Introdução à Literatura Russa II - Mário
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS
Fernando Cambauva Breda
N. USP – 7194390
Prof.: Mario Ramos Francisco Junior
Disciplina: Introdução à Literatura Russa II
Trabalho final
É na relação entre arte e sociedade que se dá a construção de
significado mais profundo das obras de arte. Em alguns casos, tais relações se
dão de modo mais mediado e “escamoteado”, outras vezes de modo bem
explícito. Este último parece ser o caso de obras produzidas em momentos de
ebulição social de determinada sociedade.
Não por acaso, o Modernismo, por exemplo, adotou como uma forma
privilegiada de expressão o manifesto – ou seja, uma arte que
necessariamente se projeta para o futuro. No caso do modernismo brasileiro,
por exemplo, tendo em vista uma tríade de objetivos por parte de seus autores
(uma revolução estética, revolução político-social e a descoberta/criação de
uma identidade nacional), a ligação não parece difícil de ser feita.
O pensador marxista Perry Anderson sugere que sob determinadas
condições históricas, as artes tendem a surgir de modo muito mais
intervencionista. Para o autor, estes momentos correspondem àqueles de
consolidação da modernidade urbano-capitalista das sociedades. Pode-se
dizer que assim o ciclo se fecha, pois foi justamente neste momento histórico
do capitalismo que engendrou-se uma configuração histórico-social que dava
abertura a uma mudança efetiva dos rumos do que estava colocado até então:
era o momento de proximidade imaginativa da revolução social, fosse ela
“"genuína e radicalmente capitalista" ou socialista (Anderson, 1986).
Nos casos em que Anderson tem em mente, esta configuração é
fundamentalmente alicerçada na "intersecção de uma ordem dominante semi-
aristocrática, uma economia capitalista semi-industrializada e um movimento
operário semi-insurgente".
Ainda que não se trate exatamente do caso da Rússia de Dostoievski,
estas sugestões, de alguma forma, nos ajudam a entender muito do que está
colocado na obra de Dostoievski.
Tendo em vista, o reduzido espaço deste trabalho, não pretendo deter-
me nas questões relativas às singularidades da configuração social que
colocava em disputa os rumos históricos da Rússia naquele momento1,
interessa-nos por ora, ter em mente que havia uma disputa bastante clara e
demarcada do futuro do país. Nesse sentido, nada mais revelador do que o
próprio prefácio do romance Memórias do subsolo do próprio Dostoievski.
“Tanto o autor como o texto destas memórias são, naturalmente, imaginários. Todavia, pessoas como o seu autor não só podem, mas devem até existir em nossa sociedade, desde que consideremos as circunstâncias em que, de um modo geral, ela se formou. O que pretendi foi apresentar ao público, de modo mais evidente que o habitual, um dos caracteres de um tempo ainda recente. Trata-se de um dos representantes da geração que vive os seus dias derradeiros. No primeiro trecho, intitulado 'O subsolo', o próprio personagem se apresenta, expõe os seus pontos de vista e como que deseja esclarecer as razões pelas quais apareceu e devia aparecer em nosso meio. No trecho seguinte, porém, já se encontrarão realmente 'memórias' desse personagem sobre alguns acontecimentos da sua vida.” (grifos meus)
1 A década de 1860 constitui um marco divisório na história da Rússia. O evento decisivo é o decreto de Alexandre II a 19 de fevereiro de 1860, libertando os servos. Contudo, política e culturalmente, pode-se dizer que a década de 1860 começou alguns anos antes, no princípio do reinado de Alexandre II, quando, após o desastre da guerra da Criméia, fez-se claro para todo o mundo que a Rússia teria de passar por transformações radicais. (...) Logo se constatou que os servos continuavam aprisionados a seus senhores, que recebiam ainda menos do que lhes era anteriormente destinado, que estavam expostos a toda uma nova ordem de obrigações emanadas das comunas das vilas e que eram, na verdade, livres apenas nominalmente. Mas, além dessas e outras falhas substanciais do decreto de emancipação, um sentimento de decepção enchia o ar. Os russos haviam esperado com fervor que o decreto de emancipação levasse a Rússia a uma nova era de irmandade e regeneração social e que fizesse dela um exemplo para o mundo moderno; ao invés disso, obtiveram uma sociedade de castas apenas um pouco modificada. Todavia, a amargura que se seguiu ao fracasso dessas esperanças foi decisiva para moldar a cultura e política russas dos cinquenta anos seguintes. (BERMANN, 1986)
É nessa questão que pretendo deter-me ao longo do trabalho. No uso da
literatura como instrumento de intervenção e interpretação da sociedade russa
por Dostoievski. Vou centrar meus esforços na segunda parte do romance
Memórias do subsolo. O livro encontra-se dividido em duas partes, as quais
são narrações de dois momentos distintos da vida da personagem-narrador
principal, que não se sabe o nome.
