Introdução ufanismo e ressentimento

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sumário Prefácio 13 Eliane Cristina Deckmann Fleck Introdução 17 1. Raízes do ódio 37 1.1. Uma história dos conflitos 40 1.2. Os desafetos 50 2. Ufanismo, história e literatura 89 2.1. A evocação de mitos na colônia luso-brasileira 94 2.2. Pedro taques de almeida paes leme e as minas de ouro paulistas 104 2.3. Frei gaspar da madre de deus e o combate às abomináveis ‘‘imagens’’ de são paulo 116 2.4. A perversão e a busca pela felicidade em Charlevoix 131

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sumário

Prefácio 13 Eliane Cristina Deckmann Fleck

Introdução 17

1. Raízes do ódio 37 1.1. Uma história dos conflitos 40 1.2. Os desafetos 50

2. Ufanismo, história e literatura 89 2.1. A evocação de mitos na colônia luso-brasileira 94 2.2. Pedro taques de almeida paes leme e as minas de ouro paulistas 104 2.3. Frei gaspar da madre de deus e o combate às abomináveis ‘‘imagens’’ de são paulo 116 2.4. A perversão e a busca pela felicidade em Charlevoix 131

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3. Ambição, nostalgia e ressentimento 143 3.1. A vastidão do desejo 146 3.2. A administração da capitania da são paulo entre 1765-1775 164 3.3. Nostalgia e ressentimento 173 3.4. A historiografia e literatura paranista 190

4. A vastidão do desejo 219 4.1. Tropas pagas, auxiliares e de ordenanças 221 4.2. Os relatórios militares e as ilusões eletivas 225 4.3. Entre o paroxismo e o dever 238 4.4. Descoberta e enaltecimento 254 4.5. Insuportável natureza e injuriosa masmorra 2575. ‘‘Descoberta’’ e conflito: modos de sentir, modos de representar 285 5.1. Os campos de guarapuava ou ‘‘campanha grande’’ 287 5.2. Não é novidade padecer no sertão 299 5.3. Contatos e confrontos 302 5.4. Resistência e ressentimento 316

Considerações finais 337Referências 345

Fontes 363

Anexos 377

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Prefácio

É preciso sentir, por vezes, que um autor e uma obra podem não ser alguma coisa, sendo duas coisas opostas simultanea-

mente, porque as obras vivas constituem uma tensão incessante entre os contrastes do espírito e da sensibilidade.

Antônio Cândido

É com enorme satisfação que apresento ao leitor este li-vro Ufanismo e ressentimento: de Minas Gerais aos sertões de São Paulo (século XVIII) que resulta da Tese de Doutorado defendida por Michel Kobelinski no Programa de Pós-Gra-duação em História da Universidade Estadual Paulista - As-sis, em agosto de 2008, e que buscou comprovar a existência de sensibilidades conflitantes e correspondentes que oscilaram de um extremo ao outro – ressentimento e ufanismo –, que acabou por constituir um quadro de tensões e de negociações que marcou a história colonial da América portuguesa e que remonta aos conflitos entre portugueses e brasileiros e entre luso-brasi-leiros e espanhóis no século XVIII.

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A coexistência do ufanismo e do ressentimento na forma-ção da identidade luso-brasileira é, segundo Michel, um tema ainda não suficientemente explorado pela historiografia, razão pela qual ele se propõe a desmistificar a ideia de que nosso país seja o reino da natureza, da hospitalidade e da cordialidade e a discutir a crença consolidada de que o sentimento de identidade nacional esmaeceu no fim do período colonial com as políticas de branqueamento e aburguesamento da sociedade brasileira.

Com o objetivo de reconstituir as motivações para os con-flitos ocorridos nas Minas Gerais do século XVIII, Michel – com sensibilidade para identificar a complexidade e ambiva-lência dos comportamentos humanos e com competência de um pesquisador rigoroso – nos introduz no contexto em que ocorreu a chamada Guerra dos Emboabas (1707-1709) e se in-tensificaram as relações de cooperação e resistência ao governo de Morgado de Mateus (1765-1774). O fascínio pelo tema e a consciência dos riscos envolvidos na adoção desta inovadora perspectiva teórico-metodológica – a da História das Sensibili-dades – não o impediram de adotar uma postura crítica em rela-ção tanto aos estudos clássicos já realizados sobre o tema, quan-to em relação ao corpus documental que consultou e analisou. Apoiou-se, para tanto, em aporte bibliográfico e em referencial teórico-metodológico adequados à proposição de questionar os silêncios, de observar os fragmentos, de problematizar o aceito e o indubitável num discurso permeado pela subjetividade, intencio-nalidades e anseios de seus formuladores e marcado, também, pela condenação ao silêncio e à invisibilidade de seus interlocutores.

Esta postura permitiu que Michel se debruçasse sobre fon-tes tão variadas como relatórios de expedições militares, corres-pondências, a legislação setecentista, obras literárias, sonetos, poesias e diários de viagem para perscrutar as sensibilidades plurais manifestadas em situações tão distintas como as con-

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quistas e as derrotas, o êxtase diante de uma paisagem luxurian-te e do sabor novo de uma fruta, o medo da noite e das feras que espreitavam os homens, ou os dispositivos afetivos como a nos-talgia, a melancolia e a solidão entremeadas pelas notícias do êxito do projeto de exploração e de colonização dos sertões. E, mais ainda, possibilitou que Michel identificasse nos diferentes discursos – proferidos em diferentes temporalidades e por di-ferentes atores sociais – a apropriação e a utilização estratégica tanto do ufanismo, quanto do ressentimento na conformação do que denominou de uma proto-identidade nacional.

