Introdução à Esquizoanálise - Baremblitt (limpo).pdf

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Introdução à Esquizoanálise Gregório Baremblitt Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p. 2. Edição Baremblitt, Gregório [2003]. Introdução à Esquizoanálise 2. Ed., Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p.

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  • Introduo Esquizoanlise Gregrio Baremblitt

    Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Flix Guattari, 2003, 138p.

    2. Edio

    Baremblitt, Gregrio [2003]. Introduo Esquizoanlise 2. Ed., Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Flix Guattari, 2003, 138p.

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    Apresentao 2.a Edio

    com gratido e satisfao que o Instituto Felix Guattari de Belo Horizonte apresenta a segunda edio do "Introduo Esquizoanlise" de Gregrio F. Baremblitt.

    Os exemplares da primeira edio se esgotaram com uma rapidez que no espervamos, e os leitores, especialmente alunos universitrios, os de nossos cursos e outros interessados na obra de Deleuze e Guattari nos solicitaram uma ampliao da mesma. Essa estimulante demanda fez com que a presente edio seja de um nmero limitado de exemplares e possa ser considerada como preliminar de uma terceira, muito mais extensa, que est no prelo.

    O autor considerou necessrio acrescentar a essa segunda edio um apndice no qual se trata de temas, preferencialmente includos em "Mil Plats", que foram pouco desenvolvidos na primeira.

    Fazemos presente aqui nosso agradecimento ao staff do Instituto Felix Guattari pela eficiente e generosa colaborao nas tarefas de traduo, correo e montagem do presente texto, assim como por valiosas sugestes recebidas para o contedo do mesmo: Dalva A . Lima, rika Rianni, Irene Ferreira do A . Oliveira, Luciana Tonelli, Neuza Beatriz H. G. Pereira e Patrcia Ayer de Noronha.

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    In Memoriam de Felix Guattari*

    Este evento especialmente emocionante para mim por vrios motivos. Ele emocionante no sentido das emoes entusisticas, porque as ideias de Guattari tm sido fundamentais em minha formao e, como pretendo explicar, tambm em minha vida cotidiana, pessoal.

    Mas tambm um momento duplamente triste porque estarmos reunidos para prestar homenagem a uma figura que faleceu em uma idade e com uma vitalidade que, fazia-nos pensar, poderamos aguardar muito ainda de sua capacidade produtiva. Por outro lado, uma grande amiga nossa, Sonzia Maria de Castro Mximo, que foi a gestora de todo esse encontro, tambm faleceu, de forma absolutamente inesperada, vtima de um acidente de trnsito: Sendo assim, hoje estou aqui para falar a vocs no marco da perda de dois grandes amigos, e tentaremos transformar esta situao de luto em, pelo menos, um encontro produtivo, que nos permita superar essa tristeza.

    Felix Guattari, em uma vida relativamente breve, conseguiu desenvolver tantas atividades, produzir tanto, criar tanto, que falar acerca desta vida, em um tempo curto, uma tarefa quase impossvel. Mas fao questo de falar de todas e de cada uma das coisas que ele fez, embora apenas mencionando-as, enumerando-as. Eu acho que, entre todos os mritos que Guattari tem ou teve, o fundamental o de fazer ver ao mundo, este mundo um tanto ctico, um tanto decepcionado no qual ns vivemos, este mundo utilitarista, pragmatista (no mal sentido da palavra), este mundo, em muitos sentidos, medocre e cnico, que possvel viver de uma maneira produtiva, de uma maneira brilhante, de uma maneira herica. No dentro das modalidades do herosmo revolucionrio clssico, mas abrindo a perspectiva de um novo tipo de herosmo... Um herosmo mais amoroso, mais moderado, como Guattari mesmo o chamou, em algum livro, "uma nova suavidade". Ento, parece-me importante detalhar tudo o que Guattari fez, porque uma das queixas que eu formulo, e que sei que muitas pessoas formulam em nosso meio, de que "no tm tempo" para fazer grandes coisas. interessante poder

    Conferncia proferida por Gregrio F. Baremblitt na Aliana Francesa em 26/1 0/92, como homenagem pstuma a Felix Guattari.

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    Exaltar, poder examinar a vida de uma pessoa que tinha tanto ou menos . Tempo que ns. E, sem dvida, foi capaz de fazer uma quantidade de coisas que deixaram o mundo diferente depois de ele ter passado por onde passou.

    Guattari faleceu aos sessenta e dois anos de idade, na noite de 28 de agosto passado, no hospital onde ele trabalhava muitos anos, desempenhando tarefas clnicas. Ele nasceu em trinta de abril de mil novecentos e trinta, em Colombes, Frana. Sua escolaridade foi muito irregular e difcil. Estudou farmcia e filosofia, mas no conseguiu formar-se em nenhum desses dois cursos. Na Segunda Guerra Mundial participou de um movimento destinado a construir albergues juvenis, moradias para os refugiados de guelTa. Dentro de suas tarefas polticas, ele teve contato com muitas figuras intelectuais da Frana, e se encontrou com duas especialmente importantes. Uma, a do trabalhador em sade mental de orientao anarquista e libertria, Franois Tosquelles, que tinha imigrado da Catalunha, no tempo da guerra civil. E com Jean Oury, um grande psiquiatra francs. Por outro lado, Guattari tinha descoberto as ideias de outro grande psiquiatra, Franz Fannon, um psiquiatra argelino, que posteriormente chegou a ser Ministro da Sade Pblica da Arglia, autor daquele grande livro "Os Condenados da Terra".

    Jean Oury, Guattari e outros acharam um castelo em runas e, fazendo uma reforma do mesmo, construram uma clebre clnica psicoteraputica e psiquitrica denominada "La Borde", que se transformou em um verdadeiro campo experimental para uma srie de propostas psiquitricas modernas, alternativas e at revolucionrias, que continua existindo e sendo uma fonte de inspirao para todos os movimentos alternativos psiquitricos do mundo.

    Guattari militou na Juventude Comunista, mas foi expulso por sua oposio aos acontecimentos de Budapeste e poltica do Partido Comunista na Arglia. Participou na organizao de ajuda "Frente de Libertao Nacional Argelina". Escreveu para um peridico comunista relacionado com a Liga Comunista e com as organizaes marxistas e anarquistas. Interessou-se pela Psicanlise e se analisou com o professor Jacques Lacan durante sete anos. Pertenceu Escola Freudiana de Paris, que, como veremos mais para frente, teve vrios dissidentes, mas nenhum destes chegou a questionar a razo da existncia dessa escola,

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    ou seja, a Psicanlise em si mesma. Guattari fundou a Federao de Grupos de Estudo e Pesquisa Institucional, ou seja, uma enorme corrente que reunia experts de diferentes disciplinas, antroplogos, socilogos, economistas, etc., que se ocupavam em estudar as instituies. Guattari fundou tambm a revista "Recherche", que teve um papel importantssimo na, divulgao das ideias institucionalistas. Em 1966, organizou um jornal e um grande agrupamento que se denominou "Oposio de Esquerda". Participou tambm da redao das novas teses da "Oposio de Esquerda", propondo uma tica militante que reunia os descontentes de todos os partidos polticos de esquerda, particularmente da Liga Trotskista e do Partido Comunista Francs. Participou na operao de ajuda ao povo do Vietn na guerra contra os Estados Unidos. Em 1967 foi um dos fundadores da Organizao de Solidariedade com a Revoluo Latino-americana, organizao esta do intelectual Rgis Debray, que estava preso na Bolvia. Em maio de 1968, Guattari associou-se a vrios setores protagonistas desse importantssimo fato histrico e participou, pessoalmente, de uma das manobras tticas que foi a ocupao do teatro Odeon. Fundou o CEPFI Centro de Estudos e Pesquisas de Formao Institucional, centro esse que publicou obras tais como "Genealogia dos Equipamentos Coletivos", "O ideal militante", etc. Dentre suas publicaes na Revista "Recherche", uma em particular se referia aos movimentos homossexuais, o que motivou sua priso, tendo sido anistiado por Giscard d'Estaign. A partir de 1970, militou ativamente pela implantao da rede de rdios livres, a primeira das quais se chamou "Alice". Fundou o CINEL Comit de Iniciativa pelos Novos Espaos da Liberdade, organizao que defendeu os extremistas autnomos italianos e que lutou pela libertao do intelectual italiano Tony Neri, preso na Itlia, por sua. vinculao com as Brigade Rose. Em 1981 foi um dos artfices da candidatura do clebre cmico francs Coluche. Foi membro ativssimo de uma grande organizao ecolgica chamada "Gerao Ecolgica" e, finalmente, fundador da Rede de Alternativa Psiquitrica, um Movimento com propostas psiquitricas crticas que se estendeu pelo mundo inteiro.

    Bem, tudo isto fala acerca da militncia ativa de Guattari no campo, no apenas da cultura, mas dos fatos polticos concretos, os principais que agitaram a Histria durante o perodo de sua juventude e de sua maturidade. Por outro lado, Guattari escreveu os seguintes livros:

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    "Psicanlise e Transversalidade", que pertence ao perodo em que ainda era psicanalista; "A Revoluo Molecular", um belo livro que resume suas propostas de militncia poltica; "O Inconsciente Maqunico", onde expe a reformulao que fez da ideia do inconsciente freudiano; posteriormente escreveu com Gilles Deleuze, o grande filsofo e seu amigo pessoal, "O Anti-dipo", um livro que foi expressivo do movimento poltico e cultural de maio de 68. Fez um estudo com Deleuze sobre o escritor Kafka, a quem eles consideram uma das maiores expresses de um gnero que seria "uma literatura menor"; depois, escreveu, tambm com Deleuze, "Mil Plats", que algo assim como o segundo tomo de "O Anti-dipo". Mais recentemente ele publicou um livro chamado "Caosmose", e imediatamente antes deste, um belo livro sobre Ecologia, chamado "As Trs Ecologias", e depois, com Gilles Deleuze, "Que Filosofia?". Isso sem mencionar inmeros artigos publicados em todos estes rgos que acabamos de expor. Por outra parte, publicou, em portugus, em colaborao com S. Rolnick, o livro "Cartografias do Desejo", e, na mesma lngua, foi editado um pequeno volume de suas conversas com Lula.

    Ento, encontramo-nos aqui evocando a figura de um intelectual, praticamente autodidata, que no chegou a cumprir a burocracia de nenhum ttulo universitrio, que produziu uma quantidade assombrosa de textos, que conseguiu relacionar-se de forma produtiva com as figuras mais importantes das ltimas duas ou trs dcadas, que militou poltica e ativamente, tanto nas organizaes tradicionais, como na maioria das alternativas importantes deste perodo, e, alm do mais, foi criador de uma srie de movimentos, fundador de uma srie de dispositivos polticos que tiveram um papel importantssimo nas tentativas de transformao do que o mundo moderno e ps-moderno. Eu acho que uma figura deste tipo, desta magnitude, desta transcendncia, estamos acostumados a descrever e a encontrar antes de 1920, de 1930. Estas so figuras do porte de um Trotsky, de um Marx, de uma Rosa de Luxemburgo, ou um Gramsci, que, desde a Segunda Guerra Mundial, pareciam ter-se extinguido. Como tambm parece ter-se extinguido, de nossas vidas cotidianas, todo o impulso firme, ambicioso, entusiasta para a construo de uma existncia decididamente mais digna. Por isso, creio que ao se falar neste homem, Guattari, no se trata de destacar um ideal, porque a obra de Guattari est toda encaminhada a demonstrar que os ideais no

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    existem, que os ideais so "ideias puras", que ningum tem por que reproduzir ou copiar. Por este motivo, no diramos que Guattari um ideal, no diramos que Guattari um modelo, mas sim, diramos que Guattari um exemplo de como se pode viver de forma que a vida seja a realizao de um bem, de uma forma de criao e de inspirao, que a vida ps-moderna parece ter proscrito completamente de nosso cotidiano.

