Intertextualidade bíblica e escravidão em Machado de Assis

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estudos semióticos issn 1980-4016 semestral vol. 6, n o 2 p. 77–85 novembro de 2010 www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es Intertextualidade bíblica e escravidão em Machado de Assis (duas crônicas de maio de 1888) Paulo Sérgio de Proença * Resumo: Em 17 de maio de 1888, em ação de graças pela abolição dos escravos, foi celebrada uma missa, com a presença da Princesa Regente e outras autoridades. Alusiva ao evento, uma crônica machadiana parodia o evangelho da missa. Como o primeiro evangelho bíblico, a paródia tem o seu Cristo, João Batista, discípulos e uma parábola. Além dos evangelhos bíblicos, a crônica menciona os livros Deuteronômio e Eclesiastes. Ao superpor, de forma paródica, eventos e personagens de sua época aos bíblicos, o autor provoca efeitos específicos que fazem refletir sobre o significado dos acontecimentos retratados, numa crítica aos políticos e aos acontecimentos que resultaram na adoção da abolição. Machado escreveu outra famosa crônica, publicada em 19 de maio de 1888, na qual não faltaram alusões bíblicas para celebrar a libertação do escravo Pancrácio. O narrador diz antecipar-se ao poder público e liberta seu molecote escravo, dando, para festejar a ocasião, um banquete. Imagens bíblicas são usadas para dar realce ao evento; tudo com a finalidade de projeção do próprio narrador, que não esconde suas aspirações políticas. Para essa finalidade, nada melhor do que parecer cultivar os valores cristãos e praticar falsa benemerência. Qual o efeito de sentido da intertextualidade bíblica nessas peças de Machado em relação à escravidão? É o que se pretende investigar. Palavras-chave: Machado de Assis, Bíblia, escravidão Introdução Há um aspecto instigante em Machado [...]: o espaço que o negro ocupa em sua obra fic- cional. O que nos impressiona é como um escritor com um tino apurado por excelência e com uma aguda capacidade de observação, vivendo num século de grandes transforma- ções políticas, econômicas e sociais, deixasse escapar esta visão, especialmente quando a questão da escravidão deveria ser sua tam- bém; se não pela questão da cor, ao menos pelo fator social, fator do qual jamais se esqui- vou seja através de sua ácida obra ficcional, seja por sua participação ativa enquanto cro- nista (Nascimento, 2002, p. 53). A obra e a história do cidadão Machado de Assis foram incorporadas, por assim dizer, pela história lite- rária do mundo branco. Houve, ao que parece, certo incômodo na associação de sua obra e de sua história de vida pessoal à condição de afrodescendente. As literaturas do século XIX foram [...] um espaço esteticamente branco, no qual pon- tificam heróis construídos a partir de uma perspectiva europeia, portadora quase sem- pre de uma axiologia cristã, mas, também, a própria tradição literária que vige no Brasil nos remete à Europa e não à África (Duarte, 2007, p. 7). Posturas consideradas científicas advogavam a de- sigualdade e a hierarquização entre as raças. O etno- centrismo, então hegemônico, era tido como verdade incontestável e entronizava a cultura branca e cristã como referência de civilização. Nesse contexto, Ma- chado viveu o rebaixamento da afrodescendência. A ascensão de um neto de escravos que se destacou na imprensa, na literatura e na máquina governamen- tal é considerada um processo de adesão ao mundo burguês. Alguns ainda notam que a ausência de he- róis negros em seus escritos fundamenta “em grande medida a tese do propalado absenteísmo machadiano quanto à escravidão e às relações interétnicas existen- tes no Brasil do século XIX” (Duarte, 2007, p. 8-9). Isso não seria uma construção predominante da recepção crítica da obra machadiana? De fato, prin- cipalmente nos anos 1930, com Mário Mattos e Lúcia * Universidade de São Paulo (usp). Endereço para correspondência: [email protected] .

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estudos semioacuteticos

issn 1980-4016

semestral

vol 6 no 2

p 77 ndash85novembro de 2010

wwwfflchuspbrdlsemioticaes

Intertextualidade biacuteblica e escravidatildeoem Machado de Assis (duas crocircnicas de maio de 1888)

Paulo Seacutergio de Proenccedila

Resumo Em 17 de maio de 1888 em accedilatildeo de graccedilas pela aboliccedilatildeo dos escravos foi celebrada uma missa coma presenccedila da Princesa Regente e outras autoridades Alusiva ao evento uma crocircnica machadiana parodia oevangelho da missa Como o primeiro evangelho biacuteblico a paroacutedia tem o seu Cristo Joatildeo Batista disciacutepulose uma paraacutebola Aleacutem dos evangelhos biacuteblicos a crocircnica menciona os livros Deuteronocircmio e EclesiastesAo superpor de forma paroacutedica eventos e personagens de sua eacutepoca aos biacuteblicos o autor provoca efeitosespeciacuteficos que fazem refletir sobre o significado dos acontecimentos retratados numa criacutetica aos poliacuteticos e aosacontecimentos que resultaram na adoccedilatildeo da aboliccedilatildeo Machado escreveu outra famosa crocircnica publicada em19 de maio de 1888 na qual natildeo faltaram alusotildees biacuteblicas para celebrar a libertaccedilatildeo do escravo Pancraacutecio Onarrador diz antecipar-se ao poder puacuteblico e liberta seu molecote escravo dando para festejar a ocasiatildeo umbanquete Imagens biacuteblicas satildeo usadas para dar realce ao evento tudo com a finalidade de projeccedilatildeo do proacuteprionarrador que natildeo esconde suas aspiraccedilotildees poliacuteticas Para essa finalidade nada melhor do que parecer cultivaros valores cristatildeos e praticar falsa benemerecircncia Qual o efeito de sentido da intertextualidade biacuteblica nessaspeccedilas de Machado em relaccedilatildeo agrave escravidatildeo Eacute o que se pretende investigar

Palavras-chave Machado de Assis Biacuteblia escravidatildeo

IntroduccedilatildeoHaacute um aspecto instigante em Machado []o espaccedilo que o negro ocupa em sua obra fic-cional O que nos impressiona eacute como umescritor com um tino apurado por excelecircnciae com uma aguda capacidade de observaccedilatildeovivendo num seacuteculo de grandes transforma-ccedilotildees poliacuteticas econocircmicas e sociais deixasseescapar esta visatildeo especialmente quando aquestatildeo da escravidatildeo deveria ser sua tam-beacutem se natildeo pela questatildeo da cor ao menospelo fator social fator do qual jamais se esqui-vou seja atraveacutes de sua aacutecida obra ficcionalseja por sua participaccedilatildeo ativa enquanto cro-nista (Nascimento 2002 p 53)

A obra e a histoacuteria do cidadatildeo Machado de Assisforam incorporadas por assim dizer pela histoacuteria lite-raacuteria do mundo branco Houve ao que parece certoincocircmodo na associaccedilatildeo de sua obra e de sua histoacuteriade vida pessoal agrave condiccedilatildeo de afrodescendente

As literaturas do seacuteculo XIX foram [] umespaccedilo esteticamente branco no qual pon-

tificam heroacuteis construiacutedos a partir de umaperspectiva europeia portadora quase sem-pre de uma axiologia cristatilde mas tambeacutem aproacutepria tradiccedilatildeo literaacuteria que vige no Brasilnos remete agrave Europa e natildeo agrave Aacutefrica (Duarte2007 p 7)

Posturas consideradas cientiacuteficas advogavam a de-sigualdade e a hierarquizaccedilatildeo entre as raccedilas O etno-centrismo entatildeo hegemocircnico era tido como verdadeincontestaacutevel e entronizava a cultura branca e cristatildecomo referecircncia de civilizaccedilatildeo Nesse contexto Ma-chado viveu o rebaixamento da afrodescendecircncia

A ascensatildeo de um neto de escravos que se destacouna imprensa na literatura e na maacutequina governamen-tal eacute considerada um processo de adesatildeo ao mundoburguecircs Alguns ainda notam que a ausecircncia de he-roacuteis negros em seus escritos fundamenta ldquoem grandemedida a tese do propalado absenteiacutesmo machadianoquanto agrave escravidatildeo e agraves relaccedilotildees intereacutetnicas existen-tes no Brasil do seacuteculo XIXrdquo (Duarte 2007 p 8-9)

Isso natildeo seria uma construccedilatildeo predominante darecepccedilatildeo criacutetica da obra machadiana De fato prin-cipalmente nos anos 1930 com Maacuterio Mattos e Luacutecia

Universidade de Satildeo Paulo (usp) Endereccedilo para correspondecircncia 〈 pproencauspbr 〉

Paulo Seacutergio de Proenccedila

Miguel Pereira tal interpretaccedilatildeo prevaleceu com res-pingos em Augusto Meyer

Duas crocircnicas de maio de 1888 escritas no centrodo furacatildeo da aboliccedilatildeo do regime escravista podemajudar a reconsiderar essa avaliaccedilatildeo Uma data de 19de maio outra de 20-21 Elas tecircm em comum natildeoapenas o tema vinculado agrave escravidatildeo mas a remis-satildeo agrave Biacuteblia e aiacute haacute um potencial encontro em que ouso que Machado faz dos escritos biacuteblicos apontariaindiacutecios de suas convicccedilotildees sobre a escravidatildeo

Usa-se o termo intertextualidade sob a perspectivateoacuterica indicada por Fiorin (2006 p 181) segundoa qual o termo deve ser aplicado ldquoapenas para os ca-sos em que a relaccedilatildeo discursiva eacute materializada emtextosrdquo Como em nosso caso consideram-se fontesbiacuteblicas a expressatildeo ldquointertextualidade biacuteblicardquo deveser entendida sob essa orientaccedilatildeo1

1 Crocircnica de 20-21 de maio de1888 (ldquoEvangelho da MissaCampalrdquo)

Esta crocircnica permaneceu desconhecida pelos estudi-osos por bom tempo Gledson (1986 p 129) natildeo vecircmotivos para se duvidar da autoria machadiana Dizele que a crocircnica ldquocomeccedila com o habitual lsquoBons Diasrsquoe se isso natildeo fosse o bastante o estilo e o conheci-mento profundo da Biacuteblia serviriam como indicaccedilatildeo deautoriardquo

Em 17 de maio de 1888 em accedilatildeo de graccedilas pelaAboliccedilatildeo foi celebrada uma missa no Campo de SatildeoCristoacutevatildeo momento em que a Princesa Regente e ou-tras autoridades se fizeram presentes A crocircnica (de20-21 de maio do mesmo ano) eacute alusiva ao evento ecomeccedila assim

BONS DIAS

Algumas pessoas pediram-me a traduccedilatildeo doevangelho que se leu na grande missa campaldo dia 17 Estes meus escritos natildeo admitemtraduccedilotildees menos ainda serviccedilos particularessatildeo palestras com os leitores e especialmentecom os leitores que natildeo tecircm que fazer Natildeoobstante em vista do momento e por exce-

ccedilatildeo darei aqui o evangelho [] (Assis 2008vol 4 p 812-814)

Para cada celebraccedilatildeo catoacutelica haacute textos biacuteblicospreviamente indicados de acordo com o calendaacuteriolituacutergico que prevecirc porccedilotildees do Antigo Testamento doNovo Testamento e do evangelho Assim a missa cam-pal deve ter tido sua porccedilatildeo lida do evangelho Aoevangelho biacuteblico se compara o evangelho comemora-tivo da aboliccedilatildeo do escravismo Como o primeiro esteuacuteltimo tem o seu Cristo o seu Joatildeo Batista e os seusdisciacutepulos2

1 No princiacutepio era Cotegipe e Cotegipe es-tava com a Regente e Cotegipe era a Regente

2 Nele estava a vida com ele viviam a Cacirc-mara e o Senado

3 Houve entatildeo um homem de Satildeo Paulochamado Antocircnio Prado o qual veio por teste-munho do que tinha de ser enviado no anoseguinte

4 E disse Antocircnio Prado O que haacute de virdepois de mim eacute o preferido porque era antesde mim

5 E ouvindo isto saiacuteram alguns sacerdotese levitas e perguntaram-lhe Quem eacutes tu

6 Eacutes tu Rio-Branco E ele respondeu Natildeoo sou Eacutes tu profeta E ele respondeu Natildeo

7 Disse-lhes Eu sou a voz do que clamano deserto Endireitai o caminho do poderporque aiacute vem o Joatildeo Alfredo (Assis 2008vol 4 p 812-813)

Inserida no corpo do escrito haacute uma paraacutebola3 quese serve das figuras da perna doente (uacutelcera) e do un-guento para tematizar a escravidatildeo aleacutem dos aspectostemaacuteticos e figurativos os de natureza formal (relativosao gecircnero paraboacutelico) satildeo emprestados e utilizados deformas variadas

Machado (Assis 2008 vol 4 p 812-813) natildeoapenas enumera personagens e eventos de forma as-seacuteptica Os versiacuteculos iniciais por exemplo (ldquo1 Noiniacutecio entatildeo era Cotegipe e Cotegipe estava com aRegente e Cotegipe foi a Regente 2 Nele estava a

1 Para a elaboraccedilatildeo do presente artigo foram consultadas A Biacuteblia de Jerusaleacutem (1983) e Biacuteblia Sagrada (1993)2 Machado (Gledson 1986 p 132-134) cita na crocircnica principalmente poliacuteticos favoraacuteveis agrave aboliccedilatildeo significativamente satildeo sete os

citados (1) Joatildeo Alfredo Presidente do Conselho no governo formado em marccedilo a quem coube decretar a completa Aboliccedilatildeo (2) Antocircnio daSilva Prado poliacutetico paulista que depois de ter apoiado a Aboliccedilatildeo mudou de posiccedilatildeo e reconheceu a sua necessidade (3) Joseacute Maria daSilva Paranhos foi o Visconde do Rio Branco em cujo governo foi aprovada a Lei do Ventre Livre a mais importante medida no sentido daAboliccedilatildeo antes de 1888 (4) Antocircnio Ferreira Viana Ministro da Justiccedila no Gabinete Joatildeo Alfredo adepto do clericalismo e caricaturadocomo um religioso (5) Luiacutes Antocircnio Vieira da Silva Visconde de Vieira da Silva foi Ministro da Marinha e importante membro da maccedilonaria(6) Rodrigo Augusto da Silva foi Ministro de Relaccedilotildees Exteriores (ldquogentiosrdquo) (7) Joseacute Fernandes da Costa Pereira era Presidente de Satildeo Pauloem 1871 (ldquoesteve comigo em 1871rdquo) Dados extraiacutedos das ldquoNotasrdquo esclarecedoras que Gledson acrescentou agrave crocircnica

3 O gecircnero paraacutebola foi muito utilizado por Jesus em suas preleccedilotildees em conformidade com a tradiccedilatildeo rabiacutenica que se servia domesmo recurso uacutetil para transmitir ideias abstratas a partir de referentes concretos

4 ldquoDestinordquo no caso natildeo estaacute tomado no sentido fatalista segundo o qual forccedilas extra-humanas conduzem os passos dos homenstrata-se do lugar e do papel que todo cidadatildeo deve ter em determinado meio social

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vidacom ele viviam a Cacircmara e o Senadordquo) indicamnatildeo soacute o perverso conuacutebio poliacutetico de interesses maso ldquoendeusamentordquo dos donos do poder no sentido emque determinam o destino4 das pessoas no caso aliberdade ou a ausecircncia dela O iniacutecio do Evangelhode Joatildeo (trecho parodiado) fala da preexistecircncia doverbo encarnado Esse detalhe sugere viacutenculos com aconstante remissatildeo aos tempos miacuteticos expressivosem Machado quase sempre associados ao mal (parecenatildeo ser assim neste caso) esses tempos miacuteticos satildeo

revividos pois tecircm retorno eterno5 reconhecido emcada nova ocorrecircncia

No Evangelho de Joatildeo o narrador reconhece em Je-sus o Cristo o salvador o ldquolibertadorrdquo do ser humanoem contraste a ldquovidardquo oferecida por Cotegipe (e pelaRegente) era a da escravidatildeo6 Isso enfatiza o con-traste entre os dois evangelhos Vejamos o trecho doEvangelho biacuteblico justaposto ao ldquoEvangelho da missacampalrdquo

Evangelho de Joatildeo capiacutetulo 1o Evangelho da missa campal

1 No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava com Deus eo Verbo era Deus 2 Ele estava no princiacutepio com Deus

1 No princiacutepio era Cotegipe e Cotegipe estava com aRegente e Cotegipe era a Regente 2 Nele estava a vidacom ele viviam a Cacircmara e o Senado

6 Houve um homem enviado por Deus cujo nome eraJoatildeo 7 Este veio como testemunha para que testificassea respeito da luz a fim de todos virem a crer por intermeacutediodele 8 Ele natildeo era a luz mas veio para que testificasseda luz

3 Houve entatildeo um homem de Satildeo Paulo chamado AntocircnioPrado o qual veio por testemunho do que tinha de serenviado no ano seguinte

15 Joatildeo testemunha a respeito dele e exclama Este eacute ode quem eu disse o que vem depois de mim tem contudoa primazia porquanto jaacute existia antes de mim

4 E disse Antocircnio Prado O que haacute de vir depois de mimeacute o preferido porque era antes de mim

19 Este foi o testemunho de Joatildeo quando os judeuslhe enviaram de Jerusaleacutem sacerdotes e levitas para lheperguntarem Quem eacutes tu 20 Ele confessou e natildeonegou confessou Eu natildeo sou o Cristo 21 Entatildeo lheperguntaram Quem eacutes pois Eacutes tu Elias Ele disse Natildeosou Eacutes tu o profeta Respondeu Natildeo

5 E ouvindo isto saiacuteram alguns sacerdotes e levitas eperguntaram-lhe Quem eacutes tu 6 Eacutes tu Rio-Branco Eele respondeu Natildeo o sou Eacutes tu profeta E ele respondeuNatildeo

23 Entatildeo ele respondeu Eu sou a voz do que clama nodeserto Endireitai o caminho do Senhor como disse oprofeta Isaiacuteas

7 Disse-lhes Eu sou a voz do que clama no desertoEndireitai o caminho do poder porque aiacute vem o JoatildeoAlfredo

28 Estas coisas se passaram em Betacircnia do outro ladodo Jordatildeo onde Joatildeo estava batizando

8 Estas coisas passaram-se no senado da banda de aleacutemdo campo da Aclamaccedilatildeo esquina da rua do Areal

29 No dia seguinte viu Joatildeo a Jesus que vinha paraele e disse Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado domundo 30 Eacute este a favor de quem eu disse apoacutes mimvem um varatildeo que tem a primazia porque jaacute existia antesde mim

9 No dia seguinte viu Antocircnio Prado a Joatildeo Alfredo quevinha para ele depois de guardar o chapeacuteu no cabide dossenadores e disse Eis aqui o que haacute de tirar os escravosdo mundo Este eacute o mesmo de quem eu disse Depois demim viraacute um homem que me seraacute preferido por que eraantes de mim

32 E Joatildeo testemunhou dizendo Vi o Espiacuterito descer doceacuteu como pomba e pousar sobre ele

10 Passados meses aconteceu que o espiacuterito da Regenteveio pairar sobre a cabeccedila de Joatildeo Alfredo e Cotegipedeixou o poder executivo e o poder executivo passou a JoatildeoAlfredo (Assis 2008 vol 4 p 812-813)

5 Conforme indica Eliade as accedilotildees humanas remontam a um ato primordial a um protoacutetipo miacutetico ocorrido na origem (ldquonaqueletempordquo ab origine) Para o homem primitivo ldquoo gesto soacute adquire significado realidade na medida em que retoma uma accedilatildeo primordialrdquo(Eliade 1981 p 19)

6 Gledson (1986 p 132) lembra que Cotegipe era antiabolicionista convicto tendo sido forccedilado a se demitir dois meses antes da LeiAacuteurea

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A primeira parte da peccedila machadiana vai ateacute o verso10 e tem por fonte o Evangelho de Joatildeo como se pocircdeverificar nos trechos citados Eacute ressaltada a combina-ccedilatildeo de embreagens (temporais espaciais e actoriais)que aproximam os tempos do passado miacutetico e do pre-sente entatildeo vivido7 A embreagem temporal eacute indicadana introduccedilatildeo da crocircnica com a menccedilatildeo agrave data da ce-lebraccedilatildeo da missa a espacial no ldquoversiacuteculo 8ordquo ldquoEstascoisas passaram-se no senado da banda de aleacutem docampo da Aclamaccedilatildeo esquina da rua do Arealrdquo a ac-torial pela menccedilatildeo dos personagens que participaramdos eventos poliacuteticos cujo desfecho foi a aboliccedilatildeo

Essas embreagens provocam uma superposiccedilatildeo doseventos (Aboliccedilatildeo e evangelho biacuteblico) o ldquolaacute-entatildeordquo seconfunde com o ldquoeu-aquirdquo da enunciaccedilatildeo a fusatildeo

anula as distacircncias espaciais e as diferenccedilas tempo-rais Assim as fontes biacuteblicas constituem uma espeacuteciede moldura que motivam e suportam a anaacutelise e inter-pretaccedilatildeo dos acontecimentos histoacutericos que resultamna libertaccedilatildeo dos escravos

Dos ldquoversiacuteculosrdquo 11 ao 16 Antonio Prado abolici-onista eacute comparado a Joatildeo Batista8 e Joatildeo Alfredoao proacuteprio Jesus Alude-se entatildeo ao trecho biacuteblicoda ldquovocaccedilatildeo dos disciacutepulosrdquo e na crocircnica o grupo dosdisciacutepulos abolicionistas eacute composto por semelhanteldquovocaccedilatildeordquo Tudo indica que a fonte para esta partenatildeo eacute mais o Evangelho de Joatildeo mas o Evangelho deMateus inclusive pela menccedilatildeo agrave ldquoigrejardquo9 registradasomente neste evangelho

Evangelho de Joatildeo capiacutetulo 4o Evangelho da missa campal

18 Caminhando junto ao mar da Galileia viudois irmatildeos Simatildeo chamado Pedro e Andreacute quelanccedilavam as redes ao mar porque eram pescadores19 E disse-lhes Vinde apoacutes mim e eu vos fareipescadores de homens

11 E Joatildeo Alfredo indo para a Galileiaa que eacuteno caminho de Botafogo mandou dizer a AntocircnioPrado que estava perto da Consolaccedilatildeo Vem que eacutesobre ti que edificarei a minha igreja

21 Passando adiante viu outros dois irmatildeos Ti-ago filho de Zebedeu e Joatildeo seu irmatildeo que es-tavam no barco em companhia de seu pai con-sertando as redes e chamou-os 22 Entatildeo elesno mesmo instante deixando o barco e seu pai oseguiram

12 Depois indo a uma cela de convento viu laacute umhomem por nome Ferreira Viana o qual descansavade uma paacutegina de Agostinho lendo outra de Ciacuteceroe disse-lhe Deixa esse livro e segue-me que embreve te farei outro Ciacutecero natildeo de romanos masde uma gente nova e Ferreira Viana despindo ohaacutebito e envergando a farda seguiu a Joatildeo Alfredo(Assis 2008 vol 4 p 813)

a ldquoGalileia eacute um famoso engenho de Pernambuco proviacutencia pela qual Joatildeo Alfredo foi Senador (o irocircnico significado religioso eacutesuficientemente claro naturalmente)rdquo (Gledson 1986 p 33)

A partir do verso 17 do ldquoEvangelho da Missa Cam-palrdquo eacute mencionada a uacutelcera por meio de paraacutebolarecurso frequentemente utilizado por Jesus em seusensinamentos

17 E respondendo todos que sim disse umdeles por paraacutebola que no ponto em que esta-vam as coisas melhor era cortar a perna quelavar a uacutelcera pois a uacutelcera ia corrompendoo sangue

18 Mas ficando Joatildeo Alfredo pensativo dis-seram os outros entre si Que teraacute ele

19 Entatildeo o mestre ouvindo a perguntadisse Prevejo que haacute de haver uma consultade sacerdotes e levitas para ver se chegam acompor certo unguento que os levitas aplica-ratildeo na uacutelcera mas natildeo temais nada ele natildeoseraacute aplicado (Assis 2008 vol 4 p 814)

Segundo Joatildeo Alfredo ldquomelhor era cortar a perna10

que lavar a uacutelcera pois a uacutelcera ia corrompendo o7 Embreagem e debreagem satildeo operaccedilotildees discursivas vinculadas agrave enunciaccedilatildeo satildeo projeccedilotildees de categorias semacircnticas (tempo espaccedilo e

pessoa) que instalam o universo de sentido conforme Bertrand (2003 p 90)8 Joatildeo Batista foi ldquoo precursorrdquo (preparou o caminho para Jesus) papel desempenhado por Antonio Prado nos bastidores da poliacutetica

que resultou na aboliccedilatildeo9 A referecircncia se encontra em Mt-18 v 16

10 A simbologia de ldquopernardquo eacute sugestiva associa-se a peacute e calcanhar Pode indicar fragilidade conforme a expressatildeo ldquocalcanhar de Aquilesrdquocunhada a partir da parte do corpo vulneraacutevel do famoso heroacutei grego Haacute tambeacutem a expressatildeo ldquogigante de peacutes de barrordquo ligada ao livrobiacuteblico de Daniel Natildeo se deve esquecer que Eugecircnia nas Memoacuterias Poacutestumas eacute a ldquoVecircnus mancardquo A perna o peacute e o calcanhar sustentam ocorpo daiacute se associarem agrave ideia de ldquobaserdquo ldquofundamentordquo A sociedade carioca (brasileira) tinha entatildeo seus fundamentos doentes

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sanguerdquo A propoacutesito do unguento o mestre previneos disciacutepulos ldquonatildeo temais nada ele natildeo seraacute aplicadordquo(v 19) Sobre a composiccedilatildeo do unguento o disciacutepuloViana lido nas escrituras diz

21 Estaacute escrito no livro de Elle Haddeba-rim tambeacutem chamado Deuteronocircmio quequando o escravo tiver servido seis anos noseacutetimo ano o dono o deixe ir livre e natildeo comas matildeos abanando senatildeo com um alforje decomida e bebida Este eacute de certo o unguentolembrado menos talvez o alforje e os seisanos11 (Assis 2008 vol 4 p 814)

Como a uacutelcera natildeo podia esperar e com a becircnccedilatildeoda Regente a Joatildeo e seus disciacutepulos ldquoforam para ascacircmaras onde apresentaram o projetordquo (v 24) Aquireside a chave de interpretaccedilatildeo da paraacutebola o ldquoun-guentordquo era o projeto da libertaccedilatildeo dos escravos12 Noentanto o remeacutedio era ineficaz porque viciado pelafalta do alforje e dos seis anos (amparo indispensaacutevel agravesobrevivecircncia dos libertos segundo a tradiccedilatildeo biacuteblicae que natildeo estava sendo observado) O unguento natildeocuraria a uacutelcera A uacutelcera corromperia o sangue Eacute oque se deduz da sequecircncia da crocircnica No Maranhatildeopor exemplo escravos inocentes foram castigados porcausa da lei (por eles inclusive desconhecida)

27 Menos no Bacabal proviacutencia do Mara-nhatildeo onde alguns homens declararam quea lei natildeo valia nada e pegando no azorra-gue castigaram os seus escravos cujo crimenessa ocasiatildeo era unicamente haver sido vo-tado uma lei de que eles natildeo sabiam nada ea proacutepria autoridade se ligou com esses ho-mens rebeldes (Assis 2008 vol 4 p 814)

De fato o unguento tinha viacutecios em sua composiccedilatildeonatildeo soacute natildeo havia alforje mas tambeacutem havia muitaviolecircncia aleacutem de ldquorebeldesrdquo senhores que se recusa-vam a aceitar e a cumprir a lei no que eram apoiadospor autoridades governamentais Por isso o unguentocorrompeu a uacutelcera E corromperia mais Vejamos ofinal da crocircnica

28 Vendo isto disse um sisudo de Babilocircniapor outro nome Carioca Ah Se estivessem

no Maranhatildeo alguns ex-escravos daqui quedepois de livres compraram tambeacutem escra-vos quatildeo menor seria a melancolia dessesque satildeo agora duas coisas ao mesmo tempoex-escravos e ex-senhores Bem diz o Eclesi-astes Algumas vezes tem o homem domiacuteniosobre outro homem para desgraccedila sua Omelhor de tudo acrescento eu eacute possuir-sea gente a si mesmo (Assis 2008 vol 4 p814)

A crocircnica constata que Babilocircnia era agora ldquoCari-ocardquo13 O versiacuteculo final combina melancolia Ecle-siastes e domiacutenio sobre outro homem A melancolianos remete a Memoacuterias Poacutestumas Braacutes Cubas movidopor ldquosede de nomeadardquo tambeacutem quis compor o seuunguento milagroso para acabar com a melancolia doshomens Quem acabou foi o proacuteprio Braacutes Menciona-se ainda o fato de que ex-escravos compravam es-cravos e com a aboliccedilatildeo tornaram-se ex-senhores eex-escravos esses fatores combinados aumentariama melancolia14 Por fim o narrador usando da pri-meira pessoa para produzir o efeito de subjetividadedaacute sinais de que rejeita o domiacutenio de homens sobreoutros homens Para isso cita o Eclesiastes (Ec 89)ldquoAlgumas vezes tem o homem domiacutenio sobre outro ho-mem para desgraccedila suardquo Grande desgraccedila eacute essapois dominar outros eacute a negaccedilatildeo da liberdade ldquodireitoinalienaacutevelrdquo

Natildeo se pode dizer que a partir desta breve paroacutediaMachado de Assis foi indiferente agrave escravidatildeo A peccedilaevoca trechos biacuteblicos do Antigo e do Novo Testamentorelacionados direta ou indiretamente agrave escravidatildeo ea partir deles suscita reflexotildees sobre a fragilidadedas motivaccedilotildees poliacutetico-ideoloacutegicas que culminaramna Aboliccedilatildeo Afinal segundo a paraacutebola da crocircnicaeacute mais vantajoso perder uma perna do que perder ocorpo todo Isso se liga diretamente agrave menccedilatildeo ao livrodo Deuteronocircmio (Elle Haddebarim) o que potildee agrave luz asreais motivaccedilotildees dos escravocratas que se recusavama oferecer alforjes aos libertos

2 Crocircnica de 19 de maio de 1888Tambeacutem estaacute voltada ao tema da escravidatildeo todapermeada por um tom irocircnico O narrador dono de

11 Elle Haddebarim eacute o nome hebraico do livro do Deuteronocircmio Os nomes dos livros da Biacuteblia cristatilde satildeo tirados da traduccedilatildeo grega dossetenta a Septuaginta A tradiccedilatildeo hebraica nomeia os livros a partir das primeiras palavras do livro O exemplar que Machado possuiacutea daBiacuteblia registrava os nomes hebraicos dos livros O trecho a que se faz alusatildeo estaacute em Dt-15 v 12-15 ldquo12 Quando um de teus irmatildeoshebreu ou hebreia te for vendido seis anos servir-te-aacute mas no seacutetimo o despediraacutes forro 13 E quando de ti o despedires forro natildeo odeixaraacutes ir vazio 14 Liberalmente lhe forneceraacutes do teu rebanho da tua eira e do teu lagar daquilo com que o SENHOR teu Deus tehouver abenccediloado lhe daraacutes 15 Lembrar-te-aacutes de que foste servo na terra do Egito e de que o SENHOR teu Deus te remiu pelo quehoje isso te ordenordquo