Para a reconstituição e análise do processo de construção das sensibilidades na América portuguesa do século XVIII, Michel recorre a um recurso narrativo bastante criativo, guiando-nos – através da literatura e da documentação se-tecentista – para o interior das Minas Gerais e da capitania de São Paulo, para que, na condição de espectadores possa-mos tomar contato com as Raízes do ódio; Ufanismo, história e literatura; Ambição, nostalgia e ressentimento; Ufanismo e res-sentimento nos sertões do Tibagi e, por fim, com Descoberta e conflito: modos de sentir, modos de representar. Muito mais do que títulos dados aos capítulos do livro, eles expõem expe-riências sensíveis que se inscrevem sob o signo da alteridade e revelam a opção de um historiador que, ao se interessar pelas maneiras como os indivíduos sentem e percebem, escava des-tinos e exuma afetos, mas sempre para reinseri-los em conjuntos significativos mais vastos, restituindo-lhes uma complexidade quase sempre escamoteada ou negada. Neste sentido, pode-se dizer que Michel seguiu à risca o recomendado pela histo-riadora gaúcha Sandra Pesavento, para quem a recuperação das sensibilidades exige a reeducação do olhar, fundamental para que se possa explicar como poderia ter sido a experiência sensível de um outro tempo.

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A análise empreendida por Michel não apenas comprova a possibilidade de resgatarmos as sensibilidades da invisibili-dade, como também de, através delas, reconstituirmos os mais complexos e antagônicos sentimentos – tais como o ufanismo e o ressentimento – envolvidos no processo de construção da identidade nacional brasileira, em muito semelhantes aqueles que afloraram diante da exuberância avassaladora da nature-za, da ferocidade dos animais e dos indígenas ou da iminência do amotinamento de alguns homens que acompanhavam as expedições setecentistas que rumavam para o sertão. O leitor desse livro tem, assim, diante de si, uma significativa contri-buição à nossa historiografia, na medida em que ele se insere no esforço de reinterpretação – fundamentado na História das Sensibilidades – das icônicas e consagradas narrações da nação, responsáveis pela reafirmação de um discurso homogêneo so-bre o caráter nacional. Uma linearidade e homogeneidade que são contestadas por Michel ao longo dos capítulos, nos quais ele destaca os efeitos das experiências sensíveis – do ufanismo e do ressentimento – no processo de construção das imagens he-roicizantes e detratoras sobre homens e territórios brasileiros, num período que se estende do século XVII ao século XX. Em cada um deles, o leitor encontrará sensibilidades instáveis – em oposição ou complementares – visões ambíguas ou antagôni-cas, que apontam para aquela tensão incessante entre os contrastes do espírito e da sensibilidade – referida por Antônio Cândido – e para as aparentes contradições e paradoxos, tão fecundos para a análise empreendida por Michel.

Eliane Cristina Deckmann Fleck

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Introdução

Este trabalho procura recuperar na história das sensibilida-des, um tema que não foi suficientemente explorado: a coexistên-cia do ufanismo e do ressentimento na formação da identidade luso-brasileira. No caso do Brasil, os vínculos entre os cidadãos e a nação, somados ao hábito de supervalorizá-la excessivamen-te, decorrem de um modelo de história que exaltou os heróis, ao mesmo tempo em que, reverenciou a natureza. Parte dos histo-riadores do início do século XX exasperou as virtudes, criando a ideia de um passado harmonioso, dissimulando o senso crítico e a existência de incompatibilidades sociais. E, justamente pelos va-lores presentes em nossa formação que a maioria dos sujeitos que sofreram injustiças e desagravos e, portanto, desconectados desse ideal formativo, tornaram-se ressentidos. A questão central que norteia nossa pesquisa no século XVIII é, de que maneira os afe-tos ativos (ufanismo) e reativos (ressentimento) se manifestaram na formação da proto-identidade nacional? Todavia, não se trata de uma obsessão pelas origens,1 pois o ufanismo, por exemplo, já podia ser identificado entre os cronistas como Pêro Vaz de Ca-minha, Pêro Lopes de Souza, Hans Staden, Pêro de Magalhães Gandavo e Pedro Fernão Cardim.2

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O presente trabalho se insere nesta rediscussão, entenden-do que, apesar dos estados de impotência causados por esse “mal estar”, prevaleceu a capciosa ideia de ostentação que os brasileiros manifestam pelo país e por si mesmos e que segui-damente as pesquisas de opinião pública, realizadas pelo Mi-nistério do Meio Ambiente e pelo Instituto de Estudos das Religiões evidenciam. Pretendemos desmistificar a ideia de que nosso país seja o reino da natureza, da hospitalidade e da cordialidade,3 criticando os pressupostos de que o sentimento de identidade nacional esmaeceu no fim do período colonial com as políticas de branqueamento e aburguesamento da so-ciedade brasileira.

Os sentimentos aqui estudados possuem referências plu-rais. Referem-se à dominação ou encantamento que pode ser vislumbrado emblematicamente na letra do Hino Nacional brasileiro, ou no orgulho expresso por Gonçalves Dias na Can-ção do Exílio (1843). E, também, à desafeição pela política, a manutenção da vingança latente e infecunda que ofusca a memória pela resignação ressentida.

No primeiro caso, uma forma impositiva de promover a nação e a nacionalidade pode ser identificada nos pressupostos de um dos membros mais influentes do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Conde Affonso Celso (1860-1939). Na obra “Por que ufano de meu país”, de 1900, a naturalização da história passava pela enumeração das vantagens compara-tivas do Brasil em relação a outras nações; entre elas, o clima, a natureza, a mestiçagem e a história.4 Nesse pensamento, a integração nacional e o patriotismo serviam de instrumentos de crítica e de enfrentamento dos problemas que ameaçavam o Brasil, tais como a política, o atraso econômico e os maus go-vernos. Com esse direcionamento, buscou-se no passado uma imagem que correspondesse a uma identidade nacional. A efí-

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gie que mais se aproximava desse ideário era a do sertanista de São Paulo.