Na primeira, o narrador, isolado (no subsolo), divaga de modo volúvel,
indeciso e “inassertivo” sobre as mais variadas questões, não deixando chão
firme para qualquer instância do pensamento e mesmo da própria realidade
material. Na segunda parte, tenta esmiuçar os motivos que o levaram ao
isolamento.
É na própria narração dos fatos que o levaram ao isolamento que
Dostoievski parece colocar em questão de modo mais incisivo as
circunstâncias de formação da sociedade russa e seus resultados efetivos na
formação social e individual de seus habitantes, ainda que em tempos
derradeiros – como ele anuncia no prefácio ao livro.
Grosso modo, o conflito central que leva o narrador ao isolamento se dá
do conflito dele próprio com um funcionário de alto escalão da aristocracia
russa. O desafio da autoridade se dá pelo confronto físico que ambos
estabelecem durante uma cerimônia oficial promovida pelo Estado. No entanto,
a realização do feito demandou anos de reflexão por parte do narrador.
Tempos antes do conflito houvera também um outro conflito por parte do
narrador e um oficial ligado ao czarismo. Certa feita, em frente a uma taverna
ou algo do tipo o narrador depara-se com um homem sendo jogado pela janela,
instigado pelo conflito entra no recinto para confrontar o autor daquela ação. Ao
que depara-se com sua completa “inexistência” por parte do oficial. O trecho a
seguir é bastante explícito da indignação que toma conta do narrador:
“Eu estava parado à mesa de bilhar e, em minha ignorância,
bloqueando o caminho, e ele queria passar; tomou-me pelos
ombros e, sem uma palavra, sem um aviso ou explicação, moveu-
me de onde estava para outro lugar e passou como se não
tivesse me notado. Eu perdoaria socos, mas não poderia perdoar
ele ter me movido e me ignorado completamente. Das alturas
onde o oficial se coloca, o funcionário insignificante nem é visível
— ele está “lá” tanto quanto uma mesa ou cadeira. “Parecia que
eu não era um igual nem para ser atirado janela afora.”
(DOSTOIEVSKI, 2000)
Essa “inexistência” é em boa dose justamente a razão de ser das
divagações do narrador e a força motora do romance.
Ainda que em situações distintas, esse conflito parece lembrar o conflito
que tem Fabiano em Vidas secas com o soldado amarelo. E creio que uma
comparação do conflito de Fabiano e o conflito do narrador de Memórias do
subsolo pode ser bastante elucidativo para ambos os lados.
Fabiano, a despeito de seu fracasso em ir às vias de fato quando tem a
possibilidade de atacar seu algoz, possuía um chão firme de convicções a
respeito das possibilidades que lhe eram dadas socialmente – daí sua decisão
em não atacar o soldado amarelo. Esse não parece ser o caso do narrador de
Memórias do subsolo. E daí também emana grande força do livro: após o
conflito entre o narrador e o oficial, literalmente um confronto de classes, o
narrador já não é mais o mesmo – nem mesmo as convicções do passado lhe
são mais pertinentes. Será talvez este o corte histórico que vislumbrava
Dostoievski acerca dos “tempos derradeiros” do prefácio?
Retomar o conceito de polifonia de Bakhtin talvez nos ajude a
compreender melhor o andamento do romance nesse sentido (o da
possibilidade de um corte histórico). Há nas duas partes do livro, ainda que
narradas pela mesma pessoa, “vozes diferentes, cantando diversamente o
mesmo tema”. Isto constitui precisamente a “polifonia”, que desvenda o
multifacetado da existência e a complexidade dos sofrimentos humanos. “Tudo
na vida é contraponto, isto é, contraposição” – escrevia em suas memórias um
dos compositores prediletos de Dostoiévski – M. I. Glinka” (BAKHTIN, 2008).
No limite, essa duplicidade da narrativa pode ser indicativa da condição
liminar do homem do subsolo, preso em dois tempos distintos de sua
sociedade.
Referências bibliográficas
ANDERSON, Perry. "Modernidade e revolução". Novos Estudos Cebrap. São
Paulo, v.14, fev. 1986.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008.
BERMANN, Marshal. Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo:
Companhia das Letras, 1986.
DOSTOIEVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. São Paulo: Editora 34, 2000.
GROSSMAN, Leonid. Dostoiévski artista. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1967.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 2006