    Bem, se s fazer este detalhamento da militncia poltica, da produo bibliogrfica, da atividade cientfico-societria de Guattari j toma tanto tempo, e espero ter dado pelo menos uma imagem panormica, como que ns podemos sintetizar essa fulgurante produo terica de Guattari, difcil de dissociar da sua produo unida a Gilles Deleuze? Essa unio produtiva com Gilles Deleuze j configura uma espcie de milagre intelectual que absolutamente inslito na Histria da Cultura. Um comentarista francs, um jornalista, afirma que essa obra uma "filosofia a duas cabeas", frmula que no me parece afortunada. Para comear, creio que a obra de Deleuze e Guattari no uma filosofia. E, por outro lado, justamente o fantstico, o assombroso, que essas obras escritas pelos dois j no so de "duas cabeas". Para quem estuda cuidadosamente "O Anti-dipo", "Mil Plats", "Que a Filosofia?" (este, o ltimo livro que publicaram), impossvel saber de quem so as ideias, se de um ou de outro. Ento, muito mais que criar uma filosofia a duas cabeas, criar um conhecimento, um saber, que faz os dois, no devir um, mas devir muitos. a transformao de um dueto em um enorme coral, em que no apenas no se sabe se isto foi escrito por Deleuze e aquilo por Guattari, mas tambm que neste coral cantam as vozes mais revolucionarias, mais crticas, mais escolhidas de nosso sculo.

    Como se poderia qualificar essa obra? muito complexo, porque essa obra inclui as cincias formais, a matemtica, a geometria, a lgica; contm as cincias naturais, a fsica, a qumica, a biologia; contm as cincias humanas, a antropologia, a histria, a economia poltica, a semitica, a psicanlise, e contm tambm muitos elementos da literatura, da pintura, da msica; contm as melhores ideias de toda a tradio filosfica do ocidente, preferencialmente um ramo da filosofia representada fundamentalmente pelas ideias dos estoicos, de Espinoza, de Nietzsche, de Bergson, de Hume. E at contm alguns momentos do discurso cotidiano, do saber popular, do senso comum. Ento para

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    quem pretende exp-lo em meia hora , o que isto? Se ns a chamamos de filosofia, um pouco injusto e limitativo, a no ser que a comparemos com a tica de Espinoza, que uma filosofia declaradamente feita para se aprender a viver de acordo com ela. uma disciplina? No . Porque serve para ser aplicada em qualquer lugar, por qualquer pessoa, e com qualquer motivo, sempre que este motivo inclua uma proposta de produo, de criao, de inveno, de felicidade, de transformao do mundo. Ento, o que diremos? Que uma proposta poltica? Claro que uma proposta poltica. Fundamentalmente micropoltica. Mas uma proposta poltica que pode ser utilizada por um indivduo, ou por um grupo, por um movimento, em um partido, em uma igreja, em um jogo de futebol, em qualquer lugar. Ento, no um discurso propriamente poltico, mas sim, politicamente utilizvel em qualquer de suas dimenses. O que resta para dizer que essas ideias so, segundo a velha frmula, uma concepo do mundo, uma weltanschauung, como diziam os alemes. Eu no gostaria de dizer isso na presena de algum guattariano ou Deleuziana assumido, porque seguramente no estaria de acordo. Uma concepo do mundo uma srie de ideias, de crenas, de convices acerca de como o mundo e de como devemos nos comportar nele. E esta obra de Deleuze e Guattari, embora esteja feita com representaes, pois est escrita com palavras, no uma ideologia. No um pensamento discursivo, mas segundo a prpria definio deles, uma mquina fundamentalmente energtica, destinada a vibrar e a fazer vibrar aqueles que dela se aproximam e a engaj-los em um movimento produtivo, que no passa exatamente pelas ideias nem pelas palavras, passa pelos afetos. Por afetar e ser afetado. Passa pela capacidade de vibrar em consonncia, passa pela capacidade de despertar o entusiasmo, a vontade de viver, a vontade de criar. E curioso que isto que eu acabei de dizer, costuma-se dizer, por exemplo, sobre os discursos religiosos ou sobre os discursos ideolgicos. E no se pode dizer que a obra de Deleuze e Guattari no tenha, em certo sentido, uma vocao religiosa. Mas religiosa na melhor definio de re-ligare, de unir novamente os homens, sobretudo os homens que a merecem, ou as partes dos homens que so capazes de unir-se para gerar produtos novos e dignos. Esse discurso, como vocs seguramente podero apreciar, se so leitores de Deleuze e Guattari, um discurso incrivelmente erudito, de um rigor e de uma seriedade, de uma literalidade nas citaes, que

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    chega a ser um tanto desesperador. Porque a gente no consegue saber como que dois intelectuais conseguem ler tantas coisas, entend-las to bem e extrair delas estritamente aquela parte que eles podem integrar no discurso prprio, com essa vocao revolucionria e produtiva. Mas toda essa erudio, toda essa severa lgica, toda essa ortodoxia no discurso acadmico no o mais importante dessa obra. O mais importante aquilo que fervilha por baixo, sob o discurso. essa capacidade de capturar o leitor e de ir integrando-o a um mundo que, aparentemente mgico, um mundo aparentemente de fico, infinitamente mais real que os discursos acadmicos. que os discursos filosficos especulativos, que as prdicas religiosas, ou que as promessas polticas. importante destacar essas caractersticas dos textos e dos discursos de Deleuze e Guattari, porque eles esto sempre integrados a um tipo particular de militncia. Eles sempre tm um "p" numa ao concreta que se exprime e se inspira nesses escritos, dentro da famosa ideia de prxis, ultimamente to esquecida. A proposta de uma micropoltica a ao poltica que acompanha a proposta analtica desses autores, que se chama "Esquizoanlise". A Esquizoanlise uma leitura do mundo, praticamente de "tudo" o que acontece no mundo, como diz Guattari em seu livro sobre as ecologias, sendo uma espcie de Ecosofia, uma "episteme" que compreende um saber sobre a natureza, um saber sobre a indstria, um saber sobre a sociedade e um saber acerca da mente. Mas um saber que tem por objetivo a vida, no seu sentido mais amplo: o incremento, o crescimento, a diversificao, a potenciao da vida. importante saber que essa micropoltica no est instrumentada por partidos polticos, embora no seja proibido exerc-la dentro deles. No toma, como lugar privilegiado de atuao, a academia, com suas produes ortodoxas e rgidas. No prope a formao de uma igreja, mais ou menos desptica. No necessita atuar dentro dos mbitos do Estado, apesar de no se negar a faz-lo. No precisa dos partidos polticos tradicionais, nem dos sindicatos, especialmente se eles so corporativos. No define um campo de esquerda mais ou menos global, que seria melhor do que o de direita. A proposta a de uma poltica que se pode fazer em todo e qualquer pequeno, mdio ou grande mbito em que transcorre a vida humana, a poltica dos movimentos singulares, dos movimentos que exprimem idiossincrasias, a poltica feminista, a poltica dos movimentos homossexuais, a poltica das minorias raciais, a poltica dos imigrantes, a poltica dos sem-terra, a poltica de todos aqueles que sofrem a explorao, a dominao, a mistificao do mundo atual, mas que no

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    pertencem necessariamente aos organismos, s entidades molares respeitadas e consagradas pelo mundo em que vi vemos, e que so responsveis pelo mundo estar como est. uma poltica baseada em uma proposta bsica que diz que a essncia da realidade a imanncia do desejo e da produo. O desejo, aquele descobrimento de Freud, o desejo inconsciente, dito no sentido no apenas de um espao do psiquismo, de uma fora do psiquismo, mas dito no sentido da essncia, da substncia de tudo aquilo que existe. Ele tem, dizem Deleuze e Guattari, o mesmo processo de funcionamento que Freud descreve no inconsciente psquico, particularmente em seu processo primrio. E, por outro lado, esse mesmo processo um processo substancialmente produtivo, a permanente criao do diferente, a gerao constante do novo. Ento, quando Deleuze e Guattari dizem que o processo ltimo da realidade produtivo e desejante, eles introduzem a ideia de desejo na materialidade produtiva, e a ideia de produo neste processo criativo que o desejo, e que habitualmente se atribui ou apenas ao campo do psquico ou s esferas mais ou menos ultraterrenas do metafsico. Esta proposta da substncia da realidade como repetio do diferente, do diferente radical, esta, chamemo-la assim, ontologia de Deleuze e Guattari, o pilar de sua proposta tica. Porque uma afirmao acerca da realidade, que diz que esta, em si mesma, uma fonte inesgotvel de criao, uma potncia incoercvel de transformao. No existe, na realidade, nenhuma fora definitria que equivalha a essa famosa "pulso de morte" freudiana ou a qualquer processo entrpico como os fsicos o descrevem nos sistemas fechados. uma ontologia, uma teoria do devir que, desde a base (se isto se pode chamar "base"), prope um tipo de vida que confie nisto, que acredite que somos portadores de uma energia criativa que nos faz formar parte de um mundo que simultaneamente fsico, natural, humano e maqunico. As separaes que se estabelecem neste mundo, e as hierarquias que se postulam nessas relaes so produto de uma concepo autoritria do universo, que sempre tem que ter algum setor da realidade que seja mais respeitvel, mais temvel, mais poderoso que o outro. Deleuze e Guattari dizem que em tudo que existe h uma imanncia que faz com que cada um dos campos seja igualmente importante.

    No descrevem a natureza como aquele campo da realidade que existe para ser dominado pelo homem, no descrevem as mquinas como criaes do homem que devem servi-lo, descrevem tudo isso em um nvel de interpenetrao, de igualdade hierrquica, em que cada segmento desse real deve combinar-se com o outro,

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    procurando o crescimento harmnico de todos esses setores ao mesmo tempo. Por outro lado, atribuem a esta conexo de potncias uma natureza produtiva, que no precisa fazer-nos acreditar que somos resultado de uma criao falida de alguma entidade sobrenatural ou transcendente. E tambm no precisa fazer-nos acreditar que somos um produto monstruoso de alguma natureza que funciona exclusivamente guiada por leis mais ou menos fascistas. Este saber e este afazer que estas duas figuras tm criado e promovido atravs de suas vidas militantes e de suas produes tericas, so feitos por um procedimento epistemolgico, digamos assim, que os autores assumem valente e quase humoristicamente.

    Eles postulam o procedimento do "roubo", eles "roubam", eles pegam de cada teoria, de cada prxis, aquela parte que lhes parece mais inspirada, aquela engrenagem que eles podero colocar no interior de sua mquina terica e militante, sem interessar-se por completo pelo rtulo geral que possa ter essa disciplina da qual pinaram e "roubaram" um conceito.

    Assim como para eles no existe hierarquia entre o mundo natural, o mundo subjetivo e o mundo maqunico e social, assim tambm no existem discursos consagrados, textos adorveis e discursos insignificantes.

