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Seminário Intervir em construções existentes de madeira 11 P.B. Lourenço, J.M. Branco e H.S. Sousa (eds.) 2014 Intervenções em coberturas medievais em madeira: Tradição e contemporaneidade Miguel Malheiro Centro de Investigação em Território, Arquitetura e Design (CITAD), Faculdade de Arquitetura e Artes da Universidade Lusíada do Porto, Porto [email protected] SUMÁRIO O presente artigo aborda a intervenção interdisciplinar realizada no património arquitectónico medieval português, focando-se essencialmente na conservação, salvaguarda e valorização de coberturas em madeira que compõem cinco casos de estudo que a seguir se apresentam. Este artigo apresenta situações concretas onde houve a necessidade de intervir nas coberturas de madeira de igrejas românicas, mostrando as estruturas encontradas, decorrentes de intervenções realizadas em meados do século XX, as soluções contemporâneas de conservação que se implantaram e as reinterpretações que se implementaram nos monumentos em que foi necessário substituir ou realizar novas estruturas, por inexistência das mesmas. As situações apresentadas derivam de uma reflexão que assenta os seus pressupostos na experiência arquitectónica desenvolvida ao longo dos tempos, e a aprendizagem que ela nos transmite no contacto que com ela vamos mantendo, transformando-se num ato que ultrapassa a operação de “conservação”. A aproximação inovadora destes projetos verifica-se na necessidade de desmonte e observação dos elementos principais das estruturas, apresentando-se os dimensionamentos que encontramos e que introduzimos, os materiais que compõem estas estruturas, mas acima de tudo, apresenta um processo de aproximação à solução e não a busca obstinada de um princípio. PALAVRAS-CHAVE: ARQUITETURA ROMÂNICA, COBERTURAS DE MADEIRA, CONSERVAÇÃO, VALORIZAÇÃO 1. INTRODUÇÃO Nos últimos dez anos realizamos intervenções em cinco igrejas românicas inseridas na Rota do Românico [1], que contemplavam a salvaguarda, conservação e valorização dos imóveis. Demos início a este périplo de intervenções com as obras realizadas nos anos 2003 a 2004 e 2013 na Igreja de Cabeça Santa, Penafiel, edifício do Séc. XIII, seguindo-se as ruínas da Igreja de S. Mamede de Vila Verde, Felgueiras, edifício dos séculos XIII-XIV, com intervenções realizadas nos anos de 2004 a 2006, e mais recentemente, nos anos de 2013-2014, na Igreja de Tabuado, Marco de Canavezes, edifício do Séc. XIII, Igreja de S. Nicolau, Marco de Canavezes, Séc. XIV e na Igreja do Mosteiro de Travanca, Amarante, com data de construção a situar-se entre os Séc. XI e Séc. XIV.

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Seminário Intervir em construções existentes de madeira 11

P.B. Lourenço, J.M. Branco e H.S. Sousa (eds.) 2014

Intervenções em coberturas medievais em madeira: Tradição e

contemporaneidade

Miguel Malheiro

Centro de Investigação em Território, Arquitetura e Design (CITAD),

Faculdade de Arquitetura e Artes da Universidade Lusíada do Porto, Porto

[email protected]

SUMÁRIO

O presente artigo aborda a intervenção interdisciplinar realizada no património

arquitectónico medieval português, focando-se essencialmente na conservação,

salvaguarda e valorização de coberturas em madeira que compõem cinco casos de estudo

que a seguir se apresentam. Este artigo apresenta situações concretas onde houve a

necessidade de intervir nas coberturas de madeira de igrejas românicas, mostrando as

estruturas encontradas, decorrentes de intervenções realizadas em meados do século XX,

as soluções contemporâneas de conservação que se implantaram e as reinterpretações que

se implementaram nos monumentos em que foi necessário substituir ou realizar novas

estruturas, por inexistência das mesmas.

