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Introdução ao Direito 1 Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Apontamentos/Resumo: 3ª Turma Teórica Professor: Mário Reis Marques Raquel Barroso • 1º Semestre • 2011/2012 Introdução ao Direito1 - Raquel Barroso

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Introdução ao Direito 1Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

Apontamentos/Resumo: 3ª Turma TeóricaProfessor: Mário Reis MarquesRaquel Barroso • 1º Semestre • 2011/2012

Introdução ao Direito1 - Raquel Barroso

Índice

Capítulo 1 - O direito 2

Capítulo 2 - O direito e a sociedade 2

Capítulo 4 - O direito e o estado 5

Capitulo 5 - O direito e a economia 7

Capítulo 6 - As funções do direito 8

Capítulo 8 - Noção elementar de direito 20

Capítulo 10 - A identificação da regra de direito 21

Capítulo 12 - Estrutura e classificação das regras de direito 24

Capítulo 13 - Alguns procedimentos técnicos usuais 26

Capítulo 14 - Vigência das disposições normativas (só prova oral) 27

Capítulo 15 - A codificação das regras de direito 27

Capítulo 16 - A ordem jurídica 29

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Capítulo 1 - O direito

•O direito está em presente em quase todas as esferas do viver em sociedade. No entanto, esta ubiquidade nem sempre é consciencializada devido às acções rotineiras dos indivíduos. Em geral, só os conflitos e a ruptura com a rotina trazem à consciência o direito.

•Em sociedade, os homens estão vinculados a regras jurídicas que se distinguem das leis cientificas. Os fenómenos naturais obedecem a leis que não estão dependentes da vontade humana, são pautados por leis insusceptíveis de serem alteradas. As leis cientificas exprimem a constante sucessão de certos fenómenos. As regras de direito são um produto da vida social, são geradas no mundo da liberdade humana. O direito refere-se a acções humanas, organiza comportamentos e institui modelos de acção.

•Nas sociedades humanas temos regras escritas e não escritas. Muitas delas são regras jurídicas mas, nem todas são verdadeiro direito, nem todo o direito se manifesta através de regras. Por exemplo, na Roma Antiga, o direito estava mais ligado à ideia de actio.

•Importa não confundir o conceito de regra com regularidade. Os animais comportam-se com regularidade, sem obedecerem a regras, resultante dos seus instintos. No homem raramente procede de forma puramente instintiva, e esta pobreza que o inferioriza é compensada pela capacidade de entendimento, por ser portador de razão.

•Esta capacidade de o homem inovar e alterar o curso natural das coisas só poderia gerar um mundo de incertezas se não existissem regras de conduta e entre elas o direito. Este é cada vez mais pensado como obra humana, como um conjunto de regras, orientado por certos princípios, destinado a reger a vida em sociedade.

Capítulo 2 - O direito e a sociedade

•O homem possui (embora ténue) certas forças psíquico-vitais provenientes dos seus laços orgânico-biológicos, mas usufrui de uma plasticidade compensadora da sua pobreza instintiva. Esta plasticidade advém-lhe da exposição contínua a situações sociais impulsionadas pela necessidade. O homem é marcado pela sua necessidade de reunir e de conviver com os seres da sua espécie numa sociedade organizada. O homem depende empiricamente e ontologicamente da sociedade.

•O homem é por natureza um ser social. Para a vivência em sociedade é essencial a resolução dos conflitos e como tal os indivíduos devem sujeitar-se a um conjunto de regras impostas.

•No que toca à relação do direito com a sociedade têm sido defendidas duas teses: para uns, o direito é uma entidade autónoma, e não pode ser considerada como algo dependente de raízes culturais e sociológicas; para outros, o direito é absolutamente dependente da sociedade. Estas teses são excessivas e unilaterais. Se a 1ª confere ao direito uma posição isolacionista, a 2ª nega-lhe qualquer autonomia.

Importa pois assumir o ponto de vista intermédio: o direito não só se reduz a um conjunto de normas isoladas da dimensão social, como também não é um simples resultado das condutas sociais; o que existe é uma autonomia relativa, ou seja, se o direito prende as suas raízes num contexto histórico-social, não é menos verdade que este contexto seja marcado pela mensagem do seu discurso.

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Capítulo 3 - O direito e a moral

•Nas eras primitivas, o direito e a moral encontravam-se fundidos no costumo indistinto (direito, moral, religião). Na civilização grega não há uma clara distinção entre direito e mora Na romana, o direito adquire uma especificidade desconhecida até aí, mas continua sem uma distinção teórica com a moral. Na Idade Média, a moral é absorvida pelo direito, perdendo este a sua autonomia. Este quadro vai ser alterado pela Escola do direito natural racionalista; esta desenvolveu uma doutrina sobre a separação do direito e da moral, a qual se projecta através das suas obras de Tomásio, Kant e Fichte.

•Tomásio afasta estas duas realidades: se o direito é coercível externamente, a moral celebra-se no interior, é subjectiva e incoercível. A autonomia do direito em relação à moral entrevê-se na sua divisão tricotómica: justum, honestum, decorum. O justum (direito) aponta para a dimensão intersubjectiva, daí a sua coercibilidade exterior. O honestum (moral) aponta para a dimensão subjectiva, pois o homem impõe deveres para consigo mesmo, deveres que não são exigíveis através da coacção. O decorum (política) prende-se com as acções quotidianas, como a amizade.

•Kant: a moral situa-se no âmbito da voz interior, do imperativo categórico (fazer o bem pelo bem) e o direito centra-se no foro exterior, avizinhando-se dos imperativos hipotéticos (se queres A, deves fazer B).

•Fichte: a validade das normas jurídicas não está dependente de uma avaliação moral.

•A este extremo segue-se uma tentativa de reaproximação dos 2 pólos, privilegiando-se o estudo das relações entre duas realidades e a tentativa de as distinguir com rigor.

•Critérios de distinção entre direito e moral (é muito difícil estabelecer uma absoluta distinção):

Direito Moral

Finalidade Está ao serviço da sociedade (dimensão

social)

Contempla os actos humanos (dimensão

pessoal)

Exterioridade Regula as acções externas pondo em relevo

o aspecto exterior das condutas

Regula os actos interno pondo em relevo a

intenção dos agentes

Heteronomia Funda-se na heteronomia; é heterónomo

porque tem origem numa vontade alheia.

No entanto, nem o direito se funda na

heteronomia, nem a moral na pura automia.

- No Direito para além de uma imposição

heteronoma existe também uma vinculação

autónoma dos cidadãos

Autonomia; autónoma porque o homem

atribui a si próprio as regras de acção

autónoma porque o Homem atribui a si

próprio as regras de acção (autovinculação)

- Na moral, para além da imposição

autónoma, temos também uma vinculação

ao geral e não ao individual.

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Coercibilidade As normas jurídicas são coercíveis; o

respeito pelo cumprimento das normas

jurídicas é assegurado pela autoridade

pública. O seu incumprimento dá lugar a

uma execução forçada.

As normas morais são incoercíveis.

Bilateralidade Estrutura bilateral (A+B). Estrutura unilateral (apenas o próprio

sujeito)

Legalidade Conforma-se com a mera legalidade, não

exigindo mais do que uma conduta em

conformidade com a norma

Exige uma consciência harmónica com o

preceito, isto é, uma convicção de que está

a cumprir um puro dever.

•Relações entre direito e a moral: tem assumido várias matrizes: por um lado, defende-se a ideia de que existe entre direito e moral uma natural união, em que se cada um for representado por um círculo, teremos dois círculos sobrepostos (a moral serve de fundamento do direito e o verdadeiro direito é aquele que se adapta à moral) - jusnaturalismo; por outro lado, defende-se a separação entre estas duas realidades, pensemos assim em dois círculos isolados e autónomos - positivismo.

•Evolução no positivismo: face a um positivismo estrito, perfila-se um positivismo moderado disposto a aceitar a moral como um critério possível de identificação do material jurídico. Segundo Hart, um sistema jurídico pode incorporar no seu âmago princípios que tenham a elevação suficiente para operarem como critérios de validade. No entanto, um sistema em que tal não suceda não deixa de ser por isso um sistema jurídico. São os critérios formais que atribuem aos critérios materiais o seu estatuto de privilégio, portanto, a função de indiciar o que é direito pode incorporar tanto critérios formais como materiais. O direito não se identifica com os princípios morais, mas sempre que o sistema os incorpore, eles podem operar como critérios de identificação do que pode ser direito. Segundo Coleman, a existência e conteúdo do direito podem ser determinadas pela moral, para tal basta que na função de reconhecimento existam operadores jurídicos que assumam como válidas normas que incorporem princípios morais.

•Conclusão das relações entre direito e moral:

- Ao invés de completamente unidos ou totalmente separados, impõe-se conceber o direito e a moral como duas ordens de valores complementares marcadas mutuamente pelo estabelecimento de numerosa relações de intimidade.

- Se o direito protege e reforça a moral, esta robustece o direito, legitimando-o perante a sociedade e justificando a sua obrigatoriedade. É licito pensar-se em dois círculos que se intersectam, cujas partes que recobrem são a parte partilhada por ambas as esferas e as partes exteriores o domínio exclusivo de cada uma.

- O direito está em contínua mutação e está aberto à recepção de novos conteúdos. Não estamos perante um corpus rígido e fechado, existe, porém, um núcleo que se vai mantendo. Todavia, outras existem que vão sendo assumidas pelo direito, como múltiplos conteúdos de natureza moral. Também em sentido contrário, muitas vão sendo abandonadas pelo sistema.

- Mas qual é a moral a que nos referimos, individual, social ou religiosa? A moral individual ou pessoal é aquela que trata dos deveres do homem para consigo próprio. A moral social define os deveres do homem para com os diferentes grupos

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sociais que o integram. A moral religiosa trata dos deveres do homem para com Deus. Quando tratamos das relações entre direito e moral temos em vista as relações entre o direito positivo e a moral individual e social.

- Como o direito e a moral não tem nem uma unidade nem completamente separadas, não nos admiremos aos ver que existem contradições, pois nem sempre existe coincidência, o direito pode abster-se de condenar algumas práticas imorais. Para o direito apenas são relevantes aquelas condutas que contendem com interesses juridicamente tutelados. O direito não se move na dimensão da santidade, nem procura combater todos os vícios, ele traduz aquela parte do normativo social que tutela condutas humanas relevantes para a manutenção de uma convivência social assente num saudável equilíbrio de interesses. O direito intervém onde os outros normativos se mostram insuficientes - é neste sentido que se explica o direito como um mínimo ético.

- O que acaba de ser dito não se põe em causa o outro pólo, o da convergência. As sanções jurídicas são reforçadas pela comunhão moral de valores que representa o mínimo de moralidade que deve predominar para que a sociedade se mantenha. Mas deixar a moral a tarefa de garantir estas condutas seria correr um risco insuportável, daí a partilha de conteúdos entre o direito e a moral. Esta atinge o seu mais elevado grau quando um comportamento é imoral e antijurídico.

Capítulo 4 - O direito e o estado

•Estado é uma organização jurídica de uma sociedade sob um poder de dominação que se exerce num determinado território. A população, o poder soberano e o território são os elementos do Estado, mas não o esgotam. O Estado é uma ideia, transcende-nos, daí a afirmação de que “jamais alguém viu o Estado”.

•O termo “Estado” ganhou visibilidade no séc. XV e foi empregue pela primeira vez por Maquiavel. A partir de 1648, data da celebração da paz de Westefália, o mundo ocidental apresenta-se politicamente estruturado em Estados. Tal não significa que o Estado não seja anterior. A paz de Westefália celebra a consolidação das linhas essenciais de uma nova arquitectura política já e, gestação e a ruína dos modelos que a precederam. Estes modelos não era mais do que o fruto da tentativa de conciliação da unidade (aspiração de edificação de uma organização política universal, o Império) e da pluralidade (manutenção do mundo das autonomias).

•O Estado moderno é a negação desses princípios opostos e a afirmação de um novo conceito: a soberania. Esta afirma-se como um processo de libertação face ao exterior e como um processo de expropriação dos poderes intermédios (imunidades, senhorios, etc.). Identificado com um povo-nação e protegido por um poder soberano, o Estado, afastando-se das fraquezas de um sistema imperial posto em causa pela Reforma e pelo estiolamento da Respublica Christiana, garante a segurança, a solidariedade e a identidade política.

•3 posições sobre a relação entre direito e Estado (primazia do direito sobre o Estado; primazia do Estado sobre o direito; a que proclama a identidade entre direito e Estado):

1. 1ª posição: o direito precede o Estado quer do ponto de vista cronológico, quer do ponto de vista lógico e ontológico; segundo o primeiro argumento invoca-se a presença na sociedade do direito, ainda que de forma muito rudimentar, antes da formação de uma organização política.

2. 2ª posição: desenvolvida pelo positivismo legalista, aponta como nota distintiva do conceito de direito a estadualidade. Surge a ideia que é o Estado que sustenta o direito. Isto porque só chega a ser direito aquela normatividade social que é imposta pelo Estado, a existência e o conteúdo do direito dependem dele. A eficácia do direito depende de um poder que o possa impor, se necessário, pelo recurso à coacção. O direito acaba por ser reduzido a instrumento do Estado.

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3. 3ª posição: desenvolvida por Hans Kelsen, considera o Estado como uma indevida personalização do Direito. Para este representante da Escola de Viena, o Estado é um sinónimo de direito: “o Estado é a comunidade criada por uma ordem jurídica nacional”. Assim, o Estado não é algo que exista separado da sua ordem jurídica, pois não é mais do que “a expressão da unidade do ordenamento jurídico”. O Estado não é uma realidade natural, não é uma criação da natureza. Fora do direito é inimaginável. Da mesma forma, os elementos do Estado são elementos que só juridicamente podem ser “definidos”.

- Importa desde já marcar uma clara distância em relação a estas duas últimas concepções. A ideia de que o Direito é redutível à dimensão da estadualidade sempre foi desmentida pela realidade mesmo no período áureo do positivismo legalista e actualmente ainda é mais fácil demonstrar através do positivismo legalista e actualmente ainda é mais fácil demonstrar através do Direito consuetudinário, Direito privado, organizações públicas, DIP. Admitir que Direito é apenas aquele que tem a sua origem no Estado tornaria impossível a distinção entre Estado-de-direito e Estado ditatorial. A posição de Kelsen levaria à neutralização do conteúdo do Direito.

