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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ZÍNIA FRAGA INTRA A CONSTITUIÇÃO DO “EU” ENTRE CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DIFERENTES MODOS DE SER MENINA E DE SER MENINO VITÓRIA 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ZÍNIA FRAGA INTRA

A CONSTITUIÇÃO DO “EU” ENTRE CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DIFERENTES MODOS DE SER

MENINA E DE SER MENINO

VITÓRIA

2007

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ZÍNIA FRAGA INTRA

A CONSTITUIÇÃO DO “EU” ENTRE CRIANÇAS NA

EDUCAÇÃO INFANTIL: DIFERENTES MODOS DE SER MENINA E DE SER MENINO.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação, na área de concentração em Processos Psicossociais da Aprendizagem. Orientadora: Profª Drª Ivone Martins de Oliveira.

Vitória 2007

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As minhas sobrinhas, Lorena, Amanda, Julia,

Rebeca e ao Davi. Fontes de minha inspiração.

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AGRADECIMENTOS

A Deus por ter me dado o dom da vida.

Aos meus pais e irmãos, que me proporcionaram uma infância rica em

possibilidades de aprendizagem e por sempre acreditarem em mim.

À querida professora Drª. Ivone Martins de Oliveira, que há sete anos tenho o prazer

de acompanhar em seus projetos, pesquisas e estudos, pela paciência e carinho

com que me orientou, e pelos ensinamentos, que levo para toda vida.

Às professoras Drªs. Sonia Lopes Victor e Maria Aparecida Santos Corrêa Barreto,

pelo carinho com que me tratam, pelas valorosas contribuições na qualificação e por

terem aceitado o convite de participar desse momento tão importante.

À professora Drª Vera Lucia Messias Fialho Capellini, por ter recepcionado tão bem

as capixabas que visitaram Bauru e por aceitar participar da banca examinadora.

A professora Drª Vânia Carvalho de Araújo, por me mostrar a riqueza de se estudar

a infância e pelos ensinamentos durante monitoria.

À diretora, pedagoga, professora e demais profissionais da escola pesquisada, por

terem me permitido adentrar nesse espaço e pelo respeito que tiveram com

pesquisa e a pesquisadora.

Aos alunos do Jardim II, pelos beijos, abraços, elogios e pelos convites para brincar.

Aos colegas de trabalho pela compreensão e paciência nos momentos de ausência

e pela torcida para que tudo desse certo.

Aos meus alunos por compreenderem que algumas vezes tive que me ausentar e

pelo carinho com quem cuidam de sua professora.

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Às minhas amigas Renata, Lucyenne e Tânia, pelos momentos agradáveis que

passamos juntas durante a nossa formação e pelo apoio e dicas que me deram

durante a realização desse trabalho.

Às minhas amigas de luta, por uma Educação Infantil de qualidade, Joelma e

Fabiola, pelos momentos de intensa aprendizagem que passamos juntas.

À Fernanda minha amiga e confidente, que sempre me escutou.

Ao Fabrício, surpresa boa, pela compreensão nos momentos de ausência e por ter

cuidado de mim e da minha dissertação com tanto carinho.

Aos funcionários e professores do Centro de Educação/ UFES, por terem participado

da minha constituição enquanto professora.

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Não há uma saída. Há muitas. Não há uma resposta ún ica. Mesmo

que por ilusão a encontremos, novas perguntas conti nuam a surgir.

Somos calcário, chumbo, argila, água marinha? Sim e não.

Desmanchamo-nos e nos refazemos.

Sonia Kramer .

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RESUMO

Neste trabalho buscamos compreender a constituição do eu entre as crianças na educação infantil. Os motivos que nos levaram a pesquisar a infância nesta modalidade de ensino diz respeito à recente inserção desse tema nas produções acadêmicas, acarretando uma pequena produção, e ao fato de acreditarmos ser este um espaço privilegiado para analisarmos a constituição do eu entre as crianças. A história da infância nos auxiliou a delinearmos a abordagem escolhida, atendendo a uma perspectiva que leve em consideração a história e a cultura de nossa sociedade. Dessa forma, os estudos da abordagem histórico-cultural nos auxiliaram na análise da constituição do sujeito na infância: baseamo-nos em Vigotski para entendermos o papel do outro e da linguagem na constituição do sujeito e em Wallon para compreendermos os percursos do desenvolvimento infantil. A pesquisa se constituiu em um estudo de caso de uma turma de crianças de cinco a seis anos de uma unidade de educação infantil do município de Vila Velha. A coleta de dados se deu através de observações do cotidiano da turma, entrevistas com a professora e as crianças e documentos da escola. As análises priorizaram a interação entre as crianças e levaram ao enfoque dos modos de ser menina e ser menino, nas relações com os outros; dos diferentes papéis assumidos pelas crianças e dos conflitos gerados nesta interação. Foram discutidos aspectos referentes aos diferentes modos de ser menina e ser menino, nessa turma, bem como sua relação com valores, concepções e práticas culturais que atravessam o ser mulher e ser homem no contexto histórico e cultural. A pesquisa evidenciou a importância do papel mediador do professor nas interações estabelecidas entre as crianças, proporcionando a elas maior riqueza de possibilidades de vivenciar novos papéis e de questionar e refletir sobre valores e padrões cristalizados e rígidos de modos de ser presentes na sociedade. A problematização e reflexão sobre relações de gênero podem proporcionar aos profissionais da educação infantil repensar práticas que reforçam estereotipias, quebrando preconceitos e possibilitando práticas educativas que levem a um ambiente rico em interações e vivências de modos de ser para as crianças. Palavras-chave: Constituição do eu – interação – gênero – educação infantil – criança.

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ABSTRACT

The paper aims at understanding the constitution of the self among children in childhood education. The reason to research on the childhood in that modality of teaching is about the recent insertion of such theme in academic productions, carrying a tiny production, and to the fact of the belief that this privileged space is for the analysis of the self constitution among children. The history of childhood helped to delineate the chosen approach, attending a perspective that takes into consideration the history and culture of our society. This way, the studies of the historical-cultural approach helped with the analysis of the one’s constitution in the childhood: Vigotsky was the base to the understanding of the other’s role and the language in one’s constitution and Wallon was referred for the understanding the paths of the childhood development. The study is constituted in a study case of a group of children from five to six years old of a children education unit in the district of Vila Velha, state of Espírito Santo. Data collection was through a daily observation of the group, interviews with teachers and children and school documents. The analyses priority was the children’s interaction and led to the focus of being a girl or a boy, in relations with others; from the different roles assumed by children and the conflicts generated in that interaction. It was discussed the aspects referent to the different ways of being a girl or a boy, in this group, as well as the relation with values, conceptions and cultural practices which cross the woman being and man being in the historical and cultural contexts. The research emphasized the importance of the teacher’s mediator role in interactions established among the children, providing them with greater possibilities to live new roles, question and reflect on values and crystallized and strict patterns of ways of being present in society. The problem and reflection about relations of gender can make the professionals of the children’s education rethink practices which reinforce the stereotypy, breaking prejudice and making possible educative practices that guide to an environment full of interaction and experiences of ways of being for the children. Keywords: Self constitution. Interaction. Gender. Children education. Children.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Corredor com as salas de aula 1.............................................................56 Figura 2 - Corredor com as salas de aula 2...............................................................56 Figura 3 - Sala de vídeo 1. .........................................................................................56 Figura 4 - Sala de vídeo 2..........................................................................................56 Figura 5 - Sala da pedagoga.................................................................................56 Figura 6 - Banheiro feminino......................................................................................56 Figura 7 – Rampa......................................................................................................56 Figura 8 - Sala do berçário.........................................................................................56 Figura 9 - Sala do berçário II.................................................................................57 Figura 10 – Refeitório.................................................................................................57 Figura 11 – Refeitório.................................................................................................57 Figura 12 – Parquinho de areia..................................................................................57 Figura 13 – Pátio........................................................................................................57 Figura 14 – Casinha...................................................................................................57 Figura 15 - Sala de professores 1..............................................................................57 Figura 16 - Sala de professores 2..............................................................................57 Figura 17 – Mesas e cadeiras que ficam próximas à porta.......................................63 Figura 18 – Quadro de giz.........................................................................................63 Figura 19 – Mesas e cadeiras que ficam próximas à janela.....................................63 Figura 20 – Espelho..................................................................................................63 Figura 21 – Prateleiras...............................................................................................63 Figura 22 – Quadro de pincel....................................................................................63 Figura 23- Dinâmica das relações entre as meninas...............................................77 Figura 24 – Dinâmica das relações entre os meninos...............................................79

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Figura 25 Dinâmica das relações entre meninas e meninos....................................80 Figura 26. Dinâmica das relações entre meninas e meninos.....................................81 . Figura 27 Dinâmica das interações na turma do Jardim II.........................................83

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.........................................................................................................14

1 DESENVOLVIMENTO E CONSTITUIÇÃO DO EU NA CRIANÇA ........................22

1.1 REVISÃO DE LITERATURA................................................................................25

1.2 SUBJETIVIDADE E CONSTITUIÇÃO DO EU: AS CONTRIBUIÇÕES DE VIGOTSKI E WALLON...............................................................................................38 2. METODOLOGIA....................................................................................................48

2.1 A UNIDADE DE EDUCAÇÃO INFANTIL.............................................................54

2.1.1 Funcionários da UMEI ....................................................................................58

2.1.2 A entrada da pesquisadora na sala do Jardim I I..........................................60

2.1.3 A sala do Jardim II ...........................................................................................61

2.1.4 A professora do Jardim II ...............................................................................63

2.1.5 A rotina da sala ...............................................................................................64

2.1.6 As crianças do jardim II ..................................................................................69

2.1.7 As crianças e suas famílias ..........................................................................70

3. SER MENINA E SER MENINO NA TURMA DO JARDIM II: C AMINHOS DE

CONSTITUIÇÃO DO EU .......................................................................................... 73

3.1 A FORMAÇÃO DE GRUPOS E A SUA IMPORTÂNCIA PARA A CONSTRUÇÃO

SOCIAL DA CRIANÇA...............................................................................................75

3.2 SER MENINO E SER MENINA............................................................................85

3.2.1 Será que ele me acha bonita? - Ser menina na turma do Jardim II ...........87

3.2.2 As meninas e os conflitos ..............................................................................99

3.2.3 Menino pode brincar de casinha? – ser menino na turma do Jardim II ...104

3.2.4 Os meninos e os conflitos ............................................................................112

3.3 SER MENINO E SER MENINA: CONSTITUIÇÃO DO EU NA INFÂNCIA........116

4 UM COMEÇO PARA NOVAS DESCOBERTAS ..................................................119

5 REFERÊNCIAS....................................................................................................123 ANEXO....................................................................................................................128

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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Intra, Zínia Fraga, 1980- I61c A constituição do “eu” entre crianças na educação infantil: diferentes

modos de ser menina e de ser menino / Zínia Fraga Intra. – 2007. 132 f. : il. Orientadora: Ivone Martins de Oliveira. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo,

Centro de Educação 1. Desenvolvimento da personalidade. 2. Educação de crianças. 3.

Interação social em crianças. 4. Crianças. 5. Relações de gênero. I. Oliveira, Ivone Martins de. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.

CDU: 37

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INTRODUÇÃO

O mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Guimarães Rosa

Quem tem o privilegio de acompanhar o cotidiano nas instituições de Educação

Infantil percebe o quanto mudam as crianças no período em que ali permanecem,

principalmente se entram bebês. É bonito vê-las, como disse Guimarães Rosa,

mudando ao longo do tempo, ver que entram engatinhando ou que resistem ao

entrar, com medo daquele ambiente desconhecido tão grande e tão diferente do da

sua casa, mas que aos poucos vão-se tornando independentes, transitando pelo

espaço com total segurança. Já não têm mais medo, pois passam a conhecer o

espaço tão bem ou até mesmo melhor que os adultos que trabalham nessas

instituições.

Acompanho de perto essas mudanças e durante a minha prática como professora

de Educação Infantil, sempre me questionei sobre como essas transformações são

possíveis? Que fatores levam a que elas ocorram? Somente a maturação biológica

daria conta de explicar essas transformações?

Observar as crianças pode levar-nos a entender esse processo.

Uma criança de aproximadamente um ano e meio tenta abrir a torneira da pia do

refeitório para lavar suas mãos, mas não alcança. Outra criança que aparenta ser

um pouco mais velha aponta para um ressalto de mármore que há ao lado da pia e

diz:

- Aqui, ó!

Depois, sobe, abre a torneira e lava as mãos. A criança que estava com dificuldades

faz o mesmo e fecha a torneira.

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Qual foi a importância da criança mais experiente? Será que, sem ela ali, a outra

conseguiria sozinha ou solicitaria a ajuda de um adulto? Um episódio que muitas

vezes pode parecer banal aos olhos de quem não tem a sensibilidade de observar o

cotidiano demonstra a constituição de um conhecimento apresentado pelo outro.

Dessa forma, o cotidiano escolar apresenta-me uma gama de oportunidades de

observações, que eu venho acumulando ao longo dos oito anos de profissão.

Iniciei meu trabalho com crianças da primeira série do ensino fundamental da rede

particular. Já há algum tempo vem acontecendo a entrada de crianças no ensino

fundamental, principalmente em escolas particulares, em idade cada vez mais

precoce, uma vez que os pais consideram vantajoso adiantar o percurso de seus

filhos nos anos iniciais de escolarização.

Dessa forma, na primeira série observei crianças com cinco, seis e sete anos. Muitas

delas sentiam-se perdidas, pois tinham que lidar com notas, provas e o tempo

reduzido para brincar. As crianças que não sabiam ler eram tachadas de “mimadas”

e “imaturas”, como se o processo de alfabetização se reduzisse a uma maturação

biológica. Sempre tentei amenizar essa mudança brusca com a qual as crianças

tinham que aprender a lidar, preparando momentos avaliativos diferentes de uma

prova, subvertendo a ordem e levando-as para brincar. Aquela situação, porém,

inquietava-me.

Concomitante com a minha inserção na vida profissional, fui-me constituindo como

professora também na universidade, onde eu cursava Pedagogia. O mundo

acadêmico me seduziu, comecei a perceber que a educação não se reduzia

simplesmente à minha sala de aula e que minhas práticas refletiam concepções e

políticas enraizadas em nosso sistema de ensino. Confesso que inicialmente me

assustei com a perversidade muitas vezes oculta da escola e com a idéia de que eu

poderia estar contribuindo para isso.

Na ânsia pelo novo, busquei mudanças em minha prática. Percebia que aquele

ensino que tentava docilizar os corpos cada vez mais cedo prejudicava as crianças,

a quem muitas vezes vi chorar com saudades do parquinho, e que nos momentos de

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prova não entendiam por que não podiam ajudar o colega, subvertiam a ordem e

iam brincar escondidas.

Assim sendo, no ano de 2001 deixei a escola em busca de algo novo, que me

fizesse compreender as crianças por meio de práticas diferenciadas. Ingressei no

Programa de Iniciação Cientifica com o projeto intitulado “Afeto, emoção e

linguagem na brincadeira da criança”, desenvolvido na brinquedoteca do Núcleo de

Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação Especial (NEESP) do Centro de

Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (CE/UFES). Esse projeto tinha

por objetivo investigar os modos de manifestação da linguagem na configuração do

afeto e da emoção, em situações de jogo imaginário com crianças. As interações

entre as crianças e os pesquisadores eram intensas. Durante o período em que

estivemos juntos, vários foram as cenas de brincadeiras em que acontecia a

participação de mais de uma criança. As interações proporcionavam o

enriquecimento da brincadeira.

Essa pesquisa fazia parte de uma pesquisa mais ampla intitulada “Jogo, Mediação

pedagógica e criança: estudos na abordagem histórico-cultural”, que visava

aprofundar a discussão sobre o desenvolvimento histórico e cultural da criança,

tendo como referência o jogo infantil.

Também dentro dessa pesquisa se desenvolvia o projeto coordenado pela

professora Doutora Sonia Lopes Victor, que tinha como objetivo contribuir com a

formação pedagógica e refletir a mediação pedagógica entre as crianças com

deficiência mental e as crianças de desenvolvimento típico em interação em

situações de brincadeira. Como as atividades eram desenvolvidas em crianças em

faixa etária correspondente aos alunos da Educação Infantil, a pesquisa contribui

para mostrar que além da escola existem outros espaços que podem propiciar um

saber sistematizado e intencional. O professor nestes espaços tem um papel

fundamental de acompanhar e possibilitar às crianças caminharem além dos níveis

de desenvolvimento já garantidos. A pesquisa também contribui para uma reflexão

da inclusão de crianças com deficiência mental nas salas regulares, valorizando a

mediação do professor, tendo como referência as manifestações da brincadeira de

faz - de- conta entre as crianças.

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Nesse período, percebi que pesquisar era muito mais do que procurar livros ou ir a

bibliotecas. Pesquisar era observar, refletir sobre a minha prática na pesquisa, sobre

as respostas das crianças e analisar, embasada na teoria, essas respostas. A partir

desse momento, passei a “ver” diferente. Assim como alguém que não enxergava e

passa a ver, o meu olhar se tornou mais sensível. Como disse Fernando Pessoa, “O

meu olhar é nítido como um girassol [...] olhando para a direita e para a esquerda e

de vez em quando para trás e o que vejo a cada momento é aquilo que antes eu

nunca tinha visto”. Na pesquisa é preciso olhar várias vezes para mesma situação,

permitindo-se desviar o olhar para entender o que está acontecendo e sempre se

descobrirá algo novo. Essa é a riqueza de se fazer pesquisa com crianças, a

possibilidade do novo.

As etapas da pesquisa foram de fundamental importância para a inserção dos

recentes pesquisadores, pois participamos desde a escolha dos brinquedos,

montagem e o planejamento das atividades direcionadas com as crianças.

Acompanhar e mediar a interação das crianças em situações de brincadeira

possibilitou-nos a construção de um conhecimento sobre como interagir nessas

situações e, junto com a criança, avançarmos em seu conhecimento sobre

determinada brincadeira.

Após o término desse estudo, iniciei meu trabalho como monitora da disciplina

“Currículo em Educação Infantil”, interesse que surgiu ainda no período da pesquisa,

pois nesse tempo lidávamos com crianças a partir de quatro anos de idade. Nossas

leituras no grupo de pesquisa levaram-nos a refletir sobre o desenvolvimento das

crianças na faixa etária da Educação Infantil.

As contribuições foram riquíssimas, pois as discussões não se restringiam mais ao

contexto do desenvolvimento infantil na brincadeira, ampliaram-se para o contexto

da criança inserida no ambiente escolar, a história da trajetória das instituições de

Educação Infantil, a forma como muitas instituições entendiam a criança e o seu

desenvolvimento. Acrescenta-se a isso a valorosa troca de idéias com os alunos da

disciplina que, com suas dúvidas, questionamentos e informações, me fizeram ter

vontade de retornar à sala de aula com toda vivência e conhecimento adquirido.

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No ano de 2004, comecei a trabalhar como professora de Educação Infantil, no

ensino municipal de Vila Velha. Trabalhar na escola pública era uma vontade política

que adquiri com os professores da Universidade, uma vez que passei quatro anos

usufruindo do ensino público superior, ao qual muitos ainda não têm acesso. Dessa

forma, sentia-me comprometida a partilhar com a sociedade aquilo que tinha

aprendido.

Trabalhando em um espaço reservado somente para a Educação Infantil, pude

observar crianças em faixas etárias diferenciadas e perceber a interação entre elas,

o espaço e os funcionários da Unidade Municipal de Educação Infantil (UMEI). Das

muitas cenas que presenciei lembro-me de ter observado crianças maiores (6 anos)

orientando as crianças menores (2 anos) a irem ao banheiro ou até mesmo

auxiliando no momento de sua alimentação.

No mesmo ano em que passei a lecionar para escola pública, tive o prazer de

acompanhar, como aluna especial, o projeto “O processo de construção de

conhecimentos sobre a prática docente: um estudo com professores que atuam na

Educação Infantil”, que tinha como objetivo analisar o processo de construção de

conhecimento sobre a prática docente por parte dos professores que atuam na

Educação Infantil.

Agora, em outro momento, não mais analisando o desenvolvimento infantil, e sim os

professores da Educação Infantil, suas falas, quando participavam dos momentos de

discussão, que eram norteados por textos, pude avançar um pouco mais em minha

condição como professora e participar de um momento muito importante para os

profissionais da escola pesquisada: era um momento de transição em busca do

novo, do desafio e da retomada da confiança por parte do grupo. Ouvir professores

tão experientes, com uma vivência rica que eu já admirava antes mesmo de

participar da pesquisa, veio a contribuir ainda mais para a minha formação. Lembro-

me do relato de um professor sobre a experiência de uma criança, ex-aluno desse

Centro de Educação Infantil, que foi para o Ensino Fundamental e que lá era tida

como transgressora, pois, antes de ir para o recreio, tirava a blusa do uniforme.

Indagada pela escola sobre o comportamento do filho, a mãe disse que o filho tinha

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essa liberdade porque sua antiga escola lhe permitia fazer isso nos dias quentes.

Nesse espaço, as crianças tinham liberdade para se expressar.

Segundo o relato dos professores, as crianças tinham liberdade para interagir com

todos, dar sua opinião sobre a área onde brincavam e o cardápio. Relatos que me

mostravam que outra forma de ensinar era possível. Ouvir e saber detalhes da vida

daquelas crianças era o diferencial daquele grupo de professores.

Isso me mostrou a importância dos relacionamentos tecidos dentro do espaço

escolar. Durante os últimos anos, venho observando com mais cuidado esse

ambiente e a sua importância na constituição do sujeito. O que levamos do convívio

com os outros? É possível viver isolado em um ambiente tão rico em interações?

Vivenciando esse ambiente e toda riqueza que ele proporciona, percebo a

importância que ele tem na formação e constituição do sujeito. É comum ouvir mães

falarem que as crianças só aceitam o que a professora diz, ou que adquiriram

práticas que antes não tinham, como fazer fila, cantar para lanchar, cantar músicas

novas. Isso só é possível através das interações que permeiam as instituições. As

crianças, que até certo momento estavam restritas ao ambiente familiar, agora

convivem com diversas pessoas, novos colegas, funcionários da escola e

professores. Esse convívio pode ser prazeroso ou não, mas com certeza deixa

marcas na constituição do sujeito.

Como professora, gosto de observar as crianças quando chegam à escola, nos

momentos de brincadeiras e atividades direcionadas. É sempre interessante ver

como buscam soluções diferenciadas para resolução de problemas, quando, por

exemplo, um colega que tem dificuldades ao balançar e outro o empurra para ajudar

e o ensina como dobrar as pernas para “voar” mais alto; ou quando, nas atividades

direcionadas, um colega ajuda o outro e, no momento em que aprende a ler, ele diz

que foi o amigo quem lhe ensinou, parecendo que todo o esforço da professora em

ensiná-lo tinha sido em vão, pois atribui ao colega o mérito do ensinamento; quando

passam a conhecer tão bem o cheiro dos alimentos da escola, que já reconhecem

qual vai ser a merenda do dia; quando, em interação com a professora e os outros

colegas, aprende algo novo. Esses momentos tão ricos em humanidade e o que é

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própria dela - a interação – possibilitam-me apurar o olhar e me questionar sobre o

processo de desenvolvimento desses sujeitos.

Diante disso, busco compreender, neste estudo, como ocorre a “constituição do eu”

entre as crianças na Educação Infantil. Esse objetivo levou-me a discutir sobre os

aspectos que interferem nessa constituição, a maneira como adultos e crianças

participam desse processo, o papel da cultura e da história da humanidade no

constituir subjetivo dessas crianças.

Mas por que escolher a Educação Infantil? Além de a minha história profissional

estar interligada com a Educação Infantil, o desenvolvimento das crianças me

fascina, busco, nesta pesquisa, contribuir para a ampliação das discussões sobre a

Educação Infantil, por se tratar de uma área recente e por ser o desenvolvimento

infantil um tema pouco pesquisado.

Segundo Rocha (1999), que pesquisou as produções acadêmicas publicadas sobre

Educação Infantil em seminários e congressos como Associação Nacional de Pós-

Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), Sociedade Brasileira para o

Progresso da Ciência (SBPC), Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP) e outros, as

pesquisas em Educação Infantil têm mudado ao longo das décadas. Na década de

1970, a preocupação era com as crianças da pré-escola, propondo intervenções

precoces para os “culturalmente marginalizados”. Nessa década, poucas pesquisas

voltavam-se para as crianças de 0 a 6 anos, e as que se propunham a discutir o

tema buscavam influências da educação compensatória para justificar a ampliação

da Educação Infantil.

Na década seguinte, com a crítica às teorias da privação cultural, a discussão

política passou a orientar os estudos teóricos sobre a influência dos movimentos

sociais e feministas. Nesse momento, entraram em foco as pesquisas do tipo

diagnóstico institucional, os levantamentos de dados, os relatos de experiências; a

partir daí tem-se uma idéia de qual era o cenário das instituições de Educação

Infantil no Brasil.

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As pesquisas que antecederam os anos noventa estavam preocupadas em

investigar a definição do caráter educativo da creche e da pré-escola, entretanto o

“interior” das instituições era pouco investigado.

Com o passar do tempo, os estudos passaram a aproximar-se dos diversos

aspectos da pré-escola, como a relação família/creche, a formação profissional dos

que trabalham com as crianças. No entanto, um grande número de pesquisas

acabaram limitando-se à denúncia de práticas insatisfatórias.

Atualmente há um grande esforço dos pesquisadores por pesquisas que entendam

as instituições de Educação Infantil como um espaço privilegiado para a socialização

das crianças e o desenvolvimento infantil, a partir do contexto em que ocorre, e das

relações que o permeiam. Rocha destaca os trabalhos do Centro Brasileiro de

Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil (CINDEDI), da

Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto pela intensa produção na área

da Psicologia Infantil.

Compartilhando as idéias desses pesquisadores, esta pesquisa busca compreender

o desenvolvimento infantil a partir da observação de crianças que freqüentam uma

Unidade de Educação Infantil. Considerando a riqueza de cada dia, vivenciado, este

estudo procura desvelar esse universo, observando o cotidiano e buscando

compreender nele os caminhos da constituição do eu entre as crianças.

Dessa forma, no primeiro capítulo, abordo alguns aspectos da história da infância,

para mostrar em qual concepção de criança e de que perspectiva de

desenvolvimento este estudo se baseia. Para isso, busco algumas pesquisas que

vêm refletindo a constituição do eu na perspectiva sócio-histórica, procurando

mostrar o reflexo desses trabalhos na Educação Infantil. Em seguida, aponto

algumas contribuições da perspectiva histórico-cultural para a análise da

constituição do sujeito na infância. Trago especialmente as contribuições de Vigotiski

sobre o papel do outro e da linguagem no desenvolvimento da criança e as

contribuições de Wallon sobre o percurso da constituição do eu em diferentes

momentos do desenvolvimento.

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No segundo capítulo, a escolha metodológica da pesquisa delineia os passos que

sigo para observar aquilo que proponho, reforçando que o foco são as crianças,

seres ativos historicamente, produtores e produto de uma cultura. A pesquisa

constitui-se em um estudo de caso de uma turma de Jardim II1 de uma unidade

pública de Educação Infantil do município de Vila Velha. Nesse momento apresento

a escola, a professora, as crianças do Jardim II e a rotina de trabalho da turma. E

suas famílias.

No terceiro capítulo analiso aspectos do percurso de constituição do eu entre as

crianças do Jardim II. Para isso enfoco as interações estabelecidas na turma e

destaco o ser menina e o ser menino nesse universo. As análises evidenciam inter-

relações entre as atitudes e os comportamentos das crianças e concepções, valores

e práticas presentes no contexto histórico e cultural em que elas vivem.

Finalizando, discuto algumas contribuições que o estudo traz para pensarmos/

refletirmos sobre a prática pedagógica e a constituição do eu entre as crianças nas

relações entre meninas e meninos e o contexto histórico e cultural que permeia esse

processo, a possibilidade de modos de mediar a interação entre as crianças,

proporcionando a elas experimentar diversos papéis/posições nas relações de

gênero.

1 A Rede Municipal de Educação de Vila Velha utiliza-se da nomenclatura clássica de Frobel (1782- 1852) de “jardins de infância” para definir as turmas da Educação Infantil. A turma de Jardim II corresponde à idade de cinco a seis anos de idade.

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1 DESENVOLVIMENTO E CONSTITUIÇÃO DO EU NA CRIANÇA

Procurando o caminho a seguir...