As situações apresentadas derivam de uma reflexão que assenta os seus pressupostos na

experiência arquitectónica desenvolvida ao longo dos tempos, e a aprendizagem que ela

nos transmite no contacto que com ela vamos mantendo, transformando-se num ato que

ultrapassa a operação de “conservação”.

A aproximação inovadora destes projetos verifica-se na necessidade de desmonte e

observação dos elementos principais das estruturas, apresentando-se os dimensionamentos

que encontramos e que introduzimos, os materiais que compõem estas estruturas, mas

acima de tudo, apresenta um processo de aproximação à solução e não a busca obstinada

de um princípio.

PALAVRAS-CHAVE: ARQUITETURA ROMÂNICA, COBERTURAS DE

MADEIRA, CONSERVAÇÃO, VALORIZAÇÃO

1. INTRODUÇÃO

Nos últimos dez anos realizamos intervenções em cinco igrejas românicas inseridas na

Rota do Românico [1], que contemplavam a salvaguarda, conservação e valorização dos

imóveis. Demos início a este périplo de intervenções com as obras realizadas nos anos

2003 a 2004 e 2013 na Igreja de Cabeça Santa, Penafiel, edifício do Séc. XIII, seguindo-se

as ruínas da Igreja de S. Mamede de Vila Verde, Felgueiras, edifício dos séculos XIII-XIV,

com intervenções realizadas nos anos de 2004 a 2006, e mais recentemente, nos anos de

2013-2014, na Igreja de Tabuado, Marco de Canavezes, edifício do Séc. XIII, Igreja de S.

Nicolau, Marco de Canavezes, Séc. XIV e na Igreja do Mosteiro de Travanca, Amarante,

com data de construção a situar-se entre os Séc. XI e Séc. XIV.

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Na igreja de S. Mamede de Vila Verde houve a necessidade de construir novas coberturas,

devido à ausência das mesmas no momento em que realizamos a intervenção, sendo

apresentada a solução encontrada com base na tradição construtiva que se observou em

edifícios semelhantes, mas acima de tudo, a resposta que se encontrou para solucionar os

problemas de execução de uma cobertura para aquele caso concreto.

Nas igrejas de Tabuado e Cabeça Santa apresenta-se a situação existente, decorrente de

obras realizadas essencialmente na década de oitenta do século passado e a conservação

que foi realizada, com substituição de elementos degradados.

Na igreja de S. Nicolau apresenta-se a estrutura existente e os variados problemas

detectados que culminaram na sua total reformulação, devido à incoerência da solução

construtiva implementada, tendo sido necessário a adopção de uma solução definitiva.

Em Travanca houve igualmente a necessidade da remoção parcial das estruturas de

madeira que compunham as coberturas, devido ao mau estado de conservação das mesmas,

mas também houve a necessidade de resolver problemas estruturais complexos nos muros

que as suportavam. Assim, apresentam-se as soluções tomadas com vista à resolução dos

vários problemas diagnosticados, que passaram essencialmente pela execução de novas

estruturas de madeira e reforços de ligações que asseguram a resolução dos problemas

estruturais verificados, dando especial ênfase à forma oculta como foi resolvida a

complexidade de todo o sistema.

Depois desta introdução, o artigo organiza-se em três partes e a conclusão. Estas partes são

realizadas de forma a se tentar vislumbrar o que seria uma cobertura medieval original,

tendo em conta as imagens e soluções que observamos nos locais, as intervenções

realizadas em meados do século passado e os materiais utilizados, metodologias e soluções

contemporâneas definidas nas intervenções levadas a cabo. Estas partes são realizadas de

forma a se perceber uma possível origem, evolução e a forma de procurar soluções para a

resolução dos problemas diagnosticados nestes monumentos, contendo impressões sobre os

percursos do projeto e futuras perspectivas para investigação.

Figura 1 – Plantas das igrejas objecto de intervenção com marcação das asnas de madeira,

depois das intervenções realizadas; (a) Igreja do Mosteiro de Travanca, Amarante;

(b) Igreja de Cabeça Santa, Penafiel; (c) Igreja de Tabuado, Marco de Canavezes;

(d) Igreja de S Mamede de Vila Verde, Felgueiras; (e) Igreja de S. Nicolau, Marco de

Canavezes. Desenhos do autor.