- Para além da rejeição destas duas posições, importa não absolutizar a primeira. O fundamental é compreender que estamos perante duas realidades distintas quer quanto à sua origem histórica quer quanto à sua finalidade: o Direito é em termos históricos anterior ao Estado e ao longo da história nem sempre se desenvolveu à sua sombra; o Direito afirma-se como princípio de convivência social e o Estado assegura a realização do bem comum e perseguem fins particulares, o Direito rege-se por valores e princípios e Estado rege-se por intenções ideológico-políticas e critérios de eficácia, o Direito encontra-se ao serviço de valores afins e o Estado ao serviço de valores-meios.

•O Direito e o Estado não são conceitos coexistentes, existe Direito fora do Estado. São conceitos heterogéneos, mas que existem mutuamente e com alguma intimidade, embora sem total sobreposição. Uma vez que ambos visam a organização da vida social sempre teria que haver uma coincidência básica. Uma comunidade política sem ordem jurídica ou uma ordem jurídica sem qualquer referência a um poder organizado são situações dificilmente imagináveis.

- Estado de direito: surgiu com a Revolução Francesa e a partir da teoria da divisão dos poderes, a actividade do Estado é submetida ao império da lei, em oposição ao autoritarismo do Estado-polícia. Caracteriza-se por uma tendência anti-intervencionista, assim, a função do Estado passa a ser de guarda-nocturno, apenas ocupando-se da manutenção da ordem e da segurança. Como fundamentos marcantes do Estado de direito temos: império da lei, a divisão dos poderes, a legalidade da administração, a previsibilidade das medidas estaduais e seu controle judicial e a defesa dos direitos e liberdades fundamentais.

- Estado liberal de direito: desde o seu nascimento até à 1ª Guerra Mundial, o Estado de direito, inseriu-se num contexto liberal. Este caracteriza-se pela esfera livre dos cidadãos sem a habitual intromissão do Estado, é um Estado individualista: cada um por si.

- Estado social de direito: manifesta-se sobretudo a partir da 2º Guerra Mundial. Caracteriza-se por tentar articular DLG com direitos sociais. O Estado passa a desempenhar uma função ortopédica, ou seja, procura corrigir os excessos do individualismo económico. Evolui-se para um Estado responsável.

- Estado constitucional: se o Estado liberal de direito característico do séc.XIX e inícios do séc.XX procura limitar a autoridade pública e garantir uma ampla esfera de liberdade; e o Estado social de direito que se seguiu intervém na ordem social com um sentido reparador, o Estado constitucional, que marca o nosso tempo, procura dar cumprimento ao princípio do governo das leis, subordinando-as à Constituição.

•Estado nos alvores do século XXI: A ideia de que o Estado-nação se acha em crise não é recente. Todo o mundo contemporâneo parece ser uma conspiração contra a nação. São vários os factores que configuram esta conspiração: a globalização da economia, a criação de blocos regionais, a regulamentação por instâncias internacionais (FMI), a mundialização dos mercados financeiros, a deslocação de capitais e de bens; o desenvolvimento das tecnologias, a

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emigração de mão-de-obra para países mais desenvolvidos. Este declínio verifica-se pela partilha de soberania, perda de protagonismo do legislador, crescente porosidade das fronteiras e crise do modelo piramidal do direito. Aquela figura de Estado soberano cioso das suas fronteiras, senhor da sua independência e decisor de tudo o que respeitasse o fluxo de bens, pessoas e ideias, conhece, desde a 2ªGuerra Mundial, uma descaracterização. A direcção do Estado tende a despolitizar-se, a sair das mãos dos políticos para passar para as mãos de técnicos especializados. Por outro lado, os grandes problemas do nosso tempo, como o ambiente, crime internacional, terrorismo, paz, ciência, parecem transcender a dimensão e possibilidades dos Estados-nação. É neste contexto de insuficiência de mecanismos tradicionais do direito estadualista que surge a governança. A governança é uma abordagem interactiva, tendente a fixar, horizontalmente, compromissos aceitáveis por parte de uma multiplicidade de actores públicos e privados, gerados a partir de um processo contínuo e negociado destinado a ajustar interesses contraditórios. A governança adapta-se à natureza mutável das circunstâncias evoluindo. A governança representa um novo estilo de acção, em que a rigidez, formalismo, coacção e coercibilidade são substituídos por adaptabilidade, flexibilidade, associação, cooperação. O Estado apesar de estar a ser sujeito por organismos internacionais e pela emergência de novos actores, continua a ser hoje uma referência, uma vez que ainda não existe ainda uma alternativa credível à sua existência. O Estado nação reorienta-se e procura adaptar-se ao mundo globalizado do nosso tempo.

Capitulo 5 - O direito e a economia

•Na Idade Média e início da Idade Média, a ordem jurídica condicionava a economia. No entanto, com o Renascimento e a Reforma e consequentemente, com a laicização da ciência e o enfraquecimento da perspectiva teológica, a ordem económica ganha autonomia. Nos séculos XVI e XVII surgem obras centradas unicamente no domínio económico. Entre o séc. XVIII e o séc. XIX surge a Escola Clássica a qual defendia a existência de leis que permitiam o equilíbrio porventura desordenado.

•Segundo o Marx, o direito é uma produção social. Marx cria a teoria da produção da vida social. Surge assim, o conceito do modo de produção: a maneira como a sociedade se organiza para produzir a vida social. Na produção social, os homens entram em relações de produção, cujo conjunto destas constitui a estrutura económica da sociedade, a base sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política. Em qualquer modo de produção, existe uma estrutura composta por 3 níveis: económica, jurídico-política e ideológica. No modo de produção capitalista, a estrutura dominante é a económica e na Idade Média é a ideológica.

•Segundo Marx, o direito não pode explicar-se por si só, a sua compreensão depende da sua inserção num modo de produção. O direito traduz a realidade económica de uma determinada sociedade (infraestrutura). Se o direito recebe a influência do económico, muita da sua regulamentação se apoia em valorizações especificamente jurídicas: se o direito é condicionado pela estrutura económica, a vida económica também é determinada pelo direito. As formas económicas e as formas jurídicas não se recobrem totalmente. A ordem jurídica não reflecte ponto por ponto a estrutura económica e a estrutura económica é sem dúvida traduzida em ordem jurídica, mas em termos jurídicos.

•Rudolf Stammler opôs-se à tendência de privilegiar o processo de produção e de edificar o direito sobre a estrutura económica. Para este, a produção é sempre regulada socialmente e os fenómenos económicos não podem ser considerados à parte dos fenómenos jurídicos e políticos. O que existe é uma totalidade, uma unidade. Há que considerar a economia como a matéria e o direito como a forma: se a economia pressupõe uma relação jurídica (forma), o direito supõe previamente uma cooperação social (matéria). Ao invés de realidades auto-suficientes, o que existe é uma complementaridade.

•A partir dos finais da década de 50 do século passado forma-se a corrente “análise económica do direito”. Esta acentua-se a primazia da economia. Trata-se de uma corrente que pretende elaborar uma teoria do direito a partir de postulados de uma análise económica.

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•CONCLUSÃO: a partir de Marx a economia passa a ser considerada como o eixo central do direito. Apesar de outras concepções (Stammler) esta tendência é retomada pelo movimento de “análise económica do direito”. Segundo estas teorias, a economia acaba por determinar o direito. É hoje visível para todos que uma parte da regulamentação jurídica possui um conteúdo de natureza económica. Não poucas vezes o Estado apenas formaliza os consensos alcançados pelos representantes dos interesses económicos mais representativos. Contrariando estas concepções podemos apontar normas jurídicas que não são tocadas pela economia. Da mesma forma, importa saber que os valores da justiça e da dignidade da pessoa humana assim como as garantias proporcionadas pelos direitos se sobrepõem ao princípio da eficácia económica. O direito não deve subordinar-se à economia. Embora interdependentes são duas realidades distintas.

Capítulo 6 - As funções do direito

•Função pacificadora: o direito tem intuitos pacificadores e só numa condição de paz se pode desenvolver harmoniosamente. A eliminação da violência é um dos objectivos do direito. A luta violenta deve ser sempre substituída por uma solução previsível e pacífica, para tal o Estado invés de concentrar poderes edifica uma ordem jurídica que não só confina o exercício desse poder, como regulamenta as relações entre os indivíduos entre si e desta com o Estado. Numa sociedade plural e complexa, os conflitos de interesses são inevitáveis, cabe assim ao direito a função pacificadora.

•Função de garantia de liberdade: é uma função primordial do direito; garantir a cada um espaço de liberdade. Compete ao direito impor e dirigir limites às actividades humanas

•Função de integração: as sociedades humanas organizam-se através da edificação dos Estados e de múltiplas outras organizações de direito público e privado. Estas organizações cooperam entre si; esta cooperação assenta numa ideia de unidade de fins, a qual é propiciada e canalizada pela via do direito. Existem outros subsistemas que contribuem para a coesão e o direito coopera com todos eles. Para que haja unidade é necessário condições prévias, civismo e solidariedade, e depois órgãos e instituições qualificados que as possam exprimir. É aqui que surge a função do direito: olear complexa maquinaria das relações sociais, de coordenar a sociedade, ou seja, um importante factor de coesão;

•Função de legitimação do poder: o direito legitima e contribui para a organização do poder. Este é agora entendido como capacidade de decisão. O direito empresta legitimação a quem participa na tomada de decisões, orientando-se pelos seus princípios e prescrições, reforça o consenso em redor de medidas tomadas. Esta utilização do direito como base das decisões gera aceitação, reconhecimento e consenso.

Capítulo 7 - A problemática da fundamentação do direito

1. Resposta idealista: esta orientação assenta sobre a crença num direito natural, numa ordem normativa, de essência superior, independente de todo o direito positivo, que funda a sua legitimidade não na sua edificação por parte de um legislador legítimo, mas nas suas próprias qualidades imanentes. Esta plurifacetada corrente encontra um denominador comum na imposição ao direito positivo de um modelo extraído da natureza. Só é direito justo aquele que se identifica com o direito natural. Direito natural é o fundamento legitimador e a orientação reguladora do direito positivo.

1.1 O jusnaturalismo antigo:

•Os pré-socráticos: nos pré-socráticos existe já um jusnaturalismo embora incipiente. Da sua filosofia ressalta uma concepção cosmológica. O direito positivo é confrontado com uma ordem superior identificada com o que opera no cosmos. Este assumido como uma alma espiritual e intelectual é regido por uma lei que projecta no mundo a sua harmonia. A lei humana encontra o seu verdadeiro sentido e legitimidade numa ordem suprapositiva.

•A sofistica: os sofistas referem-se igualmente a um direito natural, no entanto, invés de servir de fundamento ao direito positivo, o ius naturale passa a servir de fundamento de arma para despojar aquele da sua auréola racional e divina. Tudo

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parte de uma posição contraditória entre a natureza e a lei humana. As leis da natureza são imutáveis. Do pensamento cosmológico passa-se para um período antropológico: o Homem é a medida de todas as coisas. O conceito de igualdade é posto em causa, opõe-se uma outra que sustenta que a natureza não se rege pela insonomia mecânica. A desigualdade passa a ser o ponto de partida, para a concepção do direito. As leis positivas são construídas pelos mais débeis, assim estas não são mais do que um suporte de situações artinaturais, já que o direito da natureza é corrompido sempre que o Estado impõe a igualdade perante a lei e o direito. A lei humana é um instrumento de pressão dos mais fortes sobre os mais fracos ou dos mais fracos sobre os mais fortes.

•Sócrates: reagindo contra os sofistas, procura restabelecer a ligação entre a lei humana e os princípios da razão. Sócrates tende a coincidir a legalidade com a justiça. As leis humanas já não são entidades ao serviço, de interesses dominantes, mas a fiel tradução da justiça e de uma axiologia que se impõe ao homem como realidade superior e objectiva. É na alma que está a lei e a exigência de domínio da sua natureza animal pela razão. O jusnaturalismo de Sócrates é conservador pois postula a harmonia entre Estado, lei positiva e a realidade superior.

•Platão: procura religar a lei humana à essência de uma verdade universalmente válida. No entanto, esta verdade não provém dos sentidos pois todo o conhecimento empírico é relativo e imperfeito. A verdade eterna provém das ideias, do mundo supra-sensível. Para Platão, as ideias são os protótipos do ser, possuem uma significação moral por se revelar nelas, como verdadeira natureza das coisas, a razão. O aparelho sensível apenas fornece sombras do mundo inteligíveis do mundo onde se formam as ideias. Tal como Sócrates procura encontrar num mundo de valores o verdadeiro fundamento para o direito positivo. Aqui há uma relação estreita ente Homem e direito e Homem e Estado.

•Aristóteles: afasta-se do idealismo de Platão. Aristóteles desenvolve uma teoria, imanentista das ideias, um naturalismo idealista que assenta na concepção de que, a não ser no pensamento, a essência de uma coisa não pode ser separada da própria coisa. A ideia platónica é substituída pela forma, princípio que em conjunto com a matéria constitui o ser. A forma é o elemento activo que funda a matéria, a matéria é sempre informada por um princípio metafísica que a envolve e distingue de outros objectos. Enquanto que a ideia de Platão existe no mundo inteligível, a forma de Aristóteles existe unida à matéria, existe dentro das coisas. Aristóteles refere-se ao justo natural, isto é, uma justiça permanente e inalterável e ao justo lega, isto é, uma justiça instituída pelas leis humanas, a qual é variável. O direito positivo formula o justo natural, este não se caracteriza por uma imutabilidade absoluta mas, também não é uma mutabilidade igual à do justo legal (é isto que os distingue). O direito é um meio pelo qual o homem procura desenvolver a sua natureza.

•Estoicismo: a natureza estóica é toda ela atravessada, por um princípio divino e espiritual que dirige a totalidade dos seres. A virtude é elevada a um ponto superior. A virtude é a vitória da razão sobre os sentidos e as paixões. O jusnaturalismo estóico parte de uma lei universal de pendor concepção cosmológica e universalista. Para esta, os homens são livres e os valores humanos enaltecidos.

•Jusnaturalismo dos juristas romanos:

- divisão bipartida do direito: ius civile: direito aplicável aos cidadãos, é um direito regido e formalista criado pelo povo romano, como o seu direito positivo; ius gentium: é o direito comum a todos os povos, é um direito menos rígido e é baseado na natureza humana e na razão natural.

