Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

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[INTER]SECÇÕES arquitectura e novo cinema português

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Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura - FAUP

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[INTER]SECÇÕESarquitectura e novo cinema português

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Dissertação de Mestrado Integrado em ArquitecturaAna Isabel Baldaia de Resende

Docente orientador: Luís Filipe Dordio Martinho de Almeida UrbanoFaculdade de Arquitectura da Universidade do Porto 2011/2012

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Aos meus pais e à minha irmã, por serem incansáveis,aos amigos, por terem entrado no jogo,

ao Luís pela ruptura,ao Tiago, por tudo,

obrigada.

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resumo

abstract

O carácter interdisciplinar da arquitectura permite uma abertura a outros

domínios que influenciam e complementam as suas teorias e metodologias. A

presente dissertação analisa possíveis relações entre a arquitectura e o cinema, a partir

das imagens do Novo Cinema Português. Surgido no início dos anos sessenta, este

movimento de renovação do cinema nacional caracteriza-se fundamentalmente pela

procura de novas formas de expressão, que se traduziram num novo entendimento

do espaço cinematográfico. Da observação de um conjunto de filmes deste período,

criaram-se três grupos temáticos pertinentes do ponto de vista arquitectónico: espaço

público, espaço privado e espaço psicológico. Cada um destes temas divide-se em três

pontos, não necessariamente distintos entre si. O Espaço Público desdobra-se em

Aproximação, Deambulação e Deslocamento; o Espaço Privado em Porta, Janela,

Corredor; e finalmente, o Espaço Psicológico em Reflexos, Projeções e Símbolos.

Através de análises parciais, pretende-se criar um todo inteligível capaz de compreender

uma parte significativa das relações entre a arquitectura e o cinema. Aspirou-se assim a

um resultado final que consista num compêndio de observações e experiências, ou se

quisermos, um manual de instruções para práticas futuras.

The interdisciplinary nature of architecture allows an opening to other areas

that influence and complement its theories and methods. This dissertation examines

possible relationships between architecture and cinema, from the images of the “Cinema

Novo Português”. Emerging in the early sixties, this renewal movement of national

cinema was mainly characterized by the search for new forms of expression, which

resulted in a new understanding of cinematic space. From the observation of a set of

films of this period, three relevant thematic groups were created from an architectural

point of view: public space, private space and psychological space. Each of these subjects

is divided into three points, not necessarily distinct from each other. The Public Space

unfolds in Approach, Wandering and Displacement; the Private Space in Door,

Window, Corridor; and finally, the Psychological Space in Reflections, Projections and

Symbols. This analysis of parts was intended to create an intelligible whole, allowing

a better understanding of a significant part of the relationship between architecture

and cinema. Thus it aspired to create an outcome which could be interpreted as a

compendium of observations and experiments or just a manual for future practices.

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índice

INTRODUÇÃO

a procura de intersecções

a experiência pessoal

o novo cinema português

sinopse

I. ESPAÇO PÚBLICO

aproximação

deambulação

deslocamento

II. ESPAÇO PRIVADO

a porta

a janela

o corredor

III. ESPAÇO PSICOLÓGICO

reflexos

projecções

símbolos

CONCLUSÃO

Bibliografia Referenciada

Créditos Imagens

Anexos: os filmes

9

12

13

16

19

21

35

47

55

57

67

77

85

87

99

109

119

123

129

135

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introdução

Interrogo-me como arquitecto: A magia do real –

café na residência de estudantes, uma fotografia de

Hans Baumgartner tirada na década de 1930. Estes

homens gostam de estar ali sentados. Pergunto-me:

posso eu, como arquitecto, projectar atmosferas, esta

densidade, este ambiente? E em caso afirmativo,

como? E penso que sim, e depois que não. Penso que

sim porque há coisas boas e menos boas.1

A definição do papel do arquitecto é uma tarefa cada vez mais ambígua. A

crescente facilidade de acesso à informação e à comunicação motivam um espírito de

experimentação que torna difícil indicar onde começa e termina a sua intervenção.

A desmaterialização dos limites da arquitectura abre novos caminhos, por vezes

imprevisíveis, permitindo a contaminação e o cruzamento com outras disciplinas.

O presente trabalho partiu desse cruzamento numa tentativa de reflectir sobre as

possibilidades de interacção da arquitectura com outros domínios, particularmente

com o campo do cinema. Apesar das diferenças óbvias entre estas duas disciplinas, o

arquitecto e o cineasta parecem perseguir um objectivo comum, o de construir mundos

que podem descrever-se e habitar-se, mundos que podem ser objecto de análise e configuração,

independentemente de serem reais ou imaginados.2 Neste sentido, o objectivo deste exercício

é tentar identificar onde e como esses mundos se intersectam. Poderemos nós, como

arquitectos, projectar as mesmas atmosferas, a mesma densidade e os mesmos ambientes

que habitam o imaginário cinematográfico? Poderá o cinema ajudar numa reflexão

mais profunda sobre a disciplina da arquitectura, sobre os seus fundamentos, as suas

ferramentas e os seus métodos?

Procurou-se então uma metodologia que proporcionasse um levantamento de

hipóteses, privilegiando a abrangência de um maior número de conceitos em detrimento

do seu aprofundamento individual, na tentativa de criar um todo inteligível capaz de

compreender uma parte significativa das relações entre a arquitectura e o cinema.

Descubro agora que tudo se passa como uma brincadeira, uma boa e velha brincadeira:

um jogo de montar com resoluções infinitas. Menos que um método há uma atitude. Trata-se aqui

de um jogo mesmo, não apenas de um artifício de linguagem. Por isso, a ideia é ver, além de onde

se conseguiu chegar, ou do que se conseguiu produzir, como isso se fez, com quais peças, produzindo

quais movimentos, seguindo quais regras.3

A PROCURA DE INTERSECÇÕES

1. Zumthor, 2006: 19

2. Arís & Roig, 2008: 9

3. Brandão, 2002: 148

fig. 1. Hans Baumgartner, residência de estudantes na Clausiusstrasse. Zurique, Suiça. 1936.

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Adoptando uma lógica de jogo de associações visuais e conceptuais, próxima da

ingenuidade presente numa brincadeira, partiu-se para a criação de uma matriz capaz de

abranger diferentes e coincidentes secções do cinema e da arquitectura. Utilizando um

conjunto de filmes do Novo Cinema português, colocaram-se lado a lado os diferentes

fotogramas e, num exercício de confrontação e conjugação dessas imagens, criaram-se

grupos com base em pressupostos arquitectónicos. Montou-se assim uma estrutura, um

puzzle de várias peças que, apesar da forma aparentemente rígida, se pretende flexível,

capaz de se montar de diferentes maneiras e de, a qualquer momento, deixar entrar

novos elementos. Esta estrutura é constituída por três grupos, cada um composto por

três partes, não necessariamente distintas. A ideia de versatilidade e desdobramento

associada ao número ‘três’ parece ir de encontro ao objectivo deste exercício, ao mesmo

tempo que abrange três importantes níveis para o entendimento do espaço: público,

privado e psicológico. Com este método, pretendeu-se valorizar a intuição como ponto

de partida, numa espécie de desprofissionalização do olhar4 necessária a uma investigação

mais livre e espontânea.

Para desfrutar da arquitectura há que viajar com a imaginação, que voar com a

fantasia.5

4. Ábalos, 2001: 9

5. Alejandrio de la Sota cit. Idem: 11

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A EXPERIÊNCIA PESSOAL

Em Janeiro de 2011, tive a oportunidade de integrar o projecto de investigação

Ruptura Silenciosa. Intersecções entre a Arquitectura e o Cinema. Portugal 1960-74. Se o cinema

era já um interesse de longa data, talvez até mais antigo que o próprio interesse pela

arquitectura, esta experiência reforçou a vontade de estabelecer afinidades e pontos de

contacto entre as duas disciplinas. Desta forma, não só foi determinante para a escolha

do tema, como foi complementar do processo de desenvolvimento deste trabalho, já

que ambos decorreram em simultâneo.

A investigação desenvolvida nos últimos anos, despertou um especial interesse

pelo Novo Cinema português que, naturalmente, se tornou o objecto de estudo desta

dissertação. Através deste projecto, tive um acesso privilegiado à recolha de informação

e ao visionamento dos filmes, bem como a oportunidade de apresentar comunicações

em congressos nacionais e internacionais. Permitiu-me ainda participar em entrevistas

a figuras centrais da arquitectura e do cinema portugueses, tais como Fernando Lopes,

Nuno Portas, Sergio Fernandez e Manuel Vicente.

Por outro lado, a participação na realização das curtas-metragens Sizígia e A Casa

do Lado, acompanhando o processo desde a pré-produção à montagem final, moldou a

abordagem deste trabalho. O contacto directo com a prática cinematográfica fez surgir

uma vontade de identificar e enumerar diferentes possibilidades de manipulação quer

do espaço arquitectónico, quer do espaço cinematográfico, de forma a enriquecer

ambas as partes. Pretende-se assim que o resultado final consista num compêndio de

observações e experiências, ou se quisermos, um manual de instruções para práticas futuras.

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O NOVO CINEMA PORTUGUÊS

O Novo Cinema6 português foi, depois da chegada do sonoro a Portugal, o

acontecimento mais importante da história recente do nosso cinema7. Numa época marcada por

acontecimentos que viriam a transformar profundamente o panorama político-social

– guerra colonial, emigração em massa, agitações políticas contra o regime ditatorial,

medidas de urbanização dos grandes centros – surgiu uma conjuntura artística que

deu novos contornos à paisagem cultural. Nas artes plásticas, na literatura, na música,

na arquitectura e no cinema, uma nova geração de artistas que conhecera de perto as

vanguardas internacionais (por razões políticas ou de carreira) procurou afirmar novas

tendências.

O cinema nacional atravessava então uma profunda crise: depois do período

dourado das comédias à portuguesa – que se traduziu num enorme sucesso de bilheteira

e na construção de uma verdadeira indústria cinematográfica – a produção portuguesa

entrara em forte declínio, atingindo o momento mais crítico em 1955, o chamado

ano zero, em que não se produziu uma única longa metragem em Portugal. Foi neste

contexto que surgiu uma nova geração de cineastas formada nos cineclubes que, sob a

influência das nova vagas internacionais8, reclamava a criação de um novo cinema que

restituísse a identidade nacional e que possuísse uma verdade contagiante que os levasse

[aos espectadores] a pensar e a viver.9 É então um período de grande experimentação

em que o fio condutor parece ser uma vontade de reagir contra um cinema moralista

e apoiado nas ideologias do estado. Tal como afirma Fernando Matos Silva, era este

interesse comum que unia os diferentes cineastas, e a cidade de Lisboa tornou-se palco

das suas acções e personagem central dos seus filmes:

Lisboa era (é) a nossa cidade-refúgio. Perseguidos diariamente, vivíamos a cidade em

grupo; uma espécie de ‘Band à Part’ que questionava e reinventava o cinema. Éramos personagens

reais num mundo de cinema e personagens de cinema num mundo irreal, controlado pelo mau

gosto, pela estupidez e pela censura.10

Em 1963, estreou aquele que a crítica considerou o primeiro filme

verdadeiramente novo: Os Verdes Anos de Paulo Rocha11. Produzido de forma

independente por António da Cunha Telles – figura central do Novo Cinema, também

ele cineasta, que viria a financiar e produzir os primeiros filmes deste movimento – este

filme ia de encontro à realidade portuguesa, documentando o provincianismo da Lisboa

dos anos sessenta e o sufoco de uma geração jovem em crise de identidade e de valores.

Por outro lado, por razões ideológicas e financeiras, abandonava os estúdios e filmava a

cidade real, um traço que se tornaria comum nos filmes desta época. No ano seguinte,

estreou Belarmino de Fernando Lopes e o Novo Cinema assumiu definitivamente a

sua posição. Através da história de um personagem real, o boxeur Belarmino Fragoso,

confirmou-se um novo olhar sobre a sociedade portuguesa e sobre a cidade de Lisboa.

Os filmes que se seguiram, continuaram esta tendência que Paulo Filipe Monteiro

afirma traduzir-se numa invenção da tradição que, inevitavelmente, significa a exclusão das

6. Embora seja comum ouvirmos a expressão Cinema Novo, esta diz respeito ao Cinema Novo brasileiro. A expressão mais correcta para o caso português será Novo Cinema, mais próxima da nova vaga francesa.

8. Através da atribuição de bolsas pelo Estado ou pela Fundação Calouste Gulbenkian, muitos destes jovens – entre eles Fernando Lopes, Paulo Rocha, António-Pedro Vasconcelos e João César Monteiro – tiveram a oportunidade de estudar no estrangeiro, nomeadamente em Paris e Londres, onde entraram em contacto com as novas tendências como a Nouvelle Vague, o Cinéma Vérité e o Free Cinema.

9. Fernando Matos Silva in Melo (coord.), 1996: 35

11. Outras obras haviam dado os primeiros passos no sentido de romper com os cânones do cinema “antigo”, porém a crítica, sedenta que estava de uma obra que servisse de estandarte a um cinema verdadeiramente português remeteu-os para segundo plano, mais ou menos injustamente. É o caso de, por exemplo, Dom Roberto (Ernesto de Sousa, 1962), que apesar de retomar o bairro e o pátio tão típicos das comédias à portuguesa, transforma-o num lugar triste, sombrio, onde a esperança esmorece lentamente. Ou ainda Pássaros de Asas Cortadas (Artur Ramos, 1963), um filme que afirma o tom de descrença e desencantamento que irá ser uma constante nos filmes “novos”, através da análise de uma burguesia em decadência, também ela muitas vezes neles retratada. Há ainda quem, como Henrique Alves Costa, considere que a verdadeira ruptura aconteceu com Acto de Primavera (Manoel de Oliveira, 1962), um filme entre o documentário e a ficção, onde os movimentos de câmara ganham uma autonomia expressiva quase independente das palavras (Areal, 2011: 397)

10. Idem: Ibidem

7. Fernando Matos Silva in Melo (coord.), 1996: 35

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tradições que a nova geração considera não corresponderem à essência do cinema (moderno)

português.12 Apesar do esforço colectivo, as permanentes dificuldades levaram, em 1967,

à necessidade de fazer uma síntese e reflectir sobre o futuro do cinema português:

(...) todo o jovem cinema Português, com gente mais velha considerada jovem de ideias,

se desloca à Cidade Invicta para tomar parte na Semana do Novo Cinema Português, organizada

pelo Cineclube do Porto. O fracasso das Produções Cunha Telles, a ausência de possibilidades

financeiras, o desinteresse do público pelo novo cinema, o evidente reforço da Censura [...], a frágil

situação do cinema português no mercado, o declínio do movimento cineclubista, tudo isso faz

parte da agenda dos trabalhos, que inclui o visionamento dos filmes do novo cinema português.13

Na sequência desta discussão, foi criado o Centro Português de Cinema,

uma cooperativa de cineastas que, através da Fundação Gulbenkian, conseguiu

financiamento para uma nova vaga de filmes, lançando (ou relançando, no caso de

Manoel de Oliveira) autores que até então não haviam tido oportunidade de concretizar

projectos próprios. Os chamados Anos Gulbenkian são assim um novo fôlego na produção

nacional e deles resultaram filmes como Uma Abelha na Chuva (Fernando Lopes, 1972),

O Recado (José Fonseca e Costa, 1972), Perdido Por Cem (António-Pedro Vasconcelos,

1973) ou O Mal Amado (Fernando Matos Silva, 1974). A esta iniciativa colectiva, juntou-

se um esforço individual de Cunha Telles que, em 1970, arriscou a realização de um

filme com poucos meios, filmado na película que sobrara dos primeiros filmes que

produziu e, pela primeira vez em Portugal, servindo-se da publicidade indirecta14. Ao

contrário das expectativas, O Cerco tornou-se um sucesso além fronteiras: fez parte da

selecção oficial da Semana dos Realizadores do Festival de Cannes desse mesmo ano,

foi escolhido por Henri Langlois, um influente director da Cinemateca Francesa, para

integrar uma retrospectiva das obras mais importantes da história do cinema no MoMA

de Nova Iorque, e Maria Cabral, actriz principal, foi capa da revista francesa Le Monde.

O Novo Cinema parecia, finalmente, afirmar uma identidade sólida e ganhar

expressão tanto ao nível nacional como internacional. Mas um acontecimento político

viria a mudar o rumo da sua história: com a Revolução de Abril, o esforço colectivo

e o inimigo comum que unificava este grupo despareceu. Uns seguiram carreiras

independentes, outros abandonaram a prática. E o Novo Cinema tornou-se velho.

Mas os amigos onde estão? Belarmino e os seus companheiros? Muitos deles já não

ousam subir até à fonte, pois toda a riqueza vem do mar.15

No entanto, do ponto de vista da linguagem, os filmes do Novo Cinema

introduziram algumas inovações que viriam a influenciar a produção cinematográfica

nacional posterior. Paulo Rocha chega mesmo a afirmar que esteticamente continuamos

prisioneiros do que de bom e de mau se produziu nos anos 60. As pessoas e os tempos mudaram,

mas os dilemas e os conceitos não.16 Mas apesar de surgirem de um contexto político

muito específico, estas inovações não constituíram, como muitas vezes é sugerido, uma

resistência política, mas um movimento essencialmente artístico.

13. Pina ,1987: 163

12. Paulo Filipe Monteiro, “O fardo de uma nação” in Areal, 2011: 368

14. Tradução do termo inglês product placement, significa a inserção subtil de mensagens publicitárias no conteúdo de filmes, programas de televisão, rádio e outros meios de comunicação.

15. Excerto de um poema de Friedrich Hölderlin citado por Paulo Rocha. Andrade (coord.), 1996: 25

16. bidem: 24

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(...) os realizadores do novo cinema, tendo incorporado a táctica da alusão, conseguiram

fazer passar uma mensagem subliminar de oposição através da recusa em falar da organização

social e política; falavam sobretudo em termos existenciais, de uma opressão latente, de

impossibilidades narrativas, de revezes inexprimíveis. (...) Não podendo exprimir-se contra o

sistema político-social – sem ser por ele aniquilado – os cineastas encontram uma fuga para

as ideias latentes através da forma. (...) É isso que distingue a nova geração: conseguir falar da

repressão sem a designar, mas mostrando-a no alheamento das personagens, nas escolhas de mise-

en-scène e em formas de expressão que fogem às codificações classicistas do cinema para procurar

outras formas e combinatórias a nível de expressão.17

Ao nível da narrativa, há uma tendência para a subjectividade, por um lado

motivada pela necessidade de contornar o poder da censura, por outro fruto de uma

criatividade estimulada pela falta de meios. As histórias não seguem uma estrutura

clássica de intenções claras, e revestem-se de simbolismos, mensagens subtis e significados

ocultos. Formalmente, esta subjectividade traduz-se numa liberdade na montagem,

pontuada por saltos, hiatos, elipses e flashbacks. Há igualmente uma subjectividade do

olhar, isto é, o ponto de vista cinematográfico deixa de ser exterior aos personagens e

passa a acompanhar ou a coincidir com o seu ponto de vista.

Assiste-se também a um novo tratamento dos personagens, num sentido mais

existencialista. Os protagonistas são alheados da sua função social, por oposição aos

heróis das comédias dos anos quarenta. O indivíduo torna-se o centro da história e

abandona-se a noção de colectivo – este, no limite, existe apenas para confirmar o

isolamento do personagem. O seu conflito interior e os seus sentimentos reprimidos,

apesar de constituírem a base da narrativa, são representados de forma minimal, numa

atitude anti-melodramática que afasta os filmes da corrente neo-realista. Este processo

passa por uma especial atenção à mise-en-scène, onde o espaço cinematográfico não é

apenas um pano de fundo e conquista significados próprios.

Como corrente cinematográfica, o Novo Cinema sofre de uma ausência

de unidade. Cada filme, até quando realizado pelo mesmo cineasta, era uma nova

experiência e uma nova conquista. O que unia este grupo de jovens era uma vontade de

registar um tempo e um espaço específicos, através de um cinema de autor, individualista,

porque se pretendia um espelho das inquietações pessoais. E foi precisamente essa

individualidade que motivou a ruptura após a Revolução de 25 de Abril.

17. Areal, 2011: 375

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SINOPSE

(...) o espaço [no Novo Cinema português] é um elemento estruturante da encenação

– e a colocação do personagem dentro desse espaço, ou a definição do espaço em função do

personagem, têm importância central e um significado não gratuito.18

Nas novas vagas cinematográficas, surgidas por volta da década de sessenta, e

em particular no Novo Cinema português, há um desejo generalizado de sair para a rua

e tomar consciência da realidade urbana. O espaço público torna-se palco das aspirações

sociais, das agitações políticas e de renovações culturais, numa época em que também

a disciplina de urbanismo se volta para a pequena escala e para a complexidade das

relações urbanas. Dá-se assim uma aproximação à cidade, que deixa de ser apenas um

cenário e ganha vida própria, moldando e condicionando as acções dos personagens.

Deixa de ser representada como um espaço genérico, tem nome, localização e um

tempo específico. No Novo Cinema português a cidade é Lisboa, para a qual se voltam

novos olhares e novas interpretações, baseados num descontentamento e frustração

generalizados. Essa inquietação e desconforto interiores empurram os personagens para

a rua, que aí deambulam na tentativa de descobrir a cidade e o lugar que nela ocupam.

Os espaço urbano é assim apresentado através dos seus trajectos, numa descontinuidade

e fragmentação que reproduzem a geografia real do espaço. Mas a cidade não contém

as respostas que os personagens procuram, intensificando o sentimento de deriva e de

desorientação. A reacção a esse deslocamento físico e psicológico traduz-se numa fuga:

para fora (da cidade ou do país) ou para dentro (de si mesmo).

Este desassossego que caracteriza os personagens do Novo Cinema traduz-se

num movimento constante do quarto para a rua e da rua para o quarto. Desta forma, o

espaço privado torna-se igualmente relevante nestas narrativas, uma vez que é também

responsável por delimitar o seu território íntimo. A porta, a janela e o corredor são

os elementos mais expressivos do espaço interior pela sua condição ambígua: são

simultaneamente elementos de ligação e de separação, quer na relação interior/exterior,

quer na interação entre os diferentes espaços interiores. São elementos mediadores cuja

importância supera as suas características físicas, adoptando significados e interpretações

mais subjectivas.

ESPAÇOPÚBLICOaproximação

deambulação

deslocamento

PRIVADOporta

janela

corredor

PSICOLÓGICOreflexos

projecções

símbolos

18. Areal, 2011: 394

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As narrativas do Novo Cinema assentam em histórias onde o importante não

é uma lógica de princípio, meio e fim, mas os relatos de situações e estados de alma,

consequência de um cinema de características biográficas. Questões de identidade,

auto-reflexão e aspirações pessoais são as grandes motivações destas obras. Por sua

vez, esta condição psicológica é mais sentida do que explicada, é mais subtil do que

melodramática. É sugerida através da interacção do indivíduo com aquilo que o rodeia,

do seu reflexo no espaço, das memórias e frustrações que nele projecta, da presença

símbolos que intensificam determinadas imagens ou pensamentos. A dimensão

psicológica é por isso indissociável de qualquer acção, de qualquer espaço, de qualquer

filme.

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I. ESPAÇO PÚBLICO

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aproximação

A retórica espontaneísta do «contra» deixou marcas profundas e a actual paisagem humana

e social seria bem diferente sem ela: contra o Estado e os seus mecanismos de enquadramento;

contra a família convencional e o recalcamento sexual; contra o racismo e a subordinação das

mulheres e crianças; contra a escola disciplinadora e reprodutora das desigualdades; contra o

trabalho penoso e o consumo alienante, etc... Tudo isto é irreversível, tendo sido absorvido e

massificado até ao limite do relativismo ante a falência das crenças autoritárias.1

Durante os anos sessenta, a energia política e cultural que se fazia sentir

um pouco por todo o mundo ocidental, agitou o imaginário popular. Motivada por

movimentos libertários e anticapitalistas, que encontram o seu expoente na Revolução

de Maio de 1968, em Paris, esta é uma década de profundas renovações, de abertura

ideológica, de vontade de intervenção e representação cívica. As ciências sociais ganham

uma nova expressão e invadem particularmente o campo artístico, numa tentativa de

promover a interacção entre o homem e a obra. As artes plásticas, a arquitectura e

o cinema voltam-se para o quotidiano, alterando de forma profunda a percepção e a

leitura da paisagem urbana.

Em 1957, forma-se o Internationale Situationniste (Situacionista Internacional)

um grupo de artistas e intelectuais que, baseado nos ideais Marxistas, pretendia

revolucionar a vida quotidiana de forma a combater a passividade e a alienação. Dos

vários membros, destaca-se o ensaísta e realizador Guy Debord2 que, em 1957, escreveu

o relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de organização e de acção da

tendência situacionista internacional, onde reunia os princípios do movimento:

A nossa ideia central é a construção de situações, isto é, a construção concreta de

ambiências momentâneas da vida e a sua transformação numa qualidade passional superior.

Temos que desenvolver uma intervenção sistemática sobre os factores complexos das duas

componentes em interacção perpétua: o ambiente material da vida e os comportamentos que esse

ambiente dá origem e que o transformam radicalmente.3

A vontade de tornar a vida quotidiana numa constante experiência criativa,

levou a que a arquitectura e o urbanismo se transformassem nos pontos de maior

interesse para os situacionistas. Baseados numa ideia de arte integral, defendiam o

Urbanismo Unitário que incluísse a criação de novas formas e o ‘détournement’4 de formas

anteriores de arquitectura, urbanismo, poesia e cinema.5 Contra a passividade moderna,

a arquitectura e o urbanismo eram vistos como ferramentas para a revolução social,

cultural e política. O pensamento urbano situacionista, mais do que uma vertente,

era uma forma de observação, apreensão e experiência da cidade, baseada na ideia de

construção de situações. Elegiam a psicogeografia como método e a deriva como técnica.

A psicogeografia seria o estudo das leis exactas e efeitos específicos de ambientes geográficos,

quer conscientemente organizados ou não, nas emoções e no comportamento dos indivíduos.6

1. Manuel Villaverde Cabral “Maio de 1968, uma revolução cultural” cit.Leite, 2010: 15

2. Guy Debord (1931-1994) é o autor de Sociedade do Espectáculo, um ensaio publicado em 1967, que se opunha à perversão da vida moderna, marcada pelo capitalismo e pela alienação, e cujo carácter contestatário foi uma importante motivação para os acontecimentos de Maio de 1968. Com base nestes pressupostos, Debord realizou, em 1973, um anti-filme com o mesmo título.

3. Debord, 1957

5. Debord, 1957

6. Idem

4. Conceito desenvolvido pelos movimentos situacionistas que consiste na reutilização ou imitação de expressões do sistema capitalista e da sua cultura media de forma a subverter o seu significado e criar um efeito satírico.

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Esse estudo seria realizado através da deriva, ou seja, a apropriação do espaço urbano

através do caminhar sem rumo. Daí resultariam cartografias subjectivas e afectivas dos

diferentes ambientes psíquicos provocados pela deambulação. A mais emblemática dessas

cartografias é The Naked City7, um mapa da cidade de Paris composto por fragmentos

da cartografia real da cidade mas dispostos de forma aparentemente aleatória. Cada

um desses fragmentos é um ambiente psíquico e encontram-se ligados por setas que

representam as possibilidades de deriva, criando uma organização afectiva entre os

espaços. Desta forma, mesmo não produzindo um modelo real de cidade, o movimento

situacionista fez um convite à reflexão e ao debate da disciplina de arquitectura e

urbanismo, que viria a ser muitas vezes relembrado, mesmo depois da sua extinção em

1972.

Por outro lado, autores como Jane Jacobs (1916-2006) e Christopher

Alexander (n. 1936) tentaram demonstrar os erros inerentes aos princípios modernos,

desenvolvendo novos entendimentos sobre a cidade. Ambos reconheciam a ordem

urbana como um fenómeno emergente e espontâneo que nasce da interacção de

várias pessoas e de vários usos, a diferentes níveis e a diferentes escalas. Desta forma,

introduziram a importância da percepção da cidade à escala da rua e do indivíduo, e da

sua importância na definição e no enriquecimento do ambiente urbano.

Em 1961, Jacobs publicava Death and Life of Great American Cities, uma obra

que viria a tornar-se um clássico da crítica ao Urbanismo Moderno. Defendia que

os processos de interacção social eram fundamentais para um ambiente urbano de

qualidade e que os planos centrais e abstractos tinham efeitos catastróficos, muitas

vezes reduzindo a riqueza existente. Jacobs criticava a supressão da rua tradicional pelos

planos modernos, já que esta seria o lugar primordial para a emergência de uma vida

urbana rica e complexa. Os passeios, por exemplo, vigiados pelos habitantes e pelos

transeuntes, transformar-se-iam em espaços para os jogos das crianças, mais seguros e

mais ricos do que os grandes parques públicos. A vitalidade das ruas seria garantida pela

mistura e combinação de usos, ao contrário da separação proposta pelo Urbanismo

Moderno. A cidade deveria ser entendida em toda a sua complexidade, e a tradição

como forma de transmissão de conhecimento e identidade não deveria ser ignorada.

Por outro lado, e de certo modo em oposição ao movimento situacionista, Jacobs

criticava o entendimento da cidade como uma obra de arte.

7. Título inspirado no film noir americano, realizado em 1948 por

Albert Matz e Malvin Wadd. O título do filme, por sua vez, foi retirado

de um livro de fotografias de crimes publicado em 1945.

fig. 2. The Naked City, mapa psicogeográfico de Paris. Guy

Debord, 1957

Page 24: Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

23

Abordar a cidade, ou mesmo um bairro da cidade, como se se tratasse de um problema

de arquitectura de grande escala, tentando criar ordem a partir de uma disciplina de arte, é

cometer o erro de tentar substituir a arte pela vida.8

Quatro anos depois, Christopher Alexander escrevia um texto intitulado “The

City is Not a Tree”, onde contrapunha cidade natural, de crescimento espontâneo e

baseada na continuidade histórica, à cidade artificial, planeada segundo um conjunto

de regras específicas. Analisando planos como o de Brasília, Alexander tentava

demonstrar como a cidade artificial, dividida hierarquicamente em unidades distintas,

diminui o número de acções e de ligações possíveis entre a população e o meio. As

cidades naturais, pelo contrário, possuem uma rede complexa de ligações que permite

à população criar múltiplas relações de proximidade com diferentes bairros. Tal como

Jabocs, Alexander acusava o planeamento de simplificar os problemas urbanos e de

criar sistemas demasiado rígidos e de grande escala, que não correspondem à verdadeira

complexidade da cidade.