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2. A SITUAÇÃO ORIGINAL

As coberturas originais de edifícios românicos, como os que aqui tratamos, já há muito

tempo que desapareceram, não havendo conhecimento da existência de alguma cobertura

medieval no nosso país. Isto acontece porque as intervenções realizadas são normalmente

tardias, havendo a necessidade da substituição integral das armações de madeira

fragilizadas, mas também porque só há relativamente pouco tempo se empregam soluções

de reparação parcial das mesmas, através do reforço das ligações, mas acima de tudo,

porque a madeira é um material perene, com necessidade de ciclos de renovação.

Assim, relatar como teriam sido as coberturas originais destes edifícios é uma tarefa difícil

e praticamente impossível de realizar. Apenas se pode tentar realizar uma aproximação

através da leitura dos indícios que os edifícios ainda contêm [2], como a inclinação das

cornijas, a existência de agulheiros para encastramento de barrotes, a forma como estão

tratadas as empenas, mas também como foram realizadas as substituições das coberturas de

alguns destes edifícios no século passado, pela extinta Direção Geral de Edifícios e

Monumentos Nacionais (DGEMN).

A observação das fotografias recolhidas pela DGEMN, antes das obras realizadas em

meados do século passado, permite compreender como seriam as coberturas que chegaram

até a esse momento, mas não se pode afirmar que essas seriam as originais, dado que estes

edifícios atravessaram as vicissitudes do tempo, sendo objecto de pesadas campanhas de

renovações para dar resposta às reformas das práticas religiosas, aos novos cenários

artísticos do espaço sacro e a ampliações espaciais, que ocorreram durante os séculos XVII

e XVIII. No entanto, uma análise atenta do antes e depois destas obras permite-nos afirmar

que existiu por vezes, por parte dos técnicos da DGEMN, uma intenção de introduzir

alguns melhoramentos nos sistemas construtivos empregues, decorrentes da evolução

tecnológica existente na altura, verificando-se em alguns casos, a manutenção de

elementos principais das armações de madeira existentes, porque estes restauros

consistiram em “percursos críticos que partiram da leitura do monumento como fonte

primária de conhecimento para voltar ao monumento como território operativo daquele

conhecimento (fundamento de qualquer restauro moderno)” [3].

(a) (b)

Figura 2 – Igreja de Tabuado durante as intervenções realizadas em 1963; (a) Armação de

madeira existente antes das obras; (b) Forro do tecto de madeira antes das obras.

Fotografias: © SIPA-IHRU.

As coberturas, de três dos edifícios aqui analisados, sofreram intervenções de

requalificação geral que foram publicadas nos Boletins da DGEMN [4]. O boletim

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correspondente à intervenção realizada na igreja de S. Salvador de Travanca foi publicado

em 1939, o da Igreja de Cabeça Santa em 1951 e o da Igreja de Tabuado em 1972.

Relendo esses boletins, percebe-se a existência de uma tentativa, por parte dos seus

autores, em realizar a manutenção dos princípios estruturais das soluções originais, ou das

que foram encontradas no momento da intervenção, embora as reformulações das

armações de madeira, nestes três casos, tenham sido totais. As imagens mostram-nos, nas

três igrejas, que as estruturas tinham recebido tectos com perfis curvos pelo seu interior,

evidenciando uma tipologia construtiva característica dos Séculos XVII e XVIII.

Comparando com a estrutura que descobrimos em S. Nicolau, percebem-se as semelhanças

entre os princípios construtivos, consistindo regularmente na existência de asnas simples

com duas pernas e uma linha, colocada invariavelmente a um terço de altura, elegendo-se

constantemente a madeira de castanho do Minho como material para a sua construção. A

análise das imagens permite pensar que estas armações seriam realizadas com barrotes de

secção rolada, com secções próximas das existentes, tal como se verifica na Igreja de

Tabuado, Figura 2 (a), e na Igreja de S. Nicolau, Figura 3 (a).