- Gaio apresenta uma divisão tripartida: ius civile e aos ius gentium acrescenta-se o ius naturale;

- Cícero refere-se a uma lei natural eterna e imutável que rege todos em qualquer tempo, é prévia a qualquer direito humano, legitimando-o; e o ius civile e o ius gentium são concebidos como direitos positivos;

- Ulpiano considera que o direito natural é o que a natureza ensinou a todos os animais; o ius gentium é o direito que usam todos os povos humanos, diferencia-se do ius naturale pelo carácter mais restrito; o ius civile não se afastando dos dois últimos, não depende completamente destes;

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- Paulo distingue ius civile de ius naturale: enquanto que o primeiro é particular no tempo e no espaço e determina o que é útil, o segundo é universal e imutável e define o que é bom.

•Cristianismo: criado à imagem de Deus, o homem é investido num estado de dignidade superior. Os critérios da fundamentação são transportados para o mundo da transcedência. Tem uma certa semelhança com o estoicismo: ambos combatem o domínio das paixões, contudo para os estóicos o logos (racionalidade)é imanente, e para o cristianismo a lei eterna é transcedente.

•Santo Agostinho: a sua morte constituem um marco para o fim do jusnaturalismo antigo. O bem, o justo e a verdade ao invés de resultarem da experiência sensível provêm de uma inspiração cuja fonte reside num ser supremo: Deus. O verdadeiro direito é o direito divino. Santo Agostinho constrói uma doutrina da lei, elaborando a distinção entre lei eterna, lei natural e lei humana: lei eterna é a vontade de Deus, não está ao alcance do homem, caracterizando-se pela sua imutabilidade e universabilidade; lei natural é a transcrição feita na mente humana da mesma lei eterna e encontra o seu fundamento nesta; lei humana é mutável e encontra o seu fundamento último na lei eterna, através da lei natural. A concepção do direito de Santo Agostinho é influenciada pelo seu teísmo cristão.

1.2 O jusnaturalismo medieval:

•Santo Isidoro de Sevilha: o direito recebe uma divisão tricotómica: direito natural (é o que é comum a todos os povos e existe em todas as partes por instinto da natureza), civil (é o que cada povo ou cidadão decretou para si) e das gentes (está igualmente em vigor em todos os povos). Temos presente a influência do direito romano e da teologia.

•Santo Tomás de Aquino: é o mais importante pensador medieval. Tal como Santo Agostinho admite 3 leis: lei eterna, lei natural e lei humana. Deus é o ponto de partida e de chegada. A lei eterna é a manifestação da razão divina que governa o mundo, não é mutável e é insusceptível de ser inteiramente conhecido pelo homem, é no entanto possível conhecimento parcial. A lei natural perfila-se a participação activa do homem na ordem cósmica, esta lei é directamente cognoscível através da razão humana. A lei humana é a aplicação particular de princípio da lex naturalis, não é um mal necessário mas algo que parte de uma exigência da própria lei natural.

1.3. A segunda escolástica:

•A origem da escola: no séc. XVI, a especulação jurídica peninsular está nas mãos do clero, isto deve-se ao facto de o estudo do direito comportar duas componentes: a filosofia do direito e a teologia. A segunda escolástica está ligada ao florescimento do tomismo. A escola parte de uma concepção teocêntrica: o direito natural é de origem divina. Esse direito coexiste com o ius positivo numa relação de complementaridade. Se o direito positivo necessita de um direito superior como fundamento, o direito natural encontra na lei humana a via para sua concretização.

•Francisco Suarez: foi o mais alto expoente do pensamento do século XVI. Suarez segue a divisão tripartida. A lei eterna é um decreto livre da vontade de Deus que estabelece uma ordem no universo conducente ao bem do homem. Da lei eterna derivam todas as outras, nela encontram o seu fundamento. A lei natural indica o bem e o mal e proíbe o mal e impõe o bem. A lei humana sublinha a necessidade da vida política e de uma autoridade que imponha as leis. Existe neste professor de Coimbra a tendência para conceber o direito como um conjunto de leis.

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1.4. O jusnaturalismo racionalista:

•Características da escola: diferenças externas entre a segunda escolástica e a escola racionalista: a primeira é obra de teólogos e a segunda de filósofos e juristas; a primeira preocupa-se mais com as regras gerais e evidentes, e a segunda constrói sistemas complexos e imutáveis de direito natural. Internamente, sublinha-se a relação que ambas as correntes tinham com a teologia. A nova escola desenvolve uma concepção laica do direito natural, mediante uma conjugação da teologia com a jurisprudência, a ratio é entendida pelos teólogos medievais e modernos como uma manifestação da lei eterna, o novo jusnaturalismo relega a metafísica para segundo plano. Em síntese: a transcendência é substituída pela imanência das leis, a lei eterna dá lugar à lei racional, a vontade divina é superada pela vontade do Estado e assiste-se a uma secularização do direito.

•Hugo Grócio: Grócio defende uma desvinculação do direito natural de toda a base teológica. Grócio identifica o direito como a lei. O direito natural é definido como regra expressa ditada pela razão. O direito natural flui de princípios internos do homem. A razão deixa de ser serva da revelação e passa a ser uma fonte autárquica do conhecimento do justo.

•Samuel Pufendorf: tenta a construção de um sistema de regras válidas vinculativas para todo o homem. Afirma-se a existência de direitos naturais que estão de acordo com a natureza, e defende-se a ideia que o direito positivo é constituído por um sistema de comados, deriva da vontade do legislador e é imposto pelo Estado.

•Tomásio: A Tomásio cabe o mérito de ter tentado distinguir o direito da moral. Para este, enquanto o direito é intersubjectivo, refere-se ao foro exterior e é susceptível de ser imposto pela coacção, a moral é subjectiva, refere-se ao foro interior e é incoercível.

•Christian Wolff: funda todo o seu sistema nos direitos originários provenientes da natureza imutável do Homem. Perpassa a ideia de perfeccionismo ético: o Homem procura aperfeiçoar-se adequando-se à natureza e é neste contexto que Wolff invoca um conjunto de direitos inalienáveis dos quais são extraídos matematicamente outros. Com grande rigor constrói um sistema a partir de uma cadeira ininterrupta de silogismos.

•Immanuel Kant: o jusnaturalismo kantiano é marcado por um aspecto negativo e um aspecto positivo.

- Negativo: exclusão da experiência como fonte de direito, daí a distinção entre direito natural constituído por um conjunto de normas éticas elaboradas a priori e o direito positivo marcado pelo estigma da experiência e da diversidade de tempo e lugar. Sendo assim, o valor racional do direito natural não pode ser posto em causa pelo direito positivo sempre que este seja constituído por um conjunto de regras injustas impostas pelo legislador. Kant pretende, desta forma, purificar o direito natural pela subtracção ao seu conteúdo daqueles componentes empíricos que marcaram todo o seu jusnaturalismo moderno.

- Positivo: referido à dedução do conceito de direito da razão pura. O direito encontra a sua validade num fundamento racional que não sofre interferências do mundo real. Para Kant, a normatividade é formada por um imperativo categórico, por uma lei que provém a priori da razão e que se impõe em termos absolutos. Kant embora não perfilhe um jusnaturalismo convencional, não é positivista, pois impõe um fundamento ao direito positivo, um conjunto de preceitos a priori. Para o filosofo, as acções dos homens ou eram internas (moral) ou externas (direito). Estas últimas eram regidas por leis positivos da sociedade.

1.5. O jusnaturalismo do séc. XIX

•Do direito natural à filosofia do direito: no início do século XIX (morte de Kant) vai-se consolidando a denominação filosófica do direito como expressão alternativa a direito natural. Esta alteração de terminologia corresponde a

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importantes mutações: nos códigos modernos renova-se a reflexão filosófica, entra-se em ruptura e a visão axiomática, construtivista e geométria do jusnaturalismo racionalista. Vários autores consideram que o direito natural servia apenas para ocultas fantasias. Para estes autores era impossível ao Homem construir formas de vida jurídicas, sociais e políticas a partir de modelos racionais. O direito natural perde, assim, grande parte da sua validade. A substituição do nome direito natural por filosofia do direito é um sintoma externo da alteração do objecto da reflexão filosófica sobre o fenómeno jurídico. (direito natural passa para filosofia do direito)

•O emergir da filosofia do direito em Portugal: embora tardiamente, vislumbra-se em Portugal manifestações deste movimento. É criada a cadeira de direito natural, adoptaram-se as Positiones de Martini (discípulo de Wolff). Ferrer Neto Paiva faz comentário às Positiones e posteriormente pública, como pensador independente, os Elementos do direito natural ou da Philosophia de direito, uma das obras centrais do pensamento jurídico português. Depois publica os Princípios Gerais da Philosophia de direito. José Dias Ferreira, discípulo de Ferrer publica as Noções Fundamentais de Philosophia de direito. Como se constata a expressão direito natural é substituída pela filosofia do direito. Dias refere-se a esta situação, sustentando que o direito natural está ligado ao passado, ao invés a filosofia do direito é concebida como uma ciência que expõe princípios do direito. Em vez de verdade imutáveis, abrem-se os livros da história.

•Karl Christian Friedrich Krause: representante do espírito germânico, pós kantasiano, fala da capacidade jurídica e dignidade jurídica com todos os humanos, acentua os direitos das mulheres e das crianças; considera o racismo como uma das maiores ameaças das comunidades humanas; reprova os crimes contra a natureza e vê na sanção penal um benefício jurídico para o infractor. Desenvolveu uma concepção panenteísta (está tudo em Deus) em que o direito é concebido com uma organização de todas as condições vitais intemporais da vida interior de Deus. Direito é definido com toda a totalidade das condições dependentes da liberdade própria da vida racional dos humanos e da sociedade humana. O direito encerra condições para que a liberdade possa nascer e se estabeleça onde ainda não existe. Ele acredita que o Homem só se realiza dentro da sociedade. Ao Estado cabe proporcionar todas as condições favoráveis para que todas realizem os seus fins. A ideia de solidariedade vê-se sistematizada, em termos filosóficos esta corrente jusnaturalista deixou marcas importantes no Código Civil de 1867.

1.6 O jusnaturalismo do séc.XX: assiste-se no séc. XX a um rejuvenescimento do direito natural.

•Gustav Radbruch: dentro da filosofia dos valores é importante sublinhar Radbruch, que tendo partido de um relativismo axiológico evolui para um direito natural de produção judicial em que a justiça se perfila como o primeiro valor a realizar pela ordem jurídica. Ao considerar que o positivismo deixou sem defesa o povo e juristas eleva a justiça e os direitos do homem acima do direito positivo. Numa circular dirigida aos seus alunos, o autor escreve: “tudo o que for útil ao povo é direito, mas, ao invés: só o que for direito será útil e proveitoso para o povo.

•Helmut Coing: defende-se agora que mediante a nossa experiência moral é possível alcançar um complexo de valores, a partir dos quais se pode estabelecer um conjunto de juízos orientadores para a realização do direito. O direito concebido como fenómeno da vida social, encontra a sua essência num conjunto de valores éticos.

•Michel Villey: outros autores defendem um direito natural de tradição clássica. Villey foi um dos mais entusiastas defensores deste regresso. Segundo este, o verdadeiro direito natural deve ser procurado nos seus inventores: Aristóteles e Santo Tomás. O cerne desta proposta assenta na recuperação da ideia aristotélico-tomista de justiça. Para este, o direito é o que é justo, sem justiça carece de alma. Mas o que é verdadeira fonte do justo? Villey recorre mais uma vez à filosofia clássica: é a observação das fontes objectivas da natureza que possibilita a extracção de regras de conduta. Retoma-se a um direito mutável.

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1.7. CRÍTICA AO DIREITO NATURAL:

•Impossibilidade da existência de um direito universal e absoluto pois o direito está ligado à situação histórica. Ora está em mutação continua no tempo e espaço;

•O jusnaturalismo só excepcionalmente desempenhou uma função reformadora, de resto apenas contribuiu para justificar as ordens jurídicas existentes e as instituições;

•Diversidade de resultados a que conduz;

•A doutrina do direito natural é uma doutrina idealista-dualista assenta na distinção entre direito real (positivo) e um direito ideal imutável identificado como justiça. No entanto, este direito ideal carece de eficácia e não oferece condições para garantir a paz e segurança;

•Sistema rígido de normas que é apenas compatível com sociedades muito rudimentares;

•Não passa de um conjunto de especulações arbitrárias ao serviço de atitudes emocionais e da satisfação de certas necessidades.

2. Resposta positivista:

2.1. O positivismo jurídico:

- Se o séc. XVIII é marcado pelo jusnaturalismo, o séc. XIX irá pontificar o positivismo.

- Como ficou marcado, o direito natural é uma noção carregada de indeterminações. Todavia, existe uma base comum a todas as concepções: a crença numa ordem universal da qual a razão cognoscente pode deduzir preceitos universais para a regulação da convivência humana. O positivismo é uma outra noção que é objecto de definições e de concepções contraditórias e por vezes, antagónicas entre si. Uma das razões de imprecisão é de índole terminológico. A expressão ius positivum nasce do direito natural sem um conteúdo técnico muito preciso, pois abarca todas as regras que não pertencem ao direito natural. Este carácter negativo e indefinido da expressão ius positivum mantém-se ao longo da Idade Média transmitindo esta imprecisão a uma corrente do pensamento que se designa positivismo jurídico. Outra razão é de carácter histórico. O positivismo não provém de uma corrente unitária e integrada, pelo contrário, é o resultado de diversas linhas evolutivas de raiz muito diversa. Uma terceira razão reside no facto do positivismo não ter sido desde o início uma teoria nem uma doutrina perfeitamente articulada. As diversas versões do positivismo não se apresentam como ramificações de um mesmo corpo.

- Sentidos de positividade: numa primeira acepção, por positividade entende-se o que resulta genericamente de um ser dotado de razão (Deus ou os homens). Numa segunda acepção a noção de positividade recobre o que é esclarecido por uma autoridade competente, pela autoridade do Estado. Numa terceira acepção entende-se por positividade a realidade afectiva quer seja a realidade empírica, quer a psíquica.