    Um dos conceitos essenciais desta teoria, o conceito de "Corpo sem rgos", foi tomado simultaneamente de um poema de um literato louco, Antonin Artaud, de um mito dos ndios Dgons e de um mito das religies orientais que se chama "o Ovo Csmico". Acontece que esta categoria, "Corpo sem rgos", criada tomando elementos de um discurso "psictico", de um mito indgena e de um ideologema de uma religio oriental, um conceito que acaba dizendo uma coisa muitssimo parecida com o que diz a fsica quntica atual, com o que diz a teoria dos fractais, a teoria das catstrofes de Ren Thom, o que tem de mais evoludo na fsico-qumica atual. Estas coincidem. Por outro lado, o discurso do texto de Deleuze e Guattari feito da mesma maneira utilizada pelos artistas primitivos para fazerem seus quadros e obras de arte cotidianas. Eles se declaram bricoleurs, juntadores de ideias, sobretudo juntadores de elementos cuja caracterstica em comum no ter nada em comum.

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    Isto, primeira vista, poderia fazer supor que encontraremos uma salada de palavras. E no uma salada de palavras o que se encontra nestes textos, mas um discurso fulgurante, como eu dizia, revelador, crtico e, sobretudo, incrivelmente inventivo. Ento, esses ladres bricoleurs fazem depender essa criatividade justamente da sua irreverncia. Porque, apesar de fazerem citaes com uma preciso assombrosa e com um cuidado bibliogrfico surpreendente, eles conseguem fazer com que aquilo que roubaram diga alguma coisa nova, de tal forma que, se o autor que foi vtima do roubo chegasse a l-lo, no se reconheceria nele. H uma passagem no livro de Deleuze que se chama "Dilogos", onde o autor define seu mtodo de criao terica de uma maneira metafrica ou alegrica, dizendo que se trata de aproximar-se sigilosamente de um autor, pelas costas, e fazer-lhe um filho monstruoso, onde ele no se reconheceria. S que monstruoso, neste caso, no quer dizer teratolgico, no quer dizer ridculo, absurdo, disforme. Quer dizer maravilhoso, quer dizer absolutamente impensvel para o prprio autor deste conceito.

    Sem poder ir mais alm nesta introduo e supondo que haver algum perodo destinado ao dilogo entre este amvel pblico e eu gostaria de concluir referindo-me a uma das tantas relaes que estes textos de Deleuze e Guattari estabelecem, e que interessante: a relao com a Psicanlise. Eu a escolho quase que por um vcio profissional, porque eu sou psicanalista, e a escolho tambm por ter uma certa suspeita da presena de vrios especialistas na matria, aqui, no pblico. Mas poderia falar tambm da relao crtica da Esquizoanlise com o Materialismo Histrico. Ou poderia falar da relao crtica da Esquizoanlise com a Lingustica estruturalista, com a Antropologia estruturalista, ou com as concepes capitalistas da Economia. Mas vou escolher provisoriamente a relao com a Psicanlise.

    Os textos de Deleuze e Guattari, a meu modo de ver, pelo menos para a minha leitura, vm tendo uma modificao no percurso do tempo, com relao Psicanlise. Quando, por exemplo, Guattari escreve "Psicanlise e Transversalidade", um analisado de Lacan, e assina embaixo da teoria do significante, da concepo estrutural do psiquismo, etc. Mas manifesta uma franca preocupao poltica e social, que, como se sabe, estava ausente na obra de Lacan e na da maioria de seus continuadores. J quando Guattari escreve, junto com

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    Deleuze, "O Anti-dipo", faz neste livro uma crtica radical Psicanlise, que se pode resumir da seguinte maneira: a Psicanlise seria a cincia que d conta de um modo de produo do sujeito psquico. E este modo de produo do sujeito psquico , sem dvida, o modo de produo edipiano. no seio da estrutura edipiana, que todos os psicanalistas consideram nica, eterna e universal, que se gera "o sujeito psquico". Toda outra forma considerada incompleta e aberrante. Deleuze e Guattari, no que dizem acerca do sujeito psquico, afirmam que no existe um modo de produo deste que seja universal e eterno. Mas sim, que existe um modo historicamente dominante de produo do sujeito psquico que, obviamente, o edipiano. E se pode dizer que o modo edipiano de produo do psiquismo vamos diz-lo de uma maneira um tanto vulgar a produo de homens narcisistas, egostas, ciumentos, invejosos, petulantes, facilmente decepcionveis, majoritariamente heterossexuais, enfim, o que constitui o psiquismo habitual do nosso modo de ser, que universal. Mas no universal no sentido de que seja o nico. No universal no sentido de que sempre tenha sido assim, e no universal no sentido de que continuar sendo assim. Mas universal no sentido de que um modo de produo do sujeito psquico que teve sucesso em sua capacidade de impor-se aos outros, e at na sua capacidade de produzir uma teoria que seja prpria para descrev-lo o tal como ele : a Psicanlise. Mas tambm universal no sentido de que ele tem sido capaz de produzir elementos tericos que lhe permitem fazer sua autocrtica. E descobrir que no eterno, descobrir que no o nico possvel, e descobrir que essa dominao que ele impe sobre os outros um imperialismo, como existe o imperialismo poltico, o imperialismo ideolgico, o imperialismo econmico e at um imperialismo ecolgico. Em "O Anti-Edipo", ento, o psicanalista qualificado de algo assim como um mecnico especialista na restaurao, na reparao de um aparelhinho eletrodomstico que cumpre uma funo pobre, mas muito difundida.

    No percurso das obras posteriores, esta severa crtica inclui, alm do mais, uma reformulao completa do que o inconsciente (porque Deleuze e Guattari dizem que o inconsciente da Psicanlise ou um teatro antigo, com dipo, Jocasta, Laio e companhia, ou est estruturado como uma linguagem, e ento parece um jogo de palavras cruzadas, dessas que saem nos suplementos de jornal aos domingos), que nunca foi pensado como uma fbrica, como um lugar de produo, pura e

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    exclusivamente de produo, de uma produo desejante, de uma produo que ao mesmo tempo em que cria, goza. E que s abafada, s sofre, s entra em conflito com aquelas estruturas scio-econmico-polticas e psquicas que vivem da reproduo e no toleram a produo do novo.

    Nota-se tambm uma espcie de maior compatibilidade ou tolerncia em relao Psicanlise em "Caosmose", de Guattari, e no livro "O que a Filosofia?" Nestas duas obras est colocado, com toda a clareza, que a teoria, o mtodo, a tcnica e o campo clnico psicanaltico so uma espcie de "valor do nosso mundo", da nossa cultura, e que o fato de que tenha sido enfatizada nele toda uma tica de resignao, de castrao, de falta, de morte, no impede que, na prtica cotidiana, os aspectos vitais, os aspectos produtivos, os aspectos revolucionrios que todo psicanalista tem, apesar de ser psicanalista, se conectem, se articulem com aquilo que seu paciente tem de vivo, de produtivo, de revolucionrio e gerem curas que, uma vez analisadas com a metapsicologia freudiana, so entendidas de uma maneira diferente daquela que as fez acontecer. Mas isso no importa. O que importa que um espao social onde duas pessoas se encontram mais ou menos abrigadas, mais ou menos a salvo das formas mais grosseiras de represso do sistema. E onde, dependendo do poder criativo de seus desejos, podem dar origem a um bom encontro, que deixe os dois realizados em uma dimenso que nada tem a ver com os axiomas do procedimento.

    Bom, eu no posso estender-me muito mais, porque no quero cans-los e porque aguardo sempre, com expectativa, a participao do pblico. Mas queria concluir dizendo que Guattari veio ao Brasil pela primeira vez, trazido por uma instituio que eu fundei, junto com outros, o IBRAPSI Instituto Brasileiro de Psicanlise, Grupos e Instituies que no ano de 1978 fez um congresso no Rio de Janeiro, no qual estiveram presentes, junto com Guattari, as mximas figuras da psiquiatria alternativa do mundo. Esteve Basaglia, esteve Castel, esteve Thomas Szasz, esteve Goffman, esteve Beker, enfim... E tambm, os colegas desta orientao do Brasil e da Amrica Latina. Posteriormente a essa vinda de Guattari, eu tive ocasio de conviver e conversar com ele em vrias oportunidades, quando o IBRAPSI o trouxe novamente e quando outras organizaes o trouxeram. Guattari tinha uma particular simpatia pelo Brasil e parece que o Brasil, tambm, pelas ideias de Guattari. Penso que as ideias de Guattari nunca encontraram um campo to frtil como aqui no

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    Brasil. Devo dizer que, nessa convivncia, eu tive umas tantas discordncias com ele. Tivemos polmicas pblicas, em alguns congressos, porque tnhamos algumas divergncias no que se refere estratgia e ttica no processo de transformao do panorama da sade mental. Mas, transcorrido o tempo, eu tive a oportunidade de constatar que minhas opinies a respeito eram aparentemente mais realistas que as de Guattari. Eu prognostiquei, em vrias ocasies, para Guattari, que as transformaes que ele propunha e que pareciam estar se realizando aqui no Brasil, particularmente no campo da sade mental, e que outros companheiros haviam trazido com igual energia, por exemplo, Basaglia, no se iam realizar to rpida e facilmente como eles pensavam. Bom, isso j tem uns doze a treze anos. E quando examinamos o panorama da sade mental aqui, o que se v ainda uma dominncia da proposta psiquitrica clssica, da administrao excessiva de psicodrogas, da terapia biolgica com choques e insulina, um tratamento carcerrio feito ao doente mental. E v-se que os movimentos deflagrados por Guattari e por Basaglia, por Castel, Foucault e por ns mesmos no tm tido o sucesso que se esperava. Alis, eu fao questo de insistir em que, pode ser que eu tenha tido razo quando adverti que a coisa no iria ser to fcil, porque junto com essa permanncia da Psiquiatria clssica, tambm vemos a proliferao de um tipo de Psicanlise que, justamente, Deleuze e Guattari criticaram de maneira irrefutvel. Mas devo confessar que no sinto nenhuma satisfao em ter tido razo. Pelo contrrio, devo a Guattari uma fora, um entusiasmo, uma vontade e um desejo, que realmente se despertaram em mim com a leitura de sua obra e com meu conhecimento pessoal dele, e que todas as dificuldades passadas no conseguiram apagar por completo. Nesse sentido estou muito grato a meu amigo, e prometo, publicamente, e peo a quem se interesse por isto que me acompanhe, porque no abandonaremos a luta. Pode-se fazer a crtica da organizao, pode-se fazer a crtica dos resultados, como disse Guattari, mas no se pode fazer a crtica do desejo. E este desejo o que Guattari fez viver em muitos e que continuar vivendo. Muito obrigado.

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    Debate Pergunta: Qual a proposta da Ecosofia?