Ainda no âmbito da crítica ao Movimento Moderno e da valorização da

participação social, factores que dominavam o panorama arquitectónico dos anos

sessenta, é importante referir as experiências do grupo Team X e, em particular, de

Alison (1928-1993) e Peter Smithson (1923-2003). Enquanto que Jacobs e Alexander

tentaram perceber a génese do problema da cidade, os membros do Team X tentaram

dar-lhe novas formas. Em 1956, no décimo CIAM, a partir do qual a metodologia e

a hierarquia dos arquitectos do Estilo Internacional foi contestada, surge uma retórica

contra a cidade funcionalista, assente em princípios como a participação social, a escala humana,

o pensar lógico e racional e a valorização da decisão do habitante na criação do seu ambiente.9 Por

oposição ao modelo de cidade funcionalista, dividido em habitação, trabalho, transporte e

lazer, propuseram-se novas categorias como casa, rua, bairro e cidade. Em alternativa à rua

histórica, ainda que o objectivo fosse manter as suas actividades sociais e a consciência

comunitária, os Smithson desenvolvem o conceito de edifícios de habitação colectiva

como ruas no céu (‘streets in the sky’). Um conceito que, na sua génese, visava um

sentimento de pertença e de vizinhança semelhante aos princípios de Jacobs, mas que

na prática falhou, talvez pelas mesmas razões por que falhara o Movimento Moderno.10

Em suma, na década de sessenta há uma mudança de escala na abordagem da

cidade: os grandes ensembles modernos, baseados no funcionalismo e no formalismo,

são substituídos pelo desejo de voltar a imergir na cidade, valorizando a rua como a

8. Jane Jacobs “The Death and Life of Great American Cities” cit. Costa, 2011: 67

9. Leite, 2010: 39

10. O complexo habitacional Robin Hood Gardens (Alison e Peter Smithson, 1972) foi projectado como exemplo do conceito de ruas no céu, com galerias exteriores que ligam as diferentes parcelas de habitação. Contudo, à semelhança do que aconteceu com o complexo modernista Pruitt-Igoe (Minoru Yamasaki, 1955), desenvolveu graves problemas sociais e aguarda demolição. Apesar dos esforços de arquitectos como Zaha Hadid e Richard Rogers para o incluir na lista de edifícios preservados, as autoridades decretaram, em Março de 2012, a demolição do complexo, com o apoio de 75% dos moradores. (informação recolhida em news.bbc.co.uk)

fig. 3. A diferença entre uma estrutura em forma de árvore, baseada em divisões e subdivisões, e uma semi-trama [semi lattice] de várias inter-ligações.

fig. 4. Alison e Peter Smithson com Nigel Henderson e Eduardo Paolozzi em Londres, 1956

Page 25: Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

24

arena da expressão social11, onde o homem, na sua complexidade e subjectividade, ganha

uma nova importância. Este desejo encontra paralelo no cinema, onde a revolução das

novas vagas corresponde a uma aproximação progressiva à cidade.

Desde o momento da sua criação que o cinema estabeleceu uma relação

de proximidade com o espaço público e a vida urbana.12 O interesse em registar e

documentar a vida e o espírito das cidades desenvolveu-se na década de vinte, tornando-

-se um dos temas favoritos dos teóricos mais citados desta época, como Georg Simmel,

Walter Benjamin ou Siegfried Kracauer. Todos eles reservavam especial atenção às

representações cinematográficas da cidade, sobretudo para entender o que estas nos

diziam sobre a modernidade.13 ‘Venham à cidade! ouvimos nos filmes dos anos vinte.14 De

facto, o nascimento do cinema concretizou o sonho moderno de vencer distâncias,

proporcionando a experiência da viagem aos que na realidade não podiam viajar, numa

verdadeira conquista de território.

Como se fossem arqueólogos urbanos, os primeiros cineastas procuravam o real, retratando

a existência quotidiana do espaço urbano virando-se deliberadamente para a rua, filmada na

sua diversidade, mostrando ao espectador, a imagem do seu habitat, a cidade. Esses primeiros

espectadores gostavam particularmente das cenas de rua, cativados pela visão “verdadeira” da

animação urbana, onde se reconheciam.15

A forma de ver e filmar a cidade assumiu diferentes contornos ao longo do

tempo. Cada período parece ter um olhar particular e uma cidade dominante. Nos anos

vinte, Berlim tornou-se a metrópole preferida do grande ecrã, sempre numa tentativa

de compreender os perigos e prazeres da vida urbana moderna: crime, anonimato, uma

perda da moralidade, desemprego, e a luta de classes, por um lado, e movimento, velocidade,

entretenimento e livre erotismo por outro.16 Destacam-se assim três géneros: as City Symphonies,

que consistem numa montagem poética de cenas do dia-a-dia, que privilegiava o ritmo,

a velocidade e o tom quase impressionista das imagens, e onde o importante não era

pintar um retrato fiel do quotidiano, mas exprimir uma determinada ideia de cidade17;

os Weimar Street Films, onde há um verdadeiro fascínio pela rua18, que aparece quase

sempre na obscuridade, tornando-se local de encontros ocasionais, crimes, desejo, e

onde a moral é questionada; e os filmes expressionistas, como Metropolis (Fritz Lang,

1927), onde os cenários artificiais são uma metáfora que põe em causa os valores da

cidade moderna e a sua relação com a industrialização.

11. Smitshon, 2005: 24

14. Bruno, 2002:26

15. Urbano, 2008

16. Mennel, 2008: 23

17. Em Portugal, temos o exemplo de Douro, Faina Fluvial, uma sinfonia

da cidade do Porto, realizada por Manoel de Oliveira, em 1931.

18. Em parte atribuído a evoluções tecnológicas como a industrialização

da luz, que tornou a vida nas ruas visível à noite, abrindo uma nova

dimensão de interacção (Mennel, 2008: 32)

13. As teorias do sociólogo Georg Simmel (1858-1918) incidiram particularmente na experiência

sensorial da metrópole que, com o seu ritmo e fragmentação,

provoca no indivíduo uma constante mudança de impressões, noção que se aproxima no género City

Symphony. O movimento através da cidade descrito por Simmel é

explorado mais aprofundadamente por Walter Benjamin (1892-1940)

e a sua teoria sobre o flanêur. Nos seus textos, onde reconhece a

qualidade cinemática da cidade, e a forma como descreve a experiência da flanêrie, parece aproximar-se ao

efeito da montagem em cinema. Siegfried Kracauer (1989-1966)

voltou-se para a emergência das massas e consequente mudança

do carácter da arte. Criticou profundamente o mimetismo

da indústria do entretenimento, responsável pela criação de uma

cultura de superfície. Os três autores focaram-se no contexto Marxista e analisaram o cinema e a cidade como parte da reorganização do

trabalho e do mercado.

12. O filme que inicia oficialmente a história do cinema, La sortie de

l’usine lumière à Lyon, realizado em 1895 pelos irmãos Lumière,

demonstra um interesse em registar o quotidiano urbano. Dos cerca

de 1500 filmes que se sabe terem sido feitos pelos Lumière, mais de 3/4 tinham como tema a cidade.

(Urbano, 2008)

fig. 5. Cartaz publicitário de Berlin: Symphony of a Great City, 1927

fig. 6. Joyless Street (G. W. Pabst)

Page 26: Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

25

Nos anos quarenta e cinquenta, foi talvez Los Angeles que dominou o

imaginário cinematográfico através do Film Noir. É um género cinematográfico com uma

expressão visual muito particular, com um grande contraste entre o preto e o branco,

entre a luz e a sombra, que imprime uma forte carga dramática às imagens. É assim

criado o ambiente certo para histórias de personagens solitários que deambulam pela

cidade vazia, encontrando acidentalmente outros personagens também eles solitários e

alienados. O género noir, tipicamente urbano, faz da rua o seu reino19.

Na viragem para a década de sessenta, surgiram um pouco por todo o mundo

novos cinemas que, tal como na arquitectura e no urbanismo, contestavam os sistemas

e os princípios vigentes, provocando uma revolução no cinema e na forma de filmar a

cidade. A Nouvelle Vague francesa é a mais conhecida, documentada e discutida de todas

estas novas vagas. Criada por um grupo de jovens cineastas formados nos cineclubes e

fortemente ligados à crítica, caracterizava-se por uma reacção ao cinema tradicional, isto

é, ao cinema de estúdio, de alta produção, que se baseava em adaptações literárias e era

realizado quase sempre pelos mesmos autores.

Numa linha análoga à do pensamento situacionista, pretendia-se que os filmes

da Nouvelle Vague provocassem uma experiência de autenticidade, conseguida através

de uma marca de autor, de filmagens na rua com som directo, do uso de actores não

profissionais e de uma forte componente de improvisação. A relação dos filmes da

Nouvelle Vague com a cidade, mais concretamente com Paris, é evidente logo pelos

títulos: Paris Nous Appartient (Jacques Rivette, 1961), Nadja à Paris (Eric Rohmer, 1964),

Paris vu par… (Claude Chabrol et al., 1965). A cidade deixa de ser um cenário vazio

para personagens solitárias e histórias de detectives, e passa a ser representada tal como

é na realidade: aqui o real passa em frente à câmara, gratuitamente, sem outra necessidade

que não seja a captação da agitação da cidade.20 Por outro lado, os novos equipamentos,

mais portáteis e capazes de obter melhores resultados em ambientes pouco iluminados,

permitiam aos realizadores filmar livremente pelas ruas, sem que fosse necessário cortá-

las ao trânsito ou impedir a passagem dos peões. Assim, as pessoas que vemos em plano

de fundo não são meros figurantes mas pessoas reais. Pessoas que olham por vezes para

a câmara com um ar surpreendido, lembrando-nos que a história que estávamos a seguir

é apenas ficção, mas que a cidade que vemos é genuína e autêntica. Jean-Luc Godard

terá sido o mais ousado dos autores ao filmar, pela primeira vez, os Champs-Elysées em

plena luz do dia em À Bout de Souffle (1960), com uma atitude próxima do manifesto.

19. PAQUOT, Thierry in Jousse & Paquot (ed.), 2005: 229

20. CHAUVIN, Jean-Sébastien in Idem: 194

fig. 7. Raoul Coutard na rodagem de À bout de Souffle

fig. 8. Rodagem de Baisers Volés, 1968

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26

A maioria dos autores da Nouvelle Vague cresceu em Paris e, por isso, a forma

como nos mostram a cidade baseia-se em experiências pessoais e assume contornos

auto-biográficos. Na trilogia de Truffaut21, a vida do personagem Antoine Doinel

confunde-se com a do actor que lhe dá corpo, ao mesmo tempo que as situações a que

está sujeito ao longo dos filmes parecem ser o reflexo das vivências do próprio Truffaut

e da sua geração.

A dimensão biográfica projecta subjectividade no espaço urbano criado nos filmes.

Paris, no entanto, funciona também como a capital da França. A relação biográfica com Paris,

portanto, também resulta de seu papel como centro educacional, político e cultural da nação. Os

‘auteurs’ imbuíam o cenário com a subjetividade, mas a relação entre os seus retratos subjetivos e

a cidade sob investigação foi moldado também pelo papel de capital desempenhado para a nação

naquela conjuntura histórica.22

Tal como na perspectiva dos Smithson, também nos filmes da Nouvelle Vague

a rua é arena. Nas palavras de Jean-Sébastien Chauvin, é na rua que cada um (se) faz o

seu cinema.23 O mesmo autor afirma que a matriz estética de grande parte dos filmes

franceses deste período é o movimento do quarto para a rua e da rua para o quarto, ou

mais concretamente, do interior de si mesmo para a descoberta dos ruídos da cidade. A

rua é assim uma extensão do lar, aparece como cenário para as relações afectivas substituindo

as estruturas familiares convencionais.24 Os protagonistas não têm uma morada fixa (À Bout

de Souffle) ou rejeitam-na (Les 400 Coups), e a rua torna-se o principal palco das suas

acções.

Em 1965, o produtor Barbet Schroeder, numa tentativa de reavivar a Nouvelle

Vague – que entretanto perdera a sua vitalidade – convidou seis realizadores a escolher

seis bairros de Paris e, a partir deles, filmar uma curta-metragem onde expusessem a sua

visão da cidade. Ao conjunto dos seis filmes deu o nome de Paris Vu Par. Douchet escolhe

o bairro Saint-Germain-des-Prés, começando por descrever exaustivamente os lugares que

o compõem enquanto a câmara percorre fluidamente as ruas. Rouch filma o quarteirão

da Gare du Nord, acompanhando o personagem desde que sai do seu apartamento.

Neste movimento quase não existem cortes, permitindo-nos ter a exacta noção das

distâncias e do tempo que levamos a percorrê-las. Pollet, apesar de escolher a rua Saint-

Denis, opta por limitar a acção ao interior de um quarto. Rohmer, como Douchet, dá

início à sua curta-metragem com uma descrição da Place de L’Étoile, quer do ponto de

vista histórico, quer do ponto de vista dos fluxos viários e pedonais. Godard opta por

Montparnasse e Levallois, dois lugares para contar a história de uma mulher com dois

amantes. E finalmente Chabrol, em La Muette, contrapõe um sentimento de clausura e

angústia do interior doméstico à sensação de liberdade e bem estar proporcionada pela

rua. No seu conjunto, estes filmes não só são a síntese dos princípios e estilos adoptados

pela Nouvelle Vague, como são o exemplo mais claro da importância da cidade para esta

geração de cineastas.

21. Entre 1959 e 1968, François Truffaut realizou três longas

metragens acompanhando três fases importantes da vida do mesmo personagem, Antoine Doinel, sempre

interpretado por Jean-Piere Léaud, que se diz ser, em certa medida, o alter-ego do realizador. O primeiro,

Les 400 Coups, corresponde à infância, L’Amour à Vingt Ans

representa a adolescência e Baisers Volés equivale à idade adulta.

22. Mennel, 2008: 65.

23. PAQUOT, Thierry in Jousse & Paquot (ed.), 2005: 270

24.Mennel, 2008: 67

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27

Em Portugal, apesar de ter sido no Porto que o cinema deu os primeiros passos

quando, em 1896, Aurélio Paz dos Reis registou, tal como os Lumière, A Saída do Pessoal

Operário da Fábrica Confiança, e apesar de ter sido também aí que, em 1912, surgiu

a primeira tentativa séria de implantação de uma indústria portuguesa de cinema,

com a Invicta Film, foi Lisboa que, desde logo, se tornou o lugar comum do cinema

português. Lisboa, nas palavras de Luís de Pina, não é só a capital, mas ‘a’ cidade25. Nela se

projectam e manifestam os desejos e as frustrações de várias gerações de cineastas e das

suas respectivas épocas, transformando-a no espelho sociológico, político e cultural do

país (ou, pelo menos, de uma parte dele). Mas a sua representação cinematográfica não

é uniforme. E talvez, nunca totalmente verdadeira. Cada cineasta apropria-se da cidade

da maneira que melhor serve as suas motivações e intenções para cada filme.

A cena inicial de Casablanca (Michael Curtiz, 1942) é dedicada a Lisboa e à sua

importância enquanto porto de embarque da Europa, como derradeira oportunidade

de fugir para os Estados Unidos. Lisboa é o motivo pelo qual os protagonistas se

encontram, e é também o motivo pelo qual se separam. No entanto, não há no filme

uma única imagem da cidade. Dois anos mais tarde, a Warner Bros. recorre novamente a

Lisboa no filme The Conspirators (Jean Negulesco, 1944), como palco para uma história

de espionagem. No entanto, e mais uma vez, nenhuma cena foi rodada em Portugal.

O que interessava ao realizador era apenas uma ideia de cidade nocturna, sombria, a

que Lisboa parecia corresponder no imaginário de Hollywood, como confirmam outros

filmes como Storm Over Lisbon (George Sherman, 1944) ou One Night in Lisbon (Edward

H. Griffith, 1941). Será talvez com Les Amants du Tage (Henri Verneuil, 1959) que Lisboa

deixa de ser invisível no cinema internacional e se lança definitivamente no imaginário

cinematográfico francês. A Lisboa obscura das histórias de espiões dá lugar à Lisboa da

Amália, dos engraxadores, dos eléctricos no Rossio, das bicas, da Praça do Comércio e

do Terreiro do Paço. Não deixa, no entanto, de se servir dela como um belo mas mero

cenário, alheio à situação real do país, que atravessava um período de ditadura. A partir

de então, a Lisboa da luz que reflecte na calçada, das ruas pitorescas, da gente simples

mas amável, das tascas e do Fado, tem povoado o cinema estrangeiro, contribuindo para

uma imagem generalizada da cidade e, por extensão, do país.

Mas este olhar estrangeiro não encontrava paralelo nas representações

nacionais da mesma cidade. Na Lisboa portuguesa não se ouvia falar em bilhetes de

avião para os Estados Unidos, nem de espiões, e muito menos de Guerras Mundiais.

Até ao início dos anos 60, como defende Tiago Baptista no texto “Na minha cidade não

acontece nada”, Lisboa quase não surgiu nos filmes portugueses e as suas escassas representações

retrataram menos uma realidade arquitectónica e urbanística concreta e reconhecível do que

uma determinada ideia de cidade, dita ‘moderna’ mas não necessariamente ‘modernista’26. No

cinema mudo dos anos 20, a acção decorre principalmente em zonas rurais e é motivada

quase sempre pela chegada de alguém vindo da cidade e a consequente dificuldade em

se enquadrar naquela estrutura social. A cidade é entendida como um lugar de vícios e

de crimes, de clubes nocturnos e espaços promíscuos.

Aproximação à cidade no Novo Cinema

25. Pina, [s.d.]

26. Tiago Baptista in Torgal (ed.), 2011

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28

Seguem-se as comédias portuguesas dos anos trinta e quarenta que, apesar de

já se passarem na cidade de Lisboa, procuravam o que de mais rural nela existia. A

acção decorria dentro dos bairros, nos pátios, nas lojas e nos interiores domésticos, em

comunidades fechadas que sobreviviam seguindo os modelos rurais que traziam consigo

dos lugares de origem e que continuavam a resistir à influência nefasta da metrópole.

A rua, nas raras vezes em que era representada, surgia associada à insegurança e à

instabilidade e era palco dos episódios mais negros das histórias. Mas os finais eram

felizes e bem dispostos, com a imagem do herói humilde e conservador a triunfar.

Citando Bénard da Costa no seu texto “Lisboa dos Clippers ao Cristo Rei”, onde

ironicamente compara Casablanca a Costa do Castelo (Arthur Duarte, 1943), dois filmes

contemporâneos, a Lisboa das comédias é uma Lisboa bairrista, vista do exterior, com muita

luz e muito pouca luz preta. É uma Lisboa de boa e santa gente que vive em pensões ou casa de

renda barata, a equilibrar com expedientes o orçamento do mês. Lisboa de remediados, que só

tem como remédio para essa situação um casamento rico ou um rico casamento27. Apesar do

seu sucesso comercial – que contraria grande parte da crítica – nos mostrar que, mais

do que se entreter, o público revia-se, de certa forma, nessas comédias, e apesar do

facto de Lisboa dos anos trinta e quarenta ser efectivamente uma cidade de bairros, a

realidade aí representada é produto das intenções de um governo ditatorial, e está longe

da imagem global da Lisboa dessa época.

À semelhança do fenómeno da Nouvelle Vague em Paris e de outras novas

vagas internacionais, a relação do cinema português com a cidade altera-se na década

de sessenta, com a chegada do Novo Cinema. Em 1962, Ernesto de Sousa lança os

primeiros sinais de mudança quando, em Dom Roberto, recupera o mesmo pátio de Pátio

das Cantigas (Francisco Ribeiro, 1942), pobre mas alegre, para transformá-lo num pátio

mais sombrio, palco de uma narrativa triste mas ainda esperançosa. Contudo, é Paulo

Rocha que rompe definitivamente com os limites dos bairros e sai para a rua com a

câmara na mão e uma ideia na cabeça.28 A partir daí, os cineastas do Cinema Novo abordarão

a cidade na sua teia de ruas, de relações, de cumplicidades, de contrastes de luz, mergulhando

nesse enredo e deixando o Tejo a marulhar à distância.29

A descoberta da Cidade ModernaAo contrário do exemplo de alguns países onde, como vimos, despoletava uma

crítica ao Movimento Moderno, em Lisboa começavam a crescer os primeiros conjuntos

habitacionais de linguagem moderna, numa aproximação à regras de planeamento

urbano da Carta de Atenas30. Tal desfasamento deve-se, em certa medida, ao longo

domínio de um regime fascista e ao facto de Portugal não ter participado directamente

na Segunda Guerra Mundial e, por isso, não ter sido alvo de uma reconstrução maciça

28. Expressão da autoria de Glauber Rocha que acabou por se tornar um lema para o cinema novo brasileiro.

Glauber Rocha foi um dos seus fundadores e um dos cineastas

brasileiros de maior reconhecimento internacional. Chegou a conviver de perto com Paulo Rocha, chegando

mesmo a “emprestar-lhe” um dos seus actores para o papel principal

do seu segundo filme (Mudar de Vida, 1966)

29. António Loja Neves “Lisboa, o Cinema e o Rio que passa” in Costa

(org.), 1994: 52

27. João Bénard da Costa in Costa (org.), 1994: 19

30. Manifesto urbanístico redigido durante o IV Congresso Internacional de Arquitectura Moderna e publicado

em 1941.

fig. 9. Cartaz publicitário de Storm Over Lisbon (George Sherman, 1944)

fig. 10. Cartaz publicitário de The Conspirators The Conspirators (Jean

Negulesco, 1944)

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29

como a maioria dos países europeus. Em Lisboa, seguindo um plano dirigido por

Duarte Pacheco31, rasgavam-se as avenidas novas e construíam-se novas urbanizações que

formavam uma orla periférica na cidade. Lisboa tornava-se assim o grande centro de

atracção das pessoas que vinham da província, na expectativa de melhorar o seu futuro.

Mas se ao nível da arquitectura e do urbanismo se verificava um atraso

relativamente às vanguardas internacionais, no cinema o mesmo não parecia verificar-

se. Assim como À Bout de Souffle se havia tornado o emblema da Nouvelle Vague por

ousar filmar os Champs-Elysées de forma directa e genuína, também Os Verdes Anos se

tornou o emblema do Novo Cinema ao registar, pela primeira vez, a Lisboa das Avenidas

Novas. Essa novidade transformava-se num acto de ruptura com o cinema produzido até

então e dava a conhecer a Lisboa desta nova geração.

Contornando as dificuldades de relacionar cinematograficamente o cinema novo

português e a Nouvelle Vague francesa, por exemplo, é no entanto difícil deixar de comprovar

uma vontade de “sair à rua” comum a ambos os movimentos, justificável, senão ideológica ou

artisticamente, pelo menos pelas novas possibilidades logísticas trazidas por novos equipamentos

portáteis (imagem, som e iluminação).32

A acção de Os Verdes Anos decorre no cruzamento da Avenida dos Estados

Unidos com a Avenida de Roma, nesse bairro de Alvalade que vai empurrando os campos

para trás33, lugar onde se situava o apartamento de Paulo Rocha que serviu de cenário

ao filme: um edifício moderno construído pelos arquitectos Filipe Figueiredo e José

Segurado durante a década de cinquenta. Era também nesse cruzamento que se situava

o café Vává, um lugar de reunião e discussão de muitos dos artistas e intelectuais daquela

época. Num exercício próximo ao de Paris Vu Par, Paulo Rocha escolhe assim o seu

quarteirão e introduz no cinema português uma nova visão da cidade e dos lisboetas. A

câmara triste e melancólica serve-se dos espaços públicos e das relações sociais urbanas

neles concretizadas para denunciar Lisboa como um espaço claustrofóbico, sem saídas, onde

tudo se frustra e tudo agoniza (numa morte branda).34

32. Tiago Baptista in Torgal (ed.), 2011

33. António-Pedro Vasconcelos, [1973] in Melo (coord.), 1996: 148

34. Bénard da Costa, João cit. Tiago in Torgal (ed.), 2011

31. Ministro das Obras Públicas e Comunicações do Governo e Presidente da Câmara Municipal de Lisboa de 1932 a 1943

fig. 12. Rodagem de La Peau Douce, 1964

fig. 11. Rodagem de Os Verdes Anos, 1963

fig. 13 | 14. Os Verdes Anos, 1963

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30

A sequência inicial do filme é exemplar da nova paisagem, das novas técnicas

e da importância dada à cidade, que chega a assumir contornos de personagem. Ao

volante de um motociclo, o tio de Júlio atravessa as avenidas acompanhado pela câmara

num longo travelling. Em off, faz a descrição da cidade do ponto de vista de alguém que

veio da província mas que depressa se adaptou às exigências urbanas:

A primeira vez que vi a cidade de Lisboa pensei para comigo: esta terra é como uma

“madama” que tem de ser engatada com muito jeito. Nada de pressas, nada de deitar a mão antes

do tempo. É preciso andar devagarinho com olho vivo e não cheirar dos pés. É preciso sobretudo

um homem lembrar-se que nasceu numa aldeia de pategos e aprender a aguentar-se. A minha

vizinhança veio quase toda corrida da cidade. Vieram com uma pressa tamanha que bateram com

o nariz no primeiro muro e ficaram espalhados por aí.35

Tal como afirma José Vaz Pereira, Paulo Rocha conseguiu uma Lisboa diferente, mas

real: o Areeiro e Alvalade mostram uma retaguarda carrancuda, com escadas de serviço, «hoje não

pode ser», marquises tristes, roupa a secar, melancolia quotidiana e namoros frustes.36

A (re)descoberta da Cidade AntigaAo contrário de Paulo Rocha, Fernando Lopes optou por mostrar um novo

olhar sobre a velha cidade que, apesar de ser o centro, raramente era retratada no cinema

português. Belarmino é a Lisboa popular, da Mouraria, dos Restauradores, da Baixa e

do Rossio. É a Lisboa dos cafés que se tornam espaços domésticos, dos cinemas que

se transformam em salas de estar e dos clubes nocturnos onde uma geração oprimida

encontrava momentos de liberdade. Tal como refere Luís de Pina, mais do que documento

de um pugilista em declínio, Belarmino será uma nova crónica de Lisboa, desencantada e

amarga37. Fernando Lopes escolhe um personagem do bas-fond Lisboeta e acompanha-o

na sua interacção com o quotidiano urbano: a verdade se encarregaria de lhe fornecer o

melhor dos seus temas.38

São lugares comuns, bem conhecidos dos Lisboetas, mas que pela primeira vez

são transpostos para o grande ecrã sem a poesia das ficções. O espectador é confrontado

com o seu quotidiano, com a sua realidade, e reconhece-a. É neste gesto que reside a

novidade e a subversão de Fernando Lopes.

No cinema, a cidade não existe apenas enquanto reprodução mais ou menos realista

daquilo que julgamos conhecer, existe sobretudo em função da energia que o filme desencadeia na

descoberta e na compreensão de uma nova realidade, surpreendente e comovente, agora evidente,

de um espaço habitado que julgáramos familiar.39

35. Monólogo da sequência inicial de Os Verdes Anos.

36. José Vaz Pereira in Programa da Semana do Novo Cinema Português

38. António-Pedro Vasconcelos [1964] in Costa (org.), 1994: 109

39. Eduardo Geada, “O Inconsciente da Cidade” in Costa (org.), 1994: 78

37. Pina, [s.d.]

fig. 15 | 16 | 17. Belarmino, 1964

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31

Durante a noite, a cidade antiga transforma-se em espaço de liberdade, onde

protegidos pelas sombras e entre ruas estreitas, os personagens parecem revelar a sua

verdadeira personalidade. Uma cidade alternativa que tinha como principais pontos de

encontro bares como o Hot Club ou o Ritz Club. Já em Os Verdes Anos encontramos esta

analogia, na cena em que Júlio acompanha o tio ao Texas Bar (onde, vinte anos mais

tarde, Wim Wenders irá filmar The State of Things). Aborrecido com o episódio no salão

de dança, em que Ilda aceita dançar com outro homem, Júlio bebe descontroladamente

e torna-se violento com o tio, que o reprime e o esbofeteia. Por um lado, assistimos

pela primeira vez a uma agressividade em Júlio que desconhecíamos e que, de certo

modo, nos ajuda a perceber a sua atitude no final do filme. Por outro, observamos em

Afonso uma autoridade e intransigência que até então não nos tinham sido reveladas.

De seguida, Júlio sai pelas ruas do centro histórico na companhia de um estrangeiro que

o leva a uma casa de prostituição. Embora esteja já presente, neste filme, uma ideia de

liberdade associada à noite e à cidade antiga, a sequência não deixa de sugerir um certo

tom de reprovação moral, que em Belarmino é definitivamente abandonado.

A afirmação de um novo olharNuma altura em que os cineastas parecem dispersar para ambientes mais

rurais (por exemplo, Paulo Rocha vai para o Furadouro realizar o filme Mudar de Vida

e Alfredo Tropa escolhe Trás-os-Montes para o seu Pedro Só), o olhar urbano anunciado

em Os Verdes Anos, é retomado e definitivamente assumido em 1970, com a estreia de

O Cerco. Em plena Primavera Marcelista, o filme de Cunha Telles é o reflexo de uma

cidade que se queria mais moderna e de uma sociedade que parecia apontar profundas

alterações. O conflito cidade/campo tão presente em Os Verdes Anos, perde o peso que

tinha até então e o retrato da nova geração de Alvalade faz-se através da sua relação

com Lisboa. A construção narrativa é menos elaborada, como se o importante fosse ir

filmando a cidade e os seus episódios, tal como eles se vão sucedendo. No Cerco, os

personagens já não são recém chegados das zonas rurais, mas indivíduos embrenhados

no meio urbano e que, ora tiram partido deste, ora sofrem as consequências.

A Lisboa do Telles é já a Lisboa dos negócios; do imobiliário; dos pequenos truques

das ‘boites’; das discotecas; transmitida através de três personagens básicos, dos quais o mais

emocionante de todos é, evidentemente, a Maria Cabral. Ela é, de resto, uma espécie de Belarmino

no feminino.40

Novos espaços surgem na cinematografia portuguesa, símbolo de uma cidade

mais livre e mais consumista: o jardim público onde Marta é fotografada e onde acaba

por se envolver com o fotógrafo, numa cena verdadeiramente chocante para a época;

40. Fernando Lopes. “Duas ou Três Coisas que Eu Sei d’Ela (Lisboa)” in Costa (org.), 1994: 54

fig. 18 | 19 | 20. O Cerco, 1970

Page 33: Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

32

as lojas a que Marta regressa com frequência, revelando a importância crescente das

aparências numa sociedade em mutação; ou os clubes nocturnos de reputação duvidosa,

onde reinava o tráfico de favores e a prostituição. Cunha Telles regista assim uma Lisboa

que pretendia igualar-se a outras capitais europeias, e o resultado é a presença de O

Cerco na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cinema de Cannes desse mesmo

ano.

Os filmes que se seguiram, prolongam este olhar sobre o quotidiano urbano.

Perdido Por Cem, estreado em 1972, passa-se quase sempre durante a noite e em interiores,

mas nem por isso deixa de ser sobre a cidade. Porque a Lisboa do final dos anos 60, para

aquela geração, vivia à noite e atrás de portas. Era a Lisboa a que Luís de Pina se refere

como a cidade da transição do Salazarismo para algo que se pressente mais livre mas ainda

não se adivinha41. Era a cidade dos salões de bilhares, dos quartos alugados, dos jogos de

poker clandestinos, dos bares nocturnos, das paixões passageiras, da prostituição. É a

Lisboa dos momentos de solidão, em que a cidade abre as mandíbulas e mostra a dentuça

como se fosse preciso devorar este ou aquela para provar a sua dureza de metrópole.42

Se noutros filmes a aproximação à cidade é habitualmente feita através da

estação ferroviária – Júlio de Os Verdes Anos chega a Lisboa de comboio e em O Mal

Amado a estação do Rossio ocupa o primeiro plano – em Perdido por Cem, Artur entra

em Lisboa ao volante do descapotável de Artur, um empresário que lhe dera boleia.

Numa clara referência ao cinema americano, o filme começa com uma espécie de

road trip pontuada por alguns episódios e momentos hilariantes. Entre conversas de

circunstância e muitos pás, Rui vai dando conta de alguns pormenores importantes

para nos situarmos no contexto daquela época: a necessidade de emigrar, as difíceis

condições que os portugueses encontravam em Paris, e a forma como alguns empresários,

incluindo ele mesmo, se aproveitavam da sua desgraça para fazer negócios lucrativos.

