternativa para as dificuldades do diretor frente ao trabalho com os atores.
2.3.2 O ator como um “co-criador”
Em seus dois estudos recentes (2005 e 2010) a pesquisadora paulista Walmeri
Ribeiro, dedicou-se à análise e reflexão de processos de preparação de atores em filmes já
mencionados até aqui, como “Cidade de Deus” (2002), “Bicho de Sete Cabeças” (2001),
“Contra Todos” (2002), além de outros como “Lavoura Arcaica” (2001), de Luiz Fernando
Carvalho, “Céu de Suely” (2006), de Karim Ainouz, “Cidade Baixa” (2005), de Sérgio
Machado, “Crime Delicado” (2005), de Beto Brant, e “Tropa de Elite” (2007), de José
Padilha, analisando as estratégias de trabalho entre preparadores e atores em processos como
laboratórios e ensaios que buscaram propor aos atores, um trabalho de criação anterior ao
momento no set de filmagem. Para Ribeiro, os filmes analisados apresentam “como ponto de
intersecção o ator co-criador, buscando nas possibilidades geradas por este ator a sustentação
estética da obra” (RIBEIRO, 2010, p. 67). A autora afirma ainda que, dentre os filmes
analisados, “Cidade de Deus” e “Bicho de Sete Cabeças” teriam colocado em destaque a
importância destes processos no cinema brasileiro desde então, o que se tornou “uma marca
da criação cinematográfica no Brasil” (RIBEIRO, 2010, p. 71)
No filme “Bicho de Sete Cabeças”, por exemplo, o trabalho do preparador de elenco
Sergio Penna explorou estes procedimentos em que o ator interfere na rota do processo
como um “co-criador”. Descrevendo seu trabalho no filme, Penna afirma:
Foi um mês de trabalho onde todos os dias esses atores viviam um grande mergulho
nestas questões mais subjetivas (...) as personagens realmente nasceram dessas
vivências, dessas pessoas, o roteiro estava muito livre, o próprio personagem do
Gero Camilo, o Ceará, não tinha texto verbal nenhum, a diretora também roteirista
não tinha escrito nada, ela tinha uma vaga noção do que precisava com aquele
personagem, mas o Gero criou tudo. O Gero Camilo em um hospital e o Marco
Cesana em outro, todos os atores estavam preparados para fazer aquilo, mas os dois
começaram a trazer e foram pinçados para fazer aquelas personagens (PENNA,
apud. RIBEIRO, 2008, p. 46).
70
Estes processos nos quais o elenco interfere do projeto inicial da direção deram
também aos atores a possibilidade de compreender seus procedimentos nos trabalhos
preparatórios do filme, sendo “co-autores” da obra a partir de propostas que vinham à tona
na composição dos personagens. Para Ribeiro, esta seria uma forma de criação que se
assemelha a outras práticas artísticas contemporâneas. Segundo a autora:
(...) ao propor aos atores a liberdade de criação da personagem, do texto e das ações,
em busca de um cinema ativo que traz nas improvisações, na relação corpo-espaço-
emoção sua concepção e desenvolvimento, o cinema estabelece um diálogo com as
propostas que permeiam a concepção da arte contemporânea nas diversas áreas de
expressão. Pois, acompanhamos no teatro a busca por uma cena intimista, por um
trabalho colaborativo onde o ator assume um papel de co-criador, assim como na
dança onde se busca não por bailarinos que decorem suas coreografias e marcações,
mas sim, por intérpretes-criadores que rompem com as narrativas em busca do
movimento e de um corpo em cena que traz consigo sua força vital (RIBEIRO,
2008, p. 49).
Em outra experiência, no filme “Contra Todos” (2003), dirigido por Roberto
Moreira, Penna fez a preparação dos atores em um período intenso de trabalho sobre um
roteiro aberto à colaboração de seu elenco, formado por atores como Leona Cavalli, Giulio
Lopes, Silvia Lourenço e Ailton Graça. Sobre seu trabalho nesse filme, Penna comenta que,
durante o processo de improvisação, “com o nascimento dos personagens e dos diálogos,
todos os diálogos previstos no roteiro inicial foram eliminados e muitas cenas sofreram
alterações” (PENNA apud RIBEIRO, 2008, p 47). Penna costuma também propor
aquecimentos ao elenco, e trabalhar sobre alguns pontos chave de cada ator para conduzi-los
aos estados necessários a cada cena (RIBEIRO, 2010, p. 84). Além disso, conforme comenta
Ribeiro, estes processos possibilitam aos seus atores a ocupação de função distinta de
processos previamente estabelecidos. Segundo a autora:
Frutos de uma busca estética, que rompe com as especificidades de um cinema onde
tudo é previsto, produzido e decupado pelo diretor e sua equipe, o que
acompanhamos no cinema brasileiro é um processo de criação que tem por objetivo
trabalhar com o imprevisto, com a espontaneidade, numa relação de liberdade de
criação que traz para o filme o frescor e a densidade dramática de uma ação criada
em cena (RIBEIRO, 2008, p 47).
Estamos falando de experiências esparsas que começam a surgir no nosso cinema, e
cujos estudos encontram-se em uma fase inicial. Nelas podemos perceber uma ampliação da
função do ator, uma vez que estes procedimentos criativos lhe permitem interferir na criação
do texto e na direção por meio da improvisação em ensaios e laboratórios, processos muito
semelhantes aos que conhecemos no teatro, o que nos sugere certas aproximações.
71
Como vimos neste Segundo Capítulo sobre os atores e atrizes do cinema brasileiro
desde a Retomada, foi possível elencar alguns dos intérpretes e algumas das experiências
que nos ajudarão a seguir refletindo sobre a formação do ator e as técnicas de composição de
personagens por eles utilizadas na produção recente de longas metragens, assim, podendo
inclusive, discutir procedimentos teatrais que de alguma forma embasam suas criações em
cinema. No próximo capítulo, analisaremos as experiências relatadas pela atriz Leona
Cavalli e, dentre elas, o processo de preparação do filme “Contra Todos”, cujo processo se
assemelha às práticas de diretores estrangeiros como John Cassavettes (1929-1989) e Mike
Leigh (1943), que propõem uma ampla colaboração com a criação de seus atores, forma de
trabalho sobre a qual também refletiremos neste próximo capítulo.
72
CAPÍTULO III
____________________________________________________________
OS RELATOS DE LEONA CAVALLI:
ASPECTOS TÉCNICOS E FORMATIVOS DO ATOR NO CINEMA
“Comecei a filmar com a referência de atuação que
tinha do teatro, ligada nas pessoas que estavam
presentes no set, ao vivo. Até que fiz uma cena bem
pertinho da câmera. Lembro claramente desta
sensação, ao ouvir um leve ruído do filme sendo
rodado. Para mim, aquele som, sempre pareceu muito
misterioso e, naquele momento, trouxe uma percepção
nova, de que estava atuando para um público
totalmente desconhecido, futuro, ausente dali”
Leona Cavalli
73
3.1 A TRAJETÓRIA DE UMA ATRIZ DO TEATRO AO CINEMA
Nascida em Rosário do Sul, cidade do interior do Rio Grande do Sul, Leona Cavalli
sempre sonhou em ser atriz. Desde os seis anos de idade, quando pela primeira vez pisou nos
palcos em uma pequena peça escolar do colégio de freiras onde estudava, interpretando uma
mãe, nunca mais pensou em ter na vida outra profissão. Cavalli (2009) afirma:
Ao pisar num palco pela primeira vez, quando menina, em meio a um cenário com uma
imensa floresta, fiquei fascinada. Achei que estava mesmo naquele lugar e que era realmente
a personagem. Mas na hora da cena, pensei “E agora?” Não tinha volta – precisava agir, dizer
as falas e ainda continuar acreditando com a mesma intensidade (...). Senti tanto prazer em
interpretar outras pessoas e estar em outros lugares que dediquei minha vida a isso
(CAVALLI, 2009, p. 11).
Em uma cidade sem teatros, e sem nenhum parente com o mesmo desejo de ser ator,
Leona comenta que o sonho de menina não era levado a sério pela família, e ficar na cidade
não lhe trazia perspectivas de formação. A atriz afirma:
Ninguém acreditava que [o desejo de ser atriz] pudesse se tornar realidade e, principalmente,
que eu não mudaria de ideia. A não ser minha irmã Brenda, que sempre me acompanhou e
incentivou, nas muitas noites em que ficávamos acordadas vendo filmes e falando de atores
(CAVALLI, 2009, p. 13).
Aos quinze anos Cavalli pediu de presente ao pai uma viagem ao Rio de Janeiro,
onde pôde assistir a uma peça com a atriz Tônia Carreiro72
. Posteriormente assistiu em Porto
Alegre a espetáculos com Fernanda Montenegro73
e Marília Pêra74
, e estas três atuações no
teatro lhe marcaram profundamente naquele momento, fazendo-a decidir sair de Rosário do
Sul para estudar Artes Cênicas em Porto Alegre. Seu pai foi contra a sua vontade, o que lhe
tornou impossível naquele momento o ingresso no curso. Mais tarde, depois de uma viagem
para Londres, e de não ter sucesso na procura de empregos que lhe mantivessem vivendo no
exterior, Cavalli telefonou ao pai: “- Só volto se for para ser atriz!” (Idem, p. 15).
Com o consentimento e ajuda da família Cavalli foi estudar Artes Cênicas em Porto
Alegre, com a condição de que ingressasse paralelamente a graduação em Direito, curso que
a atriz abandonou no segundo ano decidindo dedicar-se exclusivamente à atuação. Era o
começo da formação teatral de Cavalli (Idem, p. 15).
72
“A Divina Sarah”, de John Murrel, em que a atriz interpretava Sarah Bernhardt. 73
“As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant”, de Rainer Werner Fassbinder. 74
“Brincando em Cima Daquilo”, de Dario Fo.
74
Em Porto Alegre, Cavalli atuou em “Valsa No. 6”, de Nelson Rodrigues, dirigida por
José Barbosa Costa, diretor que tornou-se também seu namorado e lhe apresentou atores
como Paulo Autran, com o qual ela atuaria mais tarde em São Paulo (Idem, p. 15 e 16).
Em 1990 a atriz muda-se para São Paulo, no desejo de ampliar sua formação e se
profissionalizar. Neste ano estreia no palco do TUCA (Teatro da Universidade Católica - SP)
a peça “O Homem e o Cavalo”, de Oswald de Andrade, com direção de Carlos Gradin e
Pablo Moreira, com supervisão de Lélia Abramo. Em seguida, vieram produções de
destaque no teatro paulista como: “Ham-let” (1993), montagem do Teatro Oficina criada a
partir da tragédia de William Shakespeare, na qual Cavalli viveu a personagem Ofélia, sob
direção de Zé Celso Martinez Corrêa. A parceria com o Teatro Oficina e Corrêa se repetiria
com outras três montagens: “Mistérios Gozozos” (1995), de Oswald de Andrade, “Bacantes”
(1996), de Eurípedes, e “Cacilda” (1997), na qual interpretou uma das faces da atriz Cacilda
Becker, colaborando também na autoria do texto da montagem.
Cavalli, como Cacilda Becker na montagem “Cacilda!” (1997) 75
Em 1995, a diretora Tata Amaral convida a atriz para protagonizar seu longa
metragem de estreia, “Um Céu de Estrelas”, e Cavalli começa sua carreira no cinema, ao
mesmo tempo em que se mantém em cartaz em diversas outras produções de teatro.
Nos palcos de São Paulo, outros papéis desafiadores vieram para as mãos da atriz.
Interpretou Sônia, personagem da peça “Tio Vânya”, de Anton Tchékhov, montagem
75
Imagem disponível em: http://www.leonacavalli.com.br/galeria_em_cena/images/le_06.jpg
75
dirigida em 1997 por Élcio Nogueira. Atuou ainda em montagens dirigidas por Cibele
Forjaz, como: “Toda Nudez Será Castigada” (2000), de Nelson Rodrigues, recebendo o
Prêmio Shell de Melhor Atriz por seu desempenho como Geni; e “Um Bonde Chamado
Desejo” (2001), de Tennessee Williams, na qual Cavalli interpretou uma das personagens
femininas mais emblemáticas da dramaturgia ocidental, Blanche Dubois, atuação que lhe
valeu o Prêmio Qualidade Brasil de Melhor Atriz em 2002. Neste momento, depois de dez
anos vivendo em São Paulo, Cavalli já havia se tornado uma das mais aclamadas atrizes do
teatro paulista.
A atriz como Blanche em “Um Bonde Chamado Desejo” (2001) 76
Com a estreia de “Um Céu de Estrelas” em 1996, Cavalli torna-se conhecida também
como um dos novos talentos do cinema brasileiro, recebendo os prêmios do Cine SESC e da
APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) como Melhor Atriz. O filme recebeu
diversas premiações no exterior, e entre elas o Prêmio de Melhor Atriz no Festival de
Trieste, Itália, em 1996. Diversas outras produções vieram em seguida, e Cavalli realizou
ainda diversos trabalhos na televisão como minisséries e novelas. No cinema atuou em
filmes como: “Através da Janela” (1998), repetindo a parceria com a diretora Tata Amaral;
“Amarelo Manga” (2001), dirigido por Claudio Asssis, sendo indicada em 2002 para o
Grande Prêmio Cinema Brasil como Melhor Atriz; “Carandiru” (2002), de Hector Babenco,
com atuação que lhe valeu uma nova indicação no Grande Prêmio Cinema Brasil, desta vez
como Melhor Atriz Coadjuvante; “Contra Todos” (2002), de Roberto Moreira, pelo qual
76
Imagem disponível em: http://www.leonacavalli.com.br/galeria_em_cena/images/le_13.jpg
76
recebeu o Prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante no CinePort 2005, em Minas Gerais e o
Prêmio de Melhor Atriz no Festival Internacional de Las Palmas, Espanha, dividido com
Silvia Lourenço pelo mesmo filme em 2005, além uma terceira indicação ao Grande Prêmio
Cinema Brasil na categoria de Melhor Atriz.
Em seguida atuou em outros longas metragens como: “Quanto Vale ou é Por Quilo?”
(2003), de Sérgio Bianchi; “Olga” (2004), de Jayme Monjardim; “Cafundó” (2006) de Paulo
Betti e Clóvis Bueno; “Os Inquilinos” (2008), novamente com Sérgio Bianchi; “Aparecida”
(2010), dirigido por Tizuka Yamazaki; e “As 12 Estrelas” (2011), de Luis Alberto Pereira.
Cavalli atuou ainda em diversos curtas metragens como: “Ilha” (1999), dirigido pelo
cineasta catarinense Zeca Pires, pelo qual recebeu uma indicação ao Prêmio de Melhor Atriz
no Festival de Cinema de Gramado – RS; e “Desequilíbrio” (2005), recebendo o Prêmio de
Melhor Atriz no Festival de Cinema de Curitiba em 2005. Atualmente a atriz prepara sua
estreia na direção com o documentário "O Caminho do Peabiru", um trabalho sobre a cultura
indígena brasileira co-dirigido por Peter Cordenonsi.
3.2 UMA VOZ VISÍVEL E AUDÍVEL
Com uma trajetória marcada por experiências no teatro, e posteriormente no cinema
e na televisão, a atriz lançou em 2009 o audiolivro, “Caminho das Pedras: Reflexões de uma
Atriz”, no qual apresenta relatos de diversas experiências nestas três linguagens, dividindo
os capítulos em partes definidas como “pedras”. A partir desta metáfora, aspectos como “fé
cênica”, “ilusão”, “timidez”, “consciência”, “preconceito”, “ética”, “amadorismo”,
“profissionalismo”, “sorte”, “concentração”, entre outros, são abordados em distintos
momentos trazendo para cada uma destas partes (as “pedras” do caminho de um ator), um
relato distinto de experiências vividas pela atriz. Vale notar que alguns dos termos utilizados
por Cavalli, tais como “fé cênica”, “concentração”, e “consciência”, são comuns aos das
práticas sistematizadas por Constantin Stanislavski77
, e dizem respeito a aspectos
tradicionais da formação do ator no teatro e que, no entanto, são utilizados pela atriz para
expor princípios poéticos da atuação em diferentes linguagens (teatro, cinema, televisão).
O relato integral da obra escrita é também disponibilizado em um CD que
acompanha a publicação, gravado em faixas de MP3, com trilha sonora criada pelo músico
Chico César. Nesta publicação, portanto, além de lermos sua “voz” escrita nos relatos a
77
STANISLAVSKI, 1998.
77
respeito de seu ofício, podemos ouvir sua voz falada descrevendo as experiências escolhidas
para apresentar o estudo. Cavalli comenta sobre os motivos que levaram a atriz a escrever
esta obra:
Reconhecendo as pessoas como mais importantes que a interpretação que eu possa fazer
delas e consciente de que jamais poderei representar alguém com a grandiosidade da vida,
senti necessidade de começar a refletir sobre a arte da atuação. Escrevo sem nenhuma
intenção de aconselhar, ensinar ou apresentar uma visão absoluta. Exponho uma reflexão
deste momento, muitas vezes até como um ideal a ser alcançado por mim mesma, com o
objetivo de estruturar minha própria trajetória (CAVALLI, 2009, p. 9).
Trata-se de um tipo de publicação rara, que mesmo não sendo direcionada apenas à
descrição de procedimentos em cinema, nos possibilita refletir sobre as experiências
criativas de uma atriz de grande representatividade no cinema brasileiro recente. Na obra,
Cavalli apresenta depoimentos sobre quatro de seus filmes: “Um Céu de Estrelas” (1996),
“Amarelo Manga” (2001), “Contra Todos” (2002) e “Cafundó” (2006), estabelecendo deste
modo, o corpo de filmes analisados neste capítulo.
3.3 OS FILMES DE LEONA CAVALLI
A seguir veremos algumas experiências destacadas pela atriz em seu áudio livro, no
que diz respeito ao seu trabalho em longas metragens brasileiros, depoimentos que nos
ajudam a refletir sobre aspectos técnicos e sobre a formação desta atriz no cinema. Para
tanto, veremos alguns diálogos entre suas ideias e os conceitos apresentados por teóricos, e
diretores que nos ajudam a refletir sobre os conceitos explorados pela atriz.
3.3.1 “Um Céu de Estrelas”: câmera, público desconhecido, tempo e continuidade
Um dos filmes mais elogiados da retomada de filmes brasileiros dos anos de 1990,
“Um Céu de Estrelas” (1996), é baseado no romance homônimo de Fernando Bonassi, e foi
adaptado para as telas por Jean Claude Bernadet, em parceria com o próprio Bonassi, Marcio
Ferrari e a diretora Tata Amaral. Dalva, a personagem interpretada por Cavalli no filme, é
uma cabeleireira do bairro da Mooca, São Paulo, que ganha em um concurso uma passagem
para Miami, uma viagem que lhe permitirá deixar para trás a vida suburbana que leva junto a
um noivo violento, interpretado pelo ator Paulo Vespúcio Garcia. Enquanto Dalva se prepara
para abandonar o país, os personagens se envolvem em um embate brutal levado às últimas
78
consequências. A ação do filme se desenvolve toda dentro da casa da personagem, ambiente
que constrói uma atmosfera claustrofóbica em que se revelam as angústias e a violenta
relação entre o casal e um terceiro personagem, a mãe de Dalva, interpretada pela atriz Néa
Simões.
Além de ser o primeiro longa da diretora Tata Amaral, o filme marca também a
estreia de Cavalli no trabalho frente às câmeras, experiência na qual a atriz mergulhou sem
ter uma formação anterior para cinema. Sobre seu trabalho neste filme Cavalli afirma:
Comecei a filmar com a referência de atuação que tinha do teatro, ligadas nas pessoas que
estavam presentes no set, ao vivo. Até que fiz uma cena bem pertinho da câmera. Lembro
claramente desta sensação, ao ouvir um leve ruído do filme sendo rodado. Para mim, aquele
som, sempre pareceu muito misterioso e, naquele momento, trouxe uma percepção nova, de
que estava atuando para um público totalmente desconhecido, futuro, ausente dali
(CAVALLI, 2009, p. 11 e 12).
Neste depoimento, Cavalli nos relata sobre um primeiro estranhamento muito
comum para atores de formação teatral frente à linguagem cinematográfica: a relação com a
câmera, através da qual a comunicação com o público ocorre de modo muito distinto do que
e pode experienciar no teatro, uma relação do intérprete com quem Cavalli denomina como
“público desconhecido”.