    Baremblitt: A relao entre o gnero humano e esse campo denominado natureza uma relao que tem sido pensada e tem sido atuada, executada, quase sempre de forma assimtrica e hierrquica. Quer dizer, supe-se que o homem no , ou pelo menos no exclusivamente um ser natural. E que ele deve relacionar-se com a natureza submetendo-a, colocando-a a seu servio, e utilizando-a, segundo um conhecimento ditado pela razo por UMA razo, sobretudo a razo ocidental, que seria sinnimo de verdade, sinnimo de eficincia e sinnimo de justia. Acontece que tem havido pensadores, tem havido povos, tem havido modos de analisar a vida que no aceitam essas premissas. Que consideram que o homem um ser natural e que sua relao com a natureza no deve ser uma relao de domnio, deve ser uma relao de acompanhamento, de harmonia, em que o homem no pode impor sua forma natureza com a suposio de que essa forma racional sinnimo de verdade indiscutvel. Mas ele pode aprender da natureza, porque a natureza contm um saber que no racional, mas que mais propcio para a vida que a organizao que os homens se deram em nome da razo. Ento, isso se pode dizer para qualquer modo de produo, para qualquer organizao social, mas se pode dizer especialmente para o capitalismo. Porque o capitalismo um modo de organizao das relaes humanas que est baseado na explorao do homem pelo homem, na dominao do homem pelo homem, na mistificao do homem pelo homem. E uma concepo assim, se faz isso com o homem, como no iria fazer o mesmo com a natureza? A concluso que esse sistema, que contm em sua estrutura, em sua essncia, a racionalidade, o saber cientfico, a conscincia, tem conduzido o mundo a uma situao como a atual, em que, dentro do gnero humano, a riqueza, o peso da misria, so distribudos de forma cada vez pior. No mundo atual temos cada vez mais miserveis, cada vez mais analfabetos, cada vez mais enfermos, cada vez mais deserdados. E temos levado a natureza a um ponto tal, que at essa soberba da cientificidade e do produtivismo capitalista teve que parar para examinar como as coisas esto, porque corremos o risco de perder o lugar em que vivemos, sejamos pobres, ricos ou como for. E por outro lado, o mundo da mquina um mundo que j tem sido acusado, em diversos

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    graus, de demonaco, ou tem sido idealizado como a salvao do universo. Deleuze e Guattari dizem que o mundo das mquinas um mundo que tem muito para ensinar-nos tambm. Mas que um mundo que no pode ser isolado dos interesses da humanidade em seu conjunto e no pode ser utilizado na explorao destrutiva da natureza, que imanente com a vida humana.

    Ento, a Ecosofia de Guattari prope um saber acerca do mundo da sociedade, do mundo da natureza e do mundo da mente, incluindo no mundo da sociedade a vida maqunica, o mundo das mquinas. uma espcie de democracia nosolgica: tudo tem o mesmo nvel de valor, tudo forma de vida, tudo produtivo e tudo pode ser encaminhado no sentido de uma harmonia crescente. Mas esse trabalho de conhecer e de transformar no pode ser feito em nome de nenhuma entidade que seja considerada superior s outras, de nenhuma tirania, de nenhuma transcendncia. Esta mais ou menos uma forma de resumir essa questo.

    P.: Eu queria saber o que voc pensa a respeito da questo do caos. Guattari fala muito sobre o caos que inerente como forma de criar novas formas de conhecimento.

    B.: Bom, nessa observao que fiz anteriormente, mostro que a obra de Deleuze e Guattari tem um componente muito importante de Ontologia, ou seja, de Teoria do Ser, de como as coisas so. Essa Ontologia afirma que a essncia ltima produo desejante os processos da mesma so aqueles segundo os quais o mais substancial do existente funciona ao acaso. Ou seja, a realidade constitutivamente desordenada, constitutivamente imprevisvel, constitutivamente catica, coisa que j diziam alguns filsofos, e coisa que hoje a microfsica e a macrofsica certificam. O que a cincia tinha estudado e aquilo no qual a poltica se baseia o estudo da regularidade de pequenas ilhotas de ordem que se do tanto no campo da natureza, como no campo da vida social, e no campo do psiquismo. Pequenas ilhotas em que o que predomina uma repetio, uma regularidade, que a cincia estuda e que formaliza em leis. Mas, a rigor, toda a potncia produtiva da realidade em qualquer mbito de que se trate depende mais dessa natureza catica, dos encontros ao acaso, das pequenas partculas (como diziam os esticos, ou Demcrito), mais do que desse planejamento racional e exploratrio que se faz daquelas reas de regularidade sujeitas a leis. O que Guattari prope, tanto como tema de investigao, de pesquisa, como forma de atuao tica, como forma de militncia poltica, a construo de

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    dispositivos que tenham em conta essa potncia produtiva do caos, do acaso, e elaborem estratgias e tcnicas destinadas a produzir formaes complexas no seio do acaso. Isto quer dizer formaes mais ou menos ordenadas, mas com uma ordem elstica, com uma ordem fraca, que permita o efeito produtivo, que permita a emergncia do caos criador. Nesse sentido, politicamente, e este talvez seja o tema da discusso, Deleuze e Guattari tm muito a ver com a tradio anarquista e com a tradio autogestiva de todos os movimentos histricos dessa caracterstica. Mas esta afirmao feita no apenas desde uma leitura poltica, mas tambm de uma leitura das afirmaes da fsica das nebulosas, ou da fsica do comportamento das partculas atmicas, ou de certa caracterstica das combinatrias biolgicas, pelas protenas alostricas, ou dos sistemas tipo cadeia de Markoff ou da matemtica de Riemann, enfim, de todos aqueles campos do saber em que se tem descoberto isto mesmo: a natureza catica do ser e a importncia de construir dispositivos que no sejam rigidamente ordenados, mas sim que deem possibilidade da emergncia criativa do caos. Deleuze havia produzido o termo Caosmos, que essa combinao de cosmos com caos. Isto no quer dizer que seja a hegemonia de uma ordem constituda e mantida rigidamente. Guattari acrescenta CAOSMOSE. Eu suponho que no se refere tanto a esse universo catico e ao mesmo tempo cosmtico, mas sim ao procedimento pelo qual se pode viver e produzir dentro dele. Existe a palavra osmose, ento, eu imagino que uma metfora tomada da caos e cosmos articulados e propostos como procedimento.

    P.: Quando ele fala dessa ordem em um movimento de desordem que uma ordem que no quer dizer normativizao, o que se faz com a angstia que a gente sente perante a perda da certeza e da segurana que dada pelo Institudo?

    B.: Nas caractersticas que apresentam certas propostas da filosofia socrtica, platnica; ou de certas correntes psicanalticas atuais, que tm uma enorme influncia de Heidegger, de Kierkegaard, ns vemos que a angstia atribuda a uma caracterstica essencial do sujeito psquico. Quer dizer, das trs teorias freudianas da angstia, a que predomina, nestas leituras, a de que a angstia uma espcie de percepo da ao da pulso de morte. Entretanto, em Freud, encontramos uma primeira teoria da angstia que era produto do recalque, do impedimento de que a libido se realizasse em encontros criativos e prazerosos. Desde logo, nestas duas

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    posturas, existe uma filosofia por detrs. Ento, se ns pensamos que a angstia a percepo de uma fora no nosso interior, que a pulso de morte, e que constitutiva da realidade no mesmo nvel, na mesma hierarquia que a de vida, logo, naturalmente, a angstia adquire um estatuto, adquire uma respeitabilidade, a angstia promovida como necessria, como inevitvel e como "atendvel", no sentido de que uma certa dose de angstia um elemento indicador para levar-nos a um comportamento adequado, apropriado. Na concepo de Deleuze e Guattari, a angstia produto da Antiproduo, que o mundo do institudo e do organizado exerce sobre nossas foras fsicas, psquicas e sociais. Em consequncia, um efeito indesejvel e contornvel. Agora, no h receita contra a angstia. Mas, se sabemos que essa angstia exprime um mal-estar perante a possibilidade da perda e da destruio de coisas que no nos fazem bem, a receita contra a angstia o entusiasmo, e, como dizia Espinoza, as "paixes alegres". a plena certeza de que o que est sendo libidinalmente feito vai ser melhor, porque novo. No que se desconhea, nessa teoria, a existncia da angstia, mas eu acho que se poderia resumir dizendo que esta teoria se nega a fazer-lhe propaganda, porque considera que "a propaganda a alma do negcio".

    P.: O senhor trouxe para ns um Guattari de final de anlise, e nesse ponto eu acredito que a tica que ele traz de um desejo decidido e no vejo como essa tica de um desejo decidido de final de anlise faa contraposio ou entre em contradio com a tica da Psicanlise a partir de Lacan. Porque me parece que a partir de Lacan, esse termo, cincia do real, que est descrito no L'tourd, em Lacan, essa proposio dele do real como algo que impossvel, como algo que escapa, que sempre novo isso est em Lacan. Acredito que Guattari traz esse final de anlise, esse entusiasmo do final de anlise, de um sujeito que produz e que traz um desejo decidido por algo que totalmente novo. Ento, por que essa contraposio com relao ao que o senhor estava dizendo? Que a tica da Psicanlise seria uma tica da resignao, da falta, da morte... Ser que ainda no seria uma leitura de Freud, ainda, talvez, com pressupostos anteriores aos que Lacan trouxe para ns depois desse retomo a Freud? Onde justamente ele resgata, no texto freudiano, essa radical idade do novo na estrutura? Eu gostaria que o senhor falasse, porque me parece que Guattari fruto de uma anlise, ele traz esse entusiasmo prprio de algum que pde chegar ao seu final de anlise e trabalhar e viver e produzir... Gostaria que o senhor falasse um pouquinho

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    sobre isto.

    B.: Eu acho uma observao interessante e no muito fcil de responder. Porque, por exemplo, Reich tambm fruto de uma anlise e, sem dvida, ele produziu uma teoria do psiquismo, uma teoria das pulses, uma proposta de articulao entre a tcnica psicanaltica e a militncia poltica, que radicalmente diferente de todo "retomo a Freud", e particularmente do kleiniano e do lacaniano. Tausk, por exemplo, tambm foi analisado, e ficou psictico e se suicidou. Otto Rank, tambm. Jung, que tambm foi bem analisado, foi qualificado, por Freud, de profeta, ironicamente, porque teria abandonado a Psicanlise. Toda a Psicanlise anglo-saxnica, e particularmente a norte-americana, qualificada por Lacan, depreciativamente, de human engineering, para significar que uma anlise que s serve para a "adaptao", e que o nico retomo verdadeiro a Freud o de Lacan. Ento, esse problema de atribuir os mritos produtivos de Guattari ao fim de uma boa anlise, pelo menos, discutvel.

    P.: Estou me referindo tica que o senhor traz de Guattari, de um desejo novo. Ela me faz lembrar os conceitos, inclusive, de algo que se produz em um final de anlise um desejo desse tipo, que fundamentalmente novo. Ento, eu no vejo a nenhuma contradio.