- Características do positivismo:

1. Só é verdadeiro direito aquele que vigora numa determinada sociedade e que tem força para se impor (teoria da coactividade);

2. O direito natural uma vez que não é verdadeiro direito tem que ser suprimido da ciência do direito;

3. Os juristas devem renunciar à reformulação de juízos de valor, uma vez que o direito pertence ao mundo dos factos e não dos valores;

4. As leis são comandos emanados pelo poder legítimo (teoria imperativista do direito);

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5. O direito não é antagónico nem lacunoso, logo não podem existir duas normas contraditórias e pressupõe-se a capacidade de expansão do sistema jurídico de modo abarcar casos não previstos (teoria da coerência da compleitude do ordenamento jurídico);

6. Postula-se a obediência à lei;

7.A fonte proeminente do direito é a lei;

8. O positivismo não promove a actividade criativa dos juristas. Só o legislador está legitimado para criar direito. A interpretação é mera aplicação da lei;

9. O ius positivum é determinado no tempo.

2.2 Fontes históricas do positivismo: à ideia do direito como manifestação de uma ordem metafísica susceptível de apreensão pelo discurso racional sucede um direito assente nas comunidades históricas. O direito positivo é algo que prende as suas raízes nas circunstâncias de um facto de uma sociedade determinada. Vários factores contribuíram para este trânsito do jusnaturalismo para o positivismo; alguns:

•O positivismo filosófico (≠ positivismo jurídico):

- este é o mais manifesto dos positivismos. Não deve ser confundido com o positivismo jurídico. O positivismo filosófico caracteriza-se pela rejeição das questões abstractas que constituem o objecto da metafísica. Para esta corrente é a realidade objectiva o primeiro objecto da indagação filosófica.

- Augusto Comte ao aliar o racionalismo com o empirismo cria condições para o estabelecimento de um corte epistemológico com a corrente apriorística das metafísicas dos séculos anteriores. O direito natural é posto em causa. A isso leva a negação da existência de uma realidade acima dos factos. Faz caminha a ideia de que o verdadeiro conhecimento não pode se não fundar-se na observação dos factos.

•Hobbes:

- Se na Europa Ocidental existe a oposição entre o direito romano canónico e os vários direitos nacionais e particulares, na Inglaterra o contraste é entre o common law e o satute law (direito consuetudinário e o legislativo). Se na Europa Ocidental eleva-se o Corpus Iuris Civilis a verdadeiro direito positivo, na Inglaterra o common law forma-se em oposição ao direito romano.

- O ius commune é a doutrina que desempenha um papel essencial na conformação e na adaptação dos conceitos e princípios fixados no Corpus; a doutrina dedica-se a revelar o direito compilado no texto justinianeu.

- O ius commune entra em agonia a partir do séc. XV, devivo à insegurança dos seus instrumentos, o que não se verificava no commom law. Neste sistema os juízes tentam compatibilizar a certeza e a segurança com o desenvolvimento do direito. A este contrapõe-se o direito impostos pelo poder soberano (statute law).

- É no quadro desta tensão que Hobbes combate o common law, impondo-se como um dos precursores do positivismo jurídico. A sua doutrina visa unificar as fontes de direito para garantir a certeza. Segundo este, só as disposições normativas impostas pelo Estado são direito válido. A lei é definida como uma declaração de vontade do legislador; o direito é o que o legislador ordena.

- Importa assinalar duas notas típicas do pensamento positivista: formalismo - o direito é concebido com base na autoridade que institui a norma e não na perspectiva do seu conteúdo e finalidade; imperativismo - o direito é compreendido como um comando que dirige o comportamento dos súbditos.

•A composição de um círculo vicioso. A vontade geral e a lei.

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- Rousseau estabeleceu os pressupostos mais importantes da concepção iluminista do direito. As suas doutrinas desenvolvem uma concepção voluntarista da lei: esta exprime a vontade geral. Os corolários deste entendimento são a submissão do juíz à lei e a certeza do direito.

- Para Hobbes e Rousseau, a lei é a expressão da vontade do soberano. Para Hobbes o soberano é um homem ou assembleia de homens e para Rouseau é a comunidade.

- O Estado social surge para remediar o Estado individualista. É através do contrato social que o Homem vai reaver os seus direitos. Neste contrato procura-se uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça contudo senão a si mesmo e permaneça livre.

- A lei encontra o seu fundamento na vontade geral; esta distingue-se com a vontade de todos pois, prende-se com o interesse comum e não com a soma das vontades empíricas. A lei é estabelecida por todos e para todos. Um vez que a lei é o resultado da vontade geral, ninguém perde a sua liberdade ao obedecer-lhe.

•A posição dos juízes no Estado moderno: se na sociedade medievel o direito é em grande parte produto da sociedade, com o Estado moderno gera-se a centralização dos poderes e nas mãos do monarca (entre estes aquele de criar direito). Naquele período são os juízes que, com uma margem significativa de liberdade, fixam o direito. Com o Estado moderno, os juízes passam a ser titulares de um órgão do Estado, transformando-se em funcionários do poder central. Como a emanação das leis é uma das funções estaduais só o direito positivo é direito verdadeiro. Posto isto, os tribunais ficam vinculados à aplicação do direito que é aprovado pelo Estado. Os juízes perdem aquela margem de liberdade que detinham, a criação do direito. É matéria reservada do Estado.

•A omnipotência do legislador: Montesquieu e Beccaria

- A supremacia da lei assenta na omnipotência jurídica do legislador. Este não pode impor comportamentos contrários nem exigir coisas impossíveis. A omnipotência do legislador atingiu o seu período máximo no movimento de codificação. Esta omnipotência é transmitida ao pensamento liberal que procura garantir os cidadãos contra o arbítrio do poder legislativo, recorrendo à divisão de poderes e à técnica da representação pública.

- Montesquieu reduz a função judicial a um papel passivo, dando superioridade ao poder legislativo. Beccaria defende que só o legislador como representante da sociedade pode fixar leis e os tribunais estão vinculados à letra da lei (deve apenas aplicá-las num silogismos perfeito)

•A prevalência da lei: a vontade do legislador é um princípio guia da organização jurídica. Essa vontade para ser conhecida deve ser comunicada. A lei é um instrumento de comunicação. O enunciado é concebido de forma a reconhecer o poder do ser autor e o carácter obrigatório da norma - a soberania do legislador passa pela palavra.

•O Estado como titular do direito: várias concepções convergem na ideia de que todo o fim do Estado se concretiza no direito ou através dele. A partir de Kant o direito positivo funda-se no direito natural entendido como um conjunto de princípios à priori. O direito natural deixa de ser o modelo do direito positivo. Para Kant, todo o direito depende das leis. Para Konigsher o verdadeiro intérprete do direito natural é o Estado através do legislador, não existe assim contraste entre direito natural e direito positivo. Caminha-se assim para um positivismo estatal. Também a Revolução Francesa contribui para a elevação do Estado, a partir desta o soberano muda de nome: não é mais a monarquia que reina, é a lei. A soberania da lei é fundada na soberania do legislador e este é o intérprete legitimado pelo Estado daquela vontade geral. Também Hegel acaba por apoiar a supremacia da vontade do Estado, pois para este não há contraste entre direito positivo e natural: um está para o outro. O direito não é senão direito positivo. Assim, temos um Estado que a história na sua racionalidade impõe e o direito que é o resultado da vontade que se objectiva livremente.

•Savigny - a ciência jurídica como justificação do direito positivo: Agora a História passa a ser um lado essencial do direito: só com método histórico se pode alcançar o mundo da jurisdicidade, penetrando na natureza do direito. Para

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Savigny, o direito é um fenómeno cultural que tem a sua origem espontânea no espírito do povo. O direito procede do espírito e da história de uma nação. Ao contrário do jusnaturalismo (imutável), este considera que o direito está sujeito a um dinamismo incessante. O direito desenvolve-se progressivamente através de uma contínua adaptação. Para Savigny, a fonte imediata do direito é o costume, aqui o legislador detém uma função secundária: deve proteger os conceitos do direito consuetudinário. O direito é fundamentalmente direito positivo.

•Hans Kelsen: Kelsen constrói uma teoria do direito independente da ética, psicologia, sociologia e do direito natural. Kelsen desenvolve uma doutrina pura do direito. Á sua concepção apenas importa saber como é o direito e não como deve ser o direito. Devem-se deixar de parte os juízos de valor.

- Para Kelsen, a justiça é algo que está fora do nosso alcance. Kelsen é considerado um dos mais ilustres representantes do normativismo porque na sua teoria o direito é constituído por normas, imputam sempre uma sanção; é a coacção que marca a diferença face a outras ordens normativas.

- Para Kelsen a ordem jurídica é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de ordens jurídicas. Uma norma é válida se participa na validade de uma norma imediatamente superior. É um sistema em pirâmide em que as relações entre as normas são relações de delegação da autoridade. A Grundnorm é a norma fundamental, é a única norma que não é produzida por um acto de vontade, a que prescreve o deve de respeitar a Constituição. A ordem jurídica é composta por diferentes órgãos hierarquizados e dependentes da autoridade da Constituição. Aqui o Estado é um ordenamento normativo; é excluída uma concepção do Estado diversa da ordem do direito. - todo o Estado é Estado de direito. Esta é uma concepção que se afasta do positivismo sociológico pela acentuação de uma postura puramente científica e pela acentuação de um sistema fechado e alheio a qualquer referência empírico-material.

•O positivismo sociológico: o sociologismo consagra-se ao exame dos factos sociais, procurando extrair destes o direito. O positivismo sociológico e o positivismo jurídico normativo não são orientações concordantes: enquanto o último concebe a realidade jurídica como um conjunto de normas, o primeiro eleva os fenómenos sociais a objecto central da problemática jurídica. Este distingue-se do positivismo jurídico pois implica um juízo de valor.

2.3. CRÍTICA ao positivismo:

•O positivismo conduz a um fetichismo da lei, a uma atitude que leva à aceitação de qualquer ordem em vigor ainda que esta seja a negação do próprio direito e da injustiça.

•A existência de lacunas é um facto da realidade da vida jurídica. Este fenómeno não deixar de ser indicativo da insuficiência da lei, identificada por esta corrente como o direito.

•Defende-se que não basta uma mera fixação normativa de critérios por via legal para que se alcance um consenso pacífico.•Coarcta o campo de acção dos juízes, desvirtuando a sua acção e desta forma prejudicando a submissão ao verdadeiro

direito.•O recurso indiscriminado à lei conduz a uma legislação particularizada, cria condições para o predomínio dos mais fortes.

3. A terceira via: pode concluir-se que ao longo dos tempos têm sido defendidas as mais diversas opiniões sobre a problemática da fundamentação do direito. Estas opiniões são divergentes e muitas vezes radicalmente contraditórias. Perante as duas grandes respostas consideradas, por qual optar? Cremos que ambas são unilaterais, pois não abarcam o fenómeno jurídico na sua totalidade. Será inevitável a opção entre o idealismo e positivismo? Cremos que não. Sempre deixaremos expressa opinião de que a postura positivista se apresenta mais frutífera de que a idealista. Através dela, é mais fácil a determinação do que seja o direito. Os critérios do direito natural porque não são universais nem constantes, são frequentemente inconclusivos. É esta a postura que tem sido dominante na ciência do direito, desde os finais do séc. XVIII. A corrente positivista ao sublinhar o carácter coercitivo das regras do direito toca num dos pontos mais relevantes da

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essência do direito. A coercibilidade é uma das dimensões essenciais do direito; este carácter coercitivo resulta do facto das regras jurídicas serem a expressão de uma vontade política, de uma vontade forjada na sociedade. A concepção positivista não justifica cabalmente o direito. O fundamento social da regra de direito ajuda a explicar a instituição da coercibilidade, mas não esclareça submissão e a aceitação pelos destinatários da regra jurídica das suas prescrições normativas. Estas asssentam no facto de o consenso suficientemente representativo se ter formado em redor de valores essenciais do ser humano, ou de princípios essenciais para o bom funcionamento da sociedade. É que existe um conjunto de valores que se impõem a toda a regra jurídica positiva e a todo o poder. A aceitação do carácter coercitivio das regras, prende-se com a recepção destes valores pela voluntas que cria o direito positivo. Claro que estes valores não são imutáveis. A todo o tempo podem incorporar-se novos valores na normatividade jurídica. Os direitos fundamentais respondem a exigências humanas e estas podem fazer brotar novos valores que se traduzem em novos direitos através da positivação. Sucede frequentemente que estes direitos se limitam mutuamente, nem sempre é fácil compatibilizá-los. No entanto, a experiência da nossa sociedade mostra que a compatibilização destes valores é perfeitamente possível. Se é certo que a lei não deve ferir os valores fundamentais do ser humano, também é certo que se deve exigir ao direito a realização concreta destes valores. Sempre que o direito positivo está em contradição ou em desarmonia com estes valores, sempre que viola os direitos fundamentais, que se impõem como fundamento de todo o direito e como justificação a submissão a todas as regras jurídicas, estamos perante prescrições ilegítimas que deverão ser enunciadas.

3.1. As diversas gerações de direitos humanos:

•O catálogo dos direitos humanos é uma realidade em permanente construção. Apela-se usualmente à imagem de geração de direitos. Não se rejeitando esta imagem, deve afastar-se desde já o seu aspecto mais negativo, a ideia de superação sucessivas dos direitos, pois o que está em causa não é substituição dos mais antigos pelos mais recentes, mas a coexistência e a interligação, ainda que nem sempre fácil.

•Os direitos do Homem proclamados sobretudo a partir do séc. XVIII, como direitos naturais apenas impõem ao Estado um deve de abstenção. O que está em causa são as possibilidades físicas, psíquicas e intelectuais do sujeito, são as liberdades individuais. Daí a denominação de direitos-liberdades aos direitos da 1ª geração: pensar, escrever, trabalhar, consciência, garantias judiciárias, direito de propriedade.

•Os direitos de expressão democrática, de participação ou de 2ª geração (participação política, direito de sufrágio, de associação), invés de estritamente individuais e marcados pela ideia de impor limites ao poder, apelam antes às liberdades colectivas e participação dos indivíduos na formação da vontade desse mesmo poder.

•Entretanto, o reconhecimento das liberdades colectivas abre caminha aos direitos económicos e sociais. A 3ª geração de direitos (remuneração condigna, saúde, habitação, igualdade de oportunidades, ensino, descanso) visam criar condições aos indivíduos para que possam vir a ser protagonistas do seu futuro e possam realizar-se na sociedade. Estes direitos dirigem-se àquelas situações em que o indivíduo carece de solidariedade dos outros. Estes carecem de prestações e serviços proporcionados pelo Estado, logo estão muito dependentes dos recursos que o Estado possa garantir.

•Os direitos mais recentes, os de 4ª geração (ambiente, protecção do meio cultural, desenvolvimento, paz, património comum da humanidade). Estes são direitos cuja filosofia pode entrar em colisão com os pressupostos dos direitos da 1ª geração. Muitas vezes são vistos como “falsos direitos do Homem” devido á imprecisão do objecto, á impossibilidade da sua protecção e ao carácter indeterminado do seu titular. Não aceitando esta posição, pensamos que os direitos da 4ª geração são verdadeiros direitos marcados pelas condições reais de existência humana; estamos por perante direitos que são indispensáveis para a satisfação de necessidades vitais. É a ideia de que os novos direitos são respostas a carências que conduz à concepção de estarmos perante direitos-créditos.