Em “Acting in the Cinema” (1988), o teórico americano James Naremore compara a
relação entre e público no teatro e no cinema. Para ele, desde a invenção da luz cênica no
teatro, a plateia pode ser ocultada da visibilidade do ator. Assim, se nos teatros elisabetanos,
anteriormente, toda a audiência estava iluminada e visível para os atores, no dispositivo do
palco italiano, cuja caixa cênica enquadra o ator em uma espécie de tela, a luz cênica
acabaria por tornar o público invisível, ainda que o ator saiba que está sendo visto por uma
plateia. O autor descreve também algumas transformações no espaço teatral que ocorreram
posteriormente, que buscaram inserir o público em um espaço muito próximo da cena, tais
como no teatro de Jerzy Grotowski, e outros encenadores, para esclarecer as distinções que
os espaços de teatro e cinema apresentam na relação entre ator e audiência (NAREMORE,
1988, p. 28). O autor afirma ainda que:
Nos filmes, entretanto, o vínculo existencial entre a audiência e o ator está quebrada. A
relação está permanentemente fechada e ela não pode ser aberta mesmo que o ator fale
diretamente conosco ou que nós na plateia vaiemos a exibição [...] Para que isso ocorresse
seria necessário uma transformação mágica [...] como a que ocorre em "A Rosa Púrpura
79
do Cairo" (1985)78
, quando as figuras no filme começam a conversar com Mia Farrow como
se ela, sentada na plateia, fosse parte do filme (NAREMORE, 1988, p. 29, tradução nossa)
O ator, assim, atua para a câmera, e sua relação com o público é posterior aos
processos de edição e finalização do filme, procedimento que imprime uma característica
única ao cinema e muito distinta da recepção teatral.
Em “Direção de Cinema: Técnicas e Estética” (2007), o teórico americano Michael
Rabiger distingue a relação do ator no teatro e no cinema afirmando que “no teatro os atores
invocam o apoio do público para manter a credibilidade” enquanto “nos filmes de ficção, os
atores extraem a credibilidade de seus papéis de si mesmos e dos demais personagens, como
na vida. Não há público” (RABIGER, 2007, p. 175). O autor alerta ainda para a necessidade
de instruir os atores a “nunca olhar para a câmera, a ignorar a presença do grupo e a atuar
como se estivessem sozinhos na vida real” o que impediria os atores de cair “na armadilha
de interpretar para uma plateia” (2008, p. 178).
Cavalli também destaca ainda sobre este trabalho o mergulho em uma nova
experiência sobre o tempo da ação, conforme podemos perceber em seu comentário a seguir:
Lembro de uma cena de Um Céu de Estrelas em que a Dalva faz café. Era um tempo novo
para mim, respirar sentindo o cheiro do café, a fumaça saindo da chaleira, a água pingando na
pia. Ela [a diretora Tata Amaral] valorizava muito as sensações da personagem (CAVALLI,
2009, p. 55)
Outro aspecto desafiador para o ator no cinema, em comparação aos procedimentos
teatrais, diz respeito à ideia de continuidade, uma vez que um filme raramente é rodado na
ordem cronológica dos acontecimentos do roteiro. Cavalli destaca ainda outro momento das
filmagens de “Um Céu de Estrelas” em que podemos perceber esse estranhamento frequente
do ator frente à rotina das filmagens:
Quando fiz o filme [“Um Céu de Estrelas”], estava em cartaz no Teatro Oficina, com
Mistérios Gozozos (...). Durante uma apresentação caí e machuquei a mão. No final da peça,
ela já começava a inchar e eu ainda teria filmagem a noite inteira. Fiquei muito preocupada
com a continuidade do filme. Antes de ir ao hospital fazer radiografia, fui ao set falar com a
Tata [Amaral, diretora], que rapidamente decidiu incorporar a situação, criando uma cena em
que Dalva bate com a mão na parede e se machuca, para justificar a mão enfaixada que a
personagem passou a usar a partir de uma certa altura da história. Mas essa cena, de
continuidade imediata da anterior e da posterior , só foi feita quando a mão já estava curada,
um mês depois. Para mim, foi um desafio buscar a sequência exata da emoção, passado tanto
tempo. O mesmo aconteceu na cena em que Dalva vê a mãe morta no banheiro. Começou a
ser rodada num dia e só terminou na noite seguinte, sem nenhuma passagem de tempo
78
Filme dirigido por Woody Allen no qual uma mulher (Mia Farrow) apaixona-se pelo galã de um filme (Jeff
Daniels), e depois de repetidas vezes frequentar as sessões do filme os personagens começam a dialogar com
ela, e personagem passa a viver um romance com o galã que sai da tela para entrar no cotidiano de sua fã.
80
dramático (a Tata até pediu que corrêssemos um pouco pelo corredor, como aquecimento)
(CAVALLI, 2009, p. 12).
Este tipo de processo exige dos atores um profundo conhecimento da estrutura do
roteiro, para que seja possível acessar as emoções de cada cena, muitas vezes gravadas de
trás pra frente ou de forma entrecortada. Rabiger afirma que é de extrema importância que
os atores saibam “em cada ponto que circunstâncias e pressões determinam o estado físico e
mental do seu personagem” (2007, p. 211). Para tanto, o autor apresenta uma série de
exercícios para processos de ensaios que buscam amparar diretor e os atores no
conhecimento dos pontos de virada do texto, as emoções e estados em que os personagens
deverão estar em cada cena. Trata-se de um dos poucos materiais encontrados no
levantamento bibliográfico realizado que se dedica a detalhar estratégias de trabalho de
preparação dos atores em um filme. Sobre a importância deste processo para o entendimento
da continuidade do trabalho do ator, Rabiger apresenta ainda algumas instruções:
No começo, tente ensaiar as cenas na ordem em que aparecem no roteiro. Mais tarde, quando
todos estiverem familiarizados com o texto, adote um plano de conveniência e trabalhe em
função dos horários das pessoas. Você terá de dar prioridade às cenas-chave e àquelas que
apresentam problemas especiais. Neste estágio, o elenco ainda trabalha com o roteiro (...). As
cenas dos filmes costumam parecer desconexas, sobretudo para atores acostumados com o
teatro (RABIGER, 2007, p. 203).
De todos os modos estamos falando de momentos de trabalho que antecedem às
filmagens, trabalhos preparatórios que não necessariamente fazem parte de todos os
processos de criação de filmes. Neste sentido, Rabiger comenta que “a indústria
cinematográfica profissional não costuma fazer ensaios para poupar despesas e preservar a
espontaneidade” (RABIGER, 2007, p. 204), no entanto, o autor afirma que este tipo de
experiência anterior às filmagens é de extrema importância para embasar o aprofundamento
de atores e diretores em uma obra, “a menos que você tenha um elenco e uma equipe de
primeira, cujo profissionalismo compense a falta do desenvolvimento fundamental”
(RABIGER, 2007, p. 204).
Para refletirmos sobre a ideia de continuidade na atuação para cinema, veremos a
seguir mais um depoimento de Cavalli sobre seu trabalho em “Amarelo Manga” (2001).
81
3.3.2 “Amarelo Manga”: o caos criativo no set
Em seu terceiro longa metragem como atriz, Cavalli vive Lígia, mulher que trabalha
em um bar suburbano do Recife, e que leva uma vida enfadonha entre o trabalho (onde sabe
que será bolinada com frequência pelos clientes) e seu quarto ao lado do bar. A ação do filme
apresenta ainda outros personagens como a religiosa Kika (Dira Paes), o homossexual
Dunga, (Matheus Nachtergaele), e Isaac (Jonas Bloch), sujeito que tem um prazer mórbido
de atirar em cadáveres, figuras que circulam pelo bar ou pelo Hotel Texas, dois espaços
centrais da trama.
O filme já havia começado a ser rodado quando Cavalli começou suas cenas,
conforme ela relata a seguir:
Atendi um telefonema do cineasta Claudio Assis dizendo “Leona, estamos aqui em Recife
filmando Amarelo Manga (...). Só faltam as cenas da ´tua´ personagem: é tu quem tem que
fazer”. “Como assim, ‘minha personagem’?” – eu perguntei.
Tinha conhecido o Claudio Assis meses antes, quando ele me fez um convite para interpretar
a Lígia no filme Amarelo Manga que ele ia dirigir. Li o roteiro e preferi não fazer,
principalmente em função de uma cena em que a Lígia subia em cima da mesa do bar, usando
apenas um vestidinho jeans, sem calcinha, e fazia um striptease para um cliente (...). Eu
achava que aquela personagem, de personalidade tão direta e sincera, não faria isso, pelo
menos não daquela maneira. (CAVALLI, 2009, p. 52)
Cavalli em cena de “Amarelo Manga” (2001) 79
79
Disponível em: http://www.leonacavalli.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=18&Itemid=27
82
Vinda de uma turnê teatral realizada no exterior, e sem nenhum trabalho em vista,
Cavalli topou fazer o filme, desde que a cena fosse rodada de outra maneira. Cavalli
menciona que a equipe foi cuidadosa na filmagem desta cena, e que o resultado foi bastante
satisfatório, depois desta negociação entre atriz e diretor.
Como vimos anteriormente, nem todos os processos de criação de um filme possuem
processos de preparação de elenco, momento em que há a possibilidade de todos lerem
juntos o roteiro ou participar de exercícios de exploração e improvisação das cenas, etc.
Além disso, é muito comum dentro dos cronogramas de produção de um filme, o fato de
diversos atores que integram um mesmo elenco nem sempre se encontrarem durante as
filmagens, no caso destes não atuarem nas mesmas cenas.
Mesmo quando há processos de preparação, nem sempre é possível dedicar o mesmo
tempo de trabalho com todos os atores, conforme afirma Rabiger:
Grande parte da direção futura de um papel é desenvolvida em sessões exploratórias
particulares. Inevitavelmente, quanto maior o elenco, menos o diretor pode dar total atenção a
todos os integrantes (...). Uma boa solução para a demanda de atenção individual é ver todos
sozinhos, mesmo os papéis menores, no começo (...). Daí em diante tente fazer ensaios
coletivos (RABIGER, 2007, p. 203).
Tal problemática, no entanto, diz respeito a uma fragmentação que é própria da
forma de produção cinematográfica, e não caberia aqui aprofundar os paralelos com
processos de preparação como os que ocorrem em teatro, pois isto nos levaria a idealizar
soluções que extrapolam os limites de cada linguagem, como se fosse possível balizar
modos de produções cinematográficas afirmando que todas precisam de um mesmo
procedimento.
O próprio processo de criação do diretor Claudio Assis em “Amarelo Manga” não diz
necessariamente respeito a uma forma de trabalho previamente estabelecida em um projeto
inicial rígido, e sim a um tipo de criação que possibilita aos atores improvisar durante as
filmagens. Sobre este aspecto, Assis afirma:
Eu não faço story board. Não gosto quando sei o que vai acontecer no set. Não quero
aprender a fazer assim, não tenho vontade e não tem nada a ver comigo. Quero emoção, que
as pessoas sintam o que estão fazendo naquele momento, o da filmagem, e isso a gente
descobre na hora. Não cenografo apenas uma parte do cenário para só filmar aquele canto. A
câmera vai para todo o canto, tem de estar tudo cenografado, se não fico escravo de um limite
(...) Aquela cena em que o Chico Diaz entra no templo evangélico, sabe? A gente entrou
filmando lá sem pedir autorização. Ele vinha vindo pela calçada e fomos entrando filmando.
83
Não estava previsto não. Aconteceu de improviso. Aquela reação no templo, com o povo
gritando "sai satanás, fora capeta” (ASSIS; EDUARDO, s.d., p. da internet 80
).
Assim, podemos perceber que cada filme apresenta suas estratégias de criação a
partir de projetos definidos de formas muito distintas: filmes que necessitam de preparação e
filmes em que este trabalho é tido como desnecessário. A escolha é de cada diretor. Os
resultados desta empreitada em “Amarelo Manga”, segundo comenta Cavalli, foram
extremamente positivos, e, devem-se à “eficiência no caos” do diretor Claudio Assis: “de
repente ele mudava tudo, colocava a câmera nas costas, no teto, e dava certo” (Idem, p. 55).
3.3.3 “Contra Todos”: o ator como um “co-criador”
Na atual produção brasileira, entretanto, os processos de preparação e ensaios dos
elencos se tornam cada vez mais presentes, como vimos ao fim do segundo capítulo, quando
foi apresentado o trabalho dos preparadores de elenco Fátima Toledo, Sérgio Penna e
Christian Durvoort. Sobre este momento do cinema feito no Brasil, Rewald (2009) afirma:
Hoje, com raras exceções, não digo que é uma unanimidade, mas com raras exceções o
período de ensaio é fundamental para os diretores. Quando você fecha um contrato com os
atores já está colocado ali que vai ter um período de ensaios (...). É necessário. Se você quer
um filme contemporâneo, que dialoga com um cinema contemporâneo do mundo, você
precisa ter credibilidade no jogo com os atores. Você precisa acreditar neles. E nem estou
falando de naturalismo não. E esse era um problema do cinema brasileiro. Que tudo tendia
um pouco ao farsesco, muito por falta de adequação do ator ao meio. Eles vinham do teatro,
ou da televisão. Ou era uma coisa exagerada demais ou uma coisa morna demais. E o cinema
é intenso. Não adianta você vir com uma coisa morna (REWALD, 2009, s.p. 81
).
No contexto do cinema brasileiro recente, um exemplo de filme que apresenta um
intenso processo de preparação de elenco e uma grande interferência dos atores na criação
do roteiro é “Contra Todos” (2002), longa metragem dirigido por Roberto Moreira, que fala
de uma família em um momento de grande deterioração. Além de Cavalli, o elenco é
composto também pelos atores Silvia Lourenço, Ailton Graça, e Giulio Lopes, ambos vindos
do teatro. Neste filme, os atores mergulharam em um tipo de processo bastante distinto dos
processos convencionais de cinema, conforme relata Cavalli:
(...) no filme (...) a ideia era improvisarmos todas as cenas. Nos ensaios, o diretor só indicava
o tema e nós criávamos em cima, durante horas, com o preparador de elenco Sérgio Penna. O
80
ASSIS, Claudio. EDUARDO, Cléber Eduardo. Entrevista com Claudio Assis. In: Contracampo. – Revista de
Cinema. Disponível em http://www.contracampo.com.br/52/frames.htm. ed. 52. Visitado em 12/06/2011. 81
Entrevista realizada durante a primeira pesquisa de campo, em maio de 2009 na cidade de São Paulo.
84
roteiro ia sendo montado com o resultado disso. Só soubemos como seria a versão final no
último ensaio, e mesmo assim, com a possibilidade de ocorrer alguma mudança na filmagem.
Um dia, numa cena em que eu tinha que me esconder pelas ruas da personagem do Ailton
Graça, tentei pegar carona com um motoboy que estava passando, sem saber de nada, depois
entrei numa garagem e já ia ligar um carro que estava lá, estacionado, quando o Ailton
conseguiu me segurar – tudo isso,com a equipe correndo atrás da gente com a câmera ligada.
A cena, que inicialmente era para ser um desencontro, virou uma fuga. Incorporávamos o
inesperado (CAVALLI, 2009, p. 43).
Cavalli em cena de “Contra Todos” (2002) 82
Assim como em “Amarelo Manga”, observamos em “Contra Todos” a exploração de
aspectos “acidentais” do trabalho improvisacional com os atores que passam a fazer parte da
escrita do roteiro e da direção. Mesmo que em “Amarelo Manga” não haja uma interferência
direta do ator na criação do roteiro, no sentido se estabelecer uma co-autoria, podemos
perceber no filme dirigido por Assis, a possibilidade de propor aos atores uma vivência
espontânea no set de filmagem, uma criação que não lhe chega definida, ou decupada,
conforme afirmado por Assis sobre o fato de não prever tudo o que será filmado.
Este é um exemplo de processos criativos em cinema que começam a acontecer na
produção nacional, forma de criação que se assemelha aos processos colaborativos teatrais
em que, a criação do ator, interfere diretamente nos resultados do roteiro e de direção, em
um compartilhamento da criação por toda equipe.
Sobre o ator neste tipo de produção, o preparador de elenco do filme, Sergio Penna
comenta:
...É como se ele [o ator] fosse lá no fundo para reescrever, ou para se colocar na pele da
personagem de uma maneira que não é simplesmente alguém de fora, ou seja, é alguém de
dentro que resolve contar realmente aquela história e viver realmente aquelas emoções. Neste
82
Imagem disponível em: http://www.mulheresdocinemabrasileiro.com/criticaContraTodos.htm
85
sentido autoral, de você escrever o texto junto com o roteirista, de você quase dirigir o filme
junto com o diretor (...) você se apodera de tal maneira, conhece tão a fundo a sua
personagem que consegue discutir com o roteirista, com o diretor, com o diretor de
fotografia, com o diretor de arte (PENNA apud RIBEIRO, 2008, p. 44)
Tais práticas se assemelham a processos criativos de diretores como o estadunidense
John Cassavettes (1929-1989), e o britânico Mike Leigh (1943 -) que, em contextos distintos
da produção cinematográfica mundial, desenvolveram trabalhos em ampla colaboração com
seus atores. Trabalhando com um grupo de amigos atores de teatro - seus colaboradores de
longa data -, Cassavetes conduzia o processo em intenso diálogo com os atores, criando
estruturas abertas à improvisação dos mesmos (SCORSESE, 2004). Em “Faces” (Faces,
1968) a câmera de Cassavettes segue seus atores em cenas de grande tensão dramática,
rodadas em poucas locações internas, o que sugere uma atmosfera teatral à cena. Segundo
Thierry Jousse:
A câmera se encontra no meio da confusão, destituída de sua posição externa. Ela não adota
qualquer ponto de vista crítico e seguro; oscila de um lado a outro da cena, acompanhando
até o desenlace a crise que se desenrola diante de nós (JOUSSE apud MIRANDA, s.d., p. da
internet 83
).
O trabalho de Cassavettes, por sua vez, parece embasado numa potência dramática
que se encontra na relação entre o ator e a câmera. Seu trabalho abria espaço para o “caos” e
o imprevisto, e para isso, criava seus filmes com um grupo de atores de sua extrema
confiança. Segundo o cineasta Rogério Sganzerla:
John Cassavettes diferenciou o cinema moderno e o tradicional dizendo que “aquele emana
dos personagens enquanto neste os personagens provém do enredo”. A matéria prima do
filme moderno é o ator. Daí a predominância atual do close-up, de cenas longas e diálogo
abundante, além do interesse pelos gestos fundamentais: andar e falar e se possível amar
(SGANZERLA, 2001, p. 61).
Mike Leigh, cineasta que tem se destacou por seu trabalho em telefilmes britânicos a
partir da década de 1970 até estrear na produção de longas-metragens em meados dos anos
de 1980, explora práticas semelhantes. Leigh costuma desenvolver processos em que os
atores passam por um período extenso de improvisações durante meses antes das filmagens.
Em “Segredos e Mentiras” (Secrets and Lies, 1996), Leigh partiu de um roteiro inicial do
filme com uma trama geral, esboços de personagens em um projeto aberto à criação dos
atores. Depois de cerca de seis meses em trabalho de criação de personagens, jogos de
83
MIRANDA, Marcelo. John Cassavettes e a cumplicidade no constragimento. In: Filmes Polvo – Revista de
Cinema. Disponível em: http://www.filmespolvo.com.br/site/artigos/contra_plongee/169. Acesso em
22/10/2010.
86
improvisação para a criação de subestruturas do roteiro, a equipe vai para o set com um
roteiro aberto, pois, não há uma definição de como são as falas. Estas poderiam ainda ser
improvisadas no set o que garante parte da naturalidade no desempenho dos atores. Sobre o
trabalho de Leigh, Rewald comenta na introdução de seu livro “Caos: Dramaturgia”:
Mike Leigh nunca escreve um roteiro a priori. No máximo possui algumas idéias [sic.] e
sensações. É no decorrer do processo anterior à filmagem que é elaborado um roteiro, o qual
muitas vezes nem é escrito, pois já está internalizado pelos atores e pela equipe (...). Tudo é
criado nesse momento, os diálogos, a movimentação e, inclusive, o subtexto dos personagens
(...). Mesmo não sendo um procedimento padrão na atividade audiovisual, a idéia [sic.]de
processo começa a contaminar a prática cinematográfica, principalmente se feito num
período anterior à filmagem como o realizado por Mike Leigh. Cada vez mais diretores e
roteiristas trabalham com a noção de processo colaborativo na construção de suas obras
(REWALD, 2005, p. XV).
Este é um dos aspectos que destaco dos processos criativos nacionais, nos quais
diversos atores têm desenvolvido experiências de formação anteriores às filmagens. Não se
trata de defender um tipo de procedimento em um sentido idealizado para as práticas de
cinema, mas de destacar uma forma de trabalho que constitui um momento importante de
aprofundamento da formação de atores e atrizes de cinema.