[...] se existe uma história humana é porque o homem tem uma infância. Kramer

Iniciamos este capítulo com uma citação de Kramer (1999), afirmando a importância

de se estudar a infância para entendermos o ser humano. Entretanto pensar o termo

infância na história é levar em consideração que esse só irá surgir no princípio da

modernidade.

Sarmento (2005, p.23) retrata a infância na história, apontando a negação dessa

categoria social ao longo dos anos. No início da modernidade, a infância surgiu não

com uma, mas com duas idéias: uma que defende a inocência da criança, e a outra,

que indica a “irracionalidade” da criança perante o adulto. “A criança é considerada

como um não-adulto e este olhar adultocêntrico sobre a infância registra

especialmente a ausência, a incompletude ou a negação das características de um

ser humano ‘completo’”.

A revolução industrial trouxe consigo a prática da utilização das crianças como mão-

de-obra barata e produtiva. Entretanto, no início do século XX houve uma

mobilização contra a exploração do trabalho infantil, retirando as crianças das

fábricas, mas não do trabalho no campo. “Nesta conformidade as crianças foram

consideradas como seres afastados da produção e do consumo e a infância

investida da natureza da idade do não trabalho”. (SARMENTO, 2005, p.24)

Segundo Sarmento (2005, p.24), atualmente percebemos o desenvolvimento ativo

das crianças na indústria do consumo, com a erotização progressiva da infância

pelos meios de comunicação. Essa concepção de infância encerra o “[...] círculo da

negatividade, a idéia de que as crianças actuais vivem, definitivamente, um processo

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de adultilização precoce e irreversível, e, por conseqüência, habitam a idade da não

infância”.

Conforme as análises de Sarmento, a infância é uma categoria social à qual sempre

foi negado o direito da expressividade. Apesar de todo o arcabouço teórico

construído ao longo dos anos, a infância atualmente ainda continua a ser negada e a

criança é vista como uma mera receptora das produções do mundo capitalista.

Segundo Oliveira (2002), no Brasil, até metade do século XIX, não se falava do

atendimento a crianças pequenas longe de suas mães; tinha-se a idéia, conforme

colocou Sarmento (2005), de uma criança inocente e desprovida de razão. As

crianças mais pobres eram cuidadas por suas mães e as crianças filhas de

aristocratas ou de grandes latifundiários eram criadas, quando pequenas, pelas

“amas de leite”, ou seja, as escravas e, quando atingiam certa idade, recebiam aulas

de suas tutoras.

As crianças pequenas só eram assistidas em instituições quando eram

abandonadas por suas mães e entregues às “rodas de expostos”. Essas instituições

eram geralmente ligadas à igreja católica. Dessa forma, o atendimento a essas

crianças dava-se mais como ”cuidado”.

No início do século XX, com o crescimento urbano e industrial e a entrada da mulher

no mercado de trabalho, criou-se um problema: Com quem vão ficar as crianças

pequenas? As crianças maiores acompanhavam suas mães, ajudando-as no

trabalho. Nesse período, cresce o índice de mortalidade infantil, porque para saírem

para trabalhar as mães deixavam seus filhos ainda bebês sozinhos e sem a

alimentação devida, o que ocasiona um grande número de crianças mortas.

Neste contexto, surgiram as “criadeiras” ou as “fazedoras de anjos”: mulheres que se

responsabilizavam pelo cuidado de diversas crianças em espaços com higienização

duvidosa.

Grandes lutas foram travadas para o surgimento de instituições que cuidassem das

crianças pequenas, com a participação ativa do movimento de mulheres em busca

de atendimento para seus filhos. Entretanto a infância foi negada mais uma vez, pois

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esse atendimento era visto mais como um direito da mãe trabalhadora de ter uma

instituição que cuidasse do seu filho enquanto ela trabalhava, do que um direito da

criança de ser atendida em suas necessidades e de ter condições educativas para

desenvolver suas potencialidades.

A partir da década de 1940, começaram a surgir, em São Paulo, creches que eram

pensadas para o atendimento de higienização e saúde das crianças, para sanar os

altos índices de mortalidade infantil. Essas instituições tinham um caráter filantrópico

e assistencialista. Para elas, o cuidar era o mais importante.

Na década de 1970, começaram a surgir as pré-escolas que, baseadas em uma

teoria da privação cultural e da educação compensatória, definem a infância “[...]

pela falta, por aquilo que não é, que não tem, que não conhece e,

fundamentalmente, uma criança compreendida pela negação de sua humanidade”

(KRAMER,1996 p.16). Dessa forma, a pré-escola apareceu como a solução imediata

e mágica para os problemas do fracasso escolar.

Como afirma Kramer (1998), a infância é negada mais uma vez quando não é

reconhecida e as instituições de educação infantil tornam-se um preparatório para o

ensino fundamental. Essa concepção ainda marca a Educação Infantil, quando se

pensa que a função da creche é o cuidar e da pré-escola é o educar.

Nas décadas seguintes, ocorreu um intenso debate político-educacional, que foi

importante para a consolidação de uma base teórica em defesa da infância. Em

1975, criou-se a Coordenadoria de Ensino Pré-Escolar, no Ministério de Educação e

Cultura, o que veio a demonstrar um avanço nas discussões sobre a infância.

Segundo Oliveira (2000) lutas

[...] pela democratização da escola pública, somadas a pressões de movimentos feministas e movimentos sociais de lutas por creches, possibilitaram a conquista, na Constituição de 1988, do reconhecimento da educação em creche e pré-escolas como um direito da criança e um dever do Estado a ser cumprido nos sistemas de ensino. (p.50)

No ano de 1988, concretizou-se então, em forma de lei, a reivindicação dos

movimentos sociais e de teóricos e pesquisadores da época. A década seguinte foi

marcada por grandes fatos, como a promulgação do Estatuto da Criança e do

Adolescente e a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) n°

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9.394, de 20 de dezembro de 1996, que reconhece a Educação Infantil como etapa

inicial da educação básica e define como responsabilidade do município o

atendimento, autorização, credenciamento, supervisão e avaliação institucional.

Ao longo dos anos, segundo Kramer (1996, p. 17), o ser “[...] paparicado ou

moralizado, miniatura do homem, sementinha a desabrochar cresceu como estatuto

teórico”. Contudo, apesar de a LDB assegurar a Educação Infantil na Educação

Básica e determinar a formação do profissional que atende esta faixa etária, o que

vemos no País é que muitos municípios ainda não se adequaram a essa

responsabilidade; neles há creches ligadas à Secretaria de Ação Social e

profissionais sem a escolaridade necessária para essa modalidade de ensino.

É nesse contexto de transformações e mudanças que esta pesquisa se propõe a

contribuir para o estudo do desenvolvimento infantil, fugindo da negação da criança

e de uma psicologia que a retrata “[...] como imatura e dependente, carente e

incompleta, quer como esponja absorvente, semente a desabrochar, quer ainda

como perverso polimorfo ou sujeito epistêmico” (KRAMER, 1996, p. 17). Investigo

nesta pesquisa a criança e sua condição histórica e cultural.

Não negamos a história da infância, pois ela se torna fundamental para entendermos

as crianças como atores sociais, interpretando seu mundo e os signos que as

cercam, respeitando-as em suas singularidades e multiplicidades. Encontramos na

teoria histórico-cultural a “[...] possibilidade de compreender como o sujeito individual

era/é tecido pelas tramas do contexto, sendo ao mesmo tempo ativo e criativo nesse

processo” (KRAMER, 1996, p.23).

1.1 REVISÃO DE LITERATURA

Buscando compreender como se dá a constituição do sujeito no ambiente escolar,

trazemos a contribuição de autores que nos últimos anos têm pesquisado essa

temática. Inicialmente, muitas foram às dúvidas para definir os trabalhos a serem

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analisados e sua importância para a presente pesquisa, pois têm sido variados os

termos utilizados ao se falar de constituição do sujeito: subjetividade? consciência?

personalidade? Diante disso, optamos por reunir, neste trabalho, pesquisas que têm

um enfoque histórico-cultural, por acreditarmos que são fortes as marcas deixadas

em nós do nosso convívio com o outro.

Quando abordamos a constituição do sujeito, estamos também delimitando aquilo

que é próprio do sujeito, que será formado ao longo das suas vivências, dos outros

que as significam e de sua forma de interpretar a realidade (que também é

constituída socialmente).

Autores que procuram compreender como se dá a constituição do sujeito a partir da

perspectiva histórico-cultural analisam aspectos variados e momentos distintos do

desenvolvimento infantil.

Pino (2005) busca, em dados de pesquisa empírica, analisar uma das principais

teses de Vigotski: a natureza cultural do desenvolvimento da criança, ou seja, do ser

humano. Dentro dessa perspectiva, o autor divide em dois pontos centrais o seu

trabalho: 1) o homem é constituído de funções naturais e culturais; 2) as funções

culturais pressupõem a “transposição” do plano social para o plano pessoal.

Dessa forma, o desenvolvimento cultural teria um começo, que estaria situado logo

após o nascimento, na ocasião em que o bebê entra em contato com o meio

sóciocultural. Acreditando que existe um marco zero cultural, Pino o coloca como

ponto de investigação, tentando detectar, nos primeiros meses de vida, os indícios

da conversão das funções biológicas em funções culturais. O autor alerta que não é

fácil diferenciar, na pesquisa, o fator cultural do biológico porque, em determinados

pontos, eles se fundem. O trabalho é uma tentativa de verificação empírica de uma

base teórica. Na análise, o autor volta-se para os indícios da constituição cultural do

homem, pois, para ele, não há como afirmar precisamente quando começa o

desenvolvimento cultural da criança. Nesse tipo de reflexão, não se trata meramente

de observar o fato, mas seguir os acontecimentos.

(a) A pesquisa tem como sujeito-alvo uma única criança, do nascimento até um

ano de idade, antes da emergência da fala. O autor justifica a utilização de

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apenas uma criança, pois vários casos seriam inúteis para o que queria

observar: os indícios do processo de constituição social.

(b) Para análise dos dados, o autor utilizou o que denomina “indicadores de

desenvolvimento”, os quais são apresentados por ordem de aparição: o

choro, o movimento (de mãos, de pés, de rosto ou ‘caretas’, de braços, de

tronco, de pernas), o olhar e o sorriso. Por meio desses indicadores, Pino

procurou analisar como o organismo integra o que capta do meio externo e

cultural.

(c) Depois de delinear esses indicadores do desenvolvimento, o autor descreve

alguns episódios observados na criança, do nascimento até completar um

ano de idade. Divide essa fase em três níveis de desenvolvimento e analisa

os indícios encontrados, retomando a pergunta inicial: Será possível

encontrar nos primeiros meses de vida indícios que possam confirmar a

conversão das funções biológicas em funções culturais?

(d) De acordo com os níveis, Pino detém-se, inicialmente, no nível 0, encontrado

na análise dos episódios, que consiste nas primeiras 72 horas de vida de

Lucas, o bebê selecionado para o estudo. Nesse período, “[...] não é possível

detectar indícios da ação da cultura sobre o desenvolvimento biológico em

nenhum dos ‘indicadores’ escolhidos”. (PINO, 2005, p.250). Segundo o autor,

a vida acontece na criança mais do que ela acontece na vida. O choro é o

único indicador presente nesse momento, refletindo situações de mal-estar ou

a entrada de novas sensações. Na análise dos níveis seguintes, o autor

discorre sobre o desenvolvimento das funções auditiva e visual, da

motricidade, sobre os primeiros indícios de relações humanas e de interesse

da criança pelos objetos.

(e) Nos níveis 5 e 6, o autor destaca um acontecimento fundamental no

desenvolvimento cultural de Lucas que é, primeiramente, o ato de engatinhar

e, logo depois, o ato de andar. Esta atividade traz a autonomia de

deslocamento no espaço, o que vai mudar sua percepção de espaço e de

mundo.

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(f) Ao finalizar o trabalho, o autor retoma as perguntas iniciais e as discute,

reafirmando as contribuições da cultura no tornar-se humano, mesmo tendo

analisado uma criança em tão tenra idade. Afirma Pino (2005, p.268):

(g) Como indícios não são nem verdades nem erros, nem causa, nem efeitos, mas pontos de amarração de uma rede lógica ou que pretende ser tal, tenho a convicção, sem poder dizer que é certeza, de que a ação do meio cultural começa a operar imediatamente após o nascimento da criança, de forma lenta, é verdade, mas constante, conferindo aos gradientes de evolução biológica as “marcas do humano.

(h) Com o trabalho de Pino (2005) percebemos que nos constituímos em contato

com o mundo. Mesmo sendo tão pequenas e frágeis, as crianças menores

mergulham no mundo da cultura desenvolvendo-se tanto biologicamente

como culturalmente.

(i) Vasconcellos (2002), em sua tese de livre docência intitulada “Construção da

subjetividade: processo de inserção de crianças pequenas e suas famílias à

creche”, discute também a constituição do eu em crianças pequenas (1 ano e

9 meses a 1 ano e 11 meses), tentando entender a gênese dos processos de

mudança no desenvolvimento de crianças no momento em que elas são

convidadas a participar de um novo ambiente – a creche. A autora realiza

uma pesquisa empírica em uma creche universitária, durante dois meses,

com um grupo de oito crianças e seus pais ou responsáveis.

(j) Vasconcellos faz uma análise crítica da literatura clássica da Psicologia. Cita

a “Teoria do apego” de Bolwby e a noção de egocentrismo de Piaget, que,

segundo a autora, inibiu por muito tempo a pesquisa com bebês. Ressaltando

a importância das teorias de Vigotski e Wallon, enfatiza a interação social na

construção do conhecimento e nas práticas das crianças.

(k) Da teoria desses autores que embasam o seu trabalho ela destaca o

significado da interação social e do contexto sócio-histórico no processo de

construção das primeiras competências das crianças. Ela também enfatiza a

criança como um ser concreto, que se constrói como pessoa através do

convívio com os outros, tendo a influência histórica e cultural do seu tempo.

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(l) Por meio dessa teoria, a autora buscou discutir o processo de significação de

estar no mundo dessas crianças e a maneira como se dá o seu

desenvolvimento, procurando não separar o pensamento e o afeto, mas

analisando a influência das ações no desenvolvimento psíquico dessas

crianças.

(m) O que também apareceu de essencial na pesquisa de Vasconcellos foi o

estabelecimento não apenas de relações harmoniosas, mas também as

relações de conflito que incitavam as crianças a escolhas.

(n) Dessa forma, com a contribuição desses autores, em sua análise

Vasconcellos privilegiou a interação e a emergência da imitação que surgia

desses contatos. A autora observou as crianças juntamente com seus

familiares que, nesse período de inserção, permaneciam na creche por um

tempo determinado até a adaptação dessas crianças ao novo espaço.

(o) Utilizando-se de Vigotski, a autora ressalta a importância do adulto e das

crianças como mediadores no processo de inserção quando diz “[...] o

desenvolvimento de qualquer pessoa passa necessariamente pelo outro, o

interlocutor em situações dialógicas” (VASCONCELLOS, p. 101, 2002).

(p) O modo de ver o mundo depende dos valores, dos princípios e dos diferentes

comportamentos sociais produzidos na interação social com os pais, com os

irmãos, com os amiguinhos e com as educadoras da creche. Cabe à criança

“[...] surpreender seus interlocutores, subverter a ordem e intervir no percurso

pensando sua própria história, garantindo o entrelaçamento de sua história

singular à do coletivo-social” (VASCONCELLOS, 2002, p. 185).

(q) A autora acredita que o trabalho pode contribuir para a construção de uma

psicologia comprometida em buscar e ilustrar espaços interessantes para que

as crianças pequenas possam constituir-se. Auxilia também no planejamento

diário das professoras de Educação Infantil, proporcionando às crianças um

lugar lúdico e alegre e ampliando os espaços de interação, pois estes

favorecem o desenvolvimento, quando visam à produção de amizades, e o

conhecimento não só cognitivo, como também o afetivo e social.

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(r) Analisando crianças um pouco maiores e tendo como foco as emoções e os

conflitos nas interações, Galvão (1998) contribui para a ampliação das

reflexões sobre o desenvolvimento infantil. A autora enfoca as interações e

analisa situações de conflito e a emergência da emoção. Seu estudo, que tem

como referência Wenri Wallon, traz importantes contribuições para nossas

reflexões sobre a constituição da pessoa.

Muito presente no cotidiano da Educação Infantil, o conflito nas relações

interpessoais é objeto de análise da autora para discutir a constituição da criança

como pessoa. Utilizando a perspectiva waloniana do desenvolvimento, Galvão

destaca que o processo de formação é marcado por conflitos. Apoiando-se em

Wallon, a autora aponta que por volta dos três anos de idade há uma deflagração de

uma crise do personalismo, e é nessa fase que começa a haver uma diferenciação

efetiva entre o eu e o outro.

Diante disso, a pesquisa foi realizada com uma turma de crianças de três anos e

cinco meses e de quatro anos e oito meses de uma creche pública. Foram utilizados

gravações do cotidiano, entrevistas e caderno de campo. A autora descreve

detalhadamente a instituição escolhida, o projeto político pedagógico da escola, a

rotina da instituição. Aborda também o impacto da sua presença em uma sala de

Educação Infantil, na sua inserção na creche.

Algumas cenas foram destacadas pela pesquisadora como indícios expressivos das

emoções, nos quais os conflitos estavam presentes. Sua análise foi dividida em

categorias. Os conflitos originados pela posse do objeto, pela delimitação do espaço

e pelos incômodos referentes ao contato físico são os que aparecem mais nos

episódios analisados. Os conflitos em torno de nome, idéia, competição,

postura/movimento, tempo, barulho, preferência pelo outro e imagem de si

acontecem com menos freqüência. Tentando analisar as categorias levantadas, a

autora chega a quatro tópicos de análise: preservação do eu, afirmação do eu,

regras, exuberância expressiva e contágio emocional.

No tópico preservação do eu, destacam-se os conflitos em torno da posse dos

objetos. Baseando-se em Wallon, a autora analisa a disputa por objetos como parte

do processo de diferenciação do eu. Seu estudo aponta que a disputa pela posse

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não se limita apenas aos objetos, também se estende ao espaço, ao nome e à idéia:

“É como se o objeto, o nome, o lugar ou a idéia fossem prolongamentos do eu que

precisassem ser, a todo custo, preservados; é como se o espaço afetivo em torno da

pessoa fosse um contorno que devesse ser igualmente protegido” (GALVÃO, 1999,

p. 168).

Os episódios de afirmação do eu chamaram a atenção da pesquisadora pela euforia

e entusiasmo das crianças em pronunciar o pronome “eu” em atividades em que a

professora lançava perguntas que solicitavam o posicionamento delas. A análise

aponta que a professora é o principal alvo das condutas de afirmação do eu.

(s) Galvão destaca que a falta de discussões sobre a constituição do sujeito nas

práticas pedagógicas da Educação Infantil ante as decorrentes manifestações

de diferenciação pessoal contribui para o delineamento de interações nem

sempre pacíficas e tranqüilas na sala de aula. Por isso, a autora, propõe

momentos de reflexão da prática do professor no turbilhão de emoções que

constituem o contexto da Educação Infantil.

(t) Preocupada em entender a constituição do sujeito, Pedrosa (1988) busca,

através das interações entre as crianças em situação de brincadeira, indícios

para essa constituição. Com o trabalho intitulado “Interação criança-criança:

um lugar de construção do sujeito”, tem por objetivo estudar a interação social

entre crianças de 1 a 3 anos de idade, concebendo-a como um espaço de

interregulações no qual se constituem processos psicológicos.

A autora baseia-se nas teorias de Vigotski, Wallon e Piaget. Entretanto é em Wallon

que ela se apóia mais. Essas teorias evidenciam uma tendência muito forte da

época em que foi defendida a tese, que é o sóciointeracionismo.

Assim como Wallon, a autora não desconsidera o papel do biológico no

desenvolvimento do ser humano, mas dá maior ênfase aos aspectos sociais nesse

percurso: “Os processos ditos psicológicos são possibilitados pelo cérebro

biologicamente constituído. Esses processos não estão pré-formados ao nascer;

resultam da interação da criança com o meio” (PEDROSA, 1988, p. 5).

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Segundo Pedrosa (1998, p.7), muitos trabalhos apontam erroneamente que a

interação social é sinônimo de contato social ou de ação socialmente dirigida. Para a

autora, interação social “[...] pressupõe uma relação de regulação ou de influência

recíproca entre indivíduos - depende do comportamento dos integrantes”. Na

perspectiva sócio-histórica o outro é peça fundamental na constituição.

A autora analisa a imitação em situações de interação. Utiliza-se da teoria de

Wallon, que entende a imitação como “[...] um estado de fusão e diferenciação entre

o sujeito e o modelo. E este modelo é a princípio o outro” (PEDROSA, 1988, p. 24).

Assim, a imitação delineia-se a partir da fusão com o outro, de sua participação

efetiva. A interação social está presente no percurso da imitação, como parte

integrante, mesmo que o outro esteja ausente fisicamente, na hora do ato. Esclarece

que a interação criança-criança é focalizada em seu trabalho como processo e não

como contexto para o estudo de comportamentos individuais.

Para realizar esse estudo, Pedrosa faz uma pesquisa de campo em uma creche da

rede pública do município de São Paulo, enfocando as brincadeiras das crianças no

horário do recreio. Ao analisar os dados, elege as regulações que permearam as

interações e distingue quatro tipos de regulação: o “arranjo” da brincadeira, os

ajustamentos rítmicos e posturais, os códigos comunicativos e as regras.

Pedrosa analisou cuidadosamente as transformações ocorridas durante os

processos de interação e mostrou que estas são caminhos importantes para

entendermos questões ligadas ao processo de constituição do sujeito.

Outra pesquisa que tem como foco o desenvolvimento infantil no contexto das

interações é a tese de livre docência de Oliveira (1995), cujo titulo é “Reinações

infantis”. Preocupada com o crescimento do número de crianças atendidas em

instituições de Educação Infantil e com a qualidade pedagógica desse ensino, a

autora tem procurado discutir essas questões na área da Psicologia do

Desenvolvimento, considerando que o desenvolvimento da criança e sua construção

como sujeito ocorrem em um ambiente físico-social historicamente elaborado.

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Oliveira traz como exemplo dois trabalhos sob sua orientação. Um deles fala sobre a

interação das crianças na hora do almoço e o outro discute as atividades

pedagógicas realizadas por uma educadora em uma creche pública.

Nos dois contextos, a autora faz uma análise das interações tecidas na creche e

mostra certa preocupação com a forma como essas interações têm sido mediadas

pelos educadores. Entretanto o que move esse trabalho é a intenção de

[...] contribuir para aperfeiçoar, junto com os educadores, o trabalho realizado em nossas creches e pré-escola, particularmente naquelas atendendo população de baixa renda e desafiadas a superar o histórico assistencialismo que as tem caracterizado. (OLIVEIRA, 1995, p.19)

Oliveira também ressalta que, para contribuirmos de fato, devemos levar em

consideração os múltiplos contextos em que as crianças se desenvolvem, nos quais

são constituídos recursos de desenvolvimento com parceiros de interação, uma vez

que é com eles que as crianças constroem significações.

Dessa forma, ela inicia uma análise mostrando como tem entendido o conceito de

interação humana e a noção de papel.

Para discutir as concepções acerca das origens do desenvolvimento humano,

considerando o sujeito e o meio social, a autora busca nas teorias

sociointeracionistas um caminho para essas discussões. Destacando algumas

similaridades entre os trabalhos de Vigotski e Wallon, ressalta os processos de

constituição do conhecimento e da subjetividade como sócio-históricos. Alerta que

os postulados sociointeracionistas têm sido utilizados sem a devida apropriação da

matriz dialética, o que dificulta a análise das interações.

Oliveira recupera o conceito de papel criado na tradição sociogenética, conceito que

também encontra nos trabalhos de Vigotski e Wallon, para mostrar “[...] como podem

iluminar a compreensão do desenvolvimento da criança” (OLIVEIRA, 1995, p.31).

Nas ciências humanas, o conceito de papel foi utilizado através de duas metáforas.

A primeira aponta as relações humanas, comparando-as com um sistema vivo no

qual o funcionamento dependeria dos diferentes órgãos, cada um dos quais tem a

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sua função. E a segunda relaciona o comportamento humano ao drama social, em

que diferentes papéis formam um enredo.

A última metáfora de papel traz uma oportunidade criativa para a discussão da

continuidade ou descontinuidade da relação personagem social-indivíduo, a partir de

uma relação menos harmoniosa das relações humanas. Esse conceito veio a

integrar a psicologia sobre a formação da consciência e da subjetividade a partir da

relação eu-outro.

Oliveira aponta que, contrariamente a outros autores, Vigotski, Wallon e Bakhtin

levam em consideração as condições políticas, sociais e ideológicas nas relações de

papel.

Apesar das riquíssimas produções, o conceito de papel foi cristalizado, limitando-se

ao uso ingênuo, como arreio que a sociedade impõe ao indivíduo. Todavia, a autora

deixa claro o conceito de papel proposto em seu trabalho.

Retomando alguns pontos levantados pelos autores sociogenéticos, consideramos que a relação de recíproca constituição estabelecida desde o nascimento entre o indivíduo e o meio dá origem a situações sempre novas e singulares criadas pelas interações dos parceiros. Nestas, o significado de cada ato é dado no conjunto da situação. Constituem assim os papéis entidades possibilitadas pelo mundo social, mas dinamicamente construídas no esforço de manter uma relação de integração indivíduo-mundo. (OLIVEIRA, 1995, p.38)

Com esse referencial, a autora discute as interações adulto-criança e criança-

cirança para compreender como estas estruturam suas “reinações infantis”, a partir

da idéia de coordenação de papéis, enfocando sessões de almoço com crianças de

1 e 2 anos crianças de 2 e 3 anos em situações de jogo livre e sessões de jogos

temáticos com crianças de 4 e 5 anos. Todos os episódios foram gravados em

vídeo, e foi feita uma transcrição microgenética de todas as sessões.

As análises apontam que as ações das crianças até dois anos parecem estar ligadas

à esfera afetiva, explorando principalmente canais emotivo-posturais.

Gradativamente, a criança passa a usar objetos simbólicos como substitutos para

outros objetos diferenciados de sua forma empírica. As novas experiências ajudam a

enriquecer o enredo das brincadeiras, tornando-o mais complexo.

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A aquisição da linguagem pelas crianças ilumina o seu processo de internalização

das relações sociais, pois necessitam explicitar mais aquilo que supõem estar

regulando papéis.

A análise dos papéis assumidos pelas crianças de 4 a 6 anos também é feita através

da brincadeira de faz-de-conta que é mediada por novos fatores: o material

disponível e a organização espacial.

O processo dinâmico da coordenação de papéis entre parceiros cria um confronto

de necessidades, objetivos e sentidos que as crianças vão buscar na interação com

os outros, tomando diferentes pontos de vista para estruturar o agir.

Todos os episódios analisados apontaram que “[...] o desempenho de papéis pela

criança se faz graças a uma dinâmica segmentação e unificação de fragmentos de

experiências passadas em contextos de atividade sendo construídos no presente

pelas ações infantis” (OLIVEIRA, 1995, p.69).

Outro trabalho que não pode ser esquecido é o desenvolvido pelos pesquisadores

do (CINDEDI) /USP, que elaboram a perspectiva da Rede de Significações. Esse

grupo de pesquisadores tem focalizado em especial as interações que se dão dentro

da Educação Infantil, baseado em uma visão sócio-histórica, analisando a complexa

relação entre família, educadoras e creche ao compartilharem o cuidado/educação

da criança.

Desse trabalho resultou a publicação de um livro intitulado “Rede de Significações e

o estudo do desenvolvimento humano”. Durante anos, o grupo vem elaborando e

sistematizando novas maneiras de investigação sobre o desenvolvimento infantil.

Aqui destacamos dois trabalhos que estão no livro em forma de artigo, mas que

ajudam a enriquecer a discussão sobre a interação. O primeiro trabalho, intitulado

“Crianças pequenas brincando em creche: a possibilidade de múltiplos pontos de

vista”, de Vasconcelos e Rosseti-Ferreira (2004), é fruto de uma pesquisa que

enfocou a interação criança-criança nos primeiros dois anos de vida. Participaram

da pesquisa quinze crianças (dez a dezenove meses), além de outros sujeitos

presentes nas cenas avaliadas. Uma característica que chama atenção nessa

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pesquisa é a perspectiva de análise sobre três pontos de vista: a do pesquisador,

dos educadores e das crianças.