Essa mitologia, amplamente disseminada nos livros didá-ticos até a década de 1980, era o resultado de disputas político--econômicas que associavam identidade, progresso e história. É significativo, portanto, que historiadores como Alfredo Ellis Jr., Affonso D’Escragnolle Taunay e Alcântara Machado, en-tre outros, reivindicassem que o progresso da capital paulista era fruto das ações heroicas de seus ancestrais, embora fos-se necessário abrir mão da consanguinidade, para atribuir aos imigrantes, uma identidade associada ao trabalho e ao desen-volvimento de São Paulo e, consequentemente, do Brasil.5

Por outro lado, o ressentimento foi objeto de atenção de historiadores, antropólogos e sociólogos, principalmente quan-do os campos de conhecimento histórico e psicológico alarga-vam os horizontes da pesquisa.6 Assim, entendia-se que, na história brasileira, o recalque era um legado histórico cujas ba-ses se assentaram na atração pelos prazeres carnais, na ambição e na amargura. Esses comportamentos traziam implicitamente perturbações psíquicas e o sentimento de não pertencimento ao Brasil.7 Nesse sentido, os sertanistas foram desmistifica-dos, pois a obsessão pelo ouro os levou a cometerem delitos para satisfazerem suas paixões.8 Tal desenlace revela que, sob o manto de superioridade (ufanismo), ocultava-se um complexo de inferioridade (ressentimento). Logo, esse contrassenso deu sentido à necessidade de sucessivas redescobertas retóricas e à constante busca pela identidade perdida.9 Afinal de contas, a conjectura de uma nação branca e civilizada, cujo modelo se espelhou na cultura francesa, na economia inglesa e, principal-mente, no aburguesamento dos costumes, foi encoberta pela disseminação do mito da democracia racial e pela política de imigração do Império Brasileiro.10

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E, se historicamente a sociedade brasileira foi marcada pelo “equilíbrio de antagonismos”, isso também quer dizer que, além da exaltação pátria, os brasileiros carecem de um sentimento de identidade e não se reconhecem no discurso na-cional.11 Gilberto Freyre admite o fenecimento deste tipo de sentimento em fins do período colonial. 12 Mas, parece equivo-cada a noção de que o amálgama de indivíduos extrovertidos e introvertidos resultou de uma adaptação comportamental ca-racterizada pelo prazer em provocar sofrimento nos outros e nos animais e, ao mesmo tempo, pelo deleite com o sofrimento físico e moral que lhe provocam. A versão de um comporta-mento sadomasoquista não se resume a uma forma de prazer da população brasileira. Ao contrário, parece-nos plausível que o prazer não diz respeito à introspecção, mas à incapacidade de reação às iniquidades dentro de um sistema de honrarias e privilégios.

É por este motivo que a pretensa cordialidade, ou mes-mo a felicidade estampada no comportamento da população brasileira também se manifesta na zombaria de semelhantes e adventícios. No entanto, esta atitude também pode ser con-siderada como uma forma de violência. A pulsão agressiva dá sentido à existência humana; é um meio de proteção que ga-rante a existência do sujeito e uma mediação com o grupo com o qual se identifica.13 A derrisão é, portanto, uma condição das sensibilidades originadas na mestiçagem e nos conflitos existentes durante a fundação nacional, pois conectaram sa-beres, comportamentos, imposições e resistências.14 Também é importante mencionar que, nas primeiras décadas do século XX, o aspecto crítico do ressentimento permitiu questionar o personalismo e os limites políticos da colonização. Assim sen-do, dever-se-ia superar o ranço da cordialidade, pois, durante a mestiçagem, não houve solidariedade entre os brasileiros.15

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As imagens ambíguas de exaltação e de negação da identi-dade brasileira nos remeteu à gênese desse processo, isto é, aos conflitos entre portugueses e brasileiros e entre luso-brasileiros e espanhóis, no século XVIII. Portanto, é vital entender como essas construções discursivas negavam e/ou exaltavam as ações dos sertanistas e, por conseguinte, os usos do passado para for-talecer uma identidade, mesmo que antes de a nação brasilei-ra se constituir de fato. Desse modo, o estudo dos conflitos a partir de suas raízes histórico-literárias na colônia permitiu a compreensão da dinâmica dos debates que orientaram o fazer historiográfico naquele momento. Por esse motivo, impor-ta que estas sensibilidades, isto é, ufanismo e ressentimento sejam observadas conjuntamente, pois se referem a compor-tamentos (individuais e coletivos), a manipulações sociais, cul-turais e históricas.

Para evitar o anacronismo e melhor compreender a for-ma como os comportamentos foram apreendidos em outros tempos, é importante compulsar os significados de alguns termos essenciais que fundamentaram a presente pesquisa. Atualmente o termo ambivalência se refere ao estado em que se experimentam, simultaneamente, em dadas circunstâncias, sentimentos antagônicos. E sensibilidade é entendida como a capacidade humana de sentir ou ter sentimentos, admitindo--se os aspectos psíquicos, filosóficos, literários, físico-quími-cos, etc.16

Mas a natureza do vocábulo sensibilidade na cultura portu-guesa do início do século XVIII é deveras interessante e pro-funda. Tinha como significado a predisposição dos sentidos humanos às impressões dos objetos ou coisas que podiam dar “gosto ou pena”. Com o sentido muito próximo de sentimento, o termo estava associado à “delicadeza”, à susceptibilidade, à “dor, trabalho, ou molície”. Considerava-se também o extre-

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mismo em relação às “delícias” da vida e o sentimentalismo diante de “castigos” severos. Mas, o que chama nossa atenção é o fato de aludir à estratificação social do Antigo Regime e a um tipo de comportamento diferencial, pois admitia que a sen-sibilidade “poderia” existir no coração de nobres e aristocratas “nas matérias concernentes à honra, à gloria”.17 Essas atitudes foram cruciais para o desencadeamento de sensibilidades plu-rais e, por este motivo, decidimos investigá-las nos discursos do século XVIII.