12 O ldquounguentordquo do evangelho era a boa nova do evangelho pregado por Jesus Nas injunccedilotildees poliacuteticas sugeridas pela crocircnica agrave parte oidealismo dos abolicionistas a libertaccedilatildeo dos escravos foi concessatildeo dos donos do poder para evitar o mal maior era preferiacutevel perder umaperna a perder o corpo todo

13 Babilocircnia eacute aqui Babilocircnia indica natildeo somente a confusatildeo de liacutenguas mas principalmente o exiacutelio e escravidatildeo Este eacute o efeito daexpressatildeo ldquoBabilocircnica cariocardquo

14 As Memoacuterias Poacutestumas apresentam o fenocircmeno no capiacutetulo LXVIII ldquoO vergalhordquo Prudecircncio escravo alforriado pelo pai de Braacutes Cubasnatildeo somente compra um escravo mas o agride em puacuteblico reproduzindo exatamente a forma de tratamento recebida do proacuteprio Braacutes

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Paulo Seacutergio de Proenccedila

escravos assume um tom ambiacuteguo e contraditoacuteriorevelador da postura da classe senhorial A senha estaacutejaacute na abertura ldquoEu pertenccedilo a uma famiacutelia de profetasapregraves coup post factum depois do gato morto [] todaa histoacuteria desta Lei de 13 de Maio estava por mimprevista tanto que na segunda-feira antes mesmodos debates tratei de alforriar um molecoterdquo (Assis2008 vol 4 p 811) Essa caracterizaccedilatildeo inicial feitapelo proacuteprio narrador o desmascara porque a liber-taccedilatildeo dos escravos se jaacute natildeo tinha acontecido poucoantes era favas contadas querendo tirar vantagensda situaccedilatildeo organiza um jantar (banquete segundoamigos) para tornar puacuteblica a decisatildeo cinco pessoascompareceram mas se noticiou que foram trinta etrecircs (alusatildeo agrave idade de Cristo) para dar ao eventoum aspecto simboacutelico O ldquobanqueterdquo motiva a alusatildeotrata-se da eucaristia que eacute tambeacutem uma refeiccedilatildeoespecial e simboacutelica de valor sacramental A euca-ristia eacute a versatildeo cristatilde da Paacutescoa dos hebreus Paraos cristatildeos a morte pascal de Cristo eacute vicaacuteria paraldquolibertarrdquo os homens do pecado Essa noccedilatildeo de mortevicaacuteria de Jesus eacute inspirada na narrativa do ecircxodo emque na ldquolibertaccedilatildeordquo dos hebreus houve a morte dosprimogecircnitos do Egito tambeacutem comemorada com umaceia tanto por judeus quanto por cristatildeos Importaaqui notar os laccedilos ldquosimboacutelicosrdquo que remetem agrave ideiade libertaccedilatildeo15

Durante o jantar da crocircnica o narrador toma apalavra

[] declarei que acompanhando as ideias pre-gadas por Cristo haacute dezoito seacuteculos restituiacuteaa liberdade ao meu escravo Pancraacutecio queentendia a que a naccedilatildeo inteira devia acom-panhar as mesmas ideias e imitar o meuexemplo finalmente que a liberdade era umdom de Deus que os homens natildeo podiamroubar sem pecado (Assis 2008 vol 4 p811)

Se as ideias de Cristo datavam jaacute de dezoito seacuteculospor que soacute entatildeo o narrador restituiacutea a liberdade aoescravo Se a liberdade era um dom de Deus ldquoqueos homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo por queele tinha escravo Essas contradiccedilotildees satildeo evidencia-das pelo proacuteprio narrador reveladoras de um mundosenhorial mal assentado ideologicamente sustentado

pelos valores do cristianismo professado apenas noniacutevel do parecer ldquoRestituirrdquo a liberdade tem o efeito deldquoconfissatildeordquo de um crime em combinaccedilatildeo com o finaldo trecho transcrito ldquoa liberdade era um dom de Deusque os homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo E senos lembramos da paroacutedia da missa campal podemosassociar a ideia de ldquopecadordquo agrave uacutelcera contaminadorada perna E quando o narrador reivindica que ldquotodaa naccedilatildeo devia acompanhar []rdquo sinaliza a dimensatildeosocial (nacional) da uacutelcera

Depois de alforriado Pancraacutecio16 foi contratado porum salaacuterio (minimum minimorum) A mudanccedila na re-laccedilatildeo econocircmica natildeo acabava com a dependecircncia e aexploraccedilatildeo ela foi historicamente necessaacuteria para amanutenccedilatildeo dos privileacutegios da classe senhorial

[] a Aboliccedilatildeo eacute relativa libertando os es-cravos natildeo se faz mais do que libertaacute-lospara o mercado de trabalho no qual seratildeocontratados e demitidos e sem duacutevida re-ceberatildeo salaacuterios miseraacuteveis - numa situaccedilatildeodessas em que a liberdade conduz a outraforma de submissatildeo dos fracos aos fortes []Machado entre ironias e ldquopilheacuteriasrdquo traz agraveatenccedilatildeo do leitor algo essencial A aboliccedilatildeonatildeo eacute um movimento da escuridatildeo para aluz mas a simples passagem de um relacio-namento econocircmico e social opressivo paraoutro (Gledson 1986 p 124)

Natildeo se alterou profundamente a relaccedilatildeo entre senhore escravo principalmente no emprego da violecircncia fiacute-sica e verbal ldquotenho-lhe despedido alguns pontapeacutesum ou outro puxatildeo de orelhas e chamo-lhe besta17

quando lhe natildeo chamo filho do Diabo18 coisas todasque ele recebe humildemente e (Deus me perdoe)creio que ateacute alegrerdquo (Assis 2008 vol 4 p 812) Essefinal eacute engenhoso ao contrapor uma eventual pontade religiosidade marcada pela expressatildeo ldquoDeus meperdoerdquo agrave violecircncia contra o escravo A engenhosidade(da narraccedilatildeo) beira a perversidade (do narrador insta-lado) quando este supotildee que poderia haver qualquersensaccedilatildeo de alegria em algueacutem ser escravo ainda maisum ldquomolecoterdquo

A crocircnica termina por alinhavar o descaramento donarrador para quem

15 Sabe-se que Jesus morreu aos 33 anos Esse ldquoaspecto simboacutelicordquo eacute significativo pois sugere que o narrador com seu ato estavasendo fiel aos ensinos de Cristo mas o que ocorria era justamente o contraacuterio

16 ldquoPancraacuteciordquo tem origem grega e ironicamente significa ldquodetentor de todos os poderesrdquo Alguns nomes de personagens machadianostecircm a mesma caracteriacutestica Eugecircnia e Dona Plaacutecida por exemplo

17 Era o tratamento que Braacutes Cubas dava a Prudecircncio na infacircncia ldquo[] era o meu cavalo de todos os dias punha a matildeo no chatildeorecebia um cordel nos queixos agrave guisa de freio eu trepava-lhe ao dorso com uma varinha na matildeo fustigava-o dava mil voltas a um eoutro lado e ele obedecia mdash algumas vezes gemendo mdash mas obedecia sem dizer palavra ou quando muito um lsquoai nhonhocircrsquo ao que euretorquia lsquoCala a boca bestarsquo rdquo (Assis 2008 vol 1 p 638) Este tratamento eacute caracteriacutestico da violecircncia fiacutesica e simboacutelica a que o escravoestava sujeito ldquoO tratamento dado ao afrodescendente passa pelo supliacutecio e pela animalizaccedilatildeo revestindo a cena de forte sentido alegoacutericoo negro eacute posto de quatro eacute o animal sobre o qual o branco monta O jogo infantil nada tem de inocente e mimetiza a posiccedilatildeo de cada umna estrutura vigente na sociedaderdquo (Duarte 2007 p 276)

18 ldquoFilho do Diabordquo estaacute na boca do narrador Filho do Diabo por quecirc Por que era negro

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estudos semioacuteticos vol 6 no 2

[] os homens puros grandes e verdadeira-mente poliacuteticos natildeo satildeo os que obedecem agravelei mas os que se antecipam a ela19 dizendoao escravo eacutes livre antes que o digam ospoderes puacuteblicos sempre retardataacuterios trocirc-pegos e incapazes de restaurar a justiccedila naterra para satisfaccedilatildeo do Ceacuteu (Gledson 1986p 124)

Na crocircnica de 26 de junho de 1888 (Assis 2008 vol4 p 812-813) a inspiraccedilatildeo vem do romance Almasmortas de Gogol em que eacute criticado de novo o oportu-nismo dos senhores de escravos que urdiam fraudesem negociaccedilotildees de escravos para serem depois elessenhores indenizados pelo poder puacuteblico O narradorse esconde na pele de um burguecircs espertalhatildeo quequer tirar proveito da situaccedilatildeo ldquoMachado universalizao drama dos escravizados ao comparaacute-los aos servosrussosrdquo (Duarte 2007 p 249)

O capiacutetulo XXXVII (ldquoDesacordo no acordordquo) de Esauacutee Jacoacute ao narrar a reaccedilatildeo dos gecircmeos por ocasiatildeo daproclamaccedilatildeo da Repuacuteblica toca de forma filosoacutefica naconcepccedilatildeo de liberdade e de escravidatildeo natildeo limitadaagraves injunccedilotildees poliacutetico-econocircmicas

A diferenccedila uacutenica entre eles dizia respeito agravesignificaccedilatildeo da reforma que para Pedro eraum ato de justiccedila e para Paulo era o iniacutecio darevoluccedilatildeo Ele mesmo o disse concluindo umdiscurso em S Paulo no dia 20 de maio ldquoAaboliccedilatildeo eacute a aurora da liberdade esperemoso sol emancipado o preto resta emancipar obrancordquo (Assis 2008 vol 1 p 1121)

Eacute digno de nota que a data da crocircnica sobre a missacampal eacute 20-21 de maio de 1888 a da crocircnica sobrePancraacutecio eacute 19 de maio de 1888 e a do discurso dePaulo eacute 20 de maio de 1888 Essa convergecircncia natildeoeacute gratuita O discurso de Paulo em Esauacute e Jacoacute decerta forma complementa e explica a conclusatildeo dacrocircnica da missa campal Parece que estamos aindana aurora da liberdade

A crocircnica de 20-21 de maio de 1888 (ldquoEvangelho daMissa Campalrdquo) parodia partes dos Evangelhos biacutebli-cos cria uma paraacutebola relativa ao tema da escravidatildeocita os livros Deuteronocircmio e Eclesiastes do AntigoTestamento Essa combinaccedilatildeo eacute coerente e convergepara a unidade temaacutetica da escravidatildeo A paroacutedia aosevangelhos emoldurando a libertaccedilatildeo motiva uma lei-tura natildeo canocircnica do proacuteprio texto biacuteblico (libertaccedilatildeoeconocircmica e poliacutetica natildeo apenas espiritual) e uma

motivaccedilatildeo biacuteblica para leitura de fatos histoacutericos Emoutras palavras o presente eacute projetado para o passadoe o passado se aproxima do presente numa fusatildeouniversalizante (efeito das embreagens temporais e es-paciais aqui referidas) que por sua vez projeta a escra-vidatildeo do quadro histoacuterico para o filosoacutefico-existencialEssa transposiccedilatildeo eacute suscitada pela menccedilatildeo ao Eclesi-astes no final da paroacutedia (v 28) ldquoAlgumas vezes temo homem domiacutenio sobre outro homem para desgraccedilasuardquo A ldquodesgraccedilardquo entatildeo muda de lado acompanhao possuidor Daiacute o discurso de um dos gecircmeos deEsauacute e Jacoacute anteriormente mencionado (publicado 16anos depois) ldquoemancipado o preto resta emancipar obrancordquo

A crocircnica de 19 de maio de 1888 tambeacutem sob moti-vaccedilatildeo biacuteblica (ldquoacompanhando as ideias pregadas porCristo haacute dezoito seacuteculos restituiacutea a liberdade ao meuescravo Pancraacutecio [] a liberdade era um dom de Deusque os homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo) ex-plora as ambiguidades do narrador que ldquoparecerdquo seguiros preceitos biacuteblicos ao libertar seu escravo contudoisso natildeo passa de lance teatral de estrateacutegia poliacuteticaNesse jogo de ambiguidades o fundo biacuteblico sustentauma denuacutencia velada opera um desmascaramento daideologia dos senhores de escravos

3 Consideraccedilotildees adicionaisMachado foi omisso em relaccedilatildeo agrave escravidatildeo comopensaram alguns criacuteticos A julgar pelas crocircnicas ana-lisadas natildeo Eacute claro que haacute outros escritos do autorrelativos ao tema natildeo mencionados por natildeo teremviacutenculos diretos com a Biacuteblia Mas com seguranccedilapode-se afirmar que de fato natildeo foi ele indiferenteIsso jaacute tinha sido percebido por Magalhatildees Juacutenior20 nadeacutecada de 1950 quando comeccedilou a cair por terra a tesedo absenteiacutesmo machadiano Depois de MagalhatildeesJuacutenior outros autores como Brito Broca AstrojildoPereira Raimundo Faoro Roberto Schwarz e maisrecentemente Sidney Chalhoub21 contribuiacuteram parareconhecer que haacute em Machado tratamento conscientedos dilemas de seu tempo Schwarz22 por exemploldquoanalisa a inserccedilatildeo histoacuterica da obra a partir de seusviacutenculos estruturais com o modo e organizaccedilatildeo da so-ciedade brasileira no Segundo Reinadordquo (Duarte 2007p 263) Gledson (1986 p 14) por sua vez apontaa relaccedilatildeo da obra com os principais fatos histoacutericosda eacutepoca Ele indica o caraacuteter enganoso do realismomachadiano que exige leitura atenta das entrelinhas

Chalhoub23 estuda pareceres e documentos de Ma-chado na ldquoarena de lutardquo da aplicaccedilatildeo da Lei de 28

19 Nisso reside a contradiccedilatildeo do narrador pois a crocircnica se inicia assim ldquoEu pertenccedilo a uma famiacutelia de profetas apregraves coup post factumdepois do gato morto []rdquo

20 Na obra Machado de Assis desconhecido haacute um capiacutetulo intitulado ldquoMachado de Assis e a aboliccedilatildeordquo (Raimundo Magalhatildees JrMachado de Assis desconhecido Satildeo Paulo Lisa-Livros Irradiantes 1971)

21 Sidney Chalhoub Machado de Assis historiador Satildeo Paulo Companhia das Letras 200322 Roberto Schwarz Um mestre na periferia do capitalismo Machado de Assis Satildeo Paulo Duas Cidades Editora 34 200023 Chalhoub Op cit

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Paulo Seacutergio de Proenccedila

de setembro de 1871 (a Lei do Ventre Livre) Emseu exame com o olhar de historiador o pesquisadoranalisou documentos que circularam na burocraciaimperial Machado fez de seu posto uma trincheiracontra os desmandos dos senhores de escravos tendoemitido pareceres favoraacuteveis a escravos coerentes como espiacuterito da liberdade e da legalidade Pelo contraacuterionatildeo haacute nenhuma evidecircncia em sua obra de que houveapoio velado ou ostensivo agrave escravidatildeo ldquoNos escritosmachadianos natildeo se vecirc em nenhum momento palavrasde apoio mesmo que impliacutecito ou subtendido agrave escra-vidatildeo Nem se encontram os estereoacutetipos recorrentescujo foco eacute a desumanizaccedilatildeo dos afrodescendentesrdquo(Duarte 2007 p 242-243)

A rarefeita presenccedila do negro em seus escritos eacute cri-ticada eacute verdade mas pelos que natildeo compreenderamos artifiacutecios do ficcionista Basta considerar as criacuteticasque fazia ao regime escravista a pena do cronista e seteraacute uma demonstraccedilatildeo de sua firmeza e convicccedilatildeo arespeito do drama dos escravos

Consideraccedilotildees finaisAtendo-nos agraves crocircnicas apresentadas podemos dizerque as peccedilas se articulam sob uma ambiguidade nar-rativa reflexo da accedilatildeo poliacutetica da classe senhorialescravista representada pelo narrador da crocircnica doescravo Pancraacutecio Schwarz aponta o fenocircmeno deque em Machado a forma de narrar estaacute em corres-pondecircncia com o funcionamento da sociedade que eacuteretratada A brasilidade o vieacutes nacional ldquotem de serdescrito como uma formardquo segundo Schwarz (2000p 10-11) A forma narrativa de Machado estaacute emjogo com o funcionamento da sociedade brasileira dotempo Entatildeo a ambiguidade e a contradiccedilatildeo narrati-vas mais ostensivas na crocircnica de 19 de novembro de1888 estatildeo em correspondecircncia com a ambiguidadepoliacutetica da classe senhorial A crocircnica potildee agraves escacircn-caras o oportunismo de senhores de escravos que seservem do ato de libertaccedilatildeo para dele tirarem o maiorproveito possiacutevel A aboliccedilatildeo natildeo eacute ato humanitaacuterio deconsciecircncia ideoloacutegica mas de simples oportunismo

Nesse quadro o uso e a presenccedila da Biacuteblia comoportadora dos elementos que sustentam a hegemoniacristatilde-catoacutelica participam da ambiguidade da tensatildeoldquoser vs parecerrdquo (proacutepria da tradiccedilatildeo poliacutetica brasileira)a elite senhorial ldquopareciardquo seguir os preceitos biacuteblicos

Pode haver duas possibilidades de avaliaccedilatildeo doldquoEvangelho da missa campalrdquo Uma primeira nega-tiva a elite poliacutetica (sacerdotes e levitas) em lancede oportunismo decreta a libertaccedilatildeo dos escravospara preservar o corpo ainda que com perda da pernarevela-se o perverso conuacutebio poliacutetico de interesses eo ldquoendeusamentordquo dos donos do poder A segundapositiva a libertaccedilatildeo dos escravos plena era de fatoa concretizaccedilatildeo da mensagem do evangelho os aboli-cionistas eram verdadeiros ldquodisciacutepulosrdquo a aboliccedilatildeo era

a versatildeo moderna do verdadeiro evangelho A possede outra pessoa eacute o grande pecado que corrompe osangue o remeacutedio contra a melancolia era natildeo ser nemex-escravo nem ex-senhor

Seria possiacutevel conciliar as duas leituras Parece quesim se forem considerados os elementos ambiacuteguossobretudo da crocircnica de 19 de maio de 1888 Uma ououtra possibilidade projeta ecircnfase aos escritos biacuteblicosinterpretados natildeo como depoacutesito de dogmas controla-dos pela religiatildeo mas como inspiradores de liberdadeE foi com a liberdade de um ficcionista que Machadousou a Biacuteblia

Referecircncias

A Biacuteblia de Jerusaleacutem1983 Satildeo Paulo Paulinas

Assis Machado de2008 Obra completa em quatro volumes Rio deJaneiro Nova Aguilar

Bertrand Denis2003 Caminhos da semioacutetica literaacuteria Bauru SPEdusc

Biacuteblia Sagrada1993 Traduccedilatildeo de Joatildeo Ferreira de Almeida SatildeoPaulo Sociedade Biacuteblica do Brasil

Duarte Eduardo de Assis2007 Machado de Assis afro-descendente Rio deJaneiroBelo Horizonte PallasCrisaacutelida

Eliade Mircea1981 O mito do eterno retorno arqueacutetipos e repeti-ccedilatildeo Lisboa Ediccedilotildees 70

Fiorin Joseacute Luiz2006 Interdiscursividade e intertextualidade InBrait Beth (Org) Bakhtin outros conceitos-chaveSatildeo Paulo Contexto

Gledson John1986 Machado de Assis ficccedilatildeo e histoacuteria Rio deJaneiro Paz e Terra

Nascimento Gizecirclda Melo do2002 Machado Trecircs momentos negros Terraroxa e outras terras Revista de Estudos Li-teraacuterios Volume 2 p 53-62 Disponiacutevel em〈 httpwwwuelbrcchposletrasterraroxa 〉 Acesso em7 dez 2009

Schwarz Roberto2000 Um mestre na periferia do capitalismo Ma-chado de Assis Satildeo Paulo Duas CidadesEditora34

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Dados para indexaccedilatildeo em liacutengua estrangeira

Proenccedila Paulo Seacutergio deBiblical Intertextuality and Slavery in Machado de Assis (Two Chronicles of

May 1888)Estudos Semioacuteticos vol 6 n 2 (2010) p 77-85

issn 1980-4016

Abstract On May 17th 1988 during Thanksgiving for the abolition of slaves a Mass was celebrated in thepresence of the Regent Princess and other authorities In allusion to the event a Machadian chronicle parodiesthe gospel of the Mass Just like the first biblical gospel the parody has its Christ John the Baptist and thedisciples in addition to a parable Besides the biblical gospels the chronicle mentions the books Deuteronomy andEcclesiastes The author provokes particular effects as he superposes in a parodic way the events and charactersof his epoch to the biblical ones that leads one to ponder about the meaning of the events portrayed in a criticto the politicians and towards the events that resulted in the adoption of the abolition Machado wrote anotherfamous chronicle published on May 19th 1888 to which biblical allusions were not lacking to celebrate the freeingof the slave Pancraacutecio The narrator claims to anticipate the government measures and sets free his slave lad andoffers a banquet in order to celebrate the occasion Biblical images are used to highlight the event mdash everythingaiming at drawing attention to the narrator who does not conceal his political aspirations achieving them nothingbetter than pretending to follow Christian values and pretending to be good What is the sense effect of biblicalintertextuality in these plays by Machado regarding slavery That is what we intend to investigate

Keywords Machado de Assis Bible slavery

Como citar este artigo

Proenccedila Paulo Seacutergio de Intertextualidade biacuteblica eescravidatildeo em Machado de Assis (duas crocircnicas de maiode 1888) Estudos Semioacuteticos [on-line] Disponiacutevel em〈 httpwwwfflchuspbrdlsemioticaes 〉 Editores Respon-saacuteveis Francisco E S Merccedilon e Mariana Luz P deBarros Volume 6 Nuacutemero 2 Satildeo Paulo novembro de2010 p 77ndash85 Acesso em ldquodiamecircsanordquo

Data de recebimento do artigo 20112009

Data de sua aprovaccedilatildeo 10042010

  • Introduccedilatildeo
  • Crocircnica de 20-21 de maio de 1888 (``Evangelho da Missa Campal)
  • Crocircnica de 19 de maio de 1888
  • Consideraccedilotildees adicionais
  • Consideraccedilotildees finais
  • Referecircncias
Page 2: Intertextualidade bíblica e escravidão em Machado de Assis

Paulo Seacutergio de Proenccedila

Miguel Pereira tal interpretaccedilatildeo prevaleceu com res-pingos em Augusto Meyer

Duas crocircnicas de maio de 1888 escritas no centrodo furacatildeo da aboliccedilatildeo do regime escravista podemajudar a reconsiderar essa avaliaccedilatildeo Uma data de 19de maio outra de 20-21 Elas tecircm em comum natildeoapenas o tema vinculado agrave escravidatildeo mas a remis-satildeo agrave Biacuteblia e aiacute haacute um potencial encontro em que ouso que Machado faz dos escritos biacuteblicos apontariaindiacutecios de suas convicccedilotildees sobre a escravidatildeo

Usa-se o termo intertextualidade sob a perspectivateoacuterica indicada por Fiorin (2006 p 181) segundoa qual o termo deve ser aplicado ldquoapenas para os ca-sos em que a relaccedilatildeo discursiva eacute materializada emtextosrdquo Como em nosso caso consideram-se fontesbiacuteblicas a expressatildeo ldquointertextualidade biacuteblicardquo deveser entendida sob essa orientaccedilatildeo1

1 Crocircnica de 20-21 de maio de1888 (ldquoEvangelho da MissaCampalrdquo)

Esta crocircnica permaneceu desconhecida pelos estudi-osos por bom tempo Gledson (1986 p 129) natildeo vecircmotivos para se duvidar da autoria machadiana Dizele que a crocircnica ldquocomeccedila com o habitual lsquoBons Diasrsquoe se isso natildeo fosse o bastante o estilo e o conheci-mento profundo da Biacuteblia serviriam como indicaccedilatildeo deautoriardquo

Em 17 de maio de 1888 em accedilatildeo de graccedilas pelaAboliccedilatildeo foi celebrada uma missa no Campo de SatildeoCristoacutevatildeo momento em que a Princesa Regente e ou-tras autoridades se fizeram presentes A crocircnica (de20-21 de maio do mesmo ano) eacute alusiva ao evento ecomeccedila assim

BONS DIAS

Algumas pessoas pediram-me a traduccedilatildeo doevangelho que se leu na grande missa campaldo dia 17 Estes meus escritos natildeo admitemtraduccedilotildees menos ainda serviccedilos particularessatildeo palestras com os leitores e especialmentecom os leitores que natildeo tecircm que fazer Natildeoobstante em vista do momento e por exce-

ccedilatildeo darei aqui o evangelho [] (Assis 2008vol 4 p 812-814)

Para cada celebraccedilatildeo catoacutelica haacute textos biacuteblicospreviamente indicados de acordo com o calendaacuteriolituacutergico que prevecirc porccedilotildees do Antigo Testamento doNovo Testamento e do evangelho Assim a missa cam-pal deve ter tido sua porccedilatildeo lida do evangelho Aoevangelho biacuteblico se compara o evangelho comemora-tivo da aboliccedilatildeo do escravismo Como o primeiro esteuacuteltimo tem o seu Cristo o seu Joatildeo Batista e os seusdisciacutepulos2

1 No princiacutepio era Cotegipe e Cotegipe es-tava com a Regente e Cotegipe era a Regente

2 Nele estava a vida com ele viviam a Cacirc-mara e o Senado

3 Houve entatildeo um homem de Satildeo Paulochamado Antocircnio Prado o qual veio por teste-munho do que tinha de ser enviado no anoseguinte

4 E disse Antocircnio Prado O que haacute de virdepois de mim eacute o preferido porque era antesde mim

5 E ouvindo isto saiacuteram alguns sacerdotese levitas e perguntaram-lhe Quem eacutes tu

6 Eacutes tu Rio-Branco E ele respondeu Natildeoo sou Eacutes tu profeta E ele respondeu Natildeo

7 Disse-lhes Eu sou a voz do que clamano deserto Endireitai o caminho do poderporque aiacute vem o Joatildeo Alfredo (Assis 2008vol 4 p 812-813)

Inserida no corpo do escrito haacute uma paraacutebola3 quese serve das figuras da perna doente (uacutelcera) e do un-guento para tematizar a escravidatildeo aleacutem dos aspectostemaacuteticos e figurativos os de natureza formal (relativosao gecircnero paraboacutelico) satildeo emprestados e utilizados deformas variadas

Machado (Assis 2008 vol 4 p 812-813) natildeoapenas enumera personagens e eventos de forma as-seacuteptica Os versiacuteculos iniciais por exemplo (ldquo1 Noiniacutecio entatildeo era Cotegipe e Cotegipe estava com aRegente e Cotegipe foi a Regente 2 Nele estava a

1 Para a elaboraccedilatildeo do presente artigo foram consultadas A Biacuteblia de Jerusaleacutem (1983) e Biacuteblia Sagrada (1993)2 Machado (Gledson 1986 p 132-134) cita na crocircnica principalmente poliacuteticos favoraacuteveis agrave aboliccedilatildeo significativamente satildeo sete os

citados (1) Joatildeo Alfredo Presidente do Conselho no governo formado em marccedilo a quem coube decretar a completa Aboliccedilatildeo (2) Antocircnio daSilva Prado poliacutetico paulista que depois de ter apoiado a Aboliccedilatildeo mudou de posiccedilatildeo e reconheceu a sua necessidade (3) Joseacute Maria daSilva Paranhos foi o Visconde do Rio Branco em cujo governo foi aprovada a Lei do Ventre Livre a mais importante medida no sentido daAboliccedilatildeo antes de 1888 (4) Antocircnio Ferreira Viana Ministro da Justiccedila no Gabinete Joatildeo Alfredo adepto do clericalismo e caricaturadocomo um religioso (5) Luiacutes Antocircnio Vieira da Silva Visconde de Vieira da Silva foi Ministro da Marinha e importante membro da maccedilonaria(6) Rodrigo Augusto da Silva foi Ministro de Relaccedilotildees Exteriores (ldquogentiosrdquo) (7) Joseacute Fernandes da Costa Pereira era Presidente de Satildeo Pauloem 1871 (ldquoesteve comigo em 1871rdquo) Dados extraiacutedos das ldquoNotasrdquo esclarecedoras que Gledson acrescentou agrave crocircnica

3 O gecircnero paraacutebola foi muito utilizado por Jesus em suas preleccedilotildees em conformidade com a tradiccedilatildeo rabiacutenica que se servia domesmo recurso uacutetil para transmitir ideias abstratas a partir de referentes concretos

4 ldquoDestinordquo no caso natildeo estaacute tomado no sentido fatalista segundo o qual forccedilas extra-humanas conduzem os passos dos homenstrata-se do lugar e do papel que todo cidadatildeo deve ter em determinado meio social

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estudos semioacuteticos vol 6 no 2

vidacom ele viviam a Cacircmara e o Senadordquo) indicamnatildeo soacute o perverso conuacutebio poliacutetico de interesses maso ldquoendeusamentordquo dos donos do poder no sentido emque determinam o destino4 das pessoas no caso aliberdade ou a ausecircncia dela O iniacutecio do Evangelhode Joatildeo (trecho parodiado) fala da preexistecircncia doverbo encarnado Esse detalhe sugere viacutenculos com aconstante remissatildeo aos tempos miacuteticos expressivosem Machado quase sempre associados ao mal (parecenatildeo ser assim neste caso) esses tempos miacuteticos satildeo

revividos pois tecircm retorno eterno5 reconhecido emcada nova ocorrecircncia

No Evangelho de Joatildeo o narrador reconhece em Je-sus o Cristo o salvador o ldquolibertadorrdquo do ser humanoem contraste a ldquovidardquo oferecida por Cotegipe (e pelaRegente) era a da escravidatildeo6 Isso enfatiza o con-traste entre os dois evangelhos Vejamos o trecho doEvangelho biacuteblico justaposto ao ldquoEvangelho da missacampalrdquo

Evangelho de Joatildeo capiacutetulo 1o Evangelho da missa campal

1 No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava com Deus eo Verbo era Deus 2 Ele estava no princiacutepio com Deus

1 No princiacutepio era Cotegipe e Cotegipe estava com aRegente e Cotegipe era a Regente 2 Nele estava a vidacom ele viviam a Cacircmara e o Senado