Chama também a atenção para o crescente interesse por Portugal como destino turístico

para os estrangeiros, quando tenta seduzir uma bimba à saída do mosteiro da Batalha,

que Rui diz ser uma linda obra do românico.

Em O Mal Amado, a imagem global da cidade é substituída pela imagem de

um bairro: Campo de Ourique é uma das personagens principais do filme. Mais do que

pano de fundo da acção, este bairro ganha destaque e identidade própria. A escolha não

é aleatória: também Matos Silva escolhe filmar o bairro onde vivia e descreve-o como

sendo uma espécie de território fechado, uma encruzilhada de ruas, um jogo de cafés e um jogo de

personagens típicas.43

41. Pina [s.d]

42. José Vaz Pereira in Programa da Semana do Novo Cinema Português

42. Fernando Matos Silva na Sinopse do Guião Técnico do Filme, 1973

fig. 21 | 22 | 23. Perdido por Cem, 1973

Page 34: Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

33

A cidade é apresentada de uma forma progressiva (ainda durante o genérico)

como se o espectador se tratasse de um viajante que chega pela primeira vez à cidade e

é conduzido através dela. Assim, o filme é iniciado com um plano da estação, porta da

cidade por excelência, seguido de várias panorâmicas filmadas a partir dos miradouros,

apresentando-nos uma visão geral do espaço de acção, para depois nos encaminhar,

pouco a pouco, até ao particular: o quarto do João. No caminho, mostra-nos imagens

de lugares característicos do bairro, como as lojas ou os cafés, mas que são ao mesmo

tempo lugares semelhantes a outros bairros e a outras cidades de Portugal daquela época,

permitindo ao espectador identificar-se e reconhecer-se de imediato nesta história.

Ficção ou documentário, cada filme é assim um testemunho da cidade em

determinados momentos da sua história. Os filmes do Novo Cinema, em particular,

procuraram uma abordagem da cidade de Lisboa numa progressiva aproximação: Os

Verdes Anos entrou no espaço urbano a partir da periferia, mas apesar de desvendar

uma nova cidade, está ainda ancorado a uma certa ideia de campo; Belarmino imergiu

no centro, reencontrando a velha cidade com novos costumes; e O Cerco apoderou-se

do “ser lisboeta”, assumindo um novo rumo para a representação cinematográfica da

cidade.

fig. 24 | 25 | 26. O Mal Amado, 1974

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35

deambulação

E viajo para conhecer a minha geografia.1

O acto de caminhar pela cidade foi desde cedo explorado como método para

o conhecimento, reconhecimento e crítica do espaço urbano, realçando a importância

da experiência participativa na construção da cidade. A arquitecta Paola Berenstein

Jacques, num texto intitulado “Elogio aos Errantes. Breve Histórico da Errâncias

Urbanas”, distingue três momentos na história do urbanismo moderno: a modernização

das cidades, que corresponde ao período compreendido entre meados e final do século

XIX e início do século XX; as vanguardas modernas e o movimento moderno propriamente

dito, dos anos 1910-1920 até ao último CIAM, em 1959; e modernismo ou moderno tardio,

do pós-guerra até aos anos setenta. A cada um desses momentos faz corresponder uma

forma específica de errância urbana, definindo o errante moderno como aquele que não

perambula mais pelos campos como os nómadas mas pela própria cidade grande, a metrópole

moderna, e recusa o controlo total dos planos urbanísticos modernos.2 Desta forma, ao primeiro

momento corresponderia o período da flânerie de Baudelaire e Walter Benjamin, ao

segundo momento equivaleriam as deambulações dos dadaístas e surrealistas que

criticavam algumas ideias discutidas nos CIAM, e o terceiro momento seria a fase da

deriva que, como foi referido no capítulo anterior, era protagonizada pelo movimento

situacionista.

O flanêur é uma figura literária do século XIX, central na poesia de Baudelaire,

numa época em que a cidade de Paris sofria profundas alterações, em que as ruas estreitas

e sinuosas eram substituídas pelas novas boulevards do barão Haussmann. Caracterizado

como burguês ocioso movido pelo tédio e pela melancolia, o flanêur é um observador

atento da paisagem urbana. A rua é a sua casa e percorre-a à procura de informações

sensoriais, decifrando sinais e imagens, apreendendo a riqueza e a variedade de um

quotidiano em transição, a cada dia mais moderno. O flâneur não tem motivação aparente,

não carrega o peso da erudição nem da memória do passado, não tem direcção nem objectivo.3 Em

permanente estado de solidão, procura refúgio nas massas.

A sua paixão e a sua profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o

observador apaixonado, escolher declínio no número, no ondulante, no movimento, no fugidio e

no infinito, é um imenso prazer. Estar fora da sua casa mas sentir-se em casa em toda a parte; ver

o mundo, estar no centro do mundo e permanecer escondido do mundo (...) 4

Walter Benjamin retoma a prática da flânerie na sua reflexão sobre a cidade

moderna. Para Benjamin, o próprio Baudelaire é um verdadeiro flâneur que através da

sua obra realizou uma transfiguração poética da cidade de Paris. Dá especial importância

aos momentos inesperados que transformam a cidade num labirinto de surpresas. Para

que tal aconteça, Benjamin fala-nos da necessidade de possuir um certo distanciamento,

característica que distingue o flâneur de um caminhante comum.

1. Marcel Réjà, 1907. “L’Art chez les fous” in Benjamin, [1939]: 434

2. Jacques, 2004

3. Urbano, 2007

4. Baudelaire, [1863]: 287

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36

Dialéctica da flânerie: por um lado, o homem que se sente observado por todos, como

um verdadeiro suspeito, e por outro, o homem que não conseguimos encontrar, aquele que está

dissimulado.5

Benjamin retoma assim o tema da multidão, que entende encontrar-se alienada

pelo capitalismo burguês, consequência nefasta da cidade moderna.

Por outro lado, o movimento surrealista procura experimentar e exprimir a

vida real através da exploração do inconsciente, reanimando as intenções de Baudelaire.

Os membros do grupo, como Louis Aragon, André Breton, Francis Picabia e Tristan

Tzara, organizavam deambulações aleatórias pela cidade, experiências que deram origem

aos seus manifestos. Valorizando a experiência sensível do indivíduo, apropriavam-se

das imagens sugeridas pelo quotidiano, criando obras que são também um valioso

testemunho do processo de urbanização e das contradições da modernidade. Em Le Paysan

de Paris (1926), Louis Aragon recupera o conceito de flâneur, mas coloca um camponês

no papel de narrador. Este desloca-se como um estrangeiro que ora se surpreende com

a dimensão do espaço urbano, ora destaca os pormenores, procurando o invisível da

cidade através da imaginação. No seu percurso por Paris, pontuado por encontros

ocasionais, descreve os lugares por onde caminha, questionando as incoerências da

cidade moderna. Repara, por exemplo, que lugares como a passagem da Ópera e o

parque Buttes-Chaumont, apesar de serem locais públicos, não são completamente

abertos, já que a cobertura da passagem a protege do exterior e o parque obedece a um

horário de acesso. O olhar lógico, racional e distante do burguês é assim substituído

pela de visão provinciana do camponês que, apesar de aparentemente ingénua, está livre

de preconceitos e cânones urbanos, despertando a atenção para novas questões.

Nos anos cinquenta, em clima de pós-guerra, a exploração deambulatória

da cidade é, como vimos, reanimada pelos situacionistas. A deriva é um incentivo à

participação, à apropriação prática do espaço urbano como forma de combate à

monotonia e à alienação dos grandes centros urbanos. Os situacionistas acreditavam

que a alienação era consequência da aniquilação das várias formas de nomadismo pela

espectacularização da cidade.

As grandes cidades são favoráveis à distração a que chamamos deriva. A deriva é uma

técnica de andar sem rumo. Ela baseia-se na influência que o ‘décor’ exerce. Todas as casas são

belas. A arquitetura deve tornar-se emocionante. Não podemos considerar tipos de construção

menores.6

5. Idem: 438

6. Debord & Fillon, [1954]

fig. 27. Gustave Caillebotte, 1877

fig. 28. Flânerie

Page 38: Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

37

Este andar sem rumo aproxima a deriva da flânerie. Mas enquanto o flâneur

não tem outro objectivo senão tirar prazer da sua deambulação, a deriva é uma técnica

para um fim específico, o da criação de mapas psicogeográficos. Debord enumera assim

um conjunto de regras que vão desde o número máximo de participantes ao horário

e condições atmosféricas mais favoráveis. Ao contrário dos surrealistas, o terreno era

entendido como passional e não apenas subjectivo, em que o indivíduo devia deixar

levar-se por sensações suscitadas pelo ambiente urbano.

As diferentes propostas de percurso pela cidade parecem ter objectivos

semelhantes, mas diferentes formas de actuar: o flâneur observa as mudanças do

quotidiano com entusiasmo, os surrealistas procuram o inconsciente e o onírico

da cidade e os situacionistas propõem uma participação activa contra a alienação.

No entanto, todas elas se debruçaram sobre a forma como nos relacionamos com o

meio envolvente e tornaram-se num testemunho das transformações da cidade na era

moderna.

Giuliana Bruno, no livro Atlas of Emotion: Journeys in Art, Architecture, and Film

– também ele, como o subtítulo indica, constituído por jornadas – explora a relação

entre deambulação, cidade e cinema. Partindo de exemplos como o famoso texto de

Eisenstein, “Montage and Architecture”7, Bruno chega mesmo a afirmar que a figura

da ‘promenade’ é a principal ligação entre o conjunto arquitectónico e o cinema8, já que ambos

implicam uma sucessão de imagens (ou frames) através da qual somos conduzidos.

Por outro lado, o filme oferece-nos uma experiência espacial próxima à deambulação,

transformando o espectador num viajante. Tal como afirma Bruno, desde o momento

em que a deambulação foi incorporada no cinema, assistir a um filme tornou-se uma

forma imaginária de flânerie.9

Ao criar um Atlas da Emoção, que Bruno diz ser inspirado na Carte du Pays de

Tendre, a autora parece aproximar-se das teorias situacionistas, entendendo a cartografia

como algo que confere subjectividade e emoção ao espaço. Ao mesmo tempo, é a

emoção que nos leva a percorrer quer o espaço cinematográfico, quer o espaço urbano,

transformando essa experiência num fenómeno háptico, mais do que meramente visual.

8. Bruno, 2002: 56

7. Texto escrito por Sergei Eisenstein em 1938, em que afirma que a arquitectura é a arte mais parecida com o cinema. Ficou conhecida a descrição que faz da Acrópole de Atenas, o exemplo perfeito de um dos mais antigos filmes, já que a forma como se organiza o seu percurso aproxima-se à técnica da montagem em cinema.

9. Idem: 17

Fig. 29. Mapa imaginário que integra a primeira parte do romance Clélie, Histoire Romaine, da précieuse Madeleine de Scudéry, editado em 10 volumes entre 1654 e 1660. O mapa é uma representação topográfica e alegórica das diferentes etapas da vida amorosa.

Page 39: Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

38

Cinema para G. Bruno é háptico porque cria um espaço que é habitável, habitabilidade

essa que implica um ambiente no qual o espectador entra em contacto com a cidade, não apenas

visualizando uma representação, mas experimentando a sensação de ver o espaço urbano em

primeira mão.10

Os retratos urbanos que nos chegam através do cinema estão, portanto,

ancorados à figura daquele que percorre a cidade. Da deambulação dos personagens

ou da própria câmara, emergem narrativas que, tal como na literatura, nos fornecem

importantes dados para a interpretação de uma determinada cidade, num determinado

momento da sua história. Por outro lado, o movimento contínuo intrínseco à

deambulação, permite-nos apreender a verdadeira geografia do espaço urbano.

Porque se a ‘promenade’, ou a deriva no sentido ‘debordiano’ do termo, pode permitir aos

que a praticam apropriar-se da cidade, dar-lhe um sentido, de a apreender de uma forma que pode

chegar até ao sonho, com a mistura de temporalidades, de real e de imaginário próprio deste tipo de

expedições, o cinema dá simultaneamente acesso ao tempo e ao espaço sob uma forma condensada

que permite frequentemente à cidade implantar-se em aspectos literalmente nunca vistos.11

10. Melo e Castro, 2000

11. Thiery Jousse in Jousse, & Paquot, 2005: 9

A Nouvelle Vague francesa é mais uma vez exemplo da deambulação e encontros

ocasionais que esta proporciona, como forma de desenvolvimento da narrativa. O

filme À Bout de Souffle (Jean-Luc Godard, 1960), como filme-manifesto desta vaga, é

representativo desse processo. Através de um movimento de câmara fluido, que por

vezes parece ganhar vida própria, acompanhamos a deriva de Michel Poiccard pelas

ruas de Paris, perseguido pelo assassinato de um polícia. O seu único objectivo é sair

da cidade, mas sucessivos acontecimentos parecem impedi-lo, como se Paris possuísse

uma força centrífuga. Desta forma, a sua morte torna-se inevitável, como única forma

de parar este movimento aparentemente perpétuo.

Fig. 30 | 31. Á Bout de Souffle, 1960

Page 40: Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

39

Deambulação no Novo Cinema

As histórias do Novo Cinema centram-se nas acções de um único personagem,

que a câmara acompanha nas suas diferentes deslocações. Ao contrário da noção

baudelairiana de flâneur, os protagonistas não são burgueses entediados mas personagens

desajustadas em permanente conflito interior, à descoberta de si, do outro e da cidade

enquanto mundo de referências e experiências novas.12 Vivendo na casa dos familiares, amigos

ou amantes, não têm uma morada que considerem sua e a cidade transforma-se no seu

habitat.

O flanêur agora carrega uma câmara Belarmino será o filme que melhor explora a descrição e caracterização da

cidade através das deambulações de um personagem, em parte devido à sua vertente

documental aliada a uma sensibilidade poética característica das obras de Fernando

Lopes. Vertente documental em vez de documentário, porque apesar da entrevista realizada

a Belarmino e do tom observacional da câmara que pressupõe uma intervenção mínima

por parte do realizador, as deslocações do personagem são contudo encenadas, de forma

a clarificar a interpretação que se pretende da cidade. Paul Melo e Castro, num artigo

intitulado “Circling the City in Fernando Lopes’ Belarmino”, compara a noção de

flânerie presente em Belarmino com o trabalho do documentarista britânico Patrick

Keiller: o flâneur agora carrega uma câmara.13

Através da observação da interacção do protagonista com o quotidiano urbano,

o espectador é convidado a acompanhar o seu percurso, numa verdadeira experiência

háptica como aquela que nos descreve Giuliana Bruno. Experienciamos diferentes

ritmos, tons, formas e relações espaciais, e identificamo-nos emocionalmente com o

personagem. Imaginamo-nos a residir num lugar, num lugar doutra pessoa, e mapeamo nos

tangivelmente dentro dele.14 Como um mapa psicogeográfico ou um atlas da emoção, a cidade

é apresentada em fragmentos que se ligam através das práticas dos seus habitantes,

e neste caso, da trajectória específica de um homem. A Lisboa vista por Belarmino

é também o olhar de Fernando Lopes sobre a cidade, por sua vez representativo do

ambiente urbano que se fazia sentir nos anos sessenta.

Essa incidência na realidade urbana é sugerida imediatamente no genérico,

constituído por uma sucessão de imagens fixas de Belarmino nas ruas de Lisboa, em

extrema profundidade de campo. Tal técnica, aliada ao posicionamento de Belarmino

por entre a multidão, remete-nos uma vez mais para a noção do flâneur que se mistura

nas massas. Porém, não é um acto consciente e deliberado, mas antes um isolamento

12. Areal, 2011: 394

13. Patrick Keiller in Melo e Castro, 2009

14. Bruno, 2002: 36

Fig. 32 | 33 | 34. Belarmino, 1964

Page 41: Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

40

imposto pelas condições sociais e políticas da época (ou pelo menos, assim o quis

transmitir Fernando Lopes que, por várias vezes, recorre ao confronto do personagem

solitário com algo maior, quer seja a multidão, quer seja o estádio vazio onde treina).

A experiência de deambular pela cidade torna-se ainda mais próxima do

espectador quando a câmara alterna entre o nosso ponto de vista, mais alto e panorâmico,

e o ponto de vista de Belarmino, mais baixo, conseguido através de planos subjectivos

que simulam aquilo que ele vê. A sequência em que Belarmino sai de casa e anda sem

rumo pela baixa de Lisboa é exemplar dessa técnica. Começamos por ver o personagem

à varanda, num plano geral do prédio - mais uma vez, um ponto isolado numa fachada

de grandes dimensões. De seguida, é introduzido um plano da paisagem de Lisboa

encimada pelo Castelo de S. Jorge, simulando a vista que Belarmino está a ter naquele

momento. Finalmente, é retomado o plano inicial e acompanhámo-lo na sua descida

até à rua, onde ora observamos o seu percurso de longe, ora somos colocados na sua

posição. Esta última sensação é conferida através de planos contra-picados de edifícios

monumentais ou planos médios de pormenores que captam a atenção de Belarmino,

como o vendedor de bilhetes do cinema ou os cartazes em exposição. Para este tipo

de planos são habitualmente usadas as técnicas de travelling ou panorâmica, que pelo

movimento que lhes está implícito, simulam a própria experiência do espaço.

A faixa sonora é também importante para a construção de um ambiente

propício a uma experiência háptica. Melo e Castro explica essa importância usando as

palavras de Michel Chion:15

Este filme faz um uso extensivo dos sons reais da cidade, tentando processar a substância

sonora da vida de Lisboa, admitindo aquilo que Chion determina como ‘the drone of the world’ (o

zumbido do mundo). Para Chion, o filme representa este ambiente sonoro através do uso daquilo

a que ele chama ‘elementos de configurações auditivas’. Estes são ‘sons com uma fonte mais ou

menos pontual, que aparecem mais ou menos intermitentes e que ajudam a criar e a definir o

espaço de um filme por meios específicos, por pequenos toques distintos’.16

Assim, as variações de intensidade e de tipo de som, expõem as características

de cada espaço, de cada rua, permiti-nos distingui-los e captar a essência do lugar.

Ao mesmo tempo, intensificam a noção de percurso, como se também o espectador

estivesse a caminhar pela cidade.

15. Compositor francês de música experimental, conhecido pela

investigação nesta área a partir dos anos setenta e pelas publicações

sobre a interacção entre o som e a imagem no cinema, especialmente o livro L’audio-vision. Son et image au

cinéma, publicado em 1990.

16. Melo e Castro, 2009

Fig. 35 | 36 | 37. Belarmino, 1964

Page 42: Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

41

Deambulações de um provincianoTomando como referência a obra já citada de Aragon, poderíamos apelidar o

filme Os Verdes Anos de O Provinciano de Lisboa, ou utilizando a expressão usada pelo

personagem do tio, O Patego de Lisboa. De facto, tal como nesta referência literária, a

cidade nova é dada a conhecer através do olhar de alguém proveniente desse espaço

genérico que é o campo. Mas ao contrário do personagem de Aragon, Júlio não descobre

a cidade com entusiasmo, nem parece interessado em perceber as suas contradições.

Se de início ainda é possível identificar um olhar curioso e assustado, principalmente

na sequência que o acompanha desde a sua chegada à estação até ao momento em

que entra no prédio de Ilda, esse mesmo olhar vai sendo substituído por desprezo e

alienação. Ilda é a sua única motivação e, por isso, Júlio não é o verdadeiro flâneur

solitário que percorre a cidade sem objectivo. No entanto, é através dos seus passeios,

sempre acompanhados de outras personagens, que Paulo Rocha nos dá a conhecer

a melancólica Lisboa do início das anos sessenta. Tal como afirma Leonor Areal, a

revolução no olhar está precisamente na forma de dar presença ao espaço da cidade através dos

trajectos dos personagens e da descoberta de contrastes que existem em continuidade.17

No percurso da estação à oficina do sapateiro e, de seguida, até ao hall de

entrada do edifício onde Ilda trabalha, Júlio tem os seus primeiros contactos com a

cidade: viaja, pela primeira vez, no metropolitano, caminha lentamente pelas avenidas

novas, e parece especialmente interessado nas montras das lojas. Este último detalhe

parece ser uma referência à sociedade de consumo, tantas vezes criticada na abordagem

à cidade moderna. Por outro lado, tal como afirma Lina Bo Bardi, as vitrinas são o espelho

imediato, a denúncia rápida da personalidade de uma cidade, e não somente da personalidade,

como do carácter mais profundo.18

Ao longo da narrativa, que se constrói como uma espécie de deambulação onde

o espectador não reconhece uma estrutura habitual19, Júlio percorre diferentes espaços da

cidade. Na companhia de Ilda procura os lugares mais bucólicos, como as azinhagas, ou

os lugares mais desertos, como a cidade universitária. A excepção será a ida ao salão de

baile, no cidade antiga, onde Ilda insiste para que Júlio aprenda a dançar rock and roll

17. Areal, 2011: 393

18. Lina Bo Bardi in Grinover & Rubino, 2009

19. Areal, 2011: 293

Fig. 38 | 39 | 40. Os Verdes Anos, 1963

Fig. 41 | 42 | 43. Os Verdes Anos, 1963

Page 43: Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

42

e se torne um homem mais moderno, episódio que iniciará a ruptura da sua relação.

Também Afonso leva o sobrinho a percorrer a cidade antiga, procurando lugares mais

pitorescos, numa tentativa de mostrar o que de melhor a cidade tem para oferecer:

história, tradição e paisagem natural (rio). Ainda com um estrangeiro desconhecido,

que o defende numa briga com o seu tio, Júlio perde-se em deambulações nocturnas,

e a cidade antiga transforma-se em lugar de vício e, como vimos anteriormente, de

liberdade.

Os errantes urbanosNos restantes filmes em análise, os protagonistas são figuras citadinas e movem-

se no espaço urbano com mais destreza do que Júlio. São jovens em fases críticas da sua

vida, que coincidem com o início da idade adulta e com momentos de decisão em

relação ao seu futuro. É esta inquietação interior que os empurra para as ruas numa

permanentemente busca de si mesmo e do seu espaço. Na maioria destes filmes, não

há uma flânerie explícita como a que vimos em Belarmino, em que as cenas de rua são

recorrentes e privilegiadas. A deambulação é experimentada pela constante mudança

de espaço.

Marta, protagonista de O Cerco, está a reaprender a viver sozinha: muda-se

para uma nova casa, procura um novo emprego, cria novas rotinas e novos círculos

de amigos. Os lugares que habita são símbolos da cultura urbana do início dos anos

setenta: os cafés, os bares, as boutiques, a agência de publicidade. Numa das cenas

em que, excepcionalmente, a acompanhamos no percurso pela rua entre dois desses

espaços, a câmara capta o ambiente frenético que se vivia na capital. Através de um

tracking shot que segue toda a sua trajectória, somos levados por entre as ruas plenas

de peões e automóveis. Tal como em Belarmino, a câmara coloca-nos, em determinado

momento, no ponto de vista de Marta, que olha curiosa para um edifício neo-clássico.

Quando pergunta a Vitor que lugar é aquele, este responde-lhe ‘Isso? Nem lhe conto!”,

numa clara crítica aos organismos do governo.

O Cerco, como forma estrutural narrativa, é uma deambulação, também ela centrada

na protagonista sobre quem recaem as presunções e as insinuações masculinas, numa deriva

(também antonioniana) em que os fragmentos de quotidiano, os encontros, os personagens típicos

da época vão adensando uma sensação de claustrofobia (...)

Fig. 44 | 45 | 46. O Cerco, 1970

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43

Em O Recado, Lúcia vive um momento em que terá de optar entre duas formas

de vida, duas ideologias e duas posições políticas distintas, com as consequências que tal

possa representar. Alternando constantemente entre a cidade onde vive e outros lugares

na periferia, as deslocações de Lúcia não imprimem um sentimento tão urbano. Por

outro lado, e ao contrário dos restantes filmes, em que nunca deixamos de acompanhar

os movimentos dos protagonistas, as acções de Lúcia são muitas vezes intercaladas com

as acções de Francisco, interrompendo a viagem do espectador. No entanto, não deixa

de constituir um interessante exercício de deambulação cinematográfica, já que as

movimentações desassossegadas de Lúcia nos envolvem numa verdadeira experiência

emocional.

Artur, protagonista de Perdido por Cem, é um personagem à deriva, ao sabor dos

acasos, em constante nomadismo.20 Desloca-se pela cidade na pressa de atingir o seu único

objectivo: emigrar. Sem morada própria, alterna entre a casa de amigos e conhecidos,

bares e agências de viagens e de publicidade, numa abordagem urbana semelhante

à de O Cerco. Das suas incursões urbanas, uma cena se destaca pela vertente quase

documental: sentado numa esplanada, Artur observa os transeuntes enquanto lê um

texto de Musil.21 Mais uma vez, o plano simula o seu ponto de vista, colocando-nos no

papel do personagem. As pessoas, ora surpreendidas pela câmara, ora alheadas do que as

rodeia, carregam uma expressão grave e resignada, retratando uma época marcada pela

transição do Salazarismo para algo que se pressentia mais livre mas ainda não se adivinhava.22

O Mal Amado parece ser uma síntese dos diferentes tipos de deriva que

atravessam os restantes filmes. João é também um jovem no início da vida adulta:

enquanto espera pelo serviço militar, começa o seu primeiro emprego. Tal como em

20. Coelho, 1983: 41

21. Robert Musil (Áustria, 1880-1942) é o autor de O Homem Sem Qualidades, uma obra que apesar de nunca ter sido terminada, é considerada um dos mais importantes romances modernistas, pelo olhar crítico sobre a sociedade da sua época.

22. Pina, [s.d.]

Fig. 47 | 48 | 49. O Recado, 1972

Fig. 50 | 51 | 52. O Perdido por Cem, 1973

Fig. 53 | 54 | 55. O Mal Amado, 1974

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44

Belarmino, acompanhamos detalhadamente o seu percurso desde que sai de casa até

que imerge nas ruas do seu bairro. Mas ao contrário do que seria um verdadeiro flâneur,

João despreza o cenário que o envolve e caminha enquanto lê, talvez por se sentir na

rua como em casa e não ter qualquer expectativa em relação a encontros ocasionais.

Num registo idêntico à cena na esplanada de Perdido por Cem, João observa os rostos

anónimos enquanto viaja no autocarro. A mesma apatia e resignação faz-se sentir,

naquela que poderia ser a ilustração da obra de Steinbeck, Os Náufragos do Autocarro.

Também no café, João observa as pessoas que ocupam as diferentes mesas, que embora

sendo personagens fictícias, representam alguns dos estereótipos lisboetas: o casal de

jovens de olhar ausente, o engraxador (que curiosamente é interpretado por Belarmino

Fragoso) e as outras figuras típicas do bas-fond de Lisboa, como a prostituta, a fadista e

o marialva.

Um boxeur que encontra na cidade o seu maior adversário; um provinciano

cuja curiosidade pela vida na capital depressa se esmorece; quatro errantes urbanos

que nasceram na cidade, mas que nem por isso encontram o seu lugar dentro dela. A

sua agitação interior ganha uma dimensão física e o seu dia-a-dia transforma-se num

movimento contínuo que convida o espectador a uma verdadeira experiência corpórea

e emocional.

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47

deslocamento

O espírito de renovação e mudança que atravessou a década de sessenta, ao

questionar permanentemente os valores sociais ou políticos, gerou pontualmente um

clima de instabilidade e crise de identidade. A crítica à cidade moderna, muitas vezes

sem subsequentes soluções práticas, criou momentos de incerteza e de retrocesso.

No cinema, se por um lado existe uma vontade de sair à rua e registar uma

cidade e um tempo específicos, por outro há também um sentimento de perda de

identidade, estimulado por uma constante deriva e desenraizamento. Assistimos

então a um deslocamento psicológico dos personagens face ao ambiente urbano, e um

deslocamento físico da acção do centro para a periferia. Quer seja através do olhar de

alguém que chega da província ou pela experiência de quem nasceu citadino, os valores

urbanos são frequentemente questionados nos novos cinemas, principalmente quando

confrontados com a aparente pureza do espaço rural.

Nesse mítico ano de 19591, Claude Chabrol estreou um filme intitulado Les

Cousins, onde Charles, um rapaz dos subúrbios, se muda para Paris para frequentar a

faculdade. Sem morada própria, vai viver com o seu primo Paul, igualmente estudante,

mas perfeitamente integrado no ambiente urbano e cosmopolita. No confronto com a

vida libertina e decadente dos jovens da cidade, Charles tenta manter-se fiel aos seus

valores e costumes. A repulsa e a negação dos vícios urbanos são mediados pelo seu

amor por Florence, uma jovem citadina que mantém uma relação sexual com Paul.

Contudo, Charles toma consciência que a sua conduta não significa necessariamente

melhores resultados, já que enquanto ele estuda para os exames e reprova, o seu primo

diverte-se e passa. O contraste entre a cidade e o campo, entre o urbano e o rural,

constitui assim o fio condutor da narrativa. Mas ao contrário do que seria habitual,

não há neste confronto uma atitude moralista, em que o bem acaba por derrotar o mal.

Existe antes uma tom de desencantamento e desistência, que Paulo Rocha irá explorar

alguns anos mais tarde.

Um outro Carlos, desta vez a viver na cidade de São Paulo e protagonista do

filme São Paulo, Sociedade Anônima, (Luís Sérgio Person, 1965), vive insatisfeito perante

uma rotina e um destino que não parece controlar. Deambula pela cidade, evocando

episódios dos últimos quatro anos da sua vida e relembrando as pessoas que dela fizeram

parte. As constantes exigências, o ritmo alucinante, a ambição desmedida e a perda

de valores que parecem ser inerentes à vida na metrópole, levam Carlos questionar-se

1. Ano em que se inicia simbolicamente a Nouvelle Vague, com a consagração no Festival de Cinema de Cannes dos filmes Les 400 Coups (François Truffaut) e Hiroshima, Mon Amour (Alain Resnais). Foi igualmente o ano em que Jean Rouch apresentava o seu primeiro filme de cinema vérité e em que Godard preparava o seu À Bout de Souffle. Também em tália foi um ano de viragem: Fellini apresentava La Dolce Vita e Antonioni finalizava L’avventura.

Fig. 56 | 57 | 58. Les Cousins, 1959

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48

sobre a suas escolhas e sobre o seu futuro. Num acto desesperado, rouba um automóvel

para fugir da cidade (um pormenor irónico, uma vez que Carlos gere uma empresa de

peças para automóveis). Mas a cidade é traiçoeira e a rebeldia depressa se esvanece: na

manhã seguinte está de volta a São Paulo. Neste caso, o desconforto do personagem

não se justifica no confronto com origens rurais, mas na dificuldade em acompanhar

a evolução alucinante das metrópoles. A presença esmagadora da cidade de São Paulo

é imediatamente sugerida na sequência inicial do filme. Um plano filmado do exterior

para o interior de um apartamento, onde um casal discute. No vidro, a cidade reflectida

dilui-se com a imagem do interior. A câmara move-se então lentamente em panorâmica,

mostrando uma cidade densa e populosa, com grandes construções em betão, que

associadas a uma banda sonora quase apocalíptica, nos apresentam São Paulo como o

principal objecto a ser caracterizado no filme. O próprio título - Sociedade Anónima -

remete-nos para uma ideia de cidade industrializada, num sentido negativo de alienação.

Mais uma vez, a cidade é entendida como um obstáculo, e os esforços para o ultrapassar

conduzem novamente à desistência.