    B.: Eu sei, mas esse o ponto seguinte. O primeiro ponto se Guattari foi o que foi como resultado de uma anlise. Eu no afirmo o contrrio, mas, pelo menos, eu deixaria em aberto. Agora vou passar aos pressupostos. Em princpio, digamos, deixemos entre parnteses o resultado de um procedimento. Porque, por exemplo, Deleuze, que provavelmente responsvel por cinquenta por cento desta obra, jamais se analisou. Isso, deixamos entre parnteses. Mas, com respeito aos pressupostos, isso mais complexo de explicar. Fazendo um resumo injusto, eu acho que se pode fazer passar a questo por isto que voc mencionou. Por exemplo, na teoria dos trs registros, para Lacan, o Real impossvel. Esse real impossvel o que exige uma produo imaginria, que, por sua vez, subordinada ao simblico, vai ser o pr-requisito de toda a produo do novo. Justamente, a famosa tica do analista consiste em colocar-se em um lugar de suporte da transferncia e da no resposta demanda, para que o mecanismo imaginrio dispare, e para poder pontu-lo impondo o simblico. Para Deleuze e Guattari, no real "tudo" possvel, porque o sujeito parte do real. No existe essa diferena entre o mundo da subjetividade, que o mundo de

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    negatividades, na linguagem pensada, por exemplo, como "a morte da coisa", no existe o pr-requisito da castrao, no existe a submisso lei, no existe a identificao com a metfora paterna; o que existe o funcionamento do psquico que tem a mesma essncia do real. Ento, a proposta no a de uma repetio diferencial, como em Lacan, mas a proposta a de uma pura diferena, de uma multiplicao diferencial incoercvel. No se precisa de um procedimento que nos convena de que o real impossvel, e que, por esse motivo, ns poderemos "primeiro" imagin-lo, "depois" simboliz-lo. Isso implica uma teoria da linguagem, isso implica uma teoria do Real, em geral, e isso se adere a toda uma linha filosfica que a que enfatiza o Ser como falta, ou a falta constitutiva do Ser. Para Guattari e Deleuze, isso no existe, a no ser no molar. Para estes autores nada mais absurdo do que afirmar que houve um retomo "verdadeiro" a Freud. A Freud, houve milhares de retornos. E o que h um retomo de moda, ultimamente. Mas, utilizando Freud como matria-prima terica, pode-se fundamentar a proposta de um desejo como produo e no de um desejo como insistncia em reeditar um objeto perdido e jamais tido. Ou seja, o fundamental a o estatuto do nada, da ausncia, da falta, e a tica no a tica heideggeriana, no a tica do ser para o nada, mas a tica de Nietzsche, a tica de um ser para a luta, de um ser para a vida, que lhe vai permitir uma superao da dificuldade, no a de um ser para a resignao.

    P.: No final do seminrio onze, Lacan fala, quando trata dos quatro conceitos fundamentais, desse desejo como uma diferena pura. Desse desejo como pura diferena no final, ele define desejo nesse sentido. Estou insistindo nisso, porque Lacan, nesse seminrio, l pelos anos setenta, faz uma retificao nestes conceitos de Real, Simblico e Imaginrio, e ele d uma prevalncia ao conceito de Real, dizendo que, quando afirmou que o "inconsciente era estruturado como uma linguagem", ele no havia dito que o inconsciente era uma linguagem. Ele disse apenas que o inconsciente era estruturado COMO uma linguagem. E da ele vai extrair toda uma cincia do Real, vai estabelecer uma lgica, que vai desestimular os falsos maternas, e vai trazer toda uma concepo do real. A rigor, a estrutura vai ser Real. Ento, ele vai fazer um corte a nessa primeira leitura dele, anterior, e vai privilegiar o registro do real.

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    B.: Mas acontece que esse um Lacan para o qual o Real estrutura. Para Deleuze e Guattari, a estrutura uma dessas "ilhotas de ordem", de regularidade, das quais a cincia produz as leis. Mas a essncia do Real, o que verdadeiramente produtivo, no so as estruturas, so os fluxos, so o reverso da estrutura. Ento, falam de dois reais totalmente diferentes, distintos. O problema que, quando Lacan formula as estruturas, em realidade, ele , digamos assim, mais platnico que nunca. Porque voc se lembra da famosa farmcia de Plato, a famosa tentativa de ordenar o mundo todo em espcie, gnero, etc., ou seja, o mtodo da diviso. A proposta lacaniana uma forma matmica, de fazer a mesma coisa. Ento, o que Deleuze e Guattari dizem que, quando um sujeito produzido, quando produzida uma subjetivao, ela produzida como componente de um acontecimento. E no existe uma forma estrutural que d conta desse sujeito. Porque esse sujeito no uma variao de uma forma, pelo contrrio, uma forma radicalmente nova. Ento, no tem comparao possvel. So dois reais diferentes.

    P.: Como Guattari poderia se entusiasmar com a situao tica do Brasil noventa e dois?

    B.: Bom, eu no sei como poderia no se entusiasmar, eu apenas sei como foi que me entusiasmou a mim. Guattari disse, textualmente, uma vez, que considerava o Brasil como um imenso laboratrio social, de onde podiam surgir os mais incrveis inventos. claro que a gente sabe que um laboratrio onde alguns ou muitos dos experimentos acabam em resultados socialmente trgicos. Mas ao mesmo tempo eu acho que talvez se trate simplesmente de comparar, por exemplo, o Brasil com a Comunidade Europeia, ou com os Estados Unidos na atualidade. Eu acho que (bom, uma .opinio pessoal) mas eu acho que, nesse momento, as possibilidades de uma desordem produtiva no Japo, ou no Mercado Comum Europeu, ou nos Estados Unidos, so, no mnimo, menos provveis que na Amrica Latina. Eu viajo frequentemente para a Europa e vejo que, neste momento, a luta poltica convencional na Europa, na Espanha, suponhamos, que tem Partido Anarquista, Partido Comunista, Partido Social-Democrata, Partido Democrtico Cristo a luta poltica convencional consiste em que, nessas eleies, os anarquistas perdem um vereador e os democratas cristos ganham um. E na prxima vez acontece o contrrio, e mais ou menos nisso consiste o movimento poltico, digamos, clssico, visvel. Bom, at desde

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    este ponto de vista, um pas como o Brasil, que sofreu uma ditadura de mais de vinte anos e que, em pouqussimo tempo, consegue, digamos assim, uma eleio direta, tem a desgraa de perder o presidente que escolheu, inicia um novo processo eleitoral e escolhe errado, mas escolhe errado por cinco milhes de votos, sobre um parque eleitoral de setenta milhes; que consegue, de uma forma ou outra, visualizar seu e no e, atravs de seus representantes, duvidosos ou no, afastar seu presidente do cargo alm disso, ainda existe um partido poltico que no tem similar em nenhum outro lugar na Amrica Latina... eu acho que um pas interessante. Eu no digo que seja para ser otimista, mas pelo menos entusiasta se pode ser.

    P.: Eu gostaria que o senhor colocasse um pouco a questo do paradigma esttico. Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre os significados desse paradigma esttico.

    B.: Acho que esta ser nossa ltima troca. Eu acho que essa questo do paradigma esttico est prefigurada em toda a obra de Deleuze e Guattari, na medida em que eles consideram que o discurso, por exemplo, musical, e nesse sentido seguem Nietzsche claramente, que diz que as verdades, ou o novo, o transformador, isso vem de qualquer tipo de produo. E particularmente da produo artstica. Em diversas passagens da obra eles fazem questo de tomar contribuies literrias, musicais, pictricas, estticas, como lgicas que inteligibilizam o processo do real e propiciam as mudanas com muito maior antecipao do que outros paradigmas. Ento, como crticos que so do paradigma cientfico, que caracterstico da modernidade, essa proposta de adotar um paradigma esttico tem a ver com essa potncia que eles atribuem produo artstica.

    P.: Como antecipadora? B.: Como antecipadora e como preservadora da criao, da vida, da

    harmonia. E tambm como receptora da desordem criativa, como se

    v, por exemplo, na msica moderna, na msica abstrata... enfim, a arte sempre est alm de qualquer descobrimento praticado com outra metodologia em outro campo. Provavelmente o nico campo a que eles atribuem a mesma capacidade de gerar esse famoso pensamento do fora, como dizia Foucault, a loucura.

    Bom, agradeo muitssimo a ateno de vocs e espero que, em alguma outra

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    ocasio menos triste, nos encontremos outra vez. Muito obrigado.

    Livros de autoria de Felix Guattari: Psicanlise e Transversalidade Revoluo Molecular: Pulsaes Polticas do Desejo Inconsciente Maqunico

    Cartographies Schizoanalitiques As Trs Ecologias

    Caosmose. Um Novo Paradigma Esttico Em colaborao com Gilles Deleuze: Anti-dipo. Capitalismo e Esquizofrenia Poli tique et Psychanalyse

    Kafka. Por uma Literatura Menor Mil Plats

    O que a Filosofia? Em colaborao com Suely Rolnik: Micropoltica Cartografias do Desejo Em colaborao com Antnio Negri: Novos Espaos de Liberdade Outros:

    Felix Guattari entrevista Lula

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    A ltima Viagem do Capito Guattari*

    Nos ltimos dias de agosto, faleceu durante o expediente de trabalho no Hospital La Borde, em Paris, o militante poltico, psicanalista e intelectual francs, Felix Guattari.

    A notcia deixou terrivelmente penalizados todos aqueles que de uma ou de outra maneira foram seus amigos, companheiros de percurso e beneficirios de suas extraordinrias ideias e iniciativas.

    A cultura mundial perdeu um dos mais originais e produtivos expoentes nos ltimos quarenta anos.

    Ainda prematuro avaliar a estatura de Guattari, da qual difcil falar sem associ-la de seu inseparvel companheiro, o filsofo Gilles Deleuze (co-autor de boa parte de sua obra), apesar da projeo quase planetria que lhe atribumos.

    Guattari morreu aos 62 anos de idade, de forma sbita e no pleno uso de uma formidvel vitalidade fsica, bem como de uma inteligncia to vigorosa quanto esplndida.

    Outro importante pensador recentemente desaparecido, Michel Foucault, disse em certa ocasio, referindo-se obra de Gilles Deleuze, uma frase que se tomou clebre: "O sculo ser deleuziano". Por extenso, e guardada a devida distncia que separa Foucault deste que escreve estas linhas, permito-me afirmar que todas as prxis libertrias das prximas dcadas sero, assim denominadas ou no, guattarianas.

    No exagerado afirmar que a "singularidade" Guattari de um tal porte que, seguramente, o toma membro relevante de uma famlia (ou melhor dizendo, de uma filiao intensiva) que inclui entre seus membros, arbitrariamente mencionados, Sartre, Fanon, Basaglia e outros. Esses "outros" so, ao mesmo tempo, poucos escolhidos... e infinitamente numerosos, de cuja vida e morte nada se saber publicamente, Guattarianos de fato.

    literalmente impossvel listar aqui os textos escritos por Guattari, bem como os que publicou com Gilles Deleuze, Tony Neri e outras relevantes figuras intelectuais (algumas delas brasileiras), porm, * Artigo publicado no Jornal do Movimento lnstituinte de Belo Horizonte, 1993.

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    cabe ressaltar que toda sua obra contm certas caractersticas, que imperioso pontuar.

    Em primeiro lugar, todos e cada um desses escritos esto ligados a movimentos e aes concretas de transformao do mundo, no sentido do combate a qualquer forma de explorao, dominao e desinformao ou mistificao do homem pelo homem.

    Em segundo lugar, nunca se reduzem a um gnero que possa ser enquadrado em uma especificidade acadmica ou profissional consagrada e que permita qualific-las de cientficos, literrios, ideolgicos... ainda que contenham elementos do que de melhor h em cada um destes campos do saber.

    Em terceiro plano, nada do que Guattari escreveu ou instituiu e desenvolveu repetio, continuao, ampliao ou comentrio do discurso ou da escola de algum mandarim terico da moda, por mais ilustre e exitoso que este seja considerado. Invariavelmente, as ideias do extinto amigo so autnticas invenes, em que o essencial a novidade radical, surpreendente, inslita, audaz, produto de uma erudio e de um rigor assombrosos, porm empregados com fora, leveza e entusiasmo plenos de inspirao e refratrios a qualquer pretenso de sistematicidade doutrinria destinada a formar igrejas, partidos, corporaes ou sociedades multinacionais de epgonos, adeptos ou iniciados.