6 Houve um homem enviado por Deus cujo nome eraJoatildeo 7 Este veio como testemunha para que testificassea respeito da luz a fim de todos virem a crer por intermeacutediodele 8 Ele natildeo era a luz mas veio para que testificasseda luz

3 Houve entatildeo um homem de Satildeo Paulo chamado AntocircnioPrado o qual veio por testemunho do que tinha de serenviado no ano seguinte

15 Joatildeo testemunha a respeito dele e exclama Este eacute ode quem eu disse o que vem depois de mim tem contudoa primazia porquanto jaacute existia antes de mim

4 E disse Antocircnio Prado O que haacute de vir depois de mimeacute o preferido porque era antes de mim

19 Este foi o testemunho de Joatildeo quando os judeuslhe enviaram de Jerusaleacutem sacerdotes e levitas para lheperguntarem Quem eacutes tu 20 Ele confessou e natildeonegou confessou Eu natildeo sou o Cristo 21 Entatildeo lheperguntaram Quem eacutes pois Eacutes tu Elias Ele disse Natildeosou Eacutes tu o profeta Respondeu Natildeo

5 E ouvindo isto saiacuteram alguns sacerdotes e levitas eperguntaram-lhe Quem eacutes tu 6 Eacutes tu Rio-Branco Eele respondeu Natildeo o sou Eacutes tu profeta E ele respondeuNatildeo

23 Entatildeo ele respondeu Eu sou a voz do que clama nodeserto Endireitai o caminho do Senhor como disse oprofeta Isaiacuteas

7 Disse-lhes Eu sou a voz do que clama no desertoEndireitai o caminho do poder porque aiacute vem o JoatildeoAlfredo

28 Estas coisas se passaram em Betacircnia do outro ladodo Jordatildeo onde Joatildeo estava batizando

8 Estas coisas passaram-se no senado da banda de aleacutemdo campo da Aclamaccedilatildeo esquina da rua do Areal

29 No dia seguinte viu Joatildeo a Jesus que vinha paraele e disse Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado domundo 30 Eacute este a favor de quem eu disse apoacutes mimvem um varatildeo que tem a primazia porque jaacute existia antesde mim

9 No dia seguinte viu Antocircnio Prado a Joatildeo Alfredo quevinha para ele depois de guardar o chapeacuteu no cabide dossenadores e disse Eis aqui o que haacute de tirar os escravosdo mundo Este eacute o mesmo de quem eu disse Depois demim viraacute um homem que me seraacute preferido por que eraantes de mim

32 E Joatildeo testemunhou dizendo Vi o Espiacuterito descer doceacuteu como pomba e pousar sobre ele

10 Passados meses aconteceu que o espiacuterito da Regenteveio pairar sobre a cabeccedila de Joatildeo Alfredo e Cotegipedeixou o poder executivo e o poder executivo passou a JoatildeoAlfredo (Assis 2008 vol 4 p 812-813)

5 Conforme indica Eliade as accedilotildees humanas remontam a um ato primordial a um protoacutetipo miacutetico ocorrido na origem (ldquonaqueletempordquo ab origine) Para o homem primitivo ldquoo gesto soacute adquire significado realidade na medida em que retoma uma accedilatildeo primordialrdquo(Eliade 1981 p 19)

6 Gledson (1986 p 132) lembra que Cotegipe era antiabolicionista convicto tendo sido forccedilado a se demitir dois meses antes da LeiAacuteurea

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Paulo Seacutergio de Proenccedila

A primeira parte da peccedila machadiana vai ateacute o verso10 e tem por fonte o Evangelho de Joatildeo como se pocircdeverificar nos trechos citados Eacute ressaltada a combina-ccedilatildeo de embreagens (temporais espaciais e actoriais)que aproximam os tempos do passado miacutetico e do pre-sente entatildeo vivido7 A embreagem temporal eacute indicadana introduccedilatildeo da crocircnica com a menccedilatildeo agrave data da ce-lebraccedilatildeo da missa a espacial no ldquoversiacuteculo 8ordquo ldquoEstascoisas passaram-se no senado da banda de aleacutem docampo da Aclamaccedilatildeo esquina da rua do Arealrdquo a ac-torial pela menccedilatildeo dos personagens que participaramdos eventos poliacuteticos cujo desfecho foi a aboliccedilatildeo

Essas embreagens provocam uma superposiccedilatildeo doseventos (Aboliccedilatildeo e evangelho biacuteblico) o ldquolaacute-entatildeordquo seconfunde com o ldquoeu-aquirdquo da enunciaccedilatildeo a fusatildeo

anula as distacircncias espaciais e as diferenccedilas tempo-rais Assim as fontes biacuteblicas constituem uma espeacuteciede moldura que motivam e suportam a anaacutelise e inter-pretaccedilatildeo dos acontecimentos histoacutericos que resultamna libertaccedilatildeo dos escravos

Dos ldquoversiacuteculosrdquo 11 ao 16 Antonio Prado abolici-onista eacute comparado a Joatildeo Batista8 e Joatildeo Alfredoao proacuteprio Jesus Alude-se entatildeo ao trecho biacuteblicoda ldquovocaccedilatildeo dos disciacutepulosrdquo e na crocircnica o grupo dosdisciacutepulos abolicionistas eacute composto por semelhanteldquovocaccedilatildeordquo Tudo indica que a fonte para esta partenatildeo eacute mais o Evangelho de Joatildeo mas o Evangelho deMateus inclusive pela menccedilatildeo agrave ldquoigrejardquo9 registradasomente neste evangelho

Evangelho de Joatildeo capiacutetulo 4o Evangelho da missa campal

18 Caminhando junto ao mar da Galileia viudois irmatildeos Simatildeo chamado Pedro e Andreacute quelanccedilavam as redes ao mar porque eram pescadores19 E disse-lhes Vinde apoacutes mim e eu vos fareipescadores de homens

11 E Joatildeo Alfredo indo para a Galileiaa que eacuteno caminho de Botafogo mandou dizer a AntocircnioPrado que estava perto da Consolaccedilatildeo Vem que eacutesobre ti que edificarei a minha igreja

21 Passando adiante viu outros dois irmatildeos Ti-ago filho de Zebedeu e Joatildeo seu irmatildeo que es-tavam no barco em companhia de seu pai con-sertando as redes e chamou-os 22 Entatildeo elesno mesmo instante deixando o barco e seu pai oseguiram

12 Depois indo a uma cela de convento viu laacute umhomem por nome Ferreira Viana o qual descansavade uma paacutegina de Agostinho lendo outra de Ciacuteceroe disse-lhe Deixa esse livro e segue-me que embreve te farei outro Ciacutecero natildeo de romanos masde uma gente nova e Ferreira Viana despindo ohaacutebito e envergando a farda seguiu a Joatildeo Alfredo(Assis 2008 vol 4 p 813)

a ldquoGalileia eacute um famoso engenho de Pernambuco proviacutencia pela qual Joatildeo Alfredo foi Senador (o irocircnico significado religioso eacutesuficientemente claro naturalmente)rdquo (Gledson 1986 p 33)

A partir do verso 17 do ldquoEvangelho da Missa Cam-palrdquo eacute mencionada a uacutelcera por meio de paraacutebolarecurso frequentemente utilizado por Jesus em seusensinamentos

17 E respondendo todos que sim disse umdeles por paraacutebola que no ponto em que esta-vam as coisas melhor era cortar a perna quelavar a uacutelcera pois a uacutelcera ia corrompendoo sangue

18 Mas ficando Joatildeo Alfredo pensativo dis-seram os outros entre si Que teraacute ele

19 Entatildeo o mestre ouvindo a perguntadisse Prevejo que haacute de haver uma consultade sacerdotes e levitas para ver se chegam acompor certo unguento que os levitas aplica-ratildeo na uacutelcera mas natildeo temais nada ele natildeoseraacute aplicado (Assis 2008 vol 4 p 814)

Segundo Joatildeo Alfredo ldquomelhor era cortar a perna10

que lavar a uacutelcera pois a uacutelcera ia corrompendo o7 Embreagem e debreagem satildeo operaccedilotildees discursivas vinculadas agrave enunciaccedilatildeo satildeo projeccedilotildees de categorias semacircnticas (tempo espaccedilo e

pessoa) que instalam o universo de sentido conforme Bertrand (2003 p 90)8 Joatildeo Batista foi ldquoo precursorrdquo (preparou o caminho para Jesus) papel desempenhado por Antonio Prado nos bastidores da poliacutetica

que resultou na aboliccedilatildeo9 A referecircncia se encontra em Mt-18 v 16

10 A simbologia de ldquopernardquo eacute sugestiva associa-se a peacute e calcanhar Pode indicar fragilidade conforme a expressatildeo ldquocalcanhar de Aquilesrdquocunhada a partir da parte do corpo vulneraacutevel do famoso heroacutei grego Haacute tambeacutem a expressatildeo ldquogigante de peacutes de barrordquo ligada ao livrobiacuteblico de Daniel Natildeo se deve esquecer que Eugecircnia nas Memoacuterias Poacutestumas eacute a ldquoVecircnus mancardquo A perna o peacute e o calcanhar sustentam ocorpo daiacute se associarem agrave ideia de ldquobaserdquo ldquofundamentordquo A sociedade carioca (brasileira) tinha entatildeo seus fundamentos doentes

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estudos semioacuteticos vol 6 no 2

sanguerdquo A propoacutesito do unguento o mestre previneos disciacutepulos ldquonatildeo temais nada ele natildeo seraacute aplicadordquo(v 19) Sobre a composiccedilatildeo do unguento o disciacutepuloViana lido nas escrituras diz

21 Estaacute escrito no livro de Elle Haddeba-rim tambeacutem chamado Deuteronocircmio quequando o escravo tiver servido seis anos noseacutetimo ano o dono o deixe ir livre e natildeo comas matildeos abanando senatildeo com um alforje decomida e bebida Este eacute de certo o unguentolembrado menos talvez o alforje e os seisanos11 (Assis 2008 vol 4 p 814)

Como a uacutelcera natildeo podia esperar e com a becircnccedilatildeoda Regente a Joatildeo e seus disciacutepulos ldquoforam para ascacircmaras onde apresentaram o projetordquo (v 24) Aquireside a chave de interpretaccedilatildeo da paraacutebola o ldquoun-guentordquo era o projeto da libertaccedilatildeo dos escravos12 Noentanto o remeacutedio era ineficaz porque viciado pelafalta do alforje e dos seis anos (amparo indispensaacutevel agravesobrevivecircncia dos libertos segundo a tradiccedilatildeo biacuteblicae que natildeo estava sendo observado) O unguento natildeocuraria a uacutelcera A uacutelcera corromperia o sangue Eacute oque se deduz da sequecircncia da crocircnica No Maranhatildeopor exemplo escravos inocentes foram castigados porcausa da lei (por eles inclusive desconhecida)

27 Menos no Bacabal proviacutencia do Mara-nhatildeo onde alguns homens declararam quea lei natildeo valia nada e pegando no azorra-gue castigaram os seus escravos cujo crimenessa ocasiatildeo era unicamente haver sido vo-tado uma lei de que eles natildeo sabiam nada ea proacutepria autoridade se ligou com esses ho-mens rebeldes (Assis 2008 vol 4 p 814)

De fato o unguento tinha viacutecios em sua composiccedilatildeonatildeo soacute natildeo havia alforje mas tambeacutem havia muitaviolecircncia aleacutem de ldquorebeldesrdquo senhores que se recusa-vam a aceitar e a cumprir a lei no que eram apoiadospor autoridades governamentais Por isso o unguentocorrompeu a uacutelcera E corromperia mais Vejamos ofinal da crocircnica

28 Vendo isto disse um sisudo de Babilocircniapor outro nome Carioca Ah Se estivessem

no Maranhatildeo alguns ex-escravos daqui quedepois de livres compraram tambeacutem escra-vos quatildeo menor seria a melancolia dessesque satildeo agora duas coisas ao mesmo tempoex-escravos e ex-senhores Bem diz o Eclesi-astes Algumas vezes tem o homem domiacuteniosobre outro homem para desgraccedila sua Omelhor de tudo acrescento eu eacute possuir-sea gente a si mesmo (Assis 2008 vol 4 p814)

A crocircnica constata que Babilocircnia era agora ldquoCari-ocardquo13 O versiacuteculo final combina melancolia Ecle-siastes e domiacutenio sobre outro homem A melancolianos remete a Memoacuterias Poacutestumas Braacutes Cubas movidopor ldquosede de nomeadardquo tambeacutem quis compor o seuunguento milagroso para acabar com a melancolia doshomens Quem acabou foi o proacuteprio Braacutes Menciona-se ainda o fato de que ex-escravos compravam es-cravos e com a aboliccedilatildeo tornaram-se ex-senhores eex-escravos esses fatores combinados aumentariama melancolia14 Por fim o narrador usando da pri-meira pessoa para produzir o efeito de subjetividadedaacute sinais de que rejeita o domiacutenio de homens sobreoutros homens Para isso cita o Eclesiastes (Ec 89)ldquoAlgumas vezes tem o homem domiacutenio sobre outro ho-mem para desgraccedila suardquo Grande desgraccedila eacute essapois dominar outros eacute a negaccedilatildeo da liberdade ldquodireitoinalienaacutevelrdquo

Natildeo se pode dizer que a partir desta breve paroacutediaMachado de Assis foi indiferente agrave escravidatildeo A peccedilaevoca trechos biacuteblicos do Antigo e do Novo Testamentorelacionados direta ou indiretamente agrave escravidatildeo ea partir deles suscita reflexotildees sobre a fragilidadedas motivaccedilotildees poliacutetico-ideoloacutegicas que culminaramna Aboliccedilatildeo Afinal segundo a paraacutebola da crocircnicaeacute mais vantajoso perder uma perna do que perder ocorpo todo Isso se liga diretamente agrave menccedilatildeo ao livrodo Deuteronocircmio (Elle Haddebarim) o que potildee agrave luz asreais motivaccedilotildees dos escravocratas que se recusavama oferecer alforjes aos libertos

2 Crocircnica de 19 de maio de 1888Tambeacutem estaacute voltada ao tema da escravidatildeo todapermeada por um tom irocircnico O narrador dono de

11 Elle Haddebarim eacute o nome hebraico do livro do Deuteronocircmio Os nomes dos livros da Biacuteblia cristatilde satildeo tirados da traduccedilatildeo grega dossetenta a Septuaginta A tradiccedilatildeo hebraica nomeia os livros a partir das primeiras palavras do livro O exemplar que Machado possuiacutea daBiacuteblia registrava os nomes hebraicos dos livros O trecho a que se faz alusatildeo estaacute em Dt-15 v 12-15 ldquo12 Quando um de teus irmatildeoshebreu ou hebreia te for vendido seis anos servir-te-aacute mas no seacutetimo o despediraacutes forro 13 E quando de ti o despedires forro natildeo odeixaraacutes ir vazio 14 Liberalmente lhe forneceraacutes do teu rebanho da tua eira e do teu lagar daquilo com que o SENHOR teu Deus tehouver abenccediloado lhe daraacutes 15 Lembrar-te-aacutes de que foste servo na terra do Egito e de que o SENHOR teu Deus te remiu pelo quehoje isso te ordenordquo

12 O ldquounguentordquo do evangelho era a boa nova do evangelho pregado por Jesus Nas injunccedilotildees poliacuteticas sugeridas pela crocircnica agrave parte oidealismo dos abolicionistas a libertaccedilatildeo dos escravos foi concessatildeo dos donos do poder para evitar o mal maior era preferiacutevel perder umaperna a perder o corpo todo

13 Babilocircnia eacute aqui Babilocircnia indica natildeo somente a confusatildeo de liacutenguas mas principalmente o exiacutelio e escravidatildeo Este eacute o efeito daexpressatildeo ldquoBabilocircnica cariocardquo

14 As Memoacuterias Poacutestumas apresentam o fenocircmeno no capiacutetulo LXVIII ldquoO vergalhordquo Prudecircncio escravo alforriado pelo pai de Braacutes Cubasnatildeo somente compra um escravo mas o agride em puacuteblico reproduzindo exatamente a forma de tratamento recebida do proacuteprio Braacutes

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Paulo Seacutergio de Proenccedila

escravos assume um tom ambiacuteguo e contraditoacuteriorevelador da postura da classe senhorial A senha estaacutejaacute na abertura ldquoEu pertenccedilo a uma famiacutelia de profetasapregraves coup post factum depois do gato morto [] todaa histoacuteria desta Lei de 13 de Maio estava por mimprevista tanto que na segunda-feira antes mesmodos debates tratei de alforriar um molecoterdquo (Assis2008 vol 4 p 811) Essa caracterizaccedilatildeo inicial feitapelo proacuteprio narrador o desmascara porque a liber-taccedilatildeo dos escravos se jaacute natildeo tinha acontecido poucoantes era favas contadas querendo tirar vantagensda situaccedilatildeo organiza um jantar (banquete segundoamigos) para tornar puacuteblica a decisatildeo cinco pessoascompareceram mas se noticiou que foram trinta etrecircs (alusatildeo agrave idade de Cristo) para dar ao eventoum aspecto simboacutelico O ldquobanqueterdquo motiva a alusatildeotrata-se da eucaristia que eacute tambeacutem uma refeiccedilatildeoespecial e simboacutelica de valor sacramental A euca-ristia eacute a versatildeo cristatilde da Paacutescoa dos hebreus Paraos cristatildeos a morte pascal de Cristo eacute vicaacuteria paraldquolibertarrdquo os homens do pecado Essa noccedilatildeo de mortevicaacuteria de Jesus eacute inspirada na narrativa do ecircxodo emque na ldquolibertaccedilatildeordquo dos hebreus houve a morte dosprimogecircnitos do Egito tambeacutem comemorada com umaceia tanto por judeus quanto por cristatildeos Importaaqui notar os laccedilos ldquosimboacutelicosrdquo que remetem agrave ideiade libertaccedilatildeo15

Durante o jantar da crocircnica o narrador toma apalavra

[] declarei que acompanhando as ideias pre-gadas por Cristo haacute dezoito seacuteculos restituiacuteaa liberdade ao meu escravo Pancraacutecio queentendia a que a naccedilatildeo inteira devia acom-panhar as mesmas ideias e imitar o meuexemplo finalmente que a liberdade era umdom de Deus que os homens natildeo podiamroubar sem pecado (Assis 2008 vol 4 p811)

Se as ideias de Cristo datavam jaacute de dezoito seacuteculospor que soacute entatildeo o narrador restituiacutea a liberdade aoescravo Se a liberdade era um dom de Deus ldquoqueos homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo por queele tinha escravo Essas contradiccedilotildees satildeo evidencia-das pelo proacuteprio narrador reveladoras de um mundosenhorial mal assentado ideologicamente sustentado

pelos valores do cristianismo professado apenas noniacutevel do parecer ldquoRestituirrdquo a liberdade tem o efeito deldquoconfissatildeordquo de um crime em combinaccedilatildeo com o finaldo trecho transcrito ldquoa liberdade era um dom de Deusque os homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo E senos lembramos da paroacutedia da missa campal podemosassociar a ideia de ldquopecadordquo agrave uacutelcera contaminadorada perna E quando o narrador reivindica que ldquotodaa naccedilatildeo devia acompanhar []rdquo sinaliza a dimensatildeosocial (nacional) da uacutelcera

Depois de alforriado Pancraacutecio16 foi contratado porum salaacuterio (minimum minimorum) A mudanccedila na re-laccedilatildeo econocircmica natildeo acabava com a dependecircncia e aexploraccedilatildeo ela foi historicamente necessaacuteria para amanutenccedilatildeo dos privileacutegios da classe senhorial

[] a Aboliccedilatildeo eacute relativa libertando os es-cravos natildeo se faz mais do que libertaacute-lospara o mercado de trabalho no qual seratildeocontratados e demitidos e sem duacutevida re-ceberatildeo salaacuterios miseraacuteveis - numa situaccedilatildeodessas em que a liberdade conduz a outraforma de submissatildeo dos fracos aos fortes []Machado entre ironias e ldquopilheacuteriasrdquo traz agraveatenccedilatildeo do leitor algo essencial A aboliccedilatildeonatildeo eacute um movimento da escuridatildeo para aluz mas a simples passagem de um relacio-namento econocircmico e social opressivo paraoutro (Gledson 1986 p 124)

Natildeo se alterou profundamente a relaccedilatildeo entre senhore escravo principalmente no emprego da violecircncia fiacute-sica e verbal ldquotenho-lhe despedido alguns pontapeacutesum ou outro puxatildeo de orelhas e chamo-lhe besta17

quando lhe natildeo chamo filho do Diabo18 coisas todasque ele recebe humildemente e (Deus me perdoe)creio que ateacute alegrerdquo (Assis 2008 vol 4 p 812) Essefinal eacute engenhoso ao contrapor uma eventual pontade religiosidade marcada pela expressatildeo ldquoDeus meperdoerdquo agrave violecircncia contra o escravo A engenhosidade(da narraccedilatildeo) beira a perversidade (do narrador insta-lado) quando este supotildee que poderia haver qualquersensaccedilatildeo de alegria em algueacutem ser escravo ainda maisum ldquomolecoterdquo

A crocircnica termina por alinhavar o descaramento donarrador para quem

15 Sabe-se que Jesus morreu aos 33 anos Esse ldquoaspecto simboacutelicordquo eacute significativo pois sugere que o narrador com seu ato estavasendo fiel aos ensinos de Cristo mas o que ocorria era justamente o contraacuterio

16 ldquoPancraacuteciordquo tem origem grega e ironicamente significa ldquodetentor de todos os poderesrdquo Alguns nomes de personagens machadianostecircm a mesma caracteriacutestica Eugecircnia e Dona Plaacutecida por exemplo

17 Era o tratamento que Braacutes Cubas dava a Prudecircncio na infacircncia ldquo[] era o meu cavalo de todos os dias punha a matildeo no chatildeorecebia um cordel nos queixos agrave guisa de freio eu trepava-lhe ao dorso com uma varinha na matildeo fustigava-o dava mil voltas a um eoutro lado e ele obedecia mdash algumas vezes gemendo mdash mas obedecia sem dizer palavra ou quando muito um lsquoai nhonhocircrsquo ao que euretorquia lsquoCala a boca bestarsquo rdquo (Assis 2008 vol 1 p 638) Este tratamento eacute caracteriacutestico da violecircncia fiacutesica e simboacutelica a que o escravoestava sujeito ldquoO tratamento dado ao afrodescendente passa pelo supliacutecio e pela animalizaccedilatildeo revestindo a cena de forte sentido alegoacutericoo negro eacute posto de quatro eacute o animal sobre o qual o branco monta O jogo infantil nada tem de inocente e mimetiza a posiccedilatildeo de cada umna estrutura vigente na sociedaderdquo (Duarte 2007 p 276)

18 ldquoFilho do Diabordquo estaacute na boca do narrador Filho do Diabo por quecirc Por que era negro

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estudos semioacuteticos vol 6 no 2

[] os homens puros grandes e verdadeira-mente poliacuteticos natildeo satildeo os que obedecem agravelei mas os que se antecipam a ela19 dizendoao escravo eacutes livre antes que o digam ospoderes puacuteblicos sempre retardataacuterios trocirc-pegos e incapazes de restaurar a justiccedila naterra para satisfaccedilatildeo do Ceacuteu (Gledson 1986p 124)

Na crocircnica de 26 de junho de 1888 (Assis 2008 vol4 p 812-813) a inspiraccedilatildeo vem do romance Almasmortas de Gogol em que eacute criticado de novo o oportu-nismo dos senhores de escravos que urdiam fraudesem negociaccedilotildees de escravos para serem depois elessenhores indenizados pelo poder puacuteblico O narradorse esconde na pele de um burguecircs espertalhatildeo quequer tirar proveito da situaccedilatildeo ldquoMachado universalizao drama dos escravizados ao comparaacute-los aos servosrussosrdquo (Duarte 2007 p 249)

O capiacutetulo XXXVII (ldquoDesacordo no acordordquo) de Esauacutee Jacoacute ao narrar a reaccedilatildeo dos gecircmeos por ocasiatildeo daproclamaccedilatildeo da Repuacuteblica toca de forma filosoacutefica naconcepccedilatildeo de liberdade e de escravidatildeo natildeo limitadaagraves injunccedilotildees poliacutetico-econocircmicas

A diferenccedila uacutenica entre eles dizia respeito agravesignificaccedilatildeo da reforma que para Pedro eraum ato de justiccedila e para Paulo era o iniacutecio darevoluccedilatildeo Ele mesmo o disse concluindo umdiscurso em S Paulo no dia 20 de maio ldquoAaboliccedilatildeo eacute a aurora da liberdade esperemoso sol emancipado o preto resta emancipar obrancordquo (Assis 2008 vol 1 p 1121)

Eacute digno de nota que a data da crocircnica sobre a missacampal eacute 20-21 de maio de 1888 a da crocircnica sobrePancraacutecio eacute 19 de maio de 1888 e a do discurso dePaulo eacute 20 de maio de 1888 Essa convergecircncia natildeoeacute gratuita O discurso de Paulo em Esauacute e Jacoacute decerta forma complementa e explica a conclusatildeo dacrocircnica da missa campal Parece que estamos aindana aurora da liberdade

A crocircnica de 20-21 de maio de 1888 (ldquoEvangelho daMissa Campalrdquo) parodia partes dos Evangelhos biacutebli-cos cria uma paraacutebola relativa ao tema da escravidatildeocita os livros Deuteronocircmio e Eclesiastes do AntigoTestamento Essa combinaccedilatildeo eacute coerente e convergepara a unidade temaacutetica da escravidatildeo A paroacutedia aosevangelhos emoldurando a libertaccedilatildeo motiva uma lei-tura natildeo canocircnica do proacuteprio texto biacuteblico (libertaccedilatildeoeconocircmica e poliacutetica natildeo apenas espiritual) e uma

motivaccedilatildeo biacuteblica para leitura de fatos histoacutericos Emoutras palavras o presente eacute projetado para o passadoe o passado se aproxima do presente numa fusatildeouniversalizante (efeito das embreagens temporais e es-paciais aqui referidas) que por sua vez projeta a escra-vidatildeo do quadro histoacuterico para o filosoacutefico-existencialEssa transposiccedilatildeo eacute suscitada pela menccedilatildeo ao Eclesi-astes no final da paroacutedia (v 28) ldquoAlgumas vezes temo homem domiacutenio sobre outro homem para desgraccedilasuardquo A ldquodesgraccedilardquo entatildeo muda de lado acompanhao possuidor Daiacute o discurso de um dos gecircmeos deEsauacute e Jacoacute anteriormente mencionado (publicado 16anos depois) ldquoemancipado o preto resta emancipar obrancordquo

A crocircnica de 19 de maio de 1888 tambeacutem sob moti-vaccedilatildeo biacuteblica (ldquoacompanhando as ideias pregadas porCristo haacute dezoito seacuteculos restituiacutea a liberdade ao meuescravo Pancraacutecio [] a liberdade era um dom de Deusque os homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo) ex-plora as ambiguidades do narrador que ldquoparecerdquo seguiros preceitos biacuteblicos ao libertar seu escravo contudoisso natildeo passa de lance teatral de estrateacutegia poliacuteticaNesse jogo de ambiguidades o fundo biacuteblico sustentauma denuacutencia velada opera um desmascaramento daideologia dos senhores de escravos

3 Consideraccedilotildees adicionaisMachado foi omisso em relaccedilatildeo agrave escravidatildeo comopensaram alguns criacuteticos A julgar pelas crocircnicas ana-lisadas natildeo Eacute claro que haacute outros escritos do autorrelativos ao tema natildeo mencionados por natildeo teremviacutenculos diretos com a Biacuteblia Mas com seguranccedilapode-se afirmar que de fato natildeo foi ele indiferenteIsso jaacute tinha sido percebido por Magalhatildees Juacutenior20 nadeacutecada de 1950 quando comeccedilou a cair por terra a tesedo absenteiacutesmo machadiano Depois de MagalhatildeesJuacutenior outros autores como Brito Broca AstrojildoPereira Raimundo Faoro Roberto Schwarz e maisrecentemente Sidney Chalhoub21 contribuiacuteram parareconhecer que haacute em Machado tratamento conscientedos dilemas de seu tempo Schwarz22 por exemploldquoanalisa a inserccedilatildeo histoacuterica da obra a partir de seusviacutenculos estruturais com o modo e organizaccedilatildeo da so-ciedade brasileira no Segundo Reinadordquo (Duarte 2007p 263) Gledson (1986 p 14) por sua vez apontaa relaccedilatildeo da obra com os principais fatos histoacutericosda eacutepoca Ele indica o caraacuteter enganoso do realismomachadiano que exige leitura atenta das entrelinhas

Chalhoub23 estuda pareceres e documentos de Ma-chado na ldquoarena de lutardquo da aplicaccedilatildeo da Lei de 28

19 Nisso reside a contradiccedilatildeo do narrador pois a crocircnica se inicia assim ldquoEu pertenccedilo a uma famiacutelia de profetas apregraves coup post factumdepois do gato morto []rdquo

20 Na obra Machado de Assis desconhecido haacute um capiacutetulo intitulado ldquoMachado de Assis e a aboliccedilatildeordquo (Raimundo Magalhatildees JrMachado de Assis desconhecido Satildeo Paulo Lisa-Livros Irradiantes 1971)

21 Sidney Chalhoub Machado de Assis historiador Satildeo Paulo Companhia das Letras 200322 Roberto Schwarz Um mestre na periferia do capitalismo Machado de Assis Satildeo Paulo Duas Cidades Editora 34 200023 Chalhoub Op cit

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Paulo Seacutergio de Proenccedila

de setembro de 1871 (a Lei do Ventre Livre) Emseu exame com o olhar de historiador o pesquisadoranalisou documentos que circularam na burocraciaimperial Machado fez de seu posto uma trincheiracontra os desmandos dos senhores de escravos tendoemitido pareceres favoraacuteveis a escravos coerentes como espiacuterito da liberdade e da legalidade Pelo contraacuterionatildeo haacute nenhuma evidecircncia em sua obra de que houveapoio velado ou ostensivo agrave escravidatildeo ldquoNos escritosmachadianos natildeo se vecirc em nenhum momento palavrasde apoio mesmo que impliacutecito ou subtendido agrave escra-vidatildeo Nem se encontram os estereoacutetipos recorrentescujo foco eacute a desumanizaccedilatildeo dos afrodescendentesrdquo(Duarte 2007 p 242-243)

A rarefeita presenccedila do negro em seus escritos eacute cri-ticada eacute verdade mas pelos que natildeo compreenderamos artifiacutecios do ficcionista Basta considerar as criacuteticasque fazia ao regime escravista a pena do cronista e seteraacute uma demonstraccedilatildeo de sua firmeza e convicccedilatildeo arespeito do drama dos escravos