•As diversas gerações dos direitos não devem ser idealizadas de forma compartimentada. Não estamos perante entidades fixas, mas sim de uma natureza evolutiva dos direitos do Homem. A sua expansão está ligado ao processo de transformação

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da sociedade. Ora quanto mais se expandem, mais frequentes são os conflitos entre os seus ditames e aqueles que invocam. Depois existe uma necessidade de interligação entre as várias gerações.

3.2. Uma aproximação antropológica

•Há que colocar a questão se o ocidente será afinal formulado verdadeiros conceitos universais? As contemporâneas afirmações identitárias (orientações sexuais, minorias étnicas, religiosas e culturais) parecem por em causa as ideias do consenso sobre a substância dos direitos e de uma comunidade universal. Basta dar presente a manifesta insuficiência dos direitos individuais na protecção destes grupos. A actual redefinição dos direitos individuais na protecção destes grupos. A actual redefinição do papel do Estado na sociedade não deixa de debilitar uma teoria dos direitos humanos apenas assente na protecção do Estado. Dado o novo paradigma da pluralidade das fontes do direito, poderá ainda manter-se uma perspectiva enraizada na velha ideia do monopólio estadual de criação de direito? A realidade não assemelha afinal com uma aldeia global. A globalização não é afinal homogeneização, mas ao invés a extensão da influência de um pequeno número de nações dominantes. Os crescentes fluxos migratórios acentuam a dimensão da especificidade. O regresso da complexidade, o irromper das identidades, tende a transformar a ordem jurídica numa construção barroca. Assim, vamos fazer uma aproximação da antropologia.

•A problemática dos direitos do Homem radica inicialmente numa antropologia individualista marcada pela afirmação das dimensões de autenticidade e de autonomia da pessoa. Porém, carece de uma dimensão comunicativa e cooperativa.

•O indivíduo, em termos existenciais, forjar-se na interdependência social, na relação com os outros. Nesta medida, aquela antropologia inicial deve ser compatibilizada com uma antropologia relacional.

•A estes dois deve agregar-se um outro requerido pela emergência do Homem concreto e situado (criança, adulto, idoso, mulher, deficiente, trabalhador) manifesta diferentes necessidades e exigências, interesses e aspirações consoante o estado de vida em que se encontra. Este 3º pólo configura-se numa antropologia situacional, que ao segmentar a vida do Homem o não abarca na sua generalidade.

•Invés de uma antropologia deve pressupor-se um conjunto de antropologias. É este pluralismo antropológico que explica a ausência de uma rigorosa tipificação dos direitos, embora exista um conjunto de valores que se foram acumulando e que constituemm o núcleo axiológico sobre o qual assentam os direitos humanos.

•Não se invoca a universalização completamente igualitária e unívoca, mas aquela denominada por relativa ou analógica, aquela que exigindo uma uniformidade admite a diferença. Entre o universalismo radical que tende para a homogeneização e o particularismo desagregador e excessivo, perfila-se por via intermédia. Da dialéctica entre o universal e o particular resulta uma referência e uma conjugação mútua dos dois pólos, sem que nenhum deles perca a sua identidade.

3.3 A fundamentação dos direitos humanos:

•Como depositários de uma certa ideia do Homem que é necessário preservar contra os excessos do Estado, estes direitos são hoje reconhecidos nas constituições como direitos fundamentais.

•Dada a constante violação dos direitos cumpre colocar a problemática da fundamentação dos direitos humanos. Mais uma vez, somos confrontados com a doutrina jusnaturalista e com a doutrina positivista. A 1ª sustenta que a fundamentação dos direitos radica numa ordem superior, numa realidade transpositiva da essência humana; os direitos humanos vão se vertebrando a partir do direito natural, valores universais, inamovíveis e intemporais; são anteriores ao direito positivo. A 2ª não reconhece os direitos humanos antes da sua positivação como direitos fundamentais nas constituições ou antes de

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serem reconhecidos numa declaração aprovado por diversos Estados, estes direitos dependem da lei positiva encontrando nela o seu fundamento.

•Ambas são perspectivas pouco aceitáveis. O jusnaturalismo invoca a natureza humana como fonte dos direitos mas nem por isso oferece um conceito unívoco desta natureza. O positivismo, identifica os direitos humanos com os direitos humanos positivados.

•O fundamento é o que justifica, o que dá valor aos valores. Neste sentido, importa distinguir o fundamento do princípio. O princípio é uma proposição a partir da qual se podem extrair proposições, mas que não pode ser extraído delas. O fundamento é a justificação absoluta da origem e da validade dos princípios.

•O fundamento dos direitos do Homem encontra-se num conjunto de valores superiores aos ius positivum extraídos da ideia de dignidade humana e das condições existenciais da sua realização. Estes valores são basicamente os da liberdade, igualdade, solidariedade e da segurança. A dignidade do Homem, a ideia de que só o Homem é o vértice e centro de tudo o que existe, impõe-se como o valor supremo e o fundamento último do ordenamento jurídico. Tratar quem quer como coisa não é só violar a dignidade da pessoa, como atentar contra a fonte dos direitos humanos. A dignidade humana é o verdadeiro fundamento das diversas gerações dos direitos.

•Como verdadeira propriedade indestrutível do ser humano, esta dignidade pressupõe a liberdade. Este é um valor referência a partir do qual são definidos todos os valores. Referimo-nos à liberdade de não interferência, isto é, a um poder de agir e decidir, à liberdade promocional, através da qual se garante a satisfação das necessidades essenciais; à liberdade de participação na formação da vontade política.

•À liberdade vai associado o valor da igualdade. Esta tende a generalizar aquele valor superior para que todos o possam usufruir como condição do seu desenvolvimento pessoal. Por dignidade de natureza, todos os membros da sociedade humana são iguais: à igualdade perante a regra do direito, à igualdade perante os direitos de todos os cidadãos. O que está em causa é a remoção dos obstáculos que se manifestam como verdadeiras desigualdades. O que está sobretudo em causa é a satisfação das necessidades vitais.

•Outro valor essencial é o da solidariedade. Trata-se agora de corrigir o individualismo isolacionista e egoísta. A solidariedade impõe-se como um valor positivo mobilizador da organização jurídica da sociedade para a realização do bem comum e para a ideia de partilha. O mercado não satisfaz todas as necessidades (crianças, idosos, deficientes), os quais em nome da solidariedade devem ser protegidos.

•No valor da segurança jurídica, o que está agora em causa é a criação de um ambiente de estabilidade nas relações sociais que permita criar condições para a realização dos restantes valores. Sem segurança, não existe liberdade, igualdade, nem solidariedade. Na Idade Média, a hegemonia dos valores ético religiosos do catolicismo. Na Idade Antiga e na Idade Média não se perfilha a ideia de que o legislador possa construir algo, e nesse algo está incluída a segurança. Será mais tarde, com a rotura da unidade religiosa e com a moderna consciência da omnipotência do Estado que a segurança se tornará uma tarefa específica do direito. A segurança é um valor que protege os sujeitos dos direitos das intenções abusivas de outros sujeitos e dos excessos de instituições do próprio poder. Assim, para além de afastar o desconhecimento e a dúvida sobre o direito, o valor da segurança requer a inexistência de receio e de temor sobre os conteúdos do mesmo. Existe também a segurança em relação ao poder e em relação à sociedade.

•Se o valor da igualdade impõe o equilíbrio de condições, se o valor da solidariedade reforça a dimensão comunitária, se o valor da segurança vela pela tranquilidade e pela previsibilidade face ao poder, ao sistema jurídico e à própria satisfação das necessidades vitais é, no entanto, o valor da liberdade que ocupa o centro de todas as referências. É certo que todos estes valores se combinam, se cruzam e se unem na justificação dos direitos, projectando a dignidade humana e no seio da sociedade. Os valores da igualdade, solidariedade e da segurança encontram o sei derradeiro objectivo na realização da liberdade humana.

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3.4. Direitos do Homem e direitos fundamentais: Embora frequentemente utilizados como expressões equivalentes importa diferenciá-los:

•Os direitos do Homem são direitos válidos para todos os povos e para todos os tempos; estes arrancam da própria natureza humana.

•Os direitos fundamentais são os direitos do Homem jurídico-intencionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente; estes são os direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.

•Convém salientar que o catálogo constitucional não consagra todos os direitos e existem direitos fundamentais formalmente constitucionais e outros sem assento constitucional.

4. uma aproximação à ideia de Justiça:

•Os valores são critérios a partir dos quais os seres humanos avaliam as condutas e os objectos. É o consenso suficientemente representativo formado em torno de valores que fundamenta as regras jurídicas e informa o conteúdo do direito. O consenso a que nos reputamos forma-se sobre um conteúdo material que mais não é do que um sistema de necessidades básicas.

•Claro que o ser humano para além de dados que adquiriu na filogénesa, possui dados que ele próprio desenvolveu (ontogénese).

•Os valores sociais serão tanto mais fortes quanto mais se aproximarem dos instintos e sobrevivência. A ideia de convivência social não sendo puramente instintiva é já um valor. Os valores sociais formam-se quando a força do institno é já manifestamente insuficiente para assegurar aquele mínimo de coexistência pacífica, necessária à manutenção da sociedade. O que no Homem faz às vezes institnos o compensa os seus enfraquecidos sinais é a razão.

•As disciplinas que regulam as diversas dimensões da vida social possuem os seus próprios sistemas de valores. A justiça é o critério da orientação do direito, a sua medida de legitimação. Eis a verdadeira causa que todos os juristas devem abraçar.

•Dada a sua extracção dos valores, os direitos humanos são uma referencial essencial. Os condicionamentos e imposições que a justiça projecta na ordem jurídica traduzem-se hoje no reconhecimento e garantia dos direitos humanos. Daí que estes direitos se imponham como um verdadeiro critério objectivo, como um autêntico sistema de valores impositivos.

•A justiça é um valor social e humano e neste sentido ela é um movimento de espírito que nunca se satisfaz com as suas próprias aquisições e resultados. Pode talvez afirmar-se que a justiça protagoniza sobre o direito o mesmo papel que o futuro desempenha sobre o presente: a projecção de um horizonte que mantém uma abertura para o mundo das possibilidades extraídas da consciência que o Homem vai adquirindo sobre si próprio.

Capítulo 8 - Noção elementar de direito

•Vulgarmente, o direito é concebido como lei e ordem, como um conjunto de regras vinculativas que têm por função garantir a convivência social. No entanto, não há unimidade, por exemplo, no realismo norte-americano o direito não é todo constituído por normas como por procedimentos e sentenças dos juízes. O direito é uma ordem de convivência humana e social, orientada pela realização dos direitos fundamentais do Homem, susceptíveis de ser imposta pela coacção. O direito pode ser observado de vários ângulos, suscitando cada posicionamento uma ideia particularizada. Para o cidadão ele suscita a ideia de comando a que é necessário obedecer sob pena de aplicação de uma sanção. Ao juiz o

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direito impõe-se como orientação ou guia de acção para a resolução de conflitos sociais. O legislador concebe-o como um modo ou um meio de disciplinar e de organizar a convivência humana. Podemos assim, compreender a existência de inúmeras definições de direito, partindo elas de uma mesma palavra. É que cada uma das definições privilegia um específico ângulo do fenómeno que procura inteligir. É possível reunir as diversas definições em 3 grupos: axiologias, normativas e sociológicas. As primeiras, partindo são só de fórmulas abstractas mas, da perspectiva do caso concreto, sobrelevam a solução justa e a problemática da justiça; para esta perspectiva, o direito não é um conjunto de normas, mas o que um jurisconsulto considere adequado para que se cumpram certos valores essenciais; o sentido último do direito reside nos valores. As definições normativistas assentam na ideia de que o discurso jurídico se materializa nas normas; estas são concebidas como modelos obrigatórios de procedimento. As definições sociológicas partem da vida dos tribunais ou de certos aspectos da vida social, acentuando a realidade empírica. Valor, norma ou experiência - eis 3 aspectos de uma mesma realidade destacados por perspectivas diversas.

•A História mostra que o direito foi sempre uma das grandes forças civilizadoras da sociedade humana e que o progresso da civilização esteve em geral ligado ao desenvolvimento de um sistema de normas jurídicas e à criação de instituições para a sua aplicação. O direito é uma exigência essencial de toda a convivência ordenada, daí ubi ius, ubi societas. O direito é um fenómeno social. As suas prescrições vigoram dentro de um certo tempo histórico e dentro de um certo espaço. O direito só pode existir em sociedade e como tal só pode ser conhecido no âmbito desta.

Capítulo 9 - Direito objectivo e direito subjectivo

•O direito objectivo manifesta-se como um conjunto de normas ou preceitos imperativo-atributivos destinados a organizar a vida social. Sempre que se identifica o direito como um conjunto de normas obrigatórias que integram a ordem jurídica positiva e cuja função é reger a vida em sociedade invoca-se o conceito de direito objectivo. O direito objectivo designa o complexo de normas que organiza a vida em sociedade.

•Neste sistema, cada indivíduo goza de uma zona delimitada de poder (prerrogativas individuais) na qual lhe é legítimo mover-se segundo os seus próprios critérios; estas prerrogativas são os direitos subjectivos. Sempre que se olha para o direito a partir da individualidade dos seus destinatários e se sublima a liberdade de agir e o poder destes convoca-se o conceito de direito subjectivo; neste acepção a palavra direito significa poder, faculdade ou autorização. O direito subjectivo traduz-se na faculdade ou poder que as regras de direito objectivo atribuem a uma pessoa de exigir a outra um determinado comportamento positivo ou negativo, ou de, por um acto da sua vontade, produzir determinados efeitos jurídicos que se impõem a outra pessoa.

Capítulo 10 - A identificação da regra de direito

•O direito não é o único regulador da vida em sociedade. O reino do normativo é muito complexo. Para além das regras jurídicas existem as regras religiosas, éticas, de cortesia, de moral, de código de honra, etc. Como poderemos distinguir as regras jurídicas de todas as outras?