    Por ltimo, convm admirar-se de que a profunda modstia, assim como o humor que percorrem seus textos (o que o levou a qualific-los de "proposies descartveis") no impedem que os mesmos se postulem espinozianamente como proposies de vida ou para a vida, e se coloquem, incondicionalmente, a servio de todo aquele que deles queira se apropriar, sem qualquer ritual de iniciao para adquiri-las e sem dvida nenhuma a pagar pela "paternidade" dos conceitos. Seu nico motivo o incremento da Produo e do Desejo em todos os domnios da realidade e para todos "os homens de boa vontade", que, como dizia Nietzsche, somente pode ser a Vontade de Potncia.

    O capito Guattari empreendeu sua ltima aventura de explorao de mundos desconhecidos. Os que viajaram com ele em vrias de suas expedies no tiveram a .sorte de receber as cartas de navegao deste ltimo itinerrio.

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    Mas as fascinantes cartografias que produziu at agora esto disposio das novas geraes que anseiam por planejar trajetrias intrpidas para metamorfosear o sinistro universo que o Capitalismo Planetrio Integrado lhes tem destinado.

    Os amantes do Poder, do Lucro e do Prestgio, os politiqueiros engomados, os "homens cinzentos" (segundo o terrvel diagnstico de D.H. Lawrence, um dos favoritos de Felix) ficam dispensados da leitura das memrias do Capito Guattari.

    Porm nunca dormiro tranquilos... a Revoluo Molecular est em marcha.

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    In Memoriam de Gilles Deleuze*

    Filsofo Nmade

    Senhoras e Senhores,

    Desejo comear essa conversao agradecendo ao Movimento Instituinte de Belo Horizonte e s entidades que colaboraram na organizao desse evento, por haverem-me dado a honra de dissertar acerca da obra e da figura de Gilles Deleuze. Igualmente sou grato ao auditrio por sua presena.

    Essa homenagem deveria ser muito mais ampliada e reiterada no mundo inteiro, e no sabemos se haver de s-lo. Por isso nossa contribuio nesse sentido nos parece to discreta quanto necessria e insuficiente.

    Como uma aclarao, antes de entrar no tema, creio obrigatrio pontuar o seguinte: supe-se que, para falar acerca de um autor dessa envergadura, e em circunstncias to solenes como a presente, preciso conhec-lo integralmente.

    Por razes que, segundo espero, ficaro explcitas no curso dessa conferncia, devo reconhecer que no tenho esse privilgio. Meu domnio desse monumento do saber limitado, e questiona meu direito a ocupar hoje este lugar de expositor. No obstante, tenho o consolo de crer que, se bem existem muitos que tm estudado Deleuze mais e melhor que eu, ningum pode estar seguro de ser capaz de um trnsito exaustivo por esse pensamento, que, por sua prpria natureza, inesgotvel.

    Resulta to pouco original quanto inevitvel comear esse breve percurso com a famosa sentena pronunciada pelo talento de Michel Foucault. sabido que esse formidvel intelectual disse: "O SCULO SER DELEUZIANO".

    Os comentrios acerca dessa frase, que encantou somente uns poucos e escandalizou muitos, poderiam ocupar toda essa conferncia.

    Que pretendia dizer Foucault com tal afirmao?

    * Palestra organizada pelo Movimento Instituinte de Belo Horizonte em dezembro de 1995

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    O mesmo Deleuze, consultado sobre o assunto, e com a modstia que sempre lhe foi prpria, lhe atribuiu um sentido ao mesmo tempo carinhoso e humorstico.

    Sem descartar esses significados, tratarei de reduzi-los a dois, formulados, por minha vez, como interrogaes:

    Trata-se de prognosticar que a cultura dos anos que viro chegar a reconhecer a obra de Deleuze como a mxima expresso do sculo XX? Ou, talvez, trata-se de manifestar a esperana de que o perodo que falta para completar este sculo, ou, quem sabe, todo o curso do sculo XXI, ser, em sua realidade, expresso concreta das ideias de Deleuze?

    Permito-me sustentar que a primeira interpretao altamente provvel, e a isso me referirei a seguir, dentro das limitaes dessa dissertao. Creio sinceramente que a obra de Deleuze , seno a nica, uma das mais perfeitas do nosso tempo.

    E quanto segunda compreenso, temo que no tenhamos a menor segurana sobre o assunto. Assim como nosso sculo vai mal, e como o prximo nos antecipa, no apenas no podemos dizer que ser deleuziano, seno que nem sequer sabemos se ser, de maneira alguma. O certo que tentar sintetizar, em uma breve exposio, a obra e a figura desse pensador, que, segundo Foucault, dar seu nome histria de nossa poca, uma tarefa rdua.

    Devemos, inclusive, registrar outra peculiaridade que contribui para essas dificuldades: a extraordinria co-autoria de Deleuze e Felix Guattari, seu dileto amigo, tambm recentemente falecido.

    Se bem a publicao a dois no seja uma novidade absoluta (basta recordar os textos de Marx e Engels ou de Freud e Bullit), a colaborao entre Deleuze e Guattari provavelmente a nica em seu gnero, dado que a mesma a prova coerente de toda uma teoria assumida no-autoral da escrita.

    Ainda que possa resultar um pouco pesado, devido fabulosa e prolfica obra desse autor, nosso dever comear por uma mnima biografia e por uma sucinta enumerao da bibliografia Deleuziana.

    Deleuze nasceu em Paris em 18 de janeiro de 1925. Graduou-se em Filosofia em 1948, tendo sido aluno de Ferdinand Alquie e Georges Canguilhelm. Ensinou Filosofia em um liceu e frequentou as aulas e conferncias de Jacques Lacan, Pierre Klossowsky, Michel Butor e Jean

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    Paulhan. Em 1957 obteve o ttulo de professor assistente na Sorbonne; em 1960, o de agregado de pesquisas no CNRS (Conselho Nacional de Pesquisas Sociais).

    A partir de 1964 deu aulas por vrios anos na Universidade de Lyon, e de 1969 a 1987 foi professor na Universidade de Vincennes em Paris VIII. Em 1987 se aposentou.

    Segundo Deleuze, dois encontros foram fundamentais em sua vida intelectual. O primeiro com Michel Foucault, em 1962, e o segundo com Felix Guattari, em 1969.

    Sintetizando humoristicamente suas tiradas, Deleuze disse algo que talvez se possa traduzir assim: "Viajando por a, jamais aderi ao Partido Comunista, jamais fui fenomenlogo ou heideggeriano, nunca renunciei a Marx, nem jamais repudiei Maio de 68". (Le Magazine Littraire, Setembro de 1988).

    Essa orao despretensiosa resume algumas das singularidades do Mestre, s quais, tomando a liberdade de falar em primeira pessoa, eu poderia, figuradamente, acrescentar:

    "Nunca me preocupei em estar na moda, nem a dos crculos polticos, nem a dos acadmicos. Nunca venerei filosoficamente a Parmnides, nem a Scrates, nem a Plato, nem a Aristteles, nem aos neo-platnicos, nem a Descartes, nem a Kant, nem a Hegel, nem aos positivistas... assim como nunca fui propriamente existencialista, nem estruturalista, nem materialista dialtico. O mesmo me aconteceu cientfica e artisticamente com Euclides, Newton, Freud, Saussure, Weber, Wittgenstein, Lacan, Lvi-Strauss ou Toynbee... ainda que me empenhe a conhec-los tanto como a Sfocles, Leonardo ou Shakespeare.

    Meus personagens filosficos favoritos tm sido, sem dvida, ou bem estranhos, ou pouco exitosos, ou pouco frequentados, ou quase francamente marginais. Herclito, Demcrito, Arquimedes, os sofistas, os esticos, os epicuristas, os hedonistas, tanto quanto Duns Escotto, Espinoza, Leibniz, Hume, Nietzsche e Bergson, assim como Pierce, Hejmlev, Clastres, Riemann, Chatelet, ou bem Reich, Kafka, Artaud, Carroll, Beckett, Proust, Miller, Canetti, Bacon, Kleist, Duchamps... e tantos outros".

    Essa larga e incompleta enumerao tenta apenas ilustrar, em primeiro termo, a fabulosa erudio e versatilidade de Deleuze e, em segundo lugar, dois tipos de

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    relao heurstica com as obras e com seus criadores. Ao primeiro grupo citado, aplica-se a proposta que Deleuze enunciava como

    seu projeto juvenil: "Acercar-me sigilosamente a um autor pelas costas e fazer-lhe um filho monstruoso, em que no se possa reconhecer". Mas com a ressalva de que "para fazer isso com o dito por esse autor, teria de estar absolutamente seguro de que o havia efetivamente dito". Aqui, "monstruoso" deve entender-se de acordo com o que Deleuze aprendeu de seu mestre Canguilhem... ou seja, como o anmalo, aquilo que est nos limites, ou at mais alm de sua prpria espcie. Por outra parte, esse af de certeza o que explica a insuportvel preciso das citaes nos escritos deleuzianos.

    Ao segundo grupo mencionado, corresponde uma apropriao menos crtica, muito mais emptica, mas tampouco integralmente fiel, nem literal, tpica dos comentrios e teses acadmicas que Deleuze detestava.

    Essa capacidade de Deleuze, compartilhada por seu amigo Guattari, de conhecer e circular pela Filosofia, pelas Cincias, pelas Artes, pela Poltica e at pelo saber popular, plenamente demonstrada pela lista de seus quase trinta livros editados, cuja extenso prodigiosa pode resultar, nesse contexto, to esmagadora como indispensvel:

    Instinto e Instituio Empirismo e Subjetividade Nietzsche e a Filosofia A Filosofia de Kant Proust e os Signos Nietzsche O Bergsonismo Apresentao de Sacher-Masoch Espinoza e o Problema da Expresso A Lgica do Sentido _ Diferena e Repetio Espinoza, Filosofia Prtica Espinoza e os Signos Francis Bacon: Lgica da Sensao

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    Cinema I A Imagem-Movimento Cinema II A Imagem-Tempo Foucault Pricles e Verdi. A Filosofia de Franois Chatelet A Dobra Leibniz e o Barroco Conversaes Crtica e Clnica Em colaborao com Felix Guattari escreveu: O Anti-dipo. Capitalismo e Esquizofrenia Kafka. Por uma Literatura Menor Mil Plats O que a Filosofia? Politique et Psychanalyse Em colaborao com Carmelo Bene: Superposies Em colaborao com Claire Parnet: Dilogos

    Obs.: esclarecemos que esta lista no est ordenada cronologicamente A esta lista devem se somar vrios artigos, prlogos e eplogos de outros

    textos. Desde logo a literatura acerca da obra de Deleuze j soma outras tantas publicaes. Segundo uma classificao leve e algo ingnua, os livros de Deleuze podem ser divididos em trs grupos.

    O primeiro consiste em Teses e Monografias Filosficas, de formato aparentemente acadmico, mas que constituem verdadeiros Cavalos de Tria.

    O segundo se compe de grandes exposies de enorme abrangncia. Mais adiante me referirei a elas, arriscando para as mesmas uma categorizao pessoal. Momentaneamente peo que se aceite para esses escritos o qualificativo de "Concepes de Mundo", que, por razes que veremos, incorreta.

    O terceiro conjunto de escritos se refere aparente e prevalentemente s Cincias e s Artes.