Consideraccedilotildees finaisAtendo-nos agraves crocircnicas apresentadas podemos dizerque as peccedilas se articulam sob uma ambiguidade nar-rativa reflexo da accedilatildeo poliacutetica da classe senhorialescravista representada pelo narrador da crocircnica doescravo Pancraacutecio Schwarz aponta o fenocircmeno deque em Machado a forma de narrar estaacute em corres-pondecircncia com o funcionamento da sociedade que eacuteretratada A brasilidade o vieacutes nacional ldquotem de serdescrito como uma formardquo segundo Schwarz (2000p 10-11) A forma narrativa de Machado estaacute emjogo com o funcionamento da sociedade brasileira dotempo Entatildeo a ambiguidade e a contradiccedilatildeo narrati-vas mais ostensivas na crocircnica de 19 de novembro de1888 estatildeo em correspondecircncia com a ambiguidadepoliacutetica da classe senhorial A crocircnica potildee agraves escacircn-caras o oportunismo de senhores de escravos que seservem do ato de libertaccedilatildeo para dele tirarem o maiorproveito possiacutevel A aboliccedilatildeo natildeo eacute ato humanitaacuterio deconsciecircncia ideoloacutegica mas de simples oportunismo

Nesse quadro o uso e a presenccedila da Biacuteblia comoportadora dos elementos que sustentam a hegemoniacristatilde-catoacutelica participam da ambiguidade da tensatildeoldquoser vs parecerrdquo (proacutepria da tradiccedilatildeo poliacutetica brasileira)a elite senhorial ldquopareciardquo seguir os preceitos biacuteblicos

Pode haver duas possibilidades de avaliaccedilatildeo doldquoEvangelho da missa campalrdquo Uma primeira nega-tiva a elite poliacutetica (sacerdotes e levitas) em lancede oportunismo decreta a libertaccedilatildeo dos escravospara preservar o corpo ainda que com perda da pernarevela-se o perverso conuacutebio poliacutetico de interesses eo ldquoendeusamentordquo dos donos do poder A segundapositiva a libertaccedilatildeo dos escravos plena era de fatoa concretizaccedilatildeo da mensagem do evangelho os aboli-cionistas eram verdadeiros ldquodisciacutepulosrdquo a aboliccedilatildeo era

a versatildeo moderna do verdadeiro evangelho A possede outra pessoa eacute o grande pecado que corrompe osangue o remeacutedio contra a melancolia era natildeo ser nemex-escravo nem ex-senhor

Seria possiacutevel conciliar as duas leituras Parece quesim se forem considerados os elementos ambiacuteguossobretudo da crocircnica de 19 de maio de 1888 Uma ououtra possibilidade projeta ecircnfase aos escritos biacuteblicosinterpretados natildeo como depoacutesito de dogmas controla-dos pela religiatildeo mas como inspiradores de liberdadeE foi com a liberdade de um ficcionista que Machadousou a Biacuteblia

Referecircncias

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Assis Machado de2008 Obra completa em quatro volumes Rio deJaneiro Nova Aguilar

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Biacuteblia Sagrada1993 Traduccedilatildeo de Joatildeo Ferreira de Almeida SatildeoPaulo Sociedade Biacuteblica do Brasil

Duarte Eduardo de Assis2007 Machado de Assis afro-descendente Rio deJaneiroBelo Horizonte PallasCrisaacutelida

Eliade Mircea1981 O mito do eterno retorno arqueacutetipos e repeti-ccedilatildeo Lisboa Ediccedilotildees 70

Fiorin Joseacute Luiz2006 Interdiscursividade e intertextualidade InBrait Beth (Org) Bakhtin outros conceitos-chaveSatildeo Paulo Contexto

Gledson John1986 Machado de Assis ficccedilatildeo e histoacuteria Rio deJaneiro Paz e Terra

Nascimento Gizecirclda Melo do2002 Machado Trecircs momentos negros Terraroxa e outras terras Revista de Estudos Li-teraacuterios Volume 2 p 53-62 Disponiacutevel em〈 httpwwwuelbrcchposletrasterraroxa 〉 Acesso em7 dez 2009

Schwarz Roberto2000 Um mestre na periferia do capitalismo Ma-chado de Assis Satildeo Paulo Duas CidadesEditora34

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Dados para indexaccedilatildeo em liacutengua estrangeira

Proenccedila Paulo Seacutergio deBiblical Intertextuality and Slavery in Machado de Assis (Two Chronicles of

May 1888)Estudos Semioacuteticos vol 6 n 2 (2010) p 77-85

issn 1980-4016

Abstract On May 17th 1988 during Thanksgiving for the abolition of slaves a Mass was celebrated in thepresence of the Regent Princess and other authorities In allusion to the event a Machadian chronicle parodiesthe gospel of the Mass Just like the first biblical gospel the parody has its Christ John the Baptist and thedisciples in addition to a parable Besides the biblical gospels the chronicle mentions the books Deuteronomy andEcclesiastes The author provokes particular effects as he superposes in a parodic way the events and charactersof his epoch to the biblical ones that leads one to ponder about the meaning of the events portrayed in a criticto the politicians and towards the events that resulted in the adoption of the abolition Machado wrote anotherfamous chronicle published on May 19th 1888 to which biblical allusions were not lacking to celebrate the freeingof the slave Pancraacutecio The narrator claims to anticipate the government measures and sets free his slave lad andoffers a banquet in order to celebrate the occasion Biblical images are used to highlight the event mdash everythingaiming at drawing attention to the narrator who does not conceal his political aspirations achieving them nothingbetter than pretending to follow Christian values and pretending to be good What is the sense effect of biblicalintertextuality in these plays by Machado regarding slavery That is what we intend to investigate

Keywords Machado de Assis Bible slavery

Como citar este artigo

Proenccedila Paulo Seacutergio de Intertextualidade biacuteblica eescravidatildeo em Machado de Assis (duas crocircnicas de maiode 1888) Estudos Semioacuteticos [on-line] Disponiacutevel em〈 httpwwwfflchuspbrdlsemioticaes 〉 Editores Respon-saacuteveis Francisco E S Merccedilon e Mariana Luz P deBarros Volume 6 Nuacutemero 2 Satildeo Paulo novembro de2010 p 77ndash85 Acesso em ldquodiamecircsanordquo

Data de recebimento do artigo 20112009

Data de sua aprovaccedilatildeo 10042010

  • Introduccedilatildeo
  • Crocircnica de 20-21 de maio de 1888 (``Evangelho da Missa Campal)
  • Crocircnica de 19 de maio de 1888
  • Consideraccedilotildees adicionais
  • Consideraccedilotildees finais
  • Referecircncias
Page 3: Intertextualidade bíblica e escravidão em Machado de Assis

estudos semioacuteticos vol 6 no 2

vidacom ele viviam a Cacircmara e o Senadordquo) indicamnatildeo soacute o perverso conuacutebio poliacutetico de interesses maso ldquoendeusamentordquo dos donos do poder no sentido emque determinam o destino4 das pessoas no caso aliberdade ou a ausecircncia dela O iniacutecio do Evangelhode Joatildeo (trecho parodiado) fala da preexistecircncia doverbo encarnado Esse detalhe sugere viacutenculos com aconstante remissatildeo aos tempos miacuteticos expressivosem Machado quase sempre associados ao mal (parecenatildeo ser assim neste caso) esses tempos miacuteticos satildeo

revividos pois tecircm retorno eterno5 reconhecido emcada nova ocorrecircncia

No Evangelho de Joatildeo o narrador reconhece em Je-sus o Cristo o salvador o ldquolibertadorrdquo do ser humanoem contraste a ldquovidardquo oferecida por Cotegipe (e pelaRegente) era a da escravidatildeo6 Isso enfatiza o con-traste entre os dois evangelhos Vejamos o trecho doEvangelho biacuteblico justaposto ao ldquoEvangelho da missacampalrdquo

Evangelho de Joatildeo capiacutetulo 1o Evangelho da missa campal

1 No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava com Deus eo Verbo era Deus 2 Ele estava no princiacutepio com Deus

1 No princiacutepio era Cotegipe e Cotegipe estava com aRegente e Cotegipe era a Regente 2 Nele estava a vidacom ele viviam a Cacircmara e o Senado

6 Houve um homem enviado por Deus cujo nome eraJoatildeo 7 Este veio como testemunha para que testificassea respeito da luz a fim de todos virem a crer por intermeacutediodele 8 Ele natildeo era a luz mas veio para que testificasseda luz

3 Houve entatildeo um homem de Satildeo Paulo chamado AntocircnioPrado o qual veio por testemunho do que tinha de serenviado no ano seguinte

15 Joatildeo testemunha a respeito dele e exclama Este eacute ode quem eu disse o que vem depois de mim tem contudoa primazia porquanto jaacute existia antes de mim

4 E disse Antocircnio Prado O que haacute de vir depois de mimeacute o preferido porque era antes de mim

19 Este foi o testemunho de Joatildeo quando os judeuslhe enviaram de Jerusaleacutem sacerdotes e levitas para lheperguntarem Quem eacutes tu 20 Ele confessou e natildeonegou confessou Eu natildeo sou o Cristo 21 Entatildeo lheperguntaram Quem eacutes pois Eacutes tu Elias Ele disse Natildeosou Eacutes tu o profeta Respondeu Natildeo

5 E ouvindo isto saiacuteram alguns sacerdotes e levitas eperguntaram-lhe Quem eacutes tu 6 Eacutes tu Rio-Branco Eele respondeu Natildeo o sou Eacutes tu profeta E ele respondeuNatildeo

23 Entatildeo ele respondeu Eu sou a voz do que clama nodeserto Endireitai o caminho do Senhor como disse oprofeta Isaiacuteas

7 Disse-lhes Eu sou a voz do que clama no desertoEndireitai o caminho do poder porque aiacute vem o JoatildeoAlfredo

28 Estas coisas se passaram em Betacircnia do outro ladodo Jordatildeo onde Joatildeo estava batizando

8 Estas coisas passaram-se no senado da banda de aleacutemdo campo da Aclamaccedilatildeo esquina da rua do Areal

29 No dia seguinte viu Joatildeo a Jesus que vinha paraele e disse Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado domundo 30 Eacute este a favor de quem eu disse apoacutes mimvem um varatildeo que tem a primazia porque jaacute existia antesde mim

9 No dia seguinte viu Antocircnio Prado a Joatildeo Alfredo quevinha para ele depois de guardar o chapeacuteu no cabide dossenadores e disse Eis aqui o que haacute de tirar os escravosdo mundo Este eacute o mesmo de quem eu disse Depois demim viraacute um homem que me seraacute preferido por que eraantes de mim

32 E Joatildeo testemunhou dizendo Vi o Espiacuterito descer doceacuteu como pomba e pousar sobre ele

10 Passados meses aconteceu que o espiacuterito da Regenteveio pairar sobre a cabeccedila de Joatildeo Alfredo e Cotegipedeixou o poder executivo e o poder executivo passou a JoatildeoAlfredo (Assis 2008 vol 4 p 812-813)

5 Conforme indica Eliade as accedilotildees humanas remontam a um ato primordial a um protoacutetipo miacutetico ocorrido na origem (ldquonaqueletempordquo ab origine) Para o homem primitivo ldquoo gesto soacute adquire significado realidade na medida em que retoma uma accedilatildeo primordialrdquo(Eliade 1981 p 19)

6 Gledson (1986 p 132) lembra que Cotegipe era antiabolicionista convicto tendo sido forccedilado a se demitir dois meses antes da LeiAacuteurea

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Paulo Seacutergio de Proenccedila

A primeira parte da peccedila machadiana vai ateacute o verso10 e tem por fonte o Evangelho de Joatildeo como se pocircdeverificar nos trechos citados Eacute ressaltada a combina-ccedilatildeo de embreagens (temporais espaciais e actoriais)que aproximam os tempos do passado miacutetico e do pre-sente entatildeo vivido7 A embreagem temporal eacute indicadana introduccedilatildeo da crocircnica com a menccedilatildeo agrave data da ce-lebraccedilatildeo da missa a espacial no ldquoversiacuteculo 8ordquo ldquoEstascoisas passaram-se no senado da banda de aleacutem docampo da Aclamaccedilatildeo esquina da rua do Arealrdquo a ac-torial pela menccedilatildeo dos personagens que participaramdos eventos poliacuteticos cujo desfecho foi a aboliccedilatildeo

Essas embreagens provocam uma superposiccedilatildeo doseventos (Aboliccedilatildeo e evangelho biacuteblico) o ldquolaacute-entatildeordquo seconfunde com o ldquoeu-aquirdquo da enunciaccedilatildeo a fusatildeo

anula as distacircncias espaciais e as diferenccedilas tempo-rais Assim as fontes biacuteblicas constituem uma espeacuteciede moldura que motivam e suportam a anaacutelise e inter-pretaccedilatildeo dos acontecimentos histoacutericos que resultamna libertaccedilatildeo dos escravos

Dos ldquoversiacuteculosrdquo 11 ao 16 Antonio Prado abolici-onista eacute comparado a Joatildeo Batista8 e Joatildeo Alfredoao proacuteprio Jesus Alude-se entatildeo ao trecho biacuteblicoda ldquovocaccedilatildeo dos disciacutepulosrdquo e na crocircnica o grupo dosdisciacutepulos abolicionistas eacute composto por semelhanteldquovocaccedilatildeordquo Tudo indica que a fonte para esta partenatildeo eacute mais o Evangelho de Joatildeo mas o Evangelho deMateus inclusive pela menccedilatildeo agrave ldquoigrejardquo9 registradasomente neste evangelho

Evangelho de Joatildeo capiacutetulo 4o Evangelho da missa campal

18 Caminhando junto ao mar da Galileia viudois irmatildeos Simatildeo chamado Pedro e Andreacute quelanccedilavam as redes ao mar porque eram pescadores19 E disse-lhes Vinde apoacutes mim e eu vos fareipescadores de homens

11 E Joatildeo Alfredo indo para a Galileiaa que eacuteno caminho de Botafogo mandou dizer a AntocircnioPrado que estava perto da Consolaccedilatildeo Vem que eacutesobre ti que edificarei a minha igreja

21 Passando adiante viu outros dois irmatildeos Ti-ago filho de Zebedeu e Joatildeo seu irmatildeo que es-tavam no barco em companhia de seu pai con-sertando as redes e chamou-os 22 Entatildeo elesno mesmo instante deixando o barco e seu pai oseguiram

12 Depois indo a uma cela de convento viu laacute umhomem por nome Ferreira Viana o qual descansavade uma paacutegina de Agostinho lendo outra de Ciacuteceroe disse-lhe Deixa esse livro e segue-me que embreve te farei outro Ciacutecero natildeo de romanos masde uma gente nova e Ferreira Viana despindo ohaacutebito e envergando a farda seguiu a Joatildeo Alfredo(Assis 2008 vol 4 p 813)

a ldquoGalileia eacute um famoso engenho de Pernambuco proviacutencia pela qual Joatildeo Alfredo foi Senador (o irocircnico significado religioso eacutesuficientemente claro naturalmente)rdquo (Gledson 1986 p 33)

A partir do verso 17 do ldquoEvangelho da Missa Cam-palrdquo eacute mencionada a uacutelcera por meio de paraacutebolarecurso frequentemente utilizado por Jesus em seusensinamentos

17 E respondendo todos que sim disse umdeles por paraacutebola que no ponto em que esta-vam as coisas melhor era cortar a perna quelavar a uacutelcera pois a uacutelcera ia corrompendoo sangue

18 Mas ficando Joatildeo Alfredo pensativo dis-seram os outros entre si Que teraacute ele

19 Entatildeo o mestre ouvindo a perguntadisse Prevejo que haacute de haver uma consultade sacerdotes e levitas para ver se chegam acompor certo unguento que os levitas aplica-ratildeo na uacutelcera mas natildeo temais nada ele natildeoseraacute aplicado (Assis 2008 vol 4 p 814)

Segundo Joatildeo Alfredo ldquomelhor era cortar a perna10

que lavar a uacutelcera pois a uacutelcera ia corrompendo o7 Embreagem e debreagem satildeo operaccedilotildees discursivas vinculadas agrave enunciaccedilatildeo satildeo projeccedilotildees de categorias semacircnticas (tempo espaccedilo e

pessoa) que instalam o universo de sentido conforme Bertrand (2003 p 90)8 Joatildeo Batista foi ldquoo precursorrdquo (preparou o caminho para Jesus) papel desempenhado por Antonio Prado nos bastidores da poliacutetica

que resultou na aboliccedilatildeo9 A referecircncia se encontra em Mt-18 v 16

10 A simbologia de ldquopernardquo eacute sugestiva associa-se a peacute e calcanhar Pode indicar fragilidade conforme a expressatildeo ldquocalcanhar de Aquilesrdquocunhada a partir da parte do corpo vulneraacutevel do famoso heroacutei grego Haacute tambeacutem a expressatildeo ldquogigante de peacutes de barrordquo ligada ao livrobiacuteblico de Daniel Natildeo se deve esquecer que Eugecircnia nas Memoacuterias Poacutestumas eacute a ldquoVecircnus mancardquo A perna o peacute e o calcanhar sustentam ocorpo daiacute se associarem agrave ideia de ldquobaserdquo ldquofundamentordquo A sociedade carioca (brasileira) tinha entatildeo seus fundamentos doentes

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estudos semioacuteticos vol 6 no 2

sanguerdquo A propoacutesito do unguento o mestre previneos disciacutepulos ldquonatildeo temais nada ele natildeo seraacute aplicadordquo(v 19) Sobre a composiccedilatildeo do unguento o disciacutepuloViana lido nas escrituras diz

21 Estaacute escrito no livro de Elle Haddeba-rim tambeacutem chamado Deuteronocircmio quequando o escravo tiver servido seis anos noseacutetimo ano o dono o deixe ir livre e natildeo comas matildeos abanando senatildeo com um alforje decomida e bebida Este eacute de certo o unguentolembrado menos talvez o alforje e os seisanos11 (Assis 2008 vol 4 p 814)

Como a uacutelcera natildeo podia esperar e com a becircnccedilatildeoda Regente a Joatildeo e seus disciacutepulos ldquoforam para ascacircmaras onde apresentaram o projetordquo (v 24) Aquireside a chave de interpretaccedilatildeo da paraacutebola o ldquoun-guentordquo era o projeto da libertaccedilatildeo dos escravos12 Noentanto o remeacutedio era ineficaz porque viciado pelafalta do alforje e dos seis anos (amparo indispensaacutevel agravesobrevivecircncia dos libertos segundo a tradiccedilatildeo biacuteblicae que natildeo estava sendo observado) O unguento natildeocuraria a uacutelcera A uacutelcera corromperia o sangue Eacute oque se deduz da sequecircncia da crocircnica No Maranhatildeopor exemplo escravos inocentes foram castigados porcausa da lei (por eles inclusive desconhecida)

27 Menos no Bacabal proviacutencia do Mara-nhatildeo onde alguns homens declararam quea lei natildeo valia nada e pegando no azorra-gue castigaram os seus escravos cujo crimenessa ocasiatildeo era unicamente haver sido vo-tado uma lei de que eles natildeo sabiam nada ea proacutepria autoridade se ligou com esses ho-mens rebeldes (Assis 2008 vol 4 p 814)

De fato o unguento tinha viacutecios em sua composiccedilatildeonatildeo soacute natildeo havia alforje mas tambeacutem havia muitaviolecircncia aleacutem de ldquorebeldesrdquo senhores que se recusa-vam a aceitar e a cumprir a lei no que eram apoiadospor autoridades governamentais Por isso o unguentocorrompeu a uacutelcera E corromperia mais Vejamos ofinal da crocircnica

28 Vendo isto disse um sisudo de Babilocircniapor outro nome Carioca Ah Se estivessem

no Maranhatildeo alguns ex-escravos daqui quedepois de livres compraram tambeacutem escra-vos quatildeo menor seria a melancolia dessesque satildeo agora duas coisas ao mesmo tempoex-escravos e ex-senhores Bem diz o Eclesi-astes Algumas vezes tem o homem domiacuteniosobre outro homem para desgraccedila sua Omelhor de tudo acrescento eu eacute possuir-sea gente a si mesmo (Assis 2008 vol 4 p814)

A crocircnica constata que Babilocircnia era agora ldquoCari-ocardquo13 O versiacuteculo final combina melancolia Ecle-siastes e domiacutenio sobre outro homem A melancolianos remete a Memoacuterias Poacutestumas Braacutes Cubas movidopor ldquosede de nomeadardquo tambeacutem quis compor o seuunguento milagroso para acabar com a melancolia doshomens Quem acabou foi o proacuteprio Braacutes Menciona-se ainda o fato de que ex-escravos compravam es-cravos e com a aboliccedilatildeo tornaram-se ex-senhores eex-escravos esses fatores combinados aumentariama melancolia14 Por fim o narrador usando da pri-meira pessoa para produzir o efeito de subjetividadedaacute sinais de que rejeita o domiacutenio de homens sobreoutros homens Para isso cita o Eclesiastes (Ec 89)ldquoAlgumas vezes tem o homem domiacutenio sobre outro ho-mem para desgraccedila suardquo Grande desgraccedila eacute essapois dominar outros eacute a negaccedilatildeo da liberdade ldquodireitoinalienaacutevelrdquo

Natildeo se pode dizer que a partir desta breve paroacutediaMachado de Assis foi indiferente agrave escravidatildeo A peccedilaevoca trechos biacuteblicos do Antigo e do Novo Testamentorelacionados direta ou indiretamente agrave escravidatildeo ea partir deles suscita reflexotildees sobre a fragilidadedas motivaccedilotildees poliacutetico-ideoloacutegicas que culminaramna Aboliccedilatildeo Afinal segundo a paraacutebola da crocircnicaeacute mais vantajoso perder uma perna do que perder ocorpo todo Isso se liga diretamente agrave menccedilatildeo ao livrodo Deuteronocircmio (Elle Haddebarim) o que potildee agrave luz asreais motivaccedilotildees dos escravocratas que se recusavama oferecer alforjes aos libertos

2 Crocircnica de 19 de maio de 1888Tambeacutem estaacute voltada ao tema da escravidatildeo todapermeada por um tom irocircnico O narrador dono de

11 Elle Haddebarim eacute o nome hebraico do livro do Deuteronocircmio Os nomes dos livros da Biacuteblia cristatilde satildeo tirados da traduccedilatildeo grega dossetenta a Septuaginta A tradiccedilatildeo hebraica nomeia os livros a partir das primeiras palavras do livro O exemplar que Machado possuiacutea daBiacuteblia registrava os nomes hebraicos dos livros O trecho a que se faz alusatildeo estaacute em Dt-15 v 12-15 ldquo12 Quando um de teus irmatildeoshebreu ou hebreia te for vendido seis anos servir-te-aacute mas no seacutetimo o despediraacutes forro 13 E quando de ti o despedires forro natildeo odeixaraacutes ir vazio 14 Liberalmente lhe forneceraacutes do teu rebanho da tua eira e do teu lagar daquilo com que o SENHOR teu Deus tehouver abenccediloado lhe daraacutes 15 Lembrar-te-aacutes de que foste servo na terra do Egito e de que o SENHOR teu Deus te remiu pelo quehoje isso te ordenordquo

12 O ldquounguentordquo do evangelho era a boa nova do evangelho pregado por Jesus Nas injunccedilotildees poliacuteticas sugeridas pela crocircnica agrave parte oidealismo dos abolicionistas a libertaccedilatildeo dos escravos foi concessatildeo dos donos do poder para evitar o mal maior era preferiacutevel perder umaperna a perder o corpo todo

13 Babilocircnia eacute aqui Babilocircnia indica natildeo somente a confusatildeo de liacutenguas mas principalmente o exiacutelio e escravidatildeo Este eacute o efeito daexpressatildeo ldquoBabilocircnica cariocardquo

14 As Memoacuterias Poacutestumas apresentam o fenocircmeno no capiacutetulo LXVIII ldquoO vergalhordquo Prudecircncio escravo alforriado pelo pai de Braacutes Cubasnatildeo somente compra um escravo mas o agride em puacuteblico reproduzindo exatamente a forma de tratamento recebida do proacuteprio Braacutes

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Paulo Seacutergio de Proenccedila

escravos assume um tom ambiacuteguo e contraditoacuteriorevelador da postura da classe senhorial A senha estaacutejaacute na abertura ldquoEu pertenccedilo a uma famiacutelia de profetasapregraves coup post factum depois do gato morto [] todaa histoacuteria desta Lei de 13 de Maio estava por mimprevista tanto que na segunda-feira antes mesmodos debates tratei de alforriar um molecoterdquo (Assis2008 vol 4 p 811) Essa caracterizaccedilatildeo inicial feitapelo proacuteprio narrador o desmascara porque a liber-taccedilatildeo dos escravos se jaacute natildeo tinha acontecido poucoantes era favas contadas querendo tirar vantagensda situaccedilatildeo organiza um jantar (banquete segundoamigos) para tornar puacuteblica a decisatildeo cinco pessoascompareceram mas se noticiou que foram trinta etrecircs (alusatildeo agrave idade de Cristo) para dar ao eventoum aspecto simboacutelico O ldquobanqueterdquo motiva a alusatildeotrata-se da eucaristia que eacute tambeacutem uma refeiccedilatildeoespecial e simboacutelica de valor sacramental A euca-ristia eacute a versatildeo cristatilde da Paacutescoa dos hebreus Paraos cristatildeos a morte pascal de Cristo eacute vicaacuteria paraldquolibertarrdquo os homens do pecado Essa noccedilatildeo de mortevicaacuteria de Jesus eacute inspirada na narrativa do ecircxodo emque na ldquolibertaccedilatildeordquo dos hebreus houve a morte dosprimogecircnitos do Egito tambeacutem comemorada com umaceia tanto por judeus quanto por cristatildeos Importaaqui notar os laccedilos ldquosimboacutelicosrdquo que remetem agrave ideiade libertaccedilatildeo15

Durante o jantar da crocircnica o narrador toma apalavra

[] declarei que acompanhando as ideias pre-gadas por Cristo haacute dezoito seacuteculos restituiacuteaa liberdade ao meu escravo Pancraacutecio queentendia a que a naccedilatildeo inteira devia acom-panhar as mesmas ideias e imitar o meuexemplo finalmente que a liberdade era umdom de Deus que os homens natildeo podiamroubar sem pecado (Assis 2008 vol 4 p811)

Se as ideias de Cristo datavam jaacute de dezoito seacuteculospor que soacute entatildeo o narrador restituiacutea a liberdade aoescravo Se a liberdade era um dom de Deus ldquoqueos homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo por queele tinha escravo Essas contradiccedilotildees satildeo evidencia-das pelo proacuteprio narrador reveladoras de um mundosenhorial mal assentado ideologicamente sustentado

pelos valores do cristianismo professado apenas noniacutevel do parecer ldquoRestituirrdquo a liberdade tem o efeito deldquoconfissatildeordquo de um crime em combinaccedilatildeo com o finaldo trecho transcrito ldquoa liberdade era um dom de Deusque os homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo E senos lembramos da paroacutedia da missa campal podemosassociar a ideia de ldquopecadordquo agrave uacutelcera contaminadorada perna E quando o narrador reivindica que ldquotodaa naccedilatildeo devia acompanhar []rdquo sinaliza a dimensatildeosocial (nacional) da uacutelcera

Depois de alforriado Pancraacutecio16 foi contratado porum salaacuterio (minimum minimorum) A mudanccedila na re-laccedilatildeo econocircmica natildeo acabava com a dependecircncia e aexploraccedilatildeo ela foi historicamente necessaacuteria para amanutenccedilatildeo dos privileacutegios da classe senhorial

[] a Aboliccedilatildeo eacute relativa libertando os es-cravos natildeo se faz mais do que libertaacute-lospara o mercado de trabalho no qual seratildeocontratados e demitidos e sem duacutevida re-ceberatildeo salaacuterios miseraacuteveis - numa situaccedilatildeodessas em que a liberdade conduz a outraforma de submissatildeo dos fracos aos fortes []Machado entre ironias e ldquopilheacuteriasrdquo traz agraveatenccedilatildeo do leitor algo essencial A aboliccedilatildeonatildeo eacute um movimento da escuridatildeo para aluz mas a simples passagem de um relacio-namento econocircmico e social opressivo paraoutro (Gledson 1986 p 124)

Natildeo se alterou profundamente a relaccedilatildeo entre senhore escravo principalmente no emprego da violecircncia fiacute-sica e verbal ldquotenho-lhe despedido alguns pontapeacutesum ou outro puxatildeo de orelhas e chamo-lhe besta17

quando lhe natildeo chamo filho do Diabo18 coisas todasque ele recebe humildemente e (Deus me perdoe)creio que ateacute alegrerdquo (Assis 2008 vol 4 p 812) Essefinal eacute engenhoso ao contrapor uma eventual pontade religiosidade marcada pela expressatildeo ldquoDeus meperdoerdquo agrave violecircncia contra o escravo A engenhosidade(da narraccedilatildeo) beira a perversidade (do narrador insta-lado) quando este supotildee que poderia haver qualquersensaccedilatildeo de alegria em algueacutem ser escravo ainda maisum ldquomolecoterdquo

A crocircnica termina por alinhavar o descaramento donarrador para quem

15 Sabe-se que Jesus morreu aos 33 anos Esse ldquoaspecto simboacutelicordquo eacute significativo pois sugere que o narrador com seu ato estavasendo fiel aos ensinos de Cristo mas o que ocorria era justamente o contraacuterio

16 ldquoPancraacuteciordquo tem origem grega e ironicamente significa ldquodetentor de todos os poderesrdquo Alguns nomes de personagens machadianostecircm a mesma caracteriacutestica Eugecircnia e Dona Plaacutecida por exemplo

17 Era o tratamento que Braacutes Cubas dava a Prudecircncio na infacircncia ldquo[] era o meu cavalo de todos os dias punha a matildeo no chatildeorecebia um cordel nos queixos agrave guisa de freio eu trepava-lhe ao dorso com uma varinha na matildeo fustigava-o dava mil voltas a um eoutro lado e ele obedecia mdash algumas vezes gemendo mdash mas obedecia sem dizer palavra ou quando muito um lsquoai nhonhocircrsquo ao que euretorquia lsquoCala a boca bestarsquo rdquo (Assis 2008 vol 1 p 638) Este tratamento eacute caracteriacutestico da violecircncia fiacutesica e simboacutelica a que o escravoestava sujeito ldquoO tratamento dado ao afrodescendente passa pelo supliacutecio e pela animalizaccedilatildeo revestindo a cena de forte sentido alegoacutericoo negro eacute posto de quatro eacute o animal sobre o qual o branco monta O jogo infantil nada tem de inocente e mimetiza a posiccedilatildeo de cada umna estrutura vigente na sociedaderdquo (Duarte 2007 p 276)

18 ldquoFilho do Diabordquo estaacute na boca do narrador Filho do Diabo por quecirc Por que era negro

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estudos semioacuteticos vol 6 no 2