Fig. 59 | 60 | 61. São Paulo Sociedade Anônima, 1965

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Deslocamento no Novo Cinema

A cidade nos filmes do Novo Cinema é simultaneamente fonte de atracção e de

repulsa. Para aqueles que chegam de fora, há o entusiasmo da descoberta de uma nova

realidade e a expectativa de uma vida mais promissora do que aquela que acabaram

de abandonar. Mas depressa são confrontados com a força esmagadora da capital, que

parece querer travar uma luta desigual e injusta. Esta visão mais pessimista do espaço

urbano poderá ter diferentes explicações: por um lado, a cidade é representativa de

um país e de uma época ameaçados pela sombra de um regime ditatorial, responsáveis

pelo descontentamento e apatia do seu povo; por outro, a recente modernidade que

se instaurava lentamente num território que há muito lhe resistia, despoleta uma crise

de valores que provoca um sentimento de estranheza, especialmente nas camadas mais

jovens em busca de identidade própria. O automóvel é muitas vezes utilizado como

símbolo desse imaginário moderno e das ideias que a ele estão associadas: tecnologia,

estandardização e capitalismo. De Belarmino popularizou-se na imprensa o fotograma

em que o boxeur surge no meio de um imenso conjunto de carros, ressaltando uma vez

mais o seu isolamento social. Na cena final de Os Verdes Anos, Júlio é confrontado pelos

faróis ameaçadores dos automóveis como se estes o acusassem do crime que acabara

de cometer. E no exemplo estrangeiro São Paulo Sociedade Anônima, Carlos percorre

desorientado um parque de estacionamento cheio de veículos que ele próprio ajudou

a fabricar.

Deste desajuste dos personagens em relação ao ambiente que os rodeia, surge

um forte desejo de fuga (para fora da cidade ou, em último caso, para fora do país).

Desta forma, procuram outros lugares longe do centro urbano, lugares periféricos

associados frequentemente à natureza e ao seu valor simbólico de pureza e genuinidade.

Como se a cidade, frenética e hostil, não permitisse uma vivência saudável e autêntica.

Binómio Cidade/Campo Depois, Os Verdes estrearam no São Luiz, os arquitectos apaixonaram-se pela relação

cidade-campo dentro da fita, e toda a gente perdeu a cabeça com a Isabel Ruth (…)2

Os Verdes Anos será o exemplo mais paradigmático deste contraste, habitualmente

apelidado de binómio cidade/campo, e que é simultaneamente causa e consequência do

deslocamento físico e psicológico dos personagens. Mais do que espaços propriamente

ditos, cidade e campo são aqui símbolo de dois valores contrastantes, de duas vivências

2. Paulo Rocha in Silva (org.), 1994: 91

Fig. 62. Os Verdes Anos, 1963

Fig. 63. Belarmino, 1964

Fig. 64. São Paulo Sociedade Anônima, 1965

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distintas. Cidade é, como vimos, sinónimo de modernidade e de mudança. O campo é a

origem de Júlio, metaforicamente representada pelos arrabaldes da cidade. Paulo Rocha

introduz, pela primeira vez no cinema português, este espaço limítrofe de Lisboa, onde

as traseiras dos modernos edifícios de habitação colectiva convivem com as azinhagas

e as construções de lata, capazes de ir abaixo com um coice de burro3. Cidade e campo são

ambos periferia: a cidade porque corresponde às construções modernas da nova orla

urbana, o campo porque está claramente fora dos limites da cidade.

A sequência inicial é exemplar deste binómio. O filme começa com uma

panorâmica que nos mostra campos de cultivo, acompanhada por planos de pormenor

de um riacho ou de uma ponte onde atravessa uma carroça. Ainda não sabemos onde

se irá passar a acção, mas somos levados a acreditar que será numa qualquer aldeia das

muitas que predominavam em Portugal na década de sessenta. De seguida, a câmara

sobe numa panorâmica vertical, mostrando a cidade moderna, com os seus blocos de

apartamentos a surgirem por detrás dos pequenos montes. E assim, em pouco menos

de um minuto e ao som da guitarra melancólica de Carlos Paredes, é-nos apresentado

o tema que está na base de todo o filme: um olhar saudoso para o campo, ameaçado pelo

moderno.4

Mas o espaço a que, por contraste, nos habituamos a chamar campo, é um

lugar indefinido, um espaço sobrante que já não é campo, mas que também ainda não

se fez cidade. Aí habitam os marginalizados pela sociedade urbana ou aqueles que,

como Afonso, desdenham a cidade mas dependem dela para trabalhar. Este sentimento

está presente nas palavras de Afonso: olhem que às vezes, à noite, à janela, antes de me deitar,

ponho-me a olhar lá para os prédios do bairro da Ilda, e penso no que aquela gente toda paga

para estar lá dentro. Sai-lhes mais caro o dormir que o comer.5 Esta é uma classe que Leonor

Areal diz ser os invisíveis do cinema, sempre presentes mas secundários6, e que no filme de

Paulo Rocha assumem protagonismo. Personagens entre o camponês e o burguês, que estão

no cerne da transformação social e que passam desconhecidos porque não pertencem nem a um

mundo nem a outro.7

O campo será então o refúgio para estas personagens deslocadas e tão indefinidas

3. Texto do personagem Afonso em Os Verdes Anos

4. Ferreira (coord.), 2007

5. Texto do personagem Afonso em Os Verdes Anos

6. Areal, 2011: 392

7. Idem

Fig. 65 | 66 | 67. Os Verdes Anos, 1963

Fig. 68 | 69 | 70. Os Verdes Anos, 1963

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51

quanto aquele lugar. O bucolismo que o caracteriza parece despertar os sentimentos

adormecidos daqueles que habitam na cidade. É neste espaço que Ilda e Júlio têm

o primeiro encontro, têm a primeira discussão e onde Júlio sugere um pedido de

casamento que acaba recusado. Durante os seus passeios, cruzam-se com outros jovens

casais que, como eles, procuram um lugar recatado, longe dos olhares alheios, ou com

homens misteriosos que parecem fugir de algo que desconhecemos mas que podemos

adivinhar. A periferia transforma-se assim numa terra sem dono, num território neutro,

onde os valores tradicionais inerentes ao campo parecem ser recuperados.

Outras PeriferiasO Recado é, como vimos, um filme em permanente deslocamento. A indecisão

de Lúcia traduz-se na sua relação com o espaço. Em casa, lugar que é uma espécie de

subconsciente, Lúcia transita de divisão em divisão, ora manipulando objectos como

quem desenterra memórias, ora falando consigo mesma. Este ambiente tenso contrasta

com o espaço associado a Francisco e a Mal de Vivre, uma praia quase deserta que

adivinhamos situar-se algures entre Lisboa (a morada de Lúcia) e o Cabo de Espichel

(onde Francisco é assassinado). A periferia é, neste filme, sinónimo de clandestinidade:

da água chegam mercadorias, fugitivos e sinais de esperança. É também um lugar

associado ao meio rural, à cultura popular e às aldeias piscatórias, fazendo lembrar

o segundo filme de Paulo Rocha, Mudar de Vida (1966), cuja acção se desenrolava na

praia do Furadouro. Já nesse filme parece haver uma certa ideia de liberdade associada

à praia, independentemente das dificuldades que aí se viviam. Em entrevista, Paulo

Rocha falava da independência daquela gente naquele reino escondido entre as areias, durante

séculos, longe de tudo.8 É na praia que Francisco marca um encontro com Lúcia, ao qual

chega a comparecer. Numa longa sequência, Lúcia espera no areal, primeiro ansiosa,

depois progressivamente triste e resignada. Tal como acontece em Os Verdes Anos, é no

espaço periférico que se estabelece o ponto de viragem da narrativa, o momento em que

o personagem constata uma realidade – em ambos, a impossibilidade de um amor – e

caminham rumo ao desenlace final. Depois deste encontro frustrado, as acções de Lúcia

dirigem-se finalmente para um dos mundos que tinha à escolha: o mundo de António

e do conforto burguês.

Este momento de deriva e posterior lucidez, associado a um espaço periférico

da cidade de Lisboa, está igualmente presente no filme O Cerco. Embora a crítica à

cidade, tal como afirma Luis Urbano, seja menos carregada negativamente como nos filme de

Rocha ou Lopes, [a cidade] não deixa de ir minando, como uma entidade viva, as aspirações de

Marta, colocando-a à mercê dos outros.9 Depois de saber que Vítor tinha sido assassinado,

Marta anda à deriva no cacilheiro, embarcação que é também símbolo dos deslocações

8. Entrevista a Paulo Rocha publicada no quinzenário ovarense João Semana (Suplemento de 15 de Abril de 1991)

9. Urbano, 2012

Fig. 71 | 72 | 73. O Recado, 1972

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diárias entre centro e periferia. Depois deste momento de pausa, em que olha a cidade

de fora como se olhasse para si do exterior, regressa à intimidade do seu quarto e acerta

o relógio, num gesto que parece ser um sinal de recomeço.

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II. ESPAÇO PRIVADO

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A porta é um elemento essencial da linguagem arquitectónica e da organização

e experiência espacial, revelando detalhes do modo como nos relacionamos com aquilo

que nos rodeia. Dificilmente encontraremos uma cultura que não faça uso da porta, e a

sua presença comum no nosso quotidiano leva a que raramente tomemos consciência do

seu valor. Ao nível da percepção do espaço, a porta é um ponto mediador que controla

aquilo que é visto e, sobretudo, aquilo que é ocultado, sendo por isso fundamental

para a construção da privacidade e segurança. Por outro lado, a porta é também um

importante instrumento de medição do espaço. Estabelecendo relações de escala,

ganhamos uma maior consciência do meio envolvente. No exercício da arquitectura,

por exemplo, se uma planta ou um corte não têm informação sobre a escala, é comum

olharmos para a porta e estabelecermos comparações entre os elementos que compõem

o desenho. Tal acontece porque a porta, com algumas excepções1, é representativa

da escala humana. Pontuando a nossa experiência no espaço, a porta é também um

instrumento de medição do tempo, proporcionando a cristalização do momento de

passagem e transformando-se num símbolo de chegada e de partida.

O principal poder da porta é, contudo, o de simultaneamente ligar e dividir o

espaço. Local de opostos e contradição, a porta é o ponto de contacto entre diferentes

mundos, mas é igualmente um ponto de discriminação e controlo.

A porta é, simultaneamente, um sinal para parar e um convite para entrar. A porta da

frente da casa resiste ao corpo pelo seu peso, ritualiza a entrada, e faz antecipar os espaços e a

vida por detrás dela. A porta silencia, mas é simultaneamente um sinal das vozes ocultas, tanto

fora como dentro da casa. Abrir uma porta é um encontro físico íntimo entre a casa e o corpo; o

corpo encontra a massa, a materialidade e a superfície da porta, e a maçaneta, polida pelo uso ao

longo do tempo, oferece um aperto de mão acolhedor e familiar.2

Como barreira, a porta estabelece limites de território. O professor e teórico

de arquitectura Simon Unwin, no livro intitulado Doorway3, explica que a porta é

um dos mais importantes elementos de divisão, apesar de podermos achar que essa

função pertenceu primeiramente à parede e que a porta teria sido apenas uma forma

de resolver a acessibilidade. Para demonstrar que, através do seu poder simbólico, uma

porta gera um sentimento de divisão que de outra maneira poderia não existir, dá

como exemplo um exercício do arquitecto e designer Ettore Stottsass (1917-2007). A

experiência, a que chamou ‘porta para entrar na escuridão’, consistia na colocação de

um portal (construído com varas de madeira, cordas e folhas de palmeira) no meio do

deserto, sobre uma linha de sombra. Unwin explica que este gesto muda a percepção

da paisagem desértica, afectando o nosso comportamento em relação a ela. A colocação

daquele objecto chama a atenção para uma divisão do território que de outra maneira

talvez não tivéssemos reparado, ao mesmo tempo que estabelece o ponto exacto onde

essa barreira deve ser atravessada. Neste sentido, esse ponto é também um convite à

a porta

1. No projecto do arquitecto Álvaro Siza para a igreja do Marco de Canavezes, este exercício deixa de ser válido. Tratando-se de um edifício religioso, a porta ultrapassa a escala humana, conferindo-lhe assim um valor espiritual e simbólico.

2. Pallasma, 2011: 131

3. A palavra inglesa ‘doorway’ não significa apenas porta, mas também entrada, passagem ou portal, não sendo possível fazer uma tradução literal para a língua portuguesa.

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passagem, provocando um sentimento de desafio e ousadia, já que sabemos que

atravessar aquele elemento é experimentar realidades distintas. Tal como refere Unwin,

mais do que uma escultura, Ettore realizou um pequeno exercício de arquitectura.4

Por outro lado, a porta é também um elemento de definição de propriedade,

segurança e privacidade. Na Sicília, quando alguém toma posse de uma parcela, a

primeira tarefa é colocar uma porta ou portão, mesmo antes da vedação, definindo

imediatamente que aquele território à propriedade privada.5 Mesmo no espaço interior,

a porta estabelece noções de privacidade e intimidade. O arquitecto e historiador Robin

Evans, no seu texto Figures, Doors and Passages, afirma que as diferentes configurações da

porta no interior não só provocam uma reorganização do espaço da casa, como obrigam

a uma reestruturação do modelo de vida doméstica. Distingue duas grandes formas de

organização: a de matriz medieval italiana de espaços interconectados, provenientes de

um contexto social apoiado na proximidade, na carnalidade e nos encontros sociais

acidentais; e o modelo britânico de corredor e célula, com um contexto social baseado

na privacidade, na distância e na segregação. Segundo Evans, a disposição e o número

de portas de um edifício é um dos principais factores que distingue estes dois modelos.

De acordo com a arquitectura italiana do século XVI, cada divisão da habitação deveria

ter duas ou mais portas, dando origem a uma planta aberta relativamente permeável aos

numerosos membros da casa (...) que se vejam obrigados a atravessar uma matriz de habitações

comunicantes onde tinham lugar os assuntos diários da vida.6 No século XIX, as habitações

inglesas rejeitam esta ideia de livre comunicação entre as diferentes partes por tornarem

impossível a domesticidade e o retiro.7Cada sala passa a ter a sua própria e única porta,

tornando necessária a criação de espaços de distribuição.

Ao mesmo tempo que actua como barreira, a porta é também um convite para

entrar. Enquanto que o poder da parede é ‘negar’, manter afastado, o poder da porta

é ‘permitir’, deixar passar.8 Tal como vimos no exemplo de Stottsass, a porta desperta

um sentimento de curiosidade, um desejo de descoberta que nos atrai. Este fenómeno

psicológico deriva da tensão sugerida pela ideia de espaço ‘entre’. Esta condição de ponto

de transição entre dois opostos leva a que lhe seja atribuído um forte valor simbólico,

chegando mesmo a atingir uma conotação religiosa ou espiritual, especialmente nas

civilizações antigas (a porta como passagem entre dois mundos, entre a vida e a morte).

4. Unrwin, 2007:17

5. Idem: Ibidem

6. Evans, [1978]: 80

7. Robert Kerr cit. Evans, [1978]: 78

8. Unwin, 2007: 3

Fig. 74. Ilustração da experiência Porta para entrar na escuridão (Ettore

Sottsass, 1972)

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59

Por vezes, este valor simbólico é reforçado pelos arquitectos, que dedicam um especial

cuidado ao desenho da porta ou da entrada. O arquitecto Peter Zumthor (n.1943)

procura frequentemente intensificar a experiência proporcionada por esse momento

de transição. Tanto no abrigo que construiu para as ruínas romanas em Chur (1986)

ou na capela de Saint Benedict (1988), a porta é um volume saliente, elevado, em

que os degraus de acesso estão ligeiramente afastados, numa espécie de ritual de

preparação para a entrada no edifício. O arquitecto Álvaro Siza (n.1933), na Faculdade

de Arquitectura da Universidade do Porto, coloca um volume de acesso junto à rua,

mas ao contrário dos exemplos de Zumthor, este não comunica directamente com o

interior do edifício, pontuando apenas o início do percurso de entrada no conjunto.

Estas características físicas e simbólicas da porta, como temas universais e

identificáveis em qualquer parte do mundo, em qualquer período da história humana,

dotam-na de uma potencialidade dramática que a transforma num elemento recorrente

na literatura, pintura, fotografia, cinema, entre outros. Vejamos, por exemplo, a obra

de Hammershøi9, um pintor dinamarquês do final do século XIX, conhecido pelas suas

representações subtis e ‘silenciosas’ de interiores domésticos. Quase sem personagens

ou objectos que contem uma história, as suas obras sugerem tensões e suscitam mistérios

através de uma composição onde a porta é protagonista.

Nenhum objecto palpável interrompe o vazio por detrás de cada uma [porta], nem o

corredor que leva a uma terceira porta sombria que, por sua vez, abre para uma sala iluminada.

Será que essa estreita e distante faixa de encandeamento marca o fim de um curto mas memorável

percurso? Que percurso é este? Alguém está ocupado a não estar aqui. E se essa pessoa, essa pista

que falta, se encontra depois da porta mais interior e mais escura, aquela que conduz à direita,

para fora do hall?10

9. Vilhelm Hammershøi (1864-1916) é um nome controverso na história da pintura. Se hoje as suas obras são reconhecidas pela pureza, pelo despojamento e pelo lirismo, para os seus contemporâneos era um trabalho simplista e demasiado tradicional, numa altura em que artistas como Henri Matisse e Marcel Duchamp ditavam vanguardas. No catálogo da exposição “Poetry of Silence”, organizada pela Royal Academy of Arts de Londres, pode ler-se: Even now, however, Hammershøi is difficult to place. Perhaps a Symbolist, a modernist, an existentialist, or just a loner.

10. Bell:2008

Fig. 75. Entrada do brigo de proteção das minas romanas na estação arqueológica de Chur (Peter Zumthor, 1986)

Fig. 76. Entrada da capela de Saint Benedict (Peter Zumthor, 1988)

Fig. 77. Entrada da da faculdade de arquitectura do Porto (Álvaro Siza, 1994)

Fig. 78 | 79 | 80. Interiores Strandgade, Vilhelm Hammershøi (1908, 1906, 1914)

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60

Este exemplo demonstra que a representação de uma porta, mesmo que não

acompanhada de uma acção, contém em si uma determinada tensão dramática. Aquilo

que ela simultaneamente nos mostra e nos oculta, bem como ideia de movimento

transitório que lhe atribuímos, cria uma espécie de suspensão de um momento. Neste

sentido, o cinema explora profundamente o uso da porta, não só como representação

pictórica, mas apoderando-se desse valor simbólico e dramático.

A passagem pela porta permite a passagem de uma realidade visível para uma realidade

imaginária. Do ponto de vista dramático é esta passagem do que se vê para o que se adivinha e se

avizinha que nos interessa. Toda a porta encerra um segredo e é por isso que ela constitui um tão

forte embraiador de ficção e de suspense no cinema espectáculo. A interpretação analítica frequente

que relaciona o lugar interdito que a porta fecha — repleto de som¬bras, de interrogações, de

surpresas ou de ameaças— com o desejo irresistível do olhar trans¬gressor, tanto dos personagens

como dos especta¬dores, aponta para a própria natureza voyeurista do cinema. Querer saber o

que se encontra por detrás de uma porta é um impulso equivalente ao do querer saber o que vamos

encontrar no ecrã.11

O primeiro filme de Nosferatu (F.W.Murnau, 1922) explora a tensão dramática

associada à porta. Numa sequência em particular, vemos um plano de uma porta

fechada que se abre sozinha. Por segundos, a câmara detém-se nesta imagem, criando

uma suspensão no momento, que aumenta a ansiedade do espectador. No plano

seguinte, a silhueta de Nosferatu surge lentamente no enquadramento da porta, numa

quase sacralização da sua figura. Quando finalmente atravessa a porta, dá-se o momento

de maior tensão, já que Nosferatu ultrapassa a barreira que diferenciava o seu espaço do

nosso enquanto espectadores.

O valor da porta no espaço cinematográfico, como vimos, é igualmente

associado à ideia de ponto de passagem e de barreira, em que uma porta fechada é sinal

de segurança ou segredo e uma porta aberta é sinónimo de insegurança ou de convite.

No entanto, em Double Indemnity (Billy Wilder, 1944) há uma subversão deste conceito:

porta aberta, em vez de revelar, impede que a protagonista seja descoberta.

11. Geada, 1997: 27

Fig. 81 | 82 | 83. Nosferatu, 1922

Fig. 84 | 85 | 86. Double Indemnity, 1944

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61

Do ponto de vista técnico, a porta é um importante elemento de transição

de planos ou cenas, auxiliando no processo de montagem. Tal como afirma Eduardo

Geada, a transposição do ângulo de visão da câmara através do limiar da porta, segundo a

observância das regras do raccord de continuidade, pode servir para criar um espaço fílmico

coerente, estável e contíguo quando, por vezes, a geografia real que separa os dois lados da porta

é completamente distinta.12

A porta no Novo Cinema

A porta como barreira Nos filmes do Novo Cinema encontramos frequentemente o uso da porta

como barreira, destacando-se dois tipos com funções distintas: a porta opaca e a porta

transparente.

Em Uma Abelha na Chuva, a porta é a barreira opaca e intransponível entre

Álvaro e Maria dos Prazeres. É a porta do quarto em que a mulher se refugia para

evitar qualquer contacto com o marido. É esta barreira que leva Álvaro a adoptar um

esquema manipulador sob o pretexto de vingança: denunciar o romance de Jacinto e

Clarice ao mestre António, pai desta última, na esperança de que este tome as devidas

(ou esperadas) precauções. A motivação maior de Álvaro não é, no entanto, o facto de

o casal comentar a sua vida sexual em conversas de cozinha, mas antes, e como Eduardo

Prado Coelho refere:

[o ódio] vem da insuportável raiva que o espectáculo harmonioso provoca naquele que

do desejo apenas conhece a frustração quotidiana de uma porta fechada.13

A barreira de Os Verdes Anos é uma barreira de vidro, invisível, e

consequentemente perversa porque propõe os objectos como objectos desejáveis ao mesmo tempo

que institui entre nós e esses objectos uma distância intransponível.14 Numa das sequências

iniciais, Júlio é atraído pelos pássaros detidos no hall do prédio onde Ilda trabalha, que

consegue ver através da porta de vidro, acidentalmente aberta. Atravessa então esta

barreira, ocupando um espaço a que não pertence e para o qual não foi convidado.

Apercebendo-se da transgressão, tenta recuar, mas é tarde demais: a porta está fechada.

E Júlio, como os pássaros, preso numa gaiola de vidro.

12. Idem: Ibidem

13. Coelho, 1983: 36

14. Idem: 17

Fig. 87 | 88. Uma Abelha na Chuva, 1972

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62

Júlio e Ilda, durante um dos seus passeios de fim-de-semana por Lisboa,

visitam o exterior da cidade universitária.15 A imponência monumental do edifício

confunde-se com a de um templo sagrado, e as grandes portas de vidro, encerradas,

reforçam o distanciamento e a impossibilidade dos personagens de pertencer àquele

lugar. Enquanto espreitam através dos vidros, Júlio e Ilda conversam sobre o futuro que

idealizaram, futuro esse que conscientemente sabem não passar além daquela barreira.

Mais uma vez, a porta de vidro a deixar apenas vislumbrar um conteúdo a que não deixa

ter acesso.

O mesmo acontece quando Artur, o tio de Júlio, leva o casal a visitar a loja

Rampa16 para lhes mostrar o trabalho de azulejo que realizou na entrada. A espessa

moldura da porta, colocada numa parede inteiramente de vidro, cria um efeito curioso,

quase caricatural: um portal invisível que, novamente, separa os personagens daquilo

que não podem adquirir.

Embora com uma presença menos significativa no conjunto de filmes

escolhidos para esta análise, é possível destacar um outro tipo de porta com uma função

fílmica específica: a porta de vidro translúcido. Ao deixar ver apenas silhuetas, pressentir

uma presença que se desconhece ou sugerir determinados acontecimentos, esta porta

revela-se um importante ingrediente para induzir intensidade dramática e mistério a

determinadas sequências. É o caso da sequência final de Os Verdes Anos, quando Júlio

faz uma visita inesperada a Ilda. Nunca chegamos a assistir à sua conversa. Tudo o que

vemos é o vidro fosco da porta que separa o hall de entrada do resto da casa. O grito de

15. Complexo composto por vários projetos, construídos entre 1952 e

1960. Entre os autores estão Porfírio Pardal Monteiro e Norberto Correia.

16. Projecto da autoria de Francisco Conceição Silva (1955)

Fig. 89 | 90. Os Verdes Anos, 1963

Fig. 91 | 92. Os Verdes Anos, 1963

Fig. 93 | 94. Os Verdes Anos, 1963

Page 64: Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

63

Ilda, seguido de uma mudança de plano para Júlio a fugir pela escadaria, confirmam-

nos aquilo que não vimos, mas que as imagens sugeriram.

Ora quem souber ver um filme, saberá aplaudir que você “feche a porta” sobre o crime

final, que faça um grande silêncio na cena seguinte, e que fixe o último instante do filme, que fica

suspenso pelo fio invisível da tragédia. Dir-me-ão talvez que são pequenas coisas, mas são essas

pequenas coisas que fazem os grandes filmes.17

Curiosamente, a mesma porta aparece em Perdido Por Cem, quando Artur

regressa à cidade e é confrontado pela senhoria com as rendas em atraso. Neste caso,

o plano não parece ser usado para potenciar algum tipo de dramatismo, mas funciona

como ferramenta para auxiliar a mudança de sequência.

A PORTA COMO TRANSIÇÃO

Do ponto de vista técnico, a porta em cinema pode ser um instrumento útil

para suavizar a transição de planos, ambientes e atmosferas. Nos filmes escolhidos, o

mais exemplar deste método é talvez Belarmino. Durante todo o filme somos convidados

a seguir o personagem nas suas deambulações pela cidade, numa constante transição

entre espaços interiores e espaços exteriores. De casa para a rua, da rua para o café,

e do café novamente para a rua. Muitas vezes, essa transição é feita pelas imagens da

entrevista que estrutura o filme. Outras, é o acto de atravessar a porta que estabelece a

passagem de um espaço para outro de características diferentes.

Em O Recado, mais do que um instrumento, o uso da porta parece fazer parte

de um estilo. Há em todo o filme, e principalmente à medida que nos aproximamos do

final, uma certa obsessão pelas portas que Lúcia abre, fecha e atravessa constantemente,

como se estivesse perdida na sua própria casa. A porta parece ser a metáfora para a situação

em que Lúcia se encontra, hesitante entre dois mundos distintos – um revolucionário,

representado por Francisco, outro conservador, representado por António.

17. António-Pedro Vasconcelos, [1963]. ‘Carta Aberta a Paulo Rocha’ in Melo (coord.), 1996: 148

Fig. 95 Os Verdes Anos, 1963

Fig. 96 Perdido por Cem, 1973

Fig. 97 | 98 | 99 Belarmino, 1964

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64

Por outro lado, a câmara raramente se encontra no mesmo plano de Lúcia,

que aparece quase sempre enquadrada por uma porta. Num artigo intitulado ‘Trompe

l’oeil’, Miguel C. Tavares explora o papel mediador da arquitectura, e em especial da

porta, entre Lúcia e o espectador. Afirma que, mais do que um recurso formal, estes

enquadramentos são também símbolo de uma mensagem cifrada, de uma verdade que

não se podia contar por inteiro, nem muito menos de perto:

Por causa de todos os condicionalismos inerentes à época em que foi realizado, Fonseca e

Costa recorreu a inúmeros meios artísticos para que o seu “recado” pudesse ter o aval da censura.

Tal como afirma: “O Recado é um pouco um filme trompe l’oeil, onde o que conta não é a

aparência das coisas, mas o que está por detrás delas.”18

Na cena final, depois de destruir alguns vestígios do passado, Lúcia sai

definitivamente para a rua. A câmara detém-se na porta fechada: Lúcia optara finalmente

por um dos seus lados.

17. Tavares, 2011

Fig. 100 | 101 | 102 O Recado, 1972

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67

a janela

(...) uma menina está numa sala com uma decoração austeramente simplificada.

Diante de um ecrã emoldurado, suportado quase invisivelmente por um acrílico, ela declara de um

modo ligeiramente pesado: “Eu gosto destas aulas de história.” Uma imagem do skyline de Nova

Iorque aparece no ecrã: “Que lugar engraçado era Nova Iorque, toda a apontar para cima e cheia

de janelas!” O seu envelhecido bisavô, tenta fornecer uma legenda explicativa para a imagem:.

“Eles abriam e fechavam essas janelas para deixar entrar o vento e impedir a entrada da chuva e

do frio. Eu não sei como descrever essas janelas, mas talvez sejam imagens... A idade das janelas

“, continua a explicar, “durou quatro séculos.”

[Things to Come (William Cameron Menzies, 1936]]1

Tal como a porta, a janela é um elemento mediador entre interior e exterior,

entre privado e público, e influencia não só a caracterização dos espaços que a rodeiam

como a nossa relação com os mesmos. O estudo da janela, da sua forma, do seu

tamanho, ou da sua localização, pode revelar importantes detalhes acerca das formas de

estar e habitar um lugar.2

Herman Neuckermans, no texto A ‘thick’ description of windows, serve-se da

janela como pretexto para demonstrar a complexidade e a multiplicidade de abordagens

a que a arquitectura está sujeita e a que o arquitecto deve ser especialmente sensível.

Fala da importância da janela como elemento de composição da fachada, que através

da variedade de formas confere diferentes expressões ao edifício. A própria relação do

indivíduo com a janela vista do exterior, isto é, a forma como a decora ou a maneira

como actua por se saber exposto, pode revelar não só alguns aspectos da personalidade

do indivíduo, como questões de ordem social e cultural relativas ao contexto em que

está inserido. Por outro lado, Neuckermans afirma que o desenho da janela é igualmente

determinante para a configuração do espaço interior, podendo gerar diferentes tipos de

ambientes. Esse desenho determina igualmente o modo como encaramos a paisagem,

por vezes de forma imprevisível. O formato semelhante ao cinemascope, por exemplo,

nem sempre é o que mais se aproxima da experiência cinematográfica:

Janelas horizontais e janelas verticais fornecem informação visual substancialmente

diferente, bem como valor experimental. Janelas horizontais resultam numa estratificação

horizontal da vista; janelas verticais induzem um movimento paralaxe, uma espécie de ‘movimento

entre as imagens’, como no cinema. No caso de uma janela horizontal, a imagem é mais estática,

pelo menos no que diz respeito ao movimento do observador. A janela vertical mostra uma parte

do céu, assim como a envolvente imediata e longínqua.3

Contudo, esta relação com a paisagem de que nos fala Neuckermans é sobretudo

visual. Ao contrário da porta, a janela não pressupõe um atravessamento físico mas um

acto de contemplação. Tal como afirma Beatriz Colomina, ver uma paisagem através de

uma janela implica uma separação. Uma ‘janela’, qualquer janela, quebra a conexão entre estar

1. Anne FriedBerg. [2006] cit. Bull, & Paasche (ed), 2011

2. Numa viagem ao Camboja, no âmbito da disciplina de projecto que frequentei na École Nationale d’Architecture de Belleville, pedi a uma criança que desenhasse a sua casa. O resultado não se afastava muito do desenho convencional do quadrado encimado pelo triângulo, com excepção de um pormenor: em vez de desenhar as janelas no interior do quadrado (muitas crianças ocidentais acrescentariam ainda uma cruz que representa a caixilharia), a criança cambojana desenhou as janelas do lado de fora. Para ela, a janela é uma abertura com uma portada constantemente aberta. Um facto que encontra explicação não só nas características climatéricas daquele lugar mas também na forma como habitam em comunidade, onde espaço privado e espaço público muitas vezes se diluem.