As expressões ufanismo e ressentimento apresentam im-precisões e estão imbricadas nos liames da cultura e da história brasileira e europeia. Veja-se, por exemplo, que os termos ufa-nia e ufano expressavam o sentido de superioridade, ostentação e soberba, ou seja, eram expressões específicas daqueles com-portamentos relacionados aos poderes que um grupo ou uma pessoa tinha em relação aos outros, resultando numa forma de orgulho e prazer. Essa forma de sentimento também trazia da Antiguidade o título de herói (do hebraico hir, valente) apenas aos “varões ilustres”, quer pelo sangue, quer pelas virtudes. As-sim, naquele ambiente social, a sensibilidade se estabelecia no distanciamento entre os “ilustres” e os homens comuns ou sem virtudes. A raiz do termo “ufano” é remota e provavelmente originária da língua espanhola. Significava “vangloriar-se de si ou do que se dispõe”, associando-se à jactância e à vaidade,18 ou mesmo, “brio, ostentação, orgulho”.19 Em outros termos, refere-se à sensibilidade que lhe é oposta.

Curiosamente, em 1606, o desembargador Duarte Nunes Leão afirmava que os portugueses abusavam dos vocábulos de outras nações, evitando os de origem espanhola, pois “a ra-zão he que além da emulação que entre estas gentes houve despois que os reinos se dividirão, se encontraram os Portu-gueses perpetuamente com os Castelhanos em duas letras, que

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he mais notável differença que tem estas duas nações, & por que se mais desconhecem”.20 Uma das aparições do temo “ufa-nar” ocorreu entre os castelhanos, por volta do ano de 1290, o qual se associava a uma origem e sentido germânico-gótico, isto é, abundância, vaidade, pompa, ostentação; entretanto, os fonemas “uf”, referem-se a esforço e surpresa agradável, sendo que na língua portuguesa, “ufa”, significava admiração, ironia, cansaço.21

Essas acepções evidenciaram tensões de longa duração en-tre portugueses e espanhóis em torno das disputas políticas e territoriais, tanto na Península Ibérica quanto nos domínios ultramarinos. A palavra ressentimento (do francês ressentiment) significava sentimento ou pesar de “algua cousa”, algo latente, que se referia ao conhecimento de algo ou do que poderia re-sultar de um encadeamento.22 Na França do Século XVII, o termo significava a suscetibilidade humana à moralidade, ao verdadeiro, ao bem e ao prazer. No século seguinte - período que nos interessa - o sentido correspondia às particularidades humanas de ter sentimentos, como por exemplo, a piedade e a tristeza e à “qualidade daquele que é sensível”.23 Portanto, havia sensibilidades para o calor e para o frio e sensibilidades concernentes à glória e à sensibilidade do coração. Trata-se de uma constelação de sentimentos,24 os quais se relacionam “às impressões dos objetos”, à moralidade, glória, honra e os “[...] sentimentos de humanidade sobre a miséria dos outros, os sentimentos de carinho e amor [...]”, sempre considerados como algo louvável e surpreendente.25

Em Nietzsche o ressentimento é o resultado de uma con-figuração histórica na qual há sublevação dos “inferiores” con-tra os “superiores”, sendo que o ódio recalcado se manifestava através da “inveja, do ciúme assassino e do desejo de vingan-ça”.26 Porém, o ressentimento não se resume a essa definição e

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nem a comportamentos historicamente determinados; mesmo esses podem se manifestar no mesmo plano estamental e no “ódio” dos “superiores” pelos “subalternos”, alimentados por período incerto. Atualmente, reconhece-se no ressentimento a manifestação inconsciente das angústias ignoradas, muitas ve-zes introjetadas nos indivíduos e que se vinculam à negação da existência.27 Ansart nos lembra da impossibilidade de eliminar o ressentimento da agressividade, pois é algo que faz parte da formação do indivíduo e de sua personalidade.28

Essencial a nossa argumentação é o fato de as sensibilida-des associarem estratificação social e comportamentos ligados à nobreza, honra, glória e linhagem, as quais caracterizavam o surgimento de uma identidade que envolvia antagonicamente política e sensibilidade. Aliás, ao estudarmos a documentação do século XVIII, como por exemplo, relatórios de expedições militares, sonetos, romance, diários de viagem, obras literárias e correspondências (Códice Costa Matoso), percebemos o seu inverso, isto é os afetos reativos decorrentes das imposições políticas. Tais elementos são significativos para entendermos a pluralidade dos ressentimentos e a motivação para os con-flitos nas Minas Gerais do século XVIII e a presença destas sensibilidades nas explorações militares dos sertões de Tibagi e Guarapuava.

Em termos contextuais dois momentos foram significati-vos, pois desencadearam um processo de construção das sensi-bilidades: a chamada Guerra dos Emboabas (1707-1709), na região das minas e a cooperação e resistência ao governo de Morgado de Mateus, entre 1765 e 1774, em São Paulo. Pa-receu-nos significativo retomar algumas questões que ficaram em suspenso, pois apenas uma face do processo foi abordada, sendo necessário considerar pelo menos uma relação mais es-pecífica com o seu desencadeamento, principalmente durante

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a conquista dos sertões da capitania de São Paulo. A questão que se coloca é a maneira como estas sensibilidades se mani-festaram no final do período colonial, em termos de práticas individuais e coletivas, tanto nos conflitos nas Minas Gerais, quanto nos processos sociais e transformações na capitania de São Paulo.