3.3.4 “Cafundó”: o controle sobre o enquadramento
Outra experiência relatada por Cavalli foi a criação vivida no longa metragem
“Cafundó” (2006), dirigido pelo ator Paulo Betti e por Clóvis Bueno. Na trama, Lázaro
Ramos interpreta João de Camargo, que viveu nas senzalas no século XIX e que, após deixar
de ser escravo, passa a acreditar que pode ver Deus, tamanho é o seu deslumbramento frente
às transformações percebidas no mundo em que passa a viver. No filme, Cavalli interpreta
Rosário, a mulher por quem Camargo se apaixona e com quem vem a se casar. A atriz
destaca o trabalho em uma das cenas do filme:
(...) na cena final de minha personagem em Cafundó, em que ela foge ao ser pega com outro
homem pelo João de Camargo, seu marido, a indicação era que eu virasse e desse uma última
olhada pra ele, como despedida, em close. Eu estava seminua na cena, com os seios à mostra,
e fiquei um pouco constrangida quando vi na revisão que a última tomada não estava em
close. Pedi para fazer de novo. Porque, se soubesse que o plano seria aberto, gostaria de ter
feito de outra maneira. Como não dava mais tempo de repetir, porque era ao ar livre, e não
havia mais luz suficiente, o Paulo e o Clovis acharam melhor, em respeito ao que havia sido
combinado por eles comigo, não colocar o take final (CAVALLI, 2009, p. 55).
87
Que tipo de entendimento o ator tem sobre as partes de seu corpo que serão
enquadradas pela câmera? Este também é um dos aspectos destacados por Cavalli em seu
livro, e que também será discutido pelo ator Matheus Nachtergaele em suas experiências em
cinema. Sobre estas duas experiências poderemos refletir mais adiante, analisando as
experiências destes dois atores.
Cena de “Cafundó” (2006) 84
84
Imagem disponível em: http://www.leonacavalli.com.br/galeria_em_cena/images/le_04.jpg
88
CAPÍTULO IV
____________________________________________________________
ENTREVISTA COM MATHEUS NACHTERGAELE
"O teatro precisa do teu corpo inteiro, e o cinema nem sempre,
ou nem tanto, ou nem de maneira tão forte. É muito uma zona
interior sua que a câmera capta. Como um olhar triste de
alguém em uma festa numa fotografia”
Matheus Nachtergaele
89
14 de dezembro de 2010, Rio de Janeiro, na casa do ator.
Nachtergaele com Mirian Rinaldi, na montagem de “O Livro de Jó” 85
Daniel – Como foi o teu primeiro contato com a atuação?
Matheus – Foi na escola. Eu estudei em uma escola antroposófica, então, dentro da filosofia
antroposófica na Rudolph Steiner, teatro e dança são matérias que te acompanham da tua
primeira infância até a tua formação ali. Então, acho que esteve presente o tempo todo.
Daniel - E a primeira vez que você se apresentou em uma situação formal mesmo?
Matheus - Em família. Toda festa de família eu fazia uma peça. Desde os sete ou oito anos.
Além de fantoches, que eu gostava muito me apresentar. Tinha um momento em que era até
chato. Tinha “o momento em que o Matheus vai apresentar uma peça”, então tinha que parar
85
Imagem disponível em: http://posfpacenicas.zip.net/
90
tudo, os comes e bebes, a música, o violão, tinha que parar tudo porque ia acontecer um
espetáculo. Era engraçado isso.
Daniel - E daí para o momento em que você decidiu ser ator...
Matheus - Aí levou um tempo. Pára um pouquinho a gravação! (Matheus levanta-se e vai
acalmar os cachorros). Eu acho que essa coisa vai se engendrando meio devagar. Eu sempre
desenhei muito bem, e com oito anos de idade eu fui levado pro Maurício de Souza, e ele me
disse isso: “Eu só não contrato você porque você tem oito anos de idade!”. Isso passou
depois de um tempo, enfim, estudando, sempre desenhando muito, então me pareceu que eu
iria pras artes plásticas, e foi o que eu fiz. Entrei na FAAP, em São Paulo, e tive uma
formação bem boa, de artes plásticas, filosofia, de várias matérias relacionadas à arte. Acho
que foi uma boa formação ter começado por artes plásticas, com um olhar sobre a história
pictórica do mundo muito bacana. Eu fiquei dois anos lá, e não me apresentava na FAAP.
Nunca fiz nenhum trabalho como performer. Eu até tinha um amigo lá que fazia, muitas
vezes ele optava em apresentar os trabalhos dele como performances. Eu não, eu sempre
desenhava, e gostava de esculpir também. E com a timidez da infância eu acabei parando de
me apresentar. Inclusive, nas poucas vezes que eu me lembro, depois da infância, de me
apresentar fora da família, em uma peça de escola, ou outras coisas assim, eu ficava muito
constrangido. Nessa fase de adolescência não me ocorria concretamente atuar. Eu gostava
muito de ver filme, eu tive a sorte de adolescer numa época em que na televisão aberta os
grandes filmes eram exibidos, nessas programações como “Sessão de Gala”. Passava Orson
Welles, passava Fellini, passava Bertolucci. Do Saura, eu vi quase todos os filmes na
televisão. Com 15 e 16 anos. Eu gostava e admirava os atores e gostava de ver novela. Mas
não me ocorria ser ator. Eu sempre cantava muito com meu pai, que saiu da Tradicional
Band, muito rápido, quando a banda começou a viajar, ele já com família, deixou a banda,
mas as reuniões em casa continuavam, então eu sempre me apresentava cantando na
adolescência. Na FAAP, tive uma formação acadêmica de história da arte, de técnicas
artísticas. Aí tem uma coisa interessante. Ah, tem uma coisa engraçada. Tinha esquecido
uma coisa. Essa conversa vai ser longa (risos). Quando eu tinha uns 15 anos eu pedi de
aniversário pros meus pais um Curso de Animação no MIS. Isso me chamou atenção anos
depois, quando comecei a fazer cinema. Eu já gostava muito de desenhar e queria animar os
desenhos. Aí fiz um “filmete” no curso. Aí na FAAP, uma época comecei a me interessar
muito por fotografia. Nessa época eu conheci uma menina que queria fazer teatro. Aí ela me
91
convidou pra fazer um curso de teatro no Macunaíma. Aí eu fui meio assim. O curso não me
parecia muito bom. Eu estava fazendo uma faculdade. Aí não segui em frente. Mas tive
alguns primeiros contatos, tive aulas de corpo, aulas de voz, algumas primeiras
apresentações, improvisações. Eu percebia que eu tinha um certo talento em mim praquilo.
Dentro da escola, quando eu entrei, tinha uma certa atenção com relação a mim. Mas não
levei em frente, não achei o curso muito interessante e continuava fazendo artes plásticas.
Minha família reagiu muito violentamente ao fato de eu ter ido fazer esse curso. Eu obedeci
num primeiro momento, porque a minha família achou grave o fato de eu ter ido fazer teatro.
Então eu pensei: “vou terminar a minha faculdade e depois eu faço o que eu quiser”. Mas
como o destino é doido, essa mesma amiga minha me convidou pra ser réplica dela num
teste pra entrar no CPT. Ela não entrou e eu entrei. Aquela clássica história. Aí começou.
Abandonei a faculdade. Não dava pra fazer as duas coisas ao mesmo tempo. E foi o Antunes
Filho que fez concretamente a minha primeira formação. Eu tinha passado aqueles meus
dois ou três primeiros meses no Macunaíma, uma coisa muito básica e inicial. Tinha uma
formação de dois anos nas artes plásticas. Aí comecei efetivamente a trabalhar. Não entrei
pro CPTzinho, e entrei direto pra um elenco com o qual ele ia montar “Paraíso Zona Norte”,
que eram duas peças do Nelson Rodrigues: “A Falecida” e “Os Sete Gatinhos”. Ele ia
montar essas duas peças. Entrei pro elenco principal, que tinha o Luís Mello, enfim, tinham
pessoas muito bacanas lá trabalhando. E eu bem menino. Eu devia ter uns 19 ou 20 anos no
máximo. Abandonei a faculdade e comecei a me dedicar exclusivamente a isso, com o maior
empenho, e de repente eu percebi que era isso. O Antunes é muito fascinante, muito culto,
muito dominador. Ele viu em mim um talento, uma inteligência e uma loucura. Aí fiquei lá
um ano. Ele ensaiou muito o “Paraíso Zona Norte”. Ele estava trabalhando nessa época com
muitos princípios de Butoh. Ele queria extrair do Nelson só o que fosse trágico. Tirar o que
fosse cotidiano, dramático, ou cômico, ou de época, ou carioca. Ele queria achar o Ésquilo
de Nelson Rodrigues. Essa era a busca dele e por isso ele estava indo por trabalhos de
culturas milenares. Então a gente fazia Suzuki, butoh, e algumas coisas que o Antunes criava
a partir disso. Tinha uma técnica que ele criava que se chamava “desequilíbrio”, outra que
ele chamava de “bolha”, que era como se você estivesse sempre dentro da água, quer dizer, a
ideia de que o princípio de tudo é na água, o útero das coisas todas é na água. Ele queria que
o espetáculo fosse muito visível, mas que a sensação do espetáculo fosse de uma submersão,
aquática, inclusive na voz. Foi um trabalho muito bacana. Foi muito legal ter começado por
isso. A gente passava às vezes oito horas por dia fazendo isso. Aí comecei a me interessar
92
muito por literatura de teatro. Antunes também aplicava. Comecei a ler muita teoria e textos
de Kazuo Ono, de butoh, que é o encontro da arte mais milenar do teatro japonês com o
expressionismo alemão, e que acontece logo ali pela Segunda Guerra. Daí que surge o
butoh, desse grito expressionista com a tradição mais antiga. Aí comecei a ler muito. Eu
sempre li muito desde criança, sempre fui um leitor muito voraz. E comecei a gostar de ler
essas coisas de teatro. Eu nunca fui um leitor muito voraz de coisas de teatro. Se você me
perguntar sobre essas coisas, eu vou fracassar. Artaud é uma literatura que eu gosto porque é
mais que teoria, é literatura, é poesia, é visceral. Stanislavski eu li sofrendo depois na Escola
de Arte Dramática. Então, antes de estrear, o Antunes me tira do CPT. Ele me passa pro
CPTzinho. Ele me disse que eu era muito novo. Ele não queria ainda que eu estreasse, que
eu fizesse carreira profissional, que eu fizesse turnê, nem nada, ele queria que eu continuasse
estudando. Isso acabou comigo. Eu fiquei humilhado, porque eu me dediquei muito, eu
larguei uma faculdade. Mas isso pegou em algum lugar meu que foi saudável. Eu poderia ter
desistido de ser ator. Poderia ter voltado pra minha faculdade, que estava trancada. Poderia
ter simplesmente voltado e dito “não deu”. Mas não, eu disse “não é possível”. Foi um
momento duro. Eu não sei se ele tem consciência do que ele fez comigo - o Antunes -, mas
ele me colocou como ator de verdade quando ele me tirou. Acho que ele me fez um bem
maior do que se eu estreasse. Ele me jogou no mundo. Então eu fui pra Europa e passei um
ano lá cantando na noite. Fui pra estudar, fazer um curso de teatro, mas eu tava muito
deprimido com essa história toda. Aí conheci um músico belga lá que manjava pra caramba
de MPB, e ele me convidou pra cantar pra ele na noite. Então a gente cantava em Bruxelas, e
depois a gente começou a cantar em Paris. E quando eu vi, eu tava de novo no palco,
cantando. Voltei e prestei vestibular pra Escola de Arte Dramática da USP. Nesse momento,
a Cibele Forjaz tava montando “Woyzeck”, dentro de uma oficina que se chamava Oswald
de Andrade. Ela ia ter uma certa grana e podia ter um elenco de umas vinte pessoas jovens, e
teria que concluir em um espetáculo. A gente estreou nos Porões no Cineclube Elétrico, em
1990. Ensaiamos bastante e fizemos uma temporada de dois meses. Foi a primeira vez que
entrei em cartaz na vida. Era um trabalho bem bonito, a Cibele dirigia, o Antônio Araújo
fazia a adaptação, e a gente se conheceu ali, enfim, pessoas muito bacanas de teatro, e já
tinha ali pessoas que depois se tornaram meus grandes companheiros de muitos trabalhos. O
Guilherme Bonfanti, que é um dos maiores iluminadores de São Paulo. Ali já tava todo
mundo. Aí fui pra EAD e comecei a estudar. Aí de uma maneira diferente do CPT, uma
maneira mais acadêmica mesmo: aula de corpo, aula de voz, história, filosofia do teatro,
93
improvisações, enfim, aluno de universidade. Fiquei dois anos na EAD. Nesse período não
aconteceu muita coisa, mas sempre me chamavam pra fazer alguma coisa. O Luís
Damasceno, que é um super ator de São Paulo, quando eu entrei na EAD ele tinha
conseguido um espaço em São Paulo pra apresentar uma peça do Bergman, e um ator dele
teve que viajar. Aí ele tinha visto minhas provas de admissão. Aí já comecei a trabalhar. Fiz
maquiagem de espetáculos, inclusive da Mariana Muniz, porque fui artista plástico, e eu me
dava bem nisso. A Johana Albuquerque e o Eduardo Bonito me convidaram pra maquiar
uma montagem de “As Troianas” pra eles. Tudo montagem profissional, e eu ia fazendo.
Enfim, tava estudando normalmente quando o Antônio Araújo me ligou dizendo que ele iria
montar “O Paraíso Perdido” dentro de uma Igreja, com um processo longo de ensaios, que
era uma pesquisa sobre as leis da física e a queda dos anjos. Então era um trabalho todo
sobre gravidade. Era um teatro-dança com poemas. Tinha muita música, então a gente
cantava muito. A voz do ator ainda não era uma preocupação. A gente cantava muito, e se
preparava pra isso. Era um espetáculo de teatro-dança que foi muito forte em São Paulo. O
teatro-dança foi uma coisa muito forte em São Paulo nos anos 80 e começo dos 90. Os atores
que a gente admirava eram atores de teatro-dança. Os atores do Ulysses Cruz, a própria
Mariana Muniz. Tinha uma ênfase nisso no teatro paulistano nessa época. Os atores falavam
muito mal. Eu reparei isso e me preocupei com isso. Mesmo quando eles falavam, eles
“cantavam”. Eles tinham pessoas especializadas em dividir os textos como canção. Eu me
lembro que antes de entrar no Teatro da Vertigem, a Johana Albuquerque chamou eu, a
Graziela Moretto, a Luciana Botelho e o Rodrigo Lopez, nós quatro, pra montar um
espetáculo do James Joyce, é a única peça que o Joyce escreveu, mas é pouquíssimo
conhecida. E a coisa do teatro-dança era tão forte que a gente foi transformando tanto isso,
que o trabalho foi tomando outros rumos e se chamava “Retrato de Nora Quando Joyce”. Aí
a gente tomou um golpe de uma produtora e não estreamos. Mas foi um bom estudo, porque
eu li o James Joyce todo. Eu tenho um material que eu guardo até hoje dos meus estudos,
dos desenhos que eu fiz pro espetáculo, das fotos que a gente fez antes de estrear. A gente
tava na boca da estreia e a mulher desapareceu. Foi-se. Aí eu comecei a ensaiar “O Paraíso
Perdido”, e eu tranquei a EAD, que era o primeiro espetáculo do Teatro da Vertigem.
Estreamos. O espetáculo foi um evento. Era um espetáculo extremamente ligado àquele
momento do teatro-dança. Nós quase não tínhamos fala como ator. Nós cantávamos, nós
declamávamos, nós tínhamos um trabalho corporal muito poderoso, cada um ao seu modo,
94
eu muito com o trabalho do butoh, que pode ser comparada à visceralidade artaudiana, e
cada um com seus interesses, gente que gostava de circo...
Daniel - E era um elenco grande...
Matheus - Sim, muitos músicos em cena. Era um espetáculo! Luz do Guilherme Bonfanti na
Igreja Santa Efigênia, no centro, toda iluminada. E teve todo o bafafá dos protestos que foi
pra nós uma mídia que a gente não queria, mas que nos fez virar o sucesso da temporada. O
espetáculo era muito bonito mesmo. Aquela igreja iluminada daquele jeito revelava uma
outra coisa. Eu acabei protagonizando o espetáculo. Eu era Satanás, o próprio anjo caído,
Lúcifer, e, durante o processo, eu descobri que o nome Lúcifer significava “aquele que
carrega a luz”. Eu e Guilherme Bonfanti criamos uma luz pra mim, a partir de uma ideia
minha que surgiu em um workshop. Aí o Guilherme conseguiu dar um jeito bem bonito
nisso. Eu carregava minha própria luz e por vezes eu era fonte de luz pra outro ator. Era
muito bom esse processo de construção longo, e depois do Vertigem nunca mais eu vivi isso.
Tenho muita saudade disso. Desse teatro feito de pesquisa muito profunda, de muito
depoimento dos atores, de um texto aberto, muito criado - depois que se sabe muito bem o
tema – nos depoimentos dos atores, não só gerando textos, mas contribuições de luz,
cenários e coisas que você propõe e que vão sendo incorporadas. Quando a gente entrou na
igreja é que o espetáculo foi se desenhando. “Onde você quer fazer essa cena?” “Dentro
dessa igreja onde você acha que essa cena pode acontecer?”. Aí a gente ia criando e o
Antônio depois ia determinando, escolhendo. Quase tudo que está ali é proposto por algum
dos criadores. O que é muito bacana. Voltei pra EAD. Como era feito dentro de igrejas era
bem difícil de viajar. Se não me engano a gente ficou um ano inteiro em cartaz na igreja.
Fizemos o Festival de Curitiba, na Catedral de Curitiba. Inesquecível. É engraçado que na
juventude a gente tinha uma coragem com as coisas que fazia com o corpo. Esses dias meu
psicanalista me disse: “Mas tem que perder essa coragem mesmo, senão você se machuca”.
Você não mantém essa destreza. Essa destreza faz parte de um momento. Eu me lembro que
no final do espetáculo o anjo tirava as asas lá do alto do órgão. Em Curitiba isso dava uns 14
metros. Era uma corda amarrada. Ele jogava as asas e dizia: “Já não sou anjo, eu sou uma
pessoa”. E Satanás se transformava numa pessoa. As asas caíam. Ele se pendurava na corda.
Não tinha rede de segurança, não tinha nada. Ele se pendurava na corda e eu ia girando, e as
pessoas cantando, era muito bonito. Imagina a força e a falta de medo que eu tinha. E
quando eu chegava perto do chão e sentia uma coisa até tocar o chão. Olha só, eu fico todo
95
arrepiado (risos). Enfim, voltei pra escola, pra fazer o quinto semestre. Aí a gente montou no
TBC uma peça do Durrenmatt, “Seria Cômico se não fosse Trágico”, que era uma paródia,
uma releitura de uma peça de Bergman. Ficamos em cartaz no TBC. Cursei esse semestre
inteiro e então o Antônio veio: “Pessoal eu tenho a nova peça: É O Livro de Jó”. E nunca
mais voltei pra escola.
Daniel - E foram quatro anos em cartaz...
Matheus - Quatro anos. Mas depois que eu saí, espetáculo foi pra Rússia, com o Roberto
Audio fazendo o meu papel. Mas acho que depois ele nunca voltou em cartaz.
Daniel - Teve um projeto depois em que foram apresentados todos os espetáculos da
Trilogia Bíblica, não?
Matheus - Isso. Até eu e a Mariana Lima voltamos para fazer umas duas ou três sessões, que
foi meio uma homenagem pra todas as pessoas que fizeram parte do Vertigem. Mas o fato é
que o “Jó” a gente ensaiou por muito tempo. A gente ensaiou um ano e meio, eu acho. E a
minha vida tinha virado uma loucura. Eu tinha saído da escola. A gente não conseguia fazer.
O “Jó” era um espetáculo difícil de fazer. A gente não conseguia hospital, a gente não
conseguia dinheiro. Foi aquele tipo de coisa conquistada na raça. Era lindo. O que a gente
tinha nas mãos era uma preciosidade. Não dava pra abrir mão daquilo. E o mesmo esquema
do “Paraíso...”, muito tempo de ensaio, muito depoimento pessoal, mas agora já com um
texto de base, que era o poema bíblico. Luís Alberto de Abreu veio fazer a dramaturgia e os
atores iam contribuindo. Eu trabalhei bastante também com o Tó [Antônio Araújo] na
dramaturgia, porque eu acabei sendo o “Jó”. Mexemos bastante no texto do Luis. Ele
gostava que eu mexesse. Eu não mexia aleatoriamente. E aí teve essa coisa tão bonita:
“Como se veste o Jó? Qual é a roupa do Jó?”. E mais uma vez, a resposta veio num
workshop. Eu me banhei em sangue e apresentei. Aí o Tó me perguntou: “Por que o
sangue?”. Eu disse : “Porque a roupa dele é o sangue dele, ele tá do avesso! Ele tá doente.