As soluções encontradas pelos técnicos da DGEMN foram quase sempre no sentido de

replicar os sistemas construtivos existentes, como se pode constatar pela descrição do que

existia antes das obras e depois das obras. Em Travanca, “nem uma viga de armação dos

seus telhados se pôde aproveitar” [5], tendo sido realizadas “novas armações de castanho –

afeiçoadas de harmonia com os elementos da construção primitiva, para constituírem, a

descoberto, os longos tectos das naves” [6]. Antes das obras encontraram estruturas que

pretendiam “simular em todos os tectos, com grande dispêndio de trabalho e de argamassa,

aparatosas abóbadas de mármore branco” [7], ver Figura 3 (b). Assim, a opção tomada

para a cobertura foi a “construção de outra nova, em madeira de castanho, segundo os

elementos encontrados, para ficar à vista” [8].

(a) (b)

Figura 3 – Armação de telhado e tecto antes das obras; (a) Armação de madeira existente

antes das obras de 2013, na Igreja de S. Nicolau, onde se pode observar a dupla estrutura

existente. Fotografia do autor; (b) Abóbada do tecto da nave lateral Norte da Igreja de

Travanca, em 1939. Fotografia: © SIPA-IHRU.

Na igreja de Cabeça Santa as opções foram semelhantes, e a situação encontrada foram os

telhados “da Igreja propriamente dita, como os da capela-mor, achavam-se tão

decompostos e carecidos de segurança, que se tornou indispensável apear toda a sua

armação e renovar em seguida, sobre aquela que se construiu para a substituir, a robusta e

apropriada cobertura que hoje ali se vê” [9].

Também na Igreja de Tabuado, o autor refere a colocação da “nova estrutura da cobertura

constituída por armação de madeira, com barrotes aparentes, colocados nos níveis

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originais” [10], o que só seria possível se as secções dos barrotes e a configuração geral da

estrutura fossem semelhantes ao encontrado.

Embora sendo difícil de afirmar como seriam as estruturas de madeira dos telhados

primitivos, por não termos contacto com nenhuma estrutura original, podemos avançar que

elas seriam próximas das realizadas durante os restauros do século XX, com asnas simples.

Os elementos de revestimento também seriam cerâmicos, apresentando uma imagem

global exterior próxima da que hoje observamos. No entanto, é de prever que algumas

destas coberturas poderiam apresentar estruturas de madeira muito simples, com recurso a

barrotes toscamente trabalhados. O revestimento das mesmas também poderia não ter sido

todo realizado com elementos cerâmicos na sua origem, como denunciam as cornijas da

Igreja de S. Mamede de Vila Verde, com uma pendente muito acentuada para o exterior, de

difícil apoio de elementos cerâmicos, sendo mais apropriada para uma cobertura vegetal.

Figura 4 – Cortes transversais das igrejas que fazem parte deste estudo, depois das

intervenções realizadas; (a) Igreja do Mosteiro de Travanca, Amarante; (b) Igreja de

Cabeça Santa, Penafiel; (c) Igreja de Tabuado, Marco de Canavezes; (d) Igreja de S.

Mamede de Vila Verde, Felgueiras; (e) Igreja de S. Nicolau, Marco de Canavezes.

Desenhos do autor.

3. OBRAS EFECTUADAS NO SÉCULO XX

As igrejas de Cabeça Santa, Travanca e Tabuado foram intervencionadas pela DGEMN

durante o século XX, de 1938 a 1951, de 1958 a 1988 e de 1955 a 1972, respectivamente.

Estas obras incluíram o apeamento total das armações de madeira e materiais de

revestimento, conforme já mencionado.