As matrizes teóricas que inspiraram este trabalho são varia-das. Ao nos situarmos no contexto historiográfico brasileiro, o estudo de Kátia Maria Abud foi imprescindível. A autora des-mistificou o “bandeirante” na história brasileira, enfatizando que a produção de heróis permitiu, através da exacerbação e do orgulho, projetar no âmbito das tensões e negociações sociais e políticas uma imagem referencial dos paulistas e da própria na-ção.29 Contudo, privilegiamos o desdobramento deste proces-so, pois percebemos que envolvia sentimentos contraditórios. Basicamente, exploramos a simultaneidade do ufanismo e do ressentimento, o qual não ficou restrito às Minas Gerais, mas também à capitania de São Paulo.30

Pareceu-nos produtiva a ideia de recuperarmos algumas premissas esquecidas no âmbito da renovação da história cul-tural. Por outro lado, é impossível não nos referirmos à emer-gência do indivíduo, a partir da Revolução Francesa. A partir daquele momento se ampliou o sentimento do eu, da autoes-tima, da escrita de si, da intimidade, do controle do corpo, da higiene, das boas maneiras, da percepção dos prazeres, dos te-mores, do amor, da raiva, da melancolia, das experiências pro-vocadas pelas viagens, dos efeitos das invenções sobre os sujei-tos, da relação de amor aos animais domésticos, das recepções sensíveis e inteligíveis dos órgãos sensoriais, etc. Estas dimen-sões da vida do homem, aqui exemplificadas pela emergência do indivíduo em sua relação com a sociedade, arraigadas de valores culturais que definiram uma visão de mundo e formas

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de agir e reagir são exemplos de temas que os historiadores das sensibilidades tem atualmente trabalhado.

Não é novidade a reivindicação de uma história que trate do sensível. Não é recente a reclamação de que alguns objetos de estudo, como o louco, a criança, o corpo e o sexo tinham sido excluídos pela tendência racionalizante na história.31 Ali-ás, ainda é notória a aversão dos historiadores por uma histó-ria das emoções ou das subjetividades humanas, embora esta tenha sido bastante representativa na historiografia do início do século XX. É neste sentido que Huizinga, por exemplo, reconhecia a sensibilidade na histórica, uma vez que esta nos faz compreender conexões. E, embora a história, não seja psi-cologia, ela não elimina a atividade psicológica, pois tal escru-tínio “[...] se converte em uma modalidade de compreensão histórica das formas”.32 Simultaneamente aos pressupostos do historiador holandês, Lucien Febvre valorizou, sobretudo, as dimensões dos modos de sentir, as atitudes psicológicas, e a ambivalência dos os sentimentos humanos, pois os seres hu-manos internalizam oposições, e quando um dos sentimentos predomina, o outro permanece em estado letárgico (o amor e o ódio, por exemplo).33 Nesta mesma direção, o método crítico, comparativo, retroativo e psíquico, proposto por Marc Bloch, admitia a análise dos documentos à luz da uma psicologia do testemunho, o qual permite compreender melhor a comple-xidade da natureza humana, ao mesmo tempo em que situa o homem na natureza, apoiando-se “[...] numa instintiva meta-física do semelhante e do dessemelhante, do Um e do Múlti-plo”.34

De qualquer maneira e, apesar destas contribuições, as emoções foram, por um longo tempo, consideradas como per-turbação dos indivíduos, daí, em geral, sua repressão e minimi-zação pela atividade intelectual. Neste aspecto, pode-se acom-

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panhar, na historiografia recente, a emergência e a fecundidade deste tipo de história nos encaminhamentos teóricos e meto-dológicos e nas novas problemáticas a ela concernentes.35 E, por acaso, o mundo moderno não interferiu na maneira como os historiadores olharam e entenderam o passado? Isto explica, um pouco, o surgimento de temas até então pouco explorados. É possível que a reavaliação do passado pela desfragmentação do presente seja uma forma de escapismo que nos leva a reco-nhecer outros valores que fugiram à nossa apreensão. Mas é importante reconhecer que a tarefa do historiador também é tornar a história mais humana.36Foi justamente nessa “nova” perspectiva que a história das sensibilidades encontrou um ca-minho promissor e atualizou aqueles temas que tinham ficado em suspenso.

Não foi sem razão que o historiador Alain Corbin saiu em defesa de uma identidade sonora para o século XIX, critican-do também, em outros trabalhos, os poucos estudos sobre a emoção, sentimentos e paixões.37 Mesmo porque, cabe ao pes-quisador buscar a apreensão dos funcionamentos sociais pelo interesse das “configurações do silêncio”, matéria viva, legível e inexplorada. Entende-se que os trabalhos produzidos dentro desta vertente historiográfica resultaram num caminho inteli-gível para refletir como ocorreram algumas mudanças em re-lação aos desejos, fantasias e imaginações entre a população da colônia brasileira em fins do século XVIII.

Ao seguir esta tendência historiográfica entendo que a apreensão indiciária da vida dos homens em sociedade ao longo do tempo é frágil. Mas como não perceber as cicatrizes das emoções e das sensibilidades humanas, mesmo diante das lacunas documentais e da fragilidade da narrativa do historia-dor? Esse ponto merece atenção, pois a resposta está longe de ser definitiva. Isto nos leva a refletir igualmente a existência, os

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procedimentos e a validade deste tipo de pesquisa. Sem dúvida a consciência da precariedade das respostas nos permite traba-lhar nos limites obscuros da densidade do passado que se pro-cura compreender. Particularmente, neste caso, é importante considerar que o diálogo entre a história e a psicologia deve ser cauteloso, principalmente porque não se trata de ressuscitar os mortos, ou reconforta-los no divã. Ao contrário, a ausência da interatividade entre o historiador e o passado pesquisado é substituída pela inquirição e pela auscultação de representa-ções fragmentarias, para revelar, quando possível, as subjetivi-dades humanas, sem deixar de lado os aspectos objetivos. De qualquer maneira, o contato com outras áreas do conhecimen-to é estimulante, produtivo e ao mesmo tempo, arriscado. Mas porque não correr o risco?