Ele não está nu”. Esse espetáculo ficou muito tempo em cartaz e a gente viajou muito com
ele. Foram momentos bem fortes. E teve uma coisa que eu não sei muito bem se foi pro bem
ou pro mal, mas acho que muito cedo era um trabalho “auge” de um ator. O Tó se
preocupava com isso. Ele teve umas conversas comigo sobre isso. Ele dizia: “Eu to achando
muito cedo pra estar acontecendo tudo isso com você”. Eu tinha 27 anos, e ganhei todos os
prêmios daquele ano, e comecei a ser chamado pra trabalhar em todos os lugares, todas as
96
mídias. E obviamente isso tem várias consequências. Primeiro que o grupo se recente, já que
você está dentro de um grupo. Já tinha acontecido o problema de eu ter protagonizado dois
espetáculos. Isso era uma questão pro grupo. E segundo, que eu comecei a ter compromissos
fora do Teatro da Vertigem. Eu já estava fazendo, durante o trabalho do Vertigem, uns
pequenos filmetes pra MTV, que eram bem bacanas, que eu gostava de fazer e que eu tinha
que fazer, porque eu tinha que viver. Eu trabalhava em coisas pequenas. Projetos
“educacionais”. O Sergio Vignati montou um espetáculo meio educativo, sobre Aids, e eu
era meio um Cazuza, eu cantava. Tinham outros atores da Vertigem nesse espetáculo. Mas
era de tarde, ali no Teatro Silvio Santos. Ele vendia pra escolas e a gente se apresentava
durante a semana de tarde. Aconteciam trabalhos assim. Mas na época do “Jó” começaram a
acontecer essas coisas: você vai no Jô Soares, e depois, quando você vê, você está falando
com a Marília Gabriela, você tá falando com a Folha de São Paulo, enfim. Aí nesse período
nós ainda estávamos em cartaz com o “Jó”, meio que terminando a temporada. E o Bruno
Barreto me chamou pra ser o Jonas, do “O que é isso Companheiro” (1997), e eu topei. Não
tinha como não topar. Era o Bruno, que tinha um cinema que pra mim é irregular mas que
tem momentos maravilhosos, que tem momentos lindos na cinematografia dele. Era uma
aula aquilo pra mim. Era um cinema careta, entre aspas, no sentido da produção. Eram os
Barreto. Era um elenco estelar. Eu saquei que eu ia aprender muita coisa de cinema. Me
grudei com a Nanda Torres. Fiquei bem amigo dela. E aí começou a complicar a minha vida
no Vertigem, porque eu comecei a ter um compromisso muito sério. Eu me lembro de uma
situação muito complicada. A gente foi com o “Jó” pra Bogotá, e o espetáculo fez muito
sucesso lá. Era muito legal estar em Bogotá mostrando o “Jó”. Então, como já estava no
cronograma, nas filmagens do “O que é Isso companheiro?” isso já estava combinado, mas
eu tinha uma data pra voltar. E o Festival convidou a gente pra fazer mais algumas sessões
em Bogotá. E foi a primeira vez que eu entendi que eu teria que sair do Vertigem. Eles
queriam ficar, era mais dinheiro, era mais tempo em cartaz, mas eu tinha um contrato, eu
tinha um filme pra fazer, e eu queria fazer o filme, a peça eu já tinha feito durante vários
anos, enfim, eu tinha que ir. Aí comecei a aprender a fazer cinema. Comecei a entender o
que é uma câmera, um set de cinema. O que é uma atuação para cinema. Que pra mim - e
isso talvez seja interessante pra você -, muita gente se espanta quando eu digo que o “O que
é Isso Companheiro?” é meu primeiro filme. As pessoas me perguntavam se eu não tinha
sofrido com o contraste entre a “dilatação” do corpo do teatro – não gosto desse termo,
“dilatação” – e a “contenção” no cinema, porque a câmera vem até você. E no teatro, os
97
espectadores também podem não vir até você, mas existe algo de você que tem que se
propagar naquele espaço. Mas eu não sou um ator formado no palco italiano, e isso é
importante, porque eu não tenho essa atuação, nem tive no palco italiano depois. Quando
estive no palco italiano em outras peças que eu fiz eu percebo que eu não atuo como uma
ator que esteja no palco italiano normalmente, porque eu fui formado para trabalhar em
locação. O “Woyzeck” da Cibele Forjaz a gente apresentava numa garagem. As cenas
podiam acontecer atrás dos espectadores, inclusive. No “Paraíso Perdido” os espectadores
iam seguindo o Anjo Caído, subindo as escadarias, indo até o órgão, quer dizer, você está
atuando pra uma pessoa que está aqui perto de você, e pra uma pessoa que está a seis metros
pra lá, sendo que tem gente espalhada, tem gente colada em você como uma câmera de
cinema e tem gente ali atrás, como se fosse teatro, isso quer dizer que eu não tive essa
dificuldade de entender, inclusive a distância de câmera e o tamanho de lente. Eu entendia a
proximidade que o espectador - que no caso é a lente da câmera - estava de mim. Isso mais
ainda do que no “Paraíso Perdido”, no “Jó”, que eu estava mais velho, eu percebia
claramente, que eu tinha que atuar pra quem estivesse lá atrás e ser absolutamente honesto –
fisicamente e emocionalmente – com quem estivesse a um palmo de mim. Eu tinha que
declamar um poema bíblico de um jeito que a pessoa que estivesse ao meu lado não se
sentisse ferida. Tinha que ser uma verdade. Mas, tinha que ter uma expansão para que quem
estivesse longe também tivesse o mesmo sentimento. Então, lágrimas, ranho, suores,
tremores, dos grandes aos pequenos, tudo tinha de ser incorporado para que todos tivessem a
mesma experiência. Quando eu cheguei no “O que é Isso Companheiro?” eu percebi que
isso era totalmente aplicável, e que eu fui um ator criado na locação. Eu nunca me espantei.
A única coisa que me espantou foi o barulho da câmera. Era uma coisa meio de culpa cristã
minha. Eu sempre ouvia muito na LC Barreto que o negativo é muito caro, então eu ouvia os
pais dele dizendo “Não filma tantas vezes a cena”. E eu tava estreando. Então eu tinha medo
de que eu fosse ser o cara que ia fazer gastar mais. Coisas de menino católico. Culpa mesmo.
Eu ficava ouvindo aquilo. Até hoje eu ouço, mas hoje é uma coisa macia. Naquela época era
como uma urgência: “Não erra!”. É um trabalho no qual eu estive tenso neste sentido. Mas
muito realista, de uma certa forma, e contido, o que eu acho interessante, porque a tendência
num primeiro trabalho é você querer fazer demais, né? E eu tava bem contido. E a tensão
que eu tinha servia praquele personagem. A tensão de estar estreando servia. E a partir daí a
história é o que é. Deixa ver o que veio depois...
98
Daniel - “Anahy de las misiones” (1997) foi o teu próximo filme?
Matheus - Isso, do “Companheiro” eu fui direto pro “Anahy de las Missiones”, por causa de
uma produtora de elenco que era gaúcha, que já me indicou, ou seja, eu saí do
“Companheiro’ e já tinha outro longa pra fazer.
Daniel - E o teu contato pro “O que é Isso companheiro?” foi diretamente com o
Bruno? Ele que te viu e te convidou?
Matheus - A Nanda Torres falou pro Bruno: “Tem um cara em São Paulo fazendo um
trabalho chamado ‘O Livro de Jó’. Vai lá ver”. Então, depois eu fiz o “Anahy de las
Missiones”, e o Jorge Furtado me convidou pra fazer um “Comédia da Vida Privada”, que
eram programas de um episódio só, cada um feito por um diretor, com acabamento muito
bacana, diretores bacanas, um projeto do núcleo do Guel [Arraes], né? Ele me chamou pra
fazer um episódio chamado “Anchietanos”, que era pra ser um longa, aí não deu certo e ele
conseguiu fazer uma adaptação pra ser um dos episódios da série. Então, entrei na TV, dessa
maneira muito legal: fui pro Sul com o Jorge. Tinha Andréa Beltrão, Murilo Benício, Bruno
Garcia. Era um elenco bonito! Tinha Luís Fernando Guimarães, o Marco Nanini. Fiz esse
trabalho como se fosse um média-metragem, entrei na TV dessa maneira macia. Lá no sul,
não era no PROJAC, não era na Rede Globo. Uma coisa lá na locação. O Jorge Furtado é
um príncipe! Acabei um “Comédias da Vida Privada”, e na outra semana entrei em outro
episódio. Foi bem louco! Parece que tem uma hora que a vida corrobora com tudo. A gente
fala em sorte, claro que existe o acaso. Eu não acredito em destino. Então, eu acredito no
acaso, e acredito que no que você vai fazendo as coisas, vai indo pra algum lugar. E às vezes
acontece essa faísca! Você trabalha numa certa direção, e, numa hora, as cartas do baralho
vão levando às outras. E nesse momento aconteceu isso. Obviamente não dava mais pra
fazer o “Jó”. Eles estavam indo pra Rússia. Aí o João Falcão me chamou pra fazer um outro
episódio do “Comédias”, que se chamava “A Voz do Coração”, de novo com Andréa
Beltrão, Murilo Benício, bem engraçado isso tudo. Conheci a Drica Moraes lá, que era meu
par romântico. Aliás, eu sempre sou par romântico da Drica. Voltei pro Teatro da Vertigem.
O “Anahy de las missiones” eu fiz em cartaz. Eu ficava de quinta a domingo em cartaz com
o “Jó”, e domingo de madrugada pegava um vôo e filmava naqueles rincões do sul segunda,
terça, quarta, e na quinta de tarde eu voltava. Chegava direto no espetáculo. Toda semana.
Liga, desliga, liga, desliga... O bom é que o “Jó” me treinava, porque eu chegava no filme
totalmente inspirado e fisicamente muito forte, e artisticamente antenado, porque o
99
espetáculo era muito forte, um ritual, né? Bom, só pra continuar: “Hilda Furacão”. O Wolf
Maya foi ver o “Jó” nessa parte final, e me deu o Cintura Fina, meu personagem na
minissérie, e eu fui. Ainda fazia o “Jó”. Eu vinha pro Rio fazer o “Hilda Furacão”, voltava
pro “Jó”, ia e vinha, ia e vinha... a mesma coisa. Até que a Fernanda Montenegro e a
Fernanda Torres me chamaram pra fazer “Da Gaivota”, dirigido pela Daniela Thomas. E foi
o momento em que eu disse: “Eu tenho que sair do ‘Livro de Jó’. Eu to há quase cinco anos
aqui. E essa é uma coisa legal. É a Fernandona! É um Tchékhov. Eu acho que esse é um
momento legal”. Aí eu me arrependi um pouco, porque entrei num esquema de produção
“profissa”, que é um esquema que eu não quero pra minha vida. Que eu não acredito, que eu
não confio, acho desagradável. O tipo de produção, um desenho de produção que não é o
meu. Mas era pra fazer um Tchékhov com Fernandona, com Abujamra, com Nelson Dantas.
Ali eu era contratado por um produtor, você ganha um percentual específico, ou um fixo.
Você vira um funcionário de alguém. Eu nunca tinha vivido isso.
O ator na montagem de “Da Gaivota” 86
Daniel - Mas o que te incomodava era isso apenas ou o tipo de processo criativo
também?
Matheus - O processo também, que era uma coisa assim: dois meses de ensaio, trabalho de
mesa, depois começa a ficar em pé. Não existia nenhum tipo de exploração. A não ser a
exploração genial daqueles artistas. E a Daniela é uma pessoa super inteligente, super bem
informada. O Tchékhov é uma maravilha, e ali eu conheci Tchékhov pra caralho! Mas é isso:
ensaia dois meses, estréia dia tal no teatro tal. Atualmente eu vou fazer isso. Eu vou fazer um
86
Imagem dispoível em: http://redecultura.ning.com/profile/ElianaNeri
100
monólogo que eu sei quanto tempo eu vou ensaiar, e que eu sei que eu tenho uma data no
teatro tal. Mas eu vou construir o texto, eu vou improvisar, as músicas vão ser construídas,
eu tenho tempo! Eu tenho quatro meses pra ensaiar. Diferente dessa coisa do desenho de
produção, mas que foi interessante de conhecer. Teve esse lado todo acachapante, mas teve
um lado bom, é claro. E teve também um certo luto de sair do Vertigem. E eu fazia o
Trepliev na “Gaivota”. De novo não acredito em destino: o Trepliev é um personagem em
luto. Ele se mata no fim da peça, e eu estava de luto por sair do Vertigem. O pessoal no
Vertigem estava chateado comigo, porque eu tinha – acho que eles pensavam isso – vendido
minha alma. Mas quem tava enlutado era eu. Eu construí o grupo com eles. Eu fui o Jó, o
Satanás, eu fui muito parceiro nesse sentido da criação do Vertigem. Todos nós, mas eu,
especial, tive uma coisa muito violenta, artisticamente, no meu contato com o Tó. A gente
teve uma empatia muito violenta. Aí foi. Aí já tava fazendo cinema, já tinha feito “Central
do Brasil” (1998), “O Primeiro Dia” (1999), dois seguidos com o Walter [Salles Jr.]. A
Nanda me chamou muito pro cinema. Ela me indicou pro Bruno. O Walter, quando me viu
no “Companheiro” me chamou pro “Central” já pensando no “Primeiro Dia”. Ela queria
trabalhar comigo no “Central” pra gente estar “azeitado” pro “Primeiro Dia”. E as coisas
foram indo. O Guel me chamou pra fazer o João Grilo no “O Auto da Compadecida” (2000),
que foi o meu maior presente dentro da televisão. É que é difícil escolher um personagem. O
Cintura fina eu amava, mas era como uma novela. Ali não. A gente foi fazendo uma coisa
muito especial. Eu tive bastante consciência disso quando a gente começou a filmar, de que
era realmente o encontro maravilhoso de um texto incrível, com um diretor muito
organizado e muito ciente do que ele queria, e com um elenco de talentos muito grandes. A
gente não imaginava que o “Auto” fosse ser o que é, mas com certeza eu sabia que ia ser
uma coisa muito bonita. O Selton! O Selton desabrocha ali. É a hora que o Selton, que
sempre foi talentosíssimo, diz “Não sou só isso! Eu sou ator pra caralho!”.
Daniel - Você comentava que o fato de ter sido formado por um teatro que não era o
tradicional te ajudou no trabalho com o cinema, ou seja, do quanto a tua formação no
teatro te amparou no cinema. Como o cinema contribuiu nos trabalhos que vocês fez
em teatro depois?
Matheus - Não muito. Talvez quase nada. No meu caso. O que não deprecia o cinema em
nada. Claro que toda experiência vai sendo acumulada, e cada vez você vai descobrindo
coisas e potencialidades que você não sabia que você tinha, e regiões da tua alma que você
101
não sabia que tinha. Mas, o teatro precisa do teu corpo inteiro, e o cinema nem sempre, ou
nem tanto, ou nem de maneira tão forte. É muito uma zona interior sua que a câmera capta.
Como um olhar triste de alguém em uma festa numa fotografia. Você olha para o ator e ele é
mais forte que em outros lugares. E ele só baixou os olhos. Claro existe uma técnica de
atuação e cada um faz de uma forma. Tem pessoas que quase não fazem nada, e que deixam
você colocar algo ali por elas. Grandes atores fazem isso. Marlon Brando faz isso. Nelson
Xavier faz isso. Você joga e não ele. Eu não sou assim. Eu proponho. Nas poucas vezes que
eu fiquei mais “em branco” foram experiências bem fortes pra mim, porque eu sempre
desconfiava de que isso fosse possível. Eu acho que o teatro mais dá pro cinema do que o
cinema pro teatro. Essa é a minha sensação. Eu posso estar sendo um pouco cruel, ou burro.
Eu posso estar sendo tacanha. Mas eu acho que eu devo ser perdoado porque a maior parte
da minha energia como ator, depois de “O Livro de Jó”, está colocada no cinema. Eu sou um
ator muito do cinema, mas eu acho que o cinema e a televisão devolvem para o teatro algo
do qual ele não precisa. Enquanto que o teatro dá pra eles uma essencialidade que às vezes
eles não conseguem ter. Acho que o teatro consegue existir numa essencialidade bárbara,
primal, de ritual. E o cinema – não vou nem falar de TV, porque ainda é uma outra coisa – é
uma arte do encontro da fotografia, com a direção, a edição, o ator, e tudo o mais, enquanto
o teatro pode acontecer sem nada disso. Só eu e você aqui. Eu posso fazer uma puta peça pra
você aqui. Acho que as coisas que o teatro importou do cinema pra ele nem são tão
importantes assim. Acontecem espetáculos lindos. A luz ficou incrível, tem vídeo-
instalações, tem projeções. Mas o teatro não precisa necessariamente disso. Enquanto que
aquilo que é mais essencial e visceral quando acontece no cinema é um encanto. Talvez
nesse sentido o teatro seja muito mais generoso que o cinema, e obviamente muito mais
generoso que a televisão. É quase que uma gradação de generosidade (risos). É verdade, né?
Acredito que o teatro seja mais generoso que eles todos sim. Mas é tão difícil esse
comparativo entre eles. E quando você tá na posição de ator é mais complexo ainda, porque
de alguma maneira o teu papel é o mesmo. É lugar comum isso, a gente repete e repete e
repete, mas é verdade: é no teatro que acontece o encontro mais ritualístico do ator com o
público. O que não é demérito pras outras linguagens. Tem atuações em cinema que te
transtornam pra sempre. Fico lembrando da Vivien Leigh fazendo Blanche Dubois. Nunca vi
uma atriz de teatro fazer nada parecido com aquilo. O que me deixou transtornado tanto
quanto aquilo no teatro? Talvez Marilena Ansaldi, Rubens Correia... Nem consigo me
lembrar...
102
Daniel - Você comentava sobre não ter encontrado tanta dificuldade na passagem do
trabalho de ator no teatro para o cinema. De 1997 para cá você fez uns 30 longas. O
que ainda é difícil no cinema?
Matheus - A concentração. É você estar no estado certo na hora do “ação”. Acho que isso é o
mais difícil. Porque em cada set isso deve acontecer de uma forma. E porque não adianta
você querer impor a sua forma, sabe? Entrar em um trailer e ficar fazendo “ommmmm”.
Cada set é de um jeito. Cada maquiador é de um jeito. Cada assistente de direção fala com
você de um jeito. Tem sets silenciosos, tem sets barulhentos. Tem filmes delicados, tem
filmes agressivos, tem filmes que você faz “na curra” e ficam ótimos. E você nem lembra
como fez aquela cena. Você entrou na atmosfera daquilo e fez. E isso sempre, pra mim, é o
que é o mais difícil. E tem mais uma coisa: quanto mais trabalhos você faz, mais difícil é a
crença no personagem, para o espectador. Isso é um desafio. Quanto mais conhecido, quanto
mais o público te vê em personagens diferentes, mais o público vai conhecendo você. Vai
tirando aquilo que não é você e vai ficando você. Então, tira do Cintura Fina aquilo que não
sou eu, tem eu. Tira do Grilo aquilo que não sou eu, tem eu. Do Jó, a mesma coisa. Em um
ator muito assistido, a pessoa dele está exposta. Você convencer o público de que você é
outro é muito mais difícil. Depende também do talento do diretor pra isso, e claro, da tua
concentração máxima pra que o personagem possa existir de alguma maneira, apesar de ele
ser você sempre. Ele tem que existir enquanto “ele”. E como convencer as pessoas, uma vez
que elas já sabem quem é você? Elas já te viram muito. Elas já tiraram suas próprias
conclusões sobre você. Elas já te viram dando entrevista, já te viram falando. Elas vão
fazendo isso: “Olha ele falando. Olha o que é dele e o que é do personagem”. Então, acho
que essa é a minha batalha: estar no personagem, estar com o personagem, e evitar que o
meu mais óbvio apareça. Então quando eu assisto os meus filmes eu sofro muito, vendo
onde eu escapei obviamente, apesar de saber que aquilo sou eu. Tem atores que preferem o
contrário: “Serei eu e vocês verão o personagem”. Mas eu ainda estou nessa queda de braço.