    Mas h pelo menos duas razes pelas quais essa classificao panormica inadequada e insuficiente.

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    Por um lado, porque a obra de Deleuze e Guattari um Rizoma, ou seja, um sistema antissistema, uma espcie de rede mvel de canais, fluxos, remoinhos e turbulncias, de limites internos e externos difusos, do qual se pode entrar e do qual se pode sair em qualquer ponto, que se pode percorrer em infinitas direes e que reinventado a cada viagem e por cada um que o percorre. Apenas apresenta uma alternncia de mesetas de intensidade homognea em que se pode transitar passando de uma a outra por saltos, s vezes perceptveis, s vezes despercebidos.

    Por outro lado, no se pode considerar cada livro como uma unidade isolada, porque, segundo a prpria teoria do pensamento, da escritura, da leitura e da realidade ltima a que um livro se acopla, impossvel dissociar a produo bibliogrfica do que a realidade faz fluir nela, nem do que ela faz fluir na realidade na qual se insere. Para esses autores, um livro uma mquina engendrada por mquinas heterogneas, heteromorfas e heterlogas a ele mesmo, sendo que seu sentido depende de como atravessa a outras (literrias ou no), ou seja, de como esto funcionando dentro dele, e ele dentro daquelas.

    Assim sendo, como seria vivel separar radicalmente um tema bibliogrfico de outro, e dos Mundos com que se conectam, se todos so imanentes entre si?

    Finalmente, no cabem separaes, porque Deleuze e Guattari dizem que todo texto ou discurso pura performance, quer dizer, pura pragmtica, que importa apenas por como afeta e como afetado. Para ilustrar, por exemplo, as relaes entre os conceitos filosficos, as funes cientficas, as variaes artsticas, apelam teoria da Msica. Cada um dos recursos desses saberes e trabalhos ressoam entre si, nos espaos da Realidade. Essa ressonncia pode ser ouvida em dimenses tais como a Harmonia, a Desarmonia, a Consonncia, a Dissonncia, a Fuga, o Contraponto, o Ritmo, etc... mas nunca desde uma taxonomia dos textos ou discursos estanques. Intil confundir essa concepo com alguma que postule deslizamentos de cadeias de significantes, elos ordenados como anis, que por sua vez so elos de anis maiores, etc. A escrita de Deleuze e Guattari, densa e difcil, composta de fluxos, pode incluir paradoxos e aporias, mas no metforas ou metonmias, e menos ainda adivinhaes, hermetismos ou mistrios.

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    Talvez este seja o nico ponto dessa exposio no qual m aventurarei a dar uma opinio pessoal, to arriscada como seguramente pouco compartilhada. Tudo leva a supor que Gilles Deleuze foi um filsofo, professor de Filosofia e escritor de livros de Filosofia.

    O ttulo mesmo dessa conferncia qualifica Deleuze de "filsofo nmade", aludindo a sua forma errante de viajar por todos os saberes, por itinerrios absolutamente inslitos e sem compromisso algum com Escolas ou Doutrinas.

    Um de seus ltimos livros, escrito junto com Guattari, leva por ttulo "Que a Filosofia?" e, em suas pginas, a Filosofia definida com uma preciso e beleza incomparveis, como a prtica de inveno de Conceitos.

    No obstante, em vrias passagens de outras obras, Deleuze havia exposto, com toda clareza, uma crtica s perguntas com as quais se costuma propor as questes que se deseja resolver. Nesses pargrafos rechaava que a frmula "que ?" fosse um bom enunciado para formular um problema.

    No nada fcil explicar o porqu dessa impugnao, mas, simplificando uma vez mais, quando se pergunta "que ?" se interroga acerca do Ser de um Ente, ou seja, por sua Identidade ou sua Mesmidade e no por seu Devir, por seu funcionamento, por sua Diferena em Ato.

    De um outro ngulo, quando Deleuze se refere ao pensamento, sustenta que pensar exige a incessante criao, no apenas de novos contedos, nem sequer de novas maneiras do mesmo Pensamento. Deleuze d a entender que pensar implica, nem mais nem menos, que criar novos pensares, ou seja, responder quilo que "d a pensar", o que "faz pensar", com uma multiplicidade de Pensares singulares diferentes, originais, inditos.

    por isso que me atrevo a postular que Deleuze, em seu nomadismo, ou bem acabou no sendo mais um filsofo, ou bem foi um criador de Pensares que, entre outras coisas, redefiniu a Filosofia, ou bem foi o Demiurgo e o agente de um novo pensar e um novo fazer que ele e Guattari inventaram... e que se chamou esquizoanlise ou pragmtica universal. Esses dois termos esto definidos respectivamente, no primeiro e no segundo tomo de seu livro "Capitalismo e Esquizofrenia". O que estou afirmando que Deleuze e Guattari engendraram algo que Filosofia mas, que tambm Cincia e tambm Arte... e Poltica... e Saber

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    Espontneo... e muito mais que tudo isso preexistente. Por que, ento, cham-los por nomes de "partida" e no pelos de "chegada"? A rigor, no nenhuma novidade que os cientistas de uma especialidade

    tenham incursionado por pensamentos filosficos, restritos ou no, s reas de suas disciplinas. Basta mencionar, rapidamente, os casos de Pitgoras, Euclides, Averroes, Cassirer, Jaspers, Russel, Poincar, Monod e outros tantos.

    Tampouco inslito que grandes literatos tenham sido filsofos (ou o inverso), como so os exemplos paradigmticos de Kierkgaard, Novalis ou Goethe.

    Igual coisa ocorreu com grandes estadistas e polticos como Demstenes, Maquiavel, Hobbes, etc.

    Mas meus conhecimentos de histria da Filosofia, das cincias e das prticas sociais em geral (bastante pobres), no me permitem evocar um caso igual ao de Deleuze e Guattari.

    Talvez o mais parecido a isso, que me ocorre, a figura e a obra de Foucault, no por casualidade amigo proeminente de Deleuze, de quem se tomou difcil dizer se era filsofo, historiador, socilogo, arquivista ou genealogista.

    Agora, bem: por razes pedaggicas, o paradoxal que, se me proponho introduzir o que alcano entender como as principais contribuies da Esquizoanlise, no consigo faz-lo de outra maneira que abord-las segundo as clssicas ramificaes com as quais se costuma dividir a Filosofia.

    Refiro-me Ontologia (Teoria do Ser), Gnoseologia (Teoria do Conhecer) e Axiologia (Teoria dos Valores).

    Mas como resumir os aportes dos principais trinta livros de Deleuze de uma maneira suportvel para o pblico em geral?

    Apesar de a palavra "impossvel" ser uma das mais detestadas por Deleuze e Guattari, este simples comentarista que lhes fala se sente a ponto de declarar esta tarefa como irrealizvel.

    Peo antecipadamente desculpas pelas insuficincias, incorrees e obscuridades do que se segue. De todo modo, quem no tenta, nada consegue.

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    Na Ontologia, creio que se pode dizer que o Pensar de Deleuze a culminao de duas clebres contraposies que percorrem a histria da Filosofia Ocidental.

    A primeira a que ope o Ser como esttico, eterno, invarivel, imvel e idntico, do qual s se pode predicar que (cujo paradigma seria Parmnides), contra o Ser como dinmico, variante, mvel e em permanente transformao (cujo paradigma seria Herclito, que sustentava que o Ser Devm).

    "Que , e como o Ser Devm?" que at a declarao da Morte de tais perguntas ou do Fim da Metafsica... ter suas diversas formulaes na Filosofia Antiga, na Patrstica, na Escolstica, no Romantismo e na Filosofia Moderna e Contempornea.

    O que do ser passa por todos os avatares do Espiritualismo, do Idealismo Objetivo e Subjetivo, assim como por todos os Realismos, Substancialismos, Materialismos, Agnosticismos, etc.

    O como transcorre pelos inumerveis avatares da Linearidade, da Circularidade e da Dialtica.

    Mas a onde entra a segunda oposio, que antagoniza os que afirmam que o Ser (seja qual seja sua natureza) diverso do Pensar (digamos, a Metafsica da Substncia e da Essncia) contra os que, principalmente desde Descartes, identificam o Ser com o Pensar (digamos, a Metafsica do Sujeito), seja qual seja o papel que se atribua linguagem nessa identidade ou distino.

    Ante essas duas famosas oposies da Ontologia (que, como se v, so indissociveis da Gnoseologia), Deleuze postula:

    1) o ser devir.

    2) o devir devm como repetio incessante, infinita e no totalizvel da diferena.

    3) a essncia das diferenas consiste em puras intensidades.

    4) por sua posio nos mundos, sua composio interna proteiforme e seus limites externos difusos, o devir devm como multiplicidades.

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    5) pela condio nica e irrepetvel das diferenas, intensidades, multiplicidades, estas se expressam como singularidades, tais "proto-realidades" (por assim cham-las) so virtuais, pr-ontolgicas e, assim sendo, so pr-fsicas, pr-biolgicas, pr-sociais, pr-subjetivas, pr-semiticas, pr-reais, pr-possveis e pr-impossveis, at serem atualizadas.

    6) o surgimento por atualizao das novidades ontolgicas absolutas, assim entendidas, denomina-se individuaes.

    7) as individuaes resultam do encontro entre complexos de intensidades, multiplicidades e singularidades sintetizadas como corpos, e a emergncia, a partir desses encontros, de uma dimenso incorporal dos mesmos, denominada incorporais-sentidos-acontecimentos.

    8) as individuaes no podem reduzir-se a seres ou entes individuais efetuados por ideias, substncias ou essncias previamente diferenciveis em espcies ou gneros.

    9) as aes e paixes que se exercem ao acaso nos encontros entre corpos e incorporais-sentidos-acontecimentos que deles surgem, assim como as individuaes resultantes, no se relacionam como causas e efeitos e no obedecem a leis.

    10) a realidade, assim integralmente entendida, compreende trs superfcies imanentes entre si. A primeira, a da produo, que a que acabamos de conceitualizar, composta por funcionamentos protagonizados pelas singularidades intensivas que mencionamos (mquinas desejantes), dispostas sobre o corpo sem rgos (que seu "suporte" e o grau zero das intensidades). Nela se d o processo puro de produo de produo. A segunda a superfcie de registro-controle, em que se distribuem as entidades j identificadas, ordenadas, determinadas em causas e efeitos, dotadas de funes especficas em que predominam os processos de reproduo e de antiproduo. A terceira a superfcie de consumao, em que culminam e/ou consomem a potncias das individuaes de toda ndole.

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    Este imenso "fluxograma" transmutante possibilita a Deleuze e Guattari uma extraordinria reformulao das definies e das relaes dos continentes da Natureza, da Sociedade, da Subjetividade, das Semiticas e do Parque Maqunico da Realidade, assim como da Histria Universal, tanto quanto dos pensares que os pensam e das prxis que os metamorfoseiam e os destroem.

    Em absoluta coerncia com essa "Ontologia", a Gnoseologia, a tica e a Esttica de Deleuze tm como valor supremo a inveno tanto de Conceitos Filosficos, como de Funes Cientficas, como de Variaes Artsticas e de Saberes Espontneos. Tal inventiva tem como proposta "Metodolgica" sui generis a Intuio, o uso disjunto das Faculdades, o emprego das tcnicas do Cut-up e da Colagem, e a plena considerao do Acaso para o exerccio de Pensares sem Fundamento, sem Sistemtica, sem Meta-Categorias transcendentes. Pensares inexatos, mas rigorosos, de realidades pluripotenciais e imprevisveis, cartografias sempre "princeps" de transmigraes e conjuntos difusos.