[] os homens puros grandes e verdadeira-mente poliacuteticos natildeo satildeo os que obedecem agravelei mas os que se antecipam a ela19 dizendoao escravo eacutes livre antes que o digam ospoderes puacuteblicos sempre retardataacuterios trocirc-pegos e incapazes de restaurar a justiccedila naterra para satisfaccedilatildeo do Ceacuteu (Gledson 1986p 124)

Na crocircnica de 26 de junho de 1888 (Assis 2008 vol4 p 812-813) a inspiraccedilatildeo vem do romance Almasmortas de Gogol em que eacute criticado de novo o oportu-nismo dos senhores de escravos que urdiam fraudesem negociaccedilotildees de escravos para serem depois elessenhores indenizados pelo poder puacuteblico O narradorse esconde na pele de um burguecircs espertalhatildeo quequer tirar proveito da situaccedilatildeo ldquoMachado universalizao drama dos escravizados ao comparaacute-los aos servosrussosrdquo (Duarte 2007 p 249)

O capiacutetulo XXXVII (ldquoDesacordo no acordordquo) de Esauacutee Jacoacute ao narrar a reaccedilatildeo dos gecircmeos por ocasiatildeo daproclamaccedilatildeo da Repuacuteblica toca de forma filosoacutefica naconcepccedilatildeo de liberdade e de escravidatildeo natildeo limitadaagraves injunccedilotildees poliacutetico-econocircmicas

A diferenccedila uacutenica entre eles dizia respeito agravesignificaccedilatildeo da reforma que para Pedro eraum ato de justiccedila e para Paulo era o iniacutecio darevoluccedilatildeo Ele mesmo o disse concluindo umdiscurso em S Paulo no dia 20 de maio ldquoAaboliccedilatildeo eacute a aurora da liberdade esperemoso sol emancipado o preto resta emancipar obrancordquo (Assis 2008 vol 1 p 1121)

Eacute digno de nota que a data da crocircnica sobre a missacampal eacute 20-21 de maio de 1888 a da crocircnica sobrePancraacutecio eacute 19 de maio de 1888 e a do discurso dePaulo eacute 20 de maio de 1888 Essa convergecircncia natildeoeacute gratuita O discurso de Paulo em Esauacute e Jacoacute decerta forma complementa e explica a conclusatildeo dacrocircnica da missa campal Parece que estamos aindana aurora da liberdade

A crocircnica de 20-21 de maio de 1888 (ldquoEvangelho daMissa Campalrdquo) parodia partes dos Evangelhos biacutebli-cos cria uma paraacutebola relativa ao tema da escravidatildeocita os livros Deuteronocircmio e Eclesiastes do AntigoTestamento Essa combinaccedilatildeo eacute coerente e convergepara a unidade temaacutetica da escravidatildeo A paroacutedia aosevangelhos emoldurando a libertaccedilatildeo motiva uma lei-tura natildeo canocircnica do proacuteprio texto biacuteblico (libertaccedilatildeoeconocircmica e poliacutetica natildeo apenas espiritual) e uma

motivaccedilatildeo biacuteblica para leitura de fatos histoacutericos Emoutras palavras o presente eacute projetado para o passadoe o passado se aproxima do presente numa fusatildeouniversalizante (efeito das embreagens temporais e es-paciais aqui referidas) que por sua vez projeta a escra-vidatildeo do quadro histoacuterico para o filosoacutefico-existencialEssa transposiccedilatildeo eacute suscitada pela menccedilatildeo ao Eclesi-astes no final da paroacutedia (v 28) ldquoAlgumas vezes temo homem domiacutenio sobre outro homem para desgraccedilasuardquo A ldquodesgraccedilardquo entatildeo muda de lado acompanhao possuidor Daiacute o discurso de um dos gecircmeos deEsauacute e Jacoacute anteriormente mencionado (publicado 16anos depois) ldquoemancipado o preto resta emancipar obrancordquo

A crocircnica de 19 de maio de 1888 tambeacutem sob moti-vaccedilatildeo biacuteblica (ldquoacompanhando as ideias pregadas porCristo haacute dezoito seacuteculos restituiacutea a liberdade ao meuescravo Pancraacutecio [] a liberdade era um dom de Deusque os homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo) ex-plora as ambiguidades do narrador que ldquoparecerdquo seguiros preceitos biacuteblicos ao libertar seu escravo contudoisso natildeo passa de lance teatral de estrateacutegia poliacuteticaNesse jogo de ambiguidades o fundo biacuteblico sustentauma denuacutencia velada opera um desmascaramento daideologia dos senhores de escravos

3 Consideraccedilotildees adicionaisMachado foi omisso em relaccedilatildeo agrave escravidatildeo comopensaram alguns criacuteticos A julgar pelas crocircnicas ana-lisadas natildeo Eacute claro que haacute outros escritos do autorrelativos ao tema natildeo mencionados por natildeo teremviacutenculos diretos com a Biacuteblia Mas com seguranccedilapode-se afirmar que de fato natildeo foi ele indiferenteIsso jaacute tinha sido percebido por Magalhatildees Juacutenior20 nadeacutecada de 1950 quando comeccedilou a cair por terra a tesedo absenteiacutesmo machadiano Depois de MagalhatildeesJuacutenior outros autores como Brito Broca AstrojildoPereira Raimundo Faoro Roberto Schwarz e maisrecentemente Sidney Chalhoub21 contribuiacuteram parareconhecer que haacute em Machado tratamento conscientedos dilemas de seu tempo Schwarz22 por exemploldquoanalisa a inserccedilatildeo histoacuterica da obra a partir de seusviacutenculos estruturais com o modo e organizaccedilatildeo da so-ciedade brasileira no Segundo Reinadordquo (Duarte 2007p 263) Gledson (1986 p 14) por sua vez apontaa relaccedilatildeo da obra com os principais fatos histoacutericosda eacutepoca Ele indica o caraacuteter enganoso do realismomachadiano que exige leitura atenta das entrelinhas

Chalhoub23 estuda pareceres e documentos de Ma-chado na ldquoarena de lutardquo da aplicaccedilatildeo da Lei de 28

19 Nisso reside a contradiccedilatildeo do narrador pois a crocircnica se inicia assim ldquoEu pertenccedilo a uma famiacutelia de profetas apregraves coup post factumdepois do gato morto []rdquo

20 Na obra Machado de Assis desconhecido haacute um capiacutetulo intitulado ldquoMachado de Assis e a aboliccedilatildeordquo (Raimundo Magalhatildees JrMachado de Assis desconhecido Satildeo Paulo Lisa-Livros Irradiantes 1971)

21 Sidney Chalhoub Machado de Assis historiador Satildeo Paulo Companhia das Letras 200322 Roberto Schwarz Um mestre na periferia do capitalismo Machado de Assis Satildeo Paulo Duas Cidades Editora 34 200023 Chalhoub Op cit

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Paulo Seacutergio de Proenccedila

de setembro de 1871 (a Lei do Ventre Livre) Emseu exame com o olhar de historiador o pesquisadoranalisou documentos que circularam na burocraciaimperial Machado fez de seu posto uma trincheiracontra os desmandos dos senhores de escravos tendoemitido pareceres favoraacuteveis a escravos coerentes como espiacuterito da liberdade e da legalidade Pelo contraacuterionatildeo haacute nenhuma evidecircncia em sua obra de que houveapoio velado ou ostensivo agrave escravidatildeo ldquoNos escritosmachadianos natildeo se vecirc em nenhum momento palavrasde apoio mesmo que impliacutecito ou subtendido agrave escra-vidatildeo Nem se encontram os estereoacutetipos recorrentescujo foco eacute a desumanizaccedilatildeo dos afrodescendentesrdquo(Duarte 2007 p 242-243)

A rarefeita presenccedila do negro em seus escritos eacute cri-ticada eacute verdade mas pelos que natildeo compreenderamos artifiacutecios do ficcionista Basta considerar as criacuteticasque fazia ao regime escravista a pena do cronista e seteraacute uma demonstraccedilatildeo de sua firmeza e convicccedilatildeo arespeito do drama dos escravos

Consideraccedilotildees finaisAtendo-nos agraves crocircnicas apresentadas podemos dizerque as peccedilas se articulam sob uma ambiguidade nar-rativa reflexo da accedilatildeo poliacutetica da classe senhorialescravista representada pelo narrador da crocircnica doescravo Pancraacutecio Schwarz aponta o fenocircmeno deque em Machado a forma de narrar estaacute em corres-pondecircncia com o funcionamento da sociedade que eacuteretratada A brasilidade o vieacutes nacional ldquotem de serdescrito como uma formardquo segundo Schwarz (2000p 10-11) A forma narrativa de Machado estaacute emjogo com o funcionamento da sociedade brasileira dotempo Entatildeo a ambiguidade e a contradiccedilatildeo narrati-vas mais ostensivas na crocircnica de 19 de novembro de1888 estatildeo em correspondecircncia com a ambiguidadepoliacutetica da classe senhorial A crocircnica potildee agraves escacircn-caras o oportunismo de senhores de escravos que seservem do ato de libertaccedilatildeo para dele tirarem o maiorproveito possiacutevel A aboliccedilatildeo natildeo eacute ato humanitaacuterio deconsciecircncia ideoloacutegica mas de simples oportunismo

Nesse quadro o uso e a presenccedila da Biacuteblia comoportadora dos elementos que sustentam a hegemoniacristatilde-catoacutelica participam da ambiguidade da tensatildeoldquoser vs parecerrdquo (proacutepria da tradiccedilatildeo poliacutetica brasileira)a elite senhorial ldquopareciardquo seguir os preceitos biacuteblicos

Pode haver duas possibilidades de avaliaccedilatildeo doldquoEvangelho da missa campalrdquo Uma primeira nega-tiva a elite poliacutetica (sacerdotes e levitas) em lancede oportunismo decreta a libertaccedilatildeo dos escravospara preservar o corpo ainda que com perda da pernarevela-se o perverso conuacutebio poliacutetico de interesses eo ldquoendeusamentordquo dos donos do poder A segundapositiva a libertaccedilatildeo dos escravos plena era de fatoa concretizaccedilatildeo da mensagem do evangelho os aboli-cionistas eram verdadeiros ldquodisciacutepulosrdquo a aboliccedilatildeo era

a versatildeo moderna do verdadeiro evangelho A possede outra pessoa eacute o grande pecado que corrompe osangue o remeacutedio contra a melancolia era natildeo ser nemex-escravo nem ex-senhor

Seria possiacutevel conciliar as duas leituras Parece quesim se forem considerados os elementos ambiacuteguossobretudo da crocircnica de 19 de maio de 1888 Uma ououtra possibilidade projeta ecircnfase aos escritos biacuteblicosinterpretados natildeo como depoacutesito de dogmas controla-dos pela religiatildeo mas como inspiradores de liberdadeE foi com a liberdade de um ficcionista que Machadousou a Biacuteblia

Referecircncias

A Biacuteblia de Jerusaleacutem1983 Satildeo Paulo Paulinas

Assis Machado de2008 Obra completa em quatro volumes Rio deJaneiro Nova Aguilar

Bertrand Denis2003 Caminhos da semioacutetica literaacuteria Bauru SPEdusc

Biacuteblia Sagrada1993 Traduccedilatildeo de Joatildeo Ferreira de Almeida SatildeoPaulo Sociedade Biacuteblica do Brasil

Duarte Eduardo de Assis2007 Machado de Assis afro-descendente Rio deJaneiroBelo Horizonte PallasCrisaacutelida

Eliade Mircea1981 O mito do eterno retorno arqueacutetipos e repeti-ccedilatildeo Lisboa Ediccedilotildees 70

Fiorin Joseacute Luiz2006 Interdiscursividade e intertextualidade InBrait Beth (Org) Bakhtin outros conceitos-chaveSatildeo Paulo Contexto

Gledson John1986 Machado de Assis ficccedilatildeo e histoacuteria Rio deJaneiro Paz e Terra

Nascimento Gizecirclda Melo do2002 Machado Trecircs momentos negros Terraroxa e outras terras Revista de Estudos Li-teraacuterios Volume 2 p 53-62 Disponiacutevel em〈 httpwwwuelbrcchposletrasterraroxa 〉 Acesso em7 dez 2009

Schwarz Roberto2000 Um mestre na periferia do capitalismo Ma-chado de Assis Satildeo Paulo Duas CidadesEditora34

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Dados para indexaccedilatildeo em liacutengua estrangeira

Proenccedila Paulo Seacutergio deBiblical Intertextuality and Slavery in Machado de Assis (Two Chronicles of

May 1888)Estudos Semioacuteticos vol 6 n 2 (2010) p 77-85

issn 1980-4016

Abstract On May 17th 1988 during Thanksgiving for the abolition of slaves a Mass was celebrated in thepresence of the Regent Princess and other authorities In allusion to the event a Machadian chronicle parodiesthe gospel of the Mass Just like the first biblical gospel the parody has its Christ John the Baptist and thedisciples in addition to a parable Besides the biblical gospels the chronicle mentions the books Deuteronomy andEcclesiastes The author provokes particular effects as he superposes in a parodic way the events and charactersof his epoch to the biblical ones that leads one to ponder about the meaning of the events portrayed in a criticto the politicians and towards the events that resulted in the adoption of the abolition Machado wrote anotherfamous chronicle published on May 19th 1888 to which biblical allusions were not lacking to celebrate the freeingof the slave Pancraacutecio The narrator claims to anticipate the government measures and sets free his slave lad andoffers a banquet in order to celebrate the occasion Biblical images are used to highlight the event mdash everythingaiming at drawing attention to the narrator who does not conceal his political aspirations achieving them nothingbetter than pretending to follow Christian values and pretending to be good What is the sense effect of biblicalintertextuality in these plays by Machado regarding slavery That is what we intend to investigate

Keywords Machado de Assis Bible slavery

Como citar este artigo

Proenccedila Paulo Seacutergio de Intertextualidade biacuteblica eescravidatildeo em Machado de Assis (duas crocircnicas de maiode 1888) Estudos Semioacuteticos [on-line] Disponiacutevel em〈 httpwwwfflchuspbrdlsemioticaes 〉 Editores Respon-saacuteveis Francisco E S Merccedilon e Mariana Luz P deBarros Volume 6 Nuacutemero 2 Satildeo Paulo novembro de2010 p 77ndash85 Acesso em ldquodiamecircsanordquo

Data de recebimento do artigo 20112009

Data de sua aprovaccedilatildeo 10042010

  • Introduccedilatildeo
  • Crocircnica de 20-21 de maio de 1888 (``Evangelho da Missa Campal)
  • Crocircnica de 19 de maio de 1888
  • Consideraccedilotildees adicionais
  • Consideraccedilotildees finais
  • Referecircncias
Page 4: Intertextualidade bíblica e escravidão em Machado de Assis

Paulo Seacutergio de Proenccedila

A primeira parte da peccedila machadiana vai ateacute o verso10 e tem por fonte o Evangelho de Joatildeo como se pocircdeverificar nos trechos citados Eacute ressaltada a combina-ccedilatildeo de embreagens (temporais espaciais e actoriais)que aproximam os tempos do passado miacutetico e do pre-sente entatildeo vivido7 A embreagem temporal eacute indicadana introduccedilatildeo da crocircnica com a menccedilatildeo agrave data da ce-lebraccedilatildeo da missa a espacial no ldquoversiacuteculo 8ordquo ldquoEstascoisas passaram-se no senado da banda de aleacutem docampo da Aclamaccedilatildeo esquina da rua do Arealrdquo a ac-torial pela menccedilatildeo dos personagens que participaramdos eventos poliacuteticos cujo desfecho foi a aboliccedilatildeo

Essas embreagens provocam uma superposiccedilatildeo doseventos (Aboliccedilatildeo e evangelho biacuteblico) o ldquolaacute-entatildeordquo seconfunde com o ldquoeu-aquirdquo da enunciaccedilatildeo a fusatildeo

anula as distacircncias espaciais e as diferenccedilas tempo-rais Assim as fontes biacuteblicas constituem uma espeacuteciede moldura que motivam e suportam a anaacutelise e inter-pretaccedilatildeo dos acontecimentos histoacutericos que resultamna libertaccedilatildeo dos escravos

Dos ldquoversiacuteculosrdquo 11 ao 16 Antonio Prado abolici-onista eacute comparado a Joatildeo Batista8 e Joatildeo Alfredoao proacuteprio Jesus Alude-se entatildeo ao trecho biacuteblicoda ldquovocaccedilatildeo dos disciacutepulosrdquo e na crocircnica o grupo dosdisciacutepulos abolicionistas eacute composto por semelhanteldquovocaccedilatildeordquo Tudo indica que a fonte para esta partenatildeo eacute mais o Evangelho de Joatildeo mas o Evangelho deMateus inclusive pela menccedilatildeo agrave ldquoigrejardquo9 registradasomente neste evangelho

Evangelho de Joatildeo capiacutetulo 4o Evangelho da missa campal

18 Caminhando junto ao mar da Galileia viudois irmatildeos Simatildeo chamado Pedro e Andreacute quelanccedilavam as redes ao mar porque eram pescadores19 E disse-lhes Vinde apoacutes mim e eu vos fareipescadores de homens

11 E Joatildeo Alfredo indo para a Galileiaa que eacuteno caminho de Botafogo mandou dizer a AntocircnioPrado que estava perto da Consolaccedilatildeo Vem que eacutesobre ti que edificarei a minha igreja

21 Passando adiante viu outros dois irmatildeos Ti-ago filho de Zebedeu e Joatildeo seu irmatildeo que es-tavam no barco em companhia de seu pai con-sertando as redes e chamou-os 22 Entatildeo elesno mesmo instante deixando o barco e seu pai oseguiram

12 Depois indo a uma cela de convento viu laacute umhomem por nome Ferreira Viana o qual descansavade uma paacutegina de Agostinho lendo outra de Ciacuteceroe disse-lhe Deixa esse livro e segue-me que embreve te farei outro Ciacutecero natildeo de romanos masde uma gente nova e Ferreira Viana despindo ohaacutebito e envergando a farda seguiu a Joatildeo Alfredo(Assis 2008 vol 4 p 813)

a ldquoGalileia eacute um famoso engenho de Pernambuco proviacutencia pela qual Joatildeo Alfredo foi Senador (o irocircnico significado religioso eacutesuficientemente claro naturalmente)rdquo (Gledson 1986 p 33)

A partir do verso 17 do ldquoEvangelho da Missa Cam-palrdquo eacute mencionada a uacutelcera por meio de paraacutebolarecurso frequentemente utilizado por Jesus em seusensinamentos

17 E respondendo todos que sim disse umdeles por paraacutebola que no ponto em que esta-vam as coisas melhor era cortar a perna quelavar a uacutelcera pois a uacutelcera ia corrompendoo sangue

18 Mas ficando Joatildeo Alfredo pensativo dis-seram os outros entre si Que teraacute ele

19 Entatildeo o mestre ouvindo a perguntadisse Prevejo que haacute de haver uma consultade sacerdotes e levitas para ver se chegam acompor certo unguento que os levitas aplica-ratildeo na uacutelcera mas natildeo temais nada ele natildeoseraacute aplicado (Assis 2008 vol 4 p 814)

Segundo Joatildeo Alfredo ldquomelhor era cortar a perna10

que lavar a uacutelcera pois a uacutelcera ia corrompendo o7 Embreagem e debreagem satildeo operaccedilotildees discursivas vinculadas agrave enunciaccedilatildeo satildeo projeccedilotildees de categorias semacircnticas (tempo espaccedilo e

pessoa) que instalam o universo de sentido conforme Bertrand (2003 p 90)8 Joatildeo Batista foi ldquoo precursorrdquo (preparou o caminho para Jesus) papel desempenhado por Antonio Prado nos bastidores da poliacutetica

que resultou na aboliccedilatildeo9 A referecircncia se encontra em Mt-18 v 16

10 A simbologia de ldquopernardquo eacute sugestiva associa-se a peacute e calcanhar Pode indicar fragilidade conforme a expressatildeo ldquocalcanhar de Aquilesrdquocunhada a partir da parte do corpo vulneraacutevel do famoso heroacutei grego Haacute tambeacutem a expressatildeo ldquogigante de peacutes de barrordquo ligada ao livrobiacuteblico de Daniel Natildeo se deve esquecer que Eugecircnia nas Memoacuterias Poacutestumas eacute a ldquoVecircnus mancardquo A perna o peacute e o calcanhar sustentam ocorpo daiacute se associarem agrave ideia de ldquobaserdquo ldquofundamentordquo A sociedade carioca (brasileira) tinha entatildeo seus fundamentos doentes

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estudos semioacuteticos vol 6 no 2

sanguerdquo A propoacutesito do unguento o mestre previneos disciacutepulos ldquonatildeo temais nada ele natildeo seraacute aplicadordquo(v 19) Sobre a composiccedilatildeo do unguento o disciacutepuloViana lido nas escrituras diz

21 Estaacute escrito no livro de Elle Haddeba-rim tambeacutem chamado Deuteronocircmio quequando o escravo tiver servido seis anos noseacutetimo ano o dono o deixe ir livre e natildeo comas matildeos abanando senatildeo com um alforje decomida e bebida Este eacute de certo o unguentolembrado menos talvez o alforje e os seisanos11 (Assis 2008 vol 4 p 814)

Como a uacutelcera natildeo podia esperar e com a becircnccedilatildeoda Regente a Joatildeo e seus disciacutepulos ldquoforam para ascacircmaras onde apresentaram o projetordquo (v 24) Aquireside a chave de interpretaccedilatildeo da paraacutebola o ldquoun-guentordquo era o projeto da libertaccedilatildeo dos escravos12 Noentanto o remeacutedio era ineficaz porque viciado pelafalta do alforje e dos seis anos (amparo indispensaacutevel agravesobrevivecircncia dos libertos segundo a tradiccedilatildeo biacuteblicae que natildeo estava sendo observado) O unguento natildeocuraria a uacutelcera A uacutelcera corromperia o sangue Eacute oque se deduz da sequecircncia da crocircnica No Maranhatildeopor exemplo escravos inocentes foram castigados porcausa da lei (por eles inclusive desconhecida)

27 Menos no Bacabal proviacutencia do Mara-nhatildeo onde alguns homens declararam quea lei natildeo valia nada e pegando no azorra-gue castigaram os seus escravos cujo crimenessa ocasiatildeo era unicamente haver sido vo-tado uma lei de que eles natildeo sabiam nada ea proacutepria autoridade se ligou com esses ho-mens rebeldes (Assis 2008 vol 4 p 814)

De fato o unguento tinha viacutecios em sua composiccedilatildeonatildeo soacute natildeo havia alforje mas tambeacutem havia muitaviolecircncia aleacutem de ldquorebeldesrdquo senhores que se recusa-vam a aceitar e a cumprir a lei no que eram apoiadospor autoridades governamentais Por isso o unguentocorrompeu a uacutelcera E corromperia mais Vejamos ofinal da crocircnica

28 Vendo isto disse um sisudo de Babilocircniapor outro nome Carioca Ah Se estivessem

no Maranhatildeo alguns ex-escravos daqui quedepois de livres compraram tambeacutem escra-vos quatildeo menor seria a melancolia dessesque satildeo agora duas coisas ao mesmo tempoex-escravos e ex-senhores Bem diz o Eclesi-astes Algumas vezes tem o homem domiacuteniosobre outro homem para desgraccedila sua Omelhor de tudo acrescento eu eacute possuir-sea gente a si mesmo (Assis 2008 vol 4 p814)

A crocircnica constata que Babilocircnia era agora ldquoCari-ocardquo13 O versiacuteculo final combina melancolia Ecle-siastes e domiacutenio sobre outro homem A melancolianos remete a Memoacuterias Poacutestumas Braacutes Cubas movidopor ldquosede de nomeadardquo tambeacutem quis compor o seuunguento milagroso para acabar com a melancolia doshomens Quem acabou foi o proacuteprio Braacutes Menciona-se ainda o fato de que ex-escravos compravam es-cravos e com a aboliccedilatildeo tornaram-se ex-senhores eex-escravos esses fatores combinados aumentariama melancolia14 Por fim o narrador usando da pri-meira pessoa para produzir o efeito de subjetividadedaacute sinais de que rejeita o domiacutenio de homens sobreoutros homens Para isso cita o Eclesiastes (Ec 89)ldquoAlgumas vezes tem o homem domiacutenio sobre outro ho-mem para desgraccedila suardquo Grande desgraccedila eacute essapois dominar outros eacute a negaccedilatildeo da liberdade ldquodireitoinalienaacutevelrdquo

Natildeo se pode dizer que a partir desta breve paroacutediaMachado de Assis foi indiferente agrave escravidatildeo A peccedilaevoca trechos biacuteblicos do Antigo e do Novo Testamentorelacionados direta ou indiretamente agrave escravidatildeo ea partir deles suscita reflexotildees sobre a fragilidadedas motivaccedilotildees poliacutetico-ideoloacutegicas que culminaramna Aboliccedilatildeo Afinal segundo a paraacutebola da crocircnicaeacute mais vantajoso perder uma perna do que perder ocorpo todo Isso se liga diretamente agrave menccedilatildeo ao livrodo Deuteronocircmio (Elle Haddebarim) o que potildee agrave luz asreais motivaccedilotildees dos escravocratas que se recusavama oferecer alforjes aos libertos

2 Crocircnica de 19 de maio de 1888Tambeacutem estaacute voltada ao tema da escravidatildeo todapermeada por um tom irocircnico O narrador dono de

11 Elle Haddebarim eacute o nome hebraico do livro do Deuteronocircmio Os nomes dos livros da Biacuteblia cristatilde satildeo tirados da traduccedilatildeo grega dossetenta a Septuaginta A tradiccedilatildeo hebraica nomeia os livros a partir das primeiras palavras do livro O exemplar que Machado possuiacutea daBiacuteblia registrava os nomes hebraicos dos livros O trecho a que se faz alusatildeo estaacute em Dt-15 v 12-15 ldquo12 Quando um de teus irmatildeoshebreu ou hebreia te for vendido seis anos servir-te-aacute mas no seacutetimo o despediraacutes forro 13 E quando de ti o despedires forro natildeo odeixaraacutes ir vazio 14 Liberalmente lhe forneceraacutes do teu rebanho da tua eira e do teu lagar daquilo com que o SENHOR teu Deus tehouver abenccediloado lhe daraacutes 15 Lembrar-te-aacutes de que foste servo na terra do Egito e de que o SENHOR teu Deus te remiu pelo quehoje isso te ordenordquo

12 O ldquounguentordquo do evangelho era a boa nova do evangelho pregado por Jesus Nas injunccedilotildees poliacuteticas sugeridas pela crocircnica agrave parte oidealismo dos abolicionistas a libertaccedilatildeo dos escravos foi concessatildeo dos donos do poder para evitar o mal maior era preferiacutevel perder umaperna a perder o corpo todo

13 Babilocircnia eacute aqui Babilocircnia indica natildeo somente a confusatildeo de liacutenguas mas principalmente o exiacutelio e escravidatildeo Este eacute o efeito daexpressatildeo ldquoBabilocircnica cariocardquo

14 As Memoacuterias Poacutestumas apresentam o fenocircmeno no capiacutetulo LXVIII ldquoO vergalhordquo Prudecircncio escravo alforriado pelo pai de Braacutes Cubasnatildeo somente compra um escravo mas o agride em puacuteblico reproduzindo exatamente a forma de tratamento recebida do proacuteprio Braacutes

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Paulo Seacutergio de Proenccedila

escravos assume um tom ambiacuteguo e contraditoacuteriorevelador da postura da classe senhorial A senha estaacutejaacute na abertura ldquoEu pertenccedilo a uma famiacutelia de profetasapregraves coup post factum depois do gato morto [] todaa histoacuteria desta Lei de 13 de Maio estava por mimprevista tanto que na segunda-feira antes mesmodos debates tratei de alforriar um molecoterdquo (Assis2008 vol 4 p 811) Essa caracterizaccedilatildeo inicial feitapelo proacuteprio narrador o desmascara porque a liber-taccedilatildeo dos escravos se jaacute natildeo tinha acontecido poucoantes era favas contadas querendo tirar vantagensda situaccedilatildeo organiza um jantar (banquete segundoamigos) para tornar puacuteblica a decisatildeo cinco pessoascompareceram mas se noticiou que foram trinta etrecircs (alusatildeo agrave idade de Cristo) para dar ao eventoum aspecto simboacutelico O ldquobanqueterdquo motiva a alusatildeotrata-se da eucaristia que eacute tambeacutem uma refeiccedilatildeoespecial e simboacutelica de valor sacramental A euca-ristia eacute a versatildeo cristatilde da Paacutescoa dos hebreus Paraos cristatildeos a morte pascal de Cristo eacute vicaacuteria paraldquolibertarrdquo os homens do pecado Essa noccedilatildeo de mortevicaacuteria de Jesus eacute inspirada na narrativa do ecircxodo emque na ldquolibertaccedilatildeordquo dos hebreus houve a morte dosprimogecircnitos do Egito tambeacutem comemorada com umaceia tanto por judeus quanto por cristatildeos Importaaqui notar os laccedilos ldquosimboacutelicosrdquo que remetem agrave ideiade libertaccedilatildeo15

Durante o jantar da crocircnica o narrador toma apalavra

[] declarei que acompanhando as ideias pre-gadas por Cristo haacute dezoito seacuteculos restituiacuteaa liberdade ao meu escravo Pancraacutecio queentendia a que a naccedilatildeo inteira devia acom-panhar as mesmas ideias e imitar o meuexemplo finalmente que a liberdade era umdom de Deus que os homens natildeo podiamroubar sem pecado (Assis 2008 vol 4 p811)

Se as ideias de Cristo datavam jaacute de dezoito seacuteculospor que soacute entatildeo o narrador restituiacutea a liberdade aoescravo Se a liberdade era um dom de Deus ldquoqueos homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo por queele tinha escravo Essas contradiccedilotildees satildeo evidencia-das pelo proacuteprio narrador reveladoras de um mundosenhorial mal assentado ideologicamente sustentado

pelos valores do cristianismo professado apenas noniacutevel do parecer ldquoRestituirrdquo a liberdade tem o efeito deldquoconfissatildeordquo de um crime em combinaccedilatildeo com o finaldo trecho transcrito ldquoa liberdade era um dom de Deusque os homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo E senos lembramos da paroacutedia da missa campal podemosassociar a ideia de ldquopecadordquo agrave uacutelcera contaminadorada perna E quando o narrador reivindica que ldquotodaa naccedilatildeo devia acompanhar []rdquo sinaliza a dimensatildeosocial (nacional) da uacutelcera

Depois de alforriado Pancraacutecio16 foi contratado porum salaacuterio (minimum minimorum) A mudanccedila na re-laccedilatildeo econocircmica natildeo acabava com a dependecircncia e aexploraccedilatildeo ela foi historicamente necessaacuteria para amanutenccedilatildeo dos privileacutegios da classe senhorial