Eu gosto que o personagem apareça. E acho que até aqui tá dando. Ainda é o Carreirinha, o
Dirceu Borboleta, enfim, ainda não cheguei nesse ponto, talvez um dia eu chegue, e talvez
fique muito feliz em chegar nesse ponto: “A circunstâncias estão colocadas e vocês vão
projetar em mim”. Talvez seja muito gostoso de se trabalhar assim. Talvez seja a maneira
mais relaxada e entregue de se trabalhar. Acho que eu fui me caracterizando por gostar
dessas minúcias de construção. Ao mesmo tempo acho que os personagens têm verdade. Eu
vejo e sei quanto eu to mentindo. Mas é aquela coisa: “o poeta é um fingidor, finge tão
103
completamente que até chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente”. É isso: finja a dor
que você sente. Você nunca está alterado. Se falarem “corta”, você pára. Eu sempre falava
isso, nas poucas vezes que eu dei workshop: “Não adianta você fazer a cena mais linda fora
da luz”. Você está no espetáculo e tem que fazer uma cena na luz a pino. Você fez
maravilhoso, mas você estava a um palco do pino. Só viram seus braços. Você está fazendo,
você está sentindo, você está na sensibilidade daquela emoção, mas você sabe onde você
está, e que você tem que vir pra cá. Essa dicotomia é bonita. É um terceiro olho. É como se
algo te “marionetasse”. Você é o marionetista, mas a marionete é você. Você vai ter que
parar pra trilha sonora entrar e depois você continua. Não adianta você estar tomado. Aí a
gente entra em várias discussões que a gente anda tendo nos dias de hoje, sobre essas
atuações de cinema que são “assaltos”, quer dizer, coloca-se o ator num estado e aí vai na
loucura dele e pega a câmera, segue roubando e depois se edita. Eu não sou assim.
Daniel - Se você perguntar pra esse ator o que acabou de fazer ele não vai saber nem te
dizer...
Matheus - Ele não vai saber. Eu não sou assim. Eu quero saber. Eu quero saber onde você
vai estar com a câmera. Eu quero saber que movimento vai ser realizado, que lente você está
usando. Eu quero fazer a cena com você. Eu quero bailar com você. Eu não quero ser
assaltado. Apesar de saber que isso fica lindo. “Cidade de Deus” (2003) foi muito assim. O
processo era esse. E eu me entreguei.
Daniel - No processo de preparação de atores com a Fátima Toledo você estava
envolvido o tempo todo? Foi um trabalho que misturava atores e “não-atores”?
Matheus - Não. Eu estava em muito pouco. Teve todo um processo anterior. Acho que ela
não teve nem tempo de querer brincar comigo (risos). Mas eu entendi o que estava
acontecendo. A gente fez muitos workshops no morro, de “embolação’ de drogas. Eu ficava
com os moleques. Eles me perguntaram se eu queria um camarim separado, e eu obviamente
disse que não, que eu queria fazer o filme como todos estavam fazendo. O Fernando
Meirelles me deu todo o roteiro, e disse: “eu to dando isso pra você e pros outros dois ou
três atores profissionais que tem no filme”. Tinha o Gero Camilo, a Graziela Moretto. Muito
poucos atores. Mas, os meninos não têm o roteiro. Eu disse: “então não me dá o roteiro”. Eu
quero ficar igual a eles. No dia a gente recebia o roteiro, batia um pouco o texto, ensaiava
com a câmera, repetia por outro ângulo, e eu gostei do resultado. Eu acho bom meu trabalho
104
ali. Acho que eu consegui ficar igual a eles. O Fernando tinha medo disso, porque ele tinha
me chamado muitos anos antes do filme. E depois ele me disse: “você virou o João Grilo”.
Aí pensei: “como que eu faço?”. Eu acho que eu consigo “sumir”. E é um trabalho difícil pra
um ator. Estar com eles. E eu acho que deu certo. A gente aprende muito em cada coisa. Lá,
a concentração era estar com eles. Esquece a câmera. Eu não tenho relação com o fotógrafo
do “Cidade de Deus”. Eu sei quem ele é, mas talvez se eu encontrar ele na rua, a feição dele
não me seja familiar. Não foi alguém com quem eu bailei. Foi alguém que me assaltou
quando eu estava fazendo o negócio. Não é como o Walter Carvalho, esses fotógrafos com
quem eu danço. Você faz um bailado com o cara. Você faz um balé. E o Walter adora isso.
Eu e o Walter, quando a gente se encontra pra fazer um filme, a gente fala: “Vai ser o quê?
Valsa, Polka?”. E a gente gosta de dançar, sabe? E eu gosto de saber onde ele tá. Que lente
que ele tá usando. E ele vai me dando essas informações: “olha, o plano tá fechado até aqui,
aí eu vou girar pra cá, e se você quiser fazer alguma coisa aqui e acolá...”. E a gente vai
bailando junto. Isso no “A Febre do Rato” (2011) a gente fez muito, muito mesmo. A gente
bailou. E a gente briga às vezes. O Claudio Assis tem uma coisa, que aconteceu muito no
“Amarelo Manga”(2001), que é uma troca entre os criadores, e que é muito parecida com a
do teatro. O processo não é tão profundo quanto um ensaio do teatro, mas você recebe o
roteiro muito tempo antes. Toda conversa de bar só se fala nisso, e a coisa vai se
engendrando. Você vai conversando e ideias suas vão entrando no trabalho.
Cena de “Amarelo Manga” (2001) 87
87
Imagem disponível em: http://tc.batepapo.uol.com.br/convidados/arquivo/cinema/matheus-nachtergaele-ator-
estreia-dois-filmes-tapete-vermelho-e-arido-movie.jhtm
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Daniel - Nesse processo específico do Amarelo Manga, ou em todos eles?
Matheus - Em todos eles. Em todos os três filmes e cada vez vai ficando mais louco e mais
profundo. O “Baixio das Bestas” (2006) foi uma coisa bem radical porque o Claudio me fez
uma proposta muito maluca. O personagem se chamava Everardo, o líder de um bando de
“agroboys”, um cara maconheiro mais velho que os outros meninos, misógino, um cara
violento com as mulheres. Que não é gay. É misógino mesmo. Ele é um rancor, um homem
com um pouco mais de cultura que os outros e que lidera aquela garotada. É um vândalo.
Um personagem muito triste, e muito difícil. Não necessariamente difícil de compor, mas
difícil de estar com ele, de conviver. Porque tem personagens que é gostoso conviver com
eles. No “Auto da Compadecida”, quando acabou e vieram tirar a roupa do Grilo, eu
comecei a chorar porque nunca mais ia vestir aquela roupa. Chorei que nem criança mesmo:
“Isso é muito estranho, me deixa ficar com essa roupa mais meia horinha!”. Era agradável
de conviver, de estar no lugar daquele personagem. Era bom. O Everardo não. Era o oposto
disso. O pior personagem nesse sentido. Talvez o Trepliev também do “Gaivota”. Quando
acabou temporada foi um alívio. Era uma coisa infernal, um personagem infernal. E o
Everardo também. Era um personagem muito violento. Nada era agradável. Nada que ele
dizia era agradável. E o Claudio tinha combinado umas coisas comigo: que ele tinha um
olhar de um porco, então eu sempre pensava nisso antes de filmar. E o Claudio me dava uma
garrafa de conhaque e falava: “quando você chegar aqui eu começo a rodar” (risos). Foi
doido. Isso pra mim e pro Walter foi bem doido, porque eu não conseguia dançar direito com
ele. No estado que o Claudio queria que eu estivesse eu não conseguia entender o bailado.
Em algumas cenas eu ainda conseguia. Algumas eu guardei isso, porque eu sabia que eu não
podia estar assim. Eu podia machucar alguém. Na cena em que ele curra a Hermilla Guedes,
eu sabia que eu tinha que estar bem ali. Mas na cena com a Dira, a coisa passou do limite.
Era uma cena mais simples até, mas a coisa demorou, era um plano muito longo no final em
que eles estão bebendo, e aí ela chama no palco, e eles tão brincando e depois eles começam
a machucar ela, quebram uma cadeira, e pegam um pedaço de pau, depois estrangulam ela.
Era uma merda. E aí vira pro telão e fica projetado o que tava acontecendo. E a gente foi
fazendo, uma, duas, três, e o conhaque sendo bebido. A que valeu, que foi a última, eu nem
me lembro de ter feito. Eu gosto de como ficou. Mas foi bem louco. No final da cena você
pode reparar que eu não sei por onde sair. A Dira tá no chão desmaiada, eu levanto a calça e
não sei pra onde sair. Realmente bêbado. E agora não. A gente retomou uma coisa mais
delicada. Eu e o Walter vamos dançar de novo. É outra onda.
106
Cena de “Baixio das Bestas” (2007) 88
Daniel - Você vem de uma experiência no Vertigem, que passava sempre por processos
longos, e de grande colaboração entre os criadores, e aí você comenta dessas
experiências em cinema com o Claudio. Além desses trabalhos, você teve outras
experiências com momentos de preparação maior?
Matheus - Sim, depois no “Woyzeck”, que depois a gente montou com a Cibele [Forjaz,
diretora], com Marcélia Cartaxo em cena, e que é uma peça que ficou no meu coração pra
sempre. O Woyzeck é o meu Hamlet. Eu nunca vou montar “Hamlet”, porque eu já tenho o
meu. Eu perguntei à Cibele se ela tinha vontade de retomar e aí a gente fez em 2004 ou
2005.
Daniel - Mas em cinema você teve outras experiências como essa?
Matheus - É bem difícil isso em cinema. Em geral você é convidado e as coisas já estão mais
formadas, e aí você já entra na parte dos ensaios. Acho que com o Claudio acontece isso
porque já é característica dele, porque todas as pessoas que trabalham com ele convivem
com ele, então todo mundo já entende isso e vai propondo coisas. Não vou dizer que eu
escrevo o roteiro com o Claudio, mas você vai conversando, entendendo, então quando você
chega lá você sabe o que está acontecendo. E a gente é amigo íntimo. No dia que eu conheci
o Claudio ele me convidou pra fazer “Amarelo Manga”. Conheci ele em Recife no Festival.
Ele tava com o Beto Brant e disse “Vou levar o Beto lá e volto aqui pra conversar um
88
Imagem disponível em: http://tecnologia-e-cinema.com/2008/04/critica-baixio-das-bestas/
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negócio com você”. E eu fiquei pensando: “Que cara engraçado, gostei dele”. Eu esperei o
cara, e quando ele voltou ele me contou um pouco do “Amarelo Manga”, me contou um
pouco a história dele, a gente já tomou um porre, ele falou do roteiro, e disse que tinha um
personagem que era uma bichinha de hotel chamada Dunga, e disse : “preciso botar esse
projeto na Lei e preciso de um nome forte pro filme, posso botar o seu?”. Aí topei, e anos
depois ele me ligou e disse: “deu certo, borá fazer?”. Quer dizer, a gente já tava vinculado.
Eu já sabia o que era. Mas, por exemplo, com o Guel eu tenho um tipo de parceira
interessante também, mesmo sendo projetos idealizados por ele, que é o tal do Núcleo do
Guel, que é aquela gente que faz coisas super interessantes, porque o Guel é um desses
“oásis” dentro da televisão. E as coisas legais que eu fiz na televisão tem muito a ver com o
Guel, e a gente é muito próximo. Mas é diferente. Quando eu chego, o texto já tá decupado,
e ele filma como ele decupa. Ao contrário do Claudio que é uma coisa “vâmo na hora”. Tá
todo mundo muito conceituado, muito sabendo o que é, mas a cena é decidida na hora. O
fato de nos filmes do Claudio, e até no meu filme [“A Festa da Menina Morta”, (2008), o
plano sequência ser o preferido, tem uma questão estética nisso, porque muitas vezes se faz
cortes desnecessários. Porque também nem sempre você tem dinheiro, né? Tem isso
também. Nos filmes do Claudio você grava duas ou três cenas num dia, e tudo é plano
sequência. Não dá pra fazer 28 planos. Não tem dinheiro pra isso. O Guel faz.
Daniel - E é curioso como isso marca características muito distintas pra cada tipo de
produção. Você pega o “Auto” e o “Amarelo Manga” e vê que são dois filmes bem
marcantes feitos de formas muito diferentes.
Matheus - E são dois filmes incríveis. Dentro da produção mais recente, são dois filmes que
marcam uma brasilidade de uma maneira que me agrada. São opostos, mas os dois
conseguem cada um da sua maneira. Engraçado: são dois pernambucanos.
Daniel - Além do “Cidade de Deus”, você fez outros filmes em que trabalhou com
preparadores de ator?
Matheus - Não. E nunca tive nada contra, e deve ser muito bom pra vários processos, mas eu
nunca estive em nenhum deles. Sempre ensaiei com o diretor. Eu quando dirigi fiz questão
de dirigir meus atores. Eu achei que seria muito estranho delegar isso a uma outra pessoa.
Me parecia uma parte fundamental do meu trabalho. Obviamente, a grande maioria dos
diretores não preparam os atores. Eu sei que o Luis Fernando Carvalho faz isso. O Claudio
108
Assis faz isso, à sua forma faz isso, porque nunca é uma coisa organizada numa sala de
ensaio. O Walter Salles faz isso. A gente lê, senta, conversa. Eu acho fundamental preparar
os atores assim como você conceitua sua fotografia, por exemplo. Acho que a quantidade de
horas que você passa com eles tem que ser um pouco equivalente. Lógico que quando o
fotógrafo chega na locação o jogo vira um pouco, porque o fotógrafo é o teu olho. Eu, como
sou ator, dirigindo o “A Festa da Menina Morta” tive pelo menos um mês antes com os
atores, com todo mundo lá, e ralei muito com eles, com a arte e com o figurino, pra quando
o Lula – diretor de fotografia – chegasse, eu pudesse ficar mais tempo com ele.
Daniel - E que aspectos do teu trabalho como ator foram importantes pra depois
dirigir teu filme?
Matheus - Tudo. Eu tava dirigindo um filme como um todo, e não apenas no ator, mas os
planos nascem da atuação e das marcações dos atores. Cada um absolutamente envolvido
com seu personagem, a gente ia improvisando as cenas, e elas acabavam em um certo
desenho, e a partir daí eu e o Lula desenhávamos os planos. Tudo com o roteiro, sem
improviso no texto, a gente vai pra cena e improvisa o desenho das cenas, e os seus sentidos,
no qual os atores contribuem. Mas numa hora você precisa fechar as coisas. E acho que a
gente conseguiu coisas muito bonitas, momentos de muita interação do elenco com a
câmera, um bailado mesmo.
Daniel - No processo de criação dos teus personagens, existe algum ponto de partida
comum, ou um procedimento que os ligam, ou cada trabalho vem de um lugar
completamente diferente?
Matheus - Eu sou muito preguiçoso. Em teatro acho que menos, porque a presença do
público te exige muito. E tem aquela necessidade de estar preparado como um atleta, Você
tem que estar forte, com a voz num lugar que ressoe sem te machucar. Os músculos tem que
aguentar aquele trabalho. Aí eu trabalho. Mas eu sou preguiçoso. No cinema eu tento adiar o
máximo a minha entrada no filme. Ou até na TV. Eu não fico estudando loucamente, eu não
sou assim. A não ser em novela, por incrível que pareça. Em novela eu estudo. Muito.
Porque eu sei que não vai ter tempo, ninguém vai ensaiar, aí eu me preparo. Escrevo no
texto: “está feliz, está triste, baixa voz aqui”, etc. Mas em cinema eu não faço isso. Com o
Guel, por exemplo, é muito gostoso, porque ele ensaia. Aí terminou o ensaio com você,
tchau! O que ele ensaiou com você é o que ele vai filmar. Então, você fica com uma
109
lembrança emocional, intelectual, física do que você fez. Aí tem a adrenalina do set, você
ensaia um pouco e roda. E tá feito. Mas tá tudo combinado. Eu digo isso pras pessoas e elas
acham estranho, mas em geral, os personagens que eu mais gostei de fazer foram os que eu
quis dizer não, de preguiça. Eu penso “isso vai me dar um trabalho...”. Parece um pouco
com “não gostar da pessoa com quem eu vou casar”. Quase todas as pessoas com quem eu
tive uma relação profunda de amor foram pessoas que com quem eu tive muita antipatia à
primeira vista. É um pouco isso que eu tenho com os personagens.
Daniel - Você sabe que vai ter que se envolver com eles...
Matheus - É. Depois vou ter que separar. Sei que vou ter uma convivência. O set é um lugar
muito louco. Tem sets agradáveis, mas em geral o set é um lugar barulhento, desagradável,
quente. Em quase 100% dos casos a última coisa que importa é o ator. Considera-se que ele
está ensaiado, está maquiado e é isso. Um segundo antes da ação tem um cara com uma fita
métrica aqui, ou uma figura tirando um grampo do seu cabelo, ou um cara abrindo sua calça
porque o microfone deu problema. E você tá ali se concentrando pra fazer uma cena
importante do filme. Então você tem que estar em um tipo de concentração diferente da do
teatro. Acho. Eu sei que tem atores que não se concentram e dão certo. Pedro Cardoso, por
exemplo, vai direto da rua para o palco. Ele nem passa pelo camarim. Ele faz com a roupa
dele. Eu acho bonito. Eu já vi ele falando no celular e entrando em cena. Quer dizer, é o
avesso de uma concentração. É algo do tipo: “eu não vou criar tensão”. Eu não vou me
tensionar. Às vezes o excesso de concentração pode te tensionar. E cada ator vai ter que
encontrar isso da sua maneira. Você não pode se “emburrecer” do set de filmagem e estar
num lugar tão absurdo, extremamente concentrado. O cara do som vem falar com você e
você não responde por que você está: “oummmmm”. Isso não pode acontecer. Você vai ter
que falar com ele. Às vezes você vai ter que ajudar o cara. Depois que você faz muito
cinema você começa a entender as coisas melhor. Às vezes você mesmo percebe que está
com um problema na lapela e nem sempre o figurinista está ali pra ajudar. Às vezes é melhor
você dizer pro cara: “põe o microfone por aqui ó”. Então você tá ali trabalhando com todo
mundo. Mas, sobre o que era a tua pergunta mesmo? (risos)
Daniel - Sobre o teu processo de composição dos personagens... se você tem pontos de
partida em comum...
110
Matheus- Não. Às vezes é relaxando simplesmente. Às vezes é trabalhando duro. Eu não
fico me preparando antes das leituras, ou dos ensaios. Se a gente for ensaiar só no set eu me
preparo só no set. Eu não fico batendo aquele texto todo. Eu leio o roteiro.
Daniel - E no caso do “Tapete Vermelho” (2005), por exemplo, em que você fazia uma
personagem de corpo mais composto, um personagem verídico, vamos dizer assim?
Cena de “Tapete Vermelho” (2006) 89
Matheus - A gente ensaiou bastante, mas não marcando, eu, Gorete, o menino e o Gal. A
gente passou uma semana em um hotel fazenda. Trabalhava todas as cenas. Aí fiquei
assistindo Mazzaropi, e a gente tava lá, o hotel era no interior de São Paulo, então a gente
saía pra tomar um chopp e eu já tava lá, todo mundo com sotaque, e eu ligava também. Eu
sou muito assim. Isso foi muito forte, por exemplo, pra fazer os personagens do Walter
Salles. Era engraçado porque o personagem no “Central do Brasil” era muito pequeno, mas
lendo o roteiro eu pensei: “péra aí, é com ele que ela vai deixar o garoto”. Tem que ter um
brilho nesse cara. A Dora vai passar por toda essa saga pra entregar o menino pra esse cara,
que é o irmão mais velho da família. Então eu fiquei pensando: “caramba, o que que eu
faço? Não é só fazer o sotaque!”. E teve o processo com o figurino, e tal, aí o Walter disse:
“Matheus fica à vontade, se você quiser propor alguma coisa...”. Aí eu fiquei pensando: “é
isso, vâmo pro set que vai acontecer alguma coisa!”. Aí eu saí com o João Emmanuel
Carneiro [um dos roteiristas do filme], que ficou super amigo meu, depois fiz várias coisas
89
Imagem disponível em: http://colunaclaquete.blogspot.com/2009/11/claquete-20-de-novembro-de-2009.html
111
com ele na TV, e eu conheci ele lá. Quando eu cheguei em Vitória da Conquista tava todo
mundo já muito cansado, porque é um filme de estrada, tava todo mundo já bem cansado, a
Fernanda, o Vinícius, que virou um moço lindo, super inteligente, e que surpreendeu muito,
né? E o Walter foi muito príncipe com ele e ele reagiu como um príncipe. Enfim, aí eu saí
com o João pra beber, e a gente foi num “risca faca”. Aí tinha um cara fazendo um trava-
língua pro outro. Aí eu pedi pra ele me falar uns dois ou três pra mim. Aí eu anotei, e olhei
pro João e disse: “É isso!” O cara é iletrado, a Dora é que tem que ler a carta pra ele, mas o
cara tem uma antena pra língua portuguesa. O cara já chega encantando aquele garoto. E a
Dora percebendo isso. Fico todo arrepiado. Juro. As lembranças de um ator são algo muito
próximo da esquizofrenia. As lembranças do set, da relação entre as pessoas muitas vezes
não são tão fortes quanto são as lembranças de dentro da cena. Como se dentro da cena fosse
possível gerar lembranças iguais às da vida. Quando eu lembro da cena da leitura da carta eu
me lembro igual da morte da minha vó. É tão forte quanto. Não tem uma coisa que separa o
que são as nossas lembranças das cenas e as da vida. São lembranças. A teofania do Jó é pra
mim uma lembrança concreta, porque eu vivi aquilo. Aconteceu comigo. Se eu lembrar
disso, eu me arrepio, assim como eu me arrepio se eu lembrar o quanto eu tenho saudade do
meu sobrinho. E às vezes coisas muito concretas da vida, que as pessoas acham super
importantes, pra mim passam despercebidas. E eu percebo que pra muitos atores é
semelhante isso. Não sei quanto grau de consciência todos eles tem, mas com certeza muitas
coisas que são relevantes pras pessoas que não são atores - isso não é nenhum tipo de
demérito pelo amor de Deus! -, coisas que são extremamente importantes pra elas não têm
nenhuma relevância pra um ator. Um ator pode esquecer um aniversário com a facilidade de
quem esquece uma chave no banco do carro, só que é o aniversário da mãe dele. Mas, ele
tava pensando que o Carrerinha vai aprender a ler amanhã. É um processo em que você não
desliga. E é por isso que vem esse “não”. Porque é quase como se você dissesse: “Eu vou
entrar na vida como eu sei vivê-la, mas eu vou sair da vida como as pessoas vivem”. E é
desconfortável? É! Meus piores momentos de depressão, meus piores momentos de loucura
são quando eu estou muito tempo sem trabalhar. É quando eu tenho que conviver comigo. E
eu tenho vontade de voltar pra vida cotidiana com muito afã e eu não sei vivê-la de uma
maneira íntegra. Eu sou muito mais íntegro em cena do que eu sou aqui. Acho. Eu percebo
isso, que na cena é o momento ideal. Eu to lá, eu to ligado em tudo que tá ao meu redor, eu
sei onde tá o boom, eu sei onde tá a câmera, onde tá o espectador, ou onde está o espectador
que não está gostando da peça. Eu me sinto vivo. E na vida como eu não sei como é, eu fico
112
obcecado em saber como é. Então eu fico obcecado com a arrumação das coisas, mas a vida
mesmo eu não sei como é. Várias pessoas me dizem: “você tem noção de que você é uma
pessoa que não se diverte? Que você não sabe se divertir?”. Mas, eu acho que eu me divirto.
