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5 INTRODUÇÃO Esta pesquisa tem como objetivo desenvolver critérios para a elaboração de subsídios em vídeo para o Ensino Religioso nas escolas brasileiras. Surge da constatação de que há uma lacuna não preenchida no Ensino Religioso brasileiro quanto ao fornecimento de subsídios audiovisuais que correspondam à sua implementação, concomitante às novas políticas educacionais e suas exigências de inter-religiosidade e respeito à dignidade humana. O Ensino Religioso tem como tarefa educar para o diálogo no mundo plural de hoje e promover a convivência na alteridade e no respeito ao diferente. Num mundo de relações planetárias, o Ensino Religioso se apresenta com dimensões que ultrapassam as fronteiras nacionais e culturais e tem sido alvo de pesquisas tanto no Brasil quanto em outros países. A Unesco publicou em junho de 2003 uma pesquisa sobre educação e religião 1 com o objetivo de promover o desenvolvimento de valores universais tais como a paz e o respeito aos direitos humanos através da prática do diálogo entre culturas e religiões. No Brasil, a atual disciplina curricular do Ensino Religioso busca atender à necessidade fundamental de todo homem e mulher de se desenvolver plenamente, de buscar sentido e valores que dêem orientação precisa e arrimo seguro a sua existência. 2 É um currículo com base antropológico-cultural que se abre para uma abordagem madura do fenômeno religioso e, portanto, exige subsídios bem diferentes dos até então oferecidos tradicionalmente nas escolas públicas e particulares, marcados pelos limites de crença e filiação religiosa, ou pela laicidade dos organismos governamentais. Diante desta nova postura curricular, esta pesquisa em torno da produção audiovisual para o Ensino Religioso, faz uma abordagem transdisciplinar do fenômeno. Se constitui também como um desafio porque visa identificar e superar as ambiguidades e distorções tradicionalmente presentes nas diversas expressões da religiosidade difundidas nas produções audiovisuais. 1 UNESCO / Agência Internacional de Educação. Education and religion: the paths of tolerance. Prospects: Revista quadrimestral de educação comparada. v. XXXIII, n. 126, jun. 2003. Quadrimestral. 2 Cf. RUEDEL, Pedro. Educação religiosa: fundamentação antropológico-cultural da religião segundo Paul Tillich. São Paulo: Paulinas, 2007.

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem como objetivo desenvolver critérios para a elaboração de

subsídios em vídeo para o Ensino Religioso nas escolas brasileiras. Surge da

constatação de que há uma lacuna não preenchida no Ensino Religioso brasileiro

quanto ao fornecimento de subsídios audiovisuais que correspondam à sua

implementação, concomitante às novas políticas educacionais e suas exigências de

inter-religiosidade e respeito à dignidade humana. O Ensino Religioso tem como

tarefa educar para o diálogo no mundo plural de hoje e promover a convivência na

alteridade e no respeito ao diferente. Num mundo de relações planetárias, o Ensino

Religioso se apresenta com dimensões que ultrapassam as fronteiras nacionais e

culturais e tem sido alvo de pesquisas tanto no Brasil quanto em outros países. A

Unesco publicou em junho de 2003 uma pesquisa sobre educação e religião1 com o

objetivo de promover o desenvolvimento de valores universais tais como a paz e o

respeito aos direitos humanos através da prática do diálogo entre culturas e

religiões.

No Brasil, a atual disciplina curricular do Ensino Religioso busca atender à

necessidade fundamental de todo homem e mulher de se desenvolver plenamente,

de buscar sentido e valores que dêem orientação precisa e arrimo seguro a sua

existência.2 É um currículo com base antropológico-cultural que se abre para uma

abordagem madura do fenômeno religioso e, portanto, exige subsídios bem

diferentes dos até então oferecidos tradicionalmente nas escolas públicas e

particulares, marcados pelos limites de crença e filiação religiosa, ou pela laicidade

dos organismos governamentais. Diante desta nova postura curricular, esta pesquisa

em torno da produção audiovisual para o Ensino Religioso, faz uma abordagem

transdisciplinar do fenômeno. Se constitui também como um desafio porque visa

identificar e superar as ambiguