INTRODUÇÃO 1. A noção de ordo no contexto da obra … · quer que se volte e independentemente...

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9 INTRODUÇÃO 1. A noção de ordo no contexto da obra augustiniana Situando-se no cerne da metafísica augustiniana, a reflexão sobre a ordo rerum não é exclusiva do Hiponense. Efectivamente, é fácil identificar um discurso sobre a ordem, tanto nas obras dos filósofos da Antiguidade como nos escritos daqueles que se situam já na era cristã e com os quais Sto. Agostinho mais de perto dialogou. Quase sempre identificada com o conceito de hierarquia, a noção de ordem parece exercer fascínio sobre a mente. Ao discorrer sobre esta noção, em busca de racionalidade para o real, a linguagem humana socorre-se de uma multiforme constelação de imagens, traduzindo a percepção da ordo rerum por meio de escalas de seres, níveis de pensamento, estádios de existência, pirâmides de ideias, árvores de saberes. A este esforço da razão está subjacente a convicção de que sem ordem não há racionalidade. Subconjunto desta certeza é a persuasão de que todo o real está disposto hierarquicamente, mediante formas diferenciadas de ser. Com efeito, ao conceber a ordem como disposição gradual de formas, a razão humana admite no universo uma dispensação do ser segundo uma medida – maius et minus esse. A obra augustiniana obedece a esta solicitude pela ordem das coisas e a estes padrões de interpretação. Nesta medida, nem a temática, nem o modo de a abordar definem a especificidade da reflexão do Hiponense sobre a noção de ordo. Todavia, no intuito de identificar o que nela há de próprio, cabe destacar dois aspectos, intensamente vividos por Agostinho: a experiência da desordem e a exigência de resposta para a questão essencial de toda a metafísica, a saber, a da relação entre o Uno e o múltiplo. Se a primeira vertente deste binómio remete para um domínio predominantemente próprio, dada a sua relação com o percurso biográfico de Agostinho, a segunda é de alcance maximamente universal. Contudo, note-se que mesmo esta distinção entre um domínio próprio, de vivência ou experiência de desordem, e um comum, que interroga a relação entre o Uno e o múltiplo, ou, em linguagem mais cara a Agostinho, entre o Ser e os seres, entre Deus e as criaturas, padece de algum artifício. Na verdade, a própria experiência da desordem é, pelo menos num primeiro confronto da razão com a estrutura do real, um elemento universal. Se há vivência comum a todo o ser humano é a do confronto com o mal,

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INTRODUO

1. A noo de ordo no contexto da obra augustiniana

Situando-se no cerne da metafsica augustiniana, a reflexo sobre a ordo rerum

no exclusiva do Hiponense. Efectivamente, fcil identificar um discurso sobre a

ordem, tanto nas obras dos filsofos da Antiguidade como nos escritos daqueles que se

situam j na era crist e com os quais Sto. Agostinho mais de perto dialogou.

Quase sempre identificada com o conceito de hierarquia, a noo de ordem parece

exercer fascnio sobre a mente. Ao discorrer sobre esta noo, em busca de

racionalidade para o real, a linguagem humana socorre-se de uma multiforme

constelao de imagens, traduzindo a percepo da ordo rerum por meio de escalas de

seres, nveis de pensamento, estdios de existncia, pirmides de ideias, rvores de

saberes. A este esforo da razo est subjacente a convico de que sem ordem no h

racionalidade. Subconjunto desta certeza a persuaso de que todo o real est disposto

hierarquicamente, mediante formas diferenciadas de ser. Com efeito, ao conceber a

ordem como disposio gradual de formas, a razo humana admite no universo uma

dispensao do ser segundo uma medida maius et minus esse.

A obra augustiniana obedece a esta solicitude pela ordem das coisas e a estes

padres de interpretao. Nesta medida, nem a temtica, nem o modo de a abordar

definem a especificidade da reflexo do Hiponense sobre a noo de ordo. Todavia, no

intuito de identificar o que nela h de prprio, cabe destacar dois aspectos, intensamente

vividos por Agostinho: a experincia da desordem e a exigncia de resposta para a

questo essencial de toda a metafsica, a saber, a da relao entre o Uno e o mltiplo. Se

a primeira vertente deste binmio remete para um domnio predominantemente prprio,

dada a sua relao com o percurso biogrfico de Agostinho, a segunda de alcance

maximamente universal.

Contudo, note-se que mesmo esta distino entre um domnio prprio, de vivncia

ou experincia de desordem, e um comum, que interroga a relao entre o Uno e o

mltiplo, ou, em linguagem mais cara a Agostinho, entre o Ser e os seres, entre Deus e

as criaturas, padece de algum artifcio. Na verdade, a prpria experincia da desordem

, pelo menos num primeiro confronto da razo com a estrutura do real, um elemento

universal. Se h vivncia comum a todo o ser humano a do confronto com o mal,

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noo identificada com a experincia limite do sofrimento e da morte. Ora, uma tal

convivncia est em perene conflito com o desejo de felicidade, anichado, tambm de

modo irrefragvel, no ntimo do ser humano.

Ao colocar a indagao sobre a ordo rerum no cerne da filosofia, Sto. Agostinho

tem plena conscincia da dificuldade da tarefa. Com efeito, e segundo uma insistente

advertncia do Hiponense, a ordem das coisas uma noo que no se deixa facilmente

domesticar pelo entendimento, no obstante surgir como a questo mais universal e

inquietante, aquela com a qual inevitavelmente todo o esprito humano alguma vez se

confrontou, desde o alvorecer dos primeiros passos na apreenso do real, at ao

anoitecer da sua existncia nesta terra de emigrao.

Ora, a prpria condio rebelde e resvaladia da ordem que permite captar o

alcance que Sto. Agostinho atribui a esta noo. Para o filsofo, a ordem espelha-se por

toda a parte na essncia do Universo. A apreenso dela por parte do entendimento

humano permite desvendar a natureza do Princpio sem princpio de todas as coisas, em

cuja compreenso consiste, afinal, o trmino da actividade filosfica, entendida como

amor seu dilectio Sapientiae. A identidade que, na obra augustiniana, se estabelece

entre a ordem e o ser, permite compreender que, para o Hiponense, aquela noo est

intrinsecamente unida ao prprio exerccio da racionalidade. A ordem est imiscuda em

tudo e por toda a parte se manifesta. Este facto decorre da universalidade da prpria

noo, do mesmo modo que o ser est omnipresente em cada expresso de realidade.

Ordo-esse-ratio formam, assim, para o Hiponense, uma trilogia que, na sua inesgotvel

riqueza, se desdobra em mltiplas outras, no intuito de tornar acessvel compreenso

humana a forma de toda a criatura.

Essencial na dinmica do mltiplo, a trilogia ordo-esse-ratio integra os princpios

que garantem a harmonia do real e a sobrevivncia deste em face de toda a aparente

subsistncia da desordem. Porm, e no obstante o cosmos ser, de per si, sinal de

ordem, nas formas que preenchem o universo o ser e a ordem convivem com factores de

corroso. Estes manifestam-se atravs da contingncia das formas, da finitude e

temporalidade delas, da sua insero numa dinmica de historicidade que o Filsofo de

Hipona gosta de designar por curso dos tempos, da liberdade humana interveniente na

histria, do concurso das liberdades, enfim, da insero de todas estas realidades em

uma condio mais vasta de existncia, designada por cosmos, ele mesmo sujeito ao

tempo e historicidade.

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Como faz notar Agostinho em De ordine, a complexidade dos factores enunciados

e a possibilidade, para a razo humana, de apreender, em profundidade e extenso, a

relao que entre eles se constitui, estabelece um paralelismo entre a dificuldade que a

razo humana enfrenta para apreender a noo de ordo e o mito de Proteu. De facto, a

ordem surge com evidncia apodctica ante o olhar desprevenido que, de modo

inocente, se fixa na beleza e na harmonia das formas. Porm, no confronto com o lusco-

fusco da finitude e contingncia delas, a ordem imediatamente se oculta, quando a razo

humana se detm num esforo de apreenso da natureza de cada forma, considerada em

si mesma e no dilogo que estabelece com o conjunto. Ante o esforo de apreenso

racional, qual Proteu, a ordem assume diferentes rostos e em nenhum deles se esgota a

compreenso dessa indisciplinada e resvaladia noo. Em ltima instncia, o carcter

problemtico da noo de ordem decorre do facto de a indagao acerca da natureza

dela coincidir com a questo que ocupa o cerne de toda a metafsica: o confronto da

razo humana com o modo como se relacionam a Plenitude e a contingncia, o Uno e o

mltiplo.

Desde os seus primeiros escritos Sto. Agostinho apresenta a questo da ordo

rerum como um filosofema de mxima radicalidade, formulado de modo a inscrever

aquela interrogao num horizonte de universalidade.

um facto que a questo apresentada mediante uma interrogao de algum

modo epidrmica Se Deus existe, como justificar o mal? Se no existe, como garantir

racionalidade ao real? Porm, este modo de posicionar o filosofema, para alm de

inscrever o horizonte de compreenso dela num determinado contexto histrico e

cultural, manifesta, a um tempo, a condio radical do ser humano, na relao que ele

estabelece com a diversidade das formas que compem a imensa sinfonia csmica em

que est inserido.

Em ltima instncia, tal interrogao revela uma inquietude derradeira: , ou no,

possvel colmatar o infinito desejo de beatitude e de paz que o ser humano, para onde

quer que se volte e independentemente do objecto sobre o qual detenha a sua ateno,

encontra no interior de si mesmo, no logrando satisfazer tal anseio, mesmo quando

possui toda a espcie de bens? E, como descreve Agostinho com sagacidade, se um

facto que nem a experincia da posse ou indigncia de bens que se podem possuir - no

obstante, dada a contingncia dessas formas, tal posse ser inalienvel do risco de perda -

preenche esse desiderato essencial, ser, ou no, possvel aquietar um tal anseio? Para

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complexificar a questo acerca de decidir que tipo de bens logram preencher esse af de

paz e beatitude, Sto. Agostinho enfrenta, ainda, a comprovao de uma realidade

irrefragvel: os bens a possuir, disponveis no universo, assim como o prprio ser

humano que a eles tende, no so apenas contingentes. Eles padecem de uma efectiva

deformao.

um facto que o Filsofo de Hipona canta o louvor de toda a criatura, a beleza, a

ordem e a harmonia que nela brilha e se reflecte. Porm, no interior de toda a forma e,

de modo particular, na forma humana, o Hiponense no nega a realidade de uma

presena desfeiada a qual, de acordo com o seu modo de pensar, essencialmente

dialgico e dinmico, gosta de justificar de diversos modos. Assim, a falta de densidade

ontolgica das formas criadas pode entender-se como efeito de uma corrupo original.

Esta, no afectando, na essncia, as formas criadas, retira-lhes brilho e esplendor. O

lusco-fusco que a razo humana verifica em tais formas pode decorrer, tambm, da

relao que o ser humano estabelece com elas. Tal fenmeno ocorre quando, em vez de

fazer uso delas em direco ao Bem Comum, o faz servindo-se delas para satisfao de

si mesmo. Nestas acepes informidade relativa das formas, manifestao da

tendncia a uma maior perfeio e disformidade introduzida naquelas em virtude de um

uso indevido - dir-se-ia que a densidade ontolgica das formas se oculta em virtude da

presena de uma estrutura de desordem no universo. Este modo de relao defectiva que

o ser humano estabelece com a realidade circundante designado por mal. Porm, na

mundividncia augustiniana cabe ainda a possibilidade de considerar a deformidade das

criaturas como resultado de um apelo feito ao ser humano pelo prprio real, no sentido

de colaborar no progressivo aperfeioamento do universo, na expresso histrica deste,

a qual indissocivel da sua dinmica escatolgica.

Agostinho enfrenta a um tempo estas diversas perspectivas sobre a forma de um

ser. Com efeito, nenhuma delas exclui a outra, mas todas se complexificam na relao

intra-mundana, intra-histrica, na qual se tece o dilogo que o ser humano estabelece

com a realidade que circunscreve a sua existncia. Assim, para entender a concepo

augustiniana de ordem, necessrio proceder a uma abordagem do modo como o

Hiponense concebe a relao entre o ser humano e o cosmos, integrando nesta dinmica

a realidade do mal, do sofrimento e da morte. Em derradeira instncia, subjacente

reflexo augustiniana sobre a noo de ordo est o enfrentamento da razo humana com

o mistrio insondvel do sofrimento e das estruturas de mal, experimentados por cada

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existncia e pela totalidade dos homens, reflectindo-se escala humana e mesmo

csmica.

Neste sentido, mais do que falar da actualidade da concepo augustiniana de

ordem, apelar-se- para a radicalidade, a universalidade e, at, a perenidade desta

indagao levada a efeito pelo Hiponense. Efectivamente, ela assume, na histria

humana e nas diferentes expresses de humanidade, uma condio perene, podendo

encontrar referentes na infinita variedade das expresses de cultura, independentemente

do momento histrico e do condicionamento geogrfico. A experincia humana ante o

mal conduz a uma razo perplexa que, tanto ao tempo de Agostinho como na

contemporaneidade - em busca de uma justificao para a contradio radical

vivenciada entre o desejo universal de felicidade e a vivncia de uma fora aniquiladora,

igualmente experimentada no mais imo do ser humano -, acaba por bifurcar as respostas

possveis, sem encontrar um tertium quid: ou existe um Ser Supremo que garante a

racionalidade de todas as formas, e neste caso torna-se angustiosa a explicao do mal

no Mundo; ou no existe tal Princpio e ficam por explicar as expresses de harmonia,

beleza e ordem, presentes, de modo igualmente irrefragvel, como a luz evidencia as

sombras, neste mesmo cosmos.

Sto. Agostinho assume o desafio da terceira via, defrontando este posicionamento

dicotmico que herdara da tradio filosfica greco-romana e procurando enquadrar, de

modo dinmico e harmnico, a prpria dualidade inerente formulao do filosofema.

Por conseguinte, para compreender a proposta augustiniana acerca da universalidade da

ordem, a mente humana deve abrir-se, antes de mais, descoberta de uma terceira via.

Para tal dever ultrapassar os dois vcios inerentes quela formulao: ou dualismo

radical, ou dissoluo de toda a identidade e autonomia numa unidade indiferenciada.

Interrogando a obra augustiniana com o objectivo de averiguar qual a sinergia que

impulsiona o filsofo a edificar sobre a noo de ordem a sua mundividncia, a resposta

encontra-se porventura na vivncia de uma encruzilhada entre o desejo de beatitude e de

paz, traduzido pela visceral inquietude de corao, e a experincia de uma fora

aniquiladora, igualmente anichada no interior da mente humana. Como ficou dito, no

obstante o carcter paradoxal desta afirmao, a experincia do nada, do mal, no

interior de si e em torno a si, que impulsiona Sto. Agostinho a investigar e a descortinar

a natureza da ordem. Movido por uma fora quase instintiva, por um desejo de

sobrevivncia, o Hiponense levado a romper as amarras e constrangimentos do seu

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prprio esprito, dirigindo-se em busca daquilo que reconhece como Verdade. Este

movimento, que o filsofo descreve em Confessionum, , na essncia, aquilo que se

designa por converso metafsica. Tal metamorfose concretiza-se no abandono, por

parte de Agostinho, de quanto lhe retirava a liberdade de investigar e do

direccionamento da sua existncia em busca da inteligibilidade de uma realidade que

contempla como melhor e que reconhece consolidada no cristianismo.

Esta experincia de passagem, converso, metania, ou qualquer outra expresso

que se encontre para melhor a designar, , afinal, uma experincia comum a todo o ser

humano, quando enfrenta a realidade do mal. Com efeito, a experincia da

proximidade de uma fora aniquiladora que ameaa a prpria existncia - fora

demasiado circunvizinha, imanente no ser humano, experimentada de modo derradeiro

no fenmeno da morte alheia e na certeza da morte prpria -, o denodo que move a

razo humana em busca de uma resposta do sentido da prpria existncia.

Afinal, a experincia do movimento vida-ameaa de morte-instinto de

sobrevivncia que impele a razo a justificar a existncia prpria, bem como a encontrar

resposta para a causa daquela ameaa. Em si mesmo, tal facto expresso de uma

perene vitalidade da razo ou, como dir Sto. Agostinho, de um desiderato de vida

eterna. Por conseguinte, cabe comprovar que este movimento, esta fora vital que incita

a razo a reflectir, universal. No se compadece com um determinado contexto

histrico, nem se confina geograficamente. Por este facto, o modo como Agostinho

posiciona o filosofema da ordem adquire universalidade. No obstante os mais de 1600

anos que cronologicamente nos separam a data de nascimento do Hiponense, a

experincia vivida pelo filsofo e por ele convertida em obra escrita profundamente

actual porque atinge o ser na sua mxima radicalidade. A mesma questo que

atormentara Agostinho nos anos de juventude e que o impelira a procurar uma resposta

adequada o que o mal e como se compatibiliza com a presena de uma noo

excelente, o Bem Comum, irrefragavelmente inscrita no mago do ser humano -, est

hoje presente em toda a expresso de humanidade, mesmo que, pelos mais variados

motivos, tal interrogao seja intimamente silenciada, remetida para o domnio do

esquecimento, permanentemente contornada como intrusa ou simplesmente no

verbalizada.

A experincia do mal descrita pelo Hiponense como uma tendncia ao nada. Por

este motivo se pode afirmar que esta experincia impele o movimento humano de

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sobrevivncia, de resistncia aniquilao. Ora, basicamente, a experincia do nada, ou

do mal, enquanto possibilidade e tendncia vivenciada pelo ser humano, pode definir-se

como um impulso de horror diferena. Enquanto tal, este impulso incuo. Mais

ainda, o impulso inverso o amor pela diferena, identificado por Sto. Agostinho como

tendncia ao ser - mais forte do que aquele outro. Todavia, ambos os movimentos

residem no interior do ser humano e, afinal, de todas as formas que preenchem o

cosmos como possibilidades de toda a expresso de existncia. E se verdade que,

para o Hiponense, a tendncia ao ser superior tendncia aniquilao, o filsofo

tambm reconhece, porque assim o experimentou, o fascnio que encerra todo abismo.

Ao tempo de Agostinho, duas mundividncias colocavam neste horror diferena

a mxima expresso de realidade. Note-se que, na perspectiva augustiniana, uma e outra

se sustentam na mesma tendncia ao nada que identifica a fora aniquiladora do mal.

Tais mundividncias tinham o seu pice no maniquesmo e no neoplatonismo. De facto,

ao edificar uma metafsica da ordem, a obra do Hiponense est marcada por uma atitude

de patente rejeio para com o maniquesmo, manifestando-se claramente avessa a esta

concepo do mundo. Inversamente, para com o neoplatonismo a atitude augustiniana

no apenas condescendente, como at, em alguns aspectos, de comunho de princpios.

Porm, um facto que ambas as mundividncias, cada uma a seu modo, se aliceram no

horror da diferena. No outro o motivo pelo qual o maniquesmo defende o eterno

conflito entre alteridades, a no ser pela incapacidade de assumir e de integrar ambos os

termos em uma terceira realidade, abrindo-se relao. Desde esta ptica, e de acordo

com a escatologia defendida por Mani, um final do combate surgir quando o mais forte

dominar sobre o mais fraco, aniquilando-o pelo princpio de poder. Por seu turno, e no

obstante a divergncia de pontos de partida, o neoplatonismo acabaria por defender a

mesma anulao da alteridade e da diferena, propondo, como ideal de sageza e como

fim final de toda a existncia, a dissoluo de todas as formas no Uno Inteligvel, a

eterna reconduo da diversidade das formas e da identidade de cada uma ao Uno

indiferenciado. Nesta exacta medida, enquanto ambas as propostas anulam a diferena,

retiram-na do horizonte do Ser. Por este mesmo facto, considerando que a diferena o

elemento determinante em toda a relao, e precisamente por ser esta a propriedade que

Sto. Agostinho descobre como essencial na realidade do Princpio, Supremo Bem ou

Ser, o Hiponense rejeitar uma e outra propostas de compreenso do Mundo.

Na verdade, o filsofo compreendeu que, partindo da experincia do mal, aquelas

mundividncias chegaram a solues que justificam a racionalidade do real mediante a

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anulao da diferena. Com efeito, o maniquesmo entende-a como um elemento a

aniquilar num combate blico. O neoplatonismo considera-a um definhamento do

Princpio, uma corrupo ou degradao do Uno, pois toda a realidade que dele diverge

considerada como menos ser, numa escala sempre degenerativa. O estoicismo, enfim

mundividncia com a qual Sto. Agostinho tambm dialogou, mxime atravs da

influncia de Ccero -, entendia a diferena como uma realidade provisria, a anular

num princpio supremo de natureza csmica, ao postular que a perfeio de todas as

formas se resolve numa espcie de conflagrao universal, tudo reconduzindo ao

Princpio originrio onde tudo devm eternamente, todas as formas se subjugam ao

eterno retorno do ciclo csmico da existncia.

No intuito de encontrar racionalidade para a desordem, Sto. Agostinho impelido

a reflectir sobre a natureza do Princpio. Em Confessionum claro o fascnio que a

proposta neoplatnica exerce sobre o filsofo, precisamente por considerar o Princpio

como racionalidade suprema, Logos ou Verbo. Deste modo, o prprio mal, o conflito ou

desordem, dependendo de um princpio nico de racionalidade, nele deve encontrar a

sua inteligibilidade. Com efeito, bens e males tm de estar dentro da ordem, integrados

na racionalidade do Princpio. Na ptica augustiniana, fora deste Princpio nada h,

nada , nada subsiste. margem do Princpio o nada, a total ausncia de forma e de

identidade ou ser.

Compreendendo o universo que o circunda a partir de um Princpio nico de ser,

Sto. Agostinho concebe um enquadramento para a realidade do mal, ou desordem. Ora,

precisamente sobre este eixo que a concepo augustiniana da ordo rerum se vem a

articular com a questo essencial de toda a metafsica, a saber, aquela que reflecte sobre

o modo como se equacionam o Uno e o mltiplo, a Unidade do Princpio e a

diversidade das formas que, na sua contingncia, repletam o universo.

Bens e males esto dentro da ordem. Tal afirmao, defendida de modo

inconcusso por Sto. Agostinho, s possvel se a prpria ordem for considerada como

Princpio soberano de realidade. este, afinal, o esforo da racionalidade augustiniana,

expressa ao longo da sua vasta obra: mostrar que o Princpio Ordem, em sentido pleno

e soberano, pois ele prprio vive da relao perene entre a identidade e a diferena,

entre Unidade e Multiplicidade. De trinitate ser porventura a obra na qual o Hiponense

mais reflecte sobre esta natureza do Princpio, sendo um facto que, no referido escrito,

essa reflexo se expande em diferentes sentidos e abrange diversos nveis de

complexidade. Como mostra Agostinho, o Princpio nico de ser , na sua essncia,

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identidade e diferena, Unidade na Trindade. Precisamente porque essa relao se

exerce em plena harmonia, respeitando, ainda, uma hierarquia, a qual no integra j

diferena de essncia ou substncia, nem graduao de ser, mas no prescinde de uma

racionalidade na processo, o Princpio entendido como Ordem Soberana. Esta Ordem

escapa ao tempo: Eterna. Integra a diferena das identidades que nela subsistem e

vivem, congrega-as na identidade de uma s substncia, a divina. E esta Ordem Eterna

Princpio de toda a realidade, da diversidade de todas as formas, seja qual for a

expresso delas e independentemente do lugar que ocupam na hierarquia ontolgica.

A metafsica augustiniana afirma, por conseguinte, a existncia de um Princpio

Soberano de Ordem que rene em si, de modo muito peculiar, a diferena, viabilizando

a Unidade na Trindade. Para Agostinho, a compreenso desta ordem soberana exige

uma especial agudeza de esprito, seno mesmo uma penetrao no carcter arcano

deste Princpio, mediante uma peculiar participao no dom divino a Sabedoria. A

diferena, factor inerente a toda a forma de realidade, sem a qual no subsiste nenhuma

relao, entendida como uma expresso do prprio Ser supremo, na eternidade da sua

essncia. Nesta dinmica, a diferena subsiste integrada na identidade eterna de uma

mesma substncia.

Para Sto. Agostinho, este Princpio tambm a origem de todos os seres.

Enquanto tal, a sua actividade especfica doar ser s diferentes formas de existir. Esta

actividade designada por criao. Com ela, o Princpio instaura uma diferena radical

de natureza entre ele mesmo e as realidades que cria. Enquanto no interior do Princpio

a diferena subsiste em igualdade de natureza, fora dele ou seja, na relao que

estabelece com os seres que no so o Princpio, e que dele dependem no ser, no

movimento e em toda a expresso de alento que neles se possa encontrar a diferena

abissal. Dir-se-ia mesmo que ela intransponvel. Na perspectiva augustiniana, entre o

Ser e os seres, entre o Criador e as criaturas no poder haver jamais identidade de

essncia.

Como, ento, garantir que a ordem princpio soberano de realidade, que articula

harmoniosamente unidade e diferena permanece no cosmos? Como garantir que esse

princpio uno, precisamente porque essencialmente relacional, estabelece, ainda, e para

alm da dinmica de vida e relao que ele mesmo , relao e dilogo com a

diversidade das formas e dos seres? Se a diferena entre Ser e seres radical, haver

ainda alguma relao entre o Princpio e as formas? A Ordem, Princpio Supremo, est,

ou no, ocupada com os assuntos humanos? H, ou no, uma efectiva relao entre o

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Criador e as criaturas? H, ou no, ordem no interior do cosmos e, de modo particular,

na vida dos seres humanos, no curso dos tempos e dos acontecimentos?

Para responder a tais interrogaes e esclarecer a noo de ordo, Sto. Agostinho

necessita de indagar qual a essncia do Princpio. Obriga-se, tambm, a discorrer sobre

o modo como tal Princpio estabelece relao, num plano descendente, com o universo

por Ele criado. E, considerando tal relao no plano ascendente, o Hiponense precisa de

esclarecer o modo como os seres interagem com o Ser supremo.

Para elucidar o primeiro aspecto, o filsofo detm-se a analisar a noo de creatio,

entendida no sentido bblico-cristo, a saber, como a passagem da total informidade

forma, da mais radical ausncia de existncia e de ser, participao ou assuno de um

determinado modo ou forma de ser. Este processo, efeito da liberalidade e gratuidade do

Criador, garante a identidade de cada existncia, ao mesmo tempo que instaura, entre

ela e o seu Princpio, uma total irreciprocidade ontolgica aquela que se d entre a

Plenitude e a indigncia, entre Aquele que e aquilo que devm, entre o Dom e o dado.

nesta irreciprocidade ontolgica que se enraza a caracterstica essencial das criaturas,

a saber, a contingncia delas, a qual se expressa, em ltima instncia, no facto de

estarem afectadas pela temporalidade. Nesta medida, s a relao descendente, do Uno

em direco ao mltiplo, conceptvel. S para este domnio de relao possvel

encontrar uma causa eficiente a vontade de se dar a participar, ou Dom. Entre o Uno e

o mltiplo instaura-se uma radical diferena ontolgica. Esta identifica a ordem prpria

da relao que entre ambos se estabelece. Ordem , neste caso, a dinmica que se

estabelece entre o Uno e o mltiplo, na qual Aquele permanentemente manifesta a

fidelidade aliana estabelecida com a Criao, pois a vontade eterna que trouxe os

seres existncia permanece para sempre. Precisamente porque a natureza do Princpio

dialgica e relacional, tal vontade do Criador vai unida ao sentido da criao de cada

forma e do conjunto das formas. E este sentido inscreve-se no cerne dessa caracterstica

essencial mediante a qual o Uno e o mltiplo se diferenciam: o factor temporalidade.

Sto. Agostinho considera sempre a noo de tempo como envolvida num contexto

de mistrio, de enigma, o qual reside, antes de mais, no facto de o tempo ser um factor

de mxima diferenciao entre o Uno e o mltiplo. Acresce ainda ao enigma o facto de

o prprio Princpio, unidade consubstancial e eterna, ter querido assumir a condio do

mltiplo, instaurando um peculiar dinamismo no curso dos tempos e nos

acontecimentos histricos.

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Esta presena da eternidade no tempo manifesta-se pelo compromisso que o

Princpio assumiu, ao criar, com a forma de cada criatura. Manifesta-se, tambm, no

facto de ter criado o prprio curso dos tempos. Se verdade que a condio histrica do

universo deriva da contingncia das formas criadas, aquela no se identifica com estas.

H uma economia dos tempos, um curso ou evoluo histrica, qual Sto. Agostinho

foi sensvel desde o primeiro momento em que entrou em contacto com os libri

Platonicorum, de modo particular ao confrontar o contedo destes escritos com o

sentido histrico que impregna profundamente a racionalidade crist. Com efeito, a

ausncia de qualquer referncia Incarnao do Verbo que Sto. Agostinho impugna a

quanto leu nos Platonicorum libri. a rejeio da presena histrica do Verbo - que

assume a contingncia das criaturas e, de modo particular, a do ser humano, fazendo-se

carne, sujeitando-se ao tempo, ao sofrimento e morte - que o Hiponense anota como

fragilidade radical, na mundividncia neoplatnica.

Para o filsofo, a Incarnao do Verbo revela o sentido da histria, a

inteligibilidade do curso dos tempos. para esse momento histrico que a

temporalidade converge. Com ele se inaugura um novo sentido para a realidade criada.

A relao entre o Uno e o mltiplo no se estabelece apenas no sentido descendente,

delineando uma estrutura gradual de formas o Uno maior do que o mltiplo, o eterno

mais do que o temporal. A instaurao da diferena ontolgica no , em absoluto,

entendida por Agostinho nem como degenerescncia do Uno, nem como instauradora de

um fatalismo csmico a realizar numa dinmica mediante a qual, para recuperar uma

perfeio original, tudo dever regressar e recolher-se no Princpio, anulando a

identidade de cada forma. Diferena , na ptica augustiniana, sinnimo de potenciao

de ser. Por conseguinte, quanto maior for a expresso de diferena, quanto maior a

realizao, no tempo, de toda a capacidade contida em cada forma existente, maior

manifestao de ordem e de ser, maior, afinal, a proximidade entre o Uno e o mltiplo,

entre o Ser e os seres. Com efeito, a mxima potenciao e expresso de ser no tempo

que faz parte do sentido da Criao, revelando ao ser humano o projecto criador divino.

Para Sto. Agostinho, na relao do Uno com o mltiplo, essa plenitude tem lugar

quando o Verbo Eterno de Deus assume a natureza humana, num determinado momento

do curso dos tempos. S a partir desse pice da histria se torna vivel, de modo pleno,

a relao do mltiplo para o Uno e, em concreto, uma efectiva comunicao e

comunho entre o ser humano e o Divino.

20

De facto, a impossibilidade de encontrar um verdadeiro mediador entre a

multiplicidade das formas e o Princpio Supremo de realidade fora, desde sempre, a

grande angstia das propostas filosficas da antiguidade. Se era possvel compreender,

de algum modo, a relao do Uno com o mltiplo em sentido descendente sob forma

de eterno retorno, de degenerao ou de lugar de combate entre princpios antagnicos-,

a relao do mltiplo para o Uno surgia sempre racionalidade humana como invivel.

Qualquer que fosse a forma de considerar a natureza do Princpio, este seria sempre, e

por definio, superior s realidades intra-csmicas, multiplicidade das formas. Ante o

Primado do Princpio, e precisamente por uma questo de ordem, no cabe reagir, mas

apenas acatar a realidade da inferioridade do mltiplo tal como ela . Se o Princpio

pode estabelecer relao com o Mundo, o inverso s aparente e ilusoriamente parece ser

possvel.

Sto. Agostinho d conta deste mesmo facto: assume-o no interior da sua

mundividncia, confirma a veracidade desta premissa. F-lo subtilmente, no confronto

entre a natureza da mente humana e a essncia da Deidade. Com efeito, para aceder

compreenso da natureza do Princpio, o Hiponense prope-se analisar aquela realidade

que, na hierarquia ontolgica e entre as formas disponveis considerao do esprito

humano, mais est ao alcance da razo. Assim, sobre a natureza da prpria mente

humana que Sto. Agostinho ergue o caminho privilegiado para compreender a natureza

do Princpio, a tal ponto est convicto de que, na mente humana, est impressa uma

efgie divina. Porm, aps longa anlise, o Hiponense comprova que infinita a

distncia entre a imagem de Deus impressa no ser humano e o Princpio de que ele

imagem. Uma vez mais, a tentativa de ascender do mltiplo para o Uno malograda,

mesmo supondo a boa vontade dos humanos que querem aceder ao divino, desejando

contemplar a essncia dele, identificar-se com ele, a fim de com ele cooperarem para a

instaurao da ordem e da harmonia no tempo e na histria, fazendo coincidir a vontade

prpria com o Bem Comum. Mesmo seguindo a via da interioridade, mesmo supondo a

boa vontade humana, mesmo procurando desvendar o sentido da histria e compreender

o lugar de cada pea e do conjunto delas na ordo rerum, o fosso entre o Uno e o

mltiplo, entre o Ser e os seres, intransponvel.

Sto. Agostinho apercebe-se claramente da impossibilidade de clarificar a noo de

ordem e de compreender a relao entre o Uno e o mltiplo sem encontrar um Mediador

e esclarecer a funo Dele, quer no plano da Criao, quer no da Salvao. A

identificao entre a ordem e a essncia da prpria Deidade essa relao eterna de

21

processes que inerente ao ser divino resultado, na obra augustiniana, de um

exerccio moroso da inteligncia da f, o qual culmina com a conquista de um pouco de

luz acerca da essncia divina, tnue raio que dista infinitamente do conhecimento da

prpria fonte de iluminao que a Verdade em si mesma. Compreender a relao entre

a Deidade, concebida como Unidade na Trindade, e o Universo criado manifestao,

j em si, de que a mente humana est em peculiar comunho com a Sabedoria divina.

Mediante esta participao, o ser humano entende que tudo quanto se d no universo

concorre para uma plenitude de realizao e de ser. Na perspectiva de Agostinho, tal

plenitude coincide com o facto histrico da Incarnao do Verbo, no obstante esta

superabundncia de ser e de sentido conviver com o efeito constrangedor do exerccio

histrico das liberdades criadas. De facto, estas so capazes de realizar a ordem do ser

ou de acordo com o sentido da histria, ou numa direco avessa quele. Por seu turno,

a Incarnao do Verbo, ao potenciar uma nova realidade sobre a histria, revela ao ser

humano, com um novo sentido, o encaminhamento de todas as formas de ser e da

prpria histria para um finis optimus, a realizar escatologicamente e no qual Deus ser

tudo em todos.

Ora, se a ordo rerum se realiza na constituio desta imensa sinfonia onde unidade

e multiplicidade, nos diferentes nveis de ser, desde o mais nfimo at essncia do

prprio Princpio, se conjugam, cabe indagar de que modo o mltiplo, tambm na

diversidade das suas formas, pode estabelecer uma efectiva relao com o Uno. Tal

investigao exige avaliar as condies de possibilidade de realizao da ordem no

sentido ascendente aquele que parte das realidades criadas para o Criador.

Sto. Agostinho, na esteira de S. Paulo, acolhe a via ascendente da razo na

compreenso do Ser supremo: das realidades criadas ao entendimento das realidades

divinas. De entre aquelas primeiras, como itinerrio privilegiado de ascese, presta uma

peculiar ateno natureza da mente humana, na trplice dinmica das funes que nela

habitam: o entendimento, a vontade e a memria. Para ascender compreenso da

essncia divina - e partindo de um dado de revelao, segundo o qual Deus diz de si

mesmo no apenas que , mas que o seu Ser Amor o Hiponense analisar,

precisamente com base na relao de amor, a natureza das funes da mente, atendendo

ao modo como elas se relacionam entre si e com os demais nveis de realidade.

Como resultado deste esforo analtico, o filsofo conclui que, no caso da relao

com seres que, na hierarquia ontolgica, se colocam num nvel inferior mente humana,

22

ou, at, no mesmo degrau dessa ordem, a relao pode estabelecer-se a partir das foras

da prpria mente. Porm, no caso da relao com o Ser Supremo, ou com o ser humano,

na exacta medida em que este imagem do Ser Supremo, tal relao extravasa as

possibilidades da forma humana. Este facto ocorre por dois motivos. Antes de mais, por

uma razo hierrquica o inferior no pode agir sobre o superior. Ora, superior

mente humana poder conhecer e amar um realidade que a excede hierarquicamente, ou

mesmo amar e conhecer uma realidade na sua verdadeira e mais ima dimenso, a saber,

enquanto nela est impressa a efgie divina. Com efeito, para que tal fosse possvel,

exigir-se-ia mente humana o conhecimento de si mesma e do outro no j no contexto

das funes da mente mas no seio da prpria Deidade. Porm, este conhecimento da

realidade em Deus s possvel mediante uma particular comunho com a Sabedoria

divina. Em segundo lugar, tal impossibilidade resulta de uma questo historicamente

determinada. Sto. Agostinho admite que o ser humano padece de uma debilidade

intrnseca sua forma, estando esta afectada por uma corrupo original, a qual, no lhe

impedindo o acesso Deidade, o confronta, nesta busca, com duas caractersticas

peculiares: a ignorncia de si mesmo e a dificuldade de aceder Verdade.

Para estabelecer relao com a Unidade Suprema, Princpio Soberano de Ordem, e

sanar as duas condies supra referidas, o ser humano necessita de um peculiar auxlio.

Por um lado, s poder conhecer o ser divino se este vier at ele. S poder conhecer

essa Unidade na multiplicidade, modelo pleno de ordem e harmonia, se ela se lhe

manifestar, facto que, tal como o da prpria Criao, apenas tem causa eficiente na

infinita liberalidade do Ser supremo. Por outro lado, para suprir aquela afeco da forma

humana, debilitada por uma corroso desde a sua origem, historicamente determinada,

no contexto da metafsica augustiniana aquela aproximao da Unidade Suprema ao ser

humano assumir, tambm, uma funo sanante. Tal proximidade minimizar, deste

modo, os efeitos da ignorncia da Verdade e da dificuldade que a razo experimenta no

percurso de ascese para a Deidade.

A funo do Mediador assume estas duas dimenses. Por ela, Sto. Agostinho

esclarece de que modo possvel estabelecer a relao entre o mltiplo e o Uno, no

sentido ascendente: da criatura ao Criador, dos seres ao Ser. Ao elucidar o lugar que

ocupa, na obra do Hiponense, a dimenso salvfica do Mediador, evidencia-se a soluo

augustiniana para o mistrio do sofrimento e da morte e torna-se legvel o modo como o

filsofo integra, na ordem das coisas, os bens e os males. Por seu turno, a dimenso de

23

Plenitude dos Tempos, associada Incarnao do Verbo, esclarece at que ponto a

Deidade est prxima dos assuntos humanos e se ocupa deles, uma vez que assumiu a

prpria natureza humana e, com ela, a contingncia e a temporalidade que a

caracterizam. Sto. Agostinho insiste, contudo, que, neste movimento descendente, a

Deidade no se degrada, no degenera, nem se corrompe na sua natureza. Inversamente,

ela eleva mxima expresso todas as dimenses de realidade que assume e com as

quais convive, potenciando-as no ser e revelando a plenitude de sentido que nelas se

encerra. De modo particular, a Incarnao do Verbo elucida o mistrio do sofrimento e

da morte. Por conseguinte, neste apogeu de proximidade entre Deus e a forma humana

que se descodifica de modo pleno e derradeiro o filosofema da ordem.

Com efeito, esse exponencial mximo para o qual toda a realidade criada est

escatologicamente orientada vivido j no tempo histrico pela existncia incarnada no

Homem Cristo. Porm, tal potencialidade , ainda e uma vez mais, apenas incrustada

em germe na histria pelo Mediador. A partir deste facto histrico, e em unio com ele,

todos os seres humanos podero ascender, efectivamente, unidade da sua forma

contingente com a plenitude de Forma que a Deidade, preservando sempre a

diferena. Com efeito, na ptica augustiniana, o esprito humano pode, em unio com o

Verbo Incarnado, estabelecer uma efectiva relao e comunicao com a Deidade. Esta

realizar-se- quer no plano vertical - aquele no qual o ser humano interage com o Ser

divino, envolvendo neste movimento todas as criaturas com as quais se relaciona no seu

agir intra-histrico -, quer no plano horizontal - aquele no qual o ser humano se

relaciona com os seus semelhantes e com as demais formas de ser que preenchem o

universo criado. Note-se, contudo, que estes dois planos s analiticamente admitem

separao. Efectivamente, na realizao histrica do ser humano, eles so inseparveis.

O filosofema da ordem adquire, por conseguinte, na identidade do Mediador, Deus

e Homem, a sua mxima inteligibilidade. Deus ocupa-se a tal ponto dos assuntos

humanos que incarna na histria, assumindo natureza humana. Sem deixar de ser Deus,

contrai o sofrimento e a morte, esclarecendo o sentido dessas realidades aniquiladoras.

Sem deixar de ser homem, ultrapassa, com a sua existncia marcada pelo trplice

movimento vida-morte-ressurreio, toda a contingncia temporal. Tornando vivel, no

tempo e na histria, a efectiva relao dos seres humanos com o Ser divino, o Mediador

esclarece e potencia, definitivamente, a proximidade entre o mltiplo e o Uno, atravs

24

de uma efectiva unidade e comunho entre ambos, e de ambos com a totalidade das

formas existentes.

Esta unidade, na qual se preserva a identidade de cada forma, realiza a plenitude

da ordem. Sinnimo de Dilectio seu Amor , a noo augustiniana de ordo no se reduz

ponderao do exerccio das vontades segundo uma escala de maius et minus. Ela no

avalia to-s a qualidade do amor de que capaz cada ser dotado de racionalidade. Um

entendimento da ordo amoris no seio da obra augustiniana que se esgotasse apenas na

percepo da qualidade do amor da vontade de cada ser humano seria ainda estreito para

compreender a radicalidade daquela noo, no contexto da obra do Hiponense. Com

efeito, a ordo identifica o imenso concerto de todas as vontades, em plena harmonia

com a vontade do Ser supremo, numa conjugao que significa uma efectiva e

interactiva comunho de todos os seres. Tal unidade realiza-se eternamente e de modo

cabal na essncia da Deidade. De modo tambm cabal e pleno, de acordo com a

contingncia que as caracteriza, a mesma unidade e comunho realizada entre as

criaturas dotadas de razo que, unindo-se ao Ser supremo mediante o Amor donum dei

-, se unem igualmente entre si, sempre preservando a diferena e sempre pela mediao

do Verbo. E, ainda de modo cabal e pleno, porque concorde com a possibilidade de

escolha que especifica as liberdades criadas, tal unidade tambm realizada nos seres

racionais que rejeitam a comunho com a Deidade. No obstante rejeitarem esta

comunho, fazem-no, ainda e sempre, mediante o amor. Na verdade, eles unem-se, por

um lado, aos seus congneres, na qualidade da vontade aquela que permanece no

movimento de averso a Deus ou rejeio do dom, amando bens perecveis, em lugar do

Bem Comum ou Eterno. Por outro lado, como tal movimento , ainda, uma expresso

de ser e de bondade, apenas viabilizado pelo prprio dom divino, a unidade destes

espritos com a Deidade no deixa de se realizar eternamente, mesmo se de modo

nfimo. Nela se manifesta ainda a magnificncia do Criador e a bondade do Ser

Supremo, no obstante tambm nela se verificar a indigncia metafsica da criatura.

O efeito desta plenitude de ordem, que s se realizar quando o curso dos tempos

atingir o seu trmino, a tranquilidade ou Paz. Esta reina eternamente na essncia

divina, identificando-se com a comunho essencial de Amor que Deus . A mesma Paz

reinar para sempre na Criao quando cada forma adquirir, no universo, o seu lugar

prprio. Tal ubicao aferida pela qualidade do amor que reina em cada forma, sendo

avaliada pelo modo como estabelece relao com os trs planos da hierarquia

25

ontolgica. Assim, para avaliar at que ponto o ser humano est ordenado de acordo

consigo mesmo necessrio ponderar o modo como estabeleceu relao com o Ser

Supremo, com o seu prprio modo de ser e o dos demais, como semelhantes e com

as outras formas de existncia, que apenas vivem e so. De facto, tambm estas levam

em si o apelo a participar na unidade com o Ser Supremo. Na verdade, aps a

Incarnao do Verbo e mediante a comunho das vontades humanas e divina, tambm a

forma dos seres desprovidos de razo encontra, no interior do cosmos, uma novidade de

sentido, pois a razo humana, na qual progressivamente se instaura a Sabedoria,

compreende o modo como pode direccionar tais seres ao Bem Comum, tornando-os,

assim, parte integrante do concerto csmico, intra-histrico mas escatologicamente

orientado para a plena e definitiva comunho com o Ser Supremo.

S ento, quando todas as formas tiverem atingindo, na unio com o Mediador, a

plenitude das possibilidades contidas no seu ser e no seu agir, em expresso de

Agostinho, Deus ser tudo em todos, preservando a identidade de cada expresso de

realidade. S ento a Paz, tranquilidade da ordem, estar realizada e se manifestar na

sua plenitude.

2. Metodologia

Indagando a obra de Sto. Agostinho desde o prisma supra referido verifica-se,

antes de mais, que a literatura auxiliar no abundante. Se possvel encontrar alguns

estudos sobre a noo augustiniana de ordo eles ficam-se, as mais das vezes, numa

anlise do termo no contexto dos primeiros escritos, cingindo-se a uma averiguao da

ordem como harmonia csmica. A noo fica, assim, restringida sua dimenso

esttica, sem se evidenciarem as suas razes metafsicas.

Poder-se-ia justificar tal facto pela considerao de uma evoluo, no interior da

obra do Hiponense, da noo de ordo, tal como acontece com tantas outras noes.

Destarte, uma leitura da obra augustiniana desde uma perspectiva cronolgica obrigaria

a cessar a indagao em escritos correspondentes a determinados perodos da designada

evoluo intelectual do Hiponense. um facto que esta perspectiva de anlise fez escola

em comentadores no incio do sculo passado, tendo subsistido de modo evidente at

meados do sculo XX. Trata-se da tentativa de encarar a obra do Hiponense a partir de

uma perspectiva gentico-evolutiva a qual, para alm de nos parecer extrnseca ao modo

26

como fluem os escritos de Agostinho, debate-se com a extrema dificuldade de fixar uma

cronologia definitiva para a grande maioria das obras do Hiponense.

No ser esta a metodologia de anlise aqui seguida. Ela afasta-se, tambm, de

duas outras perspectivas que, em nosso entender, marcam a literatura acerca de Sto.

Agostinho produzida sobretudo no passado sculo. um facto que abundam os estudos

que, desenvolvidos em paralelo com o desejo de esquadrinhar as influncias sofridas

pelo Hiponense das correntes filosficas com as quais dialogou e da tradio cultural

onde se inscreve, se detm em anlises de carcter filolgico ou historiogrfico. Sem

menosprezar estas perspectivas de anlise, o presente estudo encara o resultado delas

como um instrumento de trabalho, sem dvida til, mas, em ltima instncia, sempre

redutor, pois tantas vezes inconclusivo, dada a impossibilidade de provar

definitivamente uma ou outra das teses levantadas pelos especialistas.

Um outro conjunto de estudos que integram a literatura produzida nos ltimos

anos em torno da obra do Hiponense orienta-se no sentido de purgar Sto. Agostinho do

nus que a histria da filosofia ou da teologia lanou sobre a sua obra. Deste esforo,

na maior parte dos casos emergente de meios eclesisticos, resulta uma literatura que,

pelo menos de forma sub-reptcia, padece de um cunho apologtico. Da leitura destas

obras resulta um saibo de instrumentalizao da obra do prprio Hiponense. Tal

perspectiva, no obstante a virtualidade de esclarecer conceitos e de determinar teses

complexas da metafsica augustiniana, por vezes constrange uma leitura dos escritos

augustinianos despida de preconceitos.

A metodologia ora adoptada rege-se, acima de tudo, por um contacto directo com

a produo filosfica de Agostinho, dissecando-a luz do fio condutor supra enunciado:

o esclarecimento do filosofema da ordem e das questes metafsicas nele envolvidas.

Ao faz-lo, partimos da convico de que a noo de ordo permite uma compreenso

mais universal e profunda da obra do Hiponense, conferindo-lhe uma maior amplitude

de sentido. Por conseguinte, essencialmente um regresso s fontes, leitura da obra

augustiniana legada pelo trabalho da filologia e de acordo com as edies crticas, que

serve de base ao nosso trabalho. O objectivo deste esforo hermenutico evidenciar a

pujana da racionalidade augustiniana.

verdade que a dialctica augustiniana o resultado de um exerccio da

inteligncia da f, mas esse facto apenas manifesta, confirmando-a, a sua profunda

racionalidade. Afinal, no so a demora do raciocnio e a demonstrao daquilo em que

se acredita, princpios inerentes ao condicionamento histrico da razo humana?

27

No exerccio hermenutico de que resultou este trabalho procurou-se, acima de

tudo, trazer a claro a prpria obra do Hiponense, seguindo o fio condutor da sua

racionalidade quando questiona o modo com se relacionam a Unidade e Multiplicidade,

em Deus e no Mundo de que a Deidade Princpio. Outro no o ensejo do filsofo

quando coloca a noo de ordem no cerne da Filosofia. Outro no , tambm, em nosso

entender, o modo de evidenciar a dimenso universal da metafsica do Hiponense e de

comprovar a vigncia do resultado da sua produo filosfica e a radicalidade da sua

proposta.

28

29

CAPTULO I

O FILOSOFEMA DA ORDEM

1. Articulaes do filosofema no dilogo De ordine

No incio de De ordine, Sto. Agostinho invoca as teses mpias que, no obstante

serem claramente insatisfatrias, so as nicas que a cultura clssica prope para

equacionar o filosofema da Ordem. Embora tal filosofema abranja, j no seu enunciado,

um horizonte de interrogao mais amplo e, sobretudo, mais radical do que o de indagar

acerca da origem e da natureza do mal, este, afinal, que entra em conflito com a

inquietao radical do ser humano: o desejo de felicidade. Ora, dado que, a cada

instante, o ser humano esbarra com obstculos realizao de tal desiderato, a

existncia do mal insere-se no filosofema da Ordem como uma dificuldade para a qual a

razo deve encontrar uma soluo satisfatria.

Tal como equacionado por Sto. Agostinho, o filosofema em causa no indaga

sobre a existncia do Ser Supremo, ou de Deus, a qual dada por suposta. Este facto

justifica-se por dois motivos. Em primeiro lugar, o Hiponense inscreve o filosofema da

Ordem no horizonte mais radical da questo sobre o ser. Em segundo lugar, o contexto

cultural em que o filsofo se insere no respira os ares do atesmo, entrando em

conivncia, inclusivamente, com um excesso de religiosidade ou, melhor dito, com

aquilo que Sto. Agostinho considera uma deturpao dessa dimenso ima do ser

humano.

Na tentativa de equacionar o filosofema da Ordem e em busca de superar

paradoxos, a razo humana conclura, com os epicuristas, que no h Deus,

despreocupando-se de interrogar acerca da racionalidade do real. Esta seria,

efectivamente, a posio terica mais prxima do atesmo, ao tempo de Agostinho,

muitas vezes desacreditada por uma prtica de supersties e crendices que,

nomeadamente em De ciuitate dei, descrita como tendo-se generalizado, na vivncia

religiosa da gentilidade. Para Sto. Agostinho, a morte de Deus significa o sepulcro da

Filosofia. Com ela entra em luto, tambm, o sentido da existncia humana, pois se no

h nenhuma entidade suprema que garanta a racionalidade do Cosmos, ociosa e v a

30

tarefa de construir uma explicao coerente para o Universo em que o ser humano se

insere.

Numa outra forma de equacionar o filosofema, e reduzindo a noo de ordem

administrao do Universo por uma inteligncia suprema, ou ao conceito de

providncia, a razo humana respondera, em outras formulaes, que a ordem no

universal. Desde esta ptica, Deus no se imiscui nos assuntos humanos, entregando

estes ao curso da causalidade material. Esta tese poderia ser defendida pelos partidrios

de um estoicismo radical, ou at mesmo, por contraditrio que parea, pelos defensores

do neoplatonismo. Em qualquer caso, o Hiponense considera-a claramente mpia, pois

desvaloriza a noo de divindade. Um tal Deus no nem omnipotente, nem atencioso.

No , portanto, digno de devoo e piedade.

Por ltimo, caberia considerar a hiptese de Deus ser causa do mal, tese aberrante

que encarna a posio maniquesta, sendo esta, na perspectiva de Sto. Agostinho, entre

todas, claramente a mais mpia1.

Em De ordine, a discusso em torno a este conjunto de questes enunciada com

clareza. Trata-se de saber de que modo acontece que, tomando Deus o cuidado das

coisas humanas, se verifique tanta perversidade em tais assuntos. Como Agostinho faz

notar, tal modo de agir no conforme com uma recta administrao do real. Um

escravo inculto, o ltimo dos humanos, certamente faria melhor, se tal estivesse em seu

poder2. Efectivamente, a razo que se fixe, mesmo por breves instantes, em fenmenos

de natureza fsica, moral ou social, rapidamente encontrar defeitos no Universo. Deste

modo emerge uma justificao fcil, por parte da razo humana, para a imperfeio e

disformidade, para a desordem reinante, deduzindo que o mundo est mal organizado3.

1 Cf. DO I, I, 1 (CCL 29, p. 89). A mesma formulao retomada em LA III, II, 5 (CCL 29, p. 277). 2 Cf. DO I, I,1 (CCL 29, p. 89). 3 Num artigo de J. DANIELOU encontra-se um resumo, bem documentado e objectivo, das principais

teses acerca do Governo do Mundo, presentes na antiguidade grega e no gnosticismo primitivo. Em

concluso, o A. escreve: () Le mauvais gouvernement du monde est une thse proprement gnosticiste.

Pour les Grecs le dsordre est un ple oppos lordre, mais qui fait partie de la nature mme de

lUnivers. Pour les Juifs et les Chrtiens, le monde est bien gouvern par un Dieu sage et bon; le dsordre

y est introduit par le pch, mais nempche pas le monde dtre gouvern par Dieu. Pour les gnosticiste

au contraire lUnivers la fois stellaire et terrestre est luvre dun dmiurge infrieur, qui le gouverne

mal [J. DANILOU, Le mauvais gouvernement du monde , in Le origine dello gnosticismo.

Colloquio di Messina 13-18 aprile 1966 ( Leinden, 1970), p. 456]. A traos largos, so estes os aspectos

fulcrais das principais teses que se apresentam a Sto. Agostinho para elucidar o filosofema da ordem.

31

Para solucionar tais dificuldades, o estoicismo defendera a identidade entre a

noo de ordem e a causalidade universal, afirmando que essa razoabilidade do real

transcende o mero conhecimento humano acerca da conexo das causas dos fenmenos

da natureza. A ordo rerum no se identificaria, na perspectiva estica, com a

compreenso que a razo humana possa ter de um determinado fenmeno. De facto, ao

referir a razo ou ordem do cosmos, o estoicismo no indica uma construo razovel

de argumentos que permita justificar, por via demonstrativa, a causa de um fenmeno,

dada a convico de que a razo do real transcende a esfera da lgica humana, sendo

esta entendida como subconjunto de uma racionalidade mais ampla. O ser humano no

o cume nem o centro do Universo e, por isso, no em funo dessa pequena parcela do

cosmos que a ordo rerum pode ser descortinada. Nesta perspectiva, uma definio de

providncia, cara ao estoicismo, diria que o cosmos melhor do que o homem. A

racionalidade humana apenas uma funo da razo csmica, essa sim soberana e

eterna.

Isto mesmo se pode ler em De natura deorum, quando Crisipo expe os

argumentos a favor da existncia de Deus, identificando esta ltima noo com o

princpio fabricador da natureza, ou seja, a Razo Csmica4. A mesma tese

confirmada recordando os argumentos de Zeno: se o Mundo o melhor dos bens,

ento ele contm todas as perfeies, entre as quais se contam a Razo e a Sabedoria5. A

Alma do Mundo a razoabilidade dele. Por sua vez, o movimento eterno dessa Vida

justifica todos os fenmenos intra-csmicos, dos quais a vivncia humana um caso

particular, com as suas brisas benvolas e os mpetos abalos de ventos tumultuosos,

4 De nat. deor. II, 6, 16: (...) Etenim si di non sunt, quid esse potest in rerum natura homine melius; in eo

enim solo est ratio, qua nihil melius potest esse praestantius; esse autem homine qui nihil in omni mundo

melius esse quam se putet desipientis adrogantiae est; ergo est aliquid melius. est igitur profecto deus.

[Stutgardiae, 1980: Biblioteca scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana (Recognovit ed. W.

AX (1933), p. 55]. Em De nat. deor. II, 7, 18, depois de considerar os diferentes modos de existir, Crisipo

conclui que o Mundo o Ser Supremo, dotado de uma racionalidade intrnseca, ela mesma divina: ()

atqui certe nihil omnium rerum melius est mundo nihil praestabilius nihil pulchrius, nec colum nihil est se

cogitare quidem quicquam melius potes. et si ratione et sapientia nihil est melius, necesse est haec inesse

in eo quid optimus esse concedimus. ( p. 56 : it.n). 5 De nat. deor. II, 8, 21: () Quod ratione utitur id melius est quam id quod ratione non utitur; nihil

autem mundo melius; ratione igitur mundus utitur. similiter effici potest sapientem esse mundum,

similiter beatum, similiter aeternum; omnia enim haec meliora sunt quam ea quae sunt his carentia, nec

mundo quicquam melius. ex quo efficietur esse mundum deum. (p. 57).

32

umas e outros predefinidos e irrefragveis. Estes vaivns da fortuna mais no so do

que uma expresso da Vida csmica. A actividade humana integra-se, assim, como um

elemento mais da sucesso ordenada das causas, determinada pela Alma do Mundo.

Em De ordine, a reflexo acerca da ordem emerge a partir da percepo de

fenmenos naturais. O acto filosfico que d incio discusso a admirao de

Agostinho ante a alternncia do som do curso das guas junto aos balnea6. A

irregularidade do rumor ter vindo ao encontro dos ouvidos do filsofo e chamou-lhe

mais a ateno do que de costume. Perante a perplexidade de Agostinho cur ita esset?

, a resposta remetida por Licncio para o mbito das causas naturais: folhas que

caem no rio. Porm, o filsofo insiste na indagao, em busca da causa, acabando por

considerar que, no encontrando outra soluo, a de Licncio se pode inscrever no

mbito das sentenas provveis.

No interior deste Dilogo, os nveis de exigncia de resposta so, para estes dois

interlocutores, claramente distintos. Para Sto. Agostinho, inslito e digno de

admirao que alguma realidade no siga o curso da ordem manifesta, isto , que aquilo

que deveria acontecer de modo natural ou que, pelo menos, acontece de modo habitual,

seja capaz de sofrer alterao, dando lugar a uma aparente desordem. Para Licncio, o

domnio fenomnico da ordem apenas um subconjunto de uma ordem mais ampla,

abrangido por uma ocultissima ratio que, embora profundamente latente para os

sentidos humanos, se inscreve no percurso inaltervel da lei da causalidade material.

A primeira discusso registada em De ordine ronda mais em torno das convices

de Licncio do que de uma definio por este assumida, a qual, de facto, s lhe

solicitada depois de todo um dia de labor, dedicado a pr prova a certeza inconcussa

do jovem, segundo a qual nada se faz fora da ordem. Porm, esta inabalvel

convico cai por terra quando confrontada com um sem-nmero de dificuldades, as

quais emergem de modo assistemtico ao longo do Dilogo. Ao ser derrubada a

afirmao de Licncio acerca da universalidade da ordem surgem, de novo, os aporemas

nos quais o filosofema se subsume: ou os assuntos humanos esto deriva, pois no h

uma instncia suprema que deles se ocupe, ou tal instncia existe, mas no alcana todo

o real. Nesse caso, no suprema, e pode coexistir com outras realidades que lhe faam

frente na disputa pelo domnio do Universo.

6 Cf. DO I, III, 7 (CCL 29, p. 92).

33

Se, em De ordine, Agostinho e Licncio assumem como proposio consensual,

que nada se faz fora da ordem, porm o termo ordem no por ambos usado

univocamente. Licncio identifica a noo de ordo com o princpio de razo suficiente,

segundo o qual todo o efeito tem uma causa. Todavia, o princpio de causalidade

universal apenas d resposta origem do fenmeno na sua circunscrio fsica.

Responde razo de ser da sua presena no Universo como efeito de uma lgica que faz

coisas, revelando-se, contudo, incapaz de alcanar a percepo da finalidade delas. Em

De ordine, Licncio explicita o mbito ao qual se distende a sua convico sobre a

universalidade da ordem: a natureza, que gera os fenmenos fsicos, de nenhum modo

temerria, sendo a sua actividade definida pela sucesso exacta dos ns que estreitam as

relaes necessrias estabelecidas entre diferentes fenmenos. A causalidade universal,

aqui postulada, no ultrapassa o domnio das realidades materiais, no qual se inscreve e

ao qual se subordina a prpria actividade humana. Deste modo, a resposta dada pelo

filho de Romaniano pergunta em funo de que bem a natureza procriou (no caso em

discusso, rvores)? apenas pode manifestar a recusa a investigar sobre a natureza da

causalidade final7.

Licncio contorna a dificuldade apresentada pelo Filsofo de Hipona restringindo

claramente o horizonte do seu conceito de ordo. Dado que h um sem-nmero de

realidades cuja utilidade para os homens nfima ou nula, a investigao sobre a

finalidade do real irrelevante ou indiferente: a razo humana apenas pode interrogar

acerca da causalidade eficiente. O horizonte mental de Licncio , portanto,

voluntariamente restrito. S naquele mbito faz sentido interrogar a ordo rerum e, para

um tal domnio de compreenso, basta a indagao sobre a causa eficiente dos

fenmenos8.

Todavia, a convico do jovem ambiciosa, dado que, para tomar conhecimento

de uma tal causa, exige que o entendimento alcance aquilo que Licncio considera como

a plenitude do saber: o domnio da arte divinatria, ou prescincia humana. Na verdade,

este poder da razo mais no do que aquela forma de saber que capaz de se dilatar

7 Cf. DO I, IV, 11; V, 14 ( CCL 29, p. 94-95; p. 96). 8 A interveno de Agostinho em DO I, V, 13, aparentemente retrica, pode interpretar-se como

admoestao a Licncio para que esteja atento a tudo aquilo que lhe pode ser ensinado pela ordem das

coisas, facto que acontecer desde que se mantenha unido a ela pela cadncia das prprias questes.

34

no curso dos tempos, pela auscultao da ocultissima ratio que envolve os fenmenos

naturais, alcanando, assim, o encadeamento e conexo das relaes de causa-efeito9.

Porm, sobretudo quando Sto. Agostinho solicita a Licncio um juzo de valor

sobre a noo de ordem que se evidencia o limite das convices de Licncio. O jovem

interlocutor de Agostinho no capaz de decidir se a ordem um bem ou um mal,

precisamente porque colocou esta noo margem de toda a valorao, atribuindo-lhe

uma certa indiferena ontolgica10.

Note-se que, tal como equacionado na primeira parte do Dilogo, o modo de

abordagem do filosofema da Ordem circunscreve a pesquisa ao mbito do factum. Tal

como so ou esto, as coisas tm uma razo de ser, mesmo que, por qualquer motivo,

igualmente razovel, presentemente se desconhea qual a causa de um determinado

efeito. Desde esta ptica, embora se assuma que a ordo rerum tem um alcance

universal, ela no deixa de encerrar os acontecimentos do Mundo num circuito fatal.

Esta , sem dvida, uma resposta fcil. Fomenta a preguia da razo, que deixa de

inquirir o porqu, e a inrcia da vontade, que se exime de intervir no curso da Histria,

reconfortada, na sua fatdica cegueira, por um destino, cujo sentido, a existir, no dado

penetrar seno a um nmero privilegiado de mentes. Num tal contexto, o sbio o

adivinho e o conhecimento das leis csmicas est entregue aos vaticnios dele.