[] a Aboliccedilatildeo eacute relativa libertando os es-cravos natildeo se faz mais do que libertaacute-lospara o mercado de trabalho no qual seratildeocontratados e demitidos e sem duacutevida re-ceberatildeo salaacuterios miseraacuteveis - numa situaccedilatildeodessas em que a liberdade conduz a outraforma de submissatildeo dos fracos aos fortes []Machado entre ironias e ldquopilheacuteriasrdquo traz agraveatenccedilatildeo do leitor algo essencial A aboliccedilatildeonatildeo eacute um movimento da escuridatildeo para aluz mas a simples passagem de um relacio-namento econocircmico e social opressivo paraoutro (Gledson 1986 p 124)

Natildeo se alterou profundamente a relaccedilatildeo entre senhore escravo principalmente no emprego da violecircncia fiacute-sica e verbal ldquotenho-lhe despedido alguns pontapeacutesum ou outro puxatildeo de orelhas e chamo-lhe besta17

quando lhe natildeo chamo filho do Diabo18 coisas todasque ele recebe humildemente e (Deus me perdoe)creio que ateacute alegrerdquo (Assis 2008 vol 4 p 812) Essefinal eacute engenhoso ao contrapor uma eventual pontade religiosidade marcada pela expressatildeo ldquoDeus meperdoerdquo agrave violecircncia contra o escravo A engenhosidade(da narraccedilatildeo) beira a perversidade (do narrador insta-lado) quando este supotildee que poderia haver qualquersensaccedilatildeo de alegria em algueacutem ser escravo ainda maisum ldquomolecoterdquo

A crocircnica termina por alinhavar o descaramento donarrador para quem

15 Sabe-se que Jesus morreu aos 33 anos Esse ldquoaspecto simboacutelicordquo eacute significativo pois sugere que o narrador com seu ato estavasendo fiel aos ensinos de Cristo mas o que ocorria era justamente o contraacuterio

16 ldquoPancraacuteciordquo tem origem grega e ironicamente significa ldquodetentor de todos os poderesrdquo Alguns nomes de personagens machadianostecircm a mesma caracteriacutestica Eugecircnia e Dona Plaacutecida por exemplo

17 Era o tratamento que Braacutes Cubas dava a Prudecircncio na infacircncia ldquo[] era o meu cavalo de todos os dias punha a matildeo no chatildeorecebia um cordel nos queixos agrave guisa de freio eu trepava-lhe ao dorso com uma varinha na matildeo fustigava-o dava mil voltas a um eoutro lado e ele obedecia mdash algumas vezes gemendo mdash mas obedecia sem dizer palavra ou quando muito um lsquoai nhonhocircrsquo ao que euretorquia lsquoCala a boca bestarsquo rdquo (Assis 2008 vol 1 p 638) Este tratamento eacute caracteriacutestico da violecircncia fiacutesica e simboacutelica a que o escravoestava sujeito ldquoO tratamento dado ao afrodescendente passa pelo supliacutecio e pela animalizaccedilatildeo revestindo a cena de forte sentido alegoacutericoo negro eacute posto de quatro eacute o animal sobre o qual o branco monta O jogo infantil nada tem de inocente e mimetiza a posiccedilatildeo de cada umna estrutura vigente na sociedaderdquo (Duarte 2007 p 276)

18 ldquoFilho do Diabordquo estaacute na boca do narrador Filho do Diabo por quecirc Por que era negro

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estudos semioacuteticos vol 6 no 2

[] os homens puros grandes e verdadeira-mente poliacuteticos natildeo satildeo os que obedecem agravelei mas os que se antecipam a ela19 dizendoao escravo eacutes livre antes que o digam ospoderes puacuteblicos sempre retardataacuterios trocirc-pegos e incapazes de restaurar a justiccedila naterra para satisfaccedilatildeo do Ceacuteu (Gledson 1986p 124)

Na crocircnica de 26 de junho de 1888 (Assis 2008 vol4 p 812-813) a inspiraccedilatildeo vem do romance Almasmortas de Gogol em que eacute criticado de novo o oportu-nismo dos senhores de escravos que urdiam fraudesem negociaccedilotildees de escravos para serem depois elessenhores indenizados pelo poder puacuteblico O narradorse esconde na pele de um burguecircs espertalhatildeo quequer tirar proveito da situaccedilatildeo ldquoMachado universalizao drama dos escravizados ao comparaacute-los aos servosrussosrdquo (Duarte 2007 p 249)

O capiacutetulo XXXVII (ldquoDesacordo no acordordquo) de Esauacutee Jacoacute ao narrar a reaccedilatildeo dos gecircmeos por ocasiatildeo daproclamaccedilatildeo da Repuacuteblica toca de forma filosoacutefica naconcepccedilatildeo de liberdade e de escravidatildeo natildeo limitadaagraves injunccedilotildees poliacutetico-econocircmicas

A diferenccedila uacutenica entre eles dizia respeito agravesignificaccedilatildeo da reforma que para Pedro eraum ato de justiccedila e para Paulo era o iniacutecio darevoluccedilatildeo Ele mesmo o disse concluindo umdiscurso em S Paulo no dia 20 de maio ldquoAaboliccedilatildeo eacute a aurora da liberdade esperemoso sol emancipado o preto resta emancipar obrancordquo (Assis 2008 vol 1 p 1121)

Eacute digno de nota que a data da crocircnica sobre a missacampal eacute 20-21 de maio de 1888 a da crocircnica sobrePancraacutecio eacute 19 de maio de 1888 e a do discurso dePaulo eacute 20 de maio de 1888 Essa convergecircncia natildeoeacute gratuita O discurso de Paulo em Esauacute e Jacoacute decerta forma complementa e explica a conclusatildeo dacrocircnica da missa campal Parece que estamos aindana aurora da liberdade

A crocircnica de 20-21 de maio de 1888 (ldquoEvangelho daMissa Campalrdquo) parodia partes dos Evangelhos biacutebli-cos cria uma paraacutebola relativa ao tema da escravidatildeocita os livros Deuteronocircmio e Eclesiastes do AntigoTestamento Essa combinaccedilatildeo eacute coerente e convergepara a unidade temaacutetica da escravidatildeo A paroacutedia aosevangelhos emoldurando a libertaccedilatildeo motiva uma lei-tura natildeo canocircnica do proacuteprio texto biacuteblico (libertaccedilatildeoeconocircmica e poliacutetica natildeo apenas espiritual) e uma

motivaccedilatildeo biacuteblica para leitura de fatos histoacutericos Emoutras palavras o presente eacute projetado para o passadoe o passado se aproxima do presente numa fusatildeouniversalizante (efeito das embreagens temporais e es-paciais aqui referidas) que por sua vez projeta a escra-vidatildeo do quadro histoacuterico para o filosoacutefico-existencialEssa transposiccedilatildeo eacute suscitada pela menccedilatildeo ao Eclesi-astes no final da paroacutedia (v 28) ldquoAlgumas vezes temo homem domiacutenio sobre outro homem para desgraccedilasuardquo A ldquodesgraccedilardquo entatildeo muda de lado acompanhao possuidor Daiacute o discurso de um dos gecircmeos deEsauacute e Jacoacute anteriormente mencionado (publicado 16anos depois) ldquoemancipado o preto resta emancipar obrancordquo

A crocircnica de 19 de maio de 1888 tambeacutem sob moti-vaccedilatildeo biacuteblica (ldquoacompanhando as ideias pregadas porCristo haacute dezoito seacuteculos restituiacutea a liberdade ao meuescravo Pancraacutecio [] a liberdade era um dom de Deusque os homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo) ex-plora as ambiguidades do narrador que ldquoparecerdquo seguiros preceitos biacuteblicos ao libertar seu escravo contudoisso natildeo passa de lance teatral de estrateacutegia poliacuteticaNesse jogo de ambiguidades o fundo biacuteblico sustentauma denuacutencia velada opera um desmascaramento daideologia dos senhores de escravos

3 Consideraccedilotildees adicionaisMachado foi omisso em relaccedilatildeo agrave escravidatildeo comopensaram alguns criacuteticos A julgar pelas crocircnicas ana-lisadas natildeo Eacute claro que haacute outros escritos do autorrelativos ao tema natildeo mencionados por natildeo teremviacutenculos diretos com a Biacuteblia Mas com seguranccedilapode-se afirmar que de fato natildeo foi ele indiferenteIsso jaacute tinha sido percebido por Magalhatildees Juacutenior20 nadeacutecada de 1950 quando comeccedilou a cair por terra a tesedo absenteiacutesmo machadiano Depois de MagalhatildeesJuacutenior outros autores como Brito Broca AstrojildoPereira Raimundo Faoro Roberto Schwarz e maisrecentemente Sidney Chalhoub21 contribuiacuteram parareconhecer que haacute em Machado tratamento conscientedos dilemas de seu tempo Schwarz22 por exemploldquoanalisa a inserccedilatildeo histoacuterica da obra a partir de seusviacutenculos estruturais com o modo e organizaccedilatildeo da so-ciedade brasileira no Segundo Reinadordquo (Duarte 2007p 263) Gledson (1986 p 14) por sua vez apontaa relaccedilatildeo da obra com os principais fatos histoacutericosda eacutepoca Ele indica o caraacuteter enganoso do realismomachadiano que exige leitura atenta das entrelinhas

Chalhoub23 estuda pareceres e documentos de Ma-chado na ldquoarena de lutardquo da aplicaccedilatildeo da Lei de 28

19 Nisso reside a contradiccedilatildeo do narrador pois a crocircnica se inicia assim ldquoEu pertenccedilo a uma famiacutelia de profetas apregraves coup post factumdepois do gato morto []rdquo

20 Na obra Machado de Assis desconhecido haacute um capiacutetulo intitulado ldquoMachado de Assis e a aboliccedilatildeordquo (Raimundo Magalhatildees JrMachado de Assis desconhecido Satildeo Paulo Lisa-Livros Irradiantes 1971)

21 Sidney Chalhoub Machado de Assis historiador Satildeo Paulo Companhia das Letras 200322 Roberto Schwarz Um mestre na periferia do capitalismo Machado de Assis Satildeo Paulo Duas Cidades Editora 34 200023 Chalhoub Op cit

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Paulo Seacutergio de Proenccedila

de setembro de 1871 (a Lei do Ventre Livre) Emseu exame com o olhar de historiador o pesquisadoranalisou documentos que circularam na burocraciaimperial Machado fez de seu posto uma trincheiracontra os desmandos dos senhores de escravos tendoemitido pareceres favoraacuteveis a escravos coerentes como espiacuterito da liberdade e da legalidade Pelo contraacuterionatildeo haacute nenhuma evidecircncia em sua obra de que houveapoio velado ou ostensivo agrave escravidatildeo ldquoNos escritosmachadianos natildeo se vecirc em nenhum momento palavrasde apoio mesmo que impliacutecito ou subtendido agrave escra-vidatildeo Nem se encontram os estereoacutetipos recorrentescujo foco eacute a desumanizaccedilatildeo dos afrodescendentesrdquo(Duarte 2007 p 242-243)

A rarefeita presenccedila do negro em seus escritos eacute cri-ticada eacute verdade mas pelos que natildeo compreenderamos artifiacutecios do ficcionista Basta considerar as criacuteticasque fazia ao regime escravista a pena do cronista e seteraacute uma demonstraccedilatildeo de sua firmeza e convicccedilatildeo arespeito do drama dos escravos

Consideraccedilotildees finaisAtendo-nos agraves crocircnicas apresentadas podemos dizerque as peccedilas se articulam sob uma ambiguidade nar-rativa reflexo da accedilatildeo poliacutetica da classe senhorialescravista representada pelo narrador da crocircnica doescravo Pancraacutecio Schwarz aponta o fenocircmeno deque em Machado a forma de narrar estaacute em corres-pondecircncia com o funcionamento da sociedade que eacuteretratada A brasilidade o vieacutes nacional ldquotem de serdescrito como uma formardquo segundo Schwarz (2000p 10-11) A forma narrativa de Machado estaacute emjogo com o funcionamento da sociedade brasileira dotempo Entatildeo a ambiguidade e a contradiccedilatildeo narrati-vas mais ostensivas na crocircnica de 19 de novembro de1888 estatildeo em correspondecircncia com a ambiguidadepoliacutetica da classe senhorial A crocircnica potildee agraves escacircn-caras o oportunismo de senhores de escravos que seservem do ato de libertaccedilatildeo para dele tirarem o maiorproveito possiacutevel A aboliccedilatildeo natildeo eacute ato humanitaacuterio deconsciecircncia ideoloacutegica mas de simples oportunismo

Nesse quadro o uso e a presenccedila da Biacuteblia comoportadora dos elementos que sustentam a hegemoniacristatilde-catoacutelica participam da ambiguidade da tensatildeoldquoser vs parecerrdquo (proacutepria da tradiccedilatildeo poliacutetica brasileira)a elite senhorial ldquopareciardquo seguir os preceitos biacuteblicos

Pode haver duas possibilidades de avaliaccedilatildeo doldquoEvangelho da missa campalrdquo Uma primeira nega-tiva a elite poliacutetica (sacerdotes e levitas) em lancede oportunismo decreta a libertaccedilatildeo dos escravospara preservar o corpo ainda que com perda da pernarevela-se o perverso conuacutebio poliacutetico de interesses eo ldquoendeusamentordquo dos donos do poder A segundapositiva a libertaccedilatildeo dos escravos plena era de fatoa concretizaccedilatildeo da mensagem do evangelho os aboli-cionistas eram verdadeiros ldquodisciacutepulosrdquo a aboliccedilatildeo era

a versatildeo moderna do verdadeiro evangelho A possede outra pessoa eacute o grande pecado que corrompe osangue o remeacutedio contra a melancolia era natildeo ser nemex-escravo nem ex-senhor

Seria possiacutevel conciliar as duas leituras Parece quesim se forem considerados os elementos ambiacuteguossobretudo da crocircnica de 19 de maio de 1888 Uma ououtra possibilidade projeta ecircnfase aos escritos biacuteblicosinterpretados natildeo como depoacutesito de dogmas controla-dos pela religiatildeo mas como inspiradores de liberdadeE foi com a liberdade de um ficcionista que Machadousou a Biacuteblia

Referecircncias

A Biacuteblia de Jerusaleacutem1983 Satildeo Paulo Paulinas

Assis Machado de2008 Obra completa em quatro volumes Rio deJaneiro Nova Aguilar

Bertrand Denis2003 Caminhos da semioacutetica literaacuteria Bauru SPEdusc

Biacuteblia Sagrada1993 Traduccedilatildeo de Joatildeo Ferreira de Almeida SatildeoPaulo Sociedade Biacuteblica do Brasil

Duarte Eduardo de Assis2007 Machado de Assis afro-descendente Rio deJaneiroBelo Horizonte PallasCrisaacutelida

Eliade Mircea1981 O mito do eterno retorno arqueacutetipos e repeti-ccedilatildeo Lisboa Ediccedilotildees 70

Fiorin Joseacute Luiz2006 Interdiscursividade e intertextualidade InBrait Beth (Org) Bakhtin outros conceitos-chaveSatildeo Paulo Contexto

Gledson John1986 Machado de Assis ficccedilatildeo e histoacuteria Rio deJaneiro Paz e Terra

Nascimento Gizecirclda Melo do2002 Machado Trecircs momentos negros Terraroxa e outras terras Revista de Estudos Li-teraacuterios Volume 2 p 53-62 Disponiacutevel em〈 httpwwwuelbrcchposletrasterraroxa 〉 Acesso em7 dez 2009

Schwarz Roberto2000 Um mestre na periferia do capitalismo Ma-chado de Assis Satildeo Paulo Duas CidadesEditora34

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Dados para indexaccedilatildeo em liacutengua estrangeira

Proenccedila Paulo Seacutergio deBiblical Intertextuality and Slavery in Machado de Assis (Two Chronicles of

May 1888)Estudos Semioacuteticos vol 6 n 2 (2010) p 77-85

issn 1980-4016

Abstract On May 17th 1988 during Thanksgiving for the abolition of slaves a Mass was celebrated in thepresence of the Regent Princess and other authorities In allusion to the event a Machadian chronicle parodiesthe gospel of the Mass Just like the first biblical gospel the parody has its Christ John the Baptist and thedisciples in addition to a parable Besides the biblical gospels the chronicle mentions the books Deuteronomy andEcclesiastes The author provokes particular effects as he superposes in a parodic way the events and charactersof his epoch to the biblical ones that leads one to ponder about the meaning of the events portrayed in a criticto the politicians and towards the events that resulted in the adoption of the abolition Machado wrote anotherfamous chronicle published on May 19th 1888 to which biblical allusions were not lacking to celebrate the freeingof the slave Pancraacutecio The narrator claims to anticipate the government measures and sets free his slave lad andoffers a banquet in order to celebrate the occasion Biblical images are used to highlight the event mdash everythingaiming at drawing attention to the narrator who does not conceal his political aspirations achieving them nothingbetter than pretending to follow Christian values and pretending to be good What is the sense effect of biblicalintertextuality in these plays by Machado regarding slavery That is what we intend to investigate

Keywords Machado de Assis Bible slavery

Como citar este artigo

Proenccedila Paulo Seacutergio de Intertextualidade biacuteblica eescravidatildeo em Machado de Assis (duas crocircnicas de maiode 1888) Estudos Semioacuteticos [on-line] Disponiacutevel em〈 httpwwwfflchuspbrdlsemioticaes 〉 Editores Respon-saacuteveis Francisco E S Merccedilon e Mariana Luz P deBarros Volume 6 Nuacutemero 2 Satildeo Paulo novembro de2010 p 77ndash85 Acesso em ldquodiamecircsanordquo

Data de recebimento do artigo 20112009

Data de sua aprovaccedilatildeo 10042010

  • Introduccedilatildeo
  • Crocircnica de 20-21 de maio de 1888 (``Evangelho da Missa Campal)
  • Crocircnica de 19 de maio de 1888
  • Consideraccedilotildees adicionais
  • Consideraccedilotildees finais
  • Referecircncias
Page 5: Intertextualidade bíblica e escravidão em Machado de Assis

estudos semioacuteticos vol 6 no 2

sanguerdquo A propoacutesito do unguento o mestre previneos disciacutepulos ldquonatildeo temais nada ele natildeo seraacute aplicadordquo(v 19) Sobre a composiccedilatildeo do unguento o disciacutepuloViana lido nas escrituras diz

21 Estaacute escrito no livro de Elle Haddeba-rim tambeacutem chamado Deuteronocircmio quequando o escravo tiver servido seis anos noseacutetimo ano o dono o deixe ir livre e natildeo comas matildeos abanando senatildeo com um alforje decomida e bebida Este eacute de certo o unguentolembrado menos talvez o alforje e os seisanos11 (Assis 2008 vol 4 p 814)

Como a uacutelcera natildeo podia esperar e com a becircnccedilatildeoda Regente a Joatildeo e seus disciacutepulos ldquoforam para ascacircmaras onde apresentaram o projetordquo (v 24) Aquireside a chave de interpretaccedilatildeo da paraacutebola o ldquoun-guentordquo era o projeto da libertaccedilatildeo dos escravos12 Noentanto o remeacutedio era ineficaz porque viciado pelafalta do alforje e dos seis anos (amparo indispensaacutevel agravesobrevivecircncia dos libertos segundo a tradiccedilatildeo biacuteblicae que natildeo estava sendo observado) O unguento natildeocuraria a uacutelcera A uacutelcera corromperia o sangue Eacute oque se deduz da sequecircncia da crocircnica No Maranhatildeopor exemplo escravos inocentes foram castigados porcausa da lei (por eles inclusive desconhecida)

27 Menos no Bacabal proviacutencia do Mara-nhatildeo onde alguns homens declararam quea lei natildeo valia nada e pegando no azorra-gue castigaram os seus escravos cujo crimenessa ocasiatildeo era unicamente haver sido vo-tado uma lei de que eles natildeo sabiam nada ea proacutepria autoridade se ligou com esses ho-mens rebeldes (Assis 2008 vol 4 p 814)

De fato o unguento tinha viacutecios em sua composiccedilatildeonatildeo soacute natildeo havia alforje mas tambeacutem havia muitaviolecircncia aleacutem de ldquorebeldesrdquo senhores que se recusa-vam a aceitar e a cumprir a lei no que eram apoiadospor autoridades governamentais Por isso o unguentocorrompeu a uacutelcera E corromperia mais Vejamos ofinal da crocircnica

28 Vendo isto disse um sisudo de Babilocircniapor outro nome Carioca Ah Se estivessem

no Maranhatildeo alguns ex-escravos daqui quedepois de livres compraram tambeacutem escra-vos quatildeo menor seria a melancolia dessesque satildeo agora duas coisas ao mesmo tempoex-escravos e ex-senhores Bem diz o Eclesi-astes Algumas vezes tem o homem domiacuteniosobre outro homem para desgraccedila sua Omelhor de tudo acrescento eu eacute possuir-sea gente a si mesmo (Assis 2008 vol 4 p814)

A crocircnica constata que Babilocircnia era agora ldquoCari-ocardquo13 O versiacuteculo final combina melancolia Ecle-siastes e domiacutenio sobre outro homem A melancolianos remete a Memoacuterias Poacutestumas Braacutes Cubas movidopor ldquosede de nomeadardquo tambeacutem quis compor o seuunguento milagroso para acabar com a melancolia doshomens Quem acabou foi o proacuteprio Braacutes Menciona-se ainda o fato de que ex-escravos compravam es-cravos e com a aboliccedilatildeo tornaram-se ex-senhores eex-escravos esses fatores combinados aumentariama melancolia14 Por fim o narrador usando da pri-meira pessoa para produzir o efeito de subjetividadedaacute sinais de que rejeita o domiacutenio de homens sobreoutros homens Para isso cita o Eclesiastes (Ec 89)ldquoAlgumas vezes tem o homem domiacutenio sobre outro ho-mem para desgraccedila suardquo Grande desgraccedila eacute essapois dominar outros eacute a negaccedilatildeo da liberdade ldquodireitoinalienaacutevelrdquo

Natildeo se pode dizer que a partir desta breve paroacutediaMachado de Assis foi indiferente agrave escravidatildeo A peccedilaevoca trechos biacuteblicos do Antigo e do Novo Testamentorelacionados direta ou indiretamente agrave escravidatildeo ea partir deles suscita reflexotildees sobre a fragilidadedas motivaccedilotildees poliacutetico-ideoloacutegicas que culminaramna Aboliccedilatildeo Afinal segundo a paraacutebola da crocircnicaeacute mais vantajoso perder uma perna do que perder ocorpo todo Isso se liga diretamente agrave menccedilatildeo ao livrodo Deuteronocircmio (Elle Haddebarim) o que potildee agrave luz asreais motivaccedilotildees dos escravocratas que se recusavama oferecer alforjes aos libertos

2 Crocircnica de 19 de maio de 1888Tambeacutem estaacute voltada ao tema da escravidatildeo todapermeada por um tom irocircnico O narrador dono de

11 Elle Haddebarim eacute o nome hebraico do livro do Deuteronocircmio Os nomes dos livros da Biacuteblia cristatilde satildeo tirados da traduccedilatildeo grega dossetenta a Septuaginta A tradiccedilatildeo hebraica nomeia os livros a partir das primeiras palavras do livro O exemplar que Machado possuiacutea daBiacuteblia registrava os nomes hebraicos dos livros O trecho a que se faz alusatildeo estaacute em Dt-15 v 12-15 ldquo12 Quando um de teus irmatildeoshebreu ou hebreia te for vendido seis anos servir-te-aacute mas no seacutetimo o despediraacutes forro 13 E quando de ti o despedires forro natildeo odeixaraacutes ir vazio 14 Liberalmente lhe forneceraacutes do teu rebanho da tua eira e do teu lagar daquilo com que o SENHOR teu Deus tehouver abenccediloado lhe daraacutes 15 Lembrar-te-aacutes de que foste servo na terra do Egito e de que o SENHOR teu Deus te remiu pelo quehoje isso te ordenordquo

12 O ldquounguentordquo do evangelho era a boa nova do evangelho pregado por Jesus Nas injunccedilotildees poliacuteticas sugeridas pela crocircnica agrave parte oidealismo dos abolicionistas a libertaccedilatildeo dos escravos foi concessatildeo dos donos do poder para evitar o mal maior era preferiacutevel perder umaperna a perder o corpo todo

13 Babilocircnia eacute aqui Babilocircnia indica natildeo somente a confusatildeo de liacutenguas mas principalmente o exiacutelio e escravidatildeo Este eacute o efeito daexpressatildeo ldquoBabilocircnica cariocardquo

14 As Memoacuterias Poacutestumas apresentam o fenocircmeno no capiacutetulo LXVIII ldquoO vergalhordquo Prudecircncio escravo alforriado pelo pai de Braacutes Cubasnatildeo somente compra um escravo mas o agride em puacuteblico reproduzindo exatamente a forma de tratamento recebida do proacuteprio Braacutes

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Paulo Seacutergio de Proenccedila

escravos assume um tom ambiacuteguo e contraditoacuteriorevelador da postura da classe senhorial A senha estaacutejaacute na abertura ldquoEu pertenccedilo a uma famiacutelia de profetasapregraves coup post factum depois do gato morto [] todaa histoacuteria desta Lei de 13 de Maio estava por mimprevista tanto que na segunda-feira antes mesmodos debates tratei de alforriar um molecoterdquo (Assis2008 vol 4 p 811) Essa caracterizaccedilatildeo inicial feitapelo proacuteprio narrador o desmascara porque a liber-taccedilatildeo dos escravos se jaacute natildeo tinha acontecido poucoantes era favas contadas querendo tirar vantagensda situaccedilatildeo organiza um jantar (banquete segundoamigos) para tornar puacuteblica a decisatildeo cinco pessoascompareceram mas se noticiou que foram trinta etrecircs (alusatildeo agrave idade de Cristo) para dar ao eventoum aspecto simboacutelico O ldquobanqueterdquo motiva a alusatildeotrata-se da eucaristia que eacute tambeacutem uma refeiccedilatildeoespecial e simboacutelica de valor sacramental A euca-ristia eacute a versatildeo cristatilde da Paacutescoa dos hebreus Paraos cristatildeos a morte pascal de Cristo eacute vicaacuteria paraldquolibertarrdquo os homens do pecado Essa noccedilatildeo de mortevicaacuteria de Jesus eacute inspirada na narrativa do ecircxodo emque na ldquolibertaccedilatildeordquo dos hebreus houve a morte dosprimogecircnitos do Egito tambeacutem comemorada com umaceia tanto por judeus quanto por cristatildeos Importaaqui notar os laccedilos ldquosimboacutelicosrdquo que remetem agrave ideiade libertaccedilatildeo15

Durante o jantar da crocircnica o narrador toma apalavra

[] declarei que acompanhando as ideias pre-gadas por Cristo haacute dezoito seacuteculos restituiacuteaa liberdade ao meu escravo Pancraacutecio queentendia a que a naccedilatildeo inteira devia acom-panhar as mesmas ideias e imitar o meuexemplo finalmente que a liberdade era umdom de Deus que os homens natildeo podiamroubar sem pecado (Assis 2008 vol 4 p811)

Se as ideias de Cristo datavam jaacute de dezoito seacuteculospor que soacute entatildeo o narrador restituiacutea a liberdade aoescravo Se a liberdade era um dom de Deus ldquoqueos homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo por queele tinha escravo Essas contradiccedilotildees satildeo evidencia-das pelo proacuteprio narrador reveladoras de um mundosenhorial mal assentado ideologicamente sustentado

pelos valores do cristianismo professado apenas noniacutevel do parecer ldquoRestituirrdquo a liberdade tem o efeito deldquoconfissatildeordquo de um crime em combinaccedilatildeo com o finaldo trecho transcrito ldquoa liberdade era um dom de Deusque os homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo E senos lembramos da paroacutedia da missa campal podemosassociar a ideia de ldquopecadordquo agrave uacutelcera contaminadorada perna E quando o narrador reivindica que ldquotodaa naccedilatildeo devia acompanhar []rdquo sinaliza a dimensatildeosocial (nacional) da uacutelcera

Depois de alforriado Pancraacutecio16 foi contratado porum salaacuterio (minimum minimorum) A mudanccedila na re-laccedilatildeo econocircmica natildeo acabava com a dependecircncia e aexploraccedilatildeo ela foi historicamente necessaacuteria para amanutenccedilatildeo dos privileacutegios da classe senhorial

[] a Aboliccedilatildeo eacute relativa libertando os es-cravos natildeo se faz mais do que libertaacute-lospara o mercado de trabalho no qual seratildeocontratados e demitidos e sem duacutevida re-ceberatildeo salaacuterios miseraacuteveis - numa situaccedilatildeodessas em que a liberdade conduz a outraforma de submissatildeo dos fracos aos fortes []Machado entre ironias e ldquopilheacuteriasrdquo traz agraveatenccedilatildeo do leitor algo essencial A aboliccedilatildeonatildeo eacute um movimento da escuridatildeo para aluz mas a simples passagem de um relacio-namento econocircmico e social opressivo paraoutro (Gledson 1986 p 124)

Natildeo se alterou profundamente a relaccedilatildeo entre senhore escravo principalmente no emprego da violecircncia fiacute-sica e verbal ldquotenho-lhe despedido alguns pontapeacutesum ou outro puxatildeo de orelhas e chamo-lhe besta17

quando lhe natildeo chamo filho do Diabo18 coisas todasque ele recebe humildemente e (Deus me perdoe)creio que ateacute alegrerdquo (Assis 2008 vol 4 p 812) Essefinal eacute engenhoso ao contrapor uma eventual pontade religiosidade marcada pela expressatildeo ldquoDeus meperdoerdquo agrave violecircncia contra o escravo A engenhosidade(da narraccedilatildeo) beira a perversidade (do narrador insta-lado) quando este supotildee que poderia haver qualquersensaccedilatildeo de alegria em algueacutem ser escravo ainda maisum ldquomolecoterdquo

A crocircnica termina por alinhavar o descaramento donarrador para quem

15 Sabe-se que Jesus morreu aos 33 anos Esse ldquoaspecto simboacutelicordquo eacute significativo pois sugere que o narrador com seu ato estavasendo fiel aos ensinos de Cristo mas o que ocorria era justamente o contraacuterio

16 ldquoPancraacuteciordquo tem origem grega e ironicamente significa ldquodetentor de todos os poderesrdquo Alguns nomes de personagens machadianostecircm a mesma caracteriacutestica Eugecircnia e Dona Plaacutecida por exemplo