1. A generalidade e a impessoalidade: deve-se a Rousseau a configuração da regra jurídica como expressão da vontade geral, o que sublinha o seu corácter de generalidade. As regras de direito aplicam-se a todas as pessoas. Ao invés de referirem coisas ou seres tratam de categorias de coisas ou seres. A regra de direito vão visa tanto as pessoas nelas mesmas, quanto as situações jurídicas por elas protagonizadas. Uma pretensa regra que não se dirigisse se não a uma pessoa concreta não seria mais do que uma decisão; o mesmo não se pode afirmar quando certas regras se aplicam a uma

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pessoa que ocupe um determinado cargo (P.R.). A regra jurídica dirige-se a uma série de casos ilimitados. É importante que se diga que a generalidade é frequentemente relativa. As regras jurídicas referem-se a situações definidas (casamento, condomínio, incumprimento de contratos), aesar disso a regra não deixa de ser geral pois continua a aplicar-se a todos aqueles que caiam no seu âmbito. Pense-se nas regras que se aplicam apenas a uma categoria de pessoas: locatários, proprietários, etc. Deve acentuar-se que a generalidade e impessoalidade são requisitos comuns a outras regras, como da moral, da religião, do trato social e dos jogos.

2.A finalidade social: O direito e a moral apresentam-se com finalidades distintas. Enquanto o direito regula as relações intersubjectivas, a moral regula as relações subjectivas. Enquanto o direito é um regulador da ordem social, a religião e a moral referem-se essencialmente ao indivíduo. Há muita coisa que a moral condena, mas que o direito permite (ex: suicídio), como também é indiferente para a moral o conteúdo de múltiplas regras jurídicas (ex: regras de trânsito). Todavia, em qualquer comunidade existe uma sobreposição parcial do conteúdo entre a moral e o jurídico. Tanto a moral como direito referem-se à conduta dos indivíduos. Embora diferentes é um dado insofismável que a moral e a religião não ignoram o facto social nem o direito e abstrai totalmente da moral e da religião. Quer as regras jurídicas, quer as regras morais são concebidas como vinculativas independentemente do consenso do indivíduo e são consideradas como um significativo contributo para a vida social. Pelo que procede conclui-se que a finalidade social, não é um critério que distinga de forma peremptória a regra do direito da regra da moral. Sem dúvida, as regras e morais visam o bem do indivíduo, t~em uma finalidade diferente. No entanto, ao pressionarem a consciência do indivíduo, ao tentarem aperfeiçoar o homem pelo lado interno, acabam por ter uma ressonância social. Em conclusão, se a finalidade social é uma dimensão essencial das regras jurídicas, ela não permite por si só caracterizá-las e diferenciá-las das regras religiosas e morais.

3.O carácter exterior: A regra do direito é exterior à vontade individual das pessoas. É certo que as vontades individuais podem ser convocadas para a elaboração das leis. Seja como for, uma vez estabelecida a regra subtrai-se à dinâmica individual para se impor a todos como expressão da vontade do grupo social. Existe aqui algum paralelismo com a religião, pois esta é igualmente exterior à pessoa, mas ao contrário do que sucede no direito, ao indivíduo é vedado participar na elaboração das regras, estas derivam do comando de Deus. De forma diversa, a regra moral é essencialmente interna aos indivíduos, visando a perfeição individual, a moral é apenas sancionada pelo foro interior.

4.O carácter coercivo: se toda a regra é em geral obrigatória, a regra de direito ocupa neste aspecto uma posição particular: a obrigação que ela impõe é sancionada pelo Estado; a sua violação implica uma sanção e a possibilidade de se desencadearem mecanismos destinados a torná-la efectiva. A regra moral é obrigatória e comporta um sanção, a qual não é imposta pelo Estado. A regra religiosa é obrigatória e passível de sanções, porém elas emanam de Deus e não do Estado. Daqui se conclui que a coercibilidade do estadual é uma característica específica da regra de direito.

•O carácter obrigatório: as regras jurídicas são obrigatórias. Importa distinguir entre regras imperativas e regras supletivas da vontade. O objectivo é mostrar que o grau de obrigatoriedade das regras não é uniforme. Esta distinção corresponde a duas importantes funções da regra jurídica. Uma é a de impor uma ordem pública, um conjunto estruturante de normas para a vida política, económica e social. Outra é de sugerir modelos de relações intersubjectivas, a de propor específicas formas de relações familiares. Se no 1º caso as relações jurídicas são o instrumento de uma política, pois existe a projecção de um interesse público superior que impede o afastamento ou derrogação pela vontade dos particulares, no 2º são um meio posto à disposição dessa vontade. As regras imperativas são obrigatórias stricto sensu. As regras supletivas da vontade deixam às outras que elas julguem mais adaptadas às suas intenções; a sua obrigatoriedade é apenas condicional.

•O carácter sancionatório:

- A característica decisiva do direito é o tipo genérico de sanção suscitada pela sua violação. A transgressão de uma regra moral implica uma censura pública ou particular. A violação de uma regra religiosa suscita a ideia de pecado. Em ambos

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os casos não existe uma reacção autorizada pelo Estado. O mesmo não sucede com o direito. A garantia de eficácia que estas comportam justifica o recurso à força física (coercibilidade) para reintegrar a ordem violada. É na coercibilidade que reside a característica específica do direito.

- O direito do nosso tempo é mais soft, e sem dúvida mais negociado e mais contratualizado. Hoje as ideias de comunicação e de destinatários das regras jurídicas gozam de um peso significativo no processo de elaboração do direito. No entanto, a regra jurídica é sempre um comando e a sua vocação é obrigar.

- As teorias que rejeitam qualquer tipo de relação entre o direito e a força têm sido alvo de uma certa objecção pois idealizam um mundo jurídico bem intencionado, mas algo afastado do que sucede realmente.

1. objecção estribada no cumprimento espontâneo do direito: a grande maioria das regras é acatada, portanto, o recurso à força é hoje relativamente pouco frequente. A generalidade das relações jurídicas interindividuais processa-se sem que existam invasões ilícitas nas esferas jurídicas que o direito define a cada um. O que é essencial à dimensão do direito que não é tanto a coacção efectiva como coercibilidade: a ameaça latente ou virtual da coacção. Esta ameaça existe sempre em potência perante a possibilidade de violação da regra jurídica. Por detrás do direito, que por natureza é violável existe uma força organizada que pode ser mobilizada de um momento para o outro. Só numa sociedade ideal será possível dispensar a força do âmbito do direito.

2. objecção baseada na frequente incapacidade de restituição do direito por parte da coacção: sublinha-se igualmente a frequente incapacidade do poder público perante a violação das regras jurídicas. Devido a certas circunstâncias de facto a coacção mostra-se muitas vezes incapaz de restituir o direito. Todavia, a impotência revelada nestes casos pela coacção não invalida a tese de que o direito é essencialmente coercível.

3. objecção apoiada na insusceptibilidade de o Estado ser objecto de coacção: o Estado, como supremo detentor de força, como organizador das providências sancionatórias, não pode ser sujeito à coacção. Ninguém pode exercer coacção sobre si mesmo. O Estado moderno procura conformar as suas diversas estruturas dentro dos princípios jurídicos. Assim sendo, é possível reagir contra as irregularidades e contra os comportamentos arbitrários dos poderes públicos. A divisão dos poderes e a independência dos tribunais torna possível certas acções dos particulares contra o Estado. Há casos em que a supremacia do Estado o impede de ser objecto de coacção. Mesmo assim, nem por isso a coactividade deixa de existir de forma latente.

4. objecção baseada na impotência do Direito Internacional: Importa referir como dificuldades secundárias certos domínios em que o elemento da coercibilidade ou é muito ténue ou parece faltar. Referimo-nos ao direito DI e às obrigações naturais. Enquanto no direito Interno, o Estado exerce o pode supremo e possui o monopólio da força legítima, no DI estamos perante o governo de muitos, um governo que está longe de ser igualitário. Ao contrário do direito Interno que exprime comunidades coesas e fortemente organizadas, em que existe um poder superior que impõe a todos as regras jurídicas, aplica as sanções que estas prevêem e dá execução a essas sanções, o DI exprime uma comunidade não coesa de Estados soberanos em que não existe um poder superior que possa fixar autoritariamente regras gerais e abstractas, resolver os conflitos de acordo com essas regras e impor sanções pela força. Nesta comunidade de comunidades jurídicas soberanas não existe um polícia. Logo, na falta de uma força organizada, as organizações internacionais não garantem a aplicação coactiva do direito. A impotência do DI perante as agressões não mostra a insustentabilidade do princípio de que a coercibilidade é uma dimensão essencial do direito? Cremos que não. O DI encontra-se numa fase ainda muito inicial.

5. objecção extraída do regime das obrigações naturais: as obrigações naturais são desprovidas de coacção.

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5. A necessidade de coacção: o direito distingue-se das outras ordens sociais por ser uma ordem coactiva. Uma vez que não existe sociedade sem direito, pode afirmar-se que este é uma ordem necessária. As diversas descrições do Estado de natureza estão feridas de falta de rigor histórico: o homem primitivo não vivia num mundo sem lei e a ausência de separação entre as esferas de direito, moral e religião. Parece que a natureza humana impõe ao homem o viver em sociedade, mas esta associação só terá lugar se vigorar um direito. Conforme o grau de civilização de cada época, assim teremos direito mais ou menos perfeito, mas sempre existirá uma ordem normativa vigente referida às condições essenciais da existência. A verdadeira vocação do direito é impor-se de forma vinculativa. Invocar a necessidade de doação não significa reconhecer que a conduta conforme o direito, deve ser obtida com a força. Não se pode extrair a ideia de que ela se faz acompanhar sempre de uma pena. Dizer que o direito é uma ordem coactiva significa que é sempre possível exigir a execução das suas prescrições através do recurso a um órgão instituído pelo Estado. Existem por outro lado, nas modernas ordens jurídicas as sanções positivas, isto é, regras que prevêem recompensas para determinados comportamentos.

Capítulo 12 - Estrutura e classificação das regras de direito

11.1 Estrutura das regras: previsão e estatuição

• As regras jurídicas respondem fundamentalmente, a necessidades sociais, daí que, como expressão de valores e interesses têm por objectivo o aperfeiçoamento da comunidade, tenham uma força vinculativa própria. A regra jurídica apresenta-se totalmente estrutura através de um conteúdo lógico material. Este aspecto estrutural formal radica na sua vocação: as regras jurídicas são verdadeiros instrumentos na ordenação social que se destinam a afectar com objectividade as relações sociais. A norma jurídica é uma regra de conduta social estabelecida conforme determinados requisitos formais, tem por finalidade ordenar a convivência de uma comunidade humana. Vejamos agora a estrutura lógica das regras ou das normas jurídicas. As regras jurídicas têm um carácter de proposição condicional, divisando-se no seu módulo lógico uma previsão e uma estatuição. O primeiro destes elementos, denominado igualmente por hipótese ou pressupostos de facto, refere-se a uma determinada situação de realidade. A estatuição ou consequência jurídica constitui o que podemos considerar o efeito jurídico que a regra atribui à correspondente previsão. Na maior parte das vezes, os dois elementos que estruturam as regras estão claramente diferenciados. Claro que na redacção dos preceitos legais, normalmente, a hipótese, precede a estatuição, mas a ordem dos elementos pode ser inversa. Outras vezes ainda, a consequência não está contida de forma directa na regra, sendo formulada indirectamente, através do reenvio para outra regra. Importa assinalar que frequentemente não se vislumbra nas normas um dos dois elementos estruturais. Estamos então, perante normas incompletas. As regras jurídicas têm uma específica estrutura que pode ser graficamente expressa com a fórmula: se é A, deve ser B. As regras jurídicas estabelecem uma ligação condicional entre a previsão e a estatuição.

11.2. A previsão como estrutura funcional: a previsão é uma das partes integrantes da proposiçã jurídica. É o elemento que fixa padrões e conduta e configura situações típicas da vida. Se umas vezes estas situações típicas da vida. Se umas vezes estas situações são singulares ou concretas, na grande maioria são abstractas e gerais. A regra modela de modo autónomo as situações da vida que pretende tutelas, estas são por assim dizer criadas no seu seio.

11.3. A classificação das regras

•Classificação atinente à estrutura das regras: segundo este critério, as regras podem ser completas e incompletas. Nas normas completas divisa-se, claramente, a previsão e a estatuição, daí que possam produzir efeitos só por si. São normas perfeitamente estruturadas. As regras incompletas (não são autónomas ou fragmentárias). As regras incompletas (não são autónomas ou fragmentárias) são aquelas que, por falta de toda ou parte da previsãoou da estatuição, necessitam de ser combinadas com outras para que se possa obter um sentido completo. Por exemplo: as disposições que aclaram, desenvolvem ou restringem conceitos existentes noutras normas; disposições remissivas em virtude de não possuírem o conteúdo em si.

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•Classificação atinente ao âmbito espacial de validade das regras:

- trata-se de considerar a porção do espaço que em regra é aplicável. Assim, temos as regras universais, as regras regionais e as regras locais.

- as regras universais são as que se aplicam a todo o território do Estado.

- As regras regionais têm limites territoriais mais reduzidos (aplicam-se às regiões autónomas da Madeira e dos Açores).

- As regras locais são as que se restringem ao território da autarquia (posturas, regulamentos).

•Classificação atinente à obrigatoriedade das regras:

- O grau de obrigatoriedade das regras não é uniforme. O direito caracteriza-se em geral pela sua imperatividade. No que concerne à obrigatoriedade, podemos dividir as regras em imperativas e dispositivas. As imperativas subdividem-se em preceptivas e proibitivas. As dispositivas subdividem-se em interpretivas e supletivas de vontade.

- As normas imperativas são aquelas que obrigam de forma absoluta os particulares, independentemente da sua vontade. As normas preceptivas são aquelas cujo carácter fortemente impositivo compreende-se a partir da proeminência geral dos interesses protegidos, da sua natural sobreposição aos interesses particulares, os quais só no quadro da lei imperativa poderão encontrar algum modo de realização, estas impõem obrigações de fazer que exigem acções ou comportamentos positivos. As normas proibitivas impõem obrigações de não fazer, que impõem certas abstenções ou omissões.

- As normas dispositivas são aquelas que só valem se não existir uma vontade diversa das partes, isto é, são aquelas que podem ser substituídas pelos interessados por regras diversas. As normas interpretativas, têm por função esclarecer o sentido e o alcance de expressões obscuras ou equívocas utilizadas pelos particulares ou pelo legislador. As normas supletivas de vontade aplicam-se na falta de uma regulação especial estabelecida pelas partes.

•Classificação atinente à generalidade e abstracção das regras: Devido à sua maior ou menos extensão, as regras podem ser gerais, especiais e excepcionais. As normas gerais são aquelas que instituem o regime regra para todo o tipo de relações situadas numa determinada área jurídica; estas normas cobrem um vasto conjunto de relação sociais. Muitas vezes o legislador, para garantir certos interesses adopta para círculos mais restritos da actividade social um regime jurídico novo ou acentuadamente diferente do que se encontra estatuído no regime rega. Neste caso, estamos perante normas especiais, perante preceitos que, sem contrariarem substancialmente os princípios consagrados na disciplina geral, procuram adaptá-los a determinadas espécies de relações jurídicas marcadas por um circunstancialismo particular. As regras excepcionais são aquelas que, impondo-se como um ius singulare, consagram um regime oposto ao regime regra para um sector muito restrito de relações jurídicas com uma configuração muito particular.