Eles dizem: “Você não se diverte. Você se diverte porque você está em Maceió sendo o
Dirceu Borboleta”. Por isso que é importante que seja gostoso. Por isso que eu quero ter essa
escolha, não só a escolha artística, porque eu acho que essa eu sempre consegui firmar, ou
quase sempre consegui ter claro. Mas eu queria também que o trabalho fosse prazeroso. E
não é um problema sofrer. Eu até gosto de sofrer. O problema não é o personagem sofrer. O
problema é o set, as pessoas te fazerem sofrer, e ali o cotidiano ser desagradável. Se não tem
um mínimo de poesia ali, na relação das pessoas, mesmo uma poesia trash, se for delicado,
aí é uma delícia, que nem com o Zé Belmonte. É uma delícia fazer um filme com ele. Você
fica naquele estado, naquele rio que é o Zé. É gostoso o cotidiano com o Zé. Com o Claudio
o cotidiano é agressivo, é um momento de muita sinceridade, às vezes é muito violento, mas
é tudo uma poesia. Agora essa coisa cartesianinha, de horariozinho de esperar num trailer,
assistente de direção com walk talk, isso é insuportável. Por isso que eu queria poder cada
vez mais escolher. Poder dizer: “cara, eu adoro você, mas teu set é insuportável, é careta, é
chato”. Se um ator não pode dar uma bola fora, então o que você quer do cara? Que ele seja
seu funcionário? Não dá pra ele ser seu funcionário. O cara é uma pessoa que tá misturando
a ele mesmo com uma realidade que é inventada, botando carne numa coisa que não é dele.
Às vezes coisas trágicas. Você quer que o cara saia dali e seja um careta? Ele não vai ser, ele
não consegue. E cada vez mais no mundo de hoje essa cobrança é maior, e as pessoas estão
cada vez mais assustadas, porque parece que a gente tá indo pra uma melhor e na verdade a
gente tá dando uma ré. E não é uma ré no sentido de uma volta pro que é essencial, pro que
realmente importa. É uma ré reacionária. É estranhíssimo. As pessoas estão em pânico. Com
medo de ficar sem grana, ou de sair no jornal que você causou algum tumulto, um
escândalo. A gente não pode deixar isso acontecer. Tudo bem, a gente não está mais nos anos
70, mas a gente também não tá nos Estados Unidos. Eu gosto de ator doido. Ator que se
entrega, que tá no processo. Que quando a câmera liga acontece uma magia. Isso diferencia
um ator do outro. Essa loucura faz com que acenda uma coisa quando a câmera liga. O cara
parece que não tá fazendo nada e tem uma coisa brilhando ali. Acho que isso é que é bonito.
Daniel - Dos processos de diretores que você trabalhou, quais deles te inspiraram a
gerar esse set agradável que você gosta, e que você criou pro teu filme e pros teus
atores?
113
Matheus - Acho que todos me influenciaram de alguma forma. Eu acho que o set tem que ter
uma contaminação. Acho estranho um set em que o diretor não sabe o nome do
microfonista, ou que a atriz principal também não saiba. Acho que set gostoso é isso. As
pessoas estão ali, pra fazer um trabalho bonito juntas. Cada um acontece de uma forma. O
Walter Salles faz isso com uma delicadeza britânica, com uma elegância. O Claudio faz isso
de uma maneira pernambucana, o Belmonte de outro modo. Esses diretores me inspiraram
muito. Tem um pouco deles e um pouco de mim, que sou um cara de teatro. No meu set todo
mundo dá as mãos antes de começar o trabalho. Todo mundo. O maquinista, o figurinista, a
gente fecha os olhos, faz uma corrente, circula uma energia, eu falo um pouco do que vai
acontecer naquele dia e “Vâmo embora!” É um set em que todo mundo se olha no olho. É
um set gostoso. Set chato é set burocrático. Aí melhor fazer novela. Pelo menos você ganha
dinheiro (risos).
Daniel - Você comentava de alguns workshops que você ministrou, e de alguns
processos criativos nos quais você desenhava. Queria saber se durante o processo de
criação você costuma ter uma preocupação com o registro, se escreve coisas, etc.
Matheus - Depende do processo. Agora no “A Febre do Rato” eu escrevi muito. O meu
roteiro é todo rabiscado. Eu tive muitos sentimentos que me inspiravam a escrever. Eu não
ensaiei muito com o Claudio. Claudio não ensaia. Então, eu fiquei num hotel e eu marcava
com as pessoas com quem eu mais trabalhava e a gente ficava umas horas juntos. Aí, a gente
ficava conversando, se emocionando, pensando nas coisas que eram ditas, e eu ia anotando.
Eu rabisquei o roteiro todo. Esse eu nunca vou me desfazer do roteiro. Cada processo vai de
um jeito. Tem vezes que é melhor você não lidar com nada. Mas, é claro que você começa a
se interessar por coisas que circundam aquele universo, e que é inevitável. Você começa a se
interessar por coisas que circundam o universo daquele cara. Pro Cintura Fina, eu ficava
assistindo uns programas da Manchete sobre travestis que injetavam silicone em si mesmos.
Parece que é sem querer, né? Eu caí naquilo e fiquei vendo. Você começa a ficar atraído por
coisas aonde aquele teu personagem poderia estar metido. Isso não é um método. É algo que
acontece. Quando o trabalho é poderoso, ele acaba acontecendo. Quando a coisa é
burocrática, não acontece, e eu gosto de locação por isso. Você vai pro lugar onde o cara tá.
Eu fico perambulando. Mas eu não faço como método. Tem atores que fazem. Que vão na
mercearia tal porque tem uma cena de uma conversa na mercearia. Eu não sou assim. Eu
acabo até indo na mercearia, mas não faço como uma coisa prevista.
114
Daniel - E sobre o processo posterior, você tem essa preocupação por escrever? Te
pergunto isso, porque dentro desta pesquisa, uma das discussões tem a ver com a “voz”
do ator, o discurso dele sobre seu processo. Do que se escreve sobre teatro e cinema, por
exemplo. Sempre fico pensando no porque uma parcela muito menor é escrita por
atores. Eu sempre converso com amigos que são atores, e a gente acaba entrando nessa
polêmica: “o ator precisa escrever sobre seu trabalho?”. Às vezes tem trabalhos que
dão muita vontade de escrever sobre ele, e outros em que seria improdutivo querer
discuti-los. Como é isso pra você? Você se preocupa com essa escrita sobre teus
trabalhos?
Matheus - Não. Às vezes eu fico inspirado por um processo que está acontecendo de
maneira poética, e aí eu fico à flor da pele, e acho que a gente encontra formas de
transbordar esse excesso de sensibilidade. Agora no “A Febre do Rato”, como eu te disse, eu
tinha essa vontade. Mas, tem processos que te secam. Não posso te responder isso de
maneira exata. Eu escrevo muito, mas não sempre. Eu agora to com muita vontade de
escrever um roteiro de filme. Ele tá na minha cabeça, como “A Festa da Menina Morta”
também estava. Mas ainda não é hora de escrever. Eu minto pras pessoas. Elas perguntam se
eu já estou escrevendo e eu digo que estou (risos). Mas a luz ainda não baixou a ponto de
dizer “vai pro mato escrever”. Eu não consigo escrever aqui no cotidiano, porque o cotidiano
me acachapa. Eu só uso droga lícita, sabe? Não uso maconha, que encanta o teu cotidiano.
Imagino que a pessoa que viva o cotidiano com maconha veja um mundo encantado que eu
não vejo, que eu só vejo quando to muito inspirado por um trabalho. As minhas drogas só
me relaxam, cigarro, bebida, sabe? Não são drogas inspiradoras. É o estado poético que me
inspira. E quando eu to nele, aí sim, a natureza se encanta, o cotidiano se encanta. São
deliciosos os dias em que você está assim. Você acorda e você está inspirado. Hoje, por
exemplo, não foi um dia encantado. Foi um dia de coisas concretas acontecendo. Um dia de
cano quebrado, de cachorro brigando, de uma obra sendo construída ilegalmente aqui atrás,
então tá um dia que não tá gostoso. Tem dias que não. Mas é assim na atuação também. O
cotidiano de teatro te dá uma dimensão muito clara sobre isso, porque tem dias em que entre
você e a platéia acontece uma coisa única, poética, acontece arte, e tem dias em que não,
dias em que você só fez o espetáculo. É por isso que eu gosto de diretores que te deixam em
um estado poético, porque eles são espertos e sabem que tem que te deixar no melhor estado
possível, porque vão filmar algo pra sempre, então eles tratam de te encantar. Por isso eu
gosto de locações. Não gosto de fazer filme no Rio de Janeiro, porque eu moro aqui. Aí você
115
filma, e volta pra casa. E a tua empregada fala que teu cachorro tá doente, tua mãe liga
dizendo que teu irmão tá se separando, a conta de gás aumentou. Você é jogado de volta. E
no outro dia você acorda e vai filmar, como se você fosse pra um trabalho de horário
comercial. Em locação não, você deixa tudo resolvido e vai se embora.
Daniel - Você estreia no cinema em um momento que as pessoas começaram a chamar
de “Cinema da Retomada”. Hoje fala-se até em um cinema “Pós-retomada”. E são
termos criados mais por quem não faz cinema, necessariamente. São termos criados
pela mídia, pelos teóricos. Como você percebia esse momento de dentro, como ator?
Você percebia uma diferença entre esse momento e a produção dos anos 80, por
exemplo?
Matheus - Eu assistia muito filme nos anos 80. Os filmes que tinham pra ser visto eu via. Eu
sempre fui fissurado e ainda sou pela Lucélia Santos, e eu me lembro que era uma época em
que ela era muito atuante. “Luz del Fuego” [1982, de David Neves], “Baixo Gávea” [1986,
de Haroldo Marinho Barbosa], “Bonitinha, Mas Ordinária” [1981, de Braz Chediak]. Ela fez
inúmeros filmes. Um que eu adoro, e que se chama “Fonte da Saudade” [1986], do Marco
Altmann, baseado num livro da Helena Jobim, em que ela faz três personagens que são três
versões de uma menina que fica órfã. A Norma Bengel sempre é a mãe. É bem bonito. É um
filme que eu gosto muito. A minha sensação é de que mesmo nos momentos mais
improváveis, o Brasil sempre fez muito filme. Mesmo nos anos 70, aquela coisa toda louca,
sexual, com toda aquela produção trash. Acho que o Claudio Assis conversa muito com
aquele tipo de produção. E nos anos 80 teve uma produção mais rarefeita em volume e com
uma qualidade técnica mais aquém do que já se tinha por aí, mas que tá lá acontecendo. E
nos 90 já há um cinema que quer ser mercado. Desde o “Carlota Joaquina”, que é quando eu
me atino e digo: “bom, aconteceu alguma coisa aqui”. É um cinema que já pressente um
potencial de mercado. Mas isso sempre acontecia. Eu sou um dos atores desse momento. Eu
também estou dentro, então, não sei bem o que eu sinto desse momento. Muitas vezes eu
pensei: “nossa, que maravilha ter sido ator nessa hora, nesse momento em que as pessoas
estão podendo fazer, e das mais variadas formas”. “O que é Isso Companheiro?”, o
“Central”, “O Primeiro Dia”, são filmes da Retomada. E tem filmes que eu adoro. “Um Céu
de Estrelas”, da Tata, o próprio “Carlota Joaquina”, que eu adoro. Eu gosto de muitos filmes
desse momento. Dos mais variados filmes. E adoro que eles têm muitas caras, e acho legal
isso de se poder fazer filmes tão diferentes. Eu acho saudável que a gente possa ter vários
116
cinemas. É saudável que ele possa ser competitivo, careta, doido, reflexivo, documentário,
que ele possa ter muitas caras. Mas, da maneira como ele acontece nesse momento no Brasil,
eu tenho a sensação de que a classe artística não vê o mesmo país. O Brasil não está sendo
enxergado por nós todos como um mesmo país. A princípio eu tive uma sensação de que
essa variedade de temas, e dinheiros, e linguagens era uma forma do Brasil se conhecer, de
que a gente estava lançando tentáculos pra muitos lugares, regiões, gêneros de filmagem,
mas hoje em dia a minha sensação não é tão alegre. Eu tenho uma sensação de que estamos
cegos em relação ao Brasil. Talvez grande maioria dos filmes que a gente produz não
importam, não demonstram um olhar que realmente revelem algo importante sobre o país,
sobre a gente. Às vezes acontece num filme de casal. Às vezes acontece num filme maior.
Acontece num “Tropa de Elite’. Acontece ali um olhar. Acontece no Claudio. Mas, a minha
sensação geral é pessimista, e um pouco assustada. Primeiro de como as pessoas de cinema
não conversam, não trocam nada sobre elas, segundo de que a maior parte dos olhares está
oco. Acho que essa “Pós-Retomada’ é um pouco decepcionante pra mim, um pouco
frustrante. Quer dizer, talvez a gente continue não conseguindo olhar de verdade pra esse
lugar. Na maioria deles há algo falsamente profundo. Mas, tentando voltar a um certo
otimismo, há pelo menos uma diversidade de olhares. Ando sentindo que poucos desses
olhares importam. Poucos deles realmente olham.
Daniel - Em livro do Eduardo Escorel chamado “Adivinhadores de Água”, ele já entra
com um pé atrás sobre a ideia de uma Retomada, e ele fala de alguns filmes que se
destacam nesse sentido e que, de alguma forma, encontram uma preciosidade que
outros não conseguem. Ele apresenta a metáfora do título em um momento em que ele
fala de um sujeito que adivinhava onde havia poços de água no sertão nordestino,
olhando para o solo. Ele cita diretores como a Tata Amaral, o Lírio Ferreira, como
esses diretores que conseguem enxergar no nosso país essas preciosidades...
Matheus – Pois é, eu tenho uma tendência a gostar deles, dos filmes. E depois eu reflito. Em
teatro também. Em geral eu gosto, e depois eu reflito. Depois eu penso “era ruim, ok”. Mas
cinema, cinema de verdade, acho que a gente tem feito pouco. Um cinema que nos dê uma
visão subjetiva do mundo, e não apenas uma história contada. Às vezes eu vejo filmes
caretas que me tocam profundamente. E isso acontece às vezes em outros filmes super
subversivos. O chato é ver esses filmes que tentam te tocar e quando você percebe, você não
foi tocado em nada.
117
CAPÍTULO V
____________________________________________________________
FORMAÇÃO E TÉCNICA NO DEPOIMENTO
DE MATHEUS NACHTERGAELE
“O ator deve chegar no set disponível para fazer sua cena.
Mas o fotógrafo está provavelmente tendo algum problema
(...). O que quer que esteja acontecendo sempre representa um
atraso para o ator. (...) Em um momento ele está
pensando, talvez, em nada em particular, e no outro ele tem de
mergulhar no coração de uma cena especial. É como se o ator
tivesse de ligar sua arte como se fosse uma lâmpada
elétrica. E quando a pequena cena termina, o ator tem que
esperar mais uma vez. A lâmpada tem de ser desligada”.
Eric Portman
118
A seguir veremos os depoimentos do ator Matheus Nachtergaele destacados de sua
entrevista, apontando aspectos ligados à composição de personagens para os filmes nos
quais atuou, às distinções entre técnicas de atuação no teatro e no cinema, entre outros
aspectos de sua formação como ator.
“O Que é Isso Companheiro?” (1997), “Central do Brasil” (1998), “O Auto da
Compadecida” (2000), “Amarelo Manga” (2001), “Tapete Vermelho” (2006) e “Baixio das
Bestas” (2007), são os filmes abordados neste capítulo, uma vez que estas são as
experiências destacadas pelo ator em sua fala, e os relatos sobre estes processos serão
apresentados em diálogo com discursos de pesquisadores e diretores de cinema que refletem
sobre os mesmos aspectos técnicos.
5.1 O PRIMEIRO CONTATO COM A CÂMERA
Antes de seu primeiro trabalho no cinema, o longa metragem dirigido por Bruno
Barreto “O Que é Isso Companheiro?” (1997), Nachtergaele havia participado de pequenos
“filmetes” (nas palavras do próprio ator) para a MTV brasileira, uma pequena série de
vídeos exibidos como flashs de cerca de meio minuto durante os intervalos comerciais.
Vindo de uma formação teatral, o ator “mergulhou” no filme de Barreto sem formação
específica para cinema, começando sua carreira nesta arte em um momento em que os
cursos preparatórios de atuação para a câmera eram pouco comuns no Brasil90
.
O primeiro trabalho de um ator teatral no cinema costuma ser visto sempre com
preocupação, levando em consideração que teatro e cinema são artes de natureza e
procedimentos criativos muito distintos. A respeito destas distinções, a pesquisadora Nikita
Paula (2001) afirma que:
No teatro, um espaço dramático mais tradicional, a distância entre o palco e plateia obriga o
ator a se utilizar de gestos e volumes vocais maximizados. No cinema, ao contrário, a
proximidade entre ator e espectador promovida pela utilização da câmera, exige, na maioria
das vezes, uma minimização da expressão do ator (...). Na prática, a interpretação [no
cinema] obedece a uma demanda de contenção e minimalização dos gestos, de modificação
da tonalidade e diminuição do volume vocal (PAULA, 2001, p. 25)
90
A respeito desta ausência de cursos de atuação para cinema, a pesquisadora Nikita Paula apresenta um estudo
sobre a formação do ator no Brasil até o começo dos anos de 1990, e dedica parte do terceiro capítulo de seu
livro, “O Vôo Cego do Ator no Cinema Brasileiro” (2001), a uma reflexão sobre a interferência desta ausência
de cursos na qualidade das atuações das produções nacionais, aspecto que era comumente criticado em nosso
cinema.
119
Apesar destas distinções entre a prática do ator no teatro e no cinema nos permitirem
perceber características próprias de cada linguagem, uma que reclama ao ator uma maior
projeção de seu corpo e voz, e outra que requer uma execução minimizada do gesto e do
volume vocal, parece pertinente observar que nos materiais acessados por meio do
levantamento bibliográfico a maior parte dos estudos comparativos entre a atuação no teatro
e no cinema costumam se referir à experiências que definem a atuação teatral quase sempre
como “exagerada” enquanto a atuação cinematográfica seria sempre “mínima” e “realista”.
Estudos como os de Yuri Lotman (1978), Siegfried Kracauer (1989), podem ser citados neste
sentido, por suas reflexões que apresentam sempre como exemplo de atuação no teatro as
montagens tradicionais de grandes clássicos “shakespeareanos”, ou outras experiências cujo
trabalho dos atores diz respeito a uma linguagem farsesca. Estes exemplos são comumente
utilizados para justificar o estranhamento dos atores teatrais em seus primeiros trabalhos
frente às câmeras, linguagem na qual estes intérpretes apresentariam dificuldade de
adequação a uma atuação minimizada e mais próxima do real.