De forma sucinta, podemos afirmar que as primeiras obras realizadas nas coberturas destes

monumentos consistiram na realização das armações de madeira que ainda hoje se

encontram no local, com exceção da Igreja de Travanca. As obras realizadas mais tarde

consistiram, normalmente, na substituição dos elementos cerâmicos que têm um prazo de

durabilidade relativamente curto, de cerca de 20 anos. Os elementos cerâmicos utilizados

até à década de setenta nestes imóveis, consistiam normalmente no uso de telha do tipo

“Romana” nos canais e telha do tipo “Nacional” nas capas. Nesta altura, as três igrejas

receberam frechais em betão armado, para reforço do coroamento das paredes e maior

resistência às sobrecargas do telhado. Na Igreja de Travanca foi ainda aplicada uma esteira

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em laje de tijolo armado, com 0,10 m de espessura, na nave lateral Norte. A partir da

década de oitenta começa-se a utilizar a subtelha, que consistia na colocação sobre o forro

de placas de “Platex” com 5 mm de espessura, assente em escama, depois de humedecidas,

com a face polida voltada para o exterior.

Assim, verifica-se que as igrejas chegaram até ao século XX com os elementos principais

das estruturas de madeira gravemente deteriorados, sendo necessário a reformulação total

das estruturas das coberturas, conforme os três casos mencionados. Quando isto não

aconteceu, como nos restantes dois casos, em conjunto com a falta de manutenção, levou a

que as estruturas tivessem desaparecido, como no caso de Vila Verde, ou entrassem em

avançado estado de degradação, havendo a necessidade de duplicar as estruturas, como no

caso de S. Nicolau.

(a) (b)

Figura 5 – Remoção de laje e madeiramentos das coberturas da Igreja de Travanca;

(a) Remoção da laje da nave lateral Norte, assente sobre subtelha e forro de madeira;

(b) Subtelha em “Platex”, na nave central. Fotografias do autor.

Depois das grandes campanhas de apeamento das estruturas ocorridas durante a primeira

metade do século passado, verificaram-se obras de manutenção e substituição pontual de

elementos deteriorados nas fases seguintes, com a introdução de elementos

tecnologicamente mais eficazes, como o início do uso da subtelha, mas por vezes também

contraproducentes na manutenção do imóvel, como a esteira de tijolo armado aplicada em

Travanca, devido à sobrecarga que exerceu nos muros de granito.

(a) (b)

Figura 6 – Remoção de subtelhas em “Platex”; (a) Igreja de Cabeça Santa; (b) Igreja de

Tabuado. Fotografias do autor.

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4. INTERVENÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Nas Igrejas de Cabeça Santa e Tabuado a intervenção que realizamos consistiu na

substituição dos revestimentos cerâmicos dos planos das coberturas, devido à fracturação

de alguns elementos e à acumulação de colonização vegetal, provocando zonas de

estagnação de águas. Foram também verificados os forros em madeira de castanho

existentes e substituídos os elementos deteriorados. Depois de desmontado o ripado e

removida a subtelha em aglomerado de madeira “Platex”, aplicou-se um contra-ripado e

ripado de madeira de pinho tratado, com secções de 4 cm x 3 cm, colocando-se entre eles

uma membrana de subtelha permeável ao vapor e impermeável à água. A telha de canudo

foi aplicada sobre este ripado com parafuso e grampos em aço inoxidável. O ripado e

contra-ripado foi nivelado, com peças de pinho tratado, para se conseguir uma correta

entrega do telhado ao beiral e respeitar as inclinações das empenas dos telhados. Este

telhado foi rufado às empenas com rufos de zinco pré-patinado com 0,80 mm de espessura.

A operação levada a cabo nestas duas igrejas acabou por ser uma operação de manutenção

do existente, melhorando as condições técnicas de alguns elementos, como o caso dos

rufos e subtelha, limpeza e tratamento das madeiras existentes, mas mantendo a imagem

global das coberturas. Na face interior das coberturas, manteve-se a situação existente

através do tratamento das madeiras da armação do telhado. A solução das armações em

madeira de castanho é idêntica nas duas situações, com duas pernas e uma linha a 1/3 de

altura, onde assenta o forro. A forma interior dos forros, em ambas as situações, é em

“masseira”, com remates laterais aos muros de pedra formados por uma sanca composta

por duas tábuas sobrepostas, uma contínua, abaixo da linha de limite das pernas, e outra

colocada entre pernas, ligando ao forro, com uma altura total de cerca de 28 cm. As pernas

assentam sobre frechais em betão armado existentes, que se mantiveram.