17 Era o tratamento que Braacutes Cubas dava a Prudecircncio na infacircncia ldquo[] era o meu cavalo de todos os dias punha a matildeo no chatildeorecebia um cordel nos queixos agrave guisa de freio eu trepava-lhe ao dorso com uma varinha na matildeo fustigava-o dava mil voltas a um eoutro lado e ele obedecia mdash algumas vezes gemendo mdash mas obedecia sem dizer palavra ou quando muito um lsquoai nhonhocircrsquo ao que euretorquia lsquoCala a boca bestarsquo rdquo (Assis 2008 vol 1 p 638) Este tratamento eacute caracteriacutestico da violecircncia fiacutesica e simboacutelica a que o escravoestava sujeito ldquoO tratamento dado ao afrodescendente passa pelo supliacutecio e pela animalizaccedilatildeo revestindo a cena de forte sentido alegoacutericoo negro eacute posto de quatro eacute o animal sobre o qual o branco monta O jogo infantil nada tem de inocente e mimetiza a posiccedilatildeo de cada umna estrutura vigente na sociedaderdquo (Duarte 2007 p 276)

18 ldquoFilho do Diabordquo estaacute na boca do narrador Filho do Diabo por quecirc Por que era negro

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estudos semioacuteticos vol 6 no 2

[] os homens puros grandes e verdadeira-mente poliacuteticos natildeo satildeo os que obedecem agravelei mas os que se antecipam a ela19 dizendoao escravo eacutes livre antes que o digam ospoderes puacuteblicos sempre retardataacuterios trocirc-pegos e incapazes de restaurar a justiccedila naterra para satisfaccedilatildeo do Ceacuteu (Gledson 1986p 124)

Na crocircnica de 26 de junho de 1888 (Assis 2008 vol4 p 812-813) a inspiraccedilatildeo vem do romance Almasmortas de Gogol em que eacute criticado de novo o oportu-nismo dos senhores de escravos que urdiam fraudesem negociaccedilotildees de escravos para serem depois elessenhores indenizados pelo poder puacuteblico O narradorse esconde na pele de um burguecircs espertalhatildeo quequer tirar proveito da situaccedilatildeo ldquoMachado universalizao drama dos escravizados ao comparaacute-los aos servosrussosrdquo (Duarte 2007 p 249)

O capiacutetulo XXXVII (ldquoDesacordo no acordordquo) de Esauacutee Jacoacute ao narrar a reaccedilatildeo dos gecircmeos por ocasiatildeo daproclamaccedilatildeo da Repuacuteblica toca de forma filosoacutefica naconcepccedilatildeo de liberdade e de escravidatildeo natildeo limitadaagraves injunccedilotildees poliacutetico-econocircmicas

A diferenccedila uacutenica entre eles dizia respeito agravesignificaccedilatildeo da reforma que para Pedro eraum ato de justiccedila e para Paulo era o iniacutecio darevoluccedilatildeo Ele mesmo o disse concluindo umdiscurso em S Paulo no dia 20 de maio ldquoAaboliccedilatildeo eacute a aurora da liberdade esperemoso sol emancipado o preto resta emancipar obrancordquo (Assis 2008 vol 1 p 1121)

Eacute digno de nota que a data da crocircnica sobre a missacampal eacute 20-21 de maio de 1888 a da crocircnica sobrePancraacutecio eacute 19 de maio de 1888 e a do discurso dePaulo eacute 20 de maio de 1888 Essa convergecircncia natildeoeacute gratuita O discurso de Paulo em Esauacute e Jacoacute decerta forma complementa e explica a conclusatildeo dacrocircnica da missa campal Parece que estamos aindana aurora da liberdade

A crocircnica de 20-21 de maio de 1888 (ldquoEvangelho daMissa Campalrdquo) parodia partes dos Evangelhos biacutebli-cos cria uma paraacutebola relativa ao tema da escravidatildeocita os livros Deuteronocircmio e Eclesiastes do AntigoTestamento Essa combinaccedilatildeo eacute coerente e convergepara a unidade temaacutetica da escravidatildeo A paroacutedia aosevangelhos emoldurando a libertaccedilatildeo motiva uma lei-tura natildeo canocircnica do proacuteprio texto biacuteblico (libertaccedilatildeoeconocircmica e poliacutetica natildeo apenas espiritual) e uma

motivaccedilatildeo biacuteblica para leitura de fatos histoacutericos Emoutras palavras o presente eacute projetado para o passadoe o passado se aproxima do presente numa fusatildeouniversalizante (efeito das embreagens temporais e es-paciais aqui referidas) que por sua vez projeta a escra-vidatildeo do quadro histoacuterico para o filosoacutefico-existencialEssa transposiccedilatildeo eacute suscitada pela menccedilatildeo ao Eclesi-astes no final da paroacutedia (v 28) ldquoAlgumas vezes temo homem domiacutenio sobre outro homem para desgraccedilasuardquo A ldquodesgraccedilardquo entatildeo muda de lado acompanhao possuidor Daiacute o discurso de um dos gecircmeos deEsauacute e Jacoacute anteriormente mencionado (publicado 16anos depois) ldquoemancipado o preto resta emancipar obrancordquo

A crocircnica de 19 de maio de 1888 tambeacutem sob moti-vaccedilatildeo biacuteblica (ldquoacompanhando as ideias pregadas porCristo haacute dezoito seacuteculos restituiacutea a liberdade ao meuescravo Pancraacutecio [] a liberdade era um dom de Deusque os homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo) ex-plora as ambiguidades do narrador que ldquoparecerdquo seguiros preceitos biacuteblicos ao libertar seu escravo contudoisso natildeo passa de lance teatral de estrateacutegia poliacuteticaNesse jogo de ambiguidades o fundo biacuteblico sustentauma denuacutencia velada opera um desmascaramento daideologia dos senhores de escravos

3 Consideraccedilotildees adicionaisMachado foi omisso em relaccedilatildeo agrave escravidatildeo comopensaram alguns criacuteticos A julgar pelas crocircnicas ana-lisadas natildeo Eacute claro que haacute outros escritos do autorrelativos ao tema natildeo mencionados por natildeo teremviacutenculos diretos com a Biacuteblia Mas com seguranccedilapode-se afirmar que de fato natildeo foi ele indiferenteIsso jaacute tinha sido percebido por Magalhatildees Juacutenior20 nadeacutecada de 1950 quando comeccedilou a cair por terra a tesedo absenteiacutesmo machadiano Depois de MagalhatildeesJuacutenior outros autores como Brito Broca AstrojildoPereira Raimundo Faoro Roberto Schwarz e maisrecentemente Sidney Chalhoub21 contribuiacuteram parareconhecer que haacute em Machado tratamento conscientedos dilemas de seu tempo Schwarz22 por exemploldquoanalisa a inserccedilatildeo histoacuterica da obra a partir de seusviacutenculos estruturais com o modo e organizaccedilatildeo da so-ciedade brasileira no Segundo Reinadordquo (Duarte 2007p 263) Gledson (1986 p 14) por sua vez apontaa relaccedilatildeo da obra com os principais fatos histoacutericosda eacutepoca Ele indica o caraacuteter enganoso do realismomachadiano que exige leitura atenta das entrelinhas

Chalhoub23 estuda pareceres e documentos de Ma-chado na ldquoarena de lutardquo da aplicaccedilatildeo da Lei de 28

19 Nisso reside a contradiccedilatildeo do narrador pois a crocircnica se inicia assim ldquoEu pertenccedilo a uma famiacutelia de profetas apregraves coup post factumdepois do gato morto []rdquo

20 Na obra Machado de Assis desconhecido haacute um capiacutetulo intitulado ldquoMachado de Assis e a aboliccedilatildeordquo (Raimundo Magalhatildees JrMachado de Assis desconhecido Satildeo Paulo Lisa-Livros Irradiantes 1971)

21 Sidney Chalhoub Machado de Assis historiador Satildeo Paulo Companhia das Letras 200322 Roberto Schwarz Um mestre na periferia do capitalismo Machado de Assis Satildeo Paulo Duas Cidades Editora 34 200023 Chalhoub Op cit

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Paulo Seacutergio de Proenccedila

de setembro de 1871 (a Lei do Ventre Livre) Emseu exame com o olhar de historiador o pesquisadoranalisou documentos que circularam na burocraciaimperial Machado fez de seu posto uma trincheiracontra os desmandos dos senhores de escravos tendoemitido pareceres favoraacuteveis a escravos coerentes como espiacuterito da liberdade e da legalidade Pelo contraacuterionatildeo haacute nenhuma evidecircncia em sua obra de que houveapoio velado ou ostensivo agrave escravidatildeo ldquoNos escritosmachadianos natildeo se vecirc em nenhum momento palavrasde apoio mesmo que impliacutecito ou subtendido agrave escra-vidatildeo Nem se encontram os estereoacutetipos recorrentescujo foco eacute a desumanizaccedilatildeo dos afrodescendentesrdquo(Duarte 2007 p 242-243)

A rarefeita presenccedila do negro em seus escritos eacute cri-ticada eacute verdade mas pelos que natildeo compreenderamos artifiacutecios do ficcionista Basta considerar as criacuteticasque fazia ao regime escravista a pena do cronista e seteraacute uma demonstraccedilatildeo de sua firmeza e convicccedilatildeo arespeito do drama dos escravos

Consideraccedilotildees finaisAtendo-nos agraves crocircnicas apresentadas podemos dizerque as peccedilas se articulam sob uma ambiguidade nar-rativa reflexo da accedilatildeo poliacutetica da classe senhorialescravista representada pelo narrador da crocircnica doescravo Pancraacutecio Schwarz aponta o fenocircmeno deque em Machado a forma de narrar estaacute em corres-pondecircncia com o funcionamento da sociedade que eacuteretratada A brasilidade o vieacutes nacional ldquotem de serdescrito como uma formardquo segundo Schwarz (2000p 10-11) A forma narrativa de Machado estaacute emjogo com o funcionamento da sociedade brasileira dotempo Entatildeo a ambiguidade e a contradiccedilatildeo narrati-vas mais ostensivas na crocircnica de 19 de novembro de1888 estatildeo em correspondecircncia com a ambiguidadepoliacutetica da classe senhorial A crocircnica potildee agraves escacircn-caras o oportunismo de senhores de escravos que seservem do ato de libertaccedilatildeo para dele tirarem o maiorproveito possiacutevel A aboliccedilatildeo natildeo eacute ato humanitaacuterio deconsciecircncia ideoloacutegica mas de simples oportunismo

Nesse quadro o uso e a presenccedila da Biacuteblia comoportadora dos elementos que sustentam a hegemoniacristatilde-catoacutelica participam da ambiguidade da tensatildeoldquoser vs parecerrdquo (proacutepria da tradiccedilatildeo poliacutetica brasileira)a elite senhorial ldquopareciardquo seguir os preceitos biacuteblicos

Pode haver duas possibilidades de avaliaccedilatildeo doldquoEvangelho da missa campalrdquo Uma primeira nega-tiva a elite poliacutetica (sacerdotes e levitas) em lancede oportunismo decreta a libertaccedilatildeo dos escravospara preservar o corpo ainda que com perda da pernarevela-se o perverso conuacutebio poliacutetico de interesses eo ldquoendeusamentordquo dos donos do poder A segundapositiva a libertaccedilatildeo dos escravos plena era de fatoa concretizaccedilatildeo da mensagem do evangelho os aboli-cionistas eram verdadeiros ldquodisciacutepulosrdquo a aboliccedilatildeo era

a versatildeo moderna do verdadeiro evangelho A possede outra pessoa eacute o grande pecado que corrompe osangue o remeacutedio contra a melancolia era natildeo ser nemex-escravo nem ex-senhor

Seria possiacutevel conciliar as duas leituras Parece quesim se forem considerados os elementos ambiacuteguossobretudo da crocircnica de 19 de maio de 1888 Uma ououtra possibilidade projeta ecircnfase aos escritos biacuteblicosinterpretados natildeo como depoacutesito de dogmas controla-dos pela religiatildeo mas como inspiradores de liberdadeE foi com a liberdade de um ficcionista que Machadousou a Biacuteblia

Referecircncias

A Biacuteblia de Jerusaleacutem1983 Satildeo Paulo Paulinas

Assis Machado de2008 Obra completa em quatro volumes Rio deJaneiro Nova Aguilar

Bertrand Denis2003 Caminhos da semioacutetica literaacuteria Bauru SPEdusc

Biacuteblia Sagrada1993 Traduccedilatildeo de Joatildeo Ferreira de Almeida SatildeoPaulo Sociedade Biacuteblica do Brasil

Duarte Eduardo de Assis2007 Machado de Assis afro-descendente Rio deJaneiroBelo Horizonte PallasCrisaacutelida

Eliade Mircea1981 O mito do eterno retorno arqueacutetipos e repeti-ccedilatildeo Lisboa Ediccedilotildees 70

Fiorin Joseacute Luiz2006 Interdiscursividade e intertextualidade InBrait Beth (Org) Bakhtin outros conceitos-chaveSatildeo Paulo Contexto

Gledson John1986 Machado de Assis ficccedilatildeo e histoacuteria Rio deJaneiro Paz e Terra

Nascimento Gizecirclda Melo do2002 Machado Trecircs momentos negros Terraroxa e outras terras Revista de Estudos Li-teraacuterios Volume 2 p 53-62 Disponiacutevel em〈 httpwwwuelbrcchposletrasterraroxa 〉 Acesso em7 dez 2009

Schwarz Roberto2000 Um mestre na periferia do capitalismo Ma-chado de Assis Satildeo Paulo Duas CidadesEditora34

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Dados para indexaccedilatildeo em liacutengua estrangeira

Proenccedila Paulo Seacutergio deBiblical Intertextuality and Slavery in Machado de Assis (Two Chronicles of

May 1888)Estudos Semioacuteticos vol 6 n 2 (2010) p 77-85

issn 1980-4016

Abstract On May 17th 1988 during Thanksgiving for the abolition of slaves a Mass was celebrated in thepresence of the Regent Princess and other authorities In allusion to the event a Machadian chronicle parodiesthe gospel of the Mass Just like the first biblical gospel the parody has its Christ John the Baptist and thedisciples in addition to a parable Besides the biblical gospels the chronicle mentions the books Deuteronomy andEcclesiastes The author provokes particular effects as he superposes in a parodic way the events and charactersof his epoch to the biblical ones that leads one to ponder about the meaning of the events portrayed in a criticto the politicians and towards the events that resulted in the adoption of the abolition Machado wrote anotherfamous chronicle published on May 19th 1888 to which biblical allusions were not lacking to celebrate the freeingof the slave Pancraacutecio The narrator claims to anticipate the government measures and sets free his slave lad andoffers a banquet in order to celebrate the occasion Biblical images are used to highlight the event mdash everythingaiming at drawing attention to the narrator who does not conceal his political aspirations achieving them nothingbetter than pretending to follow Christian values and pretending to be good What is the sense effect of biblicalintertextuality in these plays by Machado regarding slavery That is what we intend to investigate

Keywords Machado de Assis Bible slavery

Como citar este artigo

Proenccedila Paulo Seacutergio de Intertextualidade biacuteblica eescravidatildeo em Machado de Assis (duas crocircnicas de maiode 1888) Estudos Semioacuteticos [on-line] Disponiacutevel em〈 httpwwwfflchuspbrdlsemioticaes 〉 Editores Respon-saacuteveis Francisco E S Merccedilon e Mariana Luz P deBarros Volume 6 Nuacutemero 2 Satildeo Paulo novembro de2010 p 77ndash85 Acesso em ldquodiamecircsanordquo

Data de recebimento do artigo 20112009

Data de sua aprovaccedilatildeo 10042010

  • Introduccedilatildeo
  • Crocircnica de 20-21 de maio de 1888 (``Evangelho da Missa Campal)
  • Crocircnica de 19 de maio de 1888
  • Consideraccedilotildees adicionais
  • Consideraccedilotildees finais
  • Referecircncias
Page 6: Intertextualidade bíblica e escravidão em Machado de Assis

Paulo Seacutergio de Proenccedila

escravos assume um tom ambiacuteguo e contraditoacuteriorevelador da postura da classe senhorial A senha estaacutejaacute na abertura ldquoEu pertenccedilo a uma famiacutelia de profetasapregraves coup post factum depois do gato morto [] todaa histoacuteria desta Lei de 13 de Maio estava por mimprevista tanto que na segunda-feira antes mesmodos debates tratei de alforriar um molecoterdquo (Assis2008 vol 4 p 811) Essa caracterizaccedilatildeo inicial feitapelo proacuteprio narrador o desmascara porque a liber-taccedilatildeo dos escravos se jaacute natildeo tinha acontecido poucoantes era favas contadas querendo tirar vantagensda situaccedilatildeo organiza um jantar (banquete segundoamigos) para tornar puacuteblica a decisatildeo cinco pessoascompareceram mas se noticiou que foram trinta etrecircs (alusatildeo agrave idade de Cristo) para dar ao eventoum aspecto simboacutelico O ldquobanqueterdquo motiva a alusatildeotrata-se da eucaristia que eacute tambeacutem uma refeiccedilatildeoespecial e simboacutelica de valor sacramental A euca-ristia eacute a versatildeo cristatilde da Paacutescoa dos hebreus Paraos cristatildeos a morte pascal de Cristo eacute vicaacuteria paraldquolibertarrdquo os homens do pecado Essa noccedilatildeo de mortevicaacuteria de Jesus eacute inspirada na narrativa do ecircxodo emque na ldquolibertaccedilatildeordquo dos hebreus houve a morte dosprimogecircnitos do Egito tambeacutem comemorada com umaceia tanto por judeus quanto por cristatildeos Importaaqui notar os laccedilos ldquosimboacutelicosrdquo que remetem agrave ideiade libertaccedilatildeo15

Durante o jantar da crocircnica o narrador toma apalavra

[] declarei que acompanhando as ideias pre-gadas por Cristo haacute dezoito seacuteculos restituiacuteaa liberdade ao meu escravo Pancraacutecio queentendia a que a naccedilatildeo inteira devia acom-panhar as mesmas ideias e imitar o meuexemplo finalmente que a liberdade era umdom de Deus que os homens natildeo podiamroubar sem pecado (Assis 2008 vol 4 p811)

Se as ideias de Cristo datavam jaacute de dezoito seacuteculospor que soacute entatildeo o narrador restituiacutea a liberdade aoescravo Se a liberdade era um dom de Deus ldquoqueos homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo por queele tinha escravo Essas contradiccedilotildees satildeo evidencia-das pelo proacuteprio narrador reveladoras de um mundosenhorial mal assentado ideologicamente sustentado

pelos valores do cristianismo professado apenas noniacutevel do parecer ldquoRestituirrdquo a liberdade tem o efeito deldquoconfissatildeordquo de um crime em combinaccedilatildeo com o finaldo trecho transcrito ldquoa liberdade era um dom de Deusque os homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo E senos lembramos da paroacutedia da missa campal podemosassociar a ideia de ldquopecadordquo agrave uacutelcera contaminadorada perna E quando o narrador reivindica que ldquotodaa naccedilatildeo devia acompanhar []rdquo sinaliza a dimensatildeosocial (nacional) da uacutelcera

Depois de alforriado Pancraacutecio16 foi contratado porum salaacuterio (minimum minimorum) A mudanccedila na re-laccedilatildeo econocircmica natildeo acabava com a dependecircncia e aexploraccedilatildeo ela foi historicamente necessaacuteria para amanutenccedilatildeo dos privileacutegios da classe senhorial

[] a Aboliccedilatildeo eacute relativa libertando os es-cravos natildeo se faz mais do que libertaacute-lospara o mercado de trabalho no qual seratildeocontratados e demitidos e sem duacutevida re-ceberatildeo salaacuterios miseraacuteveis - numa situaccedilatildeodessas em que a liberdade conduz a outraforma de submissatildeo dos fracos aos fortes []Machado entre ironias e ldquopilheacuteriasrdquo traz agraveatenccedilatildeo do leitor algo essencial A aboliccedilatildeonatildeo eacute um movimento da escuridatildeo para aluz mas a simples passagem de um relacio-namento econocircmico e social opressivo paraoutro (Gledson 1986 p 124)

Natildeo se alterou profundamente a relaccedilatildeo entre senhore escravo principalmente no emprego da violecircncia fiacute-sica e verbal ldquotenho-lhe despedido alguns pontapeacutesum ou outro puxatildeo de orelhas e chamo-lhe besta17

quando lhe natildeo chamo filho do Diabo18 coisas todasque ele recebe humildemente e (Deus me perdoe)creio que ateacute alegrerdquo (Assis 2008 vol 4 p 812) Essefinal eacute engenhoso ao contrapor uma eventual pontade religiosidade marcada pela expressatildeo ldquoDeus meperdoerdquo agrave violecircncia contra o escravo A engenhosidade(da narraccedilatildeo) beira a perversidade (do narrador insta-lado) quando este supotildee que poderia haver qualquersensaccedilatildeo de alegria em algueacutem ser escravo ainda maisum ldquomolecoterdquo

A crocircnica termina por alinhavar o descaramento donarrador para quem

15 Sabe-se que Jesus morreu aos 33 anos Esse ldquoaspecto simboacutelicordquo eacute significativo pois sugere que o narrador com seu ato estavasendo fiel aos ensinos de Cristo mas o que ocorria era justamente o contraacuterio

16 ldquoPancraacuteciordquo tem origem grega e ironicamente significa ldquodetentor de todos os poderesrdquo Alguns nomes de personagens machadianostecircm a mesma caracteriacutestica Eugecircnia e Dona Plaacutecida por exemplo

17 Era o tratamento que Braacutes Cubas dava a Prudecircncio na infacircncia ldquo[] era o meu cavalo de todos os dias punha a matildeo no chatildeorecebia um cordel nos queixos agrave guisa de freio eu trepava-lhe ao dorso com uma varinha na matildeo fustigava-o dava mil voltas a um eoutro lado e ele obedecia mdash algumas vezes gemendo mdash mas obedecia sem dizer palavra ou quando muito um lsquoai nhonhocircrsquo ao que euretorquia lsquoCala a boca bestarsquo rdquo (Assis 2008 vol 1 p 638) Este tratamento eacute caracteriacutestico da violecircncia fiacutesica e simboacutelica a que o escravoestava sujeito ldquoO tratamento dado ao afrodescendente passa pelo supliacutecio e pela animalizaccedilatildeo revestindo a cena de forte sentido alegoacutericoo negro eacute posto de quatro eacute o animal sobre o qual o branco monta O jogo infantil nada tem de inocente e mimetiza a posiccedilatildeo de cada umna estrutura vigente na sociedaderdquo (Duarte 2007 p 276)

18 ldquoFilho do Diabordquo estaacute na boca do narrador Filho do Diabo por quecirc Por que era negro

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estudos semioacuteticos vol 6 no 2

[] os homens puros grandes e verdadeira-mente poliacuteticos natildeo satildeo os que obedecem agravelei mas os que se antecipam a ela19 dizendoao escravo eacutes livre antes que o digam ospoderes puacuteblicos sempre retardataacuterios trocirc-pegos e incapazes de restaurar a justiccedila naterra para satisfaccedilatildeo do Ceacuteu (Gledson 1986p 124)

Na crocircnica de 26 de junho de 1888 (Assis 2008 vol4 p 812-813) a inspiraccedilatildeo vem do romance Almasmortas de Gogol em que eacute criticado de novo o oportu-nismo dos senhores de escravos que urdiam fraudesem negociaccedilotildees de escravos para serem depois elessenhores indenizados pelo poder puacuteblico O narradorse esconde na pele de um burguecircs espertalhatildeo quequer tirar proveito da situaccedilatildeo ldquoMachado universalizao drama dos escravizados ao comparaacute-los aos servosrussosrdquo (Duarte 2007 p 249)

O capiacutetulo XXXVII (ldquoDesacordo no acordordquo) de Esauacutee Jacoacute ao narrar a reaccedilatildeo dos gecircmeos por ocasiatildeo daproclamaccedilatildeo da Repuacuteblica toca de forma filosoacutefica naconcepccedilatildeo de liberdade e de escravidatildeo natildeo limitadaagraves injunccedilotildees poliacutetico-econocircmicas

A diferenccedila uacutenica entre eles dizia respeito agravesignificaccedilatildeo da reforma que para Pedro eraum ato de justiccedila e para Paulo era o iniacutecio darevoluccedilatildeo Ele mesmo o disse concluindo umdiscurso em S Paulo no dia 20 de maio ldquoAaboliccedilatildeo eacute a aurora da liberdade esperemoso sol emancipado o preto resta emancipar obrancordquo (Assis 2008 vol 1 p 1121)

Eacute digno de nota que a data da crocircnica sobre a missacampal eacute 20-21 de maio de 1888 a da crocircnica sobrePancraacutecio eacute 19 de maio de 1888 e a do discurso dePaulo eacute 20 de maio de 1888 Essa convergecircncia natildeoeacute gratuita O discurso de Paulo em Esauacute e Jacoacute decerta forma complementa e explica a conclusatildeo dacrocircnica da missa campal Parece que estamos aindana aurora da liberdade

A crocircnica de 20-21 de maio de 1888 (ldquoEvangelho daMissa Campalrdquo) parodia partes dos Evangelhos biacutebli-cos cria uma paraacutebola relativa ao tema da escravidatildeocita os livros Deuteronocircmio e Eclesiastes do AntigoTestamento Essa combinaccedilatildeo eacute coerente e convergepara a unidade temaacutetica da escravidatildeo A paroacutedia aosevangelhos emoldurando a libertaccedilatildeo motiva uma lei-tura natildeo canocircnica do proacuteprio texto biacuteblico (libertaccedilatildeoeconocircmica e poliacutetica natildeo apenas espiritual) e uma

motivaccedilatildeo biacuteblica para leitura de fatos histoacutericos Emoutras palavras o presente eacute projetado para o passadoe o passado se aproxima do presente numa fusatildeouniversalizante (efeito das embreagens temporais e es-paciais aqui referidas) que por sua vez projeta a escra-vidatildeo do quadro histoacuterico para o filosoacutefico-existencialEssa transposiccedilatildeo eacute suscitada pela menccedilatildeo ao Eclesi-astes no final da paroacutedia (v 28) ldquoAlgumas vezes temo homem domiacutenio sobre outro homem para desgraccedilasuardquo A ldquodesgraccedilardquo entatildeo muda de lado acompanhao possuidor Daiacute o discurso de um dos gecircmeos deEsauacute e Jacoacute anteriormente mencionado (publicado 16anos depois) ldquoemancipado o preto resta emancipar obrancordquo

A crocircnica de 19 de maio de 1888 tambeacutem sob moti-vaccedilatildeo biacuteblica (ldquoacompanhando as ideias pregadas porCristo haacute dezoito seacuteculos restituiacutea a liberdade ao meuescravo Pancraacutecio [] a liberdade era um dom de Deusque os homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo) ex-plora as ambiguidades do narrador que ldquoparecerdquo seguiros preceitos biacuteblicos ao libertar seu escravo contudoisso natildeo passa de lance teatral de estrateacutegia poliacuteticaNesse jogo de ambiguidades o fundo biacuteblico sustentauma denuacutencia velada opera um desmascaramento daideologia dos senhores de escravos

3 Consideraccedilotildees adicionaisMachado foi omisso em relaccedilatildeo agrave escravidatildeo comopensaram alguns criacuteticos A julgar pelas crocircnicas ana-lisadas natildeo Eacute claro que haacute outros escritos do autorrelativos ao tema natildeo mencionados por natildeo teremviacutenculos diretos com a Biacuteblia Mas com seguranccedilapode-se afirmar que de fato natildeo foi ele indiferenteIsso jaacute tinha sido percebido por Magalhatildees Juacutenior20 nadeacutecada de 1950 quando comeccedilou a cair por terra a tesedo absenteiacutesmo machadiano Depois de MagalhatildeesJuacutenior outros autores como Brito Broca AstrojildoPereira Raimundo Faoro Roberto Schwarz e maisrecentemente Sidney Chalhoub21 contribuiacuteram parareconhecer que haacute em Machado tratamento conscientedos dilemas de seu tempo Schwarz22 por exemploldquoanalisa a inserccedilatildeo histoacuterica da obra a partir de seusviacutenculos estruturais com o modo e organizaccedilatildeo da so-ciedade brasileira no Segundo Reinadordquo (Duarte 2007p 263) Gledson (1986 p 14) por sua vez apontaa relaccedilatildeo da obra com os principais fatos histoacutericosda eacutepoca Ele indica o caraacuteter enganoso do realismomachadiano que exige leitura atenta das entrelinhas

Chalhoub23 estuda pareceres e documentos de Ma-chado na ldquoarena de lutardquo da aplicaccedilatildeo da Lei de 28

19 Nisso reside a contradiccedilatildeo do narrador pois a crocircnica se inicia assim ldquoEu pertenccedilo a uma famiacutelia de profetas apregraves coup post factumdepois do gato morto []rdquo

20 Na obra Machado de Assis desconhecido haacute um capiacutetulo intitulado ldquoMachado de Assis e a aboliccedilatildeordquo (Raimundo Magalhatildees JrMachado de Assis desconhecido Satildeo Paulo Lisa-Livros Irradiantes 1971)

21 Sidney Chalhoub Machado de Assis historiador Satildeo Paulo Companhia das Letras 200322 Roberto Schwarz Um mestre na periferia do capitalismo Machado de Assis Satildeo Paulo Duas Cidades Editora 34 200023 Chalhoub Op cit

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Paulo Seacutergio de Proenccedila

de setembro de 1871 (a Lei do Ventre Livre) Emseu exame com o olhar de historiador o pesquisadoranalisou documentos que circularam na burocraciaimperial Machado fez de seu posto uma trincheiracontra os desmandos dos senhores de escravos tendoemitido pareceres favoraacuteveis a escravos coerentes como espiacuterito da liberdade e da legalidade Pelo contraacuterionatildeo haacute nenhuma evidecircncia em sua obra de que houveapoio velado ou ostensivo agrave escravidatildeo ldquoNos escritosmachadianos natildeo se vecirc em nenhum momento palavrasde apoio mesmo que impliacutecito ou subtendido agrave escra-vidatildeo Nem se encontram os estereoacutetipos recorrentescujo foco eacute a desumanizaccedilatildeo dos afrodescendentesrdquo(Duarte 2007 p 242-243)

A rarefeita presenccedila do negro em seus escritos eacute cri-ticada eacute verdade mas pelos que natildeo compreenderamos artifiacutecios do ficcionista Basta considerar as criacuteticasque fazia ao regime escravista a pena do cronista e seteraacute uma demonstraccedilatildeo de sua firmeza e convicccedilatildeo arespeito do drama dos escravos

Consideraccedilotildees finaisAtendo-nos agraves crocircnicas apresentadas podemos dizerque as peccedilas se articulam sob uma ambiguidade nar-rativa reflexo da accedilatildeo poliacutetica da classe senhorialescravista representada pelo narrador da crocircnica doescravo Pancraacutecio Schwarz aponta o fenocircmeno deque em Machado a forma de narrar estaacute em corres-pondecircncia com o funcionamento da sociedade que eacuteretratada A brasilidade o vieacutes nacional ldquotem de serdescrito como uma formardquo segundo Schwarz (2000p 10-11) A forma narrativa de Machado estaacute emjogo com o funcionamento da sociedade brasileira dotempo Entatildeo a ambiguidade e a contradiccedilatildeo narrati-vas mais ostensivas na crocircnica de 19 de novembro de1888 estatildeo em correspondecircncia com a ambiguidadepoliacutetica da classe senhorial A crocircnica potildee agraves escacircn-caras o oportunismo de senhores de escravos que seservem do ato de libertaccedilatildeo para dele tirarem o maiorproveito possiacutevel A aboliccedilatildeo natildeo eacute ato humanitaacuterio deconsciecircncia ideoloacutegica mas de simples oportunismo