Neste sentido, a experiência relatada por Nachtergaele a seguir, parece nos oferecer
outras pistas para pensar esse estranhamento e as distinções entre a atuação no palco e no
set. Segundo o depoimento do ator, enfrentar as câmeras pela primeira vez no filme “O que é
Isso Companheiro?”, parece não ter sido tão estranho quanto costuma ser para outros atores:
As pessoas me perguntavam se eu não tinha sofrido com o contraste entre a “dilatação” do
corpo do teatro – não gosto desse termo, “dilatação” – e a “contenção” no cinema, porque a
câmera vem até você (...). Mas, eu não sou um ator formado no palco italiano, e isso é
importante, porque eu não tenho essa atuação, nem tive no palco italiano depois. Quando
estive no palco italiano em outras peças que eu fiz eu percebo que eu não atuo como um ator
que esteja no palco italiano normalmente, porque eu fui formado para trabalhar em locação
(NACHTERGAELE, p. 96 91
).
O depoimento de Nachtergaele nos apresenta um olhar sobre uma prática
contemporânea de atuação, uma vez que o ator vem de experiências em espaços teatrais
alternativos92
, como as do Teatro da Vertigem, espaços definidos pelo ator como “locação”.
Em outro momento da entrevista ele menciona a importância de sua formação teatral no
Teatro da Vertigem, e de outras experiências em que a representação no teatro não ocorreu
de forma tradicional nos grandes palcos:
91
As páginas apontadas a partir daqui com os depoimentos de Nachtergaele referem-se ao capítulo anterior,
situando onde os depoimentos podem ser encontrados.
92
Também conhecidos como “não convencionais” ou “não italianos”.
120
O “Woyzeck” da Cibele Forjaz a gente apresentava numa garagem. As cenas podiam
acontecer atrás dos espectadores, inclusive. No “Paraíso Perdido” os espectadores iam
seguindo o Anjo Caído, subindo as escadarias, indo até o órgão, quer dizer, você está atuando
pra uma pessoa que está aqui perto de você, e pra uma pessoa que está a seis metros pra lá,
sendo que tem gente espalhada, tem gente colada em você como uma câmera de cinema e
tem gente ali atrás, como se fosse teatro, isso quer dizer que eu não tive essa dificuldade de
entender, inclusive a distância de câmera e o tamanho de lente. Eu entendia a proximidade
que o espectador - que no caso é a lente da câmera - estava de mim (...). Quando eu cheguei
no “O que é Isso Companheiro?” eu percebi que isso era totalmente aplicável, e que eu fui
um ator criado na locação. Eu nunca me espantei. (NACHTERGAELE, p. 97)
A escassez de estudos que analisam a formação de atores de teatro que começam a
trabalhar no cinema, estudos que considerem as especificidades de espetáculos nos quais
estes atuam (formas de atuação, aspectos contemporâneos de criação cênica, entre outros),
parece tornar a discussão sobre o “exagero” do ator no teatro e a “contenção” do ator no
cinema muito vaga. O próprio Nachtergaele atuou em filmes como “O que é Isso
Companheiro?” e “Central do Brasil”, experiências em que a atuação dialoga com um
projeto de direção realista nesses filmes, compondo personagens próximos de um registro
cotidiano, e, em outro momento, atuou em “O Auto da Compadecida” (2000), filme em que
os personagens da obra de Ariano Suassuna são abordados de forma quase arquetípica.
Portanto, assim como nem toda obra de cinema é realista, nem todo projeto teatral é “não-
realista”, ou sempre concebido para grandes palcos, o que torna as discussões sobre “o”
teatro e “o” cinema bastante generalizantes.
Nachtergaele com Selton Mello em “O Auto da Compadecida” (2000) 93
93
Imagem disponível em: http://redeglobo.globo.com/novidades/series/noticia/2011/06/voce-sabia-figurinos-
de-o-auto-da-compadecida-foram-desgastados.html
121
Além disso, conforme Nachtergaele apresenta em seu depoimento, suas experiências
teatrais revelam procedimentos em que o ator dialoga com diferentes espaços, com olhares
da plateia a partir de ângulos diversos, o que exige do ator um controle de sua performance
para o uso do corpo e da voz distinto das representações para o palco italiano em montagens
tradicionais. Neste sentido, estudos nesta área parecem carecer de uma análise mais
específica, caso a caso, explorando experiências de atuação teatral que ocorrem em
contextos diversos dos exemplos comumente utilizados.
Em seu depoimento, o único estranhamento que o ator apresenta em relação ao seu
primeiro trabalho em cinema, e que se assemelha ao que Cavalli também expõe em seu livro
quando menciona a experiência em “Um Céu de Estrelas”, diz respeito ao barulho da
câmera. Nachtergaele comenta:
A única coisa que me espantou foi o barulho da câmera. Era uma coisa meio de culpa cristã
minha. Eu sempre ouvia muito na LC Barreto que o negativo é muito caro, então eu ouvia os
pais dele dizendo “Não filma tantas vezes a cena”. E eu tava estreando. Então eu tinha medo
de que eu fosse ser o cara que ia fazer gastar mais (...). Eu ficava ouvindo aquilo. Até hoje eu
ouço, mas hoje é uma coisa macia. Naquela época era como uma urgência: “Não erra!”. É um
trabalho no qual eu estive tenso neste sentido. Mas muito realista, de uma certa forma, e
contido, o que eu acho interessante, porque a tendência num primeiro trabalho é você querer
fazer demais, né? E eu tava bem contido. E a tensão que eu tinha servia praquele personagem.
A tensão de estar estreando servia (NACHTERGAELE, p. 97).
Estas comparações entre teatro e cinema nos permitem observar que os confrontos
que um ator vindo dos palcos encontra em seu primeiro trabalho frente às câmeras, mesmo
tendo graus de dificuldade distintos para cada um, marcam características específicas das
linguagens teatral e cinematográfica. A experiência relatada sobre a tensão que o ator sentia
e que servia ao personagem em “O Que é Isso Companheiro?”, por exemplo, revela pelo
menos uma destas características técnicas próprias do cinema: a espontaneidade no ato de
filmagem como criação efêmera, já que uma vez gravada uma cena, esta permanecerá
registrada para sempre sem a necessidade de ser repetida. Além disso, o controle do ator
sobre o resultado de sua performance se encerra neste momento, pois na sala de edição, o
material filmado poderá ser bastante alterado, um outro momento de criação em que o ator já
não pode (e talvez nem deveria) mais intervir, o que marca outra característica específica da
linguagem cinematográfica.
122
5.2 COMPOSIÇÃO DE PERSONAGENS
Dentre os aspectos analisados centralmente neste trabalho, a composição de
personagens é um dos itens que podem ser melhor respondidos no depoimento de
Nachtergaele. Neste sentido cabe destacar os personagens dos filmes “Central do Brasil”,
“Tapete Vermelho” e “Baixio das Bestas”, sobre os quais o ator relata em sua entrevista.
Como procedimento comum explorado na criação destes, o ator afirma buscar sempre um
tipo de criação que se distancia da sua pessoa, ao contrário da criação de outros atores no
cinema, que buscam explorar a sua própria personalidade, deixando com que o público
projete sobre eles a criação de um personagem:
Tem pessoas que quase não fazem nada, e que deixam você colocar algo ali por elas. Grandes
atores fazem isso. Marlon Brando faz isso. Nelson Xavier faz isso. Você joga e não ele. Eu
não sou assim. Eu proponho. Nas poucas vezes que eu fiquei mais “em branco” foram
experiências bem fortes pra mim, porque eu sempre desconfiava de que isso fosse possível
(NACHTERGAELE, p. 101).
O ator comenta também que, ao buscar a criação de personagens de forma distante de
sua pessoa, corre-se um grande risco por conta do quanto o público já conhece o intérprete.
Assim:
Em um ator muito assistido, a pessoa dele está exposta. Você convencer o público de que
você é outro é muito mais difícil. Depende também do talento do diretor pra isso, e claro, da
tua concentração máxima pra que o personagem possa existir de alguma maneira, apesar de
ele ser você sempre. Ele tem que existir enquanto “ele”. E como convencer as pessoas, uma
vez que elas já sabem quem é você? Elas já te viram muito. Elas já tiraram suas próprias
conclusões sobre você. Elas já te viram dando entrevista, já te viram falando. Elas vão
fazendo isso: “Olha ele falando. Olha o que é dele e o que é do personagem”. Então, acho que
essa é a minha batalha: estar no personagem, estar com o personagem, e evitar que o meu
mais óbvio apareça (NACHTERGAELE, p. 102)
Com exceção desta busca de “estar no personagem”, o ator revela que seu processo
criativo não possui uma técnica comum a todas as suas experiências de composição no
cinema. Isso ocorre às vezes pelo simples relaxamento no set de filmagem, ou por meio de
um trabalho duro, outras vezes por meio das leituras do roteiro. Se não há períodos de
ensaios antes do trabalho no set de filmagem, o ator busca por meio do trabalho sobre o
roteiro, a criação das nuances e características do personagem (NACHTERGAELE, p. 110).
Sobre seu trabalho no filme “Tapete Vermelho”, Nachtergaele comenta que a
composição do personagem ocorreu em um processo de ensaios em um hotel fazenda no
interior de São Paulo, com duração de uma semana. Foram ensaiadas todas as cenas do
123
roteiro e o próprio fato de estar em uma espécie de retiro para a criação de personagens,
possibilitou a convivência com pessoas da própria comunidade, nas idas aos bares e outros
locais nos arredores, onde foi possível perceber e experimentar o sotaque caipira empregado
ao personagem. Além disso, o ator buscou nos filmes de Mazzaropi um complemento para a
criação do personagem (Idem, p. 110). Este tipo de processo de composição, a partir do
contato com as pessoas de uma comunidade ou locação, foi também utilizado no trabalho
em “Central do Brasil”.
Era engraçado porque o personagem no “Central do Brasil” era muito pequeno, mas lendo o
roteiro eu pensei: “péra aí, é com ele que ela vai deixar o garoto”. Tem que ter um brilho
nesse cara. A Dora vai passar por toda essa saga pra entregar o menino pra esse cara, que é o
irmão mais velho da família. Então eu fiquei pensando: “caramba, o que que eu faço? Não é
só fazer o sotaque!” (...). Aí eu saí com o João Emmanuel Carneiro (...) pra beber, e a gente
foi num “risca faca”. Aí tinha um cara fazendo um trava- língua pro outro. Aí eu pedi pra ele
me falar uns dois ou três pra mim. Aí eu anotei, e olhei pro João e disse: “É isso!”. O cara é
iletrado, a Dora é que tem que ler a carta pra ele, mas o cara tem uma antena pra língua
portuguesa. O cara já chega encantando aquele garoto. E a Dora [ali] percebendo isso
(NACHTERGAELE, p. 111).
Cena de “Tapete Vermelho” (2006) 94
94
Imagem disponível em: http://cinemarden.blogspot.com/2011/05/filme-do-dia-tapete-vermelho-antes-
de.html
124
Para o trabalho de composição do personagem Everardo, em “Baixio da Bestas”, não
houve um período de preparação e ensaios anterior às filmagens. O processo criativo com o
diretor Claudio Assis foi estabelecido por meio de diversas conversas através das quais iam
sendo buriladas as características que serviriam ao personagem. Nachtergaele comenta a
respeito disso: “O Claudio tinha combinado umas coisas comigo: que ele tinha o olhar de
um porco, então eu sempre pensava nisso antes de filmar” (Idem, p. 105).
Como podemos perceber nos processos criativos abordados, nem sempre a criação se
estabelece em processos de ensaios, ou de trabalho com preparadores de elenco. No entanto,
as conversas iniciais com o diretor, as leituras do roteiro e, as próprias experiências vividas
nas locações antes ou durante as filmagens, constituem um espaço de experimentação e
vivência de aspectos que serão mais tarde apropriados na composição de personagens.
5.3 A CONCENTRAÇÃO
Quando pergunto ao Nachtergaele sobre uma dificuldade que ele sempre encontra em
seus trabalhos no cinema, o ator responde: “a concentração”. Após estar com o figurino do
personagem e maquiado, os longos períodos de espera para o começo da gravação de uma
cena são um acontecimento muito comum no cinema. O movimento de carros na rua que
precisa ser interrompido, uma mudança climática que leva a uma alteração na luz da cena,
problemas com microfones, entre outros, são alguns dos fatores que acarretam os atrasos de
filmagem. Como estar concentrado para o instante em que lhe é dito “ação”? Em “Working
for the Films” (1947) Eric Portman fala desta dificuldade:
O ator é chamado para o set. Ele deve estar pronto no momento em que é chamado, mas isto
não significa que todos estarão prontos para ele. O ator deve chegar no set disponível para
fazer sua cena. Mas o fotógrafo está provavelmente tendo algum problema (...). O que quer
que esteja acontecendo sempre representa um atraso para o ator. Ele tem que esperar, e
provavelmente durante o atraso ele perde o bom humor. Então, de repente, ele percebe que o
diretor está chamando por ele. Em um momento ele está pensando, talvez, em nada
em particular, e no outro ele tem de mergulhar no coração de uma cena especial. É como se
o ator tivesse de ligar sua arte como se fosse uma lâmpada elétrica. E quando a pequena
cena termina, o ator tem que esperar mais uma vez. A lâmpada tem de ser desligada
(PORTMAN apud BLAKESTON, 1947, p. 48, tradução nossa).
Para Portman, em seu texto de 1947, seria necessário “uma enorme capacidade de
concentração [...] para realizar uma pequena cena” (PORTMAN apud BLAKESTON, p. 49),
assim como para Nachtergaele em sua experiência atual o desafio é o de “estar no estado
125
certo na hora do ‘ação’. [...] e em cada set isso deve acontecer de uma forma”
(NACHTERGAELE, p. 101). Nachtergaele afirma ainda que:
Tem sets agradáveis, mas em geral o set é um lugar barulhento, desagradável, quente. Em
quase 100% dos casos a última coisa que importa é o ator. Considera-se que ele está
ensaiado, está maquiado e é isso. Um segundo antes da ação tem um cara com uma fita
métrica aqui, ou uma figura tirando um grampo do seu cabelo, ou um cara abrindo sua calça
porque o microfone deu problema. E você tá ali se concentrando pra fazer uma cena
importante do filme (...). Você não pode se “emburrecer” do set de filmagem e estar num
lugar tão absurdo extremamente concentrado. O cara do som vem falar com você e você não
responde porque você está: “oummmmm”. Isso não pode acontecer. Você vai ter que falar
com ele. Às vezes você vai ter que ajudar o cara. Depois que você faz muito cinema você
começa a entender as coisas melhor. Às vezes você mesmo percebe que está com um
problema na lapela e nem sempre o figurinista está ali pra ajudar. Às vezes é melhor você
dizer pro cara: “põe o microfone por aqui ó” (NACHTERGAELE, p. 109).
A continuidade costuma representar um dos problemas para a concentração do ator
neste sentido. Para Portman, como as cenas de um filme não são gravadas na ordem
cronológica do roteiro, o ator deve ter um pleno conhecimento dos acontecimentos da trama
e estar preparado para viver cada momento isoladamente, mas tendo “o todo da história em
sua cabeça”, capacidade esta que pode ser exercitada por meio de trabalhos preparatórios
como o estudo do roteiro e os ensaios das cenas (PORTMAN apud BLAKESTON, 1947, p.
49).
5.4 O ENTENDIMENTO SOBRE O PROCESSO VIVIVO
Ao fim do segundo capítulo apontamos algumas problemáticas relacionadas ao
trabalho de preparadores de elenco no cinema brasileiro, que por vezes se utilizam de
métodos que manipulam os atores, levando-os a estados sobre os quais eles nem sempre
possuem um entendimento sobre o processo vivido, ou seja, do trajeto técnico que seguiu até
o resultado cênico. Uma vez gravada a cena, em alguns casos, os atores mal sabem o que
ocorreu, ou como criaram uma cena, uma vez que estavam tomados por sentimentos
provocados pelos preparadores ou pelos próprios diretores. Mesmo não tendo trabalhado
com preparadores de elenco em seus filmes95
, Nachtergaele afirma que costuma preferir
outros tipos de processos:
95 Nos filmes “Central do Brasil” e “Cidade de Deus”, em que o ator atuou, a preparadora de elenco Fátima
Toledo realizou processos de laboratório e ensaios com os “não atores” que integravam o elenco, portanto,
Nachtergaele afirma não ter participado destes processos, o que não ocorreu por sua vontade.
126
A gente entra em várias discussões que (...) anda tendo nos dias de hoje, sobre essas atuações
de cinema que são “assaltos”, quer dizer, coloca-se o ator num estado e aí vai na loucura dele
e pega a câmera, segue roubando, e depois se edita. Eu não sou assim (...). Eu não sou assim.
Eu quero saber. Eu quero saber onde você vai estar com a câmera. Eu quero saber que
movimento vai ser realizado, que lente você está usando. Eu quero fazer a cena com você. Eu
quero bailar com você. Eu não quero ser assaltado. Apesar de saber que isso fica lindo.
“Cidade de Deus” foi muito assim. O processo era esse. E eu me entreguei
(NACHTERGAELE, p. 103)
Sobre outra experiência, no processo do filme “Baixio das Bestas” (2007), ele
comenta sobre um dos momentos de gravação que, apesar de resultar em uma boa cena e de
se tratar de um trabalho com um diretor de sua confiança, lhe exigiu atuar em uma zona de
descontrole:
O Claudio me dava uma garrafa de conhaque e falava: “quando você chegar aqui eu começo
a rodar” (risos). Foi doido (...). Em algumas cenas eu ainda conseguia. Algumas eu guardei
isso, porque eu sabia que eu não podia estar assim. Eu podia machucar alguém. Na cena em
que ele curra a Hermilla Guedes, eu sabia que eu tinha que estar bem (...). Mas na cena com a
Dira, a coisa passou do limite. Era uma cena mais simples até, mas a coisa demorou, era um
plano muito longo no final em que eles estão bebendo, e aí ela chama no palco, e eles tão
brincando e depois eles começam a machucar ela, quebram uma cadeira, e pegam um pedaço
de pau, depois estrangulam ela. Era uma merda. E aí vira pro telão e fica projetado o que tava
acontecendo. E a gente foi fazendo, uma, duas, três, e o conhaque sendo bebido. A que valeu,
que foi a última, eu nem me lembro de ter feito. Eu gosto de como ficou. Mas foi bem louco
(NACHTERGAELE, p. 93).
Este depoimento vem de encontro com o que discutimos há pouco sobre a busca por
um estado espontâneo no set, e sobre a efemeridade de uma cena que não precisará ser
repetida. Como vimos, por vezes, este estado espontâneo é buscado por meio de estratégias
que colocam o elenco em grande risco físico, exigindo uma capacidade de controle que pode
escapar ao ator. Cabe destacar, entretanto, que Nachtergaele repete nesta experiência a
parceria com Claudio Assis, um diretor de sua confiança para o qual os atores entregaram-se
na criação desta cena: risco e confiança em um equilíbrio tênue.
5.5 O “BAILADO” COM A CÂMERA E O CONTROLE DO CORPO
Uma experiência distinta de Nachtergaele no cinema ocorre em outros filmes que o
ator pôde exercitar o entendimento de seu processo dialogando com as propostas de
enquadramento adotadas pelo fotógrafo, criando uma relação de cumplicidade com a
câmera, tipo de experiência que se distingue, por exemplo, da experiência relatada em
“Cidade de Deus”:
Eu não tenho relação com o fotógrafo do “Cidade de Deus”. Eu sei quem ele é, mas talvez se
eu encontrar ele na rua, a feição dele não me seja familiar. Não foi alguém com quem eu
127
bailei. Foi alguém que me assaltou quando eu estava fazendo o negócio. Não é como o Walter
Carvalho, esses fotógrafos com quem eu danço. Você faz um bailado com o cara (...). Eu e o
Walter quando a gente se encontra pra fazer um filme, a gente fala: “Vai ser o quê? Valsa,
Polka?” (...). E eu gosto de saber onde ele tá. Que lente que ele tá usando. E ele vai me dando
essas informações: “olha, o plano tá fechado até aqui, aí eu vou girar pra cá, e se você quiser
fazer alguma coisa aqui e acolá...”. E a gente vai bailando junto. Isso no “A Febre do Rato”
(2011) a gente fez muito, muito mesmo. A gente bailou (NACHTERGAELE, p. 104).