A intervenção realizada na Igreja de Vila Verde [11] [12], resultou na execução de novas

coberturas com armação de madeira maciça de castanho revestida a telha de canudo. A

solução encontrada foi a tradicional realização de asnas formadas por duas pernas e uma

linha, colocada a um terço da altura da asna, com forro a contornar o extradorso das

pernas, em forma triangular, conseguindo-se uma maior visibilidade da estrutura principal,

dada a repetição destes elementos a cada 25 cm. Procurando dar ênfase a esta repetição de

asnas, optou-se por introduzir mais altura nos elementos que as constituem, em relação aos

encontrados nas duas igrejas referidas acima, utilizando uma secção de 15 cm de altura por

7 cm de base. O trabalho final refletiu a imagem pretendida, relacionando-se diretamente

com os elementos esguios e repetitivos definidos para o mobiliário, criando ritmos

semelhantes, dando ênfase à materialidade dos elementos. Estas asnas apoiam-se em

frechais com secção de 15 cm x 25,5 cm, fixados com parafusos de aço ao coroamento dos

muros laterais. A rigidez da estrutura é dada pela união de todos os elementos estruturais

através do forro, com espessura de 2,2 cm. O remate do frechal, pela face interior dos

muros, é realizado mediante a aplicação de uma sanca composta por duas tábuas pregadas

ao mesmo, com secções de 16,5 cm x 1,5 cm, criando uma imagem semelhante à dos tectos

tradicionais de “saia e camisa”.

Na face superior desta cobertura utilizou-se igualmente a telha de canudo, dado que a sua

dimensão permite uma maior flexibilidade para a realização da cobertura ligeiramente

arqueada, para uma correta entrega ao beiral, que costuma ficar com inclinação menor que

a restante inclinação do telhado. Os rufos utilizados na impermeabilização da ligação do

telhado aos paramentos verticais foi o zinco idêntico ao utilizado nas duas situações

anteriores, aplicado também com presilhas.

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(a) (b)

(c) (d)

Figura 7 – Coberturas em execução; (a) Tecto da cobertura da Igreja de Cabeça Santa,

com as tábuas de forro substituídas, sem acabamento final de uniformização de cor;

(b) Tecto da Igreja de S. Mamede de Vila Verde; (c) Tecto da Igreja de S. Nicolau;

(d) Cobertura da Igreja de S. Mamede de Vila Verde. Fotografias do autor.

Figura 8 – Corte transversal da nave da Igreja de S. Mamede de Vila Verde. Desenho do

autor.

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A irregularidade das superfícies dos coroamentos das empenas e as juntas

sobredimensionadas obrigaram à sua rufagem com chapa de chumbo, por este ser o

material que melhor se adaptava às irregularidades, com aplicação a maço, e porque

também ainda era possível a sua utilização na altura de realização do trabalho.

Relativamente à Igreja de S. Nicolau, a intervenção previa a manutenção da cobertura

existente, substituindo os elementos degradados por outros idênticos aos existentes, mas

realçava a necessidade de remoção de uma fiada de granito existente sobre as cornijas e

empenas, nos telhados da nave e capela-mor. A remoção dos elementos cerâmicos permitiu

observar a existência de duas estruturas, uma mais antiga, onde se encontravam fixadas as

tábuas que formavam os tectos com perfil em arco abatido, toscamente realizados, e uma

segunda estrutura mais recente, onde apoiavam os elementos cerâmicos, ver Figura 3 (a). A

sobreposição destes dois elementos, pressupostamente realizados pela comissão fabriqueira

em 1992/93, conforme mencionado na ficha IPA, resultou na necessidade de remate da

segunda estrutura devido à nova cota atingida, tendo daí derivado a realização da fiada de

granito mencionada acima. A observação dos elementos permitiu concluir que a estrutura

original era composta por asnas simples em madeira de castanho, idênticas às soluções das

igrejas anteriores, compostas por duas pernas e uma linha sensivelmente posicionada a 1/3

da altura da asna, frechais e um pau de fileira que unia todas as asnas na parte superior.