De acordo com as análises, as interações criança-criança estão em processo de

construção, acontecendo muito no aqui agora, fragmentadas. Para os autores,

quando os adultos se propõem a interagir com as crianças bem pequenas, são

claramente promotores de desenvolvimento.

Em outro trabalho, de Almeida e Rubiano (2004), intitulado “Vínculo e

compartilhamento na brincadeira de crianças”, as autoras justificam a utilização do

modelo da rede de significações, pois este parte de uma concepção

sociointeracionista e sócio-histórica, pressupondo a indissociabilidade entre social e

individual, iluminando assim o papel do vínculo na dinâmica interacional.

O trabalho apresentado pelas autoras focalizou três questões: a existência de

vínculos entre pares no grupo de brinquedos, a natureza desses vínculos e suas

relações com a construção de significações compartilhadas na interação lúdica.

O artigo é uma síntese de diversos estudos de crianças coetâneas (2 - 6 anos) em

situações de atividades livres. O primeiro aspecto destacado nessas observações foi

a ocorrência de subagrupamentos, com algumas variáveis, como sexo e idade. Em

relação à formação de grupos, a autora destaca que a definição de pertencer a um

grupo socialmente permeia idade bastante precoce.

Foi identificada a existência de vínculos na formação desses grupos. As autoras

buscaram investigar a natureza e os significados desse fenômeno perguntando às

crianças (6, 8 e 10 anos), por meio de entrevistas, o que é um amigo, como se

fazem amizades, o que gostam ou não gostam no amigo. Essa é uma prática pouco

usual, principalmente em pesquisa com crianças.

Pelas entrevistas, elas identificaram três características da amizade. A primeira foi a

convivência. Esse componente apareceu em todas as faixas etárias, pois

consideram queamigo é aquele que tem uma regularidade na convivência, amigo é

aquele que brinca, que liga, que está junto. A segunda característica foi a afinidade

de gostos e interesses. Isso muitas vezes se torna justificativa para que os meninos

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e as meninas não brinquem juntos. A terceira característica foi a cumplicidade, que

aparece na fala das crianças maiores, pois, para as crianças da primeira infância, o

mais importante é a convivência. Dessa forma, aspectos como apoio, ajuda, consolo

e segurança vão caracterizar esse tipo de vínculo.

A partir da análise das três dimensões, pode-se formular um conceito comum:

compartilhamento “[...] no sentido de ter algo junto com outrem – um momento de

proximidade, o interesse ou a competência numa atividade, um conhecimento,

valores e atitudes, um segredo, códigos de comunicação” (ALMEIDA E RUBIANO,

2004, p.181) Outro tópico analisado é o compartilhamento e a cultura, pois, nesse

aspecto, rotinas compartilhadas criadas e transformadas no campo interacional

constituem a cultura do grupo.

As autoras ressaltam a importância da construção de vínculos para as crianças,

pois, “[...] para a criança, talvez ainda mais do que para o adulto, o vínculo otimiza a

possibilidade de assimilação e de participação na criação do mundo social no qual a

ontogênese humana necessariamente se processa” (ALMEIDA E RUBIANO, 2004,

p.187).

Alguns pontos importantes marcam as pesquisas com crianças analisadas. Apesar

da diferença de idade, algumas destacam que nem sempre a interação é

harmoniosa. No entanto por meio dela são formados grupos entre as crianças, os

quais têm fundamental importância para o desenvolvimento infantil.

Os estudos analisados mostram a relevância de se pesquisar o desenvolvimento

infantil e o seu retorno para a escola, pois o professor pode ser um facilitador nas

interações tecidas nas instituições de Educação Infantil, seja pelo fato de as crianças

estarem pela primeira vez nesse contexto seja por estarem vivendo sensações e

momentos ainda não vivenciados por elas nos quais um adulto experiente pode

auxiliar.

Em todos os trabalhos analisados fica clara a importância das interações na

constituição do sujeito e todos dão pistas para os caminhos a serem seguidos na

construção de uma base teórica sólida.

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1.2 SUBJETIVIDADE E CONSTITUIÇÃO DO EU: AS CONTRIBUIÇÕES DE

VIGOTSKI E WALLON

Tendo em vista nosso interesse em investigar a constituição do eu em crianças na

Educação Infantil, neste momento aprofundaremos a discussão sobre a perspectiva

que adotamos para analisar o desenvolvimento infantil. Para isso, iniciamos com

Delari (2000), que faz uma análise teórica sobre a subjetividade, tendo como base a

abordagem histórico-cultural.

O autor justifica que essa teoria auxilia no debate sobre o papel de cada ser humano

na construção coletiva de sua própria história e de sua própria condição. Delari

(2000) acredita que, para discutir a subjetividade, devemos relacioná-la com a

discussão sobre a própria condição humana – condição necessária para que

aconteça o devir humano. Para melhor analisar o tema, o autor divide o aporte

teórico em dois movimentos distintos e relacionados: (1) dialogar com a concepção

de Vigotski sobre o movimento pelo qual a linguagem e a consciência se

interconstituem, na trama das relações sociais, e (2) destacar algumas das possíveis

conseqüências dessa concepção para o debate contemporâneo sobre o tema da

subjetividade.

Para discutir o tema da subjetividade na abordagem histórico-cultural, o autor traz a

discussão sobre consciência, pois, conforme destaca, Vigotski nunca tratou desse

tema. Entretanto, deixa claro que não quer comparar os conceitos, pelo contrário,

mostra dois motivos para não compará-los. O primeiro é o de que nem tudo que

compõe nossa subjetividade, como modo propriamente humano de nos

relacionarmos com o mundo e com nossa própria existência, pode dar-se como

movimento consciente. O segundo é o de que o conceito subjetividade pode ser

tratado com relação ao homem “moderno”.

Além de discutir o conceito de consciência na obra de Vigotski, para auxiliar no

debate sobre a subjetividade o trabalho se propõe tratar do lugar da linguagem na

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constituição humana, por considerar que a subjetividade é um fenômeno

propriamente humano e que a linguagem é algo que define o humano.

Delari faz uma análise histórica sobre o conceito moderno de sujeito e subjetividade.

Vários acontecimentos históricos teriam ajudado na constituição desses conceitos,

como a Renascença, a descoberta do Novo Mundo e a Reforma Protestante, que

produziu um processo de racionalização que se contrapunha ao caráter

essencialmente místico das concepções de mundo e de homem hegemônico na

Europa Medieval. Com a modernidade, foram construídas concepções como a de

que cada ser humano pode compreender-se como um ser singular e com o direito

do exercício público da razão. Entretanto, algumas dessas concepções foram

questionadas, principalmente a partir do final do século XIX, com idéias de Marx,

Nietzsche e Freud.

Delari aponta a origem do conceito de subjetividade, quando Charles de Villers, em

sua obra Filosofia de Kant, publicada em 1801, distingue subjetividade e

objetividade. Essa obra aborda a subjetividade como algo muito próprio de cada

indivíduo e inatingível ao outro. Também a vê como um movimento reflexivo no qual

o individuo atinge o universal através de sua própria experiência.

Ao discutir essa temática em uma perspectiva histórico-cultural, Delari acredita que

a subjetividade deve ser compreendida em sua relação com o contexto social e

histórico em que o sujeito está inserido. O autor aborda a subjetividade

[...] não como um lugar interno, íntimo e inatingível, um “palco” interior no qual se encenam “representações” do mundo exterior e/ou no qual estas representações são confrontadas e depuradas pelos procedimentos de uma razão pautada em leis universais. Pelo contrário poderia passar a ser vista antes como uma “usina” de interpretações e, portanto, de produção de sentidos. A subjetividade poderia ser tomada como espaço e/ou movimento de produção e de reprodução, de formação e de transformação, como lugar/movimento de atividade, ou de ‘trabalho” no sentido mais genérico e antropológico da palavra (DELARI, 2000, p. 46).

Buscando uma singularidade para A existência de cada ser humano e para interferir,

de algum modo, Na condição de sua própria existência, estudos têm buscado

palavras ou significados, como subjetividade e sujeito, que, apesar de serem

modernos, no trabalho de Delari são pautados em critérios materiais, históricos e

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sociais, e não por princípios de uma liberdade estritamente individual, nem de uma

reflexão abstrata e transcendental.

Dessa forma, segundo o autor, as contribuições de Vigotski no debate sobre a

consciência orientam-se para a construção de uma Psicologia cujo principal

interesse é conhecer o que há de mais elevado na produção humana, como as

artes, a literatura e a compreensão do lugar do humano com relação à construção

coletiva de sua própria história e de sua própria condição. Assim, estar vivo é

condição para consciência, e, ao nos tornamos “conscientes”, tornamos-nos também

humanos.

Assim como no trabalho de Delari, não buscamos pensar uma subjetividade

construída no individualismo, e sim na coletividade, na história e na cultura. Vários

são os conceitos utilizados para definir o que é próprio do ser humano:

subjetividade, consciência e personalidade. Este trabalho se propõe analisar o

desenvolvimento das crianças e enfoca, para isso, a constituição do eu; abordando

uma noção de “eu” construída nas relações estabelecidas entre as crianças e nas

relações entre os adultos e as crianças.

Há várias vertentes que tentam explicar a constituição do subjetivo. Entretanto, a

vertente escolhida para este trabalho busca no social e na história a explicação para

a forma como pensamos, agimos e sentimos. Pode parecer estranho dizer que

aquilo que é “tão Íntimo” de um indivíduo foi construído no social, mas é no social

de nossas vidas particulares que nos tornamos pessoas. É na história de nossas

vidas que nos tornamos únicos e diferentes e é com o outro que passamos a

conhecer e A reconhecer o lugar que ocupamos na sociedade.

Esse encontro com o outro se dá nas relações tecidas desde o nascimento. Mas o

que seria o social? O que seriam as relações sociais? Vigotski aponta caminhos

para a busca de respostas para essas questões, pois toda a sua teoria é marcada

pela pretensão de ser uma teoria psicológica marxista.

Vigotski busca elementos para desenvolver sua teoria sobre a constituição social e

histórica do homem nas idéias de Marx e Engels.

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Podemos distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião, por tudo o que se quiser. Mas eles começam a distinguir-se dos animais assim que começam a produzir os seus meios de vida, passo este que é condicionado pela sua organização física. Ao produzirem os seus meios de vida, os homens produzem indiretamente a sua própria vida material (MARX; ENGELS, 1984, p.15).

Dessa forma, para esses autores a produção de idéias está diretamente entrelaçada

com a atividade material e com o intercâmbio entre os homens através da

linguagem. Ao produzirem uma atividade material, os homens também transformam

sua realidade e os modos de pensar, ou seja, “[...] não é a consciência que

determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (Marx; Engels, 1984,

p.15)

Assim sendo, percebemos fortes influências dos estudos marxistas na obra de

Vigotski, principalmente pela importância do social na constituição do eu, pois nos

transformamos, à medida que transformamos o meio à nossa volta.

Para Vigotski, o que nos distingue dos animais são as funções psicológicas

especificamente humanas, como a memória, a atenção voluntária, a percepção

mediada, que se desenvolvem a partir das relações que as crianças estabelecem

com os outros. “Através dos outros constituímo-nos”, afirma Vigotski (2000, p. 25).

Antes que as funções psicológicas se fizessem presentes no plano intrapsíquico,

elas foram relações entre pessoas.

Por outro lado, Pino (2000) esclarece que as funções mentais estão em permanente

construção, ou seja, os atos, como pensar, falar ou rememorar, são produzidos

constantemente. Dessa forma, não é uma única situação ou momento de nossas

vidas que vai determinar a forma como pensamos e agimos; são as várias vivências

que vão nortear as nossas vidas.

O desenvolvimento das funções mentais superiores é explicitado a partir do conceito

de internalização: “[...] qualquer função no desenvolvimento cultural da criança

aparece em cena duas vezes, em dois planos – primeiro no social, depois no

psicológico, primeiro entre as pessoas como categoria interpsicológica, depois

dentro da criança” (VIGOTSKI, 2000, p. 26).

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Para exemplificar o processo de internalização das funções psicológicas superiores,

Vigotski (1998) remete ao gesto de apontar. Ressalta que muitas vezes o ato mal

sucedido de uma criança ao agarrar um objeto pode ser entendido por sua mãe

como um apontar para o objeto desejado. A mãe relaciona-se com a criança como

se ela tivesse apontando o objeto, e, diante de repetidas situações, o ato mal

sucedido de agarrar pode transformar-se no gesto de apontar: uma indicação do que

a criança deseja. Nesse momento, é o outro que dá sentido à ação da criança,

interferindo, assim, no modo como ela própria percebe a sua ação Uma função “[...]

primeiro constrói-se no coletivo em forma de relação entre as crianças – depois se

constitui como função psicológica da personalidade” (VIGOTSKI, 2000, p.29).

Para Vigotski (2000), a personalidade, é um conjunto de relações sociais2, nas

quais, desde o nascimento, a criança está envolvida. E é sendo parte integrante

dessas relações sociais que a criança incorpora significações culturais que a tornam

ser humano, mas não como uma mera reprodução, e sim como uma (re)constituição

no plano intrapsíquico.

A consciência de qualquer função mental só pode surgir num estágio tardio do

desenvolvimento, depois de ter sido exercida de forma consciente e

espontaneamente. Assim é com as crianças que, em seus jogos de representações

de papéis, se tornam conscientes de determinados papéis sociais. E é imersa na

cultura que se vai formando a consciência de si e dos outros. Afirma Vigotski:

Na perspectiva ontogenética, o humano de início, e antes de mais nada, vive, experimenta, emociona-se, age e assim vincula-se intimamente ao mundo social do qual depende, necessariamente, a sua própria sobrevivência – mas tudo vai se dando antes mesmo dele saber que realiza todas essas coisas, ou de poder ter qualquer domínio sobre elas.(VIGOTSKI, 2000, p. 87)

A linguagem também toma um papel central nessa discussão, pois não é possível

“torna-se humano” senão através da linguagem. Ela não é uma mera condição

biológica, mas se atualiza mediante uma relação social. A linguagem encontra-se na

gênese da consciência. Vigotski dá uma grande importância aos sistemas de signos

(fala, escrita...) como mediadores nas interações sociais. Entretanto é a fala que se

constitui como mais importante para a construção da consciência, pois é na fala, no 2 Essa afirmação se torna importante, pois ao refletirmos sobre determinadas práticas tanto de professores, pais e crianças percebemos a grande importância das relações que são tecidas no ambiente escolar.

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significado social que tem a palavra que a criança vai perceber que lugar ocupa na

trama social. A linguagem vai mediar a sua relação com o mundo e com o outro.

Baseando-se em Vigotski, Delari esclarece a importância da linguagem na

constituição do eu. Afirma que a linguagem não é apenas uma maneira de o ser

humano se comunicar, mas também a “[...] própria ação social significativa pela qual

vai se tornando possível a existência de um “eu” e de um “outro”, uma relação

histórica e culturalmente situada que implica o desempenho, a alternância e o

choque entre papéis (DELARI, 2000, p.136)

Dessa forma, a linguagem assume um papel fundamental, pois é ela que vai tornar

possível conhecer quem é “outro” e o “eu”, através do significado das palavras.

Assim a linguagem é de fundamental importância para a internalização das funções

superiores, pois ela vai mediar aquilo que primeiro foi social para depois se tornar

intrapsíquico.

Os pontos analisados até aqui mostram a tentativa do autor em romper com uma

Psicologia que ignora o social e para isso analisa a influência do outro e das

interações na constituição do indivíduo,interações que vão, no decorrer da história

pessoal, constituindo esse indivíduo e se tornando também a história da sociedade.

Discorrendo sobre os estudos de Vigotski, Pino destaca:

As funções mentais constituíram a projeção no plano pessoal (da subjetividade? da consciência?) da trama da complexa rede de relações sociais em que cada ser humano está inserido no interior de uma determinada sociedade com um determinado modo de produção e de acesso as seus produtos materiais e imateriais (PINO, 2005, p.110).

Entretanto Pino (2000), baseando-se em Vigotski, alerta que não são os sonhos, as

lembranças que o outro tem que são internalizados, mas, a significação dada pelo

eu a esses sonhos e lembranças. Da mesma forma, as funções sociais exercidas

pelo sujeito não são simplesmente internalizadas em sua íntegra, mas, sim, de

acordo com o lugar que o sujeito ocupa nas relações sociais vivenciadas, pois cada

um carrega em si a marca da sua própria história. “Função primeiro constrói-se no

coletivo em forma de relação entre as crianças – depois se constitui como função

psicológica da personalidade” (VIGOTSKI, 2000, p. 29). Para Vigotski, a

personalidade é um conjunto de relações sociais.

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Esse outro tão essencial para o nosso desenvolvimento, presente nas idéias de

Vigotski, também pode ser encontrado nos estudos de Wallon, quando remete ao

“fantasma do outro” que nos constitui e vem marcar a nossa história. Para ele, o “[...]

socius ou o outro é um parceiro perpétuo do eu na vida psíquica” (WALLON, 1980,

p. 159).

Wallon (1995) rejeita a idéia de um sujeito meramente biológico e acredita que o

desenvolvimento biológico seja acompanhado do social. O autor critica a tendência

que explica a origem da consciência no âmbito individual e afirma que seu percurso

de desenvolvimento é marcado por uma progressiva “socialização” dessa entidade

primária. Não se trata de um “eu” que se abre ao mundo social, mas, sim, de um ser

que aos poucos se individualiza. Para Wallon (1980, p.152),

[...] a consciência não é uma célula individual que deve um dia abrir-se sobre o corpo social, é o resultado da pressão exercida pelas exigências da vida em sociedade sobre as pulsões dum instinto ilimitado [...]. Este “eu” não é então uma entidade primária, é a individualização progressiva duma libido primeiramente anônima à qual as circunstâncias e o desenrolar da vida impõem que se especifique e que entre nos quadros duma existência e duma consciência pessoais.

Assim como Vigotski, Wallon também busca uma nova Psicologia que considere o

social no desenvolvimento humano. Buscando fontes marxistas, baseia-se no

materialismo dialético para construir a base de suas análises e de sua teoria

psicológica, ou seja, “uma psicologia dialética” (GALVÃO, 2001, p. 11).

Buscando compreender o desenvolvimento do psiquismo humano, Wallon volta a

atenção para a criança, pois acredita que através dela, é possível compreender o

psiquismo humano. Faz uma análise de cada momento da infância, evidenciando a

importância do outro em todas as fases de desenvolvimento e a importância dos

aspectos afetivo, cognitivo e motor na constituição da personalidade do sujeito.

Wallon entende que, ao nascer, os primeiros contatos da criança com o mundo são

de ordem afetiva: as emoções. O choro, a cólera, entre outras, são formas de

expressão da criança diante do mundo que ela começa a conhecer. A criança muito

pequena não consegue diferenciar-se do outro e dos objetos que a cercam, mas aos

poucos vai eliminando aquilo que não é dela e apreendendo aquilo que vem de fora.

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Assim sendo, Wallon destaca que nessa etapa da vida o sujeito “[...] está todo

cometido na sua emoção; está unido confundido por ela com as situações que lhe

correspondem, quer dizer, com o ambiente humano de que provêm, na maior parte

das vezes, as situações emocionais” (WALLON, 1995, p. 201).

Por volta dos três anos de idade, a criança começa uma busca pela autonomia, o

que vai causar alguns conflitos entre ela e os que a cercam. “É para começar, uma

oposição muitas vezes totalmente negativa que a faz defrontar-se com outras

pessoas sem outro motivo que o de sentir a sua própria independência, a sua

própria existência” (WALLON, 1995, p. 203).

Nesta fase, a negação ao outro é constante, pois a criança precisa afirmar-se como

pessoa. O outro torna-se assim ponto de referência para as suas negações, e a

oposição é elemento chave para essa constituição.

O autor destaca que, por volta dos quatro anos a criança só pode agradar a si

mesma se agradar também ao outro. Não admira a si própria se não for admirada

pelo outro.

Este duelo entre a necessidade e a apreensão de se afirmar, de se mostrar, leva a um segundo tempo mais positivo que o primeiro, a um novo afrontamento entre o eu e o outrem, a uma nova forma de participação e oposição (WALLON, 1995, p. 206).

A afeição ao adulto também se torna presente nesse momento, em que o outro se

torna imprescindível para que ela se perceba, e é através dos olhos do outro que a

criança se vê.

Dos sete aos qutorze anos, a curiosidade da criança e, mais tarde, do adolescente

volta-se para o mundo exterior. Agora, mais segura e estável, ela busca conhecer-se

e diferenciar-se não só no outro, mas nas novidades que o mundo lhe proporciona.

Mas o início dos conflitos anuncia a chegada da puberdade. O autor afirma que,

nesse momento, um

[...] mesmo sentimento de desacordo e de inquietação desponta da acção, da pessoa, do conhecimento; em cada um existem mistérios a desvendar, e surge uma mesma necessidade de posse de certo modo essencial, pois a posse actual não basta para satisfazer e procura para si perspectivas indefinidas (WALLON, 1995, p. 215)

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Assim como a criança na crise dos três anos de idade, o adolescente passa por

momentos de negação da idéia do outro, quer tornar-se também um ser autônomo,

livre das ordens ditadas pelos adultos.

Entretanto, no plano intrapsíquico, as contradições são permanentes entre “[...] as

emoções e os automatismos motores, entre os automatismos e a representação

simbólica, entre as emoções e a representação” (GALVÃO, 2004, p. 22). Dessa

forma, os conflitos, pontos chave na teoria de Wallon e para o constituição do eu,

vão permear toda a nossa vida

Em todas as etapas descritas acima, o outro é de fundamental importância para a

constituição da vida psíquica do sujeito, e, em certos momentos, o “eu” confunde-se

com o “outro”. “Entre o eu e o outro, a fronteira pode ter novamente tendência para

desaparecer em certos casos de choque ou de obnubilidade mental”. (WALLON,

1980, p. 157)

O “eu” surge a partir das – e nas – relações estabelecidas com o outro. Primeiro há

uma indiferenciação em relação ao outro e ao meio ambiente; os limites entre o eu e

o outro estão ainda por se estabelecer e o “eu” (con)funde-se com o outro.

O período inicial do psiquismo parece ter sido, contrariamente à concepção tradicional, um estado de indivisão entre o que releva da situação exterior ou do próprio sujeito. Tudo o que chega simultaneamente à sua consciência fica confundido nela ou pelo menos as delimitações que se podem fazer nela não são primeiro as do eu e dos outros, as do acto pessoal e do seu objecto exterior. A união da situação ou do ambiente e do sujeito começa por ser global e indiscernível (WALLON, 1975, p. 170).

Wallon (1980) ressalta a importância do social na vida da criança, afirmando que o

desenvolvimento biológico depende do desenvolvimento social e vice-versa, e traz

inúmeras contribuições para os questionamentos levantados na introdução deste

trabalho, em que são questionados o papel do outro e suas relações com a criança

no transcorrer do desenvolvimento. “Assim, pode estar ligada à evolução normal da

consciência pessoal na criança toda a diversidade das atitudes que fazem do ser

humano um ser íntimo e essencialmente social”. (WALLON, 1980, p. 162)

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Considerando as idéias de Vigotski e de Wallon, nesta investigação escolhemos a

Unidade de Educação Infantil como espaço para analisar a constituição do eu na

diversidade de interações que vão permear a entrada da criança na escola.

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2. METODOLOGIA Pensar o percurso metodológico de uma pesquisa não é nada fácil. É como preparar

uma viagem. Mas não vamos sozinhos, temos a companhia das crianças, o que

torna pensar o caminho um ato cuidadoso para não tirar delas o direito de

aproveitar.

Quem já viajou com crianças sabe que são múltiplas as possibilidades de interação,

principalmente quando o lugar é novo para o adulto e conhecido para as crianças.

Elas agem como guias sutis, mostrando, através das suas vivências, a forma como

negociam, compartilham e criam culturas. Foi isso o que fizemos nos três meses de

pesquisa de campo: viajamos com as crianças e elas foram mostrando inúmeras

possibilidades de conhecer o lugar e a elas próprias. Porém, não fomos como um

viajante errante e sem rumo. Às vezes nos sentimos perdidos, mas, como sempre,

as crianças mostraram-nos novos caminhos a seguir.

É um desafio pensar as questões teórico-metodológicas em pesquisas com

crianças. Recentemente, a Sociologia tem-se debruçado sobre o tema, a fim de

entender o universo infantil, e tem contribuído com riquíssimas discussões para

pensarmos de que crianças estamos falando e de que forma vem acontecendo a

sua socialização no mundo atual, um mundo onde cada vez mais cedo as crianças

começam a passar grande parte do seu tempo fora do contexto familiar e a interagir

com diferentes sujeitos. Assim sendo,

[...] a sociologia da infância estimula a compreensão das crianças como atores capazes de criar e modificar culturas, embora inseridas no mundo adulto. Se as crianças interagem no mundo adulto porque negociam, compartilham e criam culturas, necessitamos pensar em metodologias que realmente tenham em foco suas vozes, olhares, experiências e pontos de vista. (DELGADO, 2005, p.353)

Não é mais possível pensar a pesquisa sobre crianças. É preciso pensar a pesquisa

com as crianças. Para que possamos compreender melhor esse universo riquíssimo

devemos, segundo Kramer (2005, p.49), olhar, ouvir e escrever, sempre orientados

pela teoria, pois “[...] a teoria sensibiliza o olhar e o ouvir e orienta o escrever”.

Orientados por uma teoria que respeita as crianças, suas formas de agir, é que

vemos a possibilidade de construir pesquisas que tenham como foco as crianças.

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Esse enfoque diverge de muitas outras pesquisas, como sugere Sarmento (1997,

p.24): “A focalização adoptada centrava-se menos nas crianças como objecto do

que nas crianças como pretexto, referente ou destinatário de processos, que, esses

sim, constituíam o verdadeiro objecto de estudo”.

Sarmento (1997) mostra-nos o rico caminho apresentado pelas crianças, quando o

foco são as suas interações e as suas formas de interpretação da realidade:

O estudo das crianças a partir de si mesmas permite descortinar uma outra realidade social, que é aquela que emerge das interpretações infantis dos respectivos modos de vida. O olhar das crianças permite revelar fenômenos sociais que o olhar dos adultos deixa na penumbra ou obscurece totalmente (SARMENTO, 1997, p.25).

Dessa forma, buscamos a escolha de uma metodologia que beneficiasse

observação desse contexto, levando em conta a multiplicidade de formas de

interação, a partir da qual o pesquisador tivesse a possibilidade de observar,

presenciar e vivenciar toda essa dinâmica.

Consideramos a pesquisa qualitativa a melhor alternativa para quem se propõe a

observar as interações no contexto escolar, pois esse tipo de pesquisa privilegia o

ambiente natural, e não o ambiente criado em laboratório, e tem como principal

instrumento o pesquisador, imerso nesse ambiente. O cuidado com os dados

coletados se dá na medida em que a grande maioria deles é de caráter descritivo,

permitindo assim uma aproximação maior do real, trazendo a preocupação com o

processo e não com fatos isolados, nos quais o sujeito geralmente se apresenta de

forma fragmentada. Outra característica da pesquisa qualitativa é a atenção dada

pelo pesquisador ao significado que as pessoas atribuem aos acontecimentos e ao

processo. Esse ponto é importante para o tipo de pesquisa proposto neste trabalho,

em que o significado atribuído pelas crianças e pelos adultos que convivem com elas

ao fenômeno analisado é de importância crucial.

A pesquisa qualitativa atende aos nossos propósitos de abordar a investigação

sobre crianças sob uma perspectiva diferenciada. A idéia é fazer com elas e não

falar sobre elas, respeitando suas diferenças, considerando o ambiente onde estão

situadas e tendo o cuidado de não criar estereótipos, e sim meios de compreender

as diferentes formas de interação no contexto da Educação Infantil.

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Buscando a melhor forma de fazer uma pesquisa que respeite as crianças,

encontramos no estudo de caso a possibilidade de fazê-la a partir das crianças.

Segundo Sarmento (2003, p.137), este tipo de pesquisa

[...] apresenta a plasticidade suficiente para que sendo utilizado de forma tão diferenciada, possa permanecer como poderosamente presente na base de alguns dos mais importantes contributos para o estudo das escolas e demais organizações sociais.