Seguindo este percurso, investiguei as ações e reações às manipulações sociais, as articulações entre as individualidades dos sujeitos e as práticas sociais. A preocupação central foi ve-rificar em que medida os poderes coloniais, pessoas comuns, oficiais e soldados se satisfaziam ou sucumbiam a esses proces-sos, por efeitos de conquistas, de perdas, ausências ou desvan-tagens manifestadas em situações de êxito, engrandecimento, desejos, fantasias, privação da vida e hostilidades, construindo, simultaneamente, imagens espetaculares ou depreciativas da natureza e da sociedade colonial.

No capítulo 1, Raízes do ódio, discutimos a gênese do ufa-nismo a partir da Guerra dos Emboabas. Além da exploração dos principais referenciais historiográficos sobre o assunto, como por exemplo, Taunay, Vasconcelos, Mello, Rodrigues, Golgher, Boxer, Pitta, foram reinterpretados os documentos do códice Matoso e a obra de Antonil, procurando evidenciar as contraposições entre o ressentimento e o ufanismo, inicial-mente vinculado aos valores metropolitanos. Notadamente as

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posições flutuantes nas esferas dos “poderes coloniais” em rela-ção aos conflitos nas Minas Gerais produziu uma documenta-ção que resultou em orientações historiográficas distintas. No que concerne à generalização da intransigência, destaca-se que os conflitos entre paulistas e portugueses estavam ligados a in-teresses contraditórios, dentro e fora destes mesmos grupos. A conclusão é a de que o ufanismo em fins de setecentos não foi genuinamente produzido pela força das ideias na colônia, mas também pelas referências que eram abstraídas da cultura portuguesa.

No capítulo 2, Ufanismo, história e literatura, analisamos a irradiação da sensibilidade ufanista na literatura do início de setecentos, tendência que estava mais ligada aos valores portugueses do que aos coloniais, e que acabou influencian-do os historiadores paulistas. Neste sentido, consideraram-se as ambiguidades em torno do ufanismo e do ressentimento, a intermediação entre as “políticas de estado” e os interesses pessoais. Desse modo, o capítulo comportou três momentos importantes. Inicialmente, a análise focou a influência deci-siva de Pedro Taques de Almeida Paes Leme no governo de Morgado de Mateus, a valorização do passado e da nobilita-ção, sendo perceptível a cooptação do historiador com o go-verno colonial, através de sua habilidade no mapeamento dos recursos minerais nos interiores paulistas. Referindo-se a Frei Gaspar da Madre de Deus, refletiu-se como sua perspectiva ufanista, que evocava apenas um passado heróico dos sertanis-tas, valorizou a paisagem colonial ao mesmo tempo em que se contrapunha aos discursos dos jesuítas franceses Charlevoix e Vaissette que, inversamente, mostravam imagens da barbárie e da degeneração social na formação da capital paulista. Nesses casos, o ufanismo pode ser visto como um instrumento de luta que parte do ressentimento decorrente da perda de privilégios

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no âmbito dos conflitos e das negociações sociais. Seu dire-cionamento, que reserva internalizações (recalques), procura apresentar externamente somente os aspectos dignificantes para causar impressão e dominar. A poesia de Cláudio Manuel da Costa se inseria neste processo pela relação que manteve com o ambiente conflituoso que transpassava a poesia do ouro. Contudo, notou-se o descompasso entre a persona poética de Cláudio Manuel da Costa com a paisagem mineira e a me-lancolia decorrente de sua insatisfação pessoal diante da triste realidade luso-brasileira.

No capítulo 3, Ambição, nostalgia e ressentimento, analisa-mos o projeto de exploração e colonização dos sertões de Ti-bagi, de Francisco Tossi Columbina (1750), enfocando que seu desejo de enriquecimento estava acima de vinculações mais profundas com um senso de pertencimento à colônia. Como a iniciativa foi crucial para o conhecimento dos sertões, foi apro-veitada nos projetos de Morgado de Mateus. Neste contexto, refletiu-se de maneira geral a conturbada administração de Dom Luis Antonio de Souza Botelho Mourão, os processos que sofreu após o seu governo e suas tentativas de reabilita-ção junto à coroa portuguesa. A participação de seu sobrinho, Afonso Botelho de Sampaio e Souza também foi ponderada em razão dos projetos de militarização e dominação territorial. Mas o documento mais interessante deste capítulo é o “Diá-rio da Navegação do Rio Tietê, Rio Grande, e Rio Gatemi” (1769) do Sargento-Mor Theotônio José Juzarte que aponta a saga de centenas de pessoas que se direcionaram para a imen-sidão colonial. Foram identificados ali “dispositivos afetivos” relacionados a estados de nostalgia, melancolia e solidão. Estes comportamentos apareceram em razão de “perdas e ausências” durante a viagem e o estabelecimento no forte Nossa Senhora dos Prazeres no Iguatemi até sua capitulação. Ainda foi reser-

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vado um espaço para a análise do posicionamento da vertente paranista sobre a exploração dos sertões do Tibagi, cujo ideário se assentava nos valores históricos e sociais das décadas iniciais do século XX. O capítulo é finalizado com a análise de um romance histórico que retomava a povoação de Iguatemi e re-construía mitos em torno das questões indígenas.

Nos dois capítulos finais, a documentação organizada por Afonso Botelho de S. Paio e Souza e intitulada “Notícia da conquista e descobrimento dos sertões do Tibagi” permitiu a construção de dois momentos de análise para as explorações militares aos sertões da capitania de São Paulo: o reconheci-mento dos interiores coloniais e depois a exploração e ocupa-ção dos Campos de Guarapuava. Invariavelmente, transpare-cem nesses documentos as sensibilidades em oposição entre indivíduos, grupos e instituições, mostrando ao mesmo tempo como a sociedade colonial foi contraditória, produzindo ima-gens espetaculares do território e das ações dos “homens bons” que se sobrepuseram à realidade social na colônia.