3. Neuckermans in Farmer & Louw (ed.), 1993: 364

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numa paisagem e vê-la.4

A mesma autora, no livro Privacy and Publicity: Modern Architecture as Mass

Media, caracteriza e distingue a arquitectura de Adolf Loos e de Le Corbusier através da

forma como encaram a janela no projecto. Demonstra que se para Loos a janela não é

mais do que um ponto de luz, para Le Corbusier é fundamental para o enquadramento

da paisagem.

[Le Corbuiser] Loos disse-me um dia: ‘um homem culto não olha pela janela; a sua

janela é um vidro fosco; ela está ali apenas para dar luz, não para deixar passar o olhar’.5

A janela para Loos é opaca ou coberta com cortinas, e o sofá é habitualmente

colocado de costas para o exterior. A janela para Le Corbusier, pelo contrário, nunca

tem cortinas ou qualquer obstáculo que impeça o acesso à vista sobre a envolvente. Tais

diferenças dão origem a vivências do espaço interior igualmente distintas: nas casas de

Loos, o olhar é direccionado para o interior, tornando os habitantes simultaneamente

actores e espectadores da cena familiar6; inversamente, nas casa de Le Corbusier, o

olhar parece ser constantemente atraído por um exterior subjectivo, provocando um

afastamento do indivíduo em relação à sua própria casa, como se de um visitante, um

espectador, um fotógrafo, um turista7 se tratasse. Assim, a arquitectura de Loos sugere uma

percepção estática, mais próxima da fotografia, enquanto que a arquitectura de Le

Corbusier se associa mais rapidamente ao movimento e, portanto, ao cinema. Uma

associação pertinente se tivermos em conta que o próprio Le Corbusier utilizou o filme

como instrumento de divulgação, ou até mesmo de propaganda, da sua arquitectura e

dos seus ideais modernos.8

Por outro lado, Juhani Pallasmaa faz uma interpretação poética e antropomórfica

da janela. Partindo do princípio que uma casa se assemelha muitas vezes a um corpo

humano, define as janelas como os olhos que observam o mundo e inspeccionam os

visitantes.9 Deste modo, uma janela partida transmitiria um sentimento desagradável

4. Beatriz Colomina in Bull, & Paasche (ed), 2011

5. Le Corbusier [1925] . cit. Colomina. 1994: 234

6. Colomina. 1994: 244

7. Idem: 244

9. Pallasmaa, 1982:130

7. Em 1930, Pierre Chenal realizou L’Architecture d’aujourd’hui, uma

série de curtas-metragens filmadas em várias obras de Le Corbusier, frequentemente relembrada nos

discursos sobre as relações entre a arquitectura e o cinema.

Fig. 103 Casa Hans Brummel (Adolf Loos, 1928)

Fig. 104. Livraria Manz (Adolf Loos, 1912)

Fig. 105. Casa Scheu (Adolf Loos, 1912)

Fig. 106 | 107 | 108. L’Architecture d’aujourd’hui , 1930

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de violação e um edifício contemporâneo, com janelas tapadas por painéis, seria uma

casa que cegou com uma terrível e contagiosa doença. Pallasmaa acrescenta ainda que

as janelas podem ser olhos maliciosos que secretamente controlam até os próprios

moradores. Curiosamente, esta observação parece encontrar um paralelo no cinema de

Jacques Tati, em particular no filme Mon Oncle (1958)

Nas diferentes abordagens ao tema da janela no âmbito da arquitectura, parece

inevitável uma associação, mais ou menos indirecta, ao universo cinematográfico. De

facto, alguns filmes utilizam as relações que se constroem a partir da janela como

metáfora do próprio cinema. O filósofo e psicanalista Slavoj Zizek, no documentário

The Pervert’s Guide to Cinema, onde nos guia através de alguns dos mais importantes

filmes da história do cinema, toma como exemplo uma sequência do filme Possessed

(Clarence Brown, 1931), onde a protagonista se detém junto a uma linha ferroviária.

As janelas do comboio em andamento vão revelando pequenas histórias, pequenos

excertos da vida dos passageiros.

De repente, ela encontra-se numa situação onde a realidade reproduz a experiência

mágica do cinema. Ela aproxima-se dos carris, o comboio está a passar, e é como se, o que na

realidade é apenas uma pessoa parada junto a um comboio que passa lentamente, se transformasse

num espectador a observar a magia da ecrã. (...) O que temos é uma cena muito real, comum,

onde o espaço interior da heroína, o seu espaço de fantasia, é projectado, de modo que, apesar de

toda a realidade estar simplesmente ali – o comboio, a cidade, a menina - parte da realidade na

sua percepção e na nossa percepção enquanto espectadores é, por assim dizer, elevada ao nível da

magia, torna-se o ecrã dos seus sonhos. Esta é a arte cinematográfica na sua forma mais pura.10

O filme Rear Window (Alfred Hitchcock,1954) é talvez o mais paradigmático

desta ideia de auto-reflexão do cinema através da metáfora da janela, tema explorado

pelos arquitectos Manuel García Roig e Carlos Martí Aris, no livro em que procuram

estabelecer relações entra a arquitectura e o cinema:

10. Slavoj Žižek, in The Pervert’s Guide to Cinema (2006, Sophie Fiennes)

Fig. 109 | 110. Mon Oncle, 1958

Fig. 111 | 112. Possessed, 1931

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70

A arte moderna caracteriza-se pela sua condição auto-reflexiva, ou seja, pelo facto de

incorporar no próprio objecto uma reflexão interna sobre si mesmo. Assim acontece neste filme que

se constrói como uma metáfora do próprio cinema. Na verdade, a janela a que o título se refere

equivale a uma tela de cinema. Jeff, com a perna partida, é apenas um espectador. A imobilidade

forçada obriga-o a adoptar uma atitude passiva própria de um espectador de cinema. Com o que

vai vendo através da sua janela, “constrói” um filme cujo significado reside no olhar do próprio

Jeff.11

Neste caso, temos a janela de Jeff que capta a atenção para o exterior, e as

janelas dos vizinhos que, no sentido inverso, atraem o olhar para o interior. Mas na sua

natureza, a janela é para olhar para fora de, e não o inverso.12 Esta transgressão transforma

a janela num instrumento de voyeurismo: observar sem ser observado, ser observado

sem o saber. Por esta razão, os enquadramentos de Hitchcock são frequentemente

comparados às obras do pintor americano Edward Hopper (1882-1967). Em ambos os

casos, o espectador é forçado a assumir o papel de voyeur, questionando os limites entre

o domínio público e o domínio privado.

11. Arís & Roig. 2008: 59

11. Pallasmaa. 2007: 169

Fig. 113. Rear Window, 1954

Fig. 114. Night Windows, (Edward Hopper, 1928)

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71

A janela no Novo Cinema

No Novo Cinema português, não há uma forma generalizada de filmar a

janela, mas é possível identificar determinados grupos que parecem ir de encontro a

algumas das abordagens anteriores. Tal como nas obras de Adolf Loos, a janela é por

vezes utilizada como fonte de luz para a criação de um certa ideia de interioridade,

criando ambientes mais introspectivos. Por outro lado, há também uma intenção de

enquadramento que, tal como nas obras de Le Corbusier, remete para a própria ideia

de cinema. Finalmente, o valor simbólico da janela parece fazer-se sentir de forma mais

intensa na sua ausência, remetendo para uma ideia de clausura.

A janela como introspecçãoBelarmino é talvez o filme que melhor se enquadra nesta perspectiva, facto

aparentemente paradoxal, já que a acção se passa quase exclusivamente em lugares

públicos. No entanto, Belarmino é um personagem da cidade e o café é o espaço que

mais se aproxima de uma ideia de lar, o lugar que melhor caracteriza este personagem

complexo - boxer, engraxador e colorista de fotografias. Entrar no café é entrar no

interior de Belarmino, no seu íntimo. A agitação da cidade é anulada pelos vidros foscos

das janelas, e a luz devidamente filtrada cria um ambiente propício à introspecção. Não

há interacção entre os clientes, cada um executa as tarefas que lhe são mais aprazíveis.

Um casal conversa comprometidamente, um homem solitário lê o jornal, e Belarmino

prepara metodicamente a sua mesa de trabalho. Um espaço público por excelência

transforma-se assim num interior quase doméstico.

O mesmo tratamento dos espaços interiores pode ser encontrado no filme

de António da Cunha Telles, O Cerco. Neste caso, a janela, para além de funcionar

como um elemento que reforça a interioridade daquele espaço, é também símbolo

de uma liberdade conquistada pela protagonista. Marta, ao divorciar-se do marido,

passa de uma casa tradicional e conservadora, onde as cortinas contribuem para um

ambiente sombrio e opressor, para um lofte moderno, de uma única janela horizontal.

Fig. 115 | 116. Belarmino, 1964

Fig. 117 | 118. O Cerco, 1970

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72

Apesar deste desenho se aproximar mais da janela modernista de Le Corbusier, não

há uma preocupação em destacar a paisagem, mas antes em deixar entrar uma luz que

parece representar a esperança numa vida nova, mais moderna, mais liberta de valores

tradicionais e conservadores.

A janela como ecrãEmbora com uma intenção menos perversa do que em Rear Window, a janela

em Os Verdes Anos é o ponto de contacto de Júlio com o exterior, enquanto trabalha

numa minúscula oficina de sapatos. É através dela que acompanha os movimentos de

Ilda nas suas tarefas diárias de empregada doméstica. A câmara fixa mostra-nos a Lisboa

moderna emoldurada por um formato que nos remete para o cinemascope, realçando a

ideia de um “filme dentro do filme”. Ilda entra e sai desse ecrã, protagonizando aquele

que parece ser o filme do imaginário mais íntimo de Júlio. Pelo facto da oficina se

situar numa cave, a janela oferece-nos um ponto de vista mais próximo do nível da rua,

permitindo um interessante jogo de perspectiva e uma maior proximidade com o objecto

de desejo do protagonista. Esta sensação de estar a assistir a um filme é abruptamente

interrompida quando Ilda se debruça sobre esta mesma janela. A tridimensionalidade

que a figura de Ilda confere à imagem, atravessando aquilo que, por um momento,

acreditamos ser uma tela bidimensional, rompe com esse olhar contemplativo e

transforma-a num ponto de interacção directa entre os personagens.

Também em Uma Abelha na Chuva podemos encontrar um exemplo desta

relação, que coincide com uma das cenas mais importantes para a compreensão da

trama: o momento em que Álvaro, o patrão, assiste a uma conversa entre a empregada

e o cocheiro através de uma janela interior. Na cozinha, o casal troca carícias e tece

comentários jocosos sobre a repressão sexual dos patrões, tema que resume a intriga

do filme. São finalmente interrompidos por Maria dos Prazeres, a patroa, que entra na

cozinha e lança um olhar comprometido a Álvaro.

Fig. 119 | 120 | 121. Os Verdes Anos, 1963

Fig. 122 | 123 | 124. Uma Abelha na Chuva, 1972

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73

Estabelece-se assim uma interessante dinâmica mediada pela janela: o casal age

naturalmente, por se julgar sozinho; Álvaro assiste, achando-se protegido pela caixilharia

fragmentada; e Maria dos Prazeres surge inesperadamente no enquadramento,

surpreendendo não só o casal como o próprio Álvaro. Tal como acontece em Os Verdes

Anos, a ilusão do ecrã é desmantelada pela interferência de um personagem.

Fernando Lopes havia já explorado este tema em Belarmino, embora de uma

forma mais abstracta e possivelmente metafórica. Na sequência de abertura do filme,

em que Belarmino e outros atletas treinam compenetradamente, o olhar da câmara

e, por consequência, do espectador, raramente é directo. A imagem é quase sempre

enquadrada por uma moldura e filtrada por uma rede. Num filme repleto de entrelinhas

e metáforas sobre o panorama político e social dos anos sessenta em Portugal, o recurso

a estes elementos parece relacionar-se com uma ideia de clausura e aprisionamento.

Esta metáfora é retomada na última cena do filme, quando Fernando Lopes filma

Belarmino no meio da multidão através de um gradeamento. Ainda sobre a sequência

inicial, um outro plano se destaca: o treino de Belarmino visto daquilo que parece

ser uma frecha no exterior do edifício. A imagem de alto contraste não nos permite

identificar uma localização exacta, ao mesmo tempo que cria um maior enfoque na

acção. O enquadramento é, curiosamente, muito semelhante à forma de um olho,

como se estivéssemos a espreitar um conteúdo proibido ou a analisar no microscópio

uma amostra de um conjunto maior.

A ausência de janelaUma Abelha na Chuva é um filme sobre repressão, sobre dominadores e

dominados. De um lado estão os patrões, Maria dos Prazeres e Álvaro, socialmente

opressores mas sexualmente reprimidos. Do outro estão Clara, a empregada, e Jacinto, o

cocheiro, socialmente oprimidos mas sexualmente livres. Os primeiros, pela frustração

de uma vida submissa e alienada, acabam com a felicidade (e a vida) dos segundos. No

final não fica senão a culpa, perpetuando um ambiente já de si decadente e corroído. A

janela (ou neste caso, a sua ausência) desempenha um importante papel na construção

desta atmosfera. Nos planos fechados raramente se vêem janelas e, nas poucas vezes

que aparecem, são tapadas por portadas. A sua ausência é assim símbolo do sufoco

e da tensão que impera na vida dos personagens, um fechamento que parece querer

denunciar uma mentalidade retrógrada de uma burguesia em decadência.

Fig. 125 | 126. Belarmino, 1964

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74

Uma abordagem semelhante é a de Perdido por Cem, onde a ausência de janela

é reflexo de uma geração que vivia de noite e atrás de portas. Na sua permanente

deslocação em busca de um lugar próprio, Artur visita vários ambientes domésticos,

como o quarto que deixara de alugar, o quarto do amigo que o abriga, ou o apartamento

que ocupa na ausência de Rui. Todos eles apresentam um carácter hermético sugerindo

uma ideia de abrigo secreto. A janela, como em Uma Abelha na Chuva, é negligenciada.

Repare-se que, na única vez em que Artur olha pela janela, o que se vê é um fundo

negro, neutro e abstracto, como se a cidade parasse assim que a noite caía.

Fig. 127 | 128. Uma Abelha na Chuva, 1972

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77

o corredor

(...) o corredor, desde a sua concepção, foi um instrumento da modernidade, relacionado

primeiro com a velocidade, depois com o poder, depois com a arregimentação da masculinidade,

depois com as estruturas sociais vitorianas emergentes, e, finalmente, no século XX, com a higiene,

a industrialização e a mercantilização da vida.1

Apesar da história do corredor estar ainda por escrever2, o teórico e historiador

de arquitectura Mark Jarzombeck, no artigo intitulado “Corridor Spaces”, faz uma

abordagem à evolução deste dispositivo desde as primeiras referências à palavra

“corredor” até à sua aparente desvalorização na arquitectura contemporânea. Corredor,

como o próprio nome indica, é alguém que corre, e durante o século XIV era o nome

atribuído, por exemplo, ao olheiro enviado atrás das linhas inimigas, ou ao mensageiro

governamental3. Não é por isso surpreendente que o mesmo termo tenha sido aplicado

ao espaço que tem por função unir diferentes compartimentos, facilitando a circulação.

Usados inicialmente na arquitectura militar ou como passagens secretas

dentro ou entre edifícios, só no século XVII os corredores começam a ser integrados

na habitação, primeiro como simples ligação entre o exterior e a zona central da casa e,

mais tarde, como meio de circulação interior, privatizando o quotidiano doméstico e

criando o conceito de privacidade.

No século XVIII, há uma disseminação do corredor, embora o seu uso não

fosse consensual: se em Inglaterra generalizava-se a adaptação aos espaços domésticos,

em França era considerado uma fonte de ruído para os quartos4, sendo privilegiada a sua

aplicação na arquitectura militar.

Na Inglaterra vitoriana do século XIX, o corredor tinha como principal função

canalizar a circulação de forma a proteger a privacidade dos proprietários, evitando o

contacto com os criados. Um facto que Robin Evans acredita ser, em certa medida,

responsável pela mudança de uma sociedade que estimava a interacção social para uma sociedade

construída à volta de princípios de privacidade e segregação pessoal.5 Desde então, o corredor

foi ganhando autonomia e relevância como lugar de interacção social. Inicialmente, era

um espaço de prestígio e diferenciação, cuidadosamente decorado, onde os proprietários

das habitações recebiam os convidados. Mais tarde, a sua popularização em blocos de

escritórios e edifícios governamentais, transformou-o num dispositivo genérico e linear.

Contudo, durante o século XX, a imagem do corredor sofre novamente uma

profunda alteração:

Os desenhadores de hospitais em vez de verem um espaço de higiene e ordem, agora

queixavam-se de que corredores “interferem com a comunicação verbal normal, devido às suas

propriedades acústicas”. Educadores, em vez de louvar o potencial regulador e democratizador

do corredor, agora queixavam-se que era um sintoma de aprendizagem mecanizada. Estudos

ambientais, em vez de provar a eficácia social do corredor, agora provavam que era isolado e

stressante e que os estudantes que viviam em edifícios corredor “tendiam a afastar-se socialmente”.

1. Jarzombeck 2010: 768

2. Evans, [1978]: 86

3. Jarzombeck 2010: 731

4. Jacques-François Blondel cit.Idem: 747

5. Evans [1978] cit. Idem: 766

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78

Sociólogos, em vez de verem uma tradição de interacção pessoal, viam apenas faixas escuras de

espaço desperdiçado, que traziam à tona o pior das pessoas.6

A história do corredor é assim pontuada por constantes alterações na forma

como é encarado pela sociedade, que ora o privilegia como espaço dinâmico e de

interacção, ora lhe confere um carácter secundário. Actualmente, parece persistir a

associação do corredor a uma ideia de espaço desperdiçado. Nas escolas de arquitectura,

os alunos são por vezes incentivados a evitar o corredor, especialmente quando se fala

de habitação. Projectos com longos corredores são até motivo de sátira: o projecto de

habitação colectiva Estoril-Sol (2004-2010), da autoria de Gonçalo Byrne Arquitectos,

que possui corredores de quase 30m de comprimento, foi alvo de uma onda de críticas

que chegou a invadir as redes sociais na internet e a imprensa especializada. Por

especulação imobiliária ou simples medo do vazio, o corredor perdeu o estatuto que

havia conquistado no século XIX. Mas está certamente longe de morrer, e poderá um dia até

encontrar quem o defenda.7

A ideia de corredor associada à claustrofobia, à ausência de luz natural, ao

desconforto de percorrer sozinho um espaço meramente funcional, foi igualmente

transportada para o imaginário cinematográfico. Frequentemente, uma cena onde um

personagem percorre um corredor serve não só para gerar ansiedade dramática, dada a

aparente solidão, mas significa geralmente algum tipo de confronto com o desconhecido.8 Esta

sensação é intensificada no espectador pelo facto de, em cinema, os percursos lhe serem

impostos, enquanto que na experiência real do espaço o indivíduo movimenta-se de

forma livre e consciente. Por esta razão, o corredor é um espaço muitas vezes associado

ao género de terror.

No filme The Shining (Stanley Kubrick, 1980), a cena em que Danny percorre os

corredores do hotel no seu triciclo até encontrar as duas irmãs mortas pelo próprio pai

naquele mesmo espaço, é talvez a cena mais icónica do filme, ou pelo menos aquela que

é alvo de um maior número de análises, pela tensão e pelo medo que despoleta. Neste

caso, para além das razões apresentadas anteriormente, outros factores se acrescentam.

Em primeiro lugar, o uso do tracking shot remete para uma ideia de perseguição, que se

torna ainda mais assustadora quando o perseguido é uma criança que julgamos inocente

e indefesa. Por outro lado, esta não é a primeira vez que acompanhamos Danny neste

percurso. Por isso, quando a câmara, no primeiro plano, hesita em continuar a segui-

lo, criando um momento de suspensão, é sugerido que algo diferente acontecerá. Por

fim, o desenho do corredor, composto por várias mudanças de direcção, marca pontos

6. Idem: Ibidem

7. Idem: Ibidem

8. Ahmed, 2012

Fig. 129. The Shining, 1980

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79

de tensão a cada viragem. O efeito de perspectiva que o corredor permite reforça ainda

mais esta ideia, já que a tensão psicológica parece encontrar um paralelo na tensão das

linhas que compõem o espaço. Tal efeito é especialmente eficaz quando, como neste

caso (e em muitos dos filmes de Stanley Kubrick), a perspectiva é central, de um único

ponto de fuga.

Apesar desta íntima relação com as atmosferas de terror, o corredor como espaço

cinematográfico é transversal a todos os géneros, talvez até um dos mais recorrentes. Em

O Sangue (Pedro Costa, 1989), o corredor serve de cenário a uma longa cena de luta onde,

mais uma vez, o movimento da câmara e a perspectiva central reforçam a tensão criada

no espectador. Devido a essa potencialidade dramática, o corredor é um espaço também

frequente nos dramas psicológicos, especialmente quando associados a instituições

governamentais como os hospitais, as prisões, as escolas ou as sedes de governo. Em

One Flew Over the Cuckoo’s Nest (Milos Forman, 1975), quando o protagonista entra

pela primeira vez no hospital psiquiátrico, o corredor parece ser uma metáfora para

a jornada que acabara de iniciar e que conduzirá para a sua progressiva degradação

psicológica. Por outro lado, longos corredores que avançam em diferentes direcções são

associados a uma ideia de labirinto, que provoca um sentimento de desorientação. O

filme The Shining é novamente uma referência, não só pela sequência já referida, mas

também pela sequência final, em que Danny é perseguido pelo pai num jardim exterior

em forma de labirinto.

Mesmo quando não estão directamente associados a uma situação de

complexidade psicológica ou forte carga dramática, os corredores continuam a marcar

presença no espaço cinematográfico, até nas meras conversas de corredor, como o famoso

diálogo protagonizado por John Travolta e Samuel L. Jackson em Pulp Fiction (Quentin

Tarantino, 1994).

Fig. 130. One Flew Over the Cuckoo’s Nest, 1975

Fig. 131. The Shining, 1980

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80

O corredor no Novo Cinema

Pela dimensão psicológica e pelas mensagens subtis que continham, a maioria

dos filmes do novo cinema português utilizava o corredor, não como cenário de uma

acção mais ou menos complexa, mas como elemento de reforço na construção de

atmosferas e, por vezes, de metáforas.

O corredor como tensão dramáticaNa sequência inicial de Belarmino, um travelling pelo corredor do estádio de

Alvalade apresenta-nos o personagem. Belarmino avança confiante, preparando-se

para o combate. O seu andar é leve e confunde-se com uma dança, um traço muito

particular, de acordo com o testemunho de Fernando Lopes:

Havia nele uma ligeireza física que era rara na maioria dos portugueses. Pelo facto de

ele ser boxeur, andava na rua de uma maneira que os portugueses não andavam. Os portugueses

andavam como fantasmas ambulantes na rua. Ele não, ele mexia-se, era como se estivesse a

dançar na rua, e isso era fantástico. Introduzia um elemento de subversão no que nós estávamos

habituados a considerar como a cidade, a Lisboa...9

O mesmo corredor volta a aparecer no filme, no sentido inverso: se no

primeiro plano, Belarmino era filmado de frente, em movimento, com as portas abertas

a iluminar o espaço e a acentuar o ritmo, agora vemos Belarmino de costas num plano

obscurecido, a dirigir-se para o único ponto de luz, provavelmente numa referência

simbólica à luz ao fundo do túnel.

Não é de uma grande beleza o travelling sobre a mesa da sala de jantar em que Belarmino

percorre para chegar à luz, ao espaço, ao grande ringue onde ele se sentia um grande lutador?10

Também em Um Abelha na Chuva, Fernando Lopes apresenta o personagem

principal através de um travelling que o acompanha pelo corredor. Desta vez, o andar

optimista de Belarmino é substituído pelo tom grave e desencantado de Maria dos

Prazeres. Enquanto caminha, o ritmo é mais uma vez marcado pelas portas que ficam

para trás e pelo som dos seus passos. Em off, um discurso na terceira pessoa, mas na voz

de Maria dos Prazeres, explica o motivo da tensão:

Avançava pelo braço do pai toda de branco, entre o murmúrio do órgão e vozes

sussurrantes. Tinha a certeza de que ia a sorrir, mas dentro de si nascia um grito, um grito sempre

reprimido. E agora, volvidos vinte anos, sentia bem que ainda o não soltara.

9. Excerto da entrevista a Fernando Lopes, realizada pelo projecto de

investigação “Ruptura Silenciosa”, em Setembro de 2011

10. Fernando Matos Silva in Andrade (coord.), 1996: 35

Fig. 132 | 133. Belarmino, 1964

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81

A mesma cena é repetida na sequência final do filme, completando uma elipse

que reforça a metáfora da repetição e da monotonia daquele universo estagnado, e para

o qual não parece haver solução.

Planos fixos de corredores vazios são também frequentes em Uma Abelha na

Chuva. Sendo o corredor, por definição, um lugar de circulação e movimento, quando

deserto cria um momento de suspensão, sabemos que algo está na eminência de

acontecer. Estes planos estão quase sempre associados a Clara e Jacinto – as suas vozes

são muitas vezes sobrepostas à imagem – remetendo para um estilo de vida burguês em

que os corredores são os espaços de serviço por onde circulam os criados. O facto de

estarem vazios, parece relacionar-se igualmente com a clandestinidade a que está votado

o amor deste casal.

A cena de maior erotismo de O Mal Amado, talvez até de todo o Novo Cinema

português, tem lugar no corredor do moderno apartamento de Inês. Enquanto João

avisa a mãe por telefone de que não irá jantar a casa, Inês caminha lentamente pelo

corredor, de corpo despido, até se ajoelhar aos pés de João. A deslocação do acto sexual

do quarto para o corredor parece ser um gesto subversivo, reforçando a perversão de um

amor tão doentio e perigoso como o de Inês.

O corredor como desorientação Em Os Verdes Anos, Júlio, recém-chegado à cidade, viaja de metro pela primeira

vez. Acompanhado por um desconhecido que se disponibiliza a ajudá-lo, Júlio atravessa

desconfiado os corredores subterrâneos, onde um grupo de jovens corre em sentido

Fig. 134 | 135. Uma Abelha na Chuva, 1972

Fig. 136 | 137. O Mal Amado, 1974

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82

contrário, num misto de festejo e manifestação, fazendo lembrar a cena inicial de Blow-

Up (Michelangelo Antonioni, 1966). Quando volta à superfície, Júlio sente-se perdido.

A transladação directa de um lugar para outro através dos corredores do metro, sem

a possibilidade de identificar pontos de referência que lhe permitam reconstruir

mentalmente o percurso, provocam em Júlio um sentimento de desorientação.

O mesmo sentimento parece tomar conta de João em O Mal Amado, quando

visita o local de trabalho pela primeira vez. Enquanto procura o seu posto, acaba perdido

num corredor monótono de portas iguais. João hesita em frente a cada uma delas, não

encontrando qualquer diferença que as distinga. De facto, este edifício de escritórios,

de traços modernistas, pertence a uma época em que o corredor perde a sua autonomia

enquanto espaço e passa a assumir um carácter meramente funcional. A desorientação

experimentada por João naquele corredor é também uma representação da sua própria

desorientação em relação ao futuro.

Fig. 138 | 139. Os Verdes Anos, 1963

Fig. 140 | 141 | 142. O Mal Amado, 1974

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III. ESPAÇO PSICOLÓGICO

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reflexosDiante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que

vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face

desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara.1

O tema do reflexo do indivíduo no espelho foi sempre alvo de múltiplas

interpretações e tema frequentemente abordado em diversos campos, como a literatura,

a filosofia ou a psicologia. Desde a Antiguidade que se acreditava que o espelho captava

a alma de quem o observasse2. Partindo desta metáfora, o espelho é um objecto ao

qual são atribuídos significados subjectivos e simbólicos, representando quase sempre

questões de identidade, de reconhecimento do “eu”.

No campo da psicanálise, é o tema central de algumas das questões levantadas

por Sigmund Freud e Jacques Lacan. Freud denomina de narcisismo o processo através

do qual o sujeito assume a imagem do seu próprio corpo como sua e se identifica.

Este novo conceito, desenvolvido numa fase mais tardia da investigação de Freud,

viria a transformar radicalmente a sua teoria do Ego, que se torna agora um ‘objecto’,

uma ‘imagem’ um vestígio das identificações passadas diferente do Ego da inibição das pulsões

e do controlo da motricidade.3 Jacques Lacan recupera o legado de Freud e propõem o

estádio do espelho, que identifica como sendo a fase da formação da identidade em

que a criança se vê ao espelho e toma consciência da sua imagem, do seu corpo como

totalidade unificadora.

O espelho é um fenómeno-limiar, que marca os limites entre o imaginário e o simbólico.

(...) Numa primeira fase confunde a imagem com a realidade, numa segunda fase apercebe-se

que se trata de uma imagem, numa terceira compreende que é sua. Neste ‘assumir jubilatório’ da

imagem, a criança reconstrói fragmentos ainda não unificados do próprio corpo, mas o corpo é

reconstruído como algo de externo.4

Na literatura, são vários os exemplos em que o autor se serviu da metáfora

do espelho como base para narrativas e reflexões. O escritor brasileiro Machado de

Assis escreve, em 1882, um conto intitulado O Espelho, onde se propõe a traçar, como

o próprio subtítulo da obra indica, um esboço de uma nova teoria da alma humana.

Conta a história de um homem que, ao ser nomeado alferes, passa a ser identificado e

reconhecido por este título em vez do seu nome próprio – O alferes eliminou o homem.5

Constrói, a partir daí, uma imagem sua baseada na imagem que os outros têm de si. Um

dia, depois de uma longa temporada sozinho, em que a ausência dos outros lhe provoca

uma progressiva crise de identidade, decide olhar-se ao espelho. A imagem que vê não a

sente como sua, afigura-se-lhe incompleta:

A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente,

com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então

1. Ferreira, [1959]

2. Teyssot, 2010: 248

3. Mannoni, 1968: 163

4. Eco, [1959]: 12

5. Assis, [1882]

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tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e

enlouquecer. (...) De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a

mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos...6

Decide desesperadamente voltar a vestir a farda de alferes: o vidro reproduziu

então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o

alferes, que achava, enfim, a alma exterior.7 Através da metáfora do espelho, Machado de

Assis defende assim a existência de duas almas, uma interior e outra exterior, sendo que

a última é mutável e pode representar um objecto, um homem, um evento, ou qualquer

outra coisa que complete esse indivíduo. A perda de uma dessas almas, de uma dessas

metades que constituem o sujeito, provoca necessariamente uma crise existencial.

O escritor britânico Lewis Carroll leva ainda mais longe esta metáfora na

obra Through the Looking-Glass, a sequela do seu famoso livro Alice’s Adventures in the

Wonderland. Nesta história, que em 1928 Walter Lang viria adaptar ao cinema, Alice não

apenas se olha ao espelho como o atravessa, descobrindo um novo mundo em que tudo

funciona de maneira inversa, um mundo de sonho que muitos analisam como sendo o

mundo do seu inconsciente.