Sarmento, em seu texto, mostra como o estudo de caso vem sendo utilizado por

diversos autores que pretendem investigar a escola e seus sujeitos. O estudo de

caso apresenta-se como a melhor escolha para o tipo de abordagem deste trabalho,

no qual o desenvolvimento das crianças é o foco. Para compreender melhor a

utilização do estudo de caso nesta pesquisa, destacamos algumas características

postas por Ludke e André (1986, p.18-19):

1. “Os estudos de caso visam à descoberta”. Apesar de já atuar na Educação

Infantil, fomos à busca do novo, pois o contexto, o grupo de crianças, é um

universo novo e cheio de riquíssimas descobertas que, no decorrer do trabalho

vão se revelando.

2. “Os estudos de caso enfatizam a ‘interpretação em contexto’”. Esse é um dos

pontos de maior relevância da pesquisa, pois, para discutir a construção da

pessoa, devemos levar em conta o contexto no qual está inserida a pesquisa,

bem como a sua participação nessa constituição.

3. “Os estudos de caso buscam retratar a realidade de forma completa e

profunda”. Imersos na pesquisa, buscamos ao máximo relatar a realidade, em

suas várias facetas.

4. “Os estudos de caso usam uma variedade de fontes de informação”. Várias

foram as informações que o cotidiano da Educação Infantil nos apresentou e

variadas foram as formas de apresentação: desenhos, relatórios, escritas, falas

e olhares, todos observados e analisados com muita dedicação.

Assim foi definida a viagem pelo contexto da Educação Infantil, e em particular, da

escola e das crianças pesquisadas.

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Nesta pesquisa, os procedimentos de coleta de dados utilizados foram observações

diretas em sala de aula e em outros espaços da UMEI, como parquinho e refeitório;

entrevistas semi-estruturadas com professoras, pedagoga, diretora e pais, e análise

de documentos, relatórios, desenhos e registro das crianças.

O registro dos dados foi feito no diário de campo e através da máquina fotográfica.

Durante a pesquisa de campo, observamos especialmente aspectos referentes às

interações e seus indícios na construção “do eu”, e os conflitos imbricados nesse

processo na sala de aula; aos processos de diferenciação do eu e do outro; às

concepções dos profissionais da escola a respeito do desenvolvimento “do eu” das

crianças e dos impactos de suas atividades educativas sobre esse desenvolvimento.

Na análise do material empírico, procuramos basear-nos em apontamentos da

análise microgenética. Góes, em seu texto: “A abordagem microgenética na matriz

histórico-cultural: uma perspectiva para o estudo da constituição da subjetividade”,

observa que esse tipo de análise pode ser um caminho promissor para quem

pretende fazer estudo de caso com essa abordagem. Para a autora, a análise

microgenética é

[...] uma forma de construção de dados que requer a atenção a detalhes e o recorte de episódios interativos, sendo o exame orientado para o funcionamento dos sujeitos focais, as relações intersubjetivas e as condições sociais da situação, resultando num relato minucioso dos acontecimentos (GOÉS, 200, p.9).

A partir do momento em que as interações passam a ser tomadas como foco, a

pesquisa vai exigir do pesquisador um olhar apurado para os detalhes e para sua

análise posterior, que não se limitará à mera descrição dos fatos, mas se estenderá

a uma análise ampla, incluindo vários fatores que venham a interferir no

desenvolvimento infantil.

Vigotski e seus colaboradores inovaram ao propor uma análise de base

microgenética em meados do século XX, pois os procedimentos de pesquisa em

psicologia eram baseados na estrutura estímulo-resposta. Para propor um novo

método, Vigotski fez uma análise detalhada dos outros métodos adotados naquela

época, porque acreditava que o desenvolvimento psicológico do ser humano é parte

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do desenvolvimento histórico geral da nossa espécie. Para isso Vigotski baseou-se

na abordagem materialista dialética.

Ao dizer que o desenvolvimento psicológico está ligado ao desenvolvimento histórico

geral da nossa espécie, amplia-se a noção de micro, pois ao falarmos de

microgenética podemos reduzir o método meramente ao recorte dos episódios, por

isso, Góes ressalta a importância da abordagem microgenética e esclarece a sua

utilização dizendo:

Essa análise não é micro porque se refere à curta duração dos eventos, mas sim por ser orientada para minúcias iniciais daí resulta a necessidade de recortes num tempo que tende a ser restrito . É genética no sentido de ser histórica, por focalizar o movimento durante processos e se relacionar condições passadas e presentes, tentando explorar aquilo que, no presente, está impregnado de projeção futura. É genética, como sociogenética, por buscar relacionar os eventos singulares com outros planos da cultura, das práticas sociais, dos discursos circulantes, das esferas institucionais (GOÉS, 2000, p.15).

Apesar de lidarmos com dados referentes a um determinado grupo de crianças

situados em uma UMEI, é na história de cada um e na história da humanidade que

vamos buscar as raízes para o desenvolvimento infantil.

Vigotiski (2003, p.86) descreve alguns objetivos que considera essenciais para

análise dos processos psicológicos proposta por ele e seus colaboradores

[...] o objetivo e os fatores essenciais da análise psicológica são os seguintes: (1) uma análise do processo em oposição a uma análise do objeto; (2) uma análise que revela as relações dinâmicas ou causais, reais em oposição à enumeração das características externas de um processo, isto é, uma análise explicativa e não descritiva; e (3) uma análise do desenvolvimento que reconstrói todos os pontos e faz retornar à origem o desenvolvimento de uma determinada estrutura (p.86).

Os objetivos propostos pelo autor tornam-se fundamentais para o tipo de pesquisa

que faz, uma vez que a análise do processo é de vital importância para se entender

o desenvolvimento infantil. É impossível fazer análises pertinentes de aspectos

isolados de um processo. Todo processo é dinâmico e precisa de uma análise

explicativa e aprofundada. Ao analisar esse processo, devemos recorrer à sua

origem, que para nós é histórica e cultural.

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Góes salienta o caráter promissor da articulação da análise microgenética com o

paradigma indiciário e entende essas junções como novas construções sobre os

modos de conhecer e investigar.

[...] julgo que há uma convergência quanto à composição de delineamentos com ênfase indiciária e dialógica, composição que é profícua como ponto de vista metodológico e, mais especificamente, como perspectiva de investigação da constituição de sujeitos concebida no âmbito dos processos intersubjetivos e das práticas sociais. (GOÉS,2000p.21)

Entendemos serem valorosas as contribuições dadas pelo paradigma indiciário a

análise dos processos do desenvolvimento, pois, assim como a abordagem

microgenética, esse paradigma preocupa-se com as minúcias, com as situações

singulares e a inter-relação dos indícios e com as condições macrossociais.

Ao falarmos de indícios baseamos-nos no “modelo indicial”, denominado assim por

alguns autores, como Carlos Ginsburg.

Em seu artigo denominado “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, Ginsburg

(1989) situa a história desse paradigma entre 1874 e 1876 quando Morelli lançou

uma série de artigos analisando a autoria de pinturas a partir de ângulos que

ninguém se propunha analisar, por exemplo o formato da mão, as unhas, entre

outros detalhes da Monalisa, ao invés do seu sorriso.

Entretanto ele assevera que esse paradigma tem raízes milenares.

Por milênios o homem foi caçador. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas (GINSBURG, 1989, p. 179).

Dessa forma, procurar por pistas, indícios, faz parte da história da sobrevivência

humana, para descobrir e entender o que se está procurando. Como lembra

Ginsburg, a análise desses fatos reveste-se de características diferentes, mas uma

delas perpassa todas as análises, que é a de utilizar situações muitas vezes

consideradas sem importância, ou até triviais.

Procurando por indícios, estaríamos optando, segundo Pino (2005), por pistas, não

evidências, por sinais, não significações, por interferências, não causas desses

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processos. O que se procura nesses processos são os indícios de natureza

semiótica, de um fenômeno semiótico.

O paradigma indiciário vem contribuir para a análise dos dados, pois evidencia

aquilo que é muitas vezes negligenciado em pesquisas com crianças, que é o seu

cotidiano, sua imaginação, fantasia e poder de criação, pois, por serem in-fans, ou

seja, aqueles que não possuem a fala, muitas vezes deixamos de perceber o mundo

a partir do ponto de vista da criança.

Para aprofundar a discussão do “eu” entre crianças na Educação Infantil, a pesquisa

de campo foi realizada em uma UMEI do município de Vila Velha, no período de

outubro de 2006 a dezembro do mesmo ano.

2.1 A UNIDADE DE EDUCAÇÃO INFANTIL

A UMEI foi inaugurada em novembro de 2003 e surgiu a partir de reuniões entre as

lideranças comunitárias e a Prefeitura de Vila Velha, pois é uma região de classe

média baixa, onde não havia outra Unidade de Educação Infantil.

Há uma demanda muito grande para a matrícula na UMEI. Na Rede Municipal de

Educação de Vila Velha, as matrículas passam por um sistema de cadastro que o

responsável da criança preenche. Nesse cadastro, o responsável tem que dizer qual

é a sua renda, se é morador do bairro, quantas pessoas moram na casa, se recebe

algum auxílio do Governo e se a criança tem alguma necessidade especial. Esse

cadastro é enviado para a Secretaria de Educação, que analisa e pontua cada item,

classificando a criança para a chamada de acordo com as vagas oferecidas pela

UMEI. No último semestre, a UMEI chegou a receber duzentos cadastros. A grande

maioria era para a modalidade creche.

Atualmente a UMEI atende 354 alunos em dois turnos. As crianças de berçário I e II

permanecem na escola nos dois turnos, em tempo integral. Em média, as turmas de

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berçário têm vinte crianças para duas auxiliares; as do maternal e da pré-escola têm

uma média de 25 alunos.

O prédio da escola tem dois andares. No andar superior existem cinco salas de aula,

uma sala de vídeo, a sala da pedagoga e dois banheiros. No banheiro feminino, há

uma divisão com um vaso sanitário para adultos. No andar inferior encontram-se três

salas de aula, que são destinadas à modalidade creche. As salas de berçário têm

banheiro próprio e lactário. No primeiro andar também há um refeitório, uma

cozinha, a lavanderia, o parquinho de areia com brinquedos, a sala dos professores,

direção e secretaria, além de dois banheiros para as crianças e dois para os adultos.

Apesar de a escola ser grande, ela não atende toda a demanda do bairro e dos

bairros vizinhos, por isso sofre constantemente críticas da população pela demora

em se conseguir uma vaga na Unidade.

As fotos abaixo mostram os ambientes da UMEI onde aconteceu a pesquisa.

Figura 1 - Corredor com as salas de aula 1. Figura 2 - Corredor com as salas de aula.2.

Figura 3 - Sala de vídeo 1. Figura 4 Sala de vídeo 2. -

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Figura 5 - Sala da pedagoga. Figura 6 - Banheiro feminino.

Figura 7 - Rampa Figura 8 - Sala do berçário I.

Figura 9 - Sala do berçário II. Figura 10 – Refeitório.

Figura 11 – Refeitório. Figura 12 – Parquinho de areia.

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Figura 13 – Pátio. Figura 14 – Casinha.

Figura 15 - Sala de professores 1. Figura 16 - Sala de professores 2.

2.1.1 Funcionários da UMEI

A UMEI tem 37 funcionários que trabalham nos dois turnos. Para melhor

organização do trabalho esses turnos serão divididos em dois grupos: dos

funcionários de apoio e o dos professores. Chamaremos de funcionários de apoio as

auxiliares de serviços gerais (ASGs), cozinheiras e as auxiliares de UMEI. No grupo

dos professores também serão incluídas as pedagogas e a diretora.

a) Funcionários de apoio

A escola tem quatro cozinheiras e quatro ASGs. Treze auxiliares da Unidade atuam

na modalidade creche e uma. atua na secretaria da escola. No município de Vila

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Velha os profissionais que trabalham nessa modalidade tem que ter como, requisito

mínimo, formação em nível de ensino médio completo. Apesar de a legislação do

Município estabelecer que as auxiliares de UMEI devem ajudar no trabalho do

professor, na creche isso não acontece, pois não há professores nessa modalidade.

As unidades do município de Vila Velha não têm secretária escolar, por isso

geralmente uma auxiliar de UMEI é deslocada para os serviços de secretaria. A

UMEI conta com um vigia, que é contratado por uma empresa de segurança e atua

na escola das 6h às 18h.

A grande maioria dos funcionários de apoio da UMEI possui o ensino médio

completo, como mostra a tabela 1.

TABELA 1 FORMAÇÃO DOS FUNCIONÁRIOS DE APOIO.

Ensino Fundamental Ensino Médio Ensino Superior Funcionários de

apoio

Incompleto Completo Incompleto Completo Incompleto Completo

ASG 1 2 1 _ _ _

Cozinheiras _ _ 1 3 _ _

Auxiliares de UMEI _ _ _ 12 _ 1

Vigilante _ _ _ 1 _ _

Total 1 2 2 16 - 1

Fonte: Arquivos da UMEI

Entre as auxiliares de UMEI, seis cursaram o Magistério e uma terminou

recentemente o curso de Pedagogia a distância, oferecido pela UFES.

b) Professoras

Fazem parte do corpo docente da UMEI doze professoras, que atuam na

modalidade pré-escola (Jardim I a Pré-escola). Uma delas exerce atividades de

apoio. Essa categoria surgiu em 2006, na Prefeitura, com a função de auxiliar os

professores e auxiliares nas atividades diárias e de cobrir a falta de algum professor.

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Apenas uma professora contratada atua na modalidade creche, com a turma do

maternal. Duas pedagogas trabalham na escola, em turnos diferentes, com todas as

turmas da creche e pré-escola. A diretora atua na escola oito horas diárias.

Apenas uma professora e a diretora estão fazendo o curso de Pedagogia, no

momento, como mostra a tabela 2:

TABELA 2 – Formação dos professores

Ensino Superior Pós-Graduação Lato

Sensu

Incompleto Completo Incompleto Completo

Professoras 1 4 2 5

Pedagogas _ 1 _ 1

Diretora 1 _ _ _

Total 2 5 2 6

Fonte: Arquivos da UMEI.

A maioria das professoras e as duas pedagogas são efetivas; existindo apenas uma

professora contratada. Todas as professoras e pedagogas efetivas participaram do

último concurso realizado em 2004, pois, anteriormente, o Sistema Municipal de

Educação de Vila Velha não tinha professores efetivos na Educação Infantil. Esse foi

o primeiro concurso para professores da Educação Infantil, mas não atendeu a todas

as modalidades, apenas à pré-escola. O ingresso de professores concursados e

qualificados para atender a pré-escola marcou um movimento nacional de

profissionalização dessa modalidade. A falta de profissionais qualificados tem como

conseqüência um baixo salário, pois, no Brasil, os menores salários são destinados

a esses profissionais, ao lado de um ensino de qualidade duvidosa, em que não há

preocupação com a formação e nem apoio financeiro.

Dessa forma a partir de 2004, Vila Velha passou a ter quase que cem por cento dos

professores de Educação Infantil efetivos, e deixou para trás um passado de cem

por cento de professores contratados, sendo escolhidos de acordo com a vontade

de alguns políticos.

O grande desafio agora é o concurso para a modalidade creche, luta que vai exigir

vontade política e engajamento dos professores, pois a não-qualificação e a situação

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irregular desses profissionais, respigam nos baixos salários e na qualidade do

ensino para as crianças pequenas.

Apenas uma professora da UMEI atua num único turno. As outras professoras e

pedagogas também trabalham nos municípios vizinhos de Cariacica, Vitória, Serra e

Viana.

A pesquisa foi realizada em um contexto de mudanças na escola, pois, no ano em

que foi realizado o estudo, vários profissionais tinham saído da UMEI, que passou

assim por momentos de adaptação. Os profissionais também passavam por

momentos decisivos, pois estava para se definir a verba destinada à Educação

Infantil através do FUNDEB.

3.1.2 A entrada da pesquisadora na sala do Jardim I I

Posso entrar no seu reino, meu rei?

- Só se ocupar todas as pausas, reinando

sobre as palavras. - Posso entrar no seu

reino, meu rei? - Só se trouxer o livro de adivinhar canto de

passarinho. - Posso entrar no seu

reino, meu rei? - Só se vier pulando

amarelinha e inventando o caminho.

Pé aqui... Pé acolá...

Pode entrar! Eloí Elizabet Bocheco

Antes de entrar na UMEI, pedimos licença a todos os funcionários e principalmente

às crianças. Aos poucos fomos fazendo parte do universo tão particular daquelas

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crianças e da UMEI, sempre com muito cuidado, perguntando se podia participar

com elas das brincadeiras, das atividades e das discussões, pois quem convive com

criança sabe que “bisbilhoteiro” não tem vez em suas vidas. Dessa forma, muitas

vezes fomos a aluna, a filhinha na brincadeira ou meramente ouvinte nos momentos

de discussão, só observando como resolviam seus problemas sem que um adulto

lhes dissesse o que era o correto.

Escolhemos essa UMEI pelos constantes elogios que ouvíamos a respeito de sua

boa organização. Ao chegar à escola e propor o trabalho para a pedagoga e a

diretora, tivemos uma boa aceitação por parte das duas. A pedagoga pediu que

ficássemos em uma sala que, de acordo com o trabalho, seria de melhor

aproveitamento. Dessa forma, foi marcado um encontro com uma das professoras

do Jardim II. Entretanto, ao sermos recebidos pela pedagoga, esta disse que não

tinha uma boa notícia: a professora que ela havia sugerido não quis participar da

pesquisa, alegando não estar se sentindo muito bem para receber alguém em sua

sala. Conversando com a pedagoga sobre outras possibilidades, ela colocou-me em

contato com a outra professora do Jardim II, que aceitou colaborar com na pesquisa.

Durante três meses acompanhamos as crianças do Jardim II todos os dias.

Estivemos presente na sala de aula, no parquinho, no refeitório e na sala de vídeo.

Na medida do possível, ajudávamos as crianças em suas atividades e na confecção

de alguns jogos com a professora. Participamos desses momentos por acreditar que

assim ficaria mais fácil nossa inserção na sala. Dessa forma poderiamos

acompanhar mais de perto os momentos de interação entre as crianças e entre a

professora e as crianças. Vale ressaltar o respeito dos profissionais da escola para

com o estudo, pois entendiam que observar as crianças era muito importante para o

desenvolvimento da pesquisa.

2.1.3 A sala do Jardim II

A sala do Jardim II D é bem ampla. Tem duas janelas que dão vista para a rua e

duas janelas, para o corredor. Tem um espelho grande e dois quadros, um de giz e

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outro de pincel, este último utilizado pela professora para afixar as atividades das

crianças, quatro jogos de mesas e cadeiras, cada uma com seis mesas e cadeiras

formando um círculo. A sala tem um barril cheio de brinquedos, uma caixa com

peças de encaixar, jogos de alinhavo, letras, memória e quebra-cabeças. Tem ainda,

dois armários, um para cada professora, e tês prateleiras onde são guardados os

materiais de uso diário, como lápis de cor, borracha, canetinha, cola e tesoura.

Figura 17 – Mesas e cadeiras que Figura 18 – Quadro de giz. ficam próximas à porta.

Figura 19 – Mesas e cadeiras que Figura 20 – Espelho. ficam próximas à janela.

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Figura 21 – Prateleiras. Figura 22 – Quadro de pincel.

3.1.4 A professora do Jardim II

Em 1993, a professora terminou o curso de Magistério, numa escola cenecista. No

mesmo ano, começou a trabalhar como professora de Educação Infantil. No ano de

1994, começou a fazer o pré-vestibular e, em 1995, ingressou no curso de

Pedagogia na UFES. Ela conta que sempre gostou muito de estudar e que escolheu

a profissão por considerá-la uma função nobre. Quando entrou na universidade,

ficou muito orgulhosa e feliz. Estudou bastante para passar, mas hoje se entristece

com os tantos cursos de Pedagogia de qualidade duvidosa existentes no mercado.

Em 1999, a professora terminou o curso de Pedagogia com habilitações em

Matérias Pedagógicas de 2.º Grau e Séries Iniciais3. No ano seguinte, começou a

trabalhar como contratada na Rede Municipal de Ensino de Vitória, onde foi

convidada para fazer uma extensão de carga horária.

No ano seguinte, ingressou em uma escola particular onde trabalhou na mesma até

o ano de 2004. Foi então aprovada no concurso da Rede Municipal de Vila Velha,

com uma ótima classificação, para o cargo de professora de Educação Infantil. Em

2006, foi chamada para assumir o cargo de coordenadora em um colégio de Vitória.

Em 2003 fez um curso de pós-graduação em Administração Escolar. Recentemente,

foi chamada para efetivar-se em Vitória como professora de Educação Infantil,

entretanto preferiu ficar em Vila Velha, apesar do baixo salário que recebe pelo

3 Ao ser indagada se tinha interesse em dar aulas para o Magistério, ela sorriu e disse que não; afirma que fez essa habilitação por ser a única opção compatível com o seu horário de trabalho.

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Município. Disse que era porque mora próximo do local de trabalho e pode almoçar

em casa, além de gostar bastante da UMEI e da liberdade que tem para expor suas

opiniões.

Luiza tem 31 anos e é uma professora muito comprometida com a escola. No

período em que acompanhei a sua turma, percebi que ela se dedicava a todos os

alunos. No refeitório, sempre se preocupava em orientar as crianças para não

deixarem sujeira ou copos na mesa. Sempre conversávamos sobre a situação dos

profissionais da Educação Infantil no município de Vila Velha. A professora acredita

na importância da formação continuada dos professores e valorizava muito esses

momentos. Tinha uma relação muito tranqüila com seus alunos. Sempre estava

disposta a ouvi-los, inclusive aos alunos de outras salas, que, quando estavam em

perigo, a procuravam, buscando ajuda. Luiza leva muito a sério os horários e a

rotina da sala.

2.1.5 A rotina da sala

Uma das características que marcam o desenvolvimento das atividades do Jardim II

é a preocupação da professora com a rotina da sala. Em uma das situações em que

faltou e a substituta não seguiu a rotina deixada em seu planejamento, a professora

manifestou sua insatisfação com o ocorrido.

Barbosa (2000), em sua tese de doutoramento intitulada “Por amor e por força:

rotinas da Educação Infantil”, considera que a rotina se tornou uma categoria

pedagógica muito utilizada nas instituições de Educação Infantil para organizar o

trabalho.

Segundo a autora, utilizamos a rotina para organizar o nosso dia-a-dia. “As rotinas

podem ser vistas como produtos culturais criados, produzidos e reproduzidos no dia-

a-dia, tendo como objetivo a organização da cotidianidade” (BARBOSA, 2000,p.95).

Mas não deve impedir a imaginação. A complexidade deve ser a propulsora do

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novo. A rotina não deve ser uma sucessão de atos sem sentido e pequenas ações

que levam as crianças a terem atos repetitivos, fazendo-os de uma forma mecânica.

O professor teve ter claro o porquê dessa organização, pois ela reflete suas

concepções e proposta.

Em uma entrevista com a professora do Jardim II, ela nos contou que assumiu a

turma no mês de maio e percebeu que não havia uma rotina a seguir. Achava que

as crianças ficavam perdidas: Começou por estabelecer essa rotina. Dessa forma, o

primeiro passo foi organizar o tempo, com músicas, momento de rodinha, fazer com

que a ouvissem e pudessem falar também.

Essa rotina proporcionava, segundo Luiza, uma organização melhor da sala, pois as

crianças sabiam quais eram os momentos das atividades dirigidas e os momentos

em que poderiam escolher a atividade que quisessem fazer .

Tem um momento em que a gente faz a atividade junto: é o bingo. Então “ta” todo

mundo junto, mas tem um momento onde ele vai escolher para onde ele vai, aí tem

o cantinho da cozinha.. Então, nessa hora, eles se misturam, eles inventam outra

brincadeira. Cada um vai lá e pega o que se identifica. Tem um grupo que gosta de

desenhar, vai lá e pega a folha, pega a canetinha, pega lápis e vai desenhar. O outro

grupo vai para a cozinha brincar, o outro grupo derrama os brinquedos, o outro

grupo pega os pinos, o outro grupo pega o jogo da memória.

(Entrevista realizada no dia 22/6/2007)

A rotina tem a função também de proporcionar a autonomia das crianças em relação

ao espaço escolar, pois elas têm a liberdade de escolher suas atividades, sabendo

que, no momento determinado, terão que guardar tudo no seu lugar, como nos

relatou a professora.

Eu prezo muito a organização. Então eles já sabem que vai ter um momento de tirar

tudo do lugar e vão ter o momento de botar tudo no lugar e que todo mundo vai

ajudar a guardar onde pegou e colocar tudo do jeitinho que eles encontraram.

(Entrevista realizada no dia 22/6/2007)

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Durante o período da pesquisa, presenciei esses momentos em que as crianças

podiam escolher a brincadeira, mas, no momento determinado, guardavam os

brinquedos sem reclamar, pois sabiam que isso fazia parte da organização da sala.

A rotina torna-se importante, pois traz consigo a organização, que ajuda as crianças

a buscarem sua autonomia, auxilia o professor na realização de suas atividades.

Entretanto, não pode aprisionar o cotidiano, ela deve ser constantemente avaliada.

[...] a rotina oferece referência, segurança e organização sem se contrapor ao pulsar, ao movimento e ao prazer. Deve ser coerente com os princípios que fundamentam nossa proposta de trabalho, possibilitar e/ou facilitar a realização de nossos projetos, sendo questionada e avaliada constantemente, para assegurar sua problematização e reestruturação, se necessário. (SERRÃO, 2003, p.28)

Muitas vezes o termo rotina é considerado como sinônimo de chato e repetitivo.

Entretanto sua utilização nas escolas deve ser repensada. O que autores, como

Serrão (2003) e Barbosa (2000), dizem é que a rotina não deve travar o cotidiano na

sua multiplicidade de possibilidades, pelo contrário, deve refletir a novidade.

A rotina é muito comum na Educação Infantil, mas muitas vezes é algo imposto por

secretarias, direção, pedagogo e professores, sem nenhuma participação da criança

na sua organização e definição. A rotina nas escolas deve ser avaliada e

questionada, isso porque muitas vezes é realizada sem finalidades e sem um

objetivo, pois compreende atitudes tão cristalizadas que ninguém questiona.

Barbosa (2000) alerta para os poucos estudos sobre a rotina nas escolas, já que ela

é parte integrante das práticas educativas e didáticas na Educação Infantil.

Descreveremos agora a rotina da UMEI pesquisada, principalmente no que tange à

turma analisada.

Os portões da UMEI abriam às 12h50min, e as crianças sentavam em fila no

refeitório. Esse momento sempre era acompanhado por mais de um funcionário até

a chegada das professoras, que se posicionavam à frente da fila da sua turma. Às

13h uma das professoras ou a pedagoga cantava no microfone com as crianças.

Havia uma escala para isso e cada dia era uma professora diferente que cantava.

Depois era feita uma oração, conduzida cada dia por uma criança e, em seguida,

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todos subiam paras suas salas. Esse procedimento durava cerca de 15 minutos. Ao

chegar à sala, as crianças guardavam suas mochilas e iam fazer a rodinha. A

professora sempre a organizava para que ficasse um menino sentado ao lado de

uma menina. Depois de sentados, a professora escolhia um CD de cantigas de roda,

que fazia parte de um livro, e colocava-o para tocar. As crianças sempre cantavam e

participavam ativamente, muitas vezes gostavam de acompanhar a música pelo livro

e se divertiam muito com isso. A professora olhava sua pauta, onde registrava o

nome dos ajudantes do dia. As crianças, com muita ansiedade, esperavam-na dizer

quem seria o ajudante, pois ele também seria o primeiro da fila para ir ao parquinho.

Luiza sempre escolhia um menino e uma menina. Após esse momento, a professora

solicitava que os ajudantes pegassem o cartaz do calendário e o pintassem. Depois

cada criança preenchia o seu próprio calendário. O momento de rodinha também era

um espaço em que a professora explicava qual seria a rotina do dia e em que os

conflitos e as dúvidas eram expostos. Era constante as crianças reclamarem da

atitude do colega na rodinha, esperando uma resposta da professora. Luiza sempre

ouvia e conversava com elas. Em alguns momentos essas conversas duravam mais

de meia hora.

Às 14h10min a professora organizava a fila e as crianças iam para o parquinho,

onde brincavam até as 14h40min. Dirigiam-se então ao refeitório, onde ficavam para

lanchar até as 15h. Depois, elas voltavam para a sala, escovavam os dentes e

desenvolviam alguma atividade no papel, ou alguma brincadeira dirigida. No período

em que estive na escola, a professora desenvolveu o projeto de jogos matemáticos.

Dessa forma, algumas vezes, após o lanche, as crianças brincavam e depois

registravam no papel, individualmente, suas impressões e/ou elaborações sobre a

atividade.

Durante as atividades dirigidas, a professora mandava-os sentar novamente em

rodinha, para que ela explicasse o jogo ou a atividade copiada. Nos jogos, Luiza

explicava uma vez e permitia que todas pelo menos uma vez, jogassem. Ela as

acompanhava enquanto jogavam e intervinha quando era necessário.

Após esse momento, as crianças registravam o jogo, por meio de desenhos ou de

alguma atividade matemática a ele relacionada, como somar os pinos que

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derrubavam no boliche. A professora ficava andando pela sala, ajudando as que

precisavam de seu auxílio. As crianças transitavam tranqüilamente pelas mesas

para pegar algum material emprestado, ou para pedir ajuda ao colega. A professora

permitia esse livre trânsito pela sala e até mesmo incentivava aquelas que haviam

terminado a atividade a ajudar o colega.

Com o término das atividades, as crianças podiam brincar com os brinquedos da

sala até as 16h45min, quando desciam e se sentavam no refeitório para esperar a

chegada dos pais. Estes ficavam na porta do refeitório esperando que a pedagoga

anunciasse o nome da criança pelo microfone. Quando isso ocorria, ela dirigia-se

até a porta. Só era permitida a entrada dos pais das crianças do berçário e do

maternal.

Além da rotina das atividades, havia também o dia do vídeo, às quintas-feiras, de

quinze em quinze dias. Nesse dia, a professora de apoio ficava com as crianças

para as professoras planejarem as atividades com a pedagoga ou individualmente.

Entretanto, durante os três meses em que estivemos na escola, só presenciamos

duas reuniões com a pedagoga. O dia do brinquedo era a sexta-feira, para o qual

cada criança podia trazer um brinquedo de casa. Os materiais da sala eram

organizados de forma que as crianças fossem independentes para pegar os objetos

nas prateleiras. As crianças tinham liberdade para usar o material e os brinquedos

disponíveis na sala, entretanto o brinquedo só era permitido para aquela que tivesse

acabado a atividade proposta pela professora.

Quadro 1 – Rotina do dia

12h50min às 13h Entrada das crianças na UMEI

13h às 13h15min Momento para músicas e oração no refeitório

13h15min ás 14h10min Rodinha, cantigas e calendário

14h10min às 14h40min Brincadeira livre no parquinho

14h40min às 15h Lanche

15h às 15h20min Escovação

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15h20min às 16h20min Atividade dirigida

16h20min às 16h45min Momento livre para brincarem com os brinquedos da sala de aula.

16h45min às 17h Momento da saída das crianças.

Fonte: Documentos da UMEI.

Quadro 2- Rotina da semana

Fonte: Documentos da UMEI.

Durante todo o período da pesquisa, observamos que poucas vezes Houve

mudanças na rotina, o que ocorria somente quando chovia, pois as crianças não

podiam ir ao parquinho, ou quando estava programada alguma comemoração na

escola. Contudo a riqueza de vivências pôde ser observada, pois a organização da

turma não impedia que elas brincassem, sentissem, entre outras coisas.

2.1.6 As crianças do jardim II

A sala tinha 22 crianças, onze meninos e onze meninas entre 6 anos e 4 meses e 5

anos e 7 meses. Essa idade foi conferida no final da pesquisa, em dezembro de

2006. Foi escolhida porque a linguagem, as brincadeiras e interações nessa faixa

etária estão mais elaboradas, o que nos permite ter um acesso maior às

elaborações das crianças sobre si mesmas e sobre os outros.

As crianças do Jardim II gostavam muito de cantar. A professora sempre lhes

ensinava canções novas. No início da aula, sempre em rodinhas, as crianças

cantavam músicas que algumas vezes eram acompanhadas de coreografia.

Segunda -feira Terça-feira Quarta -feira Quinta -feira Sexta-feira

Dia livre Dia livre Dia livre Dia do vídeo (15h20min às 16h20min)

Dia do brinquedo

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Os alunos da turma pesquisada estavam juntos desde o ano anterior e algumas

crianças estudavam na UMEI desde o maternal. Durante as atividades dirigidas pela

professora, as crianças se mostravam solícitas a fazê-las. Às vezes, surgia o

comentário de que a atividade era chata, ou algumas crianças demoravam a fazê-

las, pois se distraíam com os brinquedos da sala ou com a conversa dos colegas.

Durante essas atividades, a turma dividia-se em grupos, usando o limite do jogo de

seis cadeiras e seis mesas para definir quem fazia ou não parte de cada grupo. Só

era permitido emprestar material a quem pertencesse ao grupo naquele dia. Em

alguns momentos, surgia a rivalidade sobre quem pintava mais bonito ou quem

terminava primeiro.

2.1.7 As crianças e suas famílias

Segundo Wallon, a família é o primeiro grupo ao qual a criança vai pertencer ao

nascer: “[...] a família é um grupo natural no sentido em que para a criança a razão

de ser ou não ser se encontra colocada pelo nascimento num grupo distinto que lhe

assegura a alimentação, a segurança necessária, a primeira educação” (Wallon,

1980,p.168)”.

Devido à sua dependência biológica, a criança necessita de um ambiente que lhe

assegure os meios necessários para o seu desenvolvimento biológico e social.

Dessa forma, ressaltamos a importância de considerar as famílias das crianças

pesquisadas, pois nos trazem indícios importantes para a constituição do eu.

As crianças moravam em bairros próximos à escola. Seis moravam no mesmo bairro

e o restante dividia-se entre outros sete bairros. A maioria delas (12) tinha irmãos. A

maioria dos pais havia completado o ensino médio e as mulheres tinham maior grau

de escolarização. Nenhum dos pais tinha formação superior e somente um era

analfabeto. Quatro famílias recebiam auxílio do Governo Federal, através do bolsa-

família.

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0

2

4

6

8

10

12

Mãe Pai

Mãe Pai

Mãe Pai

Mãe Pai

Mãe Pai

Ens.Fund.Incompl

Ens.Fund.Compl

Ens. MédioIncompleto

Ens. MedioCompleto

Analfabeto

Ens. Fund.Incompl Mãe Ens. Fund.Incompl Pai Ens. Fund.Compl Mãe

Ens. Fund.Compl Pai Ens. Médio Incompleto Mãe Ens. Médio Incompleto Pai

Ens. Medio Completo Mãe Ens. Medio Completo Pai Analfabeto Mãe

Analfabeto Pai

Gráfico 1 – Formação escolar dos pais .

As crianças chegavam à escola acompanhadas por um familiar, pai, mãe, tios, avós

ou irmão mais velho com pouca diferença de idade e até mesmo por vizinhos.

Apenas duas crianças usavam transporte escolar.

Em uma reunião de pais, em que foram questionados sobre se trabalhavam,

observamos que a maioria das mães não trabalhava fora de casa. (12 das 22 mães).

Mães que trabalham

Mães que não trabalham

Gráfico 2 – Mães que trabalham ou não.

Das 22 crianças, apenas oito moravam com o pai e a mãe; o restante morava

apenas com a mãe, ou com a mãe e os avós. Uma delas morava apenas com os

avós. Um fato interessante é que nove crianças moravam com seus avós, o que

mostrava a mudança na dinâmica das estruturas familiares.

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Pais Pais e avós Mãe e avós Avós

Gráfico 3 –Pessoas com quem moram as crianças. Ouvindo os pais ou conversando com eles, percebemos que muitos se sentiam

privilegiados em ter seu filho naquela UMEI. Devido à dificuldade em conseguir uma

vaga e ao fato de a UMEI ser nova e bonita, muitos pais resistiam em tirar seus

filhos para cursarem o ensino fundamental, pois a escola que ia receber as crianças

é antiga.

Há uma participação ativa da comunidade na escola. As reuniões ocorrem à noite e

é muito profícua a participação do movimento comunitário no Conselho de Escola. O

bairro onde está localizada é considerado de classe média baixa. A diretora da

escola expôs que a população sempre reivindica por melhorias na escola e está

sempre presente nas reuniões com a Secretaria Municipal de Educação.

Dessa forma, conhecendo um pouco mais o universo dessa UMEI, nossas

observções e análises nos levaram para um aspecto da constituição do eu, entendo

que vários outros atravessam a constituição da criança.

3. SER MENINA E SER MENINO NA TURMA DO JARDIM II:

CAMINHOS DE CONSTITUIÇÃO DO EU.

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Correr, cantar, conversar, brincar, sorrir e chorar. Tudo faz parte do cotidiano da

Educação Infantil. Essas situações fazem parte da teia tecida pelas interações entre

as crianças. Mesmo brincando sozinha, a criança traz consigo elementos de

interações estabelecidas com outras pessoas.

Vigotski auxilia na compreensão desse fenômeno quando afirma que os processos

humanos têm sua origem nas relações sociais. O homem significa o mundo e a si

próprio através da experiência de relação com outros homens. O desenvolvimento

psíquico envolve a apropriação das experiências vividas no plano intersubjetivo.

Essas apropriações permitem ao homem interiorizar “[...] estratégias para

memorizar, narrar, solucionar problemas, etc., criadas pelos grupos humanos com

os quais ele partilha experiências” (OLIVEIRA, 2002, p. 136).

Assim, o desenvolvimento constitui-se em um “[...] processo dialético complexo, que

implica revolução, evolução, crises, mudanças desiguais de diferentes funções,

incrementos e transformações qualitativas de capacidades” (GÓES, 2002, p. 99).

Nesse contexto, a criança é concebida, desde o início, como um ser social, e o

processo de tornar-se um ser singular é desencadeado a partir da interação com o

outro e com a cultura e das apropriações decorrentes dessas relações.

As interações na teoria histórico-cultural são constituidoras do eu. Tanto Wallon

quanto Vigotiski ressaltam a importância do outro no processo de se tornar humano.

Para Vigotski (1996, p. 113), a criança “[...] começa a utilizar consigo mesma os

meios e formas de comportamento que, no princípio, eram coletivos”. Ou seja, aquilo

que era dos outros passa a ser do eu também, mas de uma forma particular e

singular.

Nessa perspectiva que concebe a criança como um ser histórico e cultural, são os

outros, através das interações, que vão possibilitar a internalização das práticas

culturais e históricas da humanidade. O outro é “[...] parceiro perpétuo do eu na vida

psíquica” (WALLON, 1980, p. 159).

Dessa forma, torna-se de grande importância analisar as crianças que chegam até a

Educação Infantil a partir das interações, pois cada personagem presente nas

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instituições de Educação Infantil deixa de alguma forma marcas na constituição do

eu dessas crianças. Conforme afirma Oliveira (1992, p.31):

Nessa interação contínua e estável com outros seres humanos, a criança desenvolve todo um repertório de habilidades ditas humanas. Passa a participar do mundo simbólico do adulto, comunica-se com ele através da linguagem, compartilha a história, os costumes e hábitos de seu grupo social, o que garante ao ser humano uma intensa capacidade adaptativa aos mais variados meios físicos e sociais.

No contexto cultural, particularmente no educacional, uma gama de possibilidades,

de aprendizagens e experimentações abre-se para a criança. Assim, o outro,

especialmente o adulto, tem a responsabilidade de apresentar o mundo a essa

criança. Todavia não é só a criança que se desenvolve, mas também os adultos que

interagem com elas, pois aprendem a ser mães, professoras, avós. É impossível

falar de desenvolvimento envolvendo uma única pessoa, já que esse compreende

inúmeros protagonistas.

Como afirma Vigotski (2000), a personalidade constitui-se num “agregado de

relações sociais transferidas internamente” e é por meio dos outros que construímos

nossas significações sobre os modos de ser, de agir, de nos relacionarmos com

outras pessoas e de sentir. Assim sendo, consideramos pertinente o estudo das

interações para compreender o desenvolvimento e especialmente a constituição do

eu das crianças. Por isso, iniciamos a pesquisa de campo focalizando as interações

que se estabelecem entre elas.

Devido ao fato de as crianças estarem há algum tempo juntas (algumas se

conheceram no maternal), era constante em momentos de rodinha ou de

brincadeiras elas fazerem referência a acontecimentos do passado como: “Você

lembra quando você chorou na escola?” ou “No ano passado, você foi a gatinha do

teatro.” Elas já conheciam gostos, vontades e manias dos colegas, tinham vínculos

estabelecidos, conheciam o espaço e todos os funcionários, já não interagiam

propriamente para se conhecer, mas para estreitar amizades, conhecer,

experimentar, solucionar problemas.

Discutindo sobre vínculos e sua relação com o desenvolvimento humano, Almeida e

Rubiano (2004) chegaram à idéia de “compartilhamento”, no sentido de ter algo junto

com o outro, que pode ser um momento, um interesse, uma atividade, um segredo,

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ou até mesmo códigos de comunicação que só na relação eu-outro podem ser

entendidos.

Para criarmos vínculos, temos que ter algo em comum, uma história e uma vivência.

Isso cria códigos de comunicação. No Jardim II, as crianças compartilhavam uma

história de convivência que já durava três anos. Isso era importante para o

desenvolvimento delas, pois facilitava a apropriação do mundo social através do

outro.

3.1 A FORMAÇÃO DE GRUPOS E A SUA IMPORTÂNCIA PARA A

CONSTITUIÇÃO SOCIAL DA CRIANÇA

A formação de grupos e suas interações mostraram-se importantes para

entendermos o desenvolvimento infantil. Era notória a formação de grupos entre as

crianças, principalmente nos momentos de brincadeiras, em que ficavam mais livres

para escolher com quem queriam brincar. No momento das atividades dirigidas, a

professora muitas vezes determinava quem ia sentar perto de quem na rodinha ou

na mesa.

Wallon (1980, p. 167) ressalta a importância dos grupos na constituição do sujeito e

na aprendizagem social, e define a existência de um grupo como uma

[...]reunião de indivíduos tendo entre si relações que notificam a cada um o seu papel ou o seu lugar dentro do conjunto. A escola não é um grupo propriamente dito, mas um meio onde podem constituir-se grupos com tendência variável e que podem estar em discordância ou em concordância com os seus objectivos.

Observamos que muitos grupos formados não eram duradouros, duravam o tempo

de uma brincadeira ou do manuseio de um brinquedo. A esse respeito Wallon

comenta:

Quer sejam temporários ou duradouros, todos os grupos têm objectivos determinados e a sua composição depende desses mesmos objectivos; do

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mesmo modo, a repartição dos cargos rege entre eles as relações dos membros e, se necessário, a sua hierarquia. Pode haver postos de iniciativa, de comando, de sustento, de submissão [...] (WALLON, 1980, p. 173).

Mesmo durando pouco tempo, os grupos tinham a sua organização e papéis

hierárquicos que os definiam como um grupo.

Era no momento das brincadeiras que a divisão de grupos se ressaltava. As

crianças brincavam muito com os brinquedos da sala, principalmente com bonecas,

bonecos e carrinhos que estavam lá. Entretanto também gostavam muito de jogos

matemáticos confeccionados pela professora, como bingo, ludo, jogo da velha, trilha

e boliche de números. Além disso, brincavam em frente ao espelho, principalmente

as meninas, cantando e dançando.

Um aspecto que se destacou nas primeiras observações e análises da turma do

Jardim II foi a divisão entre meninas e meninos, estabelecida pelas próprias

crianças. Essa característica foi ressaltada pela professora no primeiro encontro

que tivemos. Nessa ocasião ela relatou que a divisão entre meninos e meninas era

algo constante no grupo.

Almeida e Rubian (2004) asseveram que, na formação de grupos, segundo a

pesquisa empírica, o que vai mediar a escolha de parceiros é a idade e o sexo. Para

as autoras, a escolha por sexo se dá por afinidade como, por exemplo, gostar do

mesmo tipo de brincadeira. Afirmam:

Segundo a percepção das crianças, essa é a razão principal da menor probabilidade de amizades entre meninos e meninas [...]. As brincadeiras intersexuais restringem a alguns tipos (pega-pega) e ou/a certas crianças que se dispõem a participar de jogos mais típicos do sexo oposto (ALMEIDA; RUBIAN, 2004, p.180).

Percebemos, pelas brincadeiras e atividades realizadas pelas crianças, que a

separação em grupos de meninos e meninas seguia interesses, padrões de

comportamento e modos de ser, o que não significa que meninos e meninas não

interagissem e/ou brincassem juntos em alguns momentos. Às vezes os meninos

participavam de brincadeiras ditas de meninas e vice-versa. Segundo as autoras,

esse é um dos motivos da escolha de parceiros para o grupo. A convivência e a

cumplicidade também auxiliam nessa escolha, e não somente o sexo.

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Encontramos grupos que eram mais constantes, o que não quer dizer que eram

fixos, pois as crianças transitavam entre um e outro, dependendo da brincadeira e

do brinquedo escolhido. De acordo com as observações feitas durante a pesquisa,

pudemos destacar, dentro do grupo das meninas e dos meninos, agrupamentos que

se uniam a outros, de acordo com afinidades e brincadeiras.

Mostramos abaixo essa dinâmica de interações entre as meninas.

Figura 23 – Dinâmica das interações entre as meninas.

O grupo normalmente composto apenas por meninas era integrado pelas alunas

Aline, Janaína, Karla, Lúcia, Letícia, Larissa, Mariana, Paula e Raquel. Eram

meninas que estavam constantemente juntas nas brincadeiras ou sentadas

próximas. Mariana, Lúcia, Janaína e Aline lideravam muitas vezes as ações e

posicionamentos do grupo.

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Letícia, Larissa e Raquel faziam parte desse grupo, mas não tinham a liderança

apenas acatavam a decisão das que se destacavam. Elas brincavam bastante em

frente ao espelho, com produtos de maquiagem que algumas traziam escondido de

suas mães. Penteavam-se, dançavam e cantavam imitando personagens de

programa de televisão.

Paula e Karla ora participavam das brincadeiras com as outras meninas, ora eram

excluídas das atividades lúdicas. Costumavam ficar sempre próximas das meninas

para terem a oportunidade de brincar com elas.

Ana Carolina e Bianca eram “amigas” e era assim que se definiam. Sempre estavam

juntas e não chegavam a formar um grupo; transitavam em todos os grupos, mas

sempre unidas. Brincavam muito de “casinha” e de fazer “comidinha”. Bianca sempre

trazia brinquedos, como panelinhas, pratinhos, fogãozinho e bonecas.

Os meninos, por outro lado, tinham uma dinâmica de interações um pouco diferente.

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Figura 24 – Dinâmica das interações entre os meninos.

O grupo normalmente composto apenas por meninos era integrado pelos os alunos

André, Cláudio, Douglas, Elvis e Rodrigo, que estavam constantemente juntos,

brincando ou sentados próximos. Eles se aproximavam nas brincadeiras de futebol,

nas simulações de luta ou em brincadeiras com armas de brinquedo montadas com

peças de jogo da própria sala. Cláudio, Elvis e Douglas eram constantemente

citados pelas meninas como os mais bonitos da sala. Cláudio, em especial, ganhava

presentes das meninas da sala.

Alex, Luiz Paulo, Mateus, Paulo Ricardo, Pedro e Yan gostavam de brincar com os

fantoches da sala, organizando peças de teatro e brincando com os jogos de

matemática.

Entretanto, observamos ainda uma outra rede complexa de interações: alguns

grupos eram formados por meninas e meninos, embora fossem menos constantes e

mais solúveis, já que se desfaziam com mais facilidade do que os outros grupos,

seja por convite de outro colega seja por um brinquedo que chamasse mais atenção.

A figura 25 exemplifica essa situação.

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Figura 25 – Dinâmica das interações entre meninas e meninos.

Alex, Luiz Paulo, Mateus, Pedro, Yan, Paula, Bianca, Ana Carolina e Karla

integravam um desses grupos, que se reunia nas brincadeiras de casinha, nos jogos

matemáticos e nas brincadeiras com fantoches. Quando a professora não

determinava os locais onde eles iam sentar-se para fazer as atividades dirigidas, era

comum vê-los se reunir na mesma mesa para cumprir a tarefa proposta.

Como já foi dito, as crianças transitavam entre os grupos. Os meninos e as meninas

só se uniam se tivessem um interesse comum. Alguns meninos aceitavam brincar de

casinha e assumiam papéis do gênero masculino, como garçom, pai, filho ou irmão.

Existia também uma outra dinâmica de interações entre as meninas e os meninos.

Estes não chegavam a formar um grupo, mas interagiam, e esse tipo de interação

apresentava algumas características. Normalmente, os meninos tomavam a

iniciativa de se aproximar das meninas que estavam envolvidas em algumas

atividades lúdicas, atrapalhavam de alguma forma a brincadeira e eram censurados

por elas, que, em alguns momentos, corriam atrás deles, o que gerava a brincadeira

de pique-pega.

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Figura 26 – Dinâmica das interações entre meninas e meninos.

Esse grupo era formado por Aline, Janaína, Lúcia, Mariana, Letícia, Larissa, Raquel,

André, Cláudio, Elvis, Rodrigo e Douglas. Às vezes sentavam juntos no mesmo

conjunto de mesinhas para fazer suas atividades, entretanto essa interação nem

sempre era harmoniosa.

A relação entre esses grupos às vezes não se dava de forma harmoniosa,

principalmente por conta do espaço que muitas vezes era invadido por outro grupo.

Entretanto as crianças tinham liberdade para trocar de grupo. Por exemplo: se uma

menina quisesse deixar a brincadeira do espelho e brincar de casinha, era aceita.

Por outro lado, entre os meninos, a mistura e a flexibilidade na formação dos grupos

não era percebida. Os que participavam das brincadeiras de luta ou dos jogos de

encaixe não costumavam transitar entre os grupos que brincavam de fantoche, de

casinha ou com os jogos matemáticos e com o outro grupo acontecia a mesma

coisa. Os grupos só se uniam quando a brincadeira era o futebol.

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A figura 27 sintetiza a dinâmica das interações estabelecidas entre todas as crianças

da turma.

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Figura 27 – Dinâmica das interações entre as crianças do Jardim II.

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Os grupos ajudaram-nos a pensar a constituição do eu das crianças inseridas nesta

UMEI.

Wallon (1980) mostra-nos a importância dos grupos na constituição do ser social

que somos e no desenvolvimento de nossa personalidade e diferenciação do outro.

O indivíduo só existe como um ser social se for membro de algum grupo. Existir

como um ser social significa pertencer a um grupo, que deixa marcas em nossa

constituição e orienta nosso desenvolvimento.

Quais as marcas deixadas pelos grupos que se formavam no Jardim II na

constituição de cada um de seus membros? Que orientações os grupos imprimiam

na constituição do eu de cada uma dessas crianças?

Um primeiro aspecto que se destaca é a divisão entre meninas e meninos. Estudos

apontam que agrupamentos de crianças na Educação Infantil, tendo como critério a

divisão entre meninas e meninos, é freqüente (ALMEIDA;RUBIANO, 2004).

Entretanto, alguns desses estudos destacam que essa divisão não é natural, mas

histórica. As crianças não são naturalmente meninos e meninas, elas se constroem

através de suas relações com os grupos sociais estabelecidos. Logo que nascemos,

temos nossos corpos lidos, como meninos ou meninas e, através deles, significados

nos são passados durante toda a vida: “[...] o corpo seria a primeira forma de

distinção social, derivando e marcando todas as outras construções” (SAYÃO, 2003,

p. 71). Assim, nascer com características biológicas que nos definam como menino

ou menina leva à configuração uma gama de relações que vão permear toda a

história de nossas vidas.

Como já foi dito anteriormente, desde o primeiro encontro com a professora da

turma, as questões de gênero mostravam-se como uma possibilidade importante de

análise da turma do Jardim II. Ao longo da pesquisa, o que era possibilidade tornou-

se característica importante para análise. Dessa forma, organizamos os episódios no

sentido de que nos mostrassem indícios da constituição do ser menino e do ser

menina, na turma pesquisada.

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3.2 SER MENINO E SER MENINA

Uma observação mais cuidadosa do cotidiano da Educação Infantil evidenciou a

presença de algumas práticas escolares cristalizadas que diferenciavam o ser

menina do ser menino no Jardim II; filas para meninos e para meninas, lugar próprio

para sentar na rodinha, local diferenciado para colocar as mochilas. Práticas que iam

moldando os modos de ser menina e de ser menino não de uma forma rígida, mas

que ajudavam na diferenciação entre as crianças.

Existem vários trabalhos que discutem a relação menino e menina nas instituições

de Educação Infantil (GOBBI, 1997; COSTA, 2004; FINCO, 2004; SOUZA, 2006)

Todavia, muitos deles discutem somente o gênero feminino e sua história de

discriminação interligada à figura feminina da professora. Nesses estudos, os

meninos são vistos, nos dados empíricos, como os mais fortes, e essa imagem é

reforçada nas práticas educativas.

Discorrendo o cotidiano institucional da Educação Infantil, Costa (2004) analisa

cenas do cotidiano de meninas e meninos, buscando compreender como as

crianças expressam, interpretam, reproduzem ou ressignificam os comportamentos e

regras sociais na construção dos gêneros e as expressões de sexualidade e poder.

Para a autora, discutir as relações de gênero na Educação Infantil é de fundamental

importância

[...] para conhecer melhor as meninas e os meninos que freqüentam as instituições, pois trata-se de construções sociais que foram histórica e culturalmente construídas e que em muitos momentos influenciam ou mesmo determinam comportamentos estereotipados (COSTA, 2004, p.12)

A autora define gênero segundo Joan Scott, como uma relação entre homens e

mulheres e não apenas entre mulheres, e aponta a necessidade de estudar a

história dos meninos e não apenas a das meninas. Quando discutimos gênero,

estamos também analisando a relação entre homens e mulheres de uma

determinada sociedade e suas expectativas, que variam conforme o lugar e a época.

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A pesquisa de Costa (2004) tem o compromisso de procurar diminuir os equívocos

pedagógicos e construir uma educação emancipatória na relação entre meninos e

meninas.

O gênero é discutido, nessa pesquisa, através das relações tecidas dentro das

instituições de Educação Infantil, de acordo com as relações que também são

estabelecidas na sociedade. Em suas considerações finais, Costa apresenta

crianças diferentes daquelas divulgadas em outras pesquisas, em que as meninas

são passivas e os meninos são fortes e “durões”; pelo contrário, em sua pesquisa

ela encontra meninas que também ocupavam a liderança e meninos que deixavam

transparecer seus sentimentos e o direito de chorar.

Analisando o encontro de meninos e meninas na escola, Souza (2006) investiga as

relações de gênero por meio das interações estabelecidas entre as crianças e a

professora. O seu objetivo é verificar se os estereótipos sexuais são reproduzidos

e/ou reforçados pelas professoras da Educação Infantil. Em sua pesquisa, a autora

constata que a professora reforçava a estereotipia sobre os papéis socialmente

aceitos.

Santos (2004) acredita que seja difícil para as professoras terem uma atitude

diferenciada, já que também receberam uma educação que segregava a mulher de

uma vida social ativa. Todavia, é possível pensar em uma educação igualitária para

meninos e meninas.

Em nossa pesquisa, buscamos caminhos diferentes dos da maioria das

investigações sobre o gênero. Buscamos a diferença, mas não o confronto e a

oposição. Entendemos a importância dessas investigações que revelam práticas

discriminatórias e segregacionistas na educação das crianças e evidenciam a

necessidade de uma discussão mais aprofundada sobre os padrões rigidamente

estabelecidos pela sociedade do que é masculino ou feminino. Entretanto,

buscamos compreender como se dá a constituição do subjetivo do ser menina e do

ser menino, entrelaçados nas relações sociais e nas construções culturais e

simbólicas dessa relação.

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3.2.1 Será que ele me acha bonita? - Ser menina na turma do Jardim II

Ó mãe, me explica, Me ensina

Me diz o que é feminina? Não é no cabelo,

Ou no dengo, ou no olhar É ser menina por todo

lugar. Joyce

De modo geral, ser criança no mundo ocidental atual é estar ligada a uma lógica

perversa, a lógica da produção e do consumo. Jobim e Souza (2005) nos mostram-

nos que cada época cria expectativas sobre suas crianças, o que trará

conseqüências constitutivas sobre o sujeito em formação.

A escassez de diálogo entre os adultos e as crianças, concorre para que elas fiquem

sozinhas nesse contexto conturbado, expostas à violência e à erotização da mídia,

que acaba criando uma produção cultural específica para elas, aligeirando o

crescimento. Com isso elas se inserem cada vez mais cedo no ambiente dos

adultos.

Essa lógica torna-se mais perversa quando nos referimos às meninas, que são cada

vez mais alvo da mídia e da sociedade de consumo. Segundo Felipe e Guizzo

(2004), a mídia (televisão, propagandas, livros, revistas, entre outros meios.) veicula

discursos e modos de felicidade que se tornam verdades para as crianças. Só é feliz

quem é magra, loira e de cabelos compridos.

Esses discursos marcam o ser menina na sociedade atual. A publicidade “[...]

remete a determinados padrões de beleza amplamente valorizados nos nossos dias:

o corpo jovem, magro, branco e sensual. As meninas-bonecas são visivelmente

muito magras, quase todas brancas, de olhos claros” (FELIPE; GUIZZO, 2004,

p.128).

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Para as meninas do Jardim II, ser menina era ter cabelos compridos, que pudessem

ser manuseados e admirados pelas colegas, e ser magra. Em um dos episódios

envolvendo Lúcia e Mariana, um conflito se instaurou porque uma chamou a outra

de “gorda”.

As crianças estão em rodinha ouvindo música, e a professora está conversando com

outra professora na porta da sala. Quando ela volta para a rodinha, Mariana reclama

que Lúcia a chamou de gorda.

Mariana: Tia, a Lúcia me chamou de gorda e disse que não quer brincar comigo.

Professora: E qual é o problema de ser gorda?

Lúcia: Mas ela me chamou de gorda também. (Lúcia é uma criança magra)

Professora: Mas qual o problema de ser gorda? Se Mariana é gorda é porque ela

come bem. E você, Mariana, deve falar: Eu sou gorda sim, mas sou muito feliz.

Mariana: Ninguém na minha casa me chama de gorda. Meu pai, quando eu me

arrumo, sempre diz: “Como você está bonita”.

Lúcia neste momento abaixa a cabeça.

Professora: Pois é, aqui na sala ninguém é igual, todos somos diferentes; tem uns

que têm cabelos enrolados, outros lisos, tem gordo e magro e não tem problema.

A professora pede que eles se olhem e vejam se tem alguém igual na sala.

Professora: Não tem problema ser gordo.

Mariana: Tia, meu pai e minha mãe não gostam que me chamem de gorda.

Professora: Mas temos que nos aceitar do jeito que somos. Você tem que dizer: “Eu

sou gorda sim, mas sou feliz”.

Mariana: Meu pai, irmão, mãe e tia não me chamam de gorda.

Professora: Pois é, a Lúcia não vai fazer mais isso e vai brincar com todo mundo.

(Diário de campo, 20 de outubro)

Por que Mariana não aceitava ser gorda? Além de negar “ser gorda”, afirmava que

sua família também não gostava que a chamassem dessa forma.

Ser gorda é uma ofensa muito grave, assim como ser chamada de feia. Não existem

apresentadoras de programas infantis gordas. Até mesmo as propagandas

destinadas às consumidoras infantis exibem meninas magras e às vezes erotizadas,

como afirmam Felipe e Guizzo (2005), analisando propagandas de sandálias de

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plástico destinadas às meninas. Nessa análise, os autores revelam um fato

preocupante que é a erotização dos corpos infantis pela da mídia. Cada vez mais

vemos propagandas mostrando meninas que cultivam a beleza como se isso fosse

inerente ao ser feminino - ao ter tal sandália a menina conseguirá ter a atenção

daquele menino da escola - e ressaltando uma imagem do feminino ligada ao

supérfluo e ao consumo desenfreado.

Esses sentidos para o ser menina chegam cada vez mais cedo até nossas crianças.

As meninas da turma do Jardim II, por exemplo, tinham apenas cinco e seis anos.

Conforme ressaltam Felipe e Guizzo (2005, p.124)

O corpo infantil vem sendo alvo de constantes e acelerados investimentos. Com o surgimento dos veículos de comunicação de massa, em especial a TV, as crianças passaram a ser vistas como pequenos consumidores e a cada dia são alvos constantes de propagandas. Ao mesmo tempo em que elas têm sido vistas como veículo de consumo, é cada vez mais presente a idéia da infância como objeto a ser apreciado, desejado, exaltado. [...] chama atenção para o fato de haver uma ‘‘erótica infantil’’, isto é, uma erotização da imagem da criança, amplamente veiculada pela mídia.

Com acelaração da passagem da infância para o mundo adulto do consumo, até

mesmo as músicas destinadas ao público adulto têm chegado até a infância com

muita facilidade, porque seus ritmos são alegres e seduzem as crianças. Em uma

das cenas observadas no Jardim II, as crianças pediam à professora que colocasse

um CD de uma cantora famosa, que era magra, tinha cabelos compridos e uma voz

parecida com a de uma criança. Suas músicas faziam menção a namoros,

indicavam que ela era bonita e não precisava mais do ex-namorado e anunciavam

novos amores.

As meninas se arrumam na frente do espelho, passam batom, mexem no cabelo e

fazem caras bem expressivas. Conversam se olhando-se no espelho, colocam

óculos escuros e arquinhos nos cabelos.

Lúcia se aproxima da professora e pede que ela coloque o CD da cantora Kelly Key.

A professora diz que esse CD é de Alex e ele não tinha vindo á aula nesse dia.

Então ela coloca uma música do cantor Latino, ”Festa no apê”.

Lúcia e Mariana são as meninas que mais dançam, colocando a mão na cintura,

balançando os cabelos e abaixando até o chão.

As crianças cantam e dançam a música.

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Lúcia se aproxima de Elvis e pede que ele as olhe dançando.

Elvis, que está brincando com os pinos, continua a brincar e nem olha para as

meninas.

Karla reclama, pois queria ouvir “A linda rosa juvenil”. A professora troca o CD e

Lúcia reclama, pois gostaria de continuar a dançar. (Diário de campo, 21 de

novembro)

Em que a mídia tem contribuído para a formação das meninas? Quando vemos

apresentações do cantor de “Festa no apê” na televisão, ele sempre vem

acompanhado de moças bonitas, com roupas curtas e cabelos compridos. Elas

dançam e são admiradas pelos homens.

As meninas, nesse episódio, arrumaram-se em frente ao espelho para dançar;

repetiram os gestos das dançarinas, colocando a mão na cintura; mexeram nos

cabelos e rebolaram, enquanto abaixavam-se até o chão. Queriam o olhar e a

atenção de Elvis, que estava mais interessado em brincar com os pinos do que em

ver as meninas dançando. Elas pareciam dançar também para serem olhadas e

admiradas pelo outro - nesse caso os meninos – da mesma forma que os homens

admiram as mulheres bonitas, magras e de cabelos compridos que dançam nas

apresentações de cantores como o Latino.

Jobim e Souza (2005, p.109) alertam para essa fusão “[...] entre a imagem e a

realidade, proporcionada pela mídia que também atua fomentando um ideal de

felicidade atrelado ao consumo de valores e signos”.

Cada sociedade produz um conceito de infância. E qual seria o nosso? Ao reparar

na letra da música “Festa no apê”, vemos alguns dos ideais e valores que envolvem

o ser menina/mulher em nossa sociedade.

Festa No Apê

Hoje é festa lá no meu apê Pode aparecer Vai rolar bunda lelê Hoje é festa lá no meu apê Tem birita Até amanhecer Chega aí

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Pode entrar Quem está aqui está em casa Olá, Prazer! A noite (hum) é nossa. Garçom, por favor, venha aqui e sirva bem a visita. Tá bom Tá é bom Aqui ninguém fica só Entra aí e toma um drink Porque a noite é uma criança. Tesão, sedução, libido no ar No meu quarto tem gente até fazendo orgia Tá bom Tá é bom Tudo é festa Pegação Vou zoar o mulherio e a chapa vai esquentar.

O ideal de felicidade nessa música está atrelado a bebidas e namoro com várias

pessoas. Pode até parecer engraçado ver crianças dançando como adultos, ou

cantando certos tipos de músicas. Entretanto, se entendemos o sujeito como um ser

histórico, inscrito em uma cultura e através dela se constituindo, fica-nos a pergunta:

Que meninas estamos ajudando a formar dentro das escolas e fora delas também?

Jobim e Souza (2006, p.115) afirma: “cada sujeito, ao interagir com o seu meio,

estará interagindo com signos, com uma história, com uma ideologia, e vai, assim,

nessa troca com o outro, construindo seu próprio conhecimento que é

marcadamente cultural”.

Se em nossa constituição somos influenciados por uma cultura, as crianças atuais

são constituídas por uma cultura que erotiza precocemente. Mais uma vez negamos

a infância para uma adultilização precoce, pois quanto mais rápido crescem, mais

cedo se tornam consumidores em potencial.

Em seu artigo sobre infância e contemporaneidade, Souza (1998) fala com uma

certa preocupação sobre esse momento da história, pois o outro mais experiente,

ou seja, o adulto, que estaria a mediar a relação da criança com o mundo, não tem

tido muito tempo para isso, e a criança tem ficado à mercê da televisão, que dita

normas e formas de comportamento. Muitas vezes os pais reforçam essas idéias ao

comprarem roupas de adulto para as crianças e ao permitirem que tenham acesso à

produção massificadora da mídia, sem nenhum tipo de filtro por parte deles.

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Construir-se menina nesse contexto revela o quanto a mídia, na sociedade atual,

dita as ordens de seu subjetivo. Aquilo que é mostrado como padrão de felicidade se

torna verdade para essas meninas.

É assim que elas se vão se construindo. Não somos naturalmente

meninas/mulheres, mas, sim, histórica e culturalmente meninas/mulheres. Dessa

forma, analisando as filigranas, ou seja, os detalhes das histórias das meninas,

tecidos na turma do Jardim II, percebemos que fazem parte de um universo muito

maior, que é produzido em nossa sociedade.

As meninas dessa turma eram muito vaidosas. Dos dezoito episódios registrados

que as envolviam, em oito elas brincavam com produtos de maquiagem e com

danças e em quatro brincavam de casinha. Elas demonstravam muita preocupação

com a beleza. Na cena descrita abaixo, muito freqüente nessa turma, elas mostram

preocupação com os cabelos.

Lúcia está na frente do espelho junto com Aline. Aline tenta convencê-la a colocar o

cabelo de lado. Aline diz:

- A minha mãe sempre arruma o meu cabelo assim.

Ela fala e mexe no seu cabelo, com um pente na mão. Lúcia a deixa dividir o seu

cabelo. Elas estão na frente do espelho da sala.

(Diário de campo, 7 de novembro)

A maioria das meninas da sala, sete das onze, tinha cabelos compridos. Com os

quais constantemente se preocupavam . Nos episódios em que brincavam com

materiais para maquiagem, elas iam para a frente do espelho, mexiam neles,

jogando-os de lado. Às vezes iam ao banheiro escondido da professora para molhá-

los. Ter os cabelos compridos parecia ser algo muito importante para elas.

Em certa ocasião, Lúcia ficou muito chateada por sua mãe ter cortado seus cabelos.

No refeitório, algumas meninas estão em um grupinho conversando sobre os

cabelos de Lúcia, que foram cortados acima do ombro. Dizem que ficou bonito.A

professora também diz que ficou bonito, mas Lúcia nada responde. Ela fica séria e

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cruza os braços. Está visivelmente aborrecida. Outra professora se aproxima, coloca

a mão em seus cabelos e diz:

- Será que é igual a Sansão? Perdeu a força?

Diz isso e olha para Luiza que é a professora de Lúcia. (Diário de campo, 8 de

dezembro).

A outra professora sabia o quanto era importante para Lúcia ter cabelos compridos,

pois ela era uma aluna muito vaidosa. Observamos várias cenas dessa aluna em

frente ao espelho, jogando os cabelos para a frente só para ver o efeito que

produziam batendo no espelho. Quando conversava com os colegas, sempre mexia

neles. Cortá-los foi como ter tirado a sua “força”, a sua identidade: para ser menina

bonita e admirada pelos outros tinha que ter os cabelos compridos como mostravam

a televisão e as revistas.

Ser menina também está imbricado na relação com o menino. Não basta apenas

considerar que há meninos e meninas no espaço da Educação Infantil, mas, sim,

que há relações que produzem/reproduzem “[...] modos de ser homem e mulher, ou

menino e menina, que trazem conseqüências para sua convivência com o grupo,

assim como para suas vidas” (SAYÃO, 2003, p. 78).

Através dessas relações, eles conhecem/reconhecem sua condição social de ser

homem ou mulher. Atravessadas nessas relações estão as expectativas de uma

sociedade que atribui valores, cujos reflexos sentimos nas relações tecidas no grupo

do Jardim II.

No episódio descrito abaixo, algumas meninas estavam na frente do espelho

arrumando-se e também fazendo uma das coisas de que mais gostavam: dançar. Ao

dançar, elas carregavam nas expressões faciais; falavam e se expressavam olhando

para o espelho.

Lúcia, Mariana, Karla e Letícia estão dançando na frente do espelho. Douglas está

em outra mesa brincando com os pinos.

Lúcia chama Douglas e diz:

- Olha a gente dançando e diz quem dança mais bonito?

Douglas olha, dá uma risada e diz:

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- Todas vocês são feias!

Lúcia faz uma expressão de quem não gostou, vira-se para o espelho e continua

dançando (Diário de campo 26 de outubro).

As meninas pareciam esperar que os meninos as admirassem por estarem

dançando como em muitos programas televisivos em que mulheres dançam com

roupas curtas e têm a admiração do público. Será que Douglas não percebido a

expectativa das meninas? Por que disse que todas eram feias? Douglas parecia não

havia dar importância a um tipo de comportamento muito valorizado por elas. Disse

que todas eram feias e achava engraçado vê-las brincar de dançar e ficar irritadas

por terem sido chamadas de feias.

Com base no episódio analisado, podemos perguntar-nos: O que as meninas

esperavam dos meninos? Ouvir que eram feias fez com que se sentissem ofendidas.

Qual seria a resposta certa?

No decorrer de nossas vidas, internalizamos funções sociais, como as de filha, de

mãe, de professora Essas funções, que se configuram no plano intrapsíquico, como

diz Vigotski, primeiro foram relações sociais. “O desenvolvimento segue não para a

socialização, mas para a individualização de funções sociais (transformações das

relações sociais em funções psicológicas)” (VIGOTSKI, 2000, p. 29). Dessa forma,

as funções sociais que assumimos têm grande influência na forma como falamos,

pensamos e sentimos. De acordo com Pino (2000, p.72), “[...] as funções

psicológicas constituem a projeção na esfera privada (plano da pessoa ou da

subjetividade) do drama das relações sociais em que cada um está inserido” (p.72).

As funções sociais que o sujeito assume não são simplesmente internalizadas em

sua íntegra, mas, sim, de acordo com o lugar que o sujeito ocupa nas relações

sociais vivenciadas, pois cada um carrega em si a marca da sua própria história.

No decorrer de nossas vidas, assumimos funções que nos vão constituindo. Essas

funções são construídas nas nossas relações com o outro. Logo que nascemos,

somos definidos pelos outros, por nossas características biológicas, como meninos

ou meninas. Ser menina, para algumas dessa turma, era ser bonita, ter cabelos

compridos e ser atraente, funções de uma menina/mulher que vão sendo

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internalizadas, mesmo que, inicialmente, o outro da relação, o menino, não lhe

responda da forma esperada. Afirma Góes (2000, p. 22):

“[...] longe de ser uma cópia do plano externo, o funcionamento interno resulta de uma apropriação das formas de ação, que é dependente tanto de estratégias e conhecimentos dominados pelo sujeito quanto de ocorrências no contexto interativo”.

Na relação com os meninos, constatamos que elas também se apropriavam de um

determinado modo de ser menina/mulher. Nem sempre o desfecho de um episódio

envolvendo meninas e meninos era semelhante ao que ocorreu nessa situação

descrita. Às vezes as meninas demonstravam ficar irritadas com os meninos e

corriam atrás deles.

O tipo de relação entre as meninas do grupo 1 (Aline, Lúcia, Amanda e Janaína) e

os meninos do grupo 5 (André, Cláudio, Douglas, Elvis e Rodrigo) apresentava

indícios de um processo inicial de apropriação dos jogos de sedução presentes entre

homens e mulheres em nossa sociedade.

Além dos meninos, outros participam na constituição do ser menina. Como somos

um emaranhado de relações, é-se menina também na relação com outras meninas.

A imagem e a beleza eram importantes para algumas meninas do Jardim II. Era

comum vê-las pegarem lápis de cor, giz de cera e pincel e transformá-los, por

exemplo, em batons, rímel, lápis para contorno do olho. Em suas falas, algumas

mostravam qual era o padrão aceitável de beleza, pois ser gorda e não ter os

cabelos compridos e de fácil manuseio era motivo de ofensa em momentos de

brigas.4

Como já foi mencionado, percebia-se a formação de diferentes subgrupos, entre as

meninas. O grupo formado por Aline Marina, Lúcia, Janaína, Letícia e Larissa

destacava-se por coeso. Era mais constante o encontro dessas meninas e, quando

uma decidia não querer participar mais de determinada brincadeira, todas também

4 Mariana era constantemente chamada de gorda pelos seus colegas em momentos de brigas. Em um dos episódios, ela e Lúcia estavam em frente ao espelho brigando, apertando os olhos, mexendo nos cabelos. Lúcia chama Mariana de gorda e esta respondeu que ela era uma idiota. Durante a pesquisa, foram seis episódios, do total de trinta e dois, em que outro colega chamou Mariana de gorda. Como mostramos em outro episódio, Mariana não gostava de que a chamassem assim, pois ser chamada de gorda para ela era uma ofensa.

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mudavam para outra atividade lúdica. A característica marcante desse grupo é a

preocupação com a beleza; o ponto de encontro delas era em frente ao espelho,

onde se olhavam, mexiam nos cabelos, conversavam como se quisessem ver as

suas expressões refletidas. Mostrar para as colegas que tinham a sandália da

propaganda, o batom e a roupa mais bonita era importante para essas meninas.

Em outro grupo, também existia uma disputa pelo poder entre Aline, Mariana, Lúcia

e Janaína. Elas disputavam a atenção das colegas e a liderança do grupo. Diante

disso, eram constantes as intrigas e as brigas entre elas. Ofendiam-se uma às

outras; chamando-se de gorda, idiota e feia. Costumavam brincar com bonecas que

traziam de casa. Certa vez, quando Janaína trouxe uma boneca mais velha, com

roupas feitas pela sua mãe, Lúcia quis vê-la e disse que era linda. Quando Janaína

saiu de perto, ela debochou da colega dizendo às outras que a boneca era feia.

As relações de poder que envolvem a relação entre as meninas apresentam-se

como um reflexo de relações instauradas na própria sociedade em que elas vivem. É

algo desencadeado em rede, que começa quando se impõem às crianças padrões a

serem assumidos. Esse modo de se relacionar com o poder atinge a todas as

crianças, mesmo aquelas que em um dado momento estão em posição de

submissão ao outro. Muitas vezes vi Mariana, que freqüentemente era chamada de

gorda e era submetida ao poder das outras colegas, exercer certo poder e submetê-

las aos seus caprichos, escolhendo inclusive ela com quem iria brincar, quando

possuía um objeto desejado por essas colegas.

Dessa forma, o poder exercido pelas meninas não é um poder localizado, pois traz

as marcas da sociedade de consumo, tornando-se um poder em rede, atravessado

pelas relações sociais mais amplas.

O que dizer da família nesse emaranhado de relações? O que é ser menina em

relação à família? Wallon (1980, p.167) ressalta a importância da família como

primeiro grupo a que a criança vai pertencer. Esse meio “[...] onde a criança vive e

os que ambiciona são o molde que dá cunho à sua pessoa”.

Durante o período em que estivemos na escola, acompanhamos a chegada e a

saída das crianças com suas famílias. Os pais não podiam ir até as salas levar seus

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filhos, então deixavam-nos no refeitório, onde iam buscá-los na hora da saída. As

observações desses momentos indicam-nos o que é ser menina na relação com

suas famílias.

Tanto Lúcia quanto Aline eram alunas muito preocupadas com a beleza e a forma

como estão vestidas. Aline tinha posturas muito parecidas com as de uma mulher

adulta, na sua forma de falar e andar. Tentando entender a apropriação desse modo

de ser por parte de Aline, voltamos o nosso olhar para sua família. Descobrimos que

a menina não morava com o pai, só com a mãe, os tios adolescentes e os avôs. A

mãe de Aline ia buscá-la sempre usando short e top. Tinha os cabelos compridos e

aparentava ser nova.

A mãe de Lúcia também parecia ser muito vaidosa. Tinha cabelos compridos e bem

cuidados. Ia buscar a filha de carro, sempre bem arrumada, de saia e sandálias de

salto, diferente das outras mães, que vinham de chinelo, como se estivessem

trabalhando em casa e tirassem um tempo para levar ou buscar seus filhos.

Tanto a mídia como as famílias contribuem para a constituição de um determinado

modo de ser menina. As meninas aprendem que ser mulher é preocupar-se com a

beleza e ter namorado. A mídia auxilia nessa constituição quando impõe padrões de

beleza e certos hábitos de consumo.

Outro aspecto da relação tecida entre meninos e meninas da turma do Jardim II e

que atravessava o ser menina era o papel de servir ao menino. Uma das alunas em

especial, Aline, dizia constantemente que era namorada de Cláudio e tinha atitudes

de cuidado para com ele. Quando ele não conseguia fazer a tarefa, ela ia ajudá-lo,

elogiava-o, sempre chamava-o de bonito e levava a mochila dele na hora da saída.

Cláudio algumas vezes correspondia, agradecendo ou sorrindo para Aline,

entretanto, quando os colegas falavam que eles eram namorados, Cláudio não

gostava e negava ser namorado de Aline, que, por sua vez, ficava triste e até

chorava.

Em uma dessas situações, quando todas as crianças estavam envolvidas na

brincadeira da “galinha do vizinho”, a professora anunciou que estava na hora de ir

embora. Rapidamente, Aline correu para sala e pegou a sua mochila e a de Cláudio.

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A professora brigou com ela, pois não deveria ter-se adiantado. Quando Aline

entregou a mochila para Cláudio, este falou em um tom bravo que não tinha pedido

nada a ela. Aline começou a chorar e a professora disse que ele não precisava ter

falado assim.

O que podemos observar nessas relações tecidas entre meninos e meninas? Ser

menina/mulher também é agradar o menino/homem. Nós nos construímos através

dos outros e das relações estabelecidas pela nossa cultura. Ser mulher em nossa

sociedade também se configura a partir do cuidado com o outro, namorado ou

marido. Historicamente, as atribuições da mulher envolvem cuidar da casa, dos

filhos e do marido. Aline via Cláudio como um namorado e se colocava diante dele

como aquela que cuida, que serve, mesmo sendo censurada de vez em quando por

isso.

Voltando o nosso olhar para a família de Aline, percebemos serem constantes os

comentários sobre o fato de sua mãe namorar, já que estava separada do marido.

Ela nos contava dos passeios que faziam juntos, como ir à pizzaria e a lanchonete,

por exemplo.

Para Cipollone (2003, p.33) a menina em especial recebe uma educação mais “[...]

para fazer-se desejar do que para desejar, para usar a sedução como instrumento

para ser, para suprir o que falta com disponibilidade e paciência”.

Aline estava aprendendo que ser menina/mulher é cuidar do menino/homem,

agradando-o, sendo sempre gentil. Certa vez, percebemos que ela estava triste em

um canto da sala. Ao ser indagada sobre o motivo da tristeza, ela respondeu que era

porque seu namorado não tinha ido à aula.

Entretanto, não era só Aline que se mostrava interessada por Cláudio. Ele era

considerado o aluno mais bonito pelas meninas. Em um dos episódios, a professora

veio até a rodinha com um saco de plástico cheio de brinquedos mandados pela

mãe de Cláudio. Todos aqueles brinquedos que estavam com ele foram dados por

colegas da sala e a mãe não queria que ele ficasse com nenhum deles. A professora

mostrava os brinquedos perguntando quem havia dado. Quase todas as meninas se

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levantaram e foram buscar o que haviam dado ao aluno. Todos os presentes eram

usados: bolinhas de gude, carrinhos e bonequinhos.

Mas por que Cláudio era o escolhido? Ele era um menino muito ativo, considerado

“levado” pela professora. Gostava de correr, jogar futebol e era “popular” entre os

meninos e as meninas.

Cipollone (2003, p.33) mostra que essas situações de amores, amizades e troca de

presentes fazem parte do contexto da Educação Infantil e participam da constituição

do eu, incluindo entre elas:

Ciúmes e rivalidades, sorrisos, olhares, silêncios, emoções que se transformam em sentimentos; não mais, portanto, reações instantâneas e diretas, mas uma progressiva interiorização que progredirá com o progredir das capacidades de representação mental.

Embora a preocupação com os atributos físicos, com a beleza, com a admiração dos

outros (geralmente dos meninos) e com “namoros, bem como com a liderança do

grupo atravessasse de forma recorrente o ser menina nessa turma, outros aspectos

se ressaltaram quando voltamos nosso olhar para outros agrupamentos de meninas.

O outro grupo de meninas era formado por Karla, Paula, Raquel, Ana Carolina e

Bianca. Esse agrupamento era mais flexível nas relações. Elas não se preocupavam

tanto com os atributos físicos. Também traziam batons para se maquiar, mas

envolviam-se mais com as brincadeiras de casinha. Essas brincadeiras, além do

fantoche e dos jogos matemáticos em sala também incluíam os meninos.

A relação era diferente da do outro grupo de meninas que interagiam com os

meninos mais com a preocupação de ser admiradas e consideradas bonitas por

eles.

Eram constantemente chamadas pela professora de “boas meninas”. Só entravam

em conflito com os colegas quando alguém as machucava ou atrapalhava suas

brincadeiras. Eram meninas que dividiam o seu material com colegas, e quando

solicitadas pela professora ou pelos colegas, ajudavam-nos. Bianca, Ana Carolina,

Paula e Karla gostavam de brincar com as crianças do berçário. No momento do

lanche, cuidavam para que não caíssem e os auxiliavam na alimentação.

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3.2.3 As meninas e os conflitos

Uma característica marcante da interação entre os grupos ou mesmo das relações

entre os membros de um mesmo grupo eram os conflitos. Havia situações de conflito

entre meninos e meninas, entre as meninas e entre os meninos. Segundo Oliveira

(2002, p.136),

[...] formas concretas de organização das atividades humanas em um meio sociocultural específico geram normas, regras e valores sempre potencialmente conflituosos e confrontantes, podendo ser confirmados, desaparecer ou diversificar-se.

Como afirma a autora, a apropriação de regras e valores determinada por um meio

sociocultural é potencialmente conflituosa. Nem toda interação é harmoniosa,

contudo é importante deixar claro qual o conceito de conflito apresentado nesta

pesquisa. Acreditamos ser o conflito

[...] necessário à vida, inerente e constitutivo, tanto da vida psíquica, como da dinâmica social. Sua ausência indica apatia, total submissão e, no limite, remete à morte. Sua não explicitação pode levar a violência. [...] O conflito é a sociedade em movimento (GALVÃO, 2004, p.15).

Dessa forma, o conflito passa a ser parte integrante da interação e do processo de

constituição do eu, pois, em um local onde se encontram indivíduos diversos, com

valores e referências culturais distintas, ele se torna inevitável.

O conflito no desenvolvimento do eu é ressaltado nos estudos de Wallon. Na

diferenciação eu-outro, o conflito evidencia-se na afirmação do próprio eu. Wallon

ressalta, que por volta dos três anos, “[...] a pessoa entra num período em que a sua

necessidade de afirmar, de conquistar a sua autonomia, lhe vai causar, de início

uma série de conflitos”. (WALLON,1995, p.203)

Esses conflitos podem ser acompanhados de perto pelos educadores da Educação

Infantil, pois a criança se opõe a tudo o que é do outro. Para Galvão (1995, p.55),

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os conflitos são “[...] a expulsão e a incorporação do outro, são movimentos

complementares e alternantes do processo de formação do eu”.

Durante toda a vida, passamos por momento de conflito com o outro, pois “o

fantasma do outro” nos acompanha, mesmo que não estejamos em interação face a

face. Os conflitos também aparecem no plano intrapsíquico, constituindo-nos,

agregando valores, crenças, formas de pensar ou rejeição. No plano psicológico,

não deve ser visto como destruidor, mas como renovador, porque a cada dia nos

(re)constituímos.