Todos os elementos que compunham esta armação encontravam-se em avançado estado de

degradação. A segunda estrutura foi executada em madeira de pinho, apoiada na estrutura

original, com espaçamento entre barrotes de cerca de 70 cm, o dobro da estrutura original,

sendo observável a criação de flechas de carga no ripado. Assim, a solução tomada foi a

remoção integral de toda a estrutura de madeira, e a execução de uma nova estrutura

semelhante às realizadas anteriormente, em madeira de castanho. Utilizaram-se secções

dos elementos principais das asnas semelhantes aos existentes na solução original, com

6 cm x 11 cm nas pernas e linhas, com afastamento entre asnas de 28 cm. O forro utilizado

foi idêntico ao utilizado nas igrejas anteriores, bem como a sua aplicação e formato final,

aplicado no extradorso das asnas, havendo a possibilidade de voltar a colocar um tecto de

perfil de volta perfeita em posteriores obras de conservação que se venham a realizar no

imóvel, dado que o restante espaço interior não foi objecto de intervenção nesta fase. Esta

solução permitiu remover integralmente a fiada de granito mencionada anteriormente,

devolvendo uma coerência de remate do telhado às empenas que não existia anteriormente.

Na Igreja do Mosteiro de Travanca a intervenção levada a cabo partiu da necessidade de

reforçar as ligações dos muros nas cotas superiores, por se verificar alguns deslocamentos

nos encostos dos mesmos nos vários tramos das naves central e laterais, bem como a

remoção das lajes realizadas no século passado, conforme mencionado acima, e a

substituição integral dos elementos cerâmicos fissurados das coberturas existentes. A

intervenção previa também a averiguação em obra do estado de conservação de todos os

madeiramentos, havendo a intenção de realizar a manutenção dos elementos que se

encontrassem em bom estado de conservação.

Assim, a solução encontrada, depois de reunida toda a informação sobre o imóvel,

diagnosticado no local e discutida interdisciplinarmente, passou pela manutenção do

sistema existente, realizando os ajustes necessários para um bom comportamento da

estrutura ao longo do tempo. O desmonte da estrutura permitiu perceber a degradação da

maioria dos elementos a que compunham, salvaguardando-se a maioria das madres, que

embora tivessem sujidades várias ainda apresentavam um bom comportamento para a sua

função estrutural.

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(a) (b)

(c) (d)

Figura 9 – Trabalhos na Igreja do Salvador de Travanca; (a) Aplicação dos ligadores

metálicos no cume da nave central; (b) Aplicação dos ligadores na cobertura da nave

lateral Norte, no encosto à nave central; (c) Vista geral dos tectos da nave central, depois

das obras; (d) Aplicação de membrana e telha na nave central. Fotografias do autor.

Devido aos movimentos dos muros, que passaram pela separação de paredes em alguns

tramos, houve a necessidade de realizar a amarração de todos os elementos à periferia dos

tramos que compõem as três naves, através de ligações ocultas em aço inoxidável de todos

os elementos aos muros, para uma interligação total do sistema de cobertura com as

paredes que a suportam. Sobre esta estrutura aplicou-se uma substrutura semelhante à

utilizada na Igreja de S. Mamede de Vila Verde, com forro de madeira de castanho, contra-

ripado e ripado, membrana permeável ao vapor e impermeabilizante, e telha de canudo. As

inclinações do telhado foram testadas em obra para uma correta compatibilidade com as