Na primeira parte, no capítulo 4, O ufanismo e o ressenti-mento nos sertões de Tibagi, partiu-se dos dispositivos jurídicos e da formação das Tropas Pagas, Auxiliares e de Ordenanças para a compreensão dos mecanismos de promoção e de puni-ção. Para isto, foi preciso identificar as articulações e desarticu-lações em relação aos poderes na colônia enquanto mecanismo de sustentação de uma lógica de sobrevivência. O foco central se estabeleceu nas incursões militares que foram direciona-das para o reconhecimento dos sertões e de sua hidrografia (rios Iguaçu, Tibagi, Piquiri, Ivaí, Iguatemi, Tietê). Além de analisar os ressentimentos desencadeados pelas disputas po-líticas dentro da corporação militar, procurou-se avaliar as motivações para as deserções, a impopularidade do governo de Morgado de Mateus entre a população, os conflitos entre

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militares e clérigos. Em relação aos discursos dos altos escalões militares, ressaltou-se os argumentos provenientes das ideias dos historiadores paulistas ligadas ao enaltecimento pessoal e às vinculações e afastamentos com a natureza e a paisagem. Em muitos casos a relação com a natureza decorria de valores culturais e religiosos. Ao longo da documentação, percebeu--se a projeção do ufanismo como instrumento de luta contra os espanhóis que rivalizavam nas áreas litigiosas da colônia e como ele era utilizado em razão dos sucessos e fracassos nas expedições militares.

Na última parte, “Descoberta” e conflito: modos de sentir, modos de representar refletimos as peculiaridades da exploração e ocu-pação dos Campos de Guarapuava, as tentativas de ocupação territorial a partir da aproximação com populações indígenas e a aversão aos espanhóis. Avaliou-se como a interiorização e a exteriorização dos “sentimentos” conduziam a comportamentos que podiam se manifestar tanto na poesia que aludia ao mito do eldorado, quanto na repugnância aos comportamentos sacríle-gos dos índios Kaingangues e vice-versa. Estes modos duais de sentir se voltavam para o maravilhamento da paisagem e sua monumentalidade, para a questão religiosa ao mesmo tempo em que criavam mitos sociais a partir dos ressentimentos.

Deste modo, colocamos à disposição dos leitores a am-bivalência das sensibilidades ao pensá-las enquanto maneiras de agir e reagir dentro de estruturas sociais cooperadoras e conflitantes que abrangiam diferentes temporalidades: paulis-tas e “emboabas”; historiadores paulistas e jesuítas paraguaios; “poderes metropolitanos” e “poderes coloniais”; “poderes co-loniais” e população; “generais e soldados”; “oficiais e oficiais”, “soldados e indígenas”.

Portanto, o que se prossupõe é a confirmação da ambigui-dade sensível, ressentimento e ufanismo, desencadeados simul-

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taneamente na construção de uma proto-identidade nacional. Ela é vital para se entender a maneira como o ressentimento foi duramente combatido em finais de setecentos. Em nos-so entendimento estas sensibilidades podem ser vistas como formas ou alternativas viáveis de combater o “outro”, afirman-do desejos e intenções profundas sobre “pretensões” diluídas na diversidade dos grupos humanos. Por fim, conclui-se que estas sensibilidades conflitantes e correspondentes oscilaram de um extremo ao outro, provocando um quadro de tensões e de negociações que marcou a história colonial da América portuguesa.

Notas

1 BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

2 SILVESTRE, Vilma F. Séves de A. Raízes do ufanismo brasileiro: séculos XVI-XVIII. Dissertação de mestrado em História. Faculdade de Letras do Centro Regional das Beiras. Universidade Católica Portuguesa, 2002.

3 CRESPO, S., NOVAES, E. O que os brasileiros pensam sobre a biodiversidade. Pesquisa Nacional de Opinião. Ministério do Meio Ambiente, Instituto de Estudos da Religião, 2006.

4 CELSO, Affonso de A. F. Por que Me Ufano do Meu País: right or wrong, my country. 12ª. ed. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia., 1943.

5 ABUD, Kátia Maria. O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições. A construção de um símbolo paulista: o bandeirante. Tese de doutorado em História, Universidade do Estado de São Paulo, São Paulo, 1985. Ver também MOUTINHO, Jessita Maria Nogueira. A paulistanidade revista: algumas reflexões sobre um discurso político. Tempo Social, Revista de Sociologia, São Paulo, p. 109-117, 1991.

6 BRESCIANI, S., NAXARA, M. Memória e (Res)sentimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004, p. 15-36; FERRO, Marc. O ressentimento na história: ensaio. Rio de Janeiro: Agir, 2009.

7 PRADO, Paulo. Província & nação. Paulística. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1972.

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8 MELLO e SOUZA, Laura. Aspectos da historiografia da cultura sobre o Brasil colonial. In: FREITAS, Marcos Cezar. Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2003, p. 206.

9 MEYER, M. Caminhos do imaginário no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.

10 MARTIUS, K. F. P. Como se deve escrever a História do Brasil. In: Revista do IHGB. Rio de Janeiro, 6 (24), p. 381-403, jan., 1845; ALENCASTRO, L. F. de. RENAUX, M. L. Caras e modos dos migrantes e imigrantes. In: ALENCASTRO, L. F. História da vida privada no Brasil. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 291-335.