Em arquitectura, o uso do espelho altera a percepção do espaço, deturpando

a realidade e criando imagens ambíguas capazes de transformar profundamente as

características de um lugar. O desenho, as dimensões e até mesmo a luminosidade de

um determinado espaço ganham novas interpretações na presença de uma superfície

em espelho, muitas vezes responsável por provocar desorientação no utilizador. Por

outro lado, pode realçar determinados pormenores do espaço ou estabelecer relações

com o exterior. Na Pousada de Santa Bárbara (1968-71), o arquitecto Manuel Taínha

coloca um espelho na sala de estar, para que quem estiver de costas para a janela possa

apreciar igualmente a paisagem. A paisagem não é obviamente a mesma do que aquela

observada pela janela, mas surge por entre as pessoas que percorrem o espaço e por

aqueles que aparecem também reflectidos. O espelho ganha assim um carácter de

duplicação da paisagem quase cinematográfico, ao mesmo tempo que origina a criação

de um jogo entre vultos, movimentos, reflexos e até mesmo entre troca de olhares.

6. Idem

7. Idem

Fig. 143 | 144. Pousada de Santa Bárbara (Manuel Taínha 1968-71)

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89

O artista norte americano Dan Graham, cujas obras se encontram no limite

entre a escultura e a arquitectura, questiona modos de percepção através do uso de

superfícies reflectoras. Em Alteration to a Suburban House (1978), Graham constrói a

maquete de uma típica casa americana de subúrbio, substituindo a fachada por um

plano de vidro e colocando um espelho ao centro que divide o espaço doméstico em

duas secções: a privada e a pública. Como o espelho está voltado para a fachada de vidro e

para a rua, reflecte não só o interior da casa, como também a rua e o contexto exterior da casa.8

O espelho assume assim a função perversa de expor a interioridade da casa, anulando-a.

O dispositivo converte-se numa representação pública da domesticidade convencional 9, que

ao mesmo tempo que expõe publicamente o habitante, transforma cada transeunte

num intruso.

O uso do espelho em arquitectura, contudo, nem sempre significa a exposição

forçada da intimidade do indivíduo. Pelo contrário, os reflexos podem inclusivamente

reforçar uma ideia de interioridade. Georges Teyssot, no texto intitulado Dis-eases of

the Domicile, questiona-se sobre a existência de uma “arquitectura de todos os dias”,

propondo uma análise das doenças ou padecimentos que poderão estar relacionados

com o espaço doméstico, partindo da premissa que conceitos como “conforto” e

“bem estar” começaram por ser psicológicos. Distingue as doenças relacionadas com o

tempo – ansiedade, nostalgia, melancolia – e com o espaço – claustrofobia, agorafobia,

inquietação, homesickness (saudades de casa) – e destaca o tédio como a doença da

“arquitectura de todos os dias” mais comum e menos explorada.

O tédio move-se para além dos limites físicos do corpo, para se revelar no ‘intérieur’,

nos quartos interiores da domesticidade, onde o espaço íntimo esconde o corpo com as formas

inquietantes da familiaridade.10

Teyssot afirma que o tédio pode ser considerado uma falha de felicidade, resultado

de uma decadência, um desmazelo do instante no intervalo da duração.11 Uma vez que a

felicidade é um instante, ou seja, um tempo condensado, a tentativa de prolongar essa

felicidade pode causar decepção e, consequentemente, tédio. Partindo deste princípio,

Teyssot explora a importância do espelho no espaço interior, espaço que se transforma

num lugar de reflexão, no mundo da consciência interior:

8. Dan Graham in Colomina, 2006:195

9. Idem: 197

10. Teyssot, 2010: 155

11. Idem: 161

Fig. 145. Alteration to a Suburban House (Dan Graham, 1978)

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90

Não há felicidade se se está sozinho: a felicidade tem de ser partilhada, necessita de

um público. Se não houver mais ninguém, precisamos de um espelho para nos reflectirmos a nós

próprios.12

Evoca, como exemplo, a aguarela Quarto de Berlim (cerda de 1820-25) de

Johann Erdmann Hummel, em que um grande espelho é colocado no centro da

composição, a reflectir uma porta fechada no lugar onde deveria estar o observador.

Teyssot defende que se o sujeito não aparece representado, então ele passou a fazer

parte do próprio quarto. E as janelas, ao se reflectirem nos espelhos e criarem uma certa

ambiguidade – janelas e espelhos transformam-se num só – realçam a ideia de que o

mundo exterior não existe, é apenas umas representação. Esta teoria vai de encontro ao

filósofo dinamarquês Søren Kierkeggard, o flanêur que se passeia no quarto13 que Teyssot

define como o primeiro filósofo da intimidade, e para quem o sujeito é a única verdade

e a realidade é apenas aquilo que ocorre dentro do quarto.

O cinema toma partido quer das características físicas quer do conteúdo

psicológico inerentes ao espelho e aos seus reflexos. Tal como em arquitectura, o espelho

é usado em cinema para aumentar a profundidade de campo ou alterar a percepção

espacial. Em Duck Soup (Leo McCarey, 1933), por exemplo, um dos famosos filmes

dos irmão Marx, Harpo choca violentamente contra um espelho por confundi-lo com

uma porta. O espelho parte-se e revela que do outro lado existe um quarto simétrico.

Quando Groucho entra em cena, Harpo aproveita a coincidência, coloca-se no outro

quarto e simula os movimentos do irmão. Desta vez, é Groucho que confunde a porta

com o espelho, até ao momento que Chico aparece e acaba com a farsa.

Por outro lado, o cinema serve-se igualmente da capacidade simbólica do espelho

para intensificar a carga psicológica da história e melhor caracterizar os personagens.

Um dos exemplos mais significativos é a segunda longa-metragem de Agnés Varda, Cléo

de 5 à 7 (1962). O filme acompanha, em tempo real, noventa minutos da vida de uma

12. Idem: Ibidem

13. Theoor Adorno cit. Idem:163

Fig. 146. Quarto de Berlim (J. E. Hummel, 1820-25)

Fig. 147 | 148 | 149. Duck Soup, 1933

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jovem cantora da cidade de Paris, no dia mais longo do ano (na realidade, porque é o

dia do Solstício de Verão, e no sentido metafórico, porque é o dia em que vai receber o

resultado de um exame médico que ditará o seu futuro). Desde que sai de um encontro

com uma vidente até ao momento que entra no hospital, acompanhamos os passos

de Cléo, que oscilam permanentemente entre opostos: superstição e ciência, natural

e artificial, e principalmente, realidade e aparência. Durante esse período, assistimos a

uma progressiva alteração da imagem que Cléo tem de si mesma, que coincide com um

progressivo desprezo relativamente à imagem que os outros têm de si. Esta mudança

é materializada através dos espelhos que, na primeira parte do filme, são quase uma

obsessão. Quando Cléo sai de casa da vidente, tenta recompor-se do choque e olha-se

num espelho que está colocado em frente a outro, o que provoca uma sucessão infinita

de reflexos seus.

Para Cléo não é apenas olhar para si mesma, assumindo uma expressão corajosa; ela

observa-se da mesma maneira que é vista pelos outros. De facto, a sua expressão nasce daquilo

que ela crê serem as expectativas dos outros em relação a si. Cléo está a tornar-se a percepção

que outros têm dela, que a influenciam para mudar de modo a influenciar outros, num infinito e

repetitivo padrão como o dos espelhos.14

Mais tarde, numa loja de chapéus, Cléo aparece reflectida em dois espelhos,

que nos revelam diferentes vistas do seu rosto: uma de frente, que poderá ser interpretada

como a imagem que Cléo tem de si mesma, e outra de perfil, que corresponderá à

imagem que os outros têm dela. Uma vez mais, Cléo observa-se com a consciência

(ou expectativa) de estar a ser observada. Mas o seu reflexo vai sendo cada vez mais

fragmentado, atingindo o clímax no momento em que Dorothée, uma amiga de Cléo,

parte acidentaltmente um espelho. A sua imagem desfaz-se em pequenos pedaços,

libertando-a finalmente da obsessão que a atormentava e permitindo-lhe aprender a

ser ela mesma.

No limite, talvez possamos afirmar que o próprio cinema é espelho, uma vez

que reflecte um contexto, as intenções do autor e, muitas vezes, a sua própria vida.

Zerkalo (Andrei Tarkovsky, 1975), título que em português significa “espelho”, é um

dos exemplos que melhor ilustram este conceito. O filme baseia-se em episódios reais

da vida de Tarkovsky e da sua família e são-nos apresentados, não através de uma

lógica cronológica, mas da forma que a própria memória opera, fragmentada, por vezes

difusa, e organizada segundo um sistema de relações que nem sempre é completamente

perceptível. Os acontecimentos são ainda intercalados com a representação de sonhos

e com fragmentos de documentários, e os espelhos são muitas vezes usados para fazer

14. Nelson:1983: 739

Fig. 150 | 151. Cléo de 5 à 7, 1962

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92

essa transição. O momento presente, isto é, aquele em que o protagonista está a evocar

essas memórias, é um momento de especial lucidez que é comummente interpretado

como o instante da sua morte. Esse protagonista, quando adulto, nunca entra em

campo, criando a sensação de que estamos nós mesmos a reviver aquelas memórias. Tal

fenómeno reforça a ideia de que os filmes são também o espelho de outras vidas e, por

vezes, o nosso próprio reflexo.

(...) porque o cinema, ou mais genericamente a arte, podem fazer nos ver – e podem

fazer com que nos vejamos a nós próprios – com uma lucidez particular, tal como sucede ao

protagonista de ‘O Espelho’ no momento da sua morte; e essa lucidez pode levar-nos, mesmo

estando longe do contexto histórico e geográfico do filme, a reconhecer nas vidas retratadas – que

por sua vez espelham outras vidas – a nossa própria vida, passada ou futura.15

Em todos os filmes do Novo Cinema Português escolhidos para esta análise

podemos encontrar cenas em que os reflexos no espelho fazem parte da composição da

imagem. Embora alguns exemplos sejam mais ricos do ponto de vista psicológico e, por

isso, mais pertinentes para a abordagem neste capítulo, quase todos os protagonistas,

em algum momento dos respectivos filmes, se contemplam através do seu reflexo. De

entre os exemplos escolhidos, e de acordo com a análise anteriormente descrita, é

possível dividi-los em dois temas: os que, através do reflexo, nos revelam o seu íntimo,

o seu outro “eu” reprimido, numa abordagem mais próxima da psicanálise; e os que,

à semelhança de Cléo de Agnés Varda, se olham na expectativa de consolidar uma

imagem exterior, que não corresponde à sua imagem real, mas à imagem que querem

projectar para os outros. Por outro lado, a ideia de que o filme é também ele um

reflexo, principalmente do seu realizador, parece estar presente na maioria dos filmes

portugueses deste período, já que a intenção predominante era a de tentar expor uma

realidade pouco conhecida do cinema até então, através de metáforas e “entre-linhas”

que não comprometessem a sua passagem pela censura.

Reflexo como o outro “eu”O psiquiatra Enrique Pichon (1907-1977) afirmava que a personalidade se

constrói a partir da interação do eu com o outro que existe dentro de nós, um outro

‘eu’ com que falamos e discutimos enquanto pensamos. Vários exemplos no Novo

Cinema parecem ilustrar esta teoria. Em Os Verdes Anos, Ilda é a personagem mais

Reflexos no Novo Cinema

15. Graça Moura, [s.d]

Fig. 152 | 153. Zerkalo, 1975

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93

sonhadora, mais optimista, aquela que constrói mais expectativas em relação ao futuro.

A cena que melhor a caracteriza é o momento em que Ilda, na ausência dos patrões,

convida Júlio a passar uma tarde com ela no apartamento onde trabalha. No quarto da

“senhora”, Ilda experimenta os seus vestidos e desfila para Júlio, que assiste confuso ao

espectáculo. Enquanto se olha ao espelho, explica a que ocasião se adequa cada um dos

vestidos e justifica a necessidade da patroa de ter um tão grande número de sapatos.

O reflexo de Ilda no espelho, é o reflexo da sua ambição, da sua vontade de ascender

socialmente e viver uma vida diferente da dos seus pais. Um reflexo de uma faceta que

Júlio desconhecia e que será um dos motivos para o desfecho trágico desta história.

Como já referido anteriormente, Uma Abelha na Chuva é um filme sobre desejos

reprimidos – no caso de Maria dos Prazeres – e desejos oprimidos – no caso de Jacinto e

Clara. Escondido no contexto social, é nos espelhos que os personagens se confrontam

com esse seu lado mais íntimo. Maria dos Prazeres, que constrói a imagem de uma

mulher fria, independente e despreocupada com a aparência, quando sozinha em frente

ao espelho parece abraçar-se a si própria16, enquanto hesita na escolha da roupa mais

adequada para levar ao teatro. Deste modo, Maria dos Prazeres revela uma sensualidade

que lhe desconhecíamos e que não transporta para além do espelho e das paredes do

seu quarto. O espelho adquire assim um carácter libertador, uma saído do ‘eu’ para a

expressão de um desejo ou de uma aspiração.

Da mesma forma, a cena em que finalmente presenciamos uma manifestação

de amor entre o casal de empregados, amor esse que até agora nos tinha sido apenas

sugerido, recorre igualmente ao uso de espelhos. Não no quarto, mas no espaço que

lhes é mais íntimo – as cavalariças – Jacinto declara o seu amor a Clara, repetindo o

monólogo de Amor de Perdição (aliás, é aqui que percebemos que Jacinto era o actor

principal da peça a que Maria do Prazeres fora assistir, facto que justifica a sua demora

frente ao espelho). Para conferir mais lirismo à cena, ou para escapar ao lápis da censura,

a cena de sexo entre Clara e Jacinto é parcialmente revelada pelos espelhos e sugerida

pelo som.

16. Coelho, 1983: 38

Fig. 154 | 155 | 156. Os Verdes Anos, 1963

Fig. 157 | 158 | 159. Uma Abelha na Chuva, 1972

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Em O Recado, é ao espelho que Marta tenta perceber qual o caminho que

deve escolher. Depois de receber um bilhete de Francisco para, à luz dos velhos tempo,

marcarem um encontro, Marta senta-se demoradamente em frente ao espelho. Age como

se o seu reflexo fosse um outro sujeito, como se de repente existissem efectivamente

duas Martas, uma burguesa e outra revolucionária. Esse comportamento é ainda mais

evidente quando, depois de fitar, tocar e beijar a sua própria imagem, Marta termina

com a pergunta “Vais tu ou vou eu?”, numa perfeita aproximação à teoria de Pichon. Ao

falar consigo mesma, Marta tenta racionalizar os sentimentos, já que através das palavras

torna-os aparentemente mais inteligíveis.

Inês, a chefe e amante de João em O Mal Amado, é também um personagem

de personalidade dupla, embora ao contrário de Marta, não esteja decidida a optar

por uma delas. Pelo contrário, Inês esconde o seu verdadeiro “eu”, doentio, agressivo e

perverso, por detrás de uma máscara de mulher sofisticada e bem sucedida. Esse lado

mais sombrio fica completamente a descoberto na cena final do filme em que Inês,

ainda mascarada de Alma do Auto de Gil Vicente, dispara contra João dizendo: “nós

não admitimos traições”. O sujeito plural desta frase não deixa de ser curioso, podendo

referir-se simultaneamente às duas facetas de Inês ou, numa leitura mais abrangente,

a Inês e ao Estado, intolerante face às deserções. O uso do espelho nesta cena é

fundamental para atingir essa densidade simbólica: ao mesmo tempo que duplica a

imagem de Inês, mostra-nos um João enclausurado, preso entre Inês e uma estatueta

africana, metáfora do colonialismo.

Fig. 160 | 161. Uma Abelha na Chuva, 1972

Fig. 162 | 163. O Recado, 1972

Fig. 164 | 165. O Mal Amado, 1974

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Reflexo como imagem exteriorApesar dos oito anos que os separam, O Cerco e Cléo de 5 à 7 são filmes muito

próximos do ponto de vista temático. Ambos têm como protagonista uma mulher,

característica pouco comum no cinema do período e do contexto em que se inserem.

Ambas estão numa fase particularmente delicada da sua vida. E finalmente, ambas

se preocupam obsessivamente com a imagem que os outros têm de si. Mas se para

Cléo os espelhos vão perdendo importância, de tal forma que deixamos de os ver,

Marta começa e termina o filme diante de um, arranjando o cabelo ou colocando as

sardas postiças. Marta necessita de se afirmar, de provar que consegue ser uma mulher

independente numa sociedade predominantemente machista, e a imagem exterior

torna-se fundamental.

(...) olha-se a si como nós a olhamos, ou seja, vendo-se como quem é vista, cultivando

a sua beleza tanto quanto nós, espectadores, a apreciamos, e tal como os vários homens que a

circundam e a desejam.17

Da mesma forma que, para se consagrar, Cléo cultiva uma imagem de diva da

música, Marta tenta a sua sorte no mundo da publicidade. Apesar das suas ambições,

ambas caem na tentação de ceder ao preconceito social que vê a mulher como um mero

objecto de desejo. Também Marta visita uma loja de chapéus, onde experimenta vários

modelos em frente a um espelho. Acabado o seu casamento, a jovem mulher quer

assumir uma nova vida, e procura nos chapéus o visual mais adequado.

Embora com menos incidência do que em O Cerco, outros filmes jogam com

este conceito do reflexo como a imagem ideal que o personagem quer projectar para

os outros. Essa imagem corresponde às expectativas sociais que o sujeito se sente na

obrigação de concretizar, mais do que a um objectivo pessoal. É o caso de João de O

Mal Amado, que após ter abandonado a faculdade, e ainda a viver na casa dos pais, é

pressionado a trabalhar numa empresa. No seu primeiro dia de trabalho, acompanhamo-

lo desde que se levanta até ao momento em que sai de casa. Em frente ao espelho, João

passa da imagem que tem de si mesmo – fazendo expressões cómicas enquanto lava

a cara com sabão – para a imagem que os pais esperam que ele tenha – apertando

seriamente a gravata. Mas encontra aí a primeira dificuldade, não conseguindo finalizar

o nó, que quase o asfixia.

17. Areal, 2011: 475

Fig. 166 | 167 | 168 O Cerco, 1970

Fig. 169 | 170 | 171. O Mal Amado, 1974

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96

FILME COMO REFLEXO

Como obra de arte, qualquer filme é sempre um reflexo da pessoa que o

idealizou. Num contexto em que se servia da arte para denunciar um governo opressor e

uma sociedade estagnada, esse reflexo parece tornar-se ainda mais expressivo. Podemos

encontrar, na maioria dos filmes, pequenos reflexos da vida dos realizadores.

Paulo Rocha, no seu Os Verdes Anos parece reflectir em Júlio o choque cultural

que encontrou quando chegou à capital: para os lisboetas, um provinciano do norte,

para Paulo Rocha, uma Lisboa provinciana sem o saber.18 Os próprios cenários, ainda

que, mais do que uma escolha, tenham sido uma imposição do reduzido orçamento,

são os lugares que Paulo Rocha frequentava habitualmente: o apartamento em que Ilda

trabalha era o apartamento dos seus pais, e o café situado no mesmo cruzamento era o

Vává, conhecido pelas tertúlias que reuniam os realizadores, escritores e outros artistas

daquele período.

O Telles anunciou-me que o Paulo ia fazer o primeiro filme das suas produções – Os

Verdes Anos. E que esse filme se passava nas Avenidas Novas e arredores. Fiquei zangado. As

Avenidas Novas eram o meu território natural e o ‘Vává’ o meu poiso quotidiano. Como é que

um intruso, do Norte e ainda por cima do Furadouro, se atrevia a roubar-me aquilo que eu

considerava minha propriedade privada?19

Também de Belarmino se diz ser um reflexo de Fernando Lopes, teoria que o

próprio realizador confirma:

Eu achava que o Belarmino - e agora vou utilizar aqui um chavão - podia ser uma

metáfora de mim mesmo e do que era o país naquele momento. Quer na filmagem, quer na

montagem eu tomo o partido do Belarmino, estava do lado dele, identificava-me com ele: era como

se eu fosse o alter ego dele.20

Os espaços de Belarmino são também os espaços de Fernando Lopes e da sua

geração – e de outra maneira o realizador não conheceria tão bem o boxeur. Os cafés, o

cinema e, principalmente, o Hot Club eram, à semelhança de Vává, lugares de eleição de

uma elite intelectual que convivia perfeitamente com o bas-fond lisboeta. É neste sentido

que Baptista-Bastos afirma que Belarmino não é apenas o reflexo de Fernando Lopes:

O rosto do Belarmino é o nosso rosto. Um, múltiplos rostos, todos eles enleados, com

extrema doçura, pela câmara do Cabrita. Quando o Belarmino vai a sair do túnel para entrar

no ringue - nós estamos com ele, estamos com o coração opresso e a lágrima nos olhos. Nós somos

ele e vamos para a luta.21

Todos os filmes aqui abordados são, em larga medida, o reflexo de uma geração

e das suas inquietações. Em O Cerco, vemos uma cidade que se queria mais moderna,

mas que continuava presa à tradição e aos costumes. Em O Recado, da perseguição

de Francisco pela máfia, subentende-se a perseguição de Fonseca e Costa pela polícia

política. Em O Mal Amado, a morte de João simboliza a morte de muitos daqueles que

18. E eu? No meio destas sereias (católicas) da capital? Eu, quando

cheguei, trazia uma medonha arrogância portuense. Lisboa era a província, a capital era o Porto.

Era Oliveira no Cinema, o T.E.P. no Teatro, a Agostina no romance, o

Távora na Arquitectura, até a Pintura, até a Música. Só o Cesariny salvava

a honra de Lisboa. (...) achava-me já um estrangeiro (do Norte) e o

salazarismo uma dança lisboeta, um anacronismo. Paulo Rocha [1990] in

Melo, 1996: 36

19. Fernando Lopes in Melo (coord), 1996: 50

20. Idem

21. Baptista-Bastos in Andrade (coord.), 1996: 52

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97

partiam para a guerra colonial. Mas será talvez Perdido Por Cem que melhor reflecte uma

Lisboa sem esperança, em que a câmara, confessional e triste, é a personificação de uma

geração que cresceu sob a sombra constante da ditadura. Aquele que Bénard da Costa

diz ser o mais português de todos eles.21

21. Fernando Lopes in Andrade (coord.), 1996: 73

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99

projecções

A linguística define metáfora como recurso expressivo que consiste em usar um termo

ou uma ideia com o sentido de outro com o qual mantém uma relação de semelhança1. Quando

atribuímos um valor metafórico a determinado objecto, estamos a atribuir-lhe uma

interpretação pessoal a partir da comparação com outros objectos que conhecemos.

Estamos, por isso, a projectar nele códigos culturais, experiências passadas, crenças,

e outros factores que contribuem para a nossa complexidade enquanto indivíduo e

enquanto parte de uma determinada sociedade.

Em arquitectura, a metáfora está sobretudo associada à forma e à imagem do

edifício: ouvimos dizer, por exemplo, que a Casa da Música (Rem Koolhaas, 2005) é

um meteorito que aterrou na Boavista, e os arquitectos possivelmente associarão essa

imagem à ruptura que o projecto estabeleceu com a arquitectura tradicional da cidade

do Porto; ou que a Igreja do Marco de Canaveses (Álvaro Siza, 1990-1997) mais parece

um quartel de bombeiros2, por não corresponder à imagem generalizada de um edifício

religioso.

No livro que viria a tornar-se uma das mais importantes bases teóricas do

Movimento Pós-Moderno – The Language of Post-Modern Architecture – Charles Jencks

expõe a importância da metáfora como modo de comunicação em arquitectura. Para

Jencks, o que falhara no Movimento Moderno fora sobretudo a univalência, a pretensão

a uma gramática universal que desprezava o lugar e a função. Propunha, em alternativa,

uma dupla codificação da arquitectura, inteligível não apenas para uma elite.

As pessoas percebem inevitavelmente um edifício em relação a outro edifício, ou em

relação a um objecto semelhante, em resumo, eles percebem no como uma metáfora. Quanto

menos um edifício moderno lhes parecer familiar, mais elas tendem a compará-lo metaforicamente

àquilo que conhecem. Esta aproximação entre duas experiências é a base de todo o pensamento, e

particularmente do pensamento criativo.3

Jencks explica que estas relações são subjectivas e profundamente dependentes

de preceitos culturais. Assim como no desenho cabeça de pato/cabeça de coelho – em

que os que lêem da esquerda para a direita vêem um pato, e os que lêem no sentido

inverso vêem um coelho – também a leitura dos edifícios varia consoante a cultura e a

sociedade em que o indivíduo se insere.

De forma a ilustrar a ambiguidade da metáfora em arquitectura, Jencks elege

como exemplo a Ópera de Sidney (Jorn Utzon, 1957-74), uma obra alvo das mais

variadas interpretações, tanto pelo público como pelos meios especializados. As suas

formas insólitas e orgânicas facilmente evocam outros objectos: o próprio arquitecto

relacionou-o com os gomos de uma laranja e a imprensa generalizou a metáfora das

velas brancas dos barcos que se avistam no porto de Sidney. Houve quem a comparasse

a um “acidente de carro sem sobreviventes”, a “flores a desabrocharem” ou a “tartarugas

a fazerem amor”. A radicalidade da sua forma poderia ser facilmente interpretada como

1. Dicionário Online Porto Editora

2. Num artigo publicado no segundo número da fanzine “Friendly Fires”, intitulado “Com o Sagrado não se Brinca”, Francisco Rocha parte dos comentários que se generalizaram em torno da Igreja e propõe um quartel de bombeiros para aquele espaço, sem alternar o projecto inicial de Álvaro Siza.

3. Jencks, [1977]: 42

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100

símbolo de uma Austrália livre da dependência anglo-saxónica, e as metáforas teriam

então uma conotação positiva. Mas como a nossa percepção é moldada e modificada por

códigos fundados sobre experiências anteriores4, é quase impossível, pelo menos para os

australianos, entender este edifício sem evocar o escândalo que lhe está associado: uma

obra projectada por um europeu e vinte vezes mais cara do que o previsto. Neste caso,

as mesmas metáforas adquirem conotações negativas. Por outro lado, os modernistas

criticam a Ópera segundo outra razão: a falta de comunicação literal, uma vez que a

forma exterior do edifício não permite identificar e diferenciar cada um dos espaços que

alberga, como os teatros, os restaurantes e as salas de exposições.

A capela de Notre Dame-du-Haut (Le Corbusier, 1950-55), em Ronchamp,

é para Jencks um dos melhores exemplos de uma linguagem metafórica sugerida. O

poder deste edifício deve-se em parte ao seu carácter sugestivo, a essa capacidade de significar

várias coisas ao mesmo tempo (...)5 como, por exemplo, duas mãos juntas, um pato ou a

cabeça de uma freira. As significações atribuídas a este edifício funcionam ao nível do

inconsciente: o talento do artista depende da sua capacidade de estimular a nossa rica colecção

de imagens visuais sem que tenhamos consciência das suas intenções.6

4. Idem: 45

5. Idem: 48

6. Idem: Ibidem

Fig. 172. Ópera de Sidney (Jorn Utzon, 1957-74)

Fig. 173. Caricatura realizada por estudantes de arquitectura

Fig. 174. Metáforas de Ronchamp (Hillel Schiocken)

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101

Em suma, Jencks apela a que os arquitectos recorram de novo a um sistema

de ordem semântica, às regras de uma gramática arquitectónica que parecia existir na

Arquitectura Clássica, ao elogio da metáfora.

(…) a arquitectura deve codificar os seus edifícios, recorrer à redundância dos signos e

das metáforas populares, se ela quer que a sua obra transmita as mensagens previstas e sobreviva

às mutações impostas pela perpétua renovação de códigos.7

O crítico e historiador de cinema Marcel Martin escreve, em 1955, um livro

intitulado Le Langage Cinématographique, onde dedica um capítulo à diferenciação entre

metáfora e símbolo em cinema. Para Martin, esta é uma questão primordial, já que

a imagem em cinema não depende apenas da vontade do realizador mas sobretudo

da actividade mental do espectador, que com ela se relaciona num complexo afectivo e

intelectual.8

Assim como Jencks defende a pluralidade de significados (dupla-codificação) em

arquitecura, Martin refere que a qualidade de um filme se relaciona com os diferentes

níveis de leitura que é capaz de desencadear. Estes, por sua vez, estão dependentes do

grau de sensibilidade, de imaginação e de cultura do espectador.

A propósito da imagem fílmica poder-se-ia falar, na realidade, de um conteúdo ‘aparente’

e de um conteúdo ‘latente’ (ou ainda de um conteúdo ‘explícito’ e de um conteúdo ‘implícito’),

sendo o primeiro directamente legível e o segundo (eventual) constituído pelo sentido simbólico que

o realizador quis dar à imagem, ou o sentido que o espectador por si próprio vê nela.9

A partir desta ideia, distingue metáfora como uma significação secundária que

é feita a partir da conjugação de duas imagens, enquanto que o símbolo propriamente

dito é uma dimensão expressiva complementar provocada pela continuação de uma imagem

ou de um acontecimento. A metáfora é assim uma justaposição de duas imagens – a

primeira como elemento comum da acção, a segunda como elemento que confere

a metáfora – que provoca no espectador um choque psicológico de forma a que este

assimile a ideia que o autor pretende exprimir. Está, por isso, dependente do processo

de montagem.

Martin distingue três tipos de metáforas, embora a essa diferenciação não

seja algo estanque, podendo a mesma metáfora ser simultaneamente de diferentes

tipos. As metáforas plásticas originam-se numa semelhança ou analogia de estrutura ou de

tonalidade psicológica no conteúdo puramente representativo das imagens.10 Como exemplo,

7. Idem: 50

8. Martin, [1955]: 117

9. Idem: 118

10. Idem: 119

Fig. 175 | 176 | 177.O Couraçado de Potemkin, 1925

Page 103: Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

102

descreve a cena do Bronenostetz Potyomkin (O Couraçado de Potemkin, 1925) de

Sergei Eisenstein11 , em que planos dos rostos expectantes dos marinheiros durante o

ataque são alternados com planos de máquinas paradas, reforçando o dramatismo do

momento de espera.

O segundo tipo seriam as metáforas dramáticas, que desempenham um papel

mais directo na acção, trazendo consigo em elemento explicativo útil para a condução e a

compreensão da narrativa.12 Em Stachka (A Greve, 1925), também de Eisenstein, uma

cena dos operários a ser atingidos pelo exército czarista é procedida por uma imagem de

um matadouro, em que os animais se encontram decapitados.

Finalmente, o terceiro tipo corresponde às metáfora ideológicas, cuja finalidade

é causar na consciência do espectador uma ideia cuja força ultrapassa largamente o quadro da

acção do filme e implica uma tomada de posição mais vasta acerca dos problemas humanos.13

Martin relembra, como exemplo, a abertura do filme Modern Times (Tempos Modernos,

Charlie Chaplin, 1936), onde vemos um plano de um rebanho de ovelhas, seguido de

outro que nos mostra uma multidão a sair do metro.

A partir dos exemplos sugeridos, Martin conclui que a metáfora nasce do choque

de duas imagens, uma das quais é o termo de comparação e a outra o objecto de comparação, a coisa

comparada.14 Por norma, o termo de comparação é um animal ou um objecto, enquanto

que o objecto de comparação é sempre o ser humano, já que o seu comportamento é

mais flexível e interessa mais ao espectador. O tom da metáfora será mais trágico quanto

maior for a tensão de um plano para o outro, ou quanto maior for a discrepância entre

o tom da metáfora e o tom geral do filme: uma metáfora cómica num filme trágico, ou

uma metáfora trágica num filme cómico, produzem um efeito dramático mais grave e

amargo.