empenas e desvios em planta dos vários tramos que compõe a estrutura, assegurando-se a

uniformidade do acabamento final. Pelo interior, deixaram-se à vista as madres e pernas,

tendo sido utilizada uma secção de 8 cm x 11 cm nas pernas, com afastamento entre elas

que varia entre os 21 cm e os 23 cm, adequando-se às esquadrias dos tramos. Devido à

reutilização das madres e da tonalidade da pedra, realizou-se uma infusão geral em todos

os elementos de castanho visíveis pelo interior da igreja para uma maior uniformização dos

tectos das naves, mas sem neutralizar a hierarquia dos barrotes. Nas coberturas da capela-

mor e absidíolos foram igualmente substituídos os elementos cerâmicos, introduzindo-se

ripado e contra-ripado com membrana assente sobre os massames de betão existentes,

decorrentes das obras realizadas na década de setenta.

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5. CONCLUSÃO

A cobertura está vinculada ao mito da construção, no mais antigo dos gestos humanos: o de

se cobrir e proteger. Elas encontram-se associadas às formas primitivas daqueles edifícios,

e apesar das sucessivas metamorfoses, transformações e modificações, elas reconhecem-se

sempre naquelas arquiteturas. Pensamos que o conhecimento da origem e sucessivas

alterações que as coberturas desta arquitetura medieval sofreram ao longo da vida dos

edifícios, constitui um instrumento de aprendizagem fundamental para se voltar a intervir

nelas. A constituição de uma equipa em que intervêm a História, a Arqueologia e a

Engenharia Civil, contribui positivamente para reler novamente a história, para nela poder

intervir, porque se diagnosticam os vários problemas visíveis e invisíveis, assumindo-se

como um contributo maior no encontro de soluções para os problemas específicos de cada

imóvel. Como afirmamos no início, isto não constitui um princípio, mas sim um fim a

atingir, que na maioria dos casos passa por auspiciar soluções simples, simples não

simplistas, intimamente relacionadas com as características específicas de cada um, para

que em conjunto se valorizem.

6. REFERÊNCIAS

[1] A Rota do Românico surge em 1998, no seio dos concelhos que integram a Valsousa

(Associação de Municípios do Vale do Sousa), alargando-se em 2010 aos restantes

municípios da NUT III-Tâmega.

[2] Malheiro M., A presença da Arquitectura. A arquitectura românica do vale do rio

Sousa. Tese de Doutoramento, Universidad de Valladolid, Escuela Tecnica Superior

de Arquitectura, 2012.

[3] Tomé M., Património e restauro em Portugal (1920-1995). FAUP publicações, Porto,

pp. 30-31, 2002.

[4] Os Boletins da DGEMN foram uma publicação que decorreu entre 1935 e 1990,

tendo-se publicado 131 números de intervenções em alguns dos mais significativos

exemplares do legado histórico português, representando uma proposta de debate a

posteriori que tentava incutir uma prática de “prestação de contas”.

[5] Igreja de S. Salvador de Travanca. Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e

Monumentos Nacionais, n.º 15, Lisboa: DGEMN, pp. 18, 1939.

[6] Idem.

[7] Idem.

[8] Idem, pp. 26.

[9] Igreja de Cabeça Santa. Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos

Nacionais, n.º 64, Lisboa: DGEMN, pp. 21, 1951.

[10] Igreja de Tabuado. Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos

Nacionais, n.º 1125, Lisboa: DGEMN, pp. 20, 1972.

[11] Malheiro M., et al, São Mamede de Vila Verde, Construir uma Igreja com as suas

pedras. Rota do Românico, Centro de Estudos do Românico e do Território, Lousada,

2011.

[12] Malheiro M., Salvaguarda do Património. I Congresso Internacional da Rota do

Românico, Rota do Românico, Centro de Estudos do Românico e do Território, pp.

51-53, 2012.

22 Intervenções em coberturas medievais em madeira: Tradição e contemporaneidade

P.B. Lourenço, J.M. Branco e H.S. Sousa (eds.) 2014