Dessa forma, tentando entender a constituição do eu da criança, elegemos como

categoria de análise também o conflito por constatar que ele esteve presente em

diversos momentos, marcando as interações. Classificamos alguns conflitos

existentes na turma analisada: os que aconteciam entre meninos, entre meninos e

meninas e entre meninas.

Os conflitos entre as meninas, em sua maioria, estavam relacionados ao controle

das brincadeiras. Lúcia era a criança que mais se destacava em querer ocupar o

espaço de líder. Numa cena em que outra colega tinha a posse do jogo e a

autorização da professora para brincar, Lúcia irritou-se e rasgou o jogo.

A professora entrega o jogo de bingo para Paula. É ela quem vai cantar o bingo. Ela

se senta no cantinho da sala e Raquel, Leticia e André pedem para brincar. Ela

entrega uma fichinha para cada um. Como vai cantar o bingo, senta-se numa

cadeira enquanto os colegas se sentam no chão. Lúcia se aproxima e diz:

- Quero jogar! (Pegando as fichas da mão de Paula).

Paula diz:

- Pára Lúcia! Eu vou te dar.

Paula começa a puxar as fichas. Lúcia pega uma delas, rasga e joga em cima de

Paula. Paula começa a chorar e as crianças chamam a professora para ver o que

aconteceu. A professora olha para Lúcia e diz:

- Eu dei o joguinho para Paula! Ela é que deveria ficar responsável pelo jogo; você

não tinha nada que rasgar.

Lúcia encosta-se na parede e não fala nada. A professora diz:

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- Agora você vai ter de consertar. E coloca a ficha na mão de Lúcia, que fica

tentando juntar. Depois de alguns segundos, a professora pega e diz:

- Não quero ver você fazer isso novamente. (Diário de campo, 16 de novembro).

Paula era constantemente solicitada pelas colegas para brincar e parecia não se

importar com a disputa pela liderança nas brincadeiras de beleza. Entretanto

gostava muito dos jogos matemáticos e sempre que podia pedia à professora o

bingo. Nessa cena, ela ficou nervosa ao ver Lúcia rasgar a ficha e se preocupou

com o que a professora iria falar, pois havia confiado a ela o brinquedo. Lúcia

pareceu irritar-se por não liderar a brincadeira, não aceitou receber de Paula a ficha

e acabou rasgando-a.

Os conflitos entre as meninas eram mais constantes na disputa pela liderança e na

diferenciação entre elas. Além de evidenciarem um movimento em direção a uma

afirmação do eu, apontavam, também, uma busca pelo poder, por meio da liderança

no grupo. Algumas meninas sempre procuravam definir as ações, as formas de agir

do grupo: queriam que todos os colegas as admirassem, tentavam determinar o tipo

de relação que umas tinham com as outras, queriam definir quem deveria ser amiga

de quem, tentavam escolher as brincadeiras, entre outras.

As questões de liderança e de poder nas relações entre meninas não têm sido

enfocadas em pesquisas sobre crianças na Educação Infantil. A presente

investigação evidencia a necessidade de realização de novos estudos sobre o tema.

Constatamos também, entre as meninas, conflitos pela posse de objetos. Mais uma

vez a preocupação com aspectos referentes ao corpo e à imagem de menina

valorizada nessa turma se destacou: as meninas disputavam objetos utilizados para

maquiagem. Em um dos episódios,o conflito instaurou-se é em torno da posse do

batom.

Lúcia, Mariana, Janaína, Letícia, Karla e Raquel estão na frente do espelho

passando batom. Elas passam batom, mexem no cabelo. O batom é de Karla.

Janaína chama Karla e Raquel. Elas combinam algo e voltam com os dedos

indicadores levantados, pedindo a Lúcia, Mariana e Larissa para os cortarem. Lúcia

vira o rosto e mesmo assim Janaína passa os dedos no braço de Lúcia. E diz:

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- Vocês não vão mais passar o batom. Não somos mais sua amiga.

Lúcia fala:

- Não quero passar esse batom horroroso.

Lúcia empurra Raquel, e as meninas vão falar com a professora. (Diário de campo,

27 de novembro).

Nesse episódio, quem tinha o batom nas mãos era quem mandava. Apesar de o

batom ser de Karla, era Janaína que dizia quem podia ou não usar o batom e

excluía Lúcia, Mariana e Letícia da brincadeira. Lúcia e Mariana, sempre que tinham

a posse de algum brinquedo, também escolhiam o colega com quem iam brincar, e

Karla muitas vezes ficava de fora. Karla parecia concordar com a idéia de Janaína

de não deixar as colegas brincarem com o seu batom e apoiava a sua atitude ao unir

os dedos indicadores e pedir às meninas que o cortassem. Entretanto Lúcia não

aceitava ser excluída e justificava o fato dizendo que não ia brincar mais, pois o

batom era horrível.

Em outra cena muito parecida, foi Mariana quem pediu para “cortar” e ficou rindo das

colegas que passavam o batom de Karla. Mais uma vez, as meninas pareciam

disputar a liderança da brincadeira e tentavam inferiorizar quem estava com o

batom.

Galvão (1998) analisa os conflitos gerados pela posse de um objeto entre crianças

de três a quatro anos. Nessa análise, ela observa que a disputa é gerada pela

limitação dos objetos na sala de aula e pela busca da criança na diferenciação do

eu. O objeto que está com o outro é desejado pelo “eu”. Dessa forma, ter o batom

seria ser mais menina/mulher, pois para acompanhar práticas de outras mulheres e

até mesmo a mídia, passar batom é muito importante: “[...] o objeto e a pessoa que o

detém seriam vistos como entidades fundidas” (GALVÃO, 1998, p. 164). A posse do

objeto poderia fazer com que a menina/mulher se diferenciasse do outrocomo mais

bonita.

No início da pesquisa, a professora falou à pesquisadora sobre a presença de

conflitos entre as meninas. Algumas vezes ela tentava ameniza-los com conversas,

mas havia momentos em que ela desistia de ter essa conversa com as meninas.

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Ao analisarmos o ser menina na turma do Jardim II, percebemos que não há uma

uniformização nos modos de ser. Embora ressaltemos um grupo de meninas que se

preocupava em ter os cabelos compridos, em ser magra, em ter namorado e ser

admiradas pelos meninos, esses não eram os únicos modos de ser menina

presentes nessa sala. Encontramos também meninas que evidenciavam a

apropriação de outros modos de ser e de se relacionar com os colegas. Apesar de

acreditarmos em uma constituição embasada na cultura e na história, cada um

construirá a si mesmo de maneira particular e singular. Segundo Charlot (1996, p.

9), “[...] nossa história escolar, aliás, nossa história como um todo, é cem por cento

social, pois, se não fôssemos socializados, não seríamos humanos. Mas ela é ao

mesmo tempo cem por cento singular, pois minha história é diferente.”

Dessa forma, considerar todas as meninas como iguais seria negar a singularidade

e a história de cada criança. No entanto, entre as meninas percebia-se a formação

de dois grupos, definidos pelas afinidades entre elas. Isso não quer dizer que eram

fechados e que não houvesse um livre acesso entre os grupos, como, por exemplo,

quando uma menina se cansava de brincar na frente do espelho maquiando-se e ia

juntar-se às outras que estavam a brincar de casinha.

Atualmente, os estudos sobre o gênero têm apontado para a perspectiva de

analisarmos o ser menina na relação com o ser menino. Após analisarmos os modos

de ser menina na turma do Jardim II, vem-nos a pergunta sobre o que é ser menino

nesse espaço? Que papel os meninos do Jardim II assumem na relação com as

meninas e com outros colegas? Qual o seu lugar no jogo de sedução? De que

maneira a família participa na constituição do ser menino entre essas crianças?

3.2.3 MENINO PODE BRINCAR DE CASINHA? – SER MENINO NA TURMA DO

JARDIM II

Há um menino

Há um moleque

Page 106: INTRA, Zínia Fraga. a Constituição Do _eu_ Entre Crianças Na Educação Infantil. Diferentes Modos de Ser Menina e de Ser Menino.

Morando sempre no

meu coração

Toda vez que o

adulto balança

Ele vem pra me dar

a mão.

Milton Nascimento

Nos estudos sobre gênero, é comum encontramos análises só sobre as meninas/

mulheres. Nessa trama de relações, a história nos mostra que, durante muito tempo

e em alguns casos, até hoje a mulher teve sua história e participação negada na

vida social. Dessa forma, alguns estudos sobre gênero priorizam o estudo da

menina/mulher e as marcas deixadas por anos de submissão. Entendendo que a

sociedade é dominada pelo universo masculino, não em termos de quantidade, mas

em relação à marca cultural e social, esses estudos percebem ainda fortemente

sinais dessa submissão.

Os poucos trabalhos identificados por nós, que estudam o universo masculino na

escola (CARVALHO, 2004; SAYÃO, 2002; E SANTOS, 2004) indicam duas

vertentes: a primeira, que acentua a passividade feminina e a agressividade

masculina, e a mais recente, que vê os meninos como prejudicados pelo predomínio

do feminino nesse espaço. Entretanto esses estudos procuram distanciar-se de uma

perspectiva que cristaliza formas de ser menino e buscam no contexto de cada

escola a resposta para essas diferentes formas.

Santos (2004) pesquisou o porquê do fracasso dos meninos em contraposição ao

das meninas nas escolas de ensino fundamental. Tentando fugir das estereotipias e

buscando analisar esse desempenho através das múltiplas relações tecidas no

contexto escolar, a autora observa que nesse contexto há varias formas de ser

menino e que elas vão sendo constituídas nos diversos espaços em que as crianças

circulam. A autora percebe que a escola valoriza o bom aluno, ou seja, aquele que

segue os padrões, e que alguns meninos assumem posturas antiescola, como a

agressividade, a valorização dos esportes em detrimento de outras disciplinas

escolares. Para Santos, os alunos que têm um bom rendimento apresentam

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posturas mais compatíveis com as normas da escola, e suas famílias têm uma boa

relação com a instituição.

Ao finalizar, a autora sugere a possibilidade de múltiplas formas de ser menino e de

ser menina, que não precisam necessariamente corresponder aos modelos de

menina quieta e passiva e de menino pertubador.

Com base nesses estudos, pretendemos analisar as histórias singulares dos

meninos do Jardim II, observando as relações tecidas no ambiente escolar.

Entedemos que os meninos também precisam ter sua história contada até mesmo

para compreendermos as marcas deixadas por essa história nessa constituição.

O que era ser menino na turma do Jardim II? Quais eram as características desse

ser menino? Que atitudes um menino podia ou deveria ter?

Entre os meninos, observava-se uma preocupação em não participar de atividades

ou brincadeiras consideradas “de meninas”. No episódio descrito a seguir,

constatamos que Pedro parecia estar gostando de brincar de casinha com algumas

meninas, entretanto, ao perceber que estava sendo observado pela professora e

pela pesquisadora, sentiu necessidade de se justificar:

As crianças estão brincando na sala, a pesquisadora e a professora estão em uma

mesinha próximas a algumas crianças que estão brincando de casinha. Neste grupo

estão Paula, Raquel, Ana Carolina, Bianca e Pedro. Na brincadeira, Paula, Raquel e

Ana Carolina estão visitando a casa de Bianca e Pedro. A pesquisadora e a

professora estavam observando essa cena e quando Pedro percebe, olha para a

pesquisadora e a professora e diz:

- Eu tô brincando aqui, mas eu sou o pai! (Diário de campo, 10 de outubro).

Pedro foi o único a dizer qual era o seu papel na brincadeira, as meninas não

precisaram justificar-se. A brincadeira de casinha era aceitável para a menina. São

poucos os meninos que brincam de casinha; dos onze meninos da turma do Jardim

II, apenas três: Pedro, Mateus e Luiz Paulo. Observamos que esses meninos se

dispunham a brincar de casinha. Outros papéis também eram assumidos por eles,

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como o de garçom na festinha para as bonecas. Apenas uma vez é que um menino,

o Mateus, se propôs ser o filho na brincadeira.

Diferente da análise do ser menina nessa turma, em que observamos as

características que mais se destacavam, investigar aspectos referentes ao ser

menino pareceu-nos pertinente enfocar o que menos sobressaía. Esse caminho

revelou-nos algo interessante: o motivo pelo qual os meninos não podiam, ou não

queriam participar das brincadeiras ditas de “meninas”.

A análise dos sentidos que atravessavam o enunciado de Pedro quando dizia: “Eu tô

brincando aqui, mas eu sou o pai” mostra-nos que ele queria dizer: “Eu estou aqui,

mas sou um menino”. Apesar de assumir um papel considerado masculino na

brincadeira, Pedro sentia necessidade de justificar para os adultos a sua

participação nessa atividade lúdica.

Para as meninas, brincar de casinha é considerado um ato “natural”, pois assumem

papéis, como o de mãe, daquela que cuida da casa e zela por ela. Entretanto, se

considerarmos que os meninos, provavelmente, também podem ser pais e

assumirão responsabilidades assim como as meninas, deveria também ser “natural”

que meninos experimentassem esse papel nas brincadeiras de casinha.

Durante toda a nossa vida, vamos assumindo vários papéis e posições5 no nosso

drama particular e assim vamos nos constituindo. Ao vivermos certas situações em

uma relação, temos a possibilidade de experimentar outros modos de ser, que são

papéis ou posições e não essências (OLIVEIRA, 2004).

Talvez venha daí o preconceito de meninos quando entram em brincadeiras ditas

“femininas”. Acredita-se em uma essência feminina e outra masculina. Entretanto,

nos esquecemos de que a variedade de situações vivenciadas pelas crianças

proporcionará um enriquecimento na constituição do sujeito.

5 Oliveira (2004) faz aproximações entre o termo jogo de papéis e a teoria do posicionamento. A noção de papel surge na obra de Vigotski. Outros autores, como Wallon e Bakthin também auxiliam na compreensão desse conceito. A teoria do posicionamento surge da produção de Harreé, Davies, Langenhove e Gillet. Para a autora, há aproximações teóricas importantes, e a teoria do posicionamento vem ampliar o conceito de jogos de papéis.

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Além de não poderem/deverem brincar de casinha, meninos também não

podem/devem dançar. Assim, a recusa de meninos em participar de uma atividade

que envolve dança revela as marcas culturais presentes no universo masculino.

Para algumas pessoas, meninos não podem dançar, pois essa atividade é

considerada feminina.

Na rodinha, as crianças cantam e dançam alegremente. A professora faz gestos e

eles prestam atenção para fazer igual. Em uma determinada música, pede para as

crianças rebolarem. Alguns meninos dançam: Luiz Paulo, Mateus, e Pedro. Elvis

observa com certo ar de desprezo, como se não se importasse com a dança, mas

em alguns momentos balança os braços e canta também. Douglas nem olha para os

colegas dançando. Percebendo que alguns meninos não querem participar, a

professora diz:

- Homem também rebola, olha só o Pedro e o Luiz Paulo (Diário de Campo, 21 de

novembro).

Apesar da tentativa da professora para que os outros meninos também dançassem,

mostrando que há outros que também dançam, é difícil combater padrões traçados

pela idéia de gênero, como, por exemplo, aquilo é de menina e isso é de menino.

Apesar de Elvis demonstrar certo interesse e até ensaiar algum tipo de movimento,

os olhares dos outros colegas não permitiam que ele “rebolasse”.

Pesquisas como a de Finco (2004), que tratam de comportamentos e comentários

das crianças a respeito de os meninos não poderem dançar ou se envolver em

brincadeiras de casinha, mostram os valores embutidos pelos adultos. Para essa

autora, quando os meninos se negam a brincar de casinha ou a dançar, estão

demonstrando que se apropriam de valores que lhes foram repassados. Para Finco,

crenças, como “homem não rebola”, vão moldando comportamentos que, ao longo

do tempo, se tornam cristalizados. Segundo a autora, em nossa sociedade a

masculinidade está marcada

[...] basicamente na coragem física, no trabalho, na perseverança, na competitividade e no sucesso, elementos que expressam como os mais importantes para a constituição da masculinidade considerada hegemônica: a coragem, diretamente relacionada à força física, à energia, à ousadia, à virilidade (FINCO, 2004, p. 103).

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Como já foi dito, poucos eram os meninos que conseguiam quebrar esses padrões e

brincaram com as meninas. Eles não chegavam a assumir papéis femininos, mas

lidavam muito bem com brincadeiras que os outros meninos não gostavam de

partilhar com as meninas. Os meninos que se permitiam participar das brincadeiras

ditas “femininas” eram Alex, Luiz Paulo, Yan, Mateus e Pedro. Buscando elementos

para entender a flexibilidade desses meninos, que brincavam tanto com meninas

quanto com meninos, encontramo-los nas características de suas famílias, o

primeiro grupo em que essas crianças foram inseridas.

Pedro era uma criança que gostava muito de atividades relacionadas ao teatro, à

brincadeira de fantoches. Em uma conversa com a mãe dele, a professora comentou

sobre essas características de Pedro. A mãe disse que incentiva essas atividades e

que, quando podia, sempre comprava fantoches, microfones de brinquedo. Pedro é

filho único de um casal que aparenta ter mais de quarenta anos. Ele gostava muito

de conversar com os colegas e dos jogos de faz-de-conta.

Outra criança que também se destacava pela flexibilidade nas brincadeiras era Luiz

Paulo. Ele vivia com sua mãe e os avós. Demonstrava muito carinho pela mãe

quando ela ia buscá-lo. Em uma reunião de pais, a professora destacou essa

característica de Luiz Paulo. A mãe disse que ele a ajudava bastante em casa, nos

afazeres domésticos, e que costumava comentar com ele que os dois tinham que

zelar pela casa.

Assim como no caso das meninas, existiam dois agrupamentos diferentes no grupo

dos meninos. O grupo dos citados acima tinha livre acesso às brincadeiras de

casinha e fantoche e costumava brincar com jogos matemáticos junto com as

meninas. A presença deles não era impedida por elas. Era constante dizerem que

eles podiam participar. Entretanto, esses meninos não tomavam parte nas

brincadeiras de “maquiagem”.

O outro grupo de meninos, formado por André, Cláudio, Rodrigo, Douglas e Elvis,

não participava dessas atividades. Gostava mais de correr, jogar futebol e brincar

com os pinos da sala, transformando-os em armas de brinquedo. Os dois grupos

pouco se reuniam, somente quando a professora propunha jogos coletivos, como os

jogos matemáticos.

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Os meninos do segundo grupo não participavam das brincadeiras com as meninas.

Pareciam gostar de implicar com aquelas que mais se preocupavam com a beleza,

chamando-as de feias e denunciavam à professora as brigas entre elas ou algo que

estivessem fazendo escondido.

Ao pensarmos essas relações, tendemos a imaginar, à primeira vista, que elas não

são significativas para a constituição de meninas e meninos. Parece não haver

diálogo ou partilha entre eles e elas. Entretanto, o referencial adotado neste estudo

leva-nos a considerar que há interação e que esse modo de relação também

participa da constituição do eu dessas crianças. Embora não brinquem com as

meninas, esses meninos interagem com elas quando as provocam e se divertem ao

vê-las irritadas. Seria esse um tipo de relação possível em um contexto que parece

distinguir tão fortemente papéis e ações para meninos/homens e meninas/mulheres?

Três desses meninos eram admirados pelas meninas, que constantemente os

chamavam de “bonitos”. Um deles, o Cláudio, era considerado o namorado de uma

delas. Mas por que estes meninos eram admirados pelas meninas? Em um dos

episódios, Lúcia, Janaína, Mariana e Aline estavam brincando de fazer bolo, que

seria para os meninos mais bonitos da sala.

Lúcia, Janaína, Mariana e Aline brincam de fazer bolo com a areia do parquinho. A

pesquisadora pergunta:

- Para quem será a festa?

Mariana responde:

- Vai ser para o Elvis.

Pesquisadora:

Mas por que para o Elvis?

Mariana:

- É porque ele é bonito!

Aline também diz:

- Mas não é só ele não, o Cláudio também é bonito e gostosão!

(Diário de campo, 8 de novembro)

Nesse episódio, as meninas indicavam quais os meninos que consideravam bonitos.

Em outros episódios, elas também fizeram isso. Quais eram as características

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desses meninos? Eram considerados “levados” pela professora, pois sempre

estavam correndo e algumas vezes desobedeciam às suas ordens. Como eles

reagiam a esse comportamento das meninas? Não percebemos entre os meninos

interesse em agradar às meninas. Pareciam estar mais interessados em implicar

com elas, chamando-as de gordas ou feias. Riam das respostas que elas davam

com cara feia.

Analisando o contexto familiar dos meninos considerados “bonitos”, percebemos que

tanto o Cláudio quanto o Elvis têm uma educação severa em casa por parte de suas

mães. A mãe de Elvis comentou que hoje estava bem mais calma com ele, não batia

mais, tentava conversar. Ela disse que Elvis era o mais levado dos seus quatro

filhos. A mãe de Cláudio também era muito rígida com ele. Na reunião de pais,

queria sempre saber se tinha feito algo de errado, para que pudesse corrigi-lo em

casa. A professora comentou que ele era muito admirado pelas meninas e a mãe

disse que não gostava disso, pois podia atrapalhar seus estudos.

Os meninos mais admirados da turma tinham uma educação familiar rígida, pois

“eram meninos”!

Em nossa sociedade, os meninos/homens têm que ser fortes e até mesmo

autoritários. Apesar de essa postura estar mudando, percebemos que em alguns

casos tal educação permanece. Diferente dos outros meninos que eram flexíveis

nas brincadeiras, esses meninos não se envolviam em brincadeiras com meninas, a

não ser nos jogos de “pique-pega”.

Entretanto, nenhum dos meninos ficava tanto tempo na frente do espelho como as

meninas, que iam se arrumar, passar batom e cantar. Já as meninas, umas mais e

outras menos, sempre passavam por lá e de alguma forma se arrumavam para ficar

“bonitas”.

A via de análise pelo gênero mostra-nos uma riqueza de momentos em que

podemos perceber a constituição do sujeito menina e menino, suas concepções e

valores, a primeira característica que lhes foi dada ao nascer. Tudo gira em torno do

gênero: as roupas do enxoval, os primeiros brinquedos, a forma como devem

comportar-se e as atividades que podem fazer. Isso vai constituindo a subjetividade

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de cada um de uma forma marcante e única, em uma cultura massificadora em que

se diz que meninos têm que ser de um jeito e meninas de outro.

Segundo Sayão (2002, p. 6) encontramos no Brasil

[...] uma rica diversidade cultural, e os papéis de homens e mulheres evidenciam isso, ou seja, há diferentes formas de ser mulher e ser homem em nossa sociedade, que expressam, por exemplo, na dança, na música, no trabalho doméstico e extradoméstico, nos gestos, no meio rural ou do meio urbano, e, no caso das crianças, nas brincadeiras, principalmente.

Dessa forma, devemos ter claro que não somos naturalmente meninos/homens e

meninas mulheres, que nos construímos a partir de características adquiridas

culturalmente e que cada sociedade vai ter uma forma diferente de significar seus

sujeitos. Não podemos dizer que as características analisadas aqui são as mesmas

para todas as crianças. Há diferentes formas de expressar culturalmente e

historicamente o ser menina e o ser menino.

3.2.4 OS MENINOS E OS CONFLITOS

Ao discutirmos os conflitos na constituição das meninas turma do Jardim II,

constatamos que esses conflitos emergiam principalmente em situações de busca

da liderança do grupo. Entre os meninos, não percebemos uma preocupação tão

acentuada com a liderança do grupo e o poder.

Os conflitos geralmente aconteciam nas situações de brincadeira e envolviam os

meninos do grupo 5 (André, Cláudio, Douglas, Elvis, Rodrigo) e do grupo 6 (Alex,

Luiz Paulo, Mateus, Paulo Ricardo, Pedro, Yan). Os meninos do primeiro grupo

gostavam de brincar mais de futebol e de simular lutas com armas, enquanto os do

segundo grupo preferiam brincar com jogos de montar, bingo, casinha, dominó e

teatro. Algumas vezes presenciamos situações de conflito envolvendo esses dois

grupos por conta da disputa pelo espaço.

Luiz Paulo, Pedro e Mateus estão em um canto da sala brincando com o quebra-

cabeça. Elvis passa correndo em cima das peças e logo depois Douglas também

passa. Luiz Paulo levanta e fala:

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- O’ tia, olha só. Eles pisaram na pecinha.

Elvis também fala:

- Ah! Eles ficam no caminho.

A professora olha para Elvis e diz:

- A sala não é lugar de correr! Eu já falei isso para vocês!

A professora continua a preparar o cartaz e Elvis volta para o cantinho onde estava

brincando com Douglas, enquanto os outros meninos continuam a montar o quebra-

cabeça. (Diário de campo, 5 de novembro).

O tipo de brincadeira escolhido pelos meninos gerou o conflito, pois uma brincadeira

atrapalhava a outra. Douglas e Elvis estavam brincando com armas montadas com

as peças da sala e se escondiam entre as mesas. Elvis começou a correr, simulando

uma perseguição e pisou no jogo dos meninos. Logo em seguida, Douglas fez o

mesmo. O conflito foi gerado pela falta de espaço para duas brincadeiras ao mesmo

tempo. Entretanto a intervenção da professora foi no sentido de mostrar apenas que

não havia espaço para brincadeira de correr.

Galvão (1998) mostra que esse tipo de conflito pode ser motivado pela ameaça à

integridade física e pela quebra de um “espaço afetivo” que é construído pelo outro.

Analisando a cena, percebemos que as duas possibilidades de conflito coexistiram,

pois Douglas e Elvis podiam machucar os colegas, ao invés de estragar o brinquedo.

Quando montamos um quebra-cabeça sabemos do cuidado e do tempo que

perdemos para que fique pronto. Por esse motivo, Luiz Paulo, Pedro e Mateus não

gostaram da atitude de Douglas e Elvis, apesar de não terem sido atingidos pela

correria dos colegas.

Outro motivo de conflito é a posse de brinquedos. No parquinho, era permitido

brincar de futebol, entretanto, quem chegasse primeiro tinha a posse da bola e o

direito de organizar o time. Algumas vezes presenciamos conflitos entre os meninos

das duas turmas do Jardim II. Em uma das cenas eles pediram a intervenção da

professora.

Cláudio chega com a bola na mão e os meninos que estavam com ele também se

aproximam da professora. Ele reclama que os alunos da outra turma querem tomar

a bola dele, não os deixando brincar. Cláudio já tinha montado o time em que todos

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os meninos eram da sua turma. A professora olha para os meninos da outra turma e

diz:

- Eles chegaram primeiro hoje; depois que eles brincarem um pouco mais, Cláudio

vai passar a bola para vocês.

Os meninos voltam a brincar e ficam constantemente perguntando se o tempo deles

acabou. (Diário de campo, 13 de novembro).

Nesse episódio, outras atitudes poderiam ter sido tomadas, como a mescla de

meninos no time. Entretanto, fazer isso geraria mais conflito, pois os meninos não

iam querer sair da brincadeira para dar a vez para o outro colega. Outra solução

talvez fosse mais bolas, para que pudessem formar mais times. Contudo,

percebíamos certa rivalidade entre os alunos das duas turmas: dificilmente eram

vistos brincando juntos e constantemente havia queixas dos meninos da sala

pesquisada de que os da outra turma estavam implicando com eles ou até mesmo

batendo neles.

No primeiro episódio, o conflito é marcado pelo espaço e pela diferença entre os

gostos na brincadeira. Generalizar que todos os meninos são iguais e que gostam

de brincar da mesma coisa é reduzir o universo infantil. Como já mencionamos, nas

relações de gênero identificamos dois agrupamentos entre os meninos e as

diferenças entre eles em suas brincadeiras geravam dispustas pelo espaço da sala.

No outro tipo de conflito, há uma afinidade na brincadeira: todos os meninos queriam

jogar futebol, porém, como as crianças eram de turmas diferentes e a escolha dos

membros do grupo, conforme ressaltam Carvalho e Rubiano (2004), se dá também

pela convivência, uma vez que quase não conviviam com as crianças da outra

turma, o que ocorria somente nos trinta minutos em que ficavam no parquinho, era

difícil aceitarem que outras crianças brincassem com eles.