•Classificação atinente ao regime sancionatório das regras:

- leges plus quam perfectae àquelas cuja violação se traduz em duas consequências: a nulidade do acto e a alicação de uma pena ao infractor.

- leges perfectae são aquelas cuja sanção é a nulidade dos actos sem que haja pena.

- leges minus quam perfectae têm uma sanção diversa da nulidade - multa, sanção disciplinar.

- leges imperfectae são as que não impõem ao infractor qualquer tipo de sanção (ex: obrigações naturais).

•Classificação atinentes à função das regras:

- Regras primárias e regras secundárias: o que importa distinguir é se as regras têm em si mesmas o sentido pleno, visando regular comportamentos humanos, ou se se referem apenas a outras regras. As primeiras, como normas de conduta, são as regras primárias. As segundas, servindo de complemento a estas, são as regras secundárias (ex.: as das fontes e as de

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iniciação, duração e extinção da vigência; as declarativas ou explicativas; as interpretativas, as de integração e as de interpretação; as sancionatórias de outras regras).

- Regras substantivas e regras adjectivas: as regras substantivas são aquelas que regulam os diversos conflitos de interesses e definem o conteúdo jurídico das relações sociais, estabelecendo direitos e obrigações. As regras adjectivas ou instrumentais são os instrumentos de realização das substantivas, são aquelas que visam aplicar os princípios destas, regulando o seu modo de actuação e realização nas instâncias públicas jurisdicionais. As regras adjectivas estão assim ao serviço do direito substantivo.

Capítulo 13 - Alguns procedimentos técnicos usuais

•A expressão técnica ganha aqui sentido de esquema ou modelo de actividade que se manifesta como um meio para alcançar um fim. Frequentemente, o legislador recorre a certos processos técnicos com o objectivo de tornar mais preciso o alcance das leis.

•Pressunções legais: tal como define o Código Civil (art. 349º) nas presunções estamos perante uma operação intelectual em que se admite a existência de um facto não directamente demonstrado por se ter tornado verosímel através da prova de um outro facto. Estamos perante um modo de prova cuja originalidade assenta no seu mecanismo de verosimilhança. Por vezes é muito difícil, se não impossível, fazer a prova directa de um facto. Para estas situações, a presunção surge como o remédio. As presunções tanto podem ser legais ou de direito, se são estabelecidas pela própria lei, como judiciais, naturais, de facto, simples, ou de experiência se se tratam de fundamentos extraídos da normalidade das coisas para a convicção de juiz. Trata-se esta de uma distinção feita em função do seu autor.

•Ficções legais: estamos agora perante uma outra técnica legislativa, perante uma operação intelectual que pode ser considerada como um artifício jurídico em que o legislador assume como existente um facto que é desmentido pela realidade. Enquanto as presunções são modos de prova fundados em probabilidades que podem muitas vezes ser refutadas, as ficções são estranhas à verosimilhança, não podendo a sua aplicação ser afastada nos casos em que ela se impõe. Através dela é possível solucionar alguns casos com maior simplicidade. Outras vezes, quando o legislador não tem a certeza de estar perante dois casos idênticos recorre a esta técnica para os equiparar. Outras vezes ainda, recorre-se à ficção para não se quebrar a harmonia da construção legislativa. Neste caso, a disposição que contêm a ficção serve de complemento a uma regra anterior. Na ficção transporta-se a regulamentação jurídica de um certo facto para outra realidade, sabendo-se à partida que são diferentes.

•Definições legais: as noções jurídicas são mais numerosas do que as palavras. Os suportes linguísticos são em menor número do que as categorias jurídicas. Dado que o material linguístico é limitado, as palavras podem assumir vários sentidos. Ora, um dos meios que estão ao dispor do legislador para tentar vencer a polissemia é a definição de termos e noções. A estes níveis, as definições são redutoras. Dos vários sentidos possíveis apenas emerge um, este passa a ser o sentido da lei. Como é fácil de compreender, nem todos os vocábulos e conceitos podem ser definidos, estamos perante uma técnica que tem limites. Daí que existam sempre espaços residuais abertos à necessária intervenção do intérprete.

•Remissões legais: um outro meio técnico legislativo, cujo objectivo é evitar repetições incómodas, são as remissões legais. As normas remissivas são as que enviam ou remetem para outras, de tal sorte que só recebem o seu conteúdo material em virtude da união com essas outras. Frequentemente, a consequência jurídica de uma hipótese ou previsão é estabelecida por meio de uma remissão para a de outra regra. As remissões podem ser particulares ou gerais. São particulares aquelas em que uma regra remete para a outra. São gerais ou globais aquelas em que há uma devolução a todo um conjunto regulativo. Estas remissões gerais são importantes na economia dos discursos legislativo, pois evitam as repetições inúteis e a indesejável prolixidade. As remissões podem ser ainda intra-sistemáticas e estra-sistemáticas. As primeiras são as que ocorrem entre regras do mesmo sistema jurídico. Pode afirmar-se que a técnica da remissão é muito cómoda e favorável para o legislador.

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•Enumerações legais: as enumerações legais são um procedimento de técnica legislativa muito corrente. Invés de recorrer a uma fórmula geral (cláusula geral) são raras as vezes o legislador enuncia uma regra, especificando uma série de casos ou de situações. As enumerações podem ser indicativas ou enunciativas aquelas em que a designação dos casos é feita a título exemplificativo. As enumerações são limitativas sempre que a indicação dos casos seja definitiva. Neste caso esgotam-se na norma os casos a que se esta se deve aplicar.

•Divisões e as partes gerais: a unidade de base do discurso legislativo é o artigo. No entanto, um diploma ou um código não é um magma de artigos, mas um conjunto ordenado de disposições expostas segundo um plano previamente estabelecido. O legislador não poderia deixar de cuidar da unidade global do seu discurso. Para esta unidade contribuem diversos elementos de coesão. Compulsando o código civil verifica-se que este apresenta-se sistematizado em 5 partes, sucessivamente divididas: livros, títulos, capítulos, secções e subsecções. Cada divisão é acompanhada de um título: livro II - Direito das Obrigações, título I - das obrigações em geral; capítulo II - fontes das obrigações; secção I - contactos; subsecção I - disposições gerais. O objectivo das divisões dos títulos é essencialmente o de fraccionarem o diploma ou o código em unidades reconhecíveis. Devendo colocar o máximo de carga intelectual no mínimo suporte verbal possível, o legislador deve evitar repetições, daí a vantagem de agrupar os princípios gerais e outras disposições.

•As cláusulas gerais: as cláusulas gerais são uma concessão do positivismo à auto-responsabilidade dos juízes e uma ética social transpositiva. Trata-se de delegar à jurisprudência a tarefa de especificar, de integrar, de desenvolver. A cláusula geral pode ser definida como um critério normativo extra-legal para que a lei nos remete e que vai ser utilizada como critério de uma aplicação do direito normativamente adequada às circunstâncias do caso concreto. Há também quem veja nela uma formulação da hipótese legal que, em termos de grande generalidade, abrange e submete a tratamento jurídico todo um domínio de casos. Tem razão o mesmo autor ao olhá-la como um conceito que se contrapõe a uma elaboração casuística das hipóteses legais. A verdadeira importância das cláusulas gerais manifesta-se no domínio da técnica legislativa. O carácter da generalidade que as caracteriza permite-lhes responder de forma flexível e cognitiva, pela via da intervenção responsável e criativa do juiz, a um vasto conjunto de situações, sujeitando-se de forma inteligente e ajustada à fattis specie concreta. Assim, o legislador ao invés de especificar cada um recorreu à técnica da cláusula geral. A partir da aplicação deste critério, o sistema jurídica pode adequar-se permanentemente a novas exigências que venham emergir com a evolução do contexto.

•Os conceitos indeterminados: (ler livro)

Capítulo 14 - Vigência das disposições normativas (só prova oral)

Capítulo 15 - A codificação das regras de direito

•O código distingue-se por conter uma disciplina fundamental de um sector importante da ordem jurídica. Os códigos distinguem-se uns dos outros pelo seu objecto.

15.1. Pressupostos do modelo codificatório: foi a cultura do direito codificado que substituiu a do ius commune. Os códigos que hoje usufruímos são o legado deixado a presente pela ideologia da ilustração. De facto, a codificação é um processo histórico e cultural através do qual se tornou possível o intento oitocentista da tecnicização do direito, intimamente ligada à progressiva auto-compreensão da jurisprudência como ciência. Evento de maior importância da Revolução Francesa que criou as condições para a instauração da soberania da lei e para a oficialização das propostas jusnaturalistas racionalistas. A codificação do direito responde inicialmente às aspirações dos novos regimes liberais da Europa e à concepção de que afinal o direito é também uma técnica que deve ser posta ao serviço da organização da sociedade. Deve salientar-se que os códigos levam para adiante a obra de estadualização das fontes do direito iniciada pelas monarquias absolutas. A ideia de código pode ser perspectivada em termos puramente técnicos como uma forma específica

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e apreensão textual de um núcleo sistemático de princípios e de conceitos jurídicos destinados a seleccionarem os conflitos de interesses juridicamente relevantes e a organizarem as respectivas decisões do ordenamento jurídico.

15.2. A ruptura dos códigos com o passado: os quadros jurídicos do Antigo Regime são superados por novas concepções. Princípios que marcaram este código, à volta dos quais se forjou o movimento europeu de codificação:

•Princípio da Igualdade: a ideia de um código geral para todos os cidadãos postula que todos os indivíduos sejam considerados como iguais. Ora, o Antigo Regime caracteriza-se pela coexistência de uma multiplicidade de estatutos.

•Princípio da Liberdade: a sociedade desenhada é uma sociedade de homens livres, iguais e independentes entre si.

•Individualismo: o Homem é instituído em ser superior. A sociedade é perspectividada como um produto das vontades individuais.

•Princípio da secularização: o código é um instrumento laico.

•Princípio da autoridade: existe alguma severidade; do código extrai-se a autoridade do chefe de família do patrão.

15.3. Alguns aspectos da codificação do direito nacional: os códigos modernos caracterizam-se pela técnica utilizada na sua elaboração. Justiniano mandou elaborar uma compilação de leges e ius. Instituciones, Digesto e Codex constituem esta compilação, à qual se agregaram as Novellae. Todo este conjunto receberá, posteriormente, o título de Corpus Iuris Civilis.

•A codificação próprio nomine: o individualismo liberal favorece o movimento da codificação quer através da imposição da supremacia da lei, quer pela vida da necessária subsitutição do direito vigente até aí. A obra codificadora que viria marcar o ponto mais alto no direito português foi o Código Civil de 1867 (código de Seabra). Este código manteve-se fiel à tradição. O código é dividido em 4 partes: I - capacidade civil; II - aquisição de direitos; III - direito de propriedade; IV - ofensa dos direitos e sua reparação. Após sofrer diversas alterações legislativas, o código civil de 1867 entra no seu último período de vigência. Dá-se o início da elaboração, que havia de ser prolongada de um novo código, o qual entrou em vigor no continente e ilhas em 1967. A instauração de um regime democrática e a constituição de 1976 deram impulso a uma reforma do código civil que entrou em vigor em 1878.

15.4. A crise da codificação: os códigos vigentes no nosso tempo prendem-se com a própria identidade nacional. São verdadeiros depositários de tradição jurídica de um país. Fala-se hoje na crise da codificação. Esta radica sobretudo no fenómeno, especialmente visível a partir da segunda metade do século passado, especialmente visível a partir da segunda metade do século passado, da proliferação das leis especiais. A crescente complexidade das relações e dos equilíbrios sociais faz com que cada vez mais o modelo codificiador fique submerso pelas leis especiais. Fala-se hoje da idade da descondificação. Os códigos são instrumentos de estabilidade, de uniformidade e de disciplina. As leis especiais têm um carácter dinâmico e diferenciado. Coloca-se hoje à codificação alguns obstáculos:

- o peso do processo codificatório: o tempo necessário para se produzir um código desmobiliza o poder político democrático.

- a difusão de uma imagem de rigidez: a codificação produz a imagem de um direito rígido ao contrário da sedutora ideia de um direito mais ligeiro e elástico conduzido pela jurisprudência.

- o desenvolvimento de micro-sistemas: os códigos perdem constantemente espaço perante o efeito centrífugo dos micro-sistemas de normas. Este efeito agrava-se com a crise da lei.

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Capítulo 16 - A ordem jurídica

•Em sociedade, o Homem obedece a regras de conduta. O reino normativo é muito extenso e variado. Esta complexidade é abarcada pelo conceito de ordem normativa, noção que envolve todas as proposições que impõem um dever ser às pessoas humanas. Dentro delas proposições encontram-se as disposições jurídicas. Quando nos referimos a elas no seu conjunto vamos ao encontro do conceito de ordem jurídica. Esta pode definir-se como um conjunto, estruturado em sistema, de todos os elementos que entram na constituição de um direito que rege a comunidade humana. A ordem jurídica é um espécie de ordem normativa, consubstancia uma parte desta ordem mais geral. A ordem jurídica impõem-se a todos os membros da comunidade. Dado que o Homem é um ser eminentemente social, a vida em comunidade, desde os actos mais banais até às manifestações mais solenes, é dominada pelo direito. Todas as relações sociais estão sujeitas à rede de mil malhas personificada pela ordem jurídica. A ordem jurídica tutela e protege os sujeitos de direito desde o período que antecede o seu nascimento e projecta-se para além da morte. A ordem jurídica é uma objectividade normativa autárquico-dogmática, uma vez que a sua subsistência não carece de adesão individual dos seus destinatários; ela vincula todos os membros da comunidade.

•CARACTERÍSTICAS: a ordem jurídica é um corpo coeso, representativo de todo o direito e algo complexo. Devido às suas características ela impõem-se como uma entidade nova, como uma realidade que transcendendo as normas e outros materiais que a constituem, projecta uma imagem do próprio direito.