11. É natural que Martin recorra regularmente a Eisenstein para

ilustrar as ideias presentes neste capítulo, já que foi precisamente o

cineasta soviético que introduziu este estilo de montagem que,

contrariamente à fluidez do estilo americano, procura provocar o

choque no espectador. Baseando-se na dialéctica de Hegel (que Marx

usa para a sua teoria de mudança revolucionária), acreditava que

combinando duas imagens diferentes (tese e antítese) era possível criar um novo conceito (síntese) que de outra forma não existiria em nenhum dos

planos individualmente.

12. Idem: 120

13. Idem: 122

Fig. 178 | 179 | 180. Modern Times, 1936

Page 104: Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

103

Na análise das metáforas do Novo Cinema português, tentou-se conjugar a

definição cinematográfica (comparação de duas imagens – o termo de comparação e o

objecto comparado) com a ideia mais comum de metáfora em arquitectura, isto é, a

comparação de um espaço ou um edifício a uma ideia relacionada com a experiência

pessoal do indivíduo. Assim, o objecto comparado é um espaço físico e o termo de

comparação é um desejo, uma aspiração ou algum outro sentimento que o personagem

projecta nesse espaço e que lhe confere um outro significado para além do óbvio.

O teatroNuma peça de teatro, tal como no cinema, espaço e tempo são conceitos

subjectivos e facilmente manipuláveis. Talvez por isso, o teatro é um espaço a que alguns

dos filmes do novo cinema recorrem para, através do seu valor metafórico, sublinharem

características ou determinados estados de espírito dos personagens.

O espaço metafórico de maior relevância de Uma Abelha na Chuva corresponde

ao único episódio que não faz parte da obra literária que serviu de base ao filme: a

representação de Amor de Perdição (Camilo Castelo Branco, 1862), no teatro local

de Corgos. Fernando Lopes, ao passar das palavras às imagens, fez uma verdadeira

adaptação, omitindo personagens secundários e acrescentando novos dados que

ajudam à construção da atmosfera e à compreensão da base narrativa. Fê-lo de uma

forma sensível e inteligente, sem comprometer o texto original.

(...) revela uma profunda e autónoma fidelidade em relação à literatura que lhe serviu

de tema. Fernando Lopes não abordou o texto do romance como um «pre-texto» a libertar, como

uma narrativa de que se colhem dados para uma dissertação parcial. Também não se fechou nele

como num «texto confinado» à intriga e à atmosfera, nada disso. Sem se deixar encandear pelo

esplendor literário, praticou a mais exigente das fidelidades a um autor porque o traduziu em

imagens até ao nível da escrita (...) Mas em arte, a fidelidade maior só se faz por transgressões.14

Projecções no Novo Cinema

O teatro transforma-se então numa terceira história que introduz a dimensão do

imaginário15, espaço onde, metaforicamente, Maria dos Prazeres concretiza os seus desejos

(Eduardo Prado Coelho chega mesmo a afirmar que este poderia ser entendido como

um momento de orgasmo imaginário). A tragédia na vida real é projectada naquele espaço

imaginário, onde Maria dos Prazeres encontra na heroína a mesma privação de amor e

as consequências de um casamento por conveniência – teatro e vida cruzam-se e casam-se

no espaço cinematográfico.16 Esta transferência dos seus sentimentos ocultos é ainda mais

14. José Cardoso Pires cit. Andrade, 1996:31

15. Coelho, 1983: 38

16. Areal, 2011: 497

Fig. 181 | 182 | 183. Uma Abelha na Chuva, 1972

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104

pertinente quando, mais tarde, percebemos que Simão, personagem principal da peça,

é interpretado pelo cocheiro Jacinto. Num momento de grande intensidade dramática,

adensado pelo som da ópera de Verdi, Maria dos Prazeres acaricia o braço, visivelmente

consternada, despertando a atenção do marido e da criada, que parecem entender por

fim as suas inquietações. A partir de então, os ecos de Simão (ou Jacinto) irão perpetuar-

se até ao final, antecipando o seu desfecho trágico: aproxima-se a hora em que me vão roubar

o tesouro mais precioso que possuo (...) Ó Teresa, Teresa...assim nos vão separar, quem sabe, talvez

para sempre...

Em O Mal Amado, a acção principal é intercalada com ensaios da peça Auto da

Alma (1518), uma das obras mais moralistas e religiosas de Gil Vicente. Conta a história

das deambulações da Alma pela Terra, alternadamente submetida às solicitações do

Diabo, que a tenta com joias e outros bens, e do Anjo, que a incentiva a resistir e

a descansar, por fim, na “estalagem”, representação simbólica da Igreja. No filme, a

personagem principal é interpretada por Inês, e há uma maior incidência nos excertos

da peça correspondentes às aproximações do Diabo. A introdução deste elemento,

embora não se relacione, à primeira vista, com a sequência lógica de acontecimentos da

narrativa, cria uma cadência dramática que nos conduz lentamente para o desfecho do

filme. As constantes cedências da Alma ao Diabo, são uma projecção do comportamento

patológico de Inês, cujas intenções se vão tornando, desta forma, mais claras aos olhos

do espectador. A última cena do ensaio do auto termina com a Alma a tentar dar a mão

ao Diabo, representação simbólica da derradeira escolha de Inês. Fernando Matos Silva,

à semelhança de Fernando Lopes em Uma Abelha na Chuva, introduz assim um segundo

nível paralelo mas complementar à história, servindo-se também de um outro tipo de

ficção encenada – o teatro. E da mesma forma que Fernando Lopes coloca Jacinto no

papel principal de Amor de Perdição, Matos Silva transforma Inês em Alma, projectando

as suas frustrações e intuitos no espaço cénico. Este é um espaço não tradicional,

abstracto, em que os actores caminham sobre estruturas suspensas que balançam a

cada passo. Um espaço que, ao mesmo tempo que ilustra a mensagem deste Auto, ou

seja, a fragilidade da nossa passagem pela Terra, poderá ser uma interessante metáfora

para um país que se encontrava igualmente suspenso, à espera da mudança que se

adivinhava próxima e inevitável. Talvez não será absurdo falar de um terceiro nível de

compreensão da narrativa, também ele introduzido através da encenação do Auto. Um

nível de conotação política que explica um contexto e justifica comportamentos, e ao

qual Leonor Areal faz referência na sua análise do filme:

Fig. 184 | 185 | 186. O Mal Amado, 1974

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105

É interessante verificar que esta dimensão de teatralização, quando se encaixa – fora

dos ensaios do grupo cénico – nestes momentos de quotidiano, ganha corpo de paródia colectiva,

numa demonstração de como o registo teatral promove um processo de distanciação, uma forma

de resistência ideológica, uma fuga contra o regime. E de facto também assim é – nas cenas onde

é ensaiado o texto de Gil Vicente – cujas frases ditas ganham ressonâncias suspeitas e conotações

políticas precisas.17

O ringueÉ que eu achei que havia no Belarmino qualquer coisa de crístico. E é por isso que o

combate de boxe - fui eu que o organizei, porque o Belarmino já não combatia há muito tempo,

nem tinha já condições para combater - é pontuado com sete paralíticos com os golpes, como se ele

passasse pelas várias estações do Calvário. Eu fiz essa alegoria conscientemente, mas na altura

nem quis falar nisso, porque caía-me tudo em cima.18

Num filme tão cheio de metáforas, algumas assumidas pelo próprio autor,

outras efusivamente defendidas nos textos que ainda hoje se escrevem sobre Belarmino

– o filme e o homem –, o ringue como palco da vida real parece ser a mais explícita de

todas elas. Fernando Lopes, num registo não completamente documental, encena um

combate no ringue que Belarmino Fragoso havia abandonado anos antes. Luta ali como

na vida, tentando defender-se dos constantes ataques: as difíceis condições económicas,

a exploração, a iliteracia, a fome – ou como diria Belarmino, um estado de fraqueza

razoável. E esquiva-se desses ataques com a mesma ligeireza com que caminha nas ruas

de Lisboa e com a coragem de um sobrevivente. Se é verdade ou não o que responde

ao questionário quase inquisidor de Baptista-Bastos, não é a questão mais importante.

Belarmino, nas palavras de Bénard da Costa, é um filme sobre o silêncio e sobre a fuga

a ele – nossa última etapa. Por isso não é cinema-verdade nem cinema-mentira, é contemplação

de quem sabe e pode fazê-lo, sabendo que os exames de consciência são sempre falsos e, em

rigor, inúteis.19 À medida que avança para um tom mais provocatório – Baptista-Bastos

confronta Belarmino com a opinião depreciativa dos outros em relação à sua postura

no boxe – a entrevista é intercalada com cenas da chegada do pugilista ao ringue para

o seu derradeiro confronto com o adversário, ou da nossa verdade com a sua mentira.

Dado o sinal de partida, inicia-se uma longa sequência do combate onde imagens em

movimento são intercaladas com fotografias, num interessante jogo de montagem que

enaltece o carácter metafórico daquela cena. Fernando Lopes abdica de uma montagem

fluida e de uma sequência lógica das acções, para provocar o espectador com imagens

entrecortadas e som desfasado, levando-o à reflexão e à crítica. O som que se ouve

é o som da cidade, realçando esta comparação ideia de ringue como arena da vida.

Sobre esta técnica, que explorou mais do que qualquer outro realizador do mesmo

17. Idem: 513

19. Bénard da Costa in Andrade, 1996: 110

Fig. 187 | 188 | 189. Belarmino, 1964

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106

período, Fernando Lopes evocava frequentemente uma frase de Jean-Marie Straub: o

que é preciso é que o filme destrua a cada minuto, a cada segundo, o fotograma anterior.20 Vinte

anos mais tarde, a mesma técnica é usada num filme cujas semelhanças com Belarmino

são evidentes até para o próprio Fernando Lopes21: Raging Bull (Martin Scorsese, 1980),

eternizou a imagem do boxeur em decadência Jake La Motta, este ficcional, com uma

montagem que, tal como Belarmino, pode ser comparada a Eisenstein.

O aeroportoNuma realidade que se sentia tão pesada e castradora, que obrigava os jovens a

partirem para uma guerra com a qual não se identificavam, o desejo de fuga é transversal

a vários filmes do novo cinema. O aeroporto surge assim como metáfora desse desejo,

como derradeira oportunidade de escapar a essa realidade emigrando. Em Os Verdes

Anos, o aeroporto é um lugar fora de campo, muitas vezes referido mas nunca visitado.

Pela novidade que representava, era um lugar de contemplação, um passatempo de fim

de semana.

O filme Perdido por Cem, como refere Eduardo Prado Coelho, vive

fundamentalmente dessa obsessão de partir/chegar22: Rui trabalha para os emigrantes, Joana

sonha em partir para a cidade grande e Artur tem como objectivo principal ganhar

dinheiro suficiente para sair do país – repare-se que, numa visita a uma agência de

viagens, pergunta preços de bilhetes de avião só de ida para Paris, Roma e Nova Iorque.

Consequentemente, o aeroporto é um dos espaços mais importantes da narrativa. É

no aeroporto que Artur termina definitivamente a sua relação com Luísa, quando

toma consciência da barreira que os separa: para ela, o aeroporto é apenas um espaço

de chegada (lugar onde vai esperar o marido que viaja com frequência), e para ele, é

um lugar (único) de partida. É também no aeroporto que se desenrola a sequência

final, quando Artur tem finalmente a oportunidade de partir com Joana. Porém, são

interceptados pelo ex-namorado da rapariga que, voltado da guerra, persegue-a por toda

a Lisboa e mata-a a tiro. Com a chegada da polícia, Artur finge não conhecer Joana,

para que aquela desgraça não provoque uma outra, de consequências mais desastrosas:

a impossibilidade de partir.

21. Houve outra coisa que me interessou no Belarmino na altura,

através da qual eu ligo o filme com o Raging Buli do Scorsese. Como o

meu filme foi feito vinte anos antes estou à vontade para falar nisto. É

que eu achei que havia no Belarmino qualquer coisa de crístico. Fernando

Lopes in Andrade, 1996: 74

20. Bénard da Costa in Andrade, 1996: 110

21. Coelho, 1983:40

Fig. 190 | 191. Perdido Por Cem, 1973

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109

símbolos

Epistemologicamente, não há nenhum domínio do conhecimento mais difícil de

delimitar, pois o processo de simbolização intervém a múltiplos níveis da experiência, desde o jogo

complexo das nossas percepções até aos mais elevados graus de elaboração e de sistematização das

nossas representações do mundo. (...) pretender estudar todos os aspectos de um assunto vasto como

o do simbolismo seria uma empresa desmedida, estéril e individualmente irrealizável.1

Dada a natureza complexa dos símbolos e da sua interpretação não nos é

possível, tal como afirma René Alleau (n.1917), delimitá-lo numa definição concisa

e objectiva. O Homem desde sempre transformou inconscientemente objectos

e formas em símbolos. Não se trata, por isso, de uma característica intrínseca a um

objecto mas algo de exterior, um dado directo e que directamente se dirige à nossa intuição2.

Os símbolos e a interpretação que deles fazemos abarcam assim inúmeros significados

que variam de acordo com o nosso contexto, com a sua expressão e com o seu

sentido. Consequentemente, diferentes disciplinas têm também diferentes abordagens

relativamente ao entendimento dos símbolos e do seu valor. Friederich Hegel (1770-

1831), no seu ensaio sobre estética, distingue o símbolo como o início da arte, tanto

do ponto de vista conceptual como histórico.3 Carl Gustav Jung (1875-1961), no campo da

psicologia, explora o facto do homem produzir símbolos inconsciente e espontaneamente,

em forma de sonhos.4 Charles Peirce (1839-1914), do ponto de vista da semiótica, define

símbolo como uma divisão do signo que representa o objecto, independentemente de alguma

semelhança ou alguma conexão real, porque as disposições ou os hábitos fictícios dos seus

intérpretes asseguram que eles assim o sejam entendidos.5

O símbolo é assim algo que possui conotações que vão para além do

seu significado mais óbvio, mas cuja interpretação depende de uma determinada

predisposição do indivíduo. Este, por sua vez, necessita de mecanismos próprios para

a descodificação desses significados, oriundos de um domínio da linguagem cultural,

afectiva, espiritual e social. Neste sentido, os símbolos são os instrumentos por excelência da

‘integração social’: (…) eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que

contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social (…).6

Deste modo, podemos afirmar que todas as coisas estão sujeitas a interpretações

simbólicas e que o símbolo tem, portanto, uma presença constante no nosso quotidiano.

A arquitectura, como fenómeno cultural comunicante, tem a capacidade de comunicar

símbolos que transcendem a sua existência material.

Um elemento arquitectónico não denota apenas uma função (primeira), remete para

certa concepção do habitar e do usar, conota modos/ideologias diferentes de conceber a função,

começa a assumir uma função simbólica. As conotações – “funções” (segundas) simbólicas –

podem relegar importância à função primeira “funcional”.7

1. Alleau, 1976: 7

2. Hegel, [s.d.]

3. Idem

4. Jung (ed.), [1964]: 20

5. Charles Peirce in Barthes, [1964]

6. Pierre Bourdieu [1989] in Rocha, 2011: 13

7. Rocha, 2011: 13

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110

John Onians, no texto intitulado Sign and Symbol, faz uma breve análise

da história da arquitectura através da sua interpretação dos símbolos. Começa por

esclarecer que a importância dos símbolos e dos signos nasce da estreita relação das

propriedades físicas e expressivas de um edifício, que derivam das necessidades daquele

que constrói e daquele que usufrui.

Os construtores procuram abrigar e proteger, conter e excluir. Aqueles que usam o edifício

experienciam estar abrigados e protegidos, contidos e excluídos. Ambos beneficiam quando estas

necessidades não são apenas experienciadas fisicamente mas são comunicadas.8

Para Onians, a relação entre construtor e utente é como a de duas pessoas

que acabaram de se conhecer: uma tenta causar uma determinada impressão na outra,

e a outra procura por sinais do que será essa impressão. Os primeiros servem-se das

características físicas de um edifício para exprimir e comunicar, enquanto os segundos

experimentam-nas como expressão e comunicação. Assim, para além da função física,

essas características expressam ou representam algo e são apreendidas como tal. No

entanto, as propriedades físicas prevalecem sobre propriedades expressivas, porque lhe

antecedem: uma parede funciona como uma barreira ou suporte da cobertura antes de ter

qualquer camada expressiva, e essa camada existe antes de mais para confirmar essa função

física.9 Onians aponta esta como uma das principais características que distingue a

arquitectura de outras artes, como a literatura, a pintura ou a música, porque nelas a

matéria física é menos substancial e, por isso, as interpretações simbólicas tornam-se

claramente dominantes.

Desde o aparecimento das primeiras construções que são atribuídos símbolos

aos elementos que as constituem: uma parede e uma cobertura significam protecção,

estrutura simboliza estabilidade, entrada é sinal de abertura e porta exprime controlo de

acesso. Uma única construção evoca sentimentos de segurança doméstica e um conjunto

de construções sugere um sentido de coerência social. Desta forma, Onians explica que

os símbolos constituíram um factor importante para a identidade e sobrevivência dos

povos e que assumiram formas e significados cada vez mais complexos.

Robert Venturi e Denise Scott Brown são talvez os arquitectos mais

empenhados em defender uma arquitectura que comunique através do simbolismo,

comunicação menosprezada pelo Movimento Moderno, que assim perdeu a capacidade

de transmitir significados e valores. Consideram que os elementos simbólicos podem

ser frequentemente contraditórios10 com a forma, estrutura e programa com que

se combinam num edifício, mas que a arquitectura deve assumir e integrar essas

contradições. Desta forma, o uso dos símbolos, de convenções arquitectónicas de

apelo popular, convencionais, estandardizadas, facilitam a comunicação e aproximam a

arquitectura das pessoas. O arquitecto deveria voltar-se para esses símbolos, compreendê-

los e torna-los ainda mais vivos.

Da mesma maneira, no cinema, como arte igualmente comunicante, a criação

de símbolos é fundamental. Poder-se-ia dizer que o grande impacto do cinema advém,

em parte, da sua capacidade de traduzir símbolos em imagens, através de um sistema

complexo de associações conscientes e inconscientes.

8. Onians in Farmer & Louw (ed.), 1993: 511

9. Idem: Ibidem

10. Esta contradição divide-se em duas manifestações principais, ambas válidas: o pato (“duck”),

que ocorre quando os sistemas de espaço, estrutura e programa estão

submersos e distorcidos por uma global forma simbólica; e o barracão

decorado (“decorated shed”), quando os sistemas de espaço e

estrutura estão directamente ao serviço do programa e o ornamento

é aplicado com independência. O pato é um edifício especial que é um símbolo; o barracão decorado é um

abrigo convencional a que se aplicam símbolos. (Rocha, 2011:14)

Page 112: Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

111

Marcel Martin, no texto referido no capítulo anterior, define símbolo como

imagem que, para além do seu significado directo, contem um valor mais profundo e

mais vasto. Ao contrário da metáfora, o significado do símbolo não surge da comparação

de duas imagens ou ideias mas reside nela própria. Segundo o autor, os símbolos em

cinema podem dividir-se em dois grupos: composição simbólica da imagem – uma

imagem em que o realizador terá, mais ou menos arbitrariamente, reunido dois fragmentos de

realidade para fazer brotar da sua confrontação um significado mais largo e mais profundo do

que o seu simples conteúdo material11 – e conteúdo latente ou implícito da imagem – uma

imagem que tem a sua função própria a desempenhar na acção e que pode parecer não conter

qualquer implicação não evidente, mas cujo conteúdo toma mais ou menos claramente, para lá

do seu significado imediato, um sentido mais geral.12

A composição simbólica da imagem pode ser conseguida de diferentes

modos:

- personagem diante de um cenário: em Lady from Shangai (A Dama de Xangai,

Orson Welles, 1947), Elsa suplica a Michel que a leve consigo para longe do seu cruel

marido diante de um aquário com monstros marinhos.

- personagem com objecto: o polícia de Touch of Evil (A Sede do Mal, Orson Welles,

1958) veste cuidadosamente a luva, diante do homem que vai estrangular;

- duas acções simultâneas: o casamento que decorre ao mesmo tempo que um

funeral em Greed (Aves de Rapina, Erich von Stroheim, 1924), denunciando o fracasso

do primeiro;

- acção visual combinada com um efeito sonoro: em Les Diaboliques (As Diabólicas,

Henri-Georges Clouzot, 1955), ouvimos a professora assassina a ensinar o verbo encontrar

aos seus alunos, enquanto o jardineiro observa a piscina onde talvez se encontre o

cadáver;

- sublinhando o sentido de uma acção ou de uma situação: os cartazes com as frases

Viver perigosamente até ao fim ou Mais dura será a queda em À Bout de Souffle (O Acossado,

Jean-Luc Godard, 1960) sugerem o final trágico do filme;

- adição de um elemento exterior à acção: em Spellbound (A Casa Encantada, Alfred

11. Martin, [1955]: 123

12. Idem: Ibidem

Fig. 192 | 193 | 194. Lady from Shangai, 1947

Fig. 195 | 196. Greed, 1924

Page 113: Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

112

Hitchcock, 1945), uma imagem de portas a abrirem-se de par em par é sobreposta à

cena em que a heroína é beijada, sugerindo a sua libertação.

Relativamente ao segundo grupo, o conteúdo latente ou implícito, Martin

distingue três tipos de forma análoga à metáfora: os símbolos plásticos, os símbolos

dramáticos e os símbolos ideológicos. Os símbolos plásticos correspondem aos planos

em que um gesto ou o movimento de um objecto podem evocar uma nova realidade,

como o voo dos pombos em La Passion de Jeanne d’Arc podem simbolizar a partida de

uma alma. Os símbolos dramáticos são os mais abundantes e têm um papel directo na

acção, facilitando a compreensão da narrativa. Um exemplo deste símbolo será a cena

de Conquest (Maria Walewska, Clarence Brown, 1937) em que Napoleão, durante uma

discussão, atira uma faca para cima de um mapa e esta cai precisamente em Waterloo. E

finalmente, os símbolos ideológicos são aqueles que ultrapassam largamente os limites

da narrativa: em L’Espoir (André Malraux, Boris Peskine, 1945), uma formiga em cima

de uma metralhadora pode simbolizar a fragilidade de uma vida em relação ao absurdo

da guerra. Martin conclui explicando que o símbolo é mais eficaz e mais intenso quanto

menos visível for, isto é, quanto mais natural parecer ao espectador.

Fig. 197 | 198 | 199. Spellbound, 1945

Page 114: Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

113

Como foi referido anteriormente, o novo cinema português é rico em

mensagens codificadas e gestos subtis, devido ao contexto específico donde emergiu.

Deste modo, para além de uma propensão para a simbologia inerente ao próprio cinema,

os filmes deste período têm por vezes uma necessidade de se servir dos símbolos para

dissimular significados ou despertar sentimentos. São por isso, na sua maioria, de uma

complexidade que obriga a repetidas leituras, principalmente quando não se possui os

mecanismos necessários à sua descodificação, ou seja, um conhecimento do contexto

histórico, cultural, social e político. Por outro lado, o peso desse contexto pode criar

exageros, originando interpretações simbólicas que vão muito além das intenções do

autor. As interpretações que se seguem baseiam-se não só nesse contexto, mas também

nas conotações mais ou menos generalizadas de alguns símbolos, sobretudo por via da

iconologia mitológica e religiosa.

Elementos naturais A água é habitualmente entendida como símbolo de limpeza e purificação.

Nos rituais religiosos, o Baptismo é o momento em que a água limpa simbolicamente

o pecado que o homem transporta desde o momento da sua criação. No novo cinema,

a água é o elemento natural mais frequente, e se por vezes é utilizada de forma

aparentemente banal – como quando Belarmino ou Júlio de Os Verdes Anos bebem nas

fontes públicas – noutros momentos parece conter uma verdadeira intenção simbólica.

Alguns personagens, como Marta de O Cerco ou Lúcia de O Recado, parecem eleger

a água como lugar de reflexão e purificação numa fase final da trama: Marta, após

tomar conhecimento da morte de Vítor, para a qual contribuiu inocentemente, faz uma

viagem de barco pelo rio Tejo; Lúcia, numa situação idêntica – após saber que Francisco

fora assassinado – passeia-se em frente ao mar antes de tomar uma decisão definitiva

sobre o seu futuro.

Símbolos no Novo Cinema

Ambos os casos remetem para outro dos significados atribuídos a este elemento:

a morte. Segundo Bachelard, que dedicou uma obra aos significados da água nos

sonhos (L’Eau et les Rêves, 1942), para alguns sonhadores, água é o universo da morte...a água

comunica com todos os poderes da noite e da morte, i.e., a água é um elemento ‘melancolizante’...

para algumas almas, água é a matéria do desespero.13 Uma das cena que melhor ilustra

esta conotação pertence a Uma Abelha na Chuva, quando o mestre António e o seu

aprendiz transportam o corpo de Jacinto num pequeno barco. A natureza torna-se assim

testemunha de um acto violento, com o som da água a reforçar o poder simbólico

13. Bachelard cit. Pallasmaa, 2007: 82

Fig. 201. Uma Abelha na Chuva, 1972

Fig. 200. O Recado, 1972

Fig. 202. Os Verdes Anos, 1963

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114

da imagem e a perpetuar a morte de um inocente. São panorâmicas lentas que nos

remetem, por sua vez, para o último das significações mais recorrentes da água no

cinema: o tempo. Tal como afirma Pallasmaa, a propósito da análise de Nostalghia

(Andrei Tarkovsky, 1983), a água concretiza e abranda o tempo, assim como seduz o espectador

para o sonho interior e para o devaneio14. O efeito das águas que avançam lentamente,

como no filme de Fernando Lopes, é quase hipnotizante e parece simbolizar um ciclo

contínuo, o ciclo vicioso em que se tornou a vida dos protagonistas.

Em Os Verdes Anos, é diante de um lençol de água que decorre uma das cenas

mais poéticas do filme. Júlio, num acto de ciúme, atira do alto de uma ravina a camisola

que o seu tio oferecera a Ilda. A jovem tenta recuperá-la e acabam os dois debruçados

sobre a água, com a cidade como pano de fundo. Nesta caso, a água parece condensar os

significados anteriormente descritos. Por um lado, pode simbolizar a pureza e inocência

de Ilda, por contraponto às desconfianças infundadas de Júlio. Por outro, pode ser

entendida como um prenúncio da sua morte prematura. E, por fim, a água parada

remete-nos para um tempo estagnado. As declarações de Paulo Rocha mostram-nos que,

mesmo que estas interpretações possam ser questionáveis, a cena em questão poderá

estar na base da própria concepção do filme:

Assim nasceram os Verdes Anos, a olhar a cidade a meus pés reflectida numa poça de

água, do alto de uma ravina que descia a pique, até ao enfiamento dos Estados Unidos.15

Objectos artificiais e formas construídasAlguns símbolos são evocados pelos objectos que compõem o décor, remetendo-

nos para um dos tipos de símbolo que Martin distingue: composição simbólica da

imagem.

Em Uma Abelha na Chuva, há um interessante jogo na composição da cena em

que Álvaro agride Maria dos Prazeres. Os dois discutem numa sala inóspita, de janela

fechada e quase sem mobiliário. Entre eles, vemos apenas um elemento decorativo:

um quadro com um cavalo e um cocheiro. Este, não só simboliza o interesse e o desejo

reprimido de Maria pelo cocheiro Jacinto, como é uma referência ao carácter bruto e

animalesco de Álvaro. Esta imagem é revisitada outras vezes ao longo do filme, reforçada

com o som dos cascos de um cavalo. Também em Os Verdes Anos há diálogos mediados

por um elemento decorativo semelhante: o primeiro, em casa de Ilda, quando o casal

toma chá na sala, e a câmara fixa o quadro que está pendurado por cima das suas cabeças;

o segundo, quando Júlio discursa em frente aos painéis da fachada da universidade. Em

ambos os casos, esses elementos parecem simbolizar uma vontade de ascensão social e

intelectual por parte de Ilda e um desprezo de Júlio por essas intenções.

14. Pallasmaa, 2007: 84

15. Paulo Rocha in Andrade (coord.), 1996: 24

Fig. 203. Uma Abelha na Chuva, 1972

Fig. 204. Os Verdes Anos, 1963

Page 116: Inter[secções] - Arquitectura e novo cinema português

115

Em O Mal Amado também podemos encontrar um interessante jogo com

o simbolismo dos objectos. A forma como estão decoradas as casas dos personagens

são a expressão da sua forma de ser e estar. A casa de João é decorada à imagem do

seu pai: os móveis dos anos 1930 parecem ser tão velhos quanto as suas convicções

e a excessiva utilização de “biblots”, rendas e outros objectos antigos reforçam a sua

postura retrógrada perante a vida. Na cena em que o pai chama João ao seu escritório

para lhe dar, pela primeira vez, uma cópia da chave de casa, um busto de António

Oliveira Salazar está colocado sobre a mesa, entre os dois personagens, simbolizando o

autoritarismo, o moralismo e a ordem. Já a decoração do apartamento de Inês parece

ser tão contraditória quanto o seu comportamento: os espaços comuns apresentam

mobiliário branco, de linhas simples, papel de parede de padrões modernos e um

ambiente mais luminoso; enquanto que no quarto o mobiliário é tradicional, o desenho

do papel de parede é mais orgânico e o ambiente mais escuro. Pelo quarto estão ainda

espalhadas fotos do seu irmão morto na guerra colonial, simbolizada pelas estatuetas

africanas que também fazem parte da decoração. Na cena final, vemos o reflexo de João

no espelho, encurralado entre dois problemas: Inês, símbolo de um amor doentio, e

uma estatueta, símbolo da inevitabilidade da mobilização para a guerra.

Outro símbolo com uma forte expressão e destaca neste filme: o relógio. Em

todos os planos da sequência de abertura, mas nem sempre de forma evidente, está

presente um relógio. De início, parece ser apenas um modo de nos situar temporalmente

na história mas, numa segunda leitura mais atenta, parece ser um símbolo de que o

país está em espera, aguardando a hora certa, a hora da mudança. Esta ideia é ainda

reforçada quando Fernando Matos Silva fixa a câmara num plano em que vemos um

camião com o letreiro de “Mudanças”.

Ainda dentro da lógica da composição simbólica da imagem de personagem

diante de um cenário ou em interacção com um objecto, é importante relembrar a cena

final de Belarmino: enquanto o boxeur caminha por entre a multidão Lisboeta, a câmara

desfoca lentamente o seu alvo para focar o gradeamento da varanda que se encontra em

primeiro plano. Esse elemento constitui uma forte expressão do momento de clausura

Fig. 206 | 206 | 207. O Mal Amado, 1974

Fig. 208 | 209 | 210. O Belarmino, 1964

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116

e aprisionamento que se vivia nos anos sessenta e que Fernando Lopes transformou

intencionalmente em símbolo.

Por último, destaca-se a utilização da ruína como elemento que pode

ser entendido ora como vestígio do passado, ora como símbolo de destruição e

desmoronamento. Em Os Verdes Anos, numa das sequências já referidas dos passeios

de Júlio e Ilda, o casal brinca em cima de uma ruína. Para além da intenção claramente

poética na introdução deste elemento na composição, a ruína parecer exprimir um

elogio dos valores do passado, a importância da origem para a construção de um

identidade.