Nesse quadro o uso e a presenccedila da Biacuteblia comoportadora dos elementos que sustentam a hegemoniacristatilde-catoacutelica participam da ambiguidade da tensatildeoldquoser vs parecerrdquo (proacutepria da tradiccedilatildeo poliacutetica brasileira)a elite senhorial ldquopareciardquo seguir os preceitos biacuteblicos

Pode haver duas possibilidades de avaliaccedilatildeo doldquoEvangelho da missa campalrdquo Uma primeira nega-tiva a elite poliacutetica (sacerdotes e levitas) em lancede oportunismo decreta a libertaccedilatildeo dos escravospara preservar o corpo ainda que com perda da pernarevela-se o perverso conuacutebio poliacutetico de interesses eo ldquoendeusamentordquo dos donos do poder A segundapositiva a libertaccedilatildeo dos escravos plena era de fatoa concretizaccedilatildeo da mensagem do evangelho os aboli-cionistas eram verdadeiros ldquodisciacutepulosrdquo a aboliccedilatildeo era

a versatildeo moderna do verdadeiro evangelho A possede outra pessoa eacute o grande pecado que corrompe osangue o remeacutedio contra a melancolia era natildeo ser nemex-escravo nem ex-senhor

Seria possiacutevel conciliar as duas leituras Parece quesim se forem considerados os elementos ambiacuteguossobretudo da crocircnica de 19 de maio de 1888 Uma ououtra possibilidade projeta ecircnfase aos escritos biacuteblicosinterpretados natildeo como depoacutesito de dogmas controla-dos pela religiatildeo mas como inspiradores de liberdadeE foi com a liberdade de um ficcionista que Machadousou a Biacuteblia

Referecircncias

A Biacuteblia de Jerusaleacutem1983 Satildeo Paulo Paulinas

Assis Machado de2008 Obra completa em quatro volumes Rio deJaneiro Nova Aguilar

Bertrand Denis2003 Caminhos da semioacutetica literaacuteria Bauru SPEdusc

Biacuteblia Sagrada1993 Traduccedilatildeo de Joatildeo Ferreira de Almeida SatildeoPaulo Sociedade Biacuteblica do Brasil

Duarte Eduardo de Assis2007 Machado de Assis afro-descendente Rio deJaneiroBelo Horizonte PallasCrisaacutelida

Eliade Mircea1981 O mito do eterno retorno arqueacutetipos e repeti-ccedilatildeo Lisboa Ediccedilotildees 70

Fiorin Joseacute Luiz2006 Interdiscursividade e intertextualidade InBrait Beth (Org) Bakhtin outros conceitos-chaveSatildeo Paulo Contexto

Gledson John1986 Machado de Assis ficccedilatildeo e histoacuteria Rio deJaneiro Paz e Terra

Nascimento Gizecirclda Melo do2002 Machado Trecircs momentos negros Terraroxa e outras terras Revista de Estudos Li-teraacuterios Volume 2 p 53-62 Disponiacutevel em〈 httpwwwuelbrcchposletrasterraroxa 〉 Acesso em7 dez 2009

Schwarz Roberto2000 Um mestre na periferia do capitalismo Ma-chado de Assis Satildeo Paulo Duas CidadesEditora34

84

Dados para indexaccedilatildeo em liacutengua estrangeira

Proenccedila Paulo Seacutergio deBiblical Intertextuality and Slavery in Machado de Assis (Two Chronicles of

May 1888)Estudos Semioacuteticos vol 6 n 2 (2010) p 77-85

issn 1980-4016

Abstract On May 17th 1988 during Thanksgiving for the abolition of slaves a Mass was celebrated in thepresence of the Regent Princess and other authorities In allusion to the event a Machadian chronicle parodiesthe gospel of the Mass Just like the first biblical gospel the parody has its Christ John the Baptist and thedisciples in addition to a parable Besides the biblical gospels the chronicle mentions the books Deuteronomy andEcclesiastes The author provokes particular effects as he superposes in a parodic way the events and charactersof his epoch to the biblical ones that leads one to ponder about the meaning of the events portrayed in a criticto the politicians and towards the events that resulted in the adoption of the abolition Machado wrote anotherfamous chronicle published on May 19th 1888 to which biblical allusions were not lacking to celebrate the freeingof the slave Pancraacutecio The narrator claims to anticipate the government measures and sets free his slave lad andoffers a banquet in order to celebrate the occasion Biblical images are used to highlight the event mdash everythingaiming at drawing attention to the narrator who does not conceal his political aspirations achieving them nothingbetter than pretending to follow Christian values and pretending to be good What is the sense effect of biblicalintertextuality in these plays by Machado regarding slavery That is what we intend to investigate

Keywords Machado de Assis Bible slavery

Como citar este artigo

Proenccedila Paulo Seacutergio de Intertextualidade biacuteblica eescravidatildeo em Machado de Assis (duas crocircnicas de maiode 1888) Estudos Semioacuteticos [on-line] Disponiacutevel em〈 httpwwwfflchuspbrdlsemioticaes 〉 Editores Respon-saacuteveis Francisco E S Merccedilon e Mariana Luz P deBarros Volume 6 Nuacutemero 2 Satildeo Paulo novembro de2010 p 77ndash85 Acesso em ldquodiamecircsanordquo

Data de recebimento do artigo 20112009

Data de sua aprovaccedilatildeo 10042010

  • Introduccedilatildeo
  • Crocircnica de 20-21 de maio de 1888 (``Evangelho da Missa Campal)
  • Crocircnica de 19 de maio de 1888
  • Consideraccedilotildees adicionais
  • Consideraccedilotildees finais
  • Referecircncias
Page 7: Intertextualidade bíblica e escravidão em Machado de Assis

estudos semioacuteticos vol 6 no 2

[] os homens puros grandes e verdadeira-mente poliacuteticos natildeo satildeo os que obedecem agravelei mas os que se antecipam a ela19 dizendoao escravo eacutes livre antes que o digam ospoderes puacuteblicos sempre retardataacuterios trocirc-pegos e incapazes de restaurar a justiccedila naterra para satisfaccedilatildeo do Ceacuteu (Gledson 1986p 124)

Na crocircnica de 26 de junho de 1888 (Assis 2008 vol4 p 812-813) a inspiraccedilatildeo vem do romance Almasmortas de Gogol em que eacute criticado de novo o oportu-nismo dos senhores de escravos que urdiam fraudesem negociaccedilotildees de escravos para serem depois elessenhores indenizados pelo poder puacuteblico O narradorse esconde na pele de um burguecircs espertalhatildeo quequer tirar proveito da situaccedilatildeo ldquoMachado universalizao drama dos escravizados ao comparaacute-los aos servosrussosrdquo (Duarte 2007 p 249)

O capiacutetulo XXXVII (ldquoDesacordo no acordordquo) de Esauacutee Jacoacute ao narrar a reaccedilatildeo dos gecircmeos por ocasiatildeo daproclamaccedilatildeo da Repuacuteblica toca de forma filosoacutefica naconcepccedilatildeo de liberdade e de escravidatildeo natildeo limitadaagraves injunccedilotildees poliacutetico-econocircmicas

A diferenccedila uacutenica entre eles dizia respeito agravesignificaccedilatildeo da reforma que para Pedro eraum ato de justiccedila e para Paulo era o iniacutecio darevoluccedilatildeo Ele mesmo o disse concluindo umdiscurso em S Paulo no dia 20 de maio ldquoAaboliccedilatildeo eacute a aurora da liberdade esperemoso sol emancipado o preto resta emancipar obrancordquo (Assis 2008 vol 1 p 1121)

Eacute digno de nota que a data da crocircnica sobre a missacampal eacute 20-21 de maio de 1888 a da crocircnica sobrePancraacutecio eacute 19 de maio de 1888 e a do discurso dePaulo eacute 20 de maio de 1888 Essa convergecircncia natildeoeacute gratuita O discurso de Paulo em Esauacute e Jacoacute decerta forma complementa e explica a conclusatildeo dacrocircnica da missa campal Parece que estamos aindana aurora da liberdade

A crocircnica de 20-21 de maio de 1888 (ldquoEvangelho daMissa Campalrdquo) parodia partes dos Evangelhos biacutebli-cos cria uma paraacutebola relativa ao tema da escravidatildeocita os livros Deuteronocircmio e Eclesiastes do AntigoTestamento Essa combinaccedilatildeo eacute coerente e convergepara a unidade temaacutetica da escravidatildeo A paroacutedia aosevangelhos emoldurando a libertaccedilatildeo motiva uma lei-tura natildeo canocircnica do proacuteprio texto biacuteblico (libertaccedilatildeoeconocircmica e poliacutetica natildeo apenas espiritual) e uma

motivaccedilatildeo biacuteblica para leitura de fatos histoacutericos Emoutras palavras o presente eacute projetado para o passadoe o passado se aproxima do presente numa fusatildeouniversalizante (efeito das embreagens temporais e es-paciais aqui referidas) que por sua vez projeta a escra-vidatildeo do quadro histoacuterico para o filosoacutefico-existencialEssa transposiccedilatildeo eacute suscitada pela menccedilatildeo ao Eclesi-astes no final da paroacutedia (v 28) ldquoAlgumas vezes temo homem domiacutenio sobre outro homem para desgraccedilasuardquo A ldquodesgraccedilardquo entatildeo muda de lado acompanhao possuidor Daiacute o discurso de um dos gecircmeos deEsauacute e Jacoacute anteriormente mencionado (publicado 16anos depois) ldquoemancipado o preto resta emancipar obrancordquo

A crocircnica de 19 de maio de 1888 tambeacutem sob moti-vaccedilatildeo biacuteblica (ldquoacompanhando as ideias pregadas porCristo haacute dezoito seacuteculos restituiacutea a liberdade ao meuescravo Pancraacutecio [] a liberdade era um dom de Deusque os homens natildeo podiam roubar sem pecadordquo) ex-plora as ambiguidades do narrador que ldquoparecerdquo seguiros preceitos biacuteblicos ao libertar seu escravo contudoisso natildeo passa de lance teatral de estrateacutegia poliacuteticaNesse jogo de ambiguidades o fundo biacuteblico sustentauma denuacutencia velada opera um desmascaramento daideologia dos senhores de escravos

3 Consideraccedilotildees adicionaisMachado foi omisso em relaccedilatildeo agrave escravidatildeo comopensaram alguns criacuteticos A julgar pelas crocircnicas ana-lisadas natildeo Eacute claro que haacute outros escritos do autorrelativos ao tema natildeo mencionados por natildeo teremviacutenculos diretos com a Biacuteblia Mas com seguranccedilapode-se afirmar que de fato natildeo foi ele indiferenteIsso jaacute tinha sido percebido por Magalhatildees Juacutenior20 nadeacutecada de 1950 quando comeccedilou a cair por terra a tesedo absenteiacutesmo machadiano Depois de MagalhatildeesJuacutenior outros autores como Brito Broca AstrojildoPereira Raimundo Faoro Roberto Schwarz e maisrecentemente Sidney Chalhoub21 contribuiacuteram parareconhecer que haacute em Machado tratamento conscientedos dilemas de seu tempo Schwarz22 por exemploldquoanalisa a inserccedilatildeo histoacuterica da obra a partir de seusviacutenculos estruturais com o modo e organizaccedilatildeo da so-ciedade brasileira no Segundo Reinadordquo (Duarte 2007p 263) Gledson (1986 p 14) por sua vez apontaa relaccedilatildeo da obra com os principais fatos histoacutericosda eacutepoca Ele indica o caraacuteter enganoso do realismomachadiano que exige leitura atenta das entrelinhas

Chalhoub23 estuda pareceres e documentos de Ma-chado na ldquoarena de lutardquo da aplicaccedilatildeo da Lei de 28

19 Nisso reside a contradiccedilatildeo do narrador pois a crocircnica se inicia assim ldquoEu pertenccedilo a uma famiacutelia de profetas apregraves coup post factumdepois do gato morto []rdquo

20 Na obra Machado de Assis desconhecido haacute um capiacutetulo intitulado ldquoMachado de Assis e a aboliccedilatildeordquo (Raimundo Magalhatildees JrMachado de Assis desconhecido Satildeo Paulo Lisa-Livros Irradiantes 1971)

21 Sidney Chalhoub Machado de Assis historiador Satildeo Paulo Companhia das Letras 200322 Roberto Schwarz Um mestre na periferia do capitalismo Machado de Assis Satildeo Paulo Duas Cidades Editora 34 200023 Chalhoub Op cit

83

Paulo Seacutergio de Proenccedila

de setembro de 1871 (a Lei do Ventre Livre) Emseu exame com o olhar de historiador o pesquisadoranalisou documentos que circularam na burocraciaimperial Machado fez de seu posto uma trincheiracontra os desmandos dos senhores de escravos tendoemitido pareceres favoraacuteveis a escravos coerentes como espiacuterito da liberdade e da legalidade Pelo contraacuterionatildeo haacute nenhuma evidecircncia em sua obra de que houveapoio velado ou ostensivo agrave escravidatildeo ldquoNos escritosmachadianos natildeo se vecirc em nenhum momento palavrasde apoio mesmo que impliacutecito ou subtendido agrave escra-vidatildeo Nem se encontram os estereoacutetipos recorrentescujo foco eacute a desumanizaccedilatildeo dos afrodescendentesrdquo(Duarte 2007 p 242-243)

A rarefeita presenccedila do negro em seus escritos eacute cri-ticada eacute verdade mas pelos que natildeo compreenderamos artifiacutecios do ficcionista Basta considerar as criacuteticasque fazia ao regime escravista a pena do cronista e seteraacute uma demonstraccedilatildeo de sua firmeza e convicccedilatildeo arespeito do drama dos escravos

Consideraccedilotildees finaisAtendo-nos agraves crocircnicas apresentadas podemos dizerque as peccedilas se articulam sob uma ambiguidade nar-rativa reflexo da accedilatildeo poliacutetica da classe senhorialescravista representada pelo narrador da crocircnica doescravo Pancraacutecio Schwarz aponta o fenocircmeno deque em Machado a forma de narrar estaacute em corres-pondecircncia com o funcionamento da sociedade que eacuteretratada A brasilidade o vieacutes nacional ldquotem de serdescrito como uma formardquo segundo Schwarz (2000p 10-11) A forma narrativa de Machado estaacute emjogo com o funcionamento da sociedade brasileira dotempo Entatildeo a ambiguidade e a contradiccedilatildeo narrati-vas mais ostensivas na crocircnica de 19 de novembro de1888 estatildeo em correspondecircncia com a ambiguidadepoliacutetica da classe senhorial A crocircnica potildee agraves escacircn-caras o oportunismo de senhores de escravos que seservem do ato de libertaccedilatildeo para dele tirarem o maiorproveito possiacutevel A aboliccedilatildeo natildeo eacute ato humanitaacuterio deconsciecircncia ideoloacutegica mas de simples oportunismo

Nesse quadro o uso e a presenccedila da Biacuteblia comoportadora dos elementos que sustentam a hegemoniacristatilde-catoacutelica participam da ambiguidade da tensatildeoldquoser vs parecerrdquo (proacutepria da tradiccedilatildeo poliacutetica brasileira)a elite senhorial ldquopareciardquo seguir os preceitos biacuteblicos

Pode haver duas possibilidades de avaliaccedilatildeo doldquoEvangelho da missa campalrdquo Uma primeira nega-tiva a elite poliacutetica (sacerdotes e levitas) em lancede oportunismo decreta a libertaccedilatildeo dos escravospara preservar o corpo ainda que com perda da pernarevela-se o perverso conuacutebio poliacutetico de interesses eo ldquoendeusamentordquo dos donos do poder A segundapositiva a libertaccedilatildeo dos escravos plena era de fatoa concretizaccedilatildeo da mensagem do evangelho os aboli-cionistas eram verdadeiros ldquodisciacutepulosrdquo a aboliccedilatildeo era

a versatildeo moderna do verdadeiro evangelho A possede outra pessoa eacute o grande pecado que corrompe osangue o remeacutedio contra a melancolia era natildeo ser nemex-escravo nem ex-senhor

Seria possiacutevel conciliar as duas leituras Parece quesim se forem considerados os elementos ambiacuteguossobretudo da crocircnica de 19 de maio de 1888 Uma ououtra possibilidade projeta ecircnfase aos escritos biacuteblicosinterpretados natildeo como depoacutesito de dogmas controla-dos pela religiatildeo mas como inspiradores de liberdadeE foi com a liberdade de um ficcionista que Machadousou a Biacuteblia

Referecircncias

A Biacuteblia de Jerusaleacutem1983 Satildeo Paulo Paulinas

Assis Machado de2008 Obra completa em quatro volumes Rio deJaneiro Nova Aguilar

Bertrand Denis2003 Caminhos da semioacutetica literaacuteria Bauru SPEdusc

Biacuteblia Sagrada1993 Traduccedilatildeo de Joatildeo Ferreira de Almeida SatildeoPaulo Sociedade Biacuteblica do Brasil

Duarte Eduardo de Assis2007 Machado de Assis afro-descendente Rio deJaneiroBelo Horizonte PallasCrisaacutelida

Eliade Mircea1981 O mito do eterno retorno arqueacutetipos e repeti-ccedilatildeo Lisboa Ediccedilotildees 70

Fiorin Joseacute Luiz2006 Interdiscursividade e intertextualidade InBrait Beth (Org) Bakhtin outros conceitos-chaveSatildeo Paulo Contexto

Gledson John1986 Machado de Assis ficccedilatildeo e histoacuteria Rio deJaneiro Paz e Terra

Nascimento Gizecirclda Melo do2002 Machado Trecircs momentos negros Terraroxa e outras terras Revista de Estudos Li-teraacuterios Volume 2 p 53-62 Disponiacutevel em〈 httpwwwuelbrcchposletrasterraroxa 〉 Acesso em7 dez 2009

Schwarz Roberto2000 Um mestre na periferia do capitalismo Ma-chado de Assis Satildeo Paulo Duas CidadesEditora34

84

Dados para indexaccedilatildeo em liacutengua estrangeira

Proenccedila Paulo Seacutergio deBiblical Intertextuality and Slavery in Machado de Assis (Two Chronicles of

May 1888)Estudos Semioacuteticos vol 6 n 2 (2010) p 77-85

issn 1980-4016

Abstract On May 17th 1988 during Thanksgiving for the abolition of slaves a Mass was celebrated in thepresence of the Regent Princess and other authorities In allusion to the event a Machadian chronicle parodiesthe gospel of the Mass Just like the first biblical gospel the parody has its Christ John the Baptist and thedisciples in addition to a parable Besides the biblical gospels the chronicle mentions the books Deuteronomy andEcclesiastes The author provokes particular effects as he superposes in a parodic way the events and charactersof his epoch to the biblical ones that leads one to ponder about the meaning of the events portrayed in a criticto the politicians and towards the events that resulted in the adoption of the abolition Machado wrote anotherfamous chronicle published on May 19th 1888 to which biblical allusions were not lacking to celebrate the freeingof the slave Pancraacutecio The narrator claims to anticipate the government measures and sets free his slave lad andoffers a banquet in order to celebrate the occasion Biblical images are used to highlight the event mdash everythingaiming at drawing attention to the narrator who does not conceal his political aspirations achieving them nothingbetter than pretending to follow Christian values and pretending to be good What is the sense effect of biblicalintertextuality in these plays by Machado regarding slavery That is what we intend to investigate

Keywords Machado de Assis Bible slavery

Como citar este artigo

Proenccedila Paulo Seacutergio de Intertextualidade biacuteblica eescravidatildeo em Machado de Assis (duas crocircnicas de maiode 1888) Estudos Semioacuteticos [on-line] Disponiacutevel em〈 httpwwwfflchuspbrdlsemioticaes 〉 Editores Respon-saacuteveis Francisco E S Merccedilon e Mariana Luz P deBarros Volume 6 Nuacutemero 2 Satildeo Paulo novembro de2010 p 77ndash85 Acesso em ldquodiamecircsanordquo

Data de recebimento do artigo 20112009

Data de sua aprovaccedilatildeo 10042010

  • Introduccedilatildeo
  • Crocircnica de 20-21 de maio de 1888 (``Evangelho da Missa Campal)
  • Crocircnica de 19 de maio de 1888
  • Consideraccedilotildees adicionais
  • Consideraccedilotildees finais
  • Referecircncias
Page 8: Intertextualidade bíblica e escravidão em Machado de Assis

Paulo Seacutergio de Proenccedila

de setembro de 1871 (a Lei do Ventre Livre) Emseu exame com o olhar de historiador o pesquisadoranalisou documentos que circularam na burocraciaimperial Machado fez de seu posto uma trincheiracontra os desmandos dos senhores de escravos tendoemitido pareceres favoraacuteveis a escravos coerentes como espiacuterito da liberdade e da legalidade Pelo contraacuterionatildeo haacute nenhuma evidecircncia em sua obra de que houveapoio velado ou ostensivo agrave escravidatildeo ldquoNos escritosmachadianos natildeo se vecirc em nenhum momento palavrasde apoio mesmo que impliacutecito ou subtendido agrave escra-vidatildeo Nem se encontram os estereoacutetipos recorrentescujo foco eacute a desumanizaccedilatildeo dos afrodescendentesrdquo(Duarte 2007 p 242-243)

A rarefeita presenccedila do negro em seus escritos eacute cri-ticada eacute verdade mas pelos que natildeo compreenderamos artifiacutecios do ficcionista Basta considerar as criacuteticasque fazia ao regime escravista a pena do cronista e seteraacute uma demonstraccedilatildeo de sua firmeza e convicccedilatildeo arespeito do drama dos escravos

Consideraccedilotildees finaisAtendo-nos agraves crocircnicas apresentadas podemos dizerque as peccedilas se articulam sob uma ambiguidade nar-rativa reflexo da accedilatildeo poliacutetica da classe senhorialescravista representada pelo narrador da crocircnica doescravo Pancraacutecio Schwarz aponta o fenocircmeno deque em Machado a forma de narrar estaacute em corres-pondecircncia com o funcionamento da sociedade que eacuteretratada A brasilidade o vieacutes nacional ldquotem de serdescrito como uma formardquo segundo Schwarz (2000p 10-11) A forma narrativa de Machado estaacute emjogo com o funcionamento da sociedade brasileira dotempo Entatildeo a ambiguidade e a contradiccedilatildeo narrati-vas mais ostensivas na crocircnica de 19 de novembro de1888 estatildeo em correspondecircncia com a ambiguidadepoliacutetica da classe senhorial A crocircnica potildee agraves escacircn-caras o oportunismo de senhores de escravos que seservem do ato de libertaccedilatildeo para dele tirarem o maiorproveito possiacutevel A aboliccedilatildeo natildeo eacute ato humanitaacuterio deconsciecircncia ideoloacutegica mas de simples oportunismo

Nesse quadro o uso e a presenccedila da Biacuteblia comoportadora dos elementos que sustentam a hegemoniacristatilde-catoacutelica participam da ambiguidade da tensatildeoldquoser vs parecerrdquo (proacutepria da tradiccedilatildeo poliacutetica brasileira)a elite senhorial ldquopareciardquo seguir os preceitos biacuteblicos

Pode haver duas possibilidades de avaliaccedilatildeo doldquoEvangelho da missa campalrdquo Uma primeira nega-tiva a elite poliacutetica (sacerdotes e levitas) em lancede oportunismo decreta a libertaccedilatildeo dos escravospara preservar o corpo ainda que com perda da pernarevela-se o perverso conuacutebio poliacutetico de interesses eo ldquoendeusamentordquo dos donos do poder A segundapositiva a libertaccedilatildeo dos escravos plena era de fatoa concretizaccedilatildeo da mensagem do evangelho os aboli-cionistas eram verdadeiros ldquodisciacutepulosrdquo a aboliccedilatildeo era

a versatildeo moderna do verdadeiro evangelho A possede outra pessoa eacute o grande pecado que corrompe osangue o remeacutedio contra a melancolia era natildeo ser nemex-escravo nem ex-senhor

Seria possiacutevel conciliar as duas leituras Parece quesim se forem considerados os elementos ambiacuteguossobretudo da crocircnica de 19 de maio de 1888 Uma ououtra possibilidade projeta ecircnfase aos escritos biacuteblicosinterpretados natildeo como depoacutesito de dogmas controla-dos pela religiatildeo mas como inspiradores de liberdadeE foi com a liberdade de um ficcionista que Machadousou a Biacuteblia

Referecircncias

A Biacuteblia de Jerusaleacutem1983 Satildeo Paulo Paulinas

Assis Machado de2008 Obra completa em quatro volumes Rio deJaneiro Nova Aguilar

Bertrand Denis2003 Caminhos da semioacutetica literaacuteria Bauru SPEdusc

Biacuteblia Sagrada1993 Traduccedilatildeo de Joatildeo Ferreira de Almeida SatildeoPaulo Sociedade Biacuteblica do Brasil

Duarte Eduardo de Assis2007 Machado de Assis afro-descendente Rio deJaneiroBelo Horizonte PallasCrisaacutelida

Eliade Mircea1981 O mito do eterno retorno arqueacutetipos e repeti-ccedilatildeo Lisboa Ediccedilotildees 70

Fiorin Joseacute Luiz2006 Interdiscursividade e intertextualidade InBrait Beth (Org) Bakhtin outros conceitos-chaveSatildeo Paulo Contexto

Gledson John1986 Machado de Assis ficccedilatildeo e histoacuteria Rio deJaneiro Paz e Terra

Nascimento Gizecirclda Melo do2002 Machado Trecircs momentos negros Terraroxa e outras terras Revista de Estudos Li-teraacuterios Volume 2 p 53-62 Disponiacutevel em〈 httpwwwuelbrcchposletrasterraroxa 〉 Acesso em7 dez 2009

Schwarz Roberto2000 Um mestre na periferia do capitalismo Ma-chado de Assis Satildeo Paulo Duas CidadesEditora34

84

Dados para indexaccedilatildeo em liacutengua estrangeira

Proenccedila Paulo Seacutergio deBiblical Intertextuality and Slavery in Machado de Assis (Two Chronicles of

May 1888)Estudos Semioacuteticos vol 6 n 2 (2010) p 77-85

issn 1980-4016

Abstract On May 17th 1988 during Thanksgiving for the abolition of slaves a Mass was celebrated in thepresence of the Regent Princess and other authorities In allusion to the event a Machadian chronicle parodiesthe gospel of the Mass Just like the first biblical gospel the parody has its Christ John the Baptist and thedisciples in addition to a parable Besides the biblical gospels the chronicle mentions the books Deuteronomy andEcclesiastes The author provokes particular effects as he superposes in a parodic way the events and charactersof his epoch to the biblical ones that leads one to ponder about the meaning of the events portrayed in a criticto the politicians and towards the events that resulted in the adoption of the abolition Machado wrote anotherfamous chronicle published on May 19th 1888 to which biblical allusions were not lacking to celebrate the freeingof the slave Pancraacutecio The narrator claims to anticipate the government measures and sets free his slave lad andoffers a banquet in order to celebrate the occasion Biblical images are used to highlight the event mdash everythingaiming at drawing attention to the narrator who does not conceal his political aspirations achieving them nothingbetter than pretending to follow Christian values and pretending to be good What is the sense effect of biblicalintertextuality in these plays by Machado regarding slavery That is what we intend to investigate

Keywords Machado de Assis Bible slavery

Como citar este artigo

Proenccedila Paulo Seacutergio de Intertextualidade biacuteblica eescravidatildeo em Machado de Assis (duas crocircnicas de maiode 1888) Estudos Semioacuteticos [on-line] Disponiacutevel em〈 httpwwwfflchuspbrdlsemioticaes 〉 Editores Respon-saacuteveis Francisco E S Merccedilon e Mariana Luz P deBarros Volume 6 Nuacutemero 2 Satildeo Paulo novembro de2010 p 77ndash85 Acesso em ldquodiamecircsanordquo

Data de recebimento do artigo 20112009

Data de sua aprovaccedilatildeo 10042010

  • Introduccedilatildeo
  • Crocircnica de 20-21 de maio de 1888 (``Evangelho da Missa Campal)
  • Crocircnica de 19 de maio de 1888
  • Consideraccedilotildees adicionais
  • Consideraccedilotildees finais
  • Referecircncias
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Dados para indexaccedilatildeo em liacutengua estrangeira

Proenccedila Paulo Seacutergio deBiblical Intertextuality and Slavery in Machado de Assis (Two Chronicles of

May 1888)Estudos Semioacuteticos vol 6 n 2 (2010) p 77-85

issn 1980-4016

Abstract On May 17th 1988 during Thanksgiving for the abolition of slaves a Mass was celebrated in thepresence of the Regent Princess and other authorities In allusion to the event a Machadian chronicle parodiesthe gospel of the Mass Just like the first biblical gospel the parody has its Christ John the Baptist and thedisciples in addition to a parable Besides the biblical gospels the chronicle mentions the books Deuteronomy andEcclesiastes The author provokes particular effects as he superposes in a parodic way the events and charactersof his epoch to the biblical ones that leads one to ponder about the meaning of the events portrayed in a criticto the politicians and towards the events that resulted in the adoption of the abolition Machado wrote anotherfamous chronicle published on May 19th 1888 to which biblical allusions were not lacking to celebrate the freeingof the slave Pancraacutecio The narrator claims to anticipate the government measures and sets free his slave lad andoffers a banquet in order to celebrate the occasion Biblical images are used to highlight the event mdash everythingaiming at drawing attention to the narrator who does not conceal his political aspirations achieving them nothingbetter than pretending to follow Christian values and pretending to be good What is the sense effect of biblicalintertextuality in these plays by Machado regarding slavery That is what we intend to investigate

Keywords Machado de Assis Bible slavery

Como citar este artigo

Proenccedila Paulo Seacutergio de Intertextualidade biacuteblica eescravidatildeo em Machado de Assis (duas crocircnicas de maiode 1888) Estudos Semioacuteticos [on-line] Disponiacutevel em〈 httpwwwfflchuspbrdlsemioticaes 〉 Editores Respon-saacuteveis Francisco E S Merccedilon e Mariana Luz P deBarros Volume 6 Nuacutemero 2 Satildeo Paulo novembro de2010 p 77ndash85 Acesso em ldquodiamecircsanordquo

Data de recebimento do artigo 20112009

Data de sua aprovaccedilatildeo 10042010

  • Introduccedilatildeo
  • Crocircnica de 20-21 de maio de 1888 (``Evangelho da Missa Campal)
  • Crocircnica de 19 de maio de 1888
  • Consideraccedilotildees adicionais
  • Consideraccedilotildees finais
  • Referecircncias