11 KEHL, M. R. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.12 FREYRE, G. Casa grande & Senzala: introdução à sociedade patriarcal

no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1990.13 LORENZ, K. L’agression, une histoire naturelle du mal. Paris:

Flamarion, 1969. 14 SUBRAHMANYAM, S. Connected Histories: Notes towards a

Reconfiguration of Early Modern Eurasia. Modern Asian Studies, Vol. 31, No. 3, Special Issue: The Eurasian Context of the Early Modern History of Mainland South East Asia, 1400-1800, Jul., 1997, p. 735-762.

15 HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995; REIS, J. C. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2000.

16 Cf. FERNANDES, F. Dicionário de Sinônimos e Antônimos. Rio de janeiro: Globo, 1955; FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0. Curitiba: Positivo Informática Ltda, 2004. Existem algumas variáveis. Veja-se, por exemplo, o termo emoção: “ato de mover (moralmente)”; “perturbação ou variação do espírito advinda de situações diversas, e que se manifesta como alegria, tristeza, raiva, etc.; abalo moral; comoção”; “reação intensa e breve do organismo a um lance inesperado, a qual se acompanha dum estado afetivo de conotação penosa ou agradável”; “estado de ânimo despertado por sentimento estético, religioso, etc.”, s.p.

17 BLUTEAU, R. VOCABULARIO PORTUGUEZ & LATINO, áulico, anatômico, architetonico. Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728, p. 584.

18 DICCIONARIO DE LA LENGUA CASTELLANA, en que se explica el verdadero sentido de las voces, su naturaleza y calidad, con las phrases o modos de hablar, los proverbios o refranes, y otras cosas convenientes al uso de la lengua [...], Compuesto por la Real Academia Española, Que contiene las letras S.T.V.X.Y. Z, Madrid. Imprenta de la Real Academia

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Española, por los herederos de Francisco del Hierro, 1739, p. 384 e 994, respectivamente.

19 FONSECA, Simões da. Dicionário Encyclopédico Illustrado da Língua Portugueza. Rio de Janeiro/Paris: H. Garnier; Livreiro-Edidor, 1911, p. 1155.

20 LEÃO, D. N. Origem e orthographia da lingua portugueza. Lisboa: Typografia Rollandiana, 1784, p. 80.

21 SILVESTRE, 2002, p. 8.22 BLUTEAU, 1712-1728, p. 277-78.23 FEBVRE, L. Combates pela história. Lisboa: Editorial Presença,

1985.24 KHEL, 2004, p. 91. 25 DICTIONNAIRE DE l’ACADÉMIE FRANÇAISE. Paris: Chez

La Veuve de Jean Baptiste Coignard, 1694; DICTIONNAIRE DE l’ACADÉMIE FRANÇAISE. Paris: Chez La Vve B. Brunet, 1762.

26 Ver NIETZCHE, F.W. Obras incompletas. São Paulo Nova Cultural, 1991; NIETZCHE, F.W. Genealogia da moral. Uma polêmica. São Paulo: Cia. Das Letras, 2002.

27 HAROCHE, Claudine. Elementos para uma antropologia política do ressentimento: laços emocionais e processos políticos. In: BRESCIANI, S., NAXARA, M. Memória e (Res)sentimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004, p. 333-346.

28 ANSART, Pierre. História e memória dos ressentimentos. In: BRESCIANI, S., NAXARA, M. Memória e (Res)sentimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004, p. 15-36.

29 ABUD, 1985, Op. Cit.30 Outra inspiração às ideias aqui propostas veio de PESAVENTO, Sandra

Jatahy. Ressentimento e ufanismo: sensibilidades do Sul profundo. In: BRESCIANI, Stella, NAXARA, Márcia. Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p. 223-238.

31 DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo: Ensaio; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1992.

32 HUIZINGA, Johan. El concepto de la historia y otros ensayos. México: Fundo de Cultura Econômica, 1946, p. 58.

33 Ver FEBVRE, L. Como reconstituir a vida afectiva de outrora? In: FEBVRE, L. In: Combates pela história. Lisboa: Editorial Presença, 1985, p.217-232. Aliás, para Febvre, sensibilidade é um termo em evidência desde o início do século XIV. Seu adjetivo antecedente era sensível, seu sinônimo a ternura. A primeira estava associada à sensação e, portanto, ligada às coisas ou objetos, e a segunda, associada ao sentimento e às “impressões que os objetos deixam na alma”.

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34 BLOCH, 2002, p. 112. 35 Ver VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e história cultural.

In: Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, pp. 127-160. Ver também DOSSE, François. Os historiadores do mental. In: A história em Migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo: Ensaio, 1992, p. 85. Vários trabalhos foram desenvolvidos dentro desta orientação historiográfica. A título de exemplo cito: MANDROU, R. Magistrados e feiticeiros na França do século XVII. São Paulo: Perspectiva, 1978, que se preocupou com os modos de sentir ligados às práticas da feitiçaria e sua eliminação na longa duração; DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente. São Paulo: Cia das Letras, 1989, que procurou entender os medos de longa duração e as atitudes diante da morte; ÁRIÉS, P. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, que trabalhou com essa mesma perspectiva.

36 RIOUX, Jean-Pierre, SIRINELLI, Jean-François. Para uma história cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

37 Ver CORBIN, A. Les cloches de la terre: les paysage sonore et culture sensible dans les campagnes au XIXe siécle. Paris: Flamarion, 2004; VIDAL, l. Alain Corbin: o Prazer do historiador. Rev. Bras. Hist., vol. 25, n. 49, p. 11-31; Ver CORBIN, A. O território do vazio: a praia e o imaginário Ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; CORBIN, Alain. Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987; CORBIN, Alain. Do Limousin às culturas sensíveis. In: RIOUX, Jean-Pierre, SIRINELLI, Jean-François. Para uma história cultural. Lisboa : Editorial Estampa, 1998, p. 97-110. CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle, et al. História da Vida Privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 412-611.