Ao fim do terceiro capítulo vimos o depoimento de Cavalli sobre seu trabalho no
filme “Cafundó” (2006), em uma cena de nudismo que seria enquadrada em close. No
entanto, no momento da revisão, a atriz conferiu que a cena havia sido gravada em plano
aberto e pediu para refazê-la, pois, conforme afirma atriz: “se soubesse que o plano seria
aberto, gostaria de ter feito de outra maneira”. Como se tratava de uma cena ao ar livre, e
não havia mais luz suficiente, os diretores Paulo Betti e Clóvis Bueno resolveram não incluir
aquele take, em respeito ao que havia sido combinado com a atriz (CAVALLI, 2009, p. 55).
Esta experiência se assemelha ao que apresenta Nachtergaele com relação aos acordos que
podem ocorrer entre ator, diretor e fotógrafo, que possibilitam ao ator compreender que
partes do corpo serão utilizadas dentro de um enquadramento previamente combinado, um
tipo de entendimento que marca uma especificidade da linguagem cinematográfica, mas que
também poderia ser comparado ao trabalho do ator no teatro.
Neste sentido, parece pertinente traçar paralelo entre teatro e cinema, para refletirmos
sobre o entendimento, e até mesmo o controle, que o ator pode ter sobre seu desempenho em
diferentes obras. Quando atuamos em um espetáculo para um espaço intimista, e em seguida
o adaptamos para um teatro de cerca de 500 lugares, a performance acaba por se
transformar, uma vez que gestos mínimos tem que ser adaptados para uma visibilidade em
maior distância. O ator, portanto, sabe que é visto (e ouvido, sentido, etc) por pessoas
situadas em diferentes espaços. No cinema o ator sabe que está em determinado
enquadramento, e tem de adequar o uso do corpo à sua “área de atuação”.
Em “Secrets of Screen Acting” (2003), Patrick Tucker relaciona quatro
possibilidades de planos de câmera a estilos de interpretação. Assim, um “plano geral” (long
shot) estaria adequado a atuações de estilo “melodramático”, enquanto a “plano médio”
(medium shot) ao estilo de um “teatro intimista”. O “close médio” (medium close up) seria
adequado a “realidade” enquanto um “grande close” (big close-up) extrapolaria esta
dimensão do real (TUCKER: 2003).
O autor comenta ainda que, “uma vez que a atuação para a tela envolve diferentes
tamanhos de planos (...) o ator de cinema deve estar preparado para adaptar sua performance
128
a cada plano” (TUCKER, 2003, p. 9). A prática teatral parece exigir uma habilidade
semelhante do ator, uma vez que um espetáculo não é apresentado em apenas uma
determinada sala. Quando um espetáculo promove determinada itinerância, por exemplo, a
adaptação da obra para distintos espaços também exige do ator um controle do corpo para o
uso de um espaço distinto, adaptando sua intensidade corpóreo-vocal, suas marcas, entradas
e saídas (que são alteradas pelas possibilidades de luz que cada espaço oferece), entre outros
fatores.
No entanto, estas duas linguagens artísticas, teatro e cinema, exigem como vimos
anteriormente, distintas formas de concentração do ator, uma vez que o tipo de representação
e os ambientes em que estas ocorrem, são muito diversos. Nachtergaele compara esta
concentração no teatro e no cinema em seu depoimento:
Você tem que estar em um tipo de concentração diferente da do teatro. Acho. Eu sei que tem
atores que não se concentram e dão certo. Pedro Cardoso, por exemplo, vai direto da rua para
o palco. Ele nem passa pelo camarim. Ele faz com a roupa dele. Eu acho bonito. Eu já vi ele
falando no celular e entrando em cena. Quer dizer, é o avesso de uma concentração. É algo do
tipo: “eu não vou criar tensão”. Eu não vou me tensionar. Às vezes o excesso de concentração
pode te tensionar. E cada ator vai ter que encontrar isso da sua maneira (NACHTERGAELE,
p. 109)
Conforme comenta Nachtergaele, ainda neste mesmo depoimento, a experiência no
set exige que o ator esteja conectado com tudo o que acontece ao seu redor, onde estão os
outros atores, onde está a câmera, onde está o boom, entre outros aparatos (Idem, p. 111). No
teatro, por sua vez, este controle é exigido do ator no palco, de modo que este deve estar
conectado com os enquadramentos da luz, a disposição espacial do público, as marcas de
outros atores, ainda que, diferentemente do cinema, estejamos falando de uma representação
contínua e que pode ser repetida em outras sessões de um mesmo espetáculo. Os meios são
distintos, mas em ambos há um ator que controla sua representação, e, para cada tipo de
experiência, este ator dialoga com necessidades técnicas muito específicas. Os acordos e
colaborações neste sentido são diversos e demandam novos procedimentos a cada trabalho.
5.6 COLABORATIVIDADE E PREPARAÇÃO
Conforme já mencionado, o próprio Nachtergaele, ao contrário de Cavalli, nunca
trabalhou com preparadores de elenco. No entanto, o ator comenta sobre diferentes
estratégias de diretores no que diz respeito ao trabalho preparatório para as filmagens.
129
Quando pergunto ao ator se este já trabalhou com preparadores de elenco, Nachtergaele
responde:
Não. E nunca tive nada contra, e deve ser muito bom pra vários processos, mas eu nunca
estive em nenhum deles. Sempre ensaiei com o diretor. Eu, quando dirigi, fiz questão de
dirigir meus atores. Eu achei que seria muito estranho delegar isso a uma outra pessoa. Me
parecia uma parte fundamental do meu trabalho. Obviamente, a grande maioria dos diretores
não preparam os atores. Eu sei que o Luis Fernando Carvalho faz isso. O Claudio Assis faz
isso, à sua forma faz isso, porque nunca é uma coisa organizada numa sala de ensaio. O
Walter Salles faz isso. A gente lê, senta, conversa. Eu acho fundamental preparar os atores
assim como você conceitua sua fotografia, por exemplo. Acho que a quantidade de horas que
você passa com eles tem que ser um pouco equivalente (NACHTERGAELE, p. 107).
Em “Cidade de Deus”, filme que teve um amplo processo de preparação coordenado
por Fátima Toledo, Nachtergaele participou apenas dos processos de preparação no morro, e
pôde conviver um pouco com os moradores das locações onde o filme foi rodado. O trabalho
de preparação no filme era voltado para os atores em formação e “não-atores”, mas
Nachtergaele afirma ter buscado estar próximo de todo o elenco para que o resultado das
atuações fosse homogêneo:
O Fernando Meirelles me deu todo o roteiro, e disse: “eu tô dando isso pra você e pros outros
dois ou três atores profissionais que tem no filme” (...). Mas, os meninos não tem o roteiro.
Eu disse: “então não me dá o roteiro”. Eu quero ficar igual a eles. No dia a gente recebia o
roteiro, batia um pouco o texto, ensaiava com a câmera, repetia por outro ângulo, e eu gostei
do resultado (...). Eu acho que eu consigo “sumir”. E é um trabalho difícil pra um ator. Estar
com eles (NACHTERGAELE, p. 92).
No terceiro capítulo, a partir dos depoimentos de Leona Cavalli sobre o processo
criativo no filme “Contra Todos”, pudemos refletir sobre um tipo de projeto em que os
atores trabalharam em grande colaboração com o diretor, improvisando sobre ideias de cenas
do roteiro, e interferindo na criação de diálogos e nos desdobramentos das cenas do roteiro.
Tais procedimentos são estudados pela pesquisadora Walmeri Ribeiro (2010) que, conforme
já foi apresentado no terceiro capítulo, atribui a estes atores uma definição distinta para sua
função, a de “co-autores”, uma vez que estes atuam em processos diferentes dos que partem
do roteiro como uma estrutura previamente definida, ou do projeto de direção como uma
estrutura extremamente decupada.
Neste sentido cabe destacar a seguir o depoimento de Nachtergaele sobre dois filmes
de processos diversos (“Amarelo Manga” e “O Auto da Compadecida”) em que, sem o
trabalho junto a preparadores de atores como o que ocorre em “Contra Todos”, as
130
experiências no set propõem outros tipos de colaboração dos atores. Sobre seu trabalho no
filme “Amarelo Manga”, Nachtergaele comenta:
O Claudio Assis tem uma coisa, que aconteceu muito no “Amarelo Manga” (2001), que é
uma troca entre os criadores, e que é muito parecida com a do teatro. O processo não é tão
profundo quanto um ensaio do teatro, mas você recebe o roteiro muito tempo antes. Toda
conversa de bar só se fala nisso, e a coisa vai se engendrando. Você vai conversando e ideias
suas vão entrando no trabalho (NACHTERGAELE, p. 104).
Ainda no Terceiro Capítulo vimos também no depoimento de Claudio Assis que, este
diretor, não costuma decupar as cenas que serão filmadas, levando em consideração o seu
gosto por explorar situações inusitadas que cada processo de filmagem apresenta. Assim, na
própria experiência do set é que vão se definindo as movimentações de câmera e os planos,
e, assim, os atores acabam dialogando com um processo criativo que não foi desenvolvido
em um momento anterior às filmagens com preparadores de elenco, mas em uma
experiência no próprio momento da filmagem.
A experiência em “Amarelo Manga”, no entanto é bastante distinta da que
Nachtergaele viveu no filme “O Auto da Compadecida”, dirigido por Guel Arraes.
Com o Guel eu tenho um tipo de parceira interessante também, mesmo sendo projetos
idealizados por ele (...). Quando eu chego o texto já tá decupado, e ele filma como ele
decupa. Ao contrário do Claudio que é uma coisa “vâmo na hora”. [Com o Claudio] tá todo
mundo muito conceituado, muito sabendo o que é, mas a cena é decidida na hora
(NACHTERGAELE, p. 107).
Com o Guel, por exemplo, é muito gostoso, porque ele ensaia. Aí terminou o ensaio com
você, tchau! O que ele ensaiou com você é o que ele vai filmar. Então, você fica com uma
lembrança emocional, intelectual, física do que você fez. Aí tem a adrenalina do set, você
ensaia um pouco e roda. E tá feito. Mas tá tudo combinado (NACHTERGAELE, p. 108).
Como vimos, as estratégias de trabalho com atores em cinema se mostram muito
variadas, e incitam o ator a ocupar papéis distintos como criador em cada uma delas, por
vezes partindo de processos anteriores às filmagens, improvisando sobre cenas do roteiro, ou
em outras aprofundando o estudo do roteiro integral e do projeto de filmagem com o diretor,
ou, ainda, estando aberto para os imprevistos que as próprias locações oferecem para serem
incorporadas à filmagem.
A seguir faço minhas considerações finais retomando as questões centrais do estudo
que relacionam o trabalho de Cavalli e Nachtergaele.
131
CONSIDERAÇÕES FINAIS
____________________________________________________________
“Nossas visões atuais sobre a atuação parecem
reverter a ansiedade que os retóricos do século XVII
expressaram no que diz respeito ao fluxo das paixões:
em vez de se preocupar com a explosão de um poço,
como eles o fizeram, os atores de nosso tempo tem se
perguntado sobre como escavar este poço”.
Joseph Roach
132
Neste estudo sobre atuação de cinema foi possível refletir sobre diferentes aspectos
ligados à formação de atores e atrizes e seu trabalho técnico em longas metragens da história
recente do cinema no Brasil. Partindo das dificuldades de encontrar discursos sobre atuação
nesta linguagem, e mais ainda de escritos que passem diretamente pela “voz” do ator,
busquei destacar algumas experiências que propõem ao intérprete lugares muito diversos nos
processos de criação de filmes. Por meio de materiais distintos e escassos que dão “voz” ao
ator, tais como entrevistas, citações em publicações sobre cinema, além das poucas obras
escritas por atores, e estabelecendo um diálogo entre estas “vozes” e o pensamento de
diretores, críticos e pesquisadores, pudemos observar de forma mais objetiva alguns dos
problemas e soluções encontrados pelo intérprete no cinema, um profissional cuja presença
nas telas, por vezes, alimenta um imaginário “enigmático” tão intenso, que seus
desempenhos parecem ter ocorrido por um simples milagre do talento ou do acaso.
Como vimos no Segundo Capítulo, no contexto da produção de filmes no Brasil,
diversos intérpretes revelados nas telas desde a Retomada acabaram por se consolidar em
um mercado alguns deles formados por “não-atores” e por atores que trabalham
alternadamente entre as linguagens teatral, cinematográfica e televisiva. Este trânsito entre
segmentos artísticos tem permitido a estes atores uma melhor sobrevivência neste ofício, já
que a indústria cinematográfica brasileira parece oferecer a poucos intérpretes a
possibilidade de sobrevivência como artistas exclusivos do cinema, diferentemente do que
ocorre em outros países, em que um número maior de atores vive de seu trabalho nas telas.
Além disso, pudemos também perceber que muitos destes profissionais têm como
base uma formação teatral. Mediante a presença pequena de escolas e cursos de atuação de
cinema no Brasil - um tipo de formação que parece estar se expandindo em face ao
crescimento da produção de filmes desde a Retomada -, a formação teatral parece oferecer
aos atores que se lançaram em uma carreira cinematográfica uma base técnica e conceitual
importante para suas experiências frente às câmeras, e que nos permitiu também estabelecer
algumas comparações entre técnica e formação nestas duas artes.
Os depoimentos dos atores Leona Cavalli e Matheus Nachtergaele, apresentados nos
três últimos capítulos, nos permitiram explorar diversas questões como: a composição de
personagens no cinema, técnicas de atuação e suas distinções em relação às mesmas no
teatro, o primeiro contato do ator com a câmera, o diálogo com a criação de diretores,
roteiristas e preparadores; ou seja, nos possibilitaram abordar questões relacionadas ao seu
processo como criadores em experiências muito distintas.
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Nos relatos sobre as experiências de Nachtergaele, pudemos perceber também que os
processos de criação do ator no cinema podem ser muito variados: seja por meio de
workshops realizados nas locações antes das filmagens, como no caso de “Cidade de Deus”,
ou em procedimentos que exploravam o acaso no set de filmagem, permitindo que o ator
colaborasse na criação do desenho das cenas, como ocorreu em “Amarelo Manga”, seja em
processos nos quais o roteiro é ensaiado a partir de um storyboard, e será filmado conforme
as definições dos ensaios, como vimos no caso de “O Auto da compadecida”, ou ainda por
meio de processos laboratoriais nas locações com todo o elenco, em forma de retiro, como
na experiência no filme “Tapete Vermelho”. Nestas experiências temos diferentes formas de
diálogo do ator com a criação cinematográfica.
Nas experiências de Cavalli, por sua vez, estes diferentes tipos de processo criativo
podem ser percebidos por meio de períodos intensos de preparação de atores, a partir de um
roteiro aberto à sua interferência na criação dos diálogos e das ações da trama em
construção, como no caso do filme “Contra Todos”, ou ainda no trabalho em filmes cujos
processos propunham a compreensão do roteiro integral, para embasar a composição dos
personagens, como em “Um Céu de Estrelas”.
Estamos falando, portanto, de processos criativos que oferecem aos atores um
exercício de criação e formação em distintos níveis de diálogo com o roteiro e a direção, seja
como um “co-criador” do roteiro, seja por dar vida a estruturas previamente desenhadas.
Portanto, mesmo que em determinados processos o ator possa contribuir na autoria do filme,
isto não significa que em experiências mais “decupadas”, ou previamente estabelecidas, o
potencial criador destes atores seja menos importante.
A experiência contínua destes dois atores no cinema brasileiro tem permitido o
desenvolvimento de uma formação que não ocorreu por meio de cursos ou experiências de
investigação deslocadas da produção de cinema, mas em procedimentos que ocorrem no
próprio trabalho de criação de filmes. Essas experiências têm estimulado diversos atores e
atrizes brasileiros a lidar com questões técnicas ligadas a criação cinematográfica, nos
oferecendo novas possibilidades de reflexão sobre seu ofício no cinema, mesmo que suas
“vozes” sobre esses processos sejam pouco presentes nas publicações desta área.
O ator nestas experiências tem criado seu próprio percurso de formação no cinema,
com a colaboração de preparadores de elenco e de diretores que tem valorizado, em
diferentes níveis, a importância de seus intérpretes como colaboradores da criação fílmica.
Assim, a qualidade das atuações no cinema brasileiro, no contexto abordado, parece
134
demonstrar um crescimento bastante satisfatório, ainda que, em algumas experiências, o
entendimento do ator sobre o seu desempenho seja visto como uma ameaça para diretores
que parecem considerar o ator um ser misterioso. Uma vez que o espaço do ator no cinema
quase sempre esteve associado ao “enigma da imagem”, e que seus processos criativos nem
sempre tenham sido levados a sério pelos especialistas da área, conforme já afirmou
Nacache (2006), seria pertinente pensar que as experiências que oferecem ao ator um lugar
de colaboração na criação cinematográfica ajudariam a dissolver a distância entre a imagem
mitificada da estrela de cinema e o profissional que, além de viver intensamente sua criação,
também se exercita de forma técnica em seu ofício. O estabelecimento de uma relação
colaborativa com a criação de atores e atrizes, seja por meio de roteiros abertos ou fechados,
com ou sem processos de preparação, parece dar grande contribuição a este entendimento de
que o ator de cinema é um trabalhador com uma especialidade particular.
Ao passo que no teatro hoje já podemos compreender a função do ator como um
pesquisador de seu ofício, um profissional que cria segundo estruturas diversas, dialogando
com as funções do diretor, do autor, do iluminador, etc, no cinema o entendimento sobre o
trabalho ator parece enigmático, como se frente às câmeras não estivesse em trabalho um
profissional que sabe o que está fazendo, que possui um entendimento técnico e certo
controle de seu desempenho. E não se trata de pensar o controle do ator como um feito
meramente racional. Se um diretor pede a uma atriz que, em determinada cena, ela saia
correndo pelas ruas deixando que o acaso a influencie, como vimos no depoimento de
Cavalli sobre o processo de “Contra Todos”, também este trabalho espontâneo passa pelo
controle da atriz, uma vez que o diretor considera sua inteligência e capacidade técnica de
dialogar com os imprevistos e, assim, resolver a tarefa que lhe foi proposta.
Ainda no diz respeito às comparações sobre teatro e cinema, cabe observar que
mesmo que estas duas artes possuam grandes distinções de natureza, códigos e mecanismos,
há em cena um profissional com a tarefa de atuar. No ato de criação, ele sabe que é assistido
de algum lugar, seja no cinema, onde cada enquadramento é o mesmo para toda a plateia,
seja no teatro, onde, mesmo sendo a boca de cena um enquadramento, cada pessoa na plateia
se situa em um ângulo distinto. O ator necessita criar dentro destes pontos de vista, jogando
com as exigências de cada espaço ou recorte. Estas percepções de dentro da cena estão
diretamente ligadas ao entendimento do ator.
No cinema, quando se propõe momentos de trabalho anteriores à experiência no set,
parece haver um interesse em permitir que o ator exerça um entendimento/controle de seu
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trabalho, um procedimento que se assemelha aos da atuação teatral. No entanto, se no teatro
a criação de cenas que compõem um espetáculo se baseia na repetição e no aprimoramento
destas (exceto para espetáculos improvisacionais, o que situa outro tipo de processo), no
cinema, uma vez finalizada a gravação de uma cena, mesmo que esta tenha sido muito
repetida, ela está captada para a posteridade, e não será mais aperfeiçoada pelo ator. Para o
ator, contudo, o entendimento de seu desempenho, e mesmo entendimento dos caminhos que
levam à sua espontaneidade parecem ser um princípio-chave de seu ofício,
independentemente do campo artístico ao qual o ele se dedica.
Ao buscar descobrir “como se atua em cinema”, não parece possível encontrar
respostas generalizantes, ainda que alguns manuais de cinema insistam em ensinar “como
ser ator em 10 passos”. Como cada ator resolve sua tarefa? A formação de cada um trará
respostas distintas, tanto no cinema quanto no teatro. Cavalli escreveu um livro sintetizando
suas experiências como atriz em teatro, cinema e televisão, refletindo sobre seu ofício.
Nachtergaele afirma não ter esse mesmo desejo. Ela, uma atriz que escreve sobre seu
processo, e ele um ator que não tem esse mesmo interesse no momento. No entanto, a partir
de seus depoimentos, muito distintos, podemos perceber que estes atores muito tem a dizer
sobre seus trabalhos, o que de alguma forma traz estas estrelas da tela a um plano real:
brasileiros, atores, de teatro, de cinema, de televisão, que sabem o que fazem, e pensam
sobre seu ofício, e que podem dar grande contribuição para as reflexões sobre ele.
Estas são experiências diversas que nos ajudam a estudar um pequeno contexto sobre
a atuação de cinema, tornando visíveis as “vozes” de atores sobre seus trabalhos, buscando
contribuir para os estudos daqueles que se aventurarem a pesquisar este ser misterioso e
fascinante, mas que é, acima de tudo, um profissional da atuação para as telas, um pensador
de sua técnica, e uma “voz” na teoria sobre seu ofício.
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