Por sua vez, na relação entre meninos e meninas, a maioria dos conflitos ocorria

entre o grupo 5 (André, Cláudio, Douglas, Elvis, Rodrigo), que eram admirados pelas

meninas, e o grupo 1 (Aline, Lúcia, Amanda e Janaína), que gostavam de ser

admiradas.

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Conforme já comentamos, os conflitos geralmente emergiam quando os meninos

apresentavam algum tipo de comportamento que desagradava ou irritava as

meninas, como chamá-las de “feias”, contar para a professora algo de errado que

elas estivessem fazendo, por exemplo, molhar o cabelo, no banheiro. Presenciamos

mais situações de conflito entre meninos e meninas do que entre meninos.

Identificamos ainda conflitos entre a professora e os meninos que parecem

relevantes para aprofundarmos a reflexão sobre o ser menino nessa turma. Esses

conflitos ocorriam quase sempre por causa do barulho ou da bagunça que eles

causavam nos espaços. Após o lanche, as crianças sabiam que deveriam sentar-se

em fila e esperar a professora chamá-los para voltar à sala. As meninas sempre

faziam isso e ficavam brincando de “adoleta”; entretanto os meninos corriam pelo

espaço do refeitório, que era enorme, o que causava irritação na professora.

No refeitório, as crianças estão lanchando. A professora vê Elvis subindo no banco,

deixa o café que está tomando e vai em direção a ele, chamando-o. Entretanto, Elvis

parece não escutar, ou fingir não escutar, pois a professora está muito perto dele e

ele continua correndo.

A professora diz:

- Elvis! Eu estou falando com você!

Ele pára, olha para professora que pede que ele vá para a fila esperar a hora de

subir. Elvis obedece à professora. (Diário de campo, 13 de novembro).

Santos (2004), em sua pesquisa, constatou que a principal queixa dos professores

em relação aos meninos é a forma como estes se comportam diante das normas da

escola. A autora mostra que isso também acontece com as meninas, mas há maior

incidência com os meninos.

Geralmente os meninos que tentam subverter a ordem, não são bem vistos pela

escola e não têm um desempenho escolar aceitável. Elvis era um menino que não

conseguia concentrar-se por muito tempo nas atividades. Sempre que podia, estava

correndo ou convidando os colegas a correr. A professora contou-nos que ele era o

“terror” da escola, tanto que todos os funcionários o conheciam. Sua mãe já chegava

na escola perguntando o que Elvis tinha feito de errado naquele dia. A professora

tentava não reforçar essa imagem do aluno: mostrava à mãe que ele tinha

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qualidades. Luíza contou-nos que isso deu resultado e que Elvis estava bem melhor,

mas, como ela mesma disse, ainda havia um longo caminho a percorrer.

Santos (2004), também mostra em sua pesquisa que a escola muitas vezes rotula

os meninos como levados e agressivos e as meninas como boazinhas e pacientes.

Dessa forma, a escola nega a multiplicidade do ser menino, como se a

agressividade lhe fosse inerente.

Os conflitos gerados nas relações mostram-nos que há diferentes motivos para que

eles ocorram: a falta de espaço, a posse do brinquedo, a disputa pela liderança e a

organização da sala. As salas de Educação Infantil são permeadas de conflitos. Não

que isso seja necessariamente sinônimo de bagunça; pode também ser sinônimo de

construção, diferenciação e afirmação do eu entre as crianças.

Esses conflitos também vão permear as relações menino e menina, pois, no

processo de diferenciação do eu, há momentos de explosão, de surpresa, de choro e

de alegria, de presença e de ausência do outro. Aos poucos, o sujeito vai

posicionando-se em relação ao outro, que nunca vai abandoná-lo. Enfim, na

perspectiva walloniana, os conflitos fazem parte do processo de constituição do eu.

O que era importante para os meninos? Para alguns, era correr, brincar com armas

de brinquedo, jogar bola e manter uma relação de conflito com as meninas. Para

outros, era brincar de fantoche, de casinha, de jogos matemáticos e ter um bom

relacionamento com as meninas.

Assim como o modo de ser menina/mulher não é algo cristalizado, o mesmo

acontece com o menino/homem, que é constituído na sua relação com os meninos,

com as meninas, com a professora e a família.

Na turma do Jardim II, havia diferentes formas de ser menino. Alguns interagiam

mais com outros meninos, outros ampliavam suas possibilidades de constituição

interagindo e brincando também com as meninas. Alguns demonstravam não

conseguir uma mobilidade muito grande nos papéis que assumiam, de seu lugar de

meninos, outros haviam tido, até o momento, uma formação que lhes possibilitava

experimentar um universo talvez mais amplo e enriquecedor, que interferia na

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constituição de seus modos de ser. Do mesmo modo, encontramos em outras turmas

diferentes modos de ser menino. Ao rotulá-los como iguais, estamos negando a

história social e particular de cada um.

3.3 SER MENINO E SER MENINA: CONSTITUIÇÃO DO EU NA INFÂNCIA

As análises da constituição do eu das crianças do Jardim II apontam a relevância de

enfocar as relações de gênero nesse processo. Retomemos então a idéia de infância

e a perspectiva do desenvolvimento infantil que permeavam o nosso trabalho, para

assim termos a idéia do todo, pois, ao longo do trabalho, mostramos indícios daquilo

que seria a constituição do eu. De forma semelhante à de Morelli (1876), que, ao

analisar as obras de arte, observava detalhes que os outros especialistas ignoravam

para compreender a magnitude da pintura, ao longo das análises, procuramos

mostrar detalhes não de uma obra pronta e acabada, mas de um processo que está

a constituir-se e no qual a multiplicidade dos modos de ser delineia percursos e seres

singulares.

A infância e a sua pluralidade mostroram-nos uma rica fonte de observação. Assim,

em vez de falamos criança, falaremos de crianças, pois é dessa forma que

englobamos todos os modos de ser menino e de sermenina em diferentes grupos

culturais, etnias ou classe social.

Nesta pesquisa, apresentamos modos de ser menina e de ser menino na turma do

Jardim II, que podem ser diferentes de outros modos de ser em outros lugares. O fato

de termos encontrado meninas que lideravam e que eram muito preocupadas com a

beleza, ou meninos que se propunham participar de brincadeiras ditas “femininas”

não quer dizer que esse seja um padrão para todas as salas de Jardim II.

O desenvolvimento infantil não se dá de uma forma estável e única. Góes (2000, p.

121) fala-nos que devemos pensar em sujeitos móveis, em construção: “[...] trata-se

de algo em processo (individuação), que não pode ser concebido ou investigado

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como uma cena estacionária; por outro lado, é um processo que depende das

relações sociais, que é marcado pelo papel fundamental do socius”.

É imprescindível conhecer os diferentes modos de ser criança, significando suas

reações a partir das relações que estabelecem com os seus pares e com os adultos.

Assim superaremos uma “[...] visão adultocêntrica que está impregnada em cada um

de nós. Percebendo o conhecimento das culturas da infância, como elemento

primordial para se respeitar a pluralidade de modos de ser criança[...]” (MARTINS

FILHO, 2005, p. 17).

Esses diferentes modos de ser estão imbricados em uma cultura e uma história.

Como percebemos isso na constituição do eu dessas crianças? Enfocamos os

modos de ser menina e de ser menino na turma do Jardim II e constatamos que

essa constituição se entrecruza com os outros diferentes modos de ser. Esses

outros, que são a família, a mídia, a professora, os colegas da turma, vão

configurando diferentes modos de ser menina e de ser menino em nossa sociedade

ocidental.

Os vários contextos sociais em que a criança se insere em seu desenvolvimento – o da família, o da vizinhança, o da escola, o do trabalho, o das atividades esportivas ou artísticas, o do casamento, etc. – lhe dão oportunidade para experimentar e responder a diferentes papéis. Dos conflitos que estabelece com o meio a cada momento no embate com as ações de outros indivíduos, estando todos eles, ao mesmo tempo, em um processo dialético constante de identificar-se com o parceiro diferenciar-se dele, o indivíduo forma sua conduta e personalidade (OLIVEIRA, 2004, P.70)

Nesse caminho pelo qual nos tornamos homens e mulheres, vários papéis/posições

vão nos sendo atribuídos ao longo de nossas vidas. Muitas vezes esse caminho é

cercado de conflitos oriundos de uma busca por nos diferenciarmos dos outros e de

afirmarmos o próprio eu. As práticas sociais são recursos privilegiados para o

desenvolvimento do sujeito. As interações medeiam a construção da linguagem, da

emoção, da cognição e do conhecimento. Formas de ser, de agir e de sentir vão

sendo construídas ao longo de nossa história particular.

[...] a construção social do individuo é uma história de relações com outros, através da linguagem, e de transformações do funcionamento psicológico constituídas pelas interações face-a-face e por relações sociais mais amplas (que configuram lugares sociais, formas de inserção em esferas da cultura, papéis a serem assumidos etc.) (GÓES, 2000, p. 121).

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Destacamos aqui formas de ser menina e de ser menino através das interações que

constituem a trama social o que possibilita ver em cada criança um ser singular e

plural, pois, como diz Jonas Ribeiro em seu livro para crianças, intitulado “Gente que

mora dentro da gente”, somos um baleiro: “[...] descobri que todo mundo é um

baleiro. Que ao invés de balas guardamos gente dentro da gente. Gente de vários

sabores, não deixe de experimentar as pessoas de framboesa e as de hortelã. Elas

são deliciosas” (RIBEIRO, 2000, p.19)

Cada baleiro terá um colorido diferente e cada um sentirá o gosto da bala de uma

forma diferente. Assim, gente mora dentro da gente e ajuda a constituir diferentes

modos de ser menina e de ser menino, ou seja, de ser criança.

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4 UM COMEÇO PARA NOVAS DESCOBERTAS

A Educação Infantil é realmente um campo de pesquisa que incita a procura do novo

e as descobertas. Nossa trajetória acadêmica e profissional, de certa forma, sempre

esteve ligada a essa modalidade de ensino, que nos vez apurar o olhar sobre as

crianças que freqüentavam e freqüentam as instituições que oferecem esse tipo de

Educação.

Ao observar o desenvolvimento infantil, pudemos perceber que, além da maturação

biológica, outros fatores contribuíam para esse desenvolvimento, e que as

interações tecidas dentro desse universo eram de grande influência nas formas de

agir e pensar das crianças.

Foi a partir daí que começou a se desenhar o objetivo desta pesquisa. Como se dá a

constituição do eu entre as crianças da Educação Infantil. Retomando esse objetivo

no momento final deste trabalho, percebemos que as crianças nos mostraram qual o

melhor recorte a ser feito para que pudéssemos compreender em parte essa

constituição.

Analisar como se davam esses processos fez com que buscássemos uma vertente

que não deixasse de lado a história da infância, pois, para entendermos a criança,

hoje, precisamos compreender como a nossa sociedade a percebia e a percebe e

como cria mecanismos para acelerar ou respeitar o seu desenvolvimento.

Nesta pesquisa, o desenvolvimento infantil foi visto como algo fortemente

influenciado pela história e pela cultura. A constituição do eu foi analisada a partir da

relação com o outro, parceiro perpétuo do eu, significando seus modos de ser e de

sentir. Várias pesquisas serviram de base para compreendermos quais os caminhos

a seguir para estudar a constituição do eu. A subjetividade foi discutida a partir de

uma base teórica que respeitasse o social e o histórico das crianças, mostrando-nos

a importância das relações tecidas no universo infantil.

Adentrar no universo infantil a partir da escola significa respeitar o ambiente de

trabalho dos profissionais que ali estão e, o mais importante, respeitar o espaço das

crianças, sabendo observar e retirar-se nos momentos em que a presença do

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pesquisador se torna incômoda para a criança. Observar o cotidiano de uma sala de

aula sem alterar o ritmo e sem inibir as formas de expressão das crianças não foi

tarefa fácil. Mas, aos poucos, as próprias crianças inseriram-nos no contexto e nos

mostraram o caminho a seguir para compreender a constituição do eu entre elas.

Dessa forma, passamos a observar a interação entre e com as crianças. Nessa

interação, grupos eram formados e diferentes dinâmicas de convivência eram

traçadas por elas. A análise a partir dos grupos não significou a categorização prévia

de crianças, mas, sim, de características que as faziam reunir-se em torno de uma

brincadeira ou atividade. Como dissemos anteriormente, foram as crianças que nos

mostraram qual o melhor caminho para pensar a constituição do eu.

Ao analisarmos a composição dos grupos e o que os unia, percebemos

características marcantes da constituição do ser menina e do ser menino. Foram as

crianças que sutilmente nos mostraram, através de suas brincadeiras e da forma

como se organizavam, que as relações de gênero permeavam de forma marcante

suas atitudes e formas de pensar.

Entender o gênero como a relação entre meninas e meninos e os relacionamentos

como constituidores de identidades torna-se de fundamental importância para

compreendermos como as crianças se movimentam em diferentes papéis, vivenciam

contradições, desconstroem modelos e recriam seus significados.

Nesse vaivém do desenvolvimento, na constituição do ser menina e do ser menino,

os conflitos eram parte integrante do processo, revelando que esses momentos

eram espaços de renovação. Constatamos que, nessas interações, as crianças

vivenciavam diferentes papéis e se constituíam como seres singulares. Cada um

interagia e vivenciava o mesmo momento de uma forma diferente, trazendo consigo

marcas culturais e experiências de outros momentos vivenciados.

A partir da análise dos resultados, percebemos que a escola é parte importante

nesse processo, pois contribui para essa constituição, reforçando práticas culturais

ou problematizando determinadas e diversas formas de ser menina e menino.

Acreditamos que a escola pode contribuir para (re)significar práticas culturais que

negam a infância e aceleram o crescimento das crianças para o mundo adulto do

consumo. A escola pode criar momentos em que as crianças possam conhecer

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diversas expressões culturais que valorizem o ser criança, e não expressões

culturais que revelem as relações de gênero de uma forma pejorativa,

principalmente para as meninas, que sofrem muito mais com a imposição da mídia

em favor de um determinado padrão de beleza.

O professor de Educação Infantil deve estar atento às diferentes formas de

expressão do ser menina e do ser menino, mediando essas situações sem reforçar

estereotipias, e sim propiciando às crianças um espaço no qual elas possam

vivenciar a infância de uma forma que lhes seja possível expressar seus desejos e

suas escolhas.

Mediar não é só estar perto ou acompanhar. É interagir e propiciar às crianças o

avanço em seus conhecimentos sobre as formas de ser menina e de ser menino,

longe de preconceitos que caracterizem as meninas como “boazinhas” e os meninos

como “levados”, como se esses conceitos fossem naturais. A presente pesquisa

questiona essa “naturalização” da infância e acredita que valores e atributos

culturais participam da constituição das crianças, como seres singulares.

Assim, os profissionais da Educação Infantil devem despir-se de concepções que

percebem as crianças como “pequenas mulheres” ou “pequenos homens” e passar a

ver a criança em suas diferentes formas de ser menino e de ser menina,

desconstruindo concepções e valores que vêem a identidade de gênero de forma

hierarquizada, ampliando seus conceitos sobre gênero e infância.

As instituições de Educação Infantil são espaços ricos em interação e podem

proporcionar às crianças, meninas e meninos, e adultos, a ampliação de seus

conhecimentos e valores, a partir das várias vivências que coexistem dentro desse

espaço, como descreve Ruth Rocha em seu livro “Faca sem ponta, galinha sem pé”

(ROCHA, 1999)

Nesse livro, dois irmãos, Pedro e Joana, sofrem com os estereótipos, tais como os

de que as meninas não podem brincar com meninos e de que os meninos não

podem chorar, e acabam reproduzindo em suas brincadeiras e atividades esses

preconceitos.

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Um dia, como em um passe de mágica, eles passam embaixo de um arco-íris e

trocam de lugar: Joana passa a ser chamada de Joano e Pedro, de Pêdra. Muitas

confusões acontecem, pois os dois já não sabem mais o que podem e o que não

podem fazer, já que meninos e meninas não compartilham as mesmas atividades.

Após muita confusão, no final da história eles percebem que podem fazer as coisas

juntos, sem precisar categorizar o que é de menina e o que é de menino.

Assim como na história, meninas e meninos muitas vezes não vivenciam outras

práticas porque não lhes é permitido, por ser menina ou menino. As crianças devem

ter o direito de expressar-se e assumir diferentes papéis. Talvez não devamos

pensar em ações ou papéis apropriados para meninas ou meninos, e sim em ações

ou papéis apropriados para as crianças.

Entendemos que para nós, profissionais da Educação Infantil, fica deste estudo a

necessidade de uma reflexão mais aprofundada sobre como concebemos as

relações de gênero na sociedade como um todo e na escola em particular, e sobre

qual imagem de menina, de menino e de criança atravessa nossas práticas

educativas.

Sabemos que ações como se fantasiar com as roupas dos pais, desempenhar

durante as brincadeiras de faz-de-conta, papéis que fazem parte do mundo adulto

sempre permearam o imaginário infantil, pois é através da experimentação que a

criança vivência desejos, vontades e sonhos. Entretanto nos preocupa pensar que

padrões impostos pelo mundo adulto estejam privando as crianças de conhecer

novas possibilidades do belo, do brincar, do fazer amigos. Nesse contexto, para as

crianças, cria-se a idéia de que para “ser feliz” tem se que ter os cabelos da atriz de

novela, a sandália do herói do programa de televisão, ouvir a música da

apresentadora de um determinado programa infantil. Mais uma vez estamos

negando a infância e negando às crianças o acesso à cultura, não a padronizada

pelos meios de comunicação, mas aquela que está na sua cidade, na sua rua, no

encontro com os mais velhos, enfim, nas múltiplas possibilidades de interações entre

crianças e adultos e entre as próprias crianças.

Dessa forma, deixamos em aberto as novas possibilidades de descobertas que o

contexto da Educação Infantil propicia como se fosse um caleidoscópio que, ao ser

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mudado de posição, muda a forma do seu desenho. Assim é a Educação Infantil,

que acompanha e produz mudanças importantes no desenvolvimento infantil,

instigando-nos a pesquisar esse universo sempre.

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______. A evolução psicológica da criança . Lisboa, Edições 70, 1995.

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ANEXO

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ANEXO A

Faca Sem Ponta Galinha Sem Pé - Ruth rocha Esta a história de dois irmãos. Com eles aconteceu uma coisa muito esquisita, muito rara e difícil de acreditar. Pois eram dois irmãos: um menino, o Pedro. E uma menina a Joana. Eles viviam com os pais, seu Setúbal e dona Brites. E os problemas que eles tinham não eram diferentes dos problemas de todos os irmãos. Por exemplo... Pedro pegava a bola para ir jogar futebol, lá vinha Joana: - Eu também quero jogar! Pedro danava: - Onde é que já se viu mulher jogar futebol? - Em todo lugar. - Eu é que não vou levar você! O que é que meus amigos vão dizer? - E eu estou ligando pro que os seus amigos vão dizer? - Pois eu estou. Não levo e pronto! Joana ficava furiosa, batia as portas, chutava o que encontrasse no chão, fazia cara feia. Dona Brites ficava zangada: - Que é isso, menina? Que comportamento! Menina tem que ser delicada, boazinha... - Boazinha? Pois sim! - respondia Joana de maus modos. Ás vezes Pedro chegava da rua todo esfolado, chorando. - Que é isso? - Espantava-se seu Setúbal. - O que foi que aconteceu? - Foi o Carlão! foi o besta do Carlão! Me pegou na esquina - choramingava Pedro. Seu Setúbal ficava furioso: - E você? O que foi que você fez? Por acaso fugiu? Filho meu não foge! Volte pra lá já e bata nele também. E vamos parar com essa choradeira! Homem não chora! Pedrinho desapontava: - Eu estou chorando é de raiva! É de ódio! Joana se metia : - Homem é assim mesmo! Quando a gente chora é porque é mole, é boba, é covarde. Agora, homem quando chora é de ódio... Pedro ficava furioso, queria bater na irmã. Dona Brites entrava no meio: - Que é isso, menino? Numa menina não se bate nem com uma flor... Pedro ia embora, pisando duro: - Só com um pedaço de pau... E as brigas se repetiam sempre. Quando Joana subia na árvore para apanhar goiaba, Pedro implicava: - Mãe, olha a Joana encarapitada na árvore. Parece um moleque! - Moleque é o seu nariz! - gritava Joana. - Você toda hora está em cima de árvore, por que é que eu não posso? - Não pode porque é mulher! Por isso é que não pode. E não adianta vir com conversa mole, não! Mulher é mulher, homem é homem! Quando Pedro botava camisa nova e se olhava no espelho, Joana já implicava: - Olha a mulherzinha! Como está vaidoso... Ou então quando Pedro ficava comovido com alguma coisa, como filme triste, que tem menininha sozinha, sem ninguém para cuidar dela, Joana já começava a caçoar: - Vai chorar, é? E agora é de ódio, è? Mas nas outras coisas eles eram bem amigos:

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Jogavam cartas, viam televisão juntos, iam ao cinema... Um dia...Tinha chovido muito e os dois vinham voltando da escola. De repente, Pedro gritou: - Olha só o arco-íris! - É mesmo! - disse Joana. - que grandão! Que bonito! - Puxa! - espantou-se Pedro. - Parece que está pertinho! Vamos passar por baixo? Vamos! Joana se riu: - Tia Edith disse que se a gente passar por baixo do arco-íris, antes do meio-dia, homem vira mulher e mulher vira homem... - Que besteira! - disse Pedro. - Quem é que acredita numa coisa dessas? E os dois se deram as mãos e correram, correram, na direção do arco-íris. E de repente pararam espantados.Eles estavam se sentindo esquisitíssimos! - O que aconteceu? - perguntou Joana. E a voz dela saiu diferente, parece que mais grossa... - Sei lá! - disse Pedro. Mas parou de pressa, porque ele estava falando direitinho como uma menina. - Aconteceu comigo uma coisa muito estranha... - resmungou Joana. - Comigo também... - reclamou Pedro. E os dois se olharam muito espantados... E correram para casa. Vocês podem imaginar o reboliço que foi na casa deles quando contaram o que tinha acontecido. No começo ninguém estava acreditando. - Que brincadeira mais idiota! - falou seu Setúbal. - Vamos parar com isso? - disse dona Brites. Mas depois tiveram que se convencer... E naquele dia, no jantar, ninguém brigou para saber se menina podia ou não podia fazer isso ou aquilo. Afinal ninguém sabia direito quem era quem... O pai e mãe de Joana e Pedro ficaram conversando até de madrugada. - Acho melhor nem contarmos pra ninguém - dizia seu Setúbal. - Mas como é que vai ser? - argumentava dona Brites. - Todo mundo vai notar! E podem até pensar coisa pior... - E o nome deles? - perguntou seu Setúbal. - Como é que fica? - É mesmo! - choramingou dona Brites. - A Joaninha, meu Deus, que tinha o nome da minha mãe. Que Deus a tenha em sua glória, agora vai ter que se chamar Joano! Joano, Setúbal! Isso é lá nome de gente? E o Pedro, que horror! Vai ter que se chamar Pêdra. Pode uma coisa dessas? - E tem um outro problema em que estou pensando - disse seu Setúbal. - Está bem que a gente vista o Joano de homem... afinal as mulheres hoje em dia só querem se vestir de homem... mas vestir a Pêdra de mulher... não sei, não! E se ele, quer dizer, ela, virar homem outra vez? - Ah, sei lá! - disse dona Brites. - Jà nem sei o que pensar. Acho melhor a gente ir dormir... No dia seguinte o problema da roupa foi resolvido com facilidade. Foi só vestir calça de brim nos dois, mais camiseta e tênis. Joano e Pêdra estavam brincando e rindo, como se nada estivesse acontecido, disfarçando para que os pais não se preocupassem ainda mais do que já estavam preocupados. Mas assim que saíram de casa ficaram sérios. Eles não sabiam como é que iam fazer na escola. Logo na esquina, Pedro, quer dizer Pêdra, que agora era menina, deu o maior chute numa tampinha de cerveja que estava no chão. - Vamos parar co isso? - disse Joano. - Menina não faz essas coisas. - E eu sou menina? - reclamou Pêdra. - É, não é?

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- Ah, mas eu não me sinto menina! Tenho vontade de chutar tampinha, de empinar papagaio, de pular sela... - Ué, eu também tinha vontade de fazer tudo isso e você dizia que menina não podia - reclamou Joano. - Mas é que todo mundo diz isso - disse Pêdra. - que menina não joga futebol, que mulher é dentro de casa... - Pois é, agora agüenta! Não pode, não pode, não pode... - Ah, mas agora eu posse chorar a vontade, posse dizer fita, posso ter medo de escuro... Quando tiver que ir buscar água de noite você é que tem que ir... e quando eu quiser ver novela ninguém vai me chatear... E eles ficaram ali, uma porção de tempo, discutindo a situação. De repente Pêdra lembrou-se de que precisava ir para o colégio. - Sabe de uma coisa? - disse Joano. - Eu é que não vou para escola desse jeito ridículo. - Não sei por que ridículo. Ridículo estou eu, aqui, virado em mulher. - E você quer ir para escola? - perguntou Joano. - Eu não - respondeu Pêdra. E sentou num murinho, muito desanimada. Joano sentou também. - Sabe de uma coisa? - disse Pêdra. - Nós temos é que encontrar o arco-íris pra passar por baixo outra vez. - Mas não está nem chovendo - choramingou Joano, que agora era menino mas bem que estava com vontade de chorar... - É, mas se a gente não procurar não vai encontrar. E se não encontrar vai ficar desse jeito o resto da vida! Então Joano tomou uma decisão: - Olha aqui. Eu vou mas não vou levar você, não! Vou é sozinho! Menina só serve pra atrapalhar. Pêdra ficou danada da vida: - Ah, é? Então vire-se! Eu também vou procurar sozinha e não quero conversa com você. Vamos ver quem encontra primeiro. E cada um foi para o seu lado, sem nem olhar para trás. Os dois rodaram o dia inteirinho, mas não tinha caído nem uma chovinha, de maneira que não havia jeito de encontrar o arco-íris. E no outro dia foi a mesmo coisa, e no outro, e no outro. E em casa as coisas estavam piorando cada vez mais. Um implicava com o outro, caçoava, proibia: - Menino não pode! - Menina não faz! - Onde é que já se viu? - Coisa mais feia! - Vou contar pra mamãe! Se o arco-íris não aparecesse logo... Até que um dia eles acordaram e estava chovendo a maior chuva que já tinha visto. Trovão, relâmpagos, água que não acabava mais. Os dois ficaram torcendo para a chuva passar. E quando passou, saíram, como sempre um para cada lado, procurando o arco-íris. Joano chegou para lá da escola, num lugar onde ele nunca tinha ido. E já vinha voltando, desanimado, quando viu, bem na sua frente, o arco-íris. Joano correu e passou por baixo. Mas não aconteceu nada. Joano continuava Joano... Com Pêdra aconteceu mais ou menos a mesma coisa. Andou, andou, até fora da cidade. E só quando vinha voltando é que encontrou o arco-íris,

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passou por baixo e nada! Na porta de casa os dois se encontraram: - Nada, hein? - perguntou Pêdra. - Nadinha! - respondeu Joano. - Que será que aconteceu? - disse um. - Que será que não aconteceu? - disse o outro. E os dois se sentaram - tão amigos! - e contaram, um ao outro, como é que eles tinham passado por baixo e nada tinha acontecido... De repente Pêdra se levantou animada: - Espere um pouco! A tia Edith disse que tinha que passar embaixo do arco-íris antes do meio-dia, não foi? Então, pra desvirar tem que ser Depois do meio-dia, é ou não é? - É mesmo! - disse Joano. - E tem mais uma coisa. Pra mudar de sexo nós passamos de lá pra cá, não foi? A gente vinha voltando da escola, não vinha? Pois agora a gente tem que passar daqui pra lá, pra desvirar. Pêdra ficou olhando para Joano: - Sabe que você é bem esperta para uma menina? Joano respondeu: - Você também é bem esperta... pra uma menina. Os dois se riram como há muito tempo não faziam. E juntos saíram á procura do arco-íris. E de repente lá estava ele. Grande, brilhante, colorido, como um desafio. Joano e Pêdra deram-se as mãos. E correram, juntos, em direção do arco-íris. E finalmente perceberam que alguma coisa, novamente, tinha acontecido. Então riram, se abraçaram e abraçados começaram a voltar para casa. Então Joana viu uma tampinha de cerveja na calçada. Correu e chutou a tampinha para Pedro. Pedro devolveu e os dois foram jogando tampinha até em casa...

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