1. Unidade: deve afastar-se desde já o pressuposto de que a ordem jurídica provém de uma só fonte. A unidade aqui invocada há-de radicar num princípio unificador que supere a ideia de que o direito é um conjunto de disposições fortuitas, há-de acentuar a ideia de interdependência e de coesão dos conteúdos normativos. A questão está em saber qual o critério a partir do qual ela adquire a sua forma unificadora: o critério da territorialidade. Para Savigny, a unidade traduz-se no resultado da conexão orgânica entre todos os intitutos e as regras jurídicas. Para Kelsen, a ordem jurídica é concebida como um sistema dinâmico em que a unidade é alcançada através de um escalonamento gradual na produção e na aplicação das normas. Para Hart, a unidade radica numa regra de reconhecimento, numa regra última que faculta os critérios que conferem validade às outras regras do sistema.

2.Coerência: a ordem jurídica não possui o carácter espontâneo de uma floresta virgem, nem a perfeição de uma figura geométrica perfeita. Será talvez possível compará-la com a evidência de uma cidade. A cidade é uma determinante determinada na sociabilidade, embora o quotidiano acabe por apagar da nossa consciência essa dimensão; a ordem jurídica é também ela edificada a partir de uma sedimentação de materiais de diversas épocas. Como a cidade dos nossos dias, também a ordem jurídica caracteriza-se pela complexidade e pela tendência de fragmentação, com o grave risco de se criarem zonas de incomunicação, exactamente como sucede na cidade actual. Tal como a cidade, a ordem jurídica apesar da contínua acumulação de material normativo, apresenta-se como uma totalidade ordenada. A coerência é a sua nota essencial. Esta em termos formais pressupõe que as normas inferiores exprimam como concretização das superiores a mesma direcção de sentido. Em termos materiais, traduz-se num lugar próprio no conjunto. Todos os elementos da ordem jurídica possuem entre si uma ligação necessária e harmónica. Assim, perante um conflito de interesses a ordem jurídica apresentará apenas uma solução e não duas. Contudo, a ordem jurídica não possui a perfeição de uma figura geométrica. Dada a sedimentação contínua o legislador nem sempre se apercebe das quebras de harmonia que eventualmente podem surgir. Assim é concebível que se venha a detectar duas normas incompatíveis. Se as consequências jurídicas estabelecidas por essas normas for as mesmas ou se apontar no mesmo sentido estamos perante uma concordância cumulativa de normas. O mesmo não sucede em normas incompatíveis.

- contradições técnico-legais: falta de uniformidade terminológica;

- contradições normativas: surgem quando uma conduta é considerada pela ordem jurídica como devida e não devida, devida e proibida, proibida e não proibida;

- contradições valorativas ou axiológicas: são aquelas que resultam da falta de coerência do legislador;

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- contradições teleológicas: resulta de uma quebra entre os finas almejados pelo legislador e os meios para o alcance daqueles;

- contradições de princípios: conflitos criados pela coexistência de diferentes ideias fundamentais.

3. Plenitude: os conceitos de coerência e de plenitude estão intimamente ligados. Savigny reduziu-os a um, o de unidade. Esta por sua vez pode assumir uma vertente negativa (superação de contradições) e uma positiva (preenchimento de lacunas). Carnellut exprime esta ligação através da exuberância e da deficiência. Só o primeiro se manifesta atrave´s do excesso de normas, o que põe em causa a coerência; o segundo manifesta-se através da ausência de normas, o que põe em causa a plenitude. Uma ordem jurídica plena é aquela que é completa, que dispõe de normas para regular todos os casos jurídicos. Estamos perante um conceito que aponta para algo de inalcançável, uma vez que o direito não consegue aprisionar toda a realidade. A complexidade, variabilidade e a diversidade ultrapassam a imaginação do legislador. Neste sentido, sempre existirão segmentos da vida com relevância jurídica, para os quais a ordem jurídica não dispõe de normas. A ideia de plenitude traduz-se mais numa aspiração. Algumas teorias procuram mostrar a inexistência do problema das lacunas:

- teoria do espaço jurídico vazio: os factos não previstos pelas normas da ordem jurídica pertencem ao espaço vazio, logo não são juridicamente relevantes.

- teoria da norma gral exclusiva: todas as normas particulares que tutelam certos actos, contém em si uma segunda norma que exclui da sua previsão todos os actos não previstos.

" Foi com base neste espírito que se formou a teoria da plenitude lógica do ordenamento jurídico. Na sua génese está a ideia que a partir das regras jurídicas é sempre possível extrair uma disciplina adequada para acorrer a todas as situações. Entretanto, face à resistência da experiência jurídica tem-se procurado dar outro sentido à plenitude. Este tende a deixar de recobrir algo que já existe de antemão (a concepção de que das normas existentes é sempre possível extrair uma disciplina adequada para todos os casos), para passar a ter o sentido de uma exigência (a ideia de que sempre será possível alcançar uma solução). Se a ordem jurídica plena não traduz a ausência de lacunas, mas sim que esta possui meios para as colmatar. Esta concepção pretende conjugar a ideia de ordem jurídica confinada com um processo permanentemente aberto à vida social.

4. Adequação aos valores que fundam os direitos do homem: a ordem jurídica pressupõe o conjunto das características constitutivas lá aludidas, no entanto, embora necessárias não são suficientes para a identificarem. Uma ordem verdadeiramente jurídica é aquela que é constituída por valores, por princípios e normas verdadeiramente jurídicas, mobilizadas pela tarefa de instituição de um ordenamento de convivência que exprima aquele conjunto de valores que servem de fundamento aos direitos do Homem. O positivismo jurídico clássico elevava o princípio da legalidade formal a metanorma de reconhecimento da juridicidade das normas. Uma norma era válida, independentemente do seu conteúdo, se correctamente criada por uma autoridade competente. Hoje, apela-se para uma legalidade substancial, para a sujeição das normas não só a vínculos formais como aos direitos fundamentais contidos nas constituições. Se a ordem normativa não for edificada em redor destes valores não estamos perante uma verdadeira ordem jurídica. Em suma, uma ordem jurídica é uma ordem ajustada a valores, a valores que fundamentam os direitos do homem.

•A ordem jurídica como conjunto de normas primárias e secundárias:

" Fora uma situação muito particular num sistema desprovido de normas oficiais apresenta grandes limitações. Uma primeira deficiência é a incerteza: não existe um processo que determina quais são as normas em vigor e o seu âmbito de aplicação. Uma segunda deficiência é a imobilidade: as únicas alterações possíveis das regras passam por um lento processo. A terceiroa deficiência é a ineficácia: esta deriva das intermináveis discussões sobre o âmbito das regras e a sua eventual violação e da dificuldade em aplicar os castigos, tarefa que na ausência de agentes específicos cabe aos próprios ofendidos. A superação de cada um destes inconvenientes passa pela introdução de 3 espécies de normas secundárias que

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possam servir de complemento às normas primárias. Aquelas normas visam não só colmatar os diversos defeitos como, em conjunto com as primárias, proceder à edificação de uma verdadeira ordem jurídica.

- as regras de reconhecimento que visando superar a incerteza, indicam aos diversos agentes como distinguir as verdadeiras regras jurídicas das outras.

- as regras de alteração que com o objectivo de superarem a imobilidade indicam quem pode legislar, como se deve criar novas regras e como se podem eliminar as antigas.

- as regras de julgamento, destinadas a combater a ineficácia, regulamentam as controvérsias, oferecem critérios susceptíveis de determinarem se houve violação de normas primárias, atribuem e delimitam a autoridade de certos indivíduos para liderarem processos.

" Para Hart, uma verdadeira ordem jurídica é aquela que é constituída por regras primárias e por regras secundárias. As primárias ou básicas são aquelas que impõem aos seres humanos que façam ou se abstenham de fazer certas acções, quer queiram ou não. As secundárias, conferindo poderes públicos e privados, têm por função assegurar que os seres humanos possam criar, ao fazer ou dizer certas coisas, novas regras de tipo primário, extinguir ou modificar as regras antigas, ou determinar de diferentes modos a sua incidência ou fiscalizar a sua aplicação. Hart sustenta que, enquanto as regras primárias dizem respeito às acções que os indivíduos devem ou não fazer, as secundárias respeitam todas às próprias regras primárias. Hart aceita a ideia de que o direito é um conjunto de regras. Dois importantes pressupostos existem desta ideia: a importância das regras de reconhecimento e a exigência de regras que dirijam o Estado.

•EFEITOS da ordem jurídica:

1. Liberdade: a ordem jurídica configura um projecto social, define o campo das nossas possibilidades e estabelece, através de um conjunto de normas de condutas, um normativo que orienta a nossa vida individual e social. Eis um conjunto de condições positivas para o estabelecimento, manutenção e exercício de liberdade. Uma vez que o direito impõe limites à acção humana pode parecer paradoxal a ideia de que a ordem jurídica é um importante factor de edificação da liberdade. Em vez de obstáculo à liberdade, o direito é uma condição da sua realização. Todas as liberdades exercem um controle recíproco, daí que a liberdade pessoal tenha que se harmonizar com o direito dos outros. É a ordem jurídica que garante que este desígnio não permaneça apenas no domínio das ideias. Daí a necessidade de um princípio de organização, de uma ordem jurídica, que discipline e garanta o exercício de liberdade. Kant considera que o direito deve garantir que o livre exercício do arbítrio de cada um possa conciliar-se com a liberdade de todos.

2.Segurança: outro importante efeito da ordem jurídica é a segurança. No pensamento moderno, destaca-se Hobbes, segundo este, se não for instituído um poder suficientemente grande para a nossa segurança, cada um confiará apenas na sua própria força e capacidade, coo protecção contra os outros. Esta ideia de segurança forjou-se com a instauração do Estado moderno. Na Idade Média, não era o direito que cabia garantir a segurança, mas sim a religião. Este quadro quebrou-se com as correntes protestante, o que abriu caminho para a construção de uma sociedade individualista. É daqui que o direito herdou a tarefa de garantir a segurança. Na Idade Moderna, a intervenção do poder central perde-se na imensa teia das ordens jurídico-jurisdicionais inferiores e dos direitos adquiridos; só nos séc. XVII, XVIII e XIX é que o direito se transforma num instrumento que garante a segurança, ou seja, só aqui é que se entrelaça com o poder. Apesar desta evolução é importante considerar a problemática das prioridades: o estado-polícia privilegiou mais o princípio finalista do que a justiça e a segurança; o jusnaturalismo racionalista deu especial realce à problemática de justiça, deixando na penumbra as problemáticas do fim e da segurança; o positivismo jurídico tocou especialmente na problemática da segurança. Quando hoje de afirma que o direito deve ser justo, ágil e eficaz, pressupõe-se a ausência de caos, de desordem e de indisciplina. A eliminação da desordem deve-se à existência da ordem jurídica. Ao apresentar-se como um todo ordenado, o direito induz segurança. As normas criadas pelas entidades competentes, susceptíveis de serem impostas a todos, mesmo contra a sua vontade e assumidas como vinculativas pelas autoridades, são fontes de segurança. Hoje não é possível permanecer apenas nos quadros de uma segurança através do direito, naquela ideia de direito pensado em termos unitários e conclusos, a garantir de uma existência sem sobressaltos, a certeza de que os

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entraves ao exercício dos direitos e os abusos de autoridade se dissolverão perante a lei. Para além desta, invoca-se a segurança do direito; nesta o direito surge como condição de previsibilidade, o que é alcançado através da ausência de flutuabilidade, pela rigidez e estabilidade. Existem 3 áreas em que a ordem jurídica pelo simples facto de existir, gera segurança:

- segurança face ao poder: é alcançada através da vinculação do poder ao direito, através de uma ordem instituída que cada um pode identificar os órgãos habilitados para a criação das normas, responsabilidade pelo exercício do poder, direito de defesa proporcionado pelos direitos fundamentais.

- segurança face ao direito: invocase um conjunto de mecanismos que garantem a segurança instrínseca da ordem jurídica que protegem os seus destinatários do próprio direito. É alcançada através da generalidade das regras, da claridade e estabilidade das regras jurídicas e da coerência normativa.

- segurança face à sociedade: traduz-se na intromissão dos poderes públicos nas esferas dos mais débeis, criando uma rede de solidariedade.

3.Paz: um dos efeitos mais importantes da ordem jurídica prende-se com a manutenção da paz. O direito sempre privilegia a paz e sempre procura excluir a violência das relações sociais. O direito não institui por si só a paz. A ordem jurídica ao canalizar institucionalmente os conflitos sociais, ao conduzir à cessação de hostilidade violenta, contribui para a instauração e para a preservação da paz- A paz deve-se em grande parte à existência da ordem jurídica, à eliminação do poder pessoal, do impõe-te aos outros, do recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito. Para o positivismo jurídico, a paz surge como em último patamar a ser atingir pelo direito. Para Kelsen, o direito só quando estabelece um compromisso entre os interesses contrapostos pode assegurar uma existência reativamente larga e realizar uma paz social.32

•Últimas considerações sobre a ordem jurídica: pode extrair-se a ideia de que o núcleo central da problemática da ordem jurídica reside na sua existência-validade. Do ponto de vista da existência, ela assegura a coexistência dos indivíduos, compensado as suas debilidades e a sua breve existência pela interposição de um corpus mais durável e robusto, o que lhes permite perpetuar muitos desígnios para além da vida natural. Mas uma ordem jurídica só existe se for válida e agora a sua existência é assumida como algo de distintivo e de superior aos elementos que a compõem. Da mesma forma que o direito, a ordem jurídica não pode ser concebida como algo já definitivamente realizado, como algo inerte e fechado. Projectando-se num tempo longo, a ordem jurídica envolve a sociedade a partir de um processo de contínuo devir, embora a velocidade das suas mutações não traduza de forma imediata a evolução da sociedade. Ela ao invés de apenas espelhar a realidade, age sobre ela como um autêntico sistema operativo de controlo, de orientação, e de correcção. Como toda a obra humana, a ordem jurídica é uma construção tocada pela debilidade do seu autor, e por um certo grau de indeterminação que as modernas sociedades tecnológicas sempre comportam. Por outro lado, sendo a ordem jurídica uma estrutura para vigorar no tempo longo, não é de estranhar que essa imensidade temporal não seja abarcável por aqueles que, devido à sua natural finitude, mais não possuem do que uma visão limitada deste tempo. A ordem jurídica não consiste numa forma já formada, mas antes num processo de estruturação e de desestruturação da praxe social, que é criativo e destrutivo das formas jurídicas. Como estrutura orientadora da interacção humana, a ordem jurídica, sem anular a diversidade que caracteriza o Homem, procura evitar que esta degenere em conflito e arbítrio. Ora este desidrato só é realizável envolvendo toda a sociedade e se a ordem jurídica for ela própria justa.

Fim da cadeira

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