Em De ordine, as intervenes de Licncio propem a construo de uma

mundividncia onde a noo de ordem no tem contrrio, no tanto por ser uma ideia

suprema, mas por se considerar que tudo o que existe indiscriminadamente vlido,

uma vez que o prprio real que atribui indiferentemente igual valor a todas as suas

expresses: as coisas simplesmente so, esto a, colocadas por alguma causa. Neste

universo, no h, sequer, uma efectiva distino entre o erro e a verdade. O erro ter

seguramente alguma causa eficiente, pela qual se inscreve no curso exacto dos

acontecimentos, facto que lhe confere, tal como verdade, o estatuto de maximamente

ordenado. Licncio superou o cepticismo acadmico, do qual se manifestara partidrio,

nomeadamente em De beata uita11, e que o fazia declarar que a verdade apenas

concerne a probabilidade12. Agora adere a uma verdade que sustenta como inamovvel:

todo o efeito tem uma causa e nada se faz fora deste princpio. Contudo, uma tal

9 Cf. DO I, V, 14 ( CCL 29, p. 96). 10 Cf. DO I, VI, 15 ( CCL 29, p. 96-97) . 11 Cf. CA I, II, 6 ( CCL 29, p. 6); BV II, 15 ( CCL 29, p. 73-74). 12 Cf. CA III, V, 11 ( CCL 29, p. 41).

35

mundividncia, profundamente imbuda das convices provenientes do materialismo

estico, contm, ainda, o germe das perplexidades j enunciadas, a que outras se viro

acrescentar.

Por seu turno, Sto. Agostinho, ao procurar, em De ordine, um horizonte mais

amplo para estas convices, provando-as no mbito da causa final, introduz a noo de

ordem no horizonte de uma teleologia, indissocivel de uma apreciao valorativa do

real. O mestre de Cassicaco no nega que a realidade seja um factum, ou seja, que o

Universo se componha de um conjunto de fenmenos que se impem percepo

sensvel como irrecusveis e empiricamente verificveis13. Contudo, Agostinho sabe

que a compreenso de tais fenmenos no se pode reduzir ao mero impacto fisiolgico

sobre a sensibilidade humana, pois a prpria presena deles reclama a indagao pelo

termo ad quem para que serve tal realidade? til? benfica ou danosa? Para o

filsofo, a interrogao acerca da finalidade do real torna-se decisiva para apurar a

natureza do real e, inclusivamente, para ilustrar a essncia da causa eficiente. Da

decorre, em De ordine, o carcter radical da interrogao augustiniana, ao versar sobre a

utilidade e a bondade dos seres14.

Sto. Agostinho faz notar que, ao assumir, como fizera Licncio, o princpio de

razo suficiente como definio de ordem, necessrio, acima de tudo, tomar posio

sobre a natureza da causa final. De contrrio, esse domnio imediato de percepo das

realidades fsicas, o mbito do factum, torna-se completamente irrazovel. Por isso, na

perspectiva do Hiponense, se a noo de ordem entendida como um princpio causal

que faz coisas, importa maximamente compreender para que as faz. Sem esta

justificao, a actividade da ordem ser, em si mesma, irracional e, portanto, desprovida

de ordem, sendo manifesta a contradio do raciocnio. Deste modo, no obstante as

aporias em que De ordine se submerge, so de registar dois elementos acerca do modo

como, neste escrito de juventude, o Hiponense equaciona o filosofema em causa. Por

um lado, vai ao encontro da justificao de uma razo universal de natureza incorprea

13 Em De ordine, o termo factum tem o sentido daquilo que aparece, da realidade que, enquanto

manifestao da natura, percepcionada pelo ser humano atravs dos rgos sensveis externos.

Mediante estes, o factum torna-se disponvel reflexo da razo. Muitas so as causas possveis para a

existncia deste factum ou da natura. Na obra do Hiponense, a derradeira causa encontra-se numa

vontade omnipotente de ser: o factum ser entendido como efeito de um fiat primordial, integrando-se no

contexto da noo bblica-crist de creatio. 14 Cf. DO I, VI, 15 (CCL 29, p. 96-97).

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e, por outro lado, esta razo , para Agostinho, indissocivel da interrogao acerca da

finalidade do real. Assim, se, ao interrogar a relao entre Deus e os humanos, o

filosofema da Ordem se inscreve, antes de mais, no horizonte de uma teodiceia, s no

seio de uma teleologia ele encontrar uma articulao possvel, por parte da razo

humana.

No decurso do debate levado a efeito em De ordine, Licncio concede, finalmente,

que a ordo rerum integra os bens e os males. Esta formulao colide directamente com

o problema crucial da natureza do Princpio a ordem, ou no, noo suprema? A

ordem Deus, ou submete-se, ainda, a Deus, como entidade suprema, cume de uma

hierarquia ontolgica? Com estas interrogaes, a discusso do filosofema atinge o

vrtice da Filosofia, tal como Sto. Agostinho a concebe: como a reflexo sobre a

natureza da noo suprema que a razo pode alcanar e sobre o modo como ela se

relaciona com as demais formas de existncia.

Considerando a universalidade da ordem e atribuindo o primado ontolgico a esta

noo, exigindo que ela seja capaz de integrar bens e males, o filosofema, tal como

equacionado por Sto. Agostinho, indaga, afinal, sobre a natureza do Ser supremo. Em

De ordine, Trigcio que reduz ao absurdo a tese de Licncio, integrando-a no mbito

da interrogao sobre a natureza do Princpio Supremo de realidade.

De facto, identificando a ordo rerum com a realidade mais universal, a cujo

governo todas as demais esto sujeitas, Licncio julga ter alcanado a essncia da

divindade. Mas de que modo possvel entender que Deus integre e sustente, no seu

governo, o prprio mal, sem atribuir divindade a autoria desta noo daninha? Para

evitar semelhante aporema, necessrio estabelecer uma diferena entre a ordem e a

divindade, remetendo aquela para um domnio sectrio e negando-lhe, assim, o atributo

da universalidade.

No esforo de elaborar uma resposta para estas perplexidades, Licncio constri,

para a noo de ordo, enunciados antinmicos que permitem integrar,

indiscriminadamente, as teses neoplatnica e maniquesta acerca da natureza do

Princpio. Tal confuso e emaranhado de proposies tem, contudo, a virtude de

evidenciar que aquelas vises do mundo - neoplatonismo e maniquesmo -, no andam,

afinal, to longe uma da outra como poderia parecer. Se, como afirma Licncio, a ordem

o facto de Deus amar os bens e no amar os males, ento, mais do que uma noo

suprema, a ordem o resultado de uma aco divina. Submetendo-se dominao de

Deus, a ordo rerum no alcana o estatuto soberano: no divina nem integra os males,

37

caso em que estes caem fora da diligncia divina. Fica, assim, aberto o caminho para a

autonomia ontolgica das realidades nocivas e disformes, tal como sugere o

maniquesmo.

um facto que, tambm em De ordine, se considera a possibilidade de que Deus

gere harmonia, ao compatibilizar os contrrios. Deste modo, pretende-se garantir o

primado da ordem como Soberano Bem harmonia, congruncia, beleza -, mas Deus,

na sua relao com o Universo, emerge com caractersticas demirgicas, eximindo a

inefabilidade Dele ao contacto das confuses que pululam o cosmos. Considere-se,

ento, que a ordo rerum definida como realidade demirgica. Mediante ela, o

Princpio Supremo gera harmonia. Nela se resume o contacto que tal Princpio tem com

os assuntos que dizem respeito ao cosmos, pois a essncia daquele nem se esgota nesta

relao, nem est peculiarmente vocacionada para ela. Nesta interpretao - que se

conjuga facilmente com a neoplatnica, na medida em que esta confere Alma do

Mundo a funo de gerir o cosmos e de o governar - h, novamente, lugar, mesmo se

sub-repticiamente, para uma autonomia do mal.

Em De ordine esta proposta de uma condio intermdia da ordem na hierarquia

ontolgica surge quando se discute acerca do modo como se h-de entender que Deus

exerce a justia. Partindo da definio clssica de justia, segundo a qual esta se exerce

atribuindo a cada um aquilo que lhe devido, para que Deus possa ser justo,

distribuindo prmios e castigos, exige-se a preexistncia do bem e do mal. A noo de

ordo, agora identificada com o exerccio da justia divina, reclama a subsistncia da

contradio, o movimento antittico entre o bem e do mal. Novamente, bem e mal

surgem como categorias cujo princpio escapa ao domnio de Deus. Mas, querendo

investigar a origem de ambos, apurar-se- que, se o bem pode, sem dificuldade, derivar

de Deus, dificilmente se justificar que a natureza do mal decorra por iniciativa daquela

noo suprema.

Na verdade, considerando a ordo rerum como o efeito de uma harmonia de

contrrios, legitima-se a substancialidade do mal e a condio eternamente blica do

real, por exigncia da prpria subsistncia do Princpio de Ser. Mais ainda, a prpria

eternidade da justia - identificada pela harmonia de contrrios e entregue actividade

de um deus menor que exige a subsistncia do mal, pois onde no h distino e

diferena, onde todas as coisas so boas, no parece ser possvel o exerccio da justia.

A no existirem os contrrios e antteses, eternamente subsistentes, os interlocutores de

De ordine tm dificuldade em compreender de que modo Deus distribui a cada um

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aquilo que lhe prprio. Inversamente, se negam a Deus esta actividade, tero de

concluir que Ele no justo e surge, novamente, o aporema15.

Neste raciocnio, o que est em causa a relao entre as noes de ordo e iustitia.

Em De ordine atribui-se justia a eternidade, na medida em que uma propriedade

divina. Deste modo, a categoria da temporalidade introduzida no debate sobre a

natureza da ordem. Para que a justia, administrao, ordem ou providncia divinas

termos apresentados, em De ordine, como sinnimos e a exigir, do Filsofo de Hipona,

futuras distines - sempre se tenham exercido, necessrio postular a eterna existncia

do mal, o que equivale a afirmar a subsistncia desta realidade daninha como co-

princpio junto do bem, a sua coexistncia eterna junto da ordem. Ora, esta forma de

conceber a ordem enuncia, de modo cho, a tese maniquesta.

Em De ordine, Sto. Agostinho equaciona, pela primeira vez no contexto da sua

obra, o conjunto de aporemas com que se enfrenta a razo quando quer equacionar a

existncia de um Ser Supremo e a evidncia do sofrimento humano. Nesse Dilogo

recolhem-se algumas das solues culturalmente disponveis razo dos interlocutores

para enfrentar as dificuldades que se apresentam razo, no confronto com o filosofema

da Ordem. Assim, Trigcio intui que a justia divina no pode ser um atributo

dependente de outras realidades, extrnsecas divindade, tais como a existncia do mal.

Na verdade, a justia subsiste em identidade com o ser divino, eterno e imutvel, e

exercida por Deus de forma distributiva, quando se trata de conferir prmios e castigos.

Todavia, desde esta perspectiva no se v como anular a eternidade do mal, dado que,

para que a justia distributiva divina seja eterna, tal como se intui que eterno o ser de

Deus, necessrio que, desde sempre, o bem e o mal tenham existido 16.