    Para concluir, a tica proposta por Deleuze uma poltica da avaliao, da resoluo e do ato sempre singulares, criados para cada situao, produtos da Vontade de Potncia e da desconstruo do Valores imperantes, a servio da inovao permanente, jamais subordinada a algum Imperativo Categrico Universal ou Eterno, nem baseado em Princpios Transcendentes.

    nessa produo de pensares, na anlise varivel de seus "N" componentes de Produo, Reproduo e Antiproduo, na montagem de dispositivos destinados a propiciar a Revoluo Inventiva dos Processos Produtivos e a neutralizar sua brusca interrupo, ou sua acelerao ao infinito, dada pelos buracos negros da Reproduo e da Antiproduo... nisso consiste a esquizoanlise ou pragmtica universal.

    Mas se por razes pedaggicas optei por essa introduo geral apoiada num andaime filosfico clssico, como ousar sintetizar aportes mais circunscritos a temas mais delimitados, que esto implicitamente includos no panorama anteriormente exposto?

    Porque a obra de Deleuze e Guattari importa tambm redefinies crticas e reinvenes dos Universais mais caros ao saber do Ocidente. Apenas como exemplo, mencionarei as categorias de Tempo e de Espao, de Todo e de Partes, de Razo e Desrazo, de Verdade e Falsidade, de Bem e de Mal, de Potncia e de Poder, de Vida

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    e de Morte e, em um sentido mais especfico ainda, de Histria, de Sociedade, de Estado, de Economia, de Antropologia, Geologia, Etologia, de Lingustica-Semitica, de Cincias Exatas, de Urbanismo, de Tecnologia, de Literatura, de Cinematografia, Pintura, Escultura, Arquitetura... e assim por diante.

    No pude resistir, ao final desta, por sua vez, pobre e pretensiosa simplificao, a comentar brevemente a qui mais clebre proposta de Deleuze e Guattari, principalmente exposta em "O Anti-dipo". Os autores propem, como a medula desse livro imortal: "introduzir o desejo na produo e a produo no desejo". Sem pretender ignorar a larga trajetria desses dois conceitos gigantescos, no se pode negar que, nas acepes centrais de sua definio, Deleuze e Guattari partiram basicamente de Freud e Marx. Mas o fizeram para ampliar a ideia de Marx, no a restringindo gerao de bens materiais indispensveis para a vida, processo ligado fora de trabalho, que o criador do Materialismo Histrico atribua infraestrutura dos Modos de Produo. Deleuze e Guattari estenderam essa ideia Produo de Produo em "todos" os domnios da Realidade. Igualmente, tomaram a ideia de Freud, de Libido e Desejo, no como sendo apenas a energia-fora que anima exclusivamente a economia, a dinmica e a estrutura do Aparato Psquico freudiano, cujas caractersticas so, como sabido, em ltima instncia, repetitivas e conservadoras.

    Deleuze e Guattari recriaram e ampliaram esses conceitos-funes, assim como do Inconsciente e do Id psicanaltico, assumindo plenamente as caractersticas do chamado Processo Primrio, dando-lhes uma essncia produtivo-revolucionria e tornando-os imanentes ao processo de produo de produo da realidade inteira.

    Devo concluir essa modesta apresentao dizendo algumas poucas palavras acerca de Gilles Deleuze como "homem".

    Ao considerar a figura e a biografia de Deleuze como "ser humano", encontramo-nos comum a rara ilustrao da exigncia de que um autor deveria ser uma fiel expresso de suas ideias.

    Pessoa de uma imensa erudio, de uma formidvel dedicao a seu empreendimento, de uma incrvel versatilidade, de uma enorme criatividade, de uma abertura e de uma falta de preconceitos invejveis, gozou em vida de um prestgio e de um reconhecimento mundial, ainda que, a meu entender, ainda insuficientes, e que

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    levaro dcadas para se consumar. Aliado incondicional de todo movimento das singularidades produtivo-

    revolucionrias, particularmente dos das minorias exploradas, dominadas e excludas, foi um amante da Liberdade, da Amizade e da Vida.

    H duas sentenas que o encantavam e que caracterizam ilustrativamente seu pensar e sua existncia. A primeira diz: "Os homens tm estado sempre preocupados com as Ideias Justas, quando, em realidade, precisam procurar justo uma ideia" a que capaz de propor e resolver cada problema.

    A segunda diz: "Os grandes homens tm poucas coisas" quer dizer, no se interessam por acumular nem por consumir mercadorias.

    Humildade, modstia, generosidade, tenacidade, humor, alegria, coragem essas foram as singularidades de Deleuze, mais que um "homem"... um devir bondoso.

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    INTRODUO ESQUIZOANLISE*

    Apontamento N 1

    A Esquizoanlise um saber inventado por dois autores: Gilles Deleuze e Felix Guattari.

    Gilles Deleuze considerado, na atualidade, um dos filsofos mais importantes do sculo. Felix Guattari, recentemente falecido, foi um brilhante psicanalista, analisado e aluno de Jacques Lacan, um Trabalhador da Sade Mental, criador da prtica denominada Anlise Institucional e um militante poltico de esquerda, que pertenceu a numerosos grupos polticos convencionais e os abandonou para fundar ou unir-se a Movimentos Populares de cunhos os mais diversos.

    Gilles Deleuze autor de numerosos livros, nos quais aborda, de uma maneira sempre original, a obra de vrios filsofos clssicos, mas tambm escreveu sobre cinema, poltica, esttica, literatura, pintura, msica, histria, etc.

    Felix Guattari escreveu sobre temas relacionados com a sade mental, sobre Psicanlise, sobre cinema, mas, fundamentalmente, sobre a concepo muito peculiar que tinha sobre a poltica e a economia, a ecologia e o panorama geral do mundo atual. Tambm foi jornalista e msico.

    Esses dois autores escreveram juntos vrios volumes, em que sua colaborao adquiriu caractersticas muito peculiares, devido s quais impossvel saber, nesses escritos, a qual dos dois pertence uma ou outra ideia.

    Entre esses livros destacam-se: "O Anti-dipo", "Mil Plats", "Kafka: Uma Literatura Menor" e "Que a Filosofia?".

    A obra desses autores muito difcil de situar em um gnero dos j conhecidos. Como se pode apreciar por sua trajetria intelectual, e pelos ttulos de seus escritos, trataram de quase todas as "especialidades" importantes, mas sempre de maneira original, buscando interpenetraes dos campos e dos conhecimentos, mas sem abandonar nunca um matiz

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    *Introduo Esquizoanlise, apontamentos 1, 2 e 3 foram escritos especialmente para um seminrio realizado em Barcelona (1993). poltico, que perpassa toda sua produo. A rigor, de acordo com uma terminologia, para eles j obsoleta, sua obra poderia ser classiticada como uma "Concepo de Mundo", mas vrias conceptualizaes que eles mesmos apartaram, de crtica aos fundamentos desse tipo de denominao, fazem-na incorreta e insuficiente para dar conta desse monumental trabalho. Desde logo, dentro da lista de textos, podem-se encontrar alguns que pertencem predominantemente a um tema mais que a outros, mas sempre haver uma caracterstica na abordagem que os torna inslitos e no enquadrveis.

    O encontro desses dois autores data, prevalentemente, do famoso maio de 1968, na Frana. Em certo sentido se pode dizer que suas preocupaes e interesses tm muito a ver com essa revolta, que aspirava a levar, como os lemas da poca sustentavam, "A Imaginao ao Poder", ou que postulavam "Sejamos realistas, peamos o impossvel". Essa orientao poltica, de diversas maneiras, segundo seus entusiastas, rechaava tanto os vcios da Democracia Burguesa Capitalista como os da Ditadura do Proletariado vigentes, estes ltimos, nos ensaios de transio ao Socialismo.

    Em realidade, pode-se afirmar que a orientao poltica que mais influenciou esses autores, apesar de no ser uma referncia demasiado explcita em seus escritos, o Anarquismo, como aconteceu com uma srie de investigadores que integram o que se denominou Movimento Instituinte Internacional.

    Entre os autores mais afins a Deleuze e Guattari, devemos mencionar, em primeiro lugar, Espinoza, Nietzsche, Bergson e Marx, assim como, entre os contemporneos, Foucault. Mas a lista de seus favoritos interminvel, e inclui, em lugares privilegiados, uma srie de artistas que renem em si a condio de loucos e de gnios. O exemplo mais caracterstico Artaud. Tambm notvel sua preferncia por certos novelistas anglo-saxnicos, entre eles D. H. Lawrence, Lewis Carrol e Henry Miller.

    O texto mais conhecido e impactante de Deleuze e Guattari , sem dvida, "O Anti-dipo", publicado em 1972.

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    Trata-se de um texto de difcil leitura, no porque o estilo seja particularmente retorcido, seno devido soma de conhecimentos que preciso dominar para entend-la, posto que o contedo que se refere a todos eles estonteante. Em um sentido um tanto melodramtico, pode se afirmar que "trata de tudo" . Verdadeiramente, uma grande reformulao das relaes existentes entre a natureza, a cultura, a sociedade, a economia, a poltica, a linguagem, as relaes de parentesco, os ritos, os mitos, o psiquismo, a religio, a famlia, o estado, a histria, a tecnologia maqunica, o saber, a verdade, os valores em geral, a sexualidade, etc.

    O ttulo parece centrar-se em uma crtica da concepo psicanaltica edipiana do Inconsciente, e por certo um questionamento profundssimo dos acertos e dos desacertos da Psicanlise, mas, concretamente, essa reflexo est includa entre muitas outras que abarcam todos os campos a que acabo de me referir.

    Impossvel sintetizar o que os autores pretendem dizer nessa "pera Magna", mas, arriscando-me a ser elementar e esquemtico, talvez possa adiantar que postulam:

    - Que todos esses domnios do saber e da realidade, modernamente separados pela modalidade cientfica do conhecimento, so imanentes (quer dizer, intrnsecos, consubstanciais entre si).

    - Que a Realidade, tal como a conhecemos, configurando esse conjunto heterogneo, est composta por trs superfcies, que, a rigor, so uma inerente outra. A saber, a Superfcie de Produo, a Superfcie de Registro-Controle e a Superfcie de Consumao. A Superfcie de Produo aquela responsvel pela gerao de tudo quanto existe, est formada por elementos constitudos por matrias ainda no formadas e por energias ainda no orientadas como foras. Esses elementos ainda no apresentam qualidade nem quantidade, mas se caracterizam por serem intensidades puras. Cada uma dessas intensidades (nas quais difcil pensar porque no estamos acostumados a conceber algo que ainda no tem nem tempo nem espao convencionais, nem qualidade nem quantidades diferenciais) consiste em uma singularidade absolutamente diferente de todas as outras, e o dizer "todas" metafrico, porque esse "todo" infinito, no pode totalizar-se.

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    Outra abordagem desses elementos os denomina multiplicidades (mas como substantivos, no como adjetivos). habitualmente se fala de "o um e o mltiplo"... frmula essa na qual o mltiplo no seno a multiplicao do que um, ou seja, muitos do mesmo. Multiplicidade se refere a unidades, cada uma das quais absolutamente diferente das outras: no h nenhum um que sirva de base para mu