Já em O Recado, as Ruínas do Santuário de Nossa Senhora do Cabo de Espichel

parecem ser símbolo desertificado e desertificador, um deserto de almas, onde a paisagem tem

correspondência directa no desalento que se apodera das personagens.16 A ruína é ao mesmo

tempo um espaço de comemorações populares para os habitantes locais e espaço de

morte para Francisco. Miguel C. Tavares interpreta esto uso deste elemento como crítica

à postura passiva da maioria da população, num período em que se exigia mais intensidade na

oposição ao regime, para que se pudesse mudar o rumo do país17, já que o povo alienado não

se apercebe que Francisco sofre a poucos metros.

As interpretações destes símbolos são, e não poderiam deixar de ser, pessoais.

Embora algumas intenções possam parecer claras, muitas vezes subentendidas em

depoimentos dos próprios autores, a análise que fazemos pode ser tão subjectiva quanto

a complexidade humana.

16. Tavares, 2011

17. Idem

Fig. 211 | 212 | 213. Os Verdes Anos, 1963

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119

conclusão

Embora exista, no Novo Cinema, uma forte expressão individual de cada

um dos seus autores e das suas respectivas influências, directas ou indirectas, persiste

uma unidade correspondente ao seu tempo, à visão social incapaz de ser indiferente

ao contexto político português e ao próprio sentido artístico em oposição a “moldes”

vigentes de “fazer” cinema. A vontade de ruptura nestes campos é também o enunciar

do nascimento de um cinema complexo e diversificado com várias camadas passíveis de

diferentes análises.

Das imagens do cinema adivinharam-se temáticas arquitectónicas, e das

temáticas arquitectónicas reinterpretaram-se as imagens do cinema. Neste jogo

de constantes relações, o Novo Cinema português serviu como ponto de partida

para reflectir sobre a arquitectura nas suas múltiplas dimensões. Inversamente, os

pressupostos arquitectónicos permitiram novos olhares sobre o espaço cinematográfico.

A imagem que temos de uma determinada cidade é, em certa medida, moldada

pelo imaginário cinematográfico. Muitas vezes, a sua imagem real confunde-se com

a sua representação no cinema. É quase inevitável, para um amante de cinema ou

espectador mais atento, pensar em Paris e não evocar imagens dos cafés de Godard, ou

desejar secretamente correr nos corredores do Louvre e bater o record de velocidade das

personagens de Band à Part. Ou pensar em Nova Iorque sem recordar a descrição que

Woody Allen faz da cidade na sequência de abertura de Manhattan ou do famoso plano

junto à ponte. Da mesma maneira, a Lisboa dos anos sessenta, para alguns, será sempre

a Lisboa desencantada de Os Verdes Anos. E os cafés da baixa lembrarão muitas vezes

Belarmino, sentado numa mesa a colorir fotografias.

Neste sentido, percebemos que a construção da identidade do espaço urbano e

a forma como o apreendemos depende de múltiplos factores e não apenas da disciplina

do urbanismo. Há uma troca de influências, uma contaminação recíproca entre

diferentes campos que faz convergir objectivos, de uma maneira nem sempre intencional.

Vimos que a década de sessenta foi marcada por uma certa tendência para a revisão

do Modernismo, apelando a um urbanismo de menor escala e mais participativo. No

cinema, os cânones vigentes são igualmente postos em causa e procura-se um cinema

mais real e mais biográfico, despertando um novo interesse pelo quotidiano urbano.

Apesar das diferenças que os separa, urbanismo e cinema perseguiam o mesmo objectivo

de se libertar do peso da tradição e voltar a olhar a cidade de perto.

Apreender o espaço urbano em toda a sua complexidade exige percorrê-

lo, atravessá-lo deixar-se perder e ser surpreendido. Vimos que a deambulação é um

exercício recorrente como forma de reconhecimento da cidade e dos seus diferentes

fenómenos, sendo alvo de especial destaque na era moderna, também ela marcada por

uma certa ideia de movimento. Na literatura, na filosofia, no urbanismo e no cinema,

há um prazer implícito no acto de percorrer que corresponde, numa primeira fase, a

um fascínio pela riqueza dos ambientes urbanos. Nos anos sessenta, é reforçada uma

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120

ideia de deriva urbana que, especialmente nas novas vagas do cinema, corresponde

a uma deriva existencial. A deambulação é também um exercício intrínseco tanto à

disciplina de arquitectura como ao campo do cinema. Se por um lado, o movimento é

fundamental para a apreensão total de uma obra arquitectónica, o cinema proporciona

ao espectador uma experiência de percurso ou de viagem.

O fascínio pela cidade coexiste, no entanto, com um sentimento de repulsa. A

cidade moderna, complexa e aparentemente contraditória, é também o ponto de partida

para questionar valores morais, sociais e políticos. Este questionamento pode levar a

uma crise de identidade, que no cinema ganha especial destaque. O ritmo alienante dos

ambientes urbanos leva a um desejo de fuga para a periferia, mas a cidade parece conter

uma força atractiva que impede a sua concretização.

Passando do exterior para o interior, do público para o espaço privado,

vimos que determinados elementos que o compõem e que são quase um arquétipo

da arquitectura, são igualmente relevantes no espaço cinematográfico. Para além de

funcionarem como instrumentos técnicos auxiliares ao processo de montagem, possuem

uma dimensão simbólica capaz de comunicar determinadas mensagens e emoções de

uma forma mais imediata e mais profunda. Essa dimensão é em parte construída a

partir do seu valor arquitectónico. A porta, a janela e o corredor estão associados a uma

noção de privacidade: os dois primeiros por mediarem a nossa relação com o exterior

e o terceiro por conter uma ideia de ‘privatização’ do espaço do interior, ao possibilitar

a criação de divisões independentes. A porta indica onde começa e acaba o espaço

privado, o território de cada um. Atravessar uma porta que nos é aberta, é um convite

a entrar no espaço e na intimidade do outro, da mesma maneira que forçar a entrada

numa porta é sinónimo de violação de privacidade. Estas noções são também aplicáveis

à janela, embora num sentido mais visual. A sua função de enquadrar a paisagem, de

selecionar aquilo vemos e a forma como o vemos, leva a que a janela seja muitas vezes

interpretada como própria metáfora do cinema. Como ponto de luz, a janela também é

fundamental para a criação de diferentes atmosferas interiores, que nos filmes analisados

são profundamente exploradas. Por fim o corredor, especialmente pela sua geometria

e pelo seu efeito de perspectiva, tem um lugar de destaque no espaço cinematográfico.

Como elemento de ligação de diferentes espaços, ora é propício à interacção social ora é

sinónimo de reclusão. Se por um lado, estes elementos arquitectónicos são comuns no

cinema, por outro, o valor cinematográfico que adquirem podem ser transportados para

a arquitectura, enriquecendo a sua potencialidade dramática. A sua forma, o material

de que são compostos e a posição que ocupam no espaço, provocam sentimentos como

o desejo, a repulsa ou o medo, muitas vezes associados à memória de experiências

cinematográficas.

Como vimos, é impossível falar de espaço sem falarmos de emoções, de

sentimentos ou de sensações. Através das superfícies e dos objectos que o compõem,

o espaço assume significados que ultrapassam a sua configuração material. Essas

interpretações subjectivas, apesar de muitas vezes se basearem em valores universais,

dependem da predisposição psicológica do indivíduo, que nelas projecta as suas

vivências, as suas memórias, os seus desejos e frustrações. Entender o lugar que

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121

habitamos, é também entendermo-nos a nós mesmos. As questões ligadas à identidade,

à posição do sujeito em frente ao mundo e a si mesmo, são temas centrais em

diversos campos, inclusivamente na arquitectura, porque condiciona a forma como

nos movemos e interagimos com o espaço. Esse universo pessoal é determinante no

modo como atribuímos significados às coisas que nos rodeiam. Este processo poder

ser realizado através de metáforas, entendidas como a comparação de duas ideias,

ou através de símbolos propriamente ditos, entendidos como significados com um

valor mais abrangente, que com o tempo se tornam quase universais. Neste sentido,

parece ser pertinente falar de dimensão psicológica do espaço, quer na disciplina da

arquitectura, quer no exercício de cinema. No limite, foram estas associações mentais que

estabelecemos quer através de significados intrínsecos, quer por meio da comparação,

que possibilitaram toda a análise explorada neste trabalho.

A vontade de abranger um tão grande número de temas leva a que,

necessariamente, muito fique por dizer e muitos exemplos fiquem por citar. Mais do

que o produto final, valorizou-se o processo. Mais do que conclusões, valorizaram-se

hipóteses. O resultado é um mapeamento das intersecções entre a arquitectura e o

cinema, em particular o Novo Cinema, que pretende abrir um leque de possibilidades

para o futuro, mais do que resumir as experiências do passado.

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URBANO, Luis. 2007. “Dupli_cidade e a Flânerie Contemporânea” in Opúsculo 6. Porto: Dafne Editora.(disponível em http://www.dafne.com.pt/pdf_upload/opusculo_6.pdf)

URBANO, Luis. 2008. “Mais Babel que Sião – Imagens da cidade no cinema”. [não editado]

URBANO, Luis. 2012. “Cunha Telles Redux”. Comunicação apresentada no II Encontro Anual da Associação dos Investigadores das Imagens em Movimento

ZUMTHOR, Peter. 2006. Atmosferas. Entornos arquitectónicos: as coisas que me rodeiam. Barcelona: Gustavo Gili

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créditos imagens

Fig. 1. Hans Baumgartner, 1936. in ZUMTHOR, Peter. 2006. Atmosferas. Entornos arquitectónicos: as coisas que me rodeiam. Barcelona: Gustavo Gili. p. 19Fig. 2. Guy Debord, 1957. http://www.laciudadviva.org/blogs/wp-content/uploads/2010/05/the-naked-city-1957-guy-debord.jpgFig. 3. [s.a.] in COSTA, Tiago. 2011. Uma narrativa sobre processos na formação da cidade. Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura. Orient. Manuel Graça Dias. Faculdade de Arquitectura da Universidade do PortoFig. 4. Nigel Henderson,1956. http://designmuseum.org/__entry/4461?style=design_image_popupFig. 5. [s.a.] 1927. in MENNEL, Barbara. 2008. Cities and Cinema. New York: Routledge. p.31Fig. 6. [s.a.] 1927. in MENNEL, Barbara. 2008. Cities and Cinema. New York: Routledge. p.33Fig. 7. Raymond Cauchetier, 1959. http://criterioncollection.tumblr.com/post/26852712524/cinematographer-raoul-coutard-shoots-breathlessFig. 8. Raymond Cauchetier, 1968. http://www.peterfetterman.com/exhibitions/2012-09-22_raymond-cauchetier-photos-de-cinma/Fig. 9. [s.a.]. 1944. http://www.movieposterdb.com/poster/fab13cb3Fig. 10. [s.a.]. 1944. http://www.filmaffinity.com/en/film610748.htmlFig. 11. [s.a.; s.d.] Arquivo da Cinemateca Fig. 12. Carole Le Berre, 1964. http://www.guardian.co.uk/artanddesign/2005/nov/10/photography.francoistruffautFig. 13 | 14. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963)Fig. 15 | 16 | 17. Fotogramas extraídos do filme ‘Belarmino’ (Fernando Lopes, 1964)Fig. 18 | 19 | 20. Fotogramas extraídos do filme ‘O Cerco’ (António da Cunha Telles, 1970)Fig. 21 | 22 | 23. Fotogramas extraídos do filme ‘Perdido por Cem’ (António-Pedro Vasconcelos, 1973)Fig. 24 | 25 | 26. Fotogramas extraídos do filme ‘O Mal Amado’ (Fernando Matos Silva, 1974)Fig. 27. [s.a.] Gustave Caillebotte, 1877. http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/caillebotte/rainy.jpgFig. 28. [s.a.;s.d.] http://www.edwinmijnsbergen.nl/Fig. 29. Madeleine de Scudéry, 1654. http://fr.wikipedia.org/wiki/Carte_de_TendreFig. 30 | 31. Fotogramas extraídos do filme ‘À Bout de Souffle’ (Jean-Luc Godard, 1960)Fig. 32 | 33 | 34. Fotogramas extraídos do filme ‘Belarmino’ (Fernando Lopes, 1964)Fig. 35 | 36 | 37. Fotogramas extraídos do filme ‘Belarmino’ (Fernando Lopes, 1964)

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Fig. 38 | 39 | 40. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963)Fig. 41 | 42 | 43. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963)Fig. 44 | 45 | 46. Fotogramas extraídos do filme ‘O Cerco’ (António da Cunha Telles, 1970)Fig. 47 | 48 | 49. Fotogramas extraídos do filme ‘O Recado’ (José Fonseca e Costa, 1972)Fig. 50 | 51 | 52. Fotogramas extraídos do filme ‘Perdido por Cem’ (António-Pedro Vasconcelos, 1973)Fig. 53 | 54 | 55. Fotogramas extraídos do filme ‘O Mal Amado’ (Fernando Matos Silva, 1974)Fig. 56 | 57 | 58. Fotogramas extraídos do filme ‘Les Cousins’ (Claude Chabrol, 1959)Fig. 59 | 60 | 61. Fotogramas extraídos do filme ‘São Paulo Sociedade Anônima’ (Luís Sérgio Person, 1965)Fig. 62. Fotograma extraído do filme ‘Belarmino’ (Fernando Lopes, 1964)Fig. 63. Fotograma extraído do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963)Fig. 63. Fotograma extraído do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963)Fig. 64. Fotograma extraído do filme ‘São Paulo Sociedade Anônima’ (Luís Sérgio Person, 1965)Fig. 65 | 66 | 67. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963)Fig. 68 | 69 | 70. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963)Fig. 71 | 72 | 73. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963)Fig. 74. Simon Unwin, [s.d.]. in UNWIN, Simon. 2007. Doorway. USA & Canada: RoutledgeFig. 75. Simon Unwin, [s.d.]. in UNWIN, Simon. 2007. Doorway. USA & Canada: RoutledgeFig. 76. Simon Unwin, [s.d.]. in UNWIN, Simon. 2007. Doorway. USA & Canada: RoutledgeFig. 77. Fotograma do filme de apresentação da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto ‘FAUP [trav]’ (Miguel C. Tavares, 2012)Fig. 78 | 79 | 80. Vilhelm Hammershøi. http://www.gwick.ch/Perspe/Pictures/Stich/OT.htmlFig. 81 | 82 | 83. Fotogramas extraídos do filme ‘Nosferatu’ (F. W. Murnau, 1922)Fig. 84 | 85 | 86. Fotogramas extraídos do filme ‘Double Indemnity’ (Billy Wilder, 1944)Fig. 87 | 88. Fotogramas extraídos do filme ‘Uma Abelha na Chuva’ (Fernando Lopes, 1972)Fig. 89 | 90. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963)Fig. 91 | 92. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963Fig. 93 | 94. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963)Fig. 95. Fotograma extraído do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963)Fig. 96. Fotograma extraído do filme ‘Perdido por Cem’ (António-Pedro Vasconcelos, 1973)Fig. 97 | 98 | 99. Fotogramas extraídos do filme ‘Belarmino’ (Fernando Lopes, 1964)Fig. 100 | 101 | 102. Fotogramas extraídos do filme ‘O Recado’ (José Fonseca e Costa, 1972)

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Fig. 103. [s.a., s.d.] in Gravagnuolo, Benedetto. 1918. Adolf Loos: Teoria e Opere. Milano: Idea Books. p.192Fig. 104. [s.a., s.d.] in Gravagnuolo, Benedetto. 1918. Adolf Loos: Teoria e Opere. Milano: Idea Books. p.149Fig. 105. Roberto Schezen [s.d.] in Schezen, Roberto. 1996. Adolf Loos: arquitectura 1903-1932. Barcelona: Editorial Gustavo Gili. p.86Fig. 106 | 107 | 108. Fotogramas extraídos do filme ‘L’Architecture d’aujourd’hui’ (Pierrre Chenal & Le Corbusier, 1930) Fig. 109 | 110 Fotogramas extraídos do filme ‘Mon Oncle’ (Jacques Tati, 1958)Fig. 111 | 112. Fotogramas do filme Possessed (Clarence Brown, 1931) extraídos do documentário The Pervert’s Guide to Cinema (Sophie Fiennes & Slavoj Zizek, 2006)Fig. 113. Fotograma extraído do filme ‘Rear Window’ (Alfred Hitchcock, 1954)Fig. 114. Edward Hopper, 1928 http://illustrationart.blogspot.pt/2007_10_01_archive.htmlFig. 115 | 116. Fotogramas extraídos do filme ‘Belarmino’ (Fernando Lopes, 1964)Fig. 117 | 118. Fotogramas extraídos do filme ‘O Cerco’ (António da Cunha Telles, 1970)Fig. 119 | 120 | 121. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963)Fig. 122 | 123 | 124. ‘Uma Abelha na Chuva’ (Fernando Lopes, 1972)Fig. 125 | 126. Fotogramas extraídos do filme ‘Belarmino’ (Fernando Lopes, 1964)Fig. 127 | 128. Fotogramas extraídos do filme ‘Uma Abelha na Chuva’ (Fernando Lopes, 1972)Fig. 129. Fotograma extraído do filme ‘The Shining’ (Stanley Kubrik, 1980)Fig. 130. Fotograma extraído do filme ‘One Flew Over the Cuckoo’s Nest’ (Milos Forman, 1975),Fig. 131. Fotograma extraído do filme ‘The Shining’ (Stanley Kubrik, 1980)Fig. 132 | 133. Fotogramas extraídos do filme ‘Belarmino’ (Fernando Lopes, 1964)Fig. 134 | 135. Fotogramas extraídos do filme ‘Uma Abelha na Chuva’ (Fernando Lopes, 1972)Fig. 136 | 137. Fotogramas extraídos do filme ‘O Mal Amado’ (Fernando Matos Silva, 1974)Fig. 138 | 139. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963)Fig. 140 | 141 | 142. Fotogramas extraídos do filme ‘O Mal Amado’ (Fernando Matos Silva, 1974)Fig. 143 | 144. Rodrigo Dessa, 2012Fig. 145. Dan Graham, 1978. in COLOMINA, Beatriz. 2006. Doble Exposición – Arquitectura a través del arte. Madrid: Ediciones Akal. p.159Fig. 146. J. E. Hummel, 1820-25. in TEYSSOT, Georges. 2010. Da teoria de arquitectura : doze ensaios. Lisboa: Edições 70. p.168Fig. 147 | 148 | 149. Fotogramas extraídos do filme ‘Duck Soup’ (Leo McCarey, 1933)Fig. 150 | 151. Fotogramas extraídos do filme ‘Cló de 5 à 7’ (Agnés Varda, 1962)Fig. 152 | 153. Fotogramas extraídos do filme ‘Zerkalo’ (Andrei Tarkovsky, 1975)Fig. 154 | 155 | 156. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’

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Fig. 157 | 158 | 159. Fotogramas extraídos do filme ‘Uma Abelha na Chuva’ (Fernando Lopes, 1972)Fig. 160 | 161. Fotogramas extraídos do filme ‘Uma Abelha na Chuva’ (Fernando Lopes, 1972)Fig. 162 | 163. Fotogramas extraídos do filme ‘O Recado’ (José Fonseca e Costa, 1972)Fig. 164 | 165. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963)Fig. 166 | 167 | 168. Fotogramas extraídos do filme ‘O Cerco’ (António da Cunha Telles, 1970)Fig. 169 | 170 | 171. Fotogramas extraídos do filme ‘O Mal Amado’ (Fernando Matos Silva, 1974)Fig. 172. [s.a.; s.d.] in JENCKS, Charles. [1977]. Le language de l’architecture post-modern. Paris: Denoel. 1985. p.43Fig. 173. [s.a.; s.d.] in JENCKS, Charles. [1977]. Le language de l’architecture post-modern. Paris: Denoel. 1985. p.43Fig. 174. Hillel Schocken, [s.d.] in JENCKS, Charles. [1977]. Le language de l’architecture post-modern. Paris: Denoel. 1985. p.43Fig. 175 | 176 | 177. Fotogramas extraídos do filme ‘O Couraçado de Potemkin’ (Eisenstein,1925)Fig. 178 | 179 | 180. Fotogramas extraídos do filme ‘Modern Times’ (Charles Chaplin,1936)Fig. 181 | 182 | 183. Fotogramas extraídos do filme ‘Uma Abelha na Chuva’ (Fernando Lopes, 1972))Fig. 184 | 185 | 186. Fotogramas extraídos do filme ‘O Mal Amado’ (Fernando Matos Silva, 1974)Fig. 187 | 188 | 189. Fotogramas extraídos do filme ‘Belarmino’ (Fernando Lopes, 1964)Fig. 190 | 191. Fotogramas extraídos do filme ‘Perdido por Cem’ (António-Pedro Vasconcelos, 1973)Fig. 192 | 193 | 194. Fotogramas extraídos do filme ‘Lady from Shangai’ (Orson Welles, 1958)Fig. 195 | 196. Fotogramas extraídos do filme ‘Greed’ (Erich von Stroheim, 1924)Fig. 197 | 198 | 199. Fotogramas extraídos do filme ‘Spellbound’ (Alfred Hitchcock, 1945)Fig. 200. Fotograma extraído do filme ‘O Recado’ (José Fonseca e Costa, 1972)Fig. 201. Fotograma extraído do filme ‘Uma Abelha na Chuva’ (Fernando Lopes, 1972))Fig. 202. Fotograma extraído do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963)Fig. 203. Fotograma extraído do filme ‘Uma Abelha na Chuva’ (Fernando Lopes, 1972))Fig. 204. Fotograma extraído do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963)Fig. 205 | 206 | 207. Fotogramas extraídos do filme ‘O Mal Amado’ (Fernando Matos Silva, 1974)Fig. 208. | 209 | 210. Fotogramas extraídos do filme ‘Belarmino’ (Fernando Lopes, 1964)Fig. 211. | 212 | 213. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963)

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anexos . os filmes

Realização - Paulo Rocha

Produção - António da Cunha Telles/Produções Cunha Telles

Argumento - Paulo Rocha

Adaptação e Diálogos - Nuno Bragança

Assistentes de Realização - Fernando Matos Silva, António Vilela e Olavo Rasquinho

Fotografia - Luc Mirot

Operador de imagem - Elso Roque e Eduardo Ferros (assistente)

Montagem - Margarette Mangs

Assistentes de Montagem - Emília de Oliveira, Isabel Marques e Noémia Delgado

Som - Heliodoro Pires

Música - Carlos Paredes

Intérpretes - Isabel Ruth (Ilda), Rui Gomes (Júlio), Paulo Renato (Afonso), Cândida

Lacerda (Patroa), Carlos José Teixeira (Patrão), Irene Dyne (Prima), Ruy Furtado (Raul),

Harry Weeland (Inglês), Alberto Ghira, Órcar Acúrcio, José Victor, Rui Castelar,

Carlos Alberto dos Santos, Carlos Canduzeiro, Manuel de Oliveira, Raul Dibini, Maria

Helena, Joaquim António Mendes, Victor Dias, Carlos Jesus Afonso, Carlos Rodrigues,

Elisa Maria, Henriqueta Domingues, Manuel Bento, Manuel Reis e Olga Campos.

Os Verdes Anos

Sinopse

Nos Verdes Anos, por detrás da perturbante história de amor entre dois jovens adultos,

conta-se a história de dois campónios recém-chegados à cidade. Somos guiados através

dos olhos de Júlio que vem para Lisboa viver com o tio e trabalhar como sapateiro. No

dia da chegada, um incidente leva-o a conhecer Ilda, jovem da mesma idade, empregada

doméstica numa casa próxima da oficina onde Júlio trabalha. Júlio sente-se num

ambiente estranho e hostil, não se conseguindo enquadrar na cidade e procurando

conforto na ideia segura do casamento, que Ilda recusa. Embora procure encaixar-se na

vida da capital é incapaz de lidar com a rejeição da namorada, acabando por matá-la.

Paulo Rocha filma as paisagens desoladas de uma Lisboa em construção, entre dois

espaços aparentemente contraditórios (já que ambos são periferias): uma urbana, os

novos bairros nas Avenidas Novas, onde trabalham os dois personagens principais, e

uma rural, onde Júlio vive com o tio, lugar já ameaçado pelo crescimento da cidade.

Rocha estabelece também uma dicotomia entre uma Lisboa contemporânea, diurna,

onde a maior parte da acção decorre; e uma Lisboa antiga, nocturna, onde alguma

liberdade é permitida.

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Realização – Fernando Lopes

Produção – António da Cunha Telles/Produções Cunha Telles

Diálogos – Fernando Lopes, Baptista-Bastos e Manuel Ruas

Assist. Realização – Fernando Matos Silva

Dir. Fotografia – Augusto Cabrita

Imagem – Elso Roque

Montagem – Manuel Ruas

Dir. Som – Heliodoro Pires

Sonoplastia – Alexandre Gonçalves

Música – Manuel Jorge Veloso, Justiniano Canelhas, Conjunto Hot Club Portugal

Belarmino

Sinopse

Belarmino retrata a história do outrora pugilista Belarmino Fragoso. Uma história de

altos e baixos, de constantes dificuldades, da solidão, do medo, da decadência, o retrato

de um homem que é também o do país.

Apresentado como um documentário, com notórias influências do neo-realismo

italiano, da nouvelle vague francesa, e do cinema directo inglês, Belarmino é um dos

filmes chave do Novo Cinema Português.

Argumento - António da Cunha Telles, Gizela da Conceição, Carlos Rodrigues, Vasco

Pulido Valente

Realização - António da Cunha Telles

Produção - Cinenovo Filmes

Produtor - Virgílio Correia

Exteriores - Lisboa - Graça, Parque Eduardo VII

Formato - 35 mm p/b

Género - ficção (drama social

Duração - 120 min.

Intérpretes - Maria Cabral, Ruy de Carvalho, Miguel Franco

O Cerco

Sinopse

Uma filha da alta burguesia de residência lisboeta, Marta, deixa o marido. Fartou-se.

Sabe que há coisas que já não lhe interessam e tenta vida nova. É hospedeira de terra

numa companhia de aviação e modelo de uma agência de publicidade. Tem problemas

de dinheiro e recorre a Vítor, para melhorar as coisas. Mas tudo piora. Vítor – um

contrabandista a quem a vida já tudo ensinou e que já não tem esperança – agrada-lhe,

conforta-a, mas não lhe dá nada do que verdadeiramente precisa. Certo dia, ele aparece

morto. Culpa sua? Um descuido? E Marta prossegue, sempre de certo modo sozinha, o

seu caminho, em busca de qualquer coisa, numa terra que não é bem a sua.

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Realização - Fernando Lopes

Produção - Média Filmes

Argumento Original - Carlos Oliveira

Argumento - Fernando Lopes

Intérpretes - Ruy Furtado, Zita Duarte, João Guedes, Laura Soveral, Carlos Ferreiro

Dir. Fotografia - Manuel Costa e Silva

Montagem - Fernando Lopes

Decoração - Maria Helena Matos

Dir. Som - Alexandre Gonçalves

Música - Manuel Jorge Veloso, Giuseppe Verdi

Dir. Produção - Fernando Matos Silva

Produção Executiva - Alfredo Tropa, Faria Aboim

Argumento - José Fonseca e Costa

Realizador - José Fonseca e Costa

Dir. Produção - Henrique Espírito Santo

Director de Fotografia - José Ochoa

Assistente de Imagem - José Abel Aboim

Director de som - Virgílio Luz

Efeitos sonoros - Luís Castro e Alexandre Gonçalves

Sonoplastia - Luís Barão e Heliodoro Pires

Música - Rui Cardoso

Montagem - José Fonseca e Costa

Assistente de montagem - Solveig Nordlund

Uma Abelha na Chuva

O Recado

Sinopse

Adaptação cinematográfica de Fernando Lopes ao romance de Carlos Oliveira, este

filme é definido pelo cruzamento de duas histórias: de um lado Maria Prazeres e Álvaro

Silvestre, os senhores da casa; do outro, Clara, a criada, e Jacinto, o cocheiro. Um

universo rural opressivo, marcado por silêncios, desencontros, frustrações e pelos

conflitos entre as personagens que reflectem as difíceis relações entre classes e as suas

diferenças. Um ambiente cinzento e frio marca insistentemente o filme, mergulhando as

personagens numa atmosfera indecisa e indefinida, criando, assim, um certo misticismo

nas suas actuações. Entre a crise e a opressão, frustrações e conflitos, o desejo e o amor

proibido. De um lado uma história sem fim, um universo de repetição e de um amor

impossível; do outro, uma história de amor que de um momento para o outro passa da

felicidade à tragédia, da água ao fogo.

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Sinopse

Retrato social do país, tem em Lúcia (Maria Cabral) a sua personagem principal.

Cortejada por António, da mesma classe, guarda em Francisco, marginal e aventureiro,

memória amorosa. Este último, após longa ausência, regressa à terra e, através de Mal-

de-Vivre (José Viana), envia-lhe um recado para que se reencontrem. Lúcia sente-se

atraída pelo mundo da resistência aos valores da burguesia mas é, ao mesmo tempo,

incapaz de aderir a ele. Francisco não aparece no dia e no local marcado o que levará a

que Lúcia se entregue perante os valores que António representa.

Mais do que a história sobre as indecisões e opções de Lúcia, este é um filme sobre um

povo alienado, indiferente ao que se passava à sua volta.

Realização - António Pedro Vasconcelos

Produção - CPC - Centro Português de Cinema

Argumento - António Pedro Vasconcelos

Assist. Realização - José Nascimento

Intérpretes - Carlos Ferreiro, Rosa Lobato Faria, José Cunha, Marta Leitão, José Nuno

Martins, Ana Maria Lucas, António Machado, António Rama, Albano Pereira

Carmizé, Nuno Pereira

Dir. Fotografia - João Rocha

Montagem - António Pedro Vasconcelos

Dir. Som - Ruy d’Almeida e Mello

Sonoplastia - Alexandre Gonçalves

Música - Paulo Gil e Paulo de Carvalho

Dir. Produção - Paulo Gil

Perdido Por Cem

Sinopse

Artur é um jovem da província que, ao regressar a Lisboa após ter passado os meses de

Verão na sua terra natal, aceita a boleia de Rui, um empresário de reputação duvidosa

que o apresenta ao mundo da rádio e da publicidade. Durante a viagem, conhece Joana

que, tal como ele, nasceu na província mas sonha com a cidade. Através de uma sucessão

de episódios que testam constantemente a sua capacidade de sobrevivência, Artur vê-se

preso a uma vida sem esperança, de futuro incerto e paixões obsessivas, em que a única

saída parece ser a emigração.

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Realizador – Fernando Matos Silva

Assistentes de realização – José Nascimento e Francisco Manso

Fotografia – Manuel Costa e Silva

Assistente de imagem – Pedro Efe

Iluminação – Manuel Carlos Silva e Carlos Manuel da Silva

Decoração – Mário Alberto

Director de som – Alexandre Gonçalves

Operadores de som – João Diogo, José de Carvalho e Luís Filpe

Música – Luís de Freitas Branco

Montagem – Fernando Matos Silva e Alexandre Gonçalves

O Mal Amado

Sinopse

João, um jovem desajustado e Mal Amado à procura de respostas, abandona os estudos e,

através das influências e contactos do pai, começa a trabalhar num escritório. Rodeado

de mulheres, acaba por se envolver com Inês, a sua chefe, uma mulher solitária que vive

assombrada pela morte do irmão na guerra colonial. Mas se, inicialmente, a sofisticação

e a posição social de Inês entusiasmam João, no final ele acaba por preferir Leonor,

uma rapariguinha de valores mais tradicionalistas. A obsessão e o ciúme levam Inês à

loucura, que põe termo ao seu sofrimento matando João a tiro.