Uma vez mais, a dificuldade de relacionar a eternidade do ser divino e a

temporalidade das aces humanas que obsta ao esclarecimento da noo de ordem. Na

resoluo apresentada por Trigcio ainda persiste a distino entre Deus e a Ordem, no

sendo esta ltima noo elevada condio de Entidade Suprema, mas apenas

reconduzida a uma das actividades de Deus, na relao - que se quer preservar to

indirecta quanto possvel - que Ele tem com o Mundo. A justia , de facto, considerada

como um atributo divino. Mas, quando se trata de a exercer, Deus socorre-se de uma

outra realidade, designada por ordem, dado que, para distribuir prmios e castigos de

15 Cf. DO I, VII, 19 ( CCL 29, p. 98). 16 Cf. DO II, VII, 22 ( CCL 29, p. 99-100).

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acordo com os mritos de cada um, tal Deus tem de se relacionar com a multiplicidade e

a diferena. Ao faz-lo, coloca em jogo a sua suprema perfeio. Encarrega, por isso,

uma outra entidade, a ordo rerum, de desempenhar tal tarefa.

A noo de ordo emerge, assim, como efeito de uma delegao de Deus. Ela ,

assim, uma degenerescncia Dele ou qualquer outra designao que se encontre para

identificar a relao entre ordem e divindade. Sendo assim, ela no , de modo algum,

universal. Acima dela, e com maior amplitude de aco, esto, antes de mais, o bem e o

mal, realidades que cabe ordem, afinal, arbitrar. Em sentido ascendente, coloca-se

seguidamente, na hierarquia ontolgica, o prprio Deus, que coexiste, eternamente, com

aquelas duas realidades ontologicamente antitticas, o Bem e o Mal. Inversamente,

quem queira admitir que sempre existiu uma entidade designada por Ordem, cuja

natureza universal e divina caso em que ela assume o perfil da Deidade - ter de

acolher a sentena segundo a qual o mal brotou no interior daquela, confessando ser

Deus o autor dos males e fazendo emergir o espectro desta mpia opinio17.

Em De ordine expe-se, ainda, uma posio filosfica que de modo algum Sto.

Agostinho desprezar, servindo-se, inclusivamente, dela, na orientao dos

desenvolvimentos ulteriores que prestar ao filosofema em apreo. Trata-se da posio

enunciada por Mnica. Com efeito, a Me de Agostinho sugere que a subsistncia

eterna da justia como atributo divino no exige a eterna subsistncia do mal. Mesmo

que se queira admitir que o juzo divino sobre bons e maus contemporneo da

emergncia do mal, da no se pode concluir, na perspectiva de Mnica, a eterna

subsistncia desta realidade negativa. O mal pode ter tido um incio temporal,

distinguindo-se, assim, radicalmente e por essncia, da eterna subsistncia de Deus.

A interveno de Mnica insinua que o filosofema da Ordem exige reflectir sobre

duas questes fundamentais, nele latentes, as quais incidem, fundamentalmente, sobre a

categoria da temporalidade e sobre a origem dos seres. Com efeito, Mnica sugere que

uma reflexo sobre estes dois aspectos poderia descortinar quer o mistrio do mal, quer

a natureza da ordem, evidenciando a interligao entre estes quatro elementos:

temporalidade, origem dos seres, existncia do mal e ordo rerum. Mais ainda, no dizer

de Mnica a emergncia do mal coeva, no da essncia de Deus, mas do exerccio da

actividade judicativa Dele sobre o Mundo. Tal modo de posicionar a questo dissocia a

eterna justia de Deus, atributo de essncia, e o exerccio distributivo da mesma

17 Cf. DO II, VII, 23 ( CCL 29, p. 119-120).

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qualidade divina que s levado a efeito na relao que Deus estabelece com o

Universo. Seja qual for o modo como o mal tenha brotado no Mundo, desde sempre ter

estado submetido ao poder da eterna rectido do ser divino. Na realidade, a interveno

de Mnica em De ordine antev as condies de possibilidade para a soluo do

conflito entre a universalidade da ordem e a existncia do mal, quando afirma que a

justia divina no permitiu que o mal, uma vez nascido, estivesse desordenado, tendo-o

reconduzido ordem, obrigando-o a que se lhe submetesse

Em De ordine, Sto. Agostinho enuncia, tambm, a sua convico a propsito dos

elementos que envolvem a resoluo do filosofema. Na hiptese de a ordem ser

posterior ao surgimento do mal, este no causa daquela. Visto ser um bem, a ordem

esteve sempre junto de Deus, tese que exigir defender que todos os bens esto junto

desse princpio Supremo. Assim, ou sempre existiu nada a que se chame mal ou, se o

mal teve um comeo, ele aconteceu estando contido na ordem das coisas. Porm, para

defender esta tese, Sto. Agostinho obrigar-se- a mostar que o mal no seno uma

expresso diminuta da bondade dos seres. Mais ainda, ao afirmar que a ordem sempre

esteve junto de Deus, Agostinho ter de justificar que ela prpria Deus. Para tal, ser-

lhe- necessrio alcanar uma noo suficientemente ampla de divindade, de modo a

que, sem corromper a unidade divina, nela se integrem, a um tempo, todas as diferenas

inerentes pluriformidade do real, bem como a prpria ordem, que as administra e

governa. Agostinho compromete-se, assim, a uma tarefa deveras ambiciosa: mostrar que

a noo de ordem uma realidade simultaneamente diferente da substncia divina e

idntica a ela, dependendo da perspectiva sob a qual a razo humana a considere.

O filosofema da Ordem abrange um sem-fim de questes deveras complexas.

Quem poder encontrar argumentos para tamanhas contradies? Em De ordine, o

filsofo - reconhecendo-se impotente perante a magna silua rerum com que se depara

como objecto de relexo - admite que h uma nica via para encontrar solues:

recolher o esprito, maturar a cogitao no recndito da alma consigo mesma. Na

proposta de Agostinho, onde so reconhecidas as influncias da metodologia

neoplatnica do regressus animae, s a partir do cume da Verdade pode todo o filsofo

digno desse nome contemplar, sem perturbao, as contradies da vida e discernir o

lugar que estas ocupam no conjunto dos seres, formando a harmonia da existncia

individual e csmica. Uma vez alcanado esse vrtice, a mente humana no mais

perspectivar o real com base no produto fabricado. F-lo- tomando como posto de

observao a prpria Razo, Artfice de todas as coisas. Para alcanar esse patamar de

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contemplao, Sto. Agostinho no conhece seno duas vias, s quais, contudo, no

atribui igual valor epistmico. So elas o itinerrio da razo, que se h-de dedicar s

artes liberais, ou a via da resignao adeso aos mistrios. Por ora, uma vez que as

interrogaes e dificuldades moram no prprio esprito do Hiponense, resta-lhe

recomendar o itinerrio da dedicao da mente erudio pelas artes, como caminho

seguro para a descoberta dos paradoxos acerca da ordo rerum18.

2. Ordo disciplinarum

Ainda em De ordine, Sto. Agostinho regista outra arduidade da pesquisa, a

acrescentar obscuridade que acompanha a investigao acerca da natureza da noo de

ordem e em ntima conexo com ela. Com efeito, ainda que algum venha a superar as

angstias dos que se embrenham na explanao de to misteriosa noo, ter de contar

com a falta de aceitao daquilo que expe, por parte dos ouvintes. Esta resistncia est

em estreita conexo com a ausncia de qualidade de esprito, pois a posse das virtudes

intelectuais e morais, que constituem o ideal do homem sbio, condiciona a capacidade

humana de entender quanto diz respeito Filosofia.

Em De ordine, confrontado com a inpcia dos seus interlocutores, Sto. Agostinho

profere um longo excurso sobre a erudio, convicto da eficcia desta como via asctica

da mente que quer ascender das realidades corpreas s incorpreas19. Para o filsofo, a

importncia dos diferentes saberes consiste em que, neles, a razo manifesta toda a sua

mestria na arte de ensinar a sua prpria natureza, auto-revelando-se. Ora, uma vez que a

natureza da razo a mesma que a do Mundo Inteligvel, mediante ela tal Mundo

poder ser contemplado pelos que se dedicam ao cultivo das realidades da alma20.

Sto. Agostinho far consistir todo o projecto da sua filosofia na ascese da alma

para o inteligvel. Ao longo da sua obra, esta ascese vir a assumir distintos matizes e a

manifestar as suas virtualidades, as quais ultrapassaro amplamente o mero exerccio de

erudio. Porm, um facto que, nos primeiros escritos, insiste na instrumentalidade da

18 Cf. DO II, 5, 15 (CCL 29, p. 115). 19 Retract. I, III, 1: (...) Sed cum rem viderem ad intellegendum difficilem satis aegra ad eorum

perceptionem, cum quibus agebam, disputando posse perduci, de ordine studendi loqui malui, cum a

corporalibus ad incorporalia potest profici. (CCL 57, p.12). 20 Cf. DO II, XII, 35 ( CCL 29, p. 127).

42

dedicao da razo ordem dos saberes, na tarefa de conquistar a Sabedoria. Note-se,

contudo, que o Filsofo de Hipona no convida a razo a este esforo movido por um

frvolo af de erudio. Como notrio, sobretudo em De ordine, Sto. Agostinho f-lo

por estar convicto de que a razo ou ordem se manifesta em cada um dos saberes,

enquadrando este projecto de erudio naquele outro af, mais geral, de ascender s

realidades incorpreas por meio das corporais. Esta proposta, que corresponde a um

modo de conceber o real, pautar a obra do Hiponense. Se, nos primeiros escritos, ela

est fundamentalmente dependente da metodologia de ascese de tradio neoplatnica,

posteriormente ela fundir-se- com o enunciado paulino - per ea quae facta sunt

intellecta conspicitur21 - numa lgica onde a metafsica crist da Criao adquire

plenitude de sentido, no obstante ser um facto que j o neoplatonismo identificava a

busca do saber com uma atitude vivencial. Todavia, como se ver, o itinerrio

augustiniano ir divergir do neoplatnico, tanto no plano terico, como enquanto

proposta de vida.

Quer caminhando mediante os produtos da razo, que so as disciplinae, quer

tomando como ponto de partida de reflexo as realidades criadas, a natureza da razo

que o filsofo intenta descortinar, consolidando, progressivamente, a sua convico

segundo a qual a natureza da ordem idntica Inteligncia, Artfice de todas as coisas.

Para Sto. Agostinho, a racionalidade da ordem apreende-se nas realidades corpreas,

mas a sua plenitude s se adquire numa comunho com a Sabedoria, Artfice de todas as

formas. Nela reside a ratio essendi do real, a racionalidade do conjunto de fenmenos

que compem o Universo, o princpio e a finalidade que justificam a existncia de cada

um deles e do conjunto. Por isso, a proposta augustiniana de aquisio de Sabedoria

aponta para a comunho de cada razo singular com essa Razo Artfice, sendo

necessrio encontrar uma forma de interligao entre ambas que permita realizar este

ideal. Nos primeiros escritos e, de modo particular, em De ordine, Agostinho est

convicto de que tal comunho se realiza como trmino de um esforo da razo quando

se dedica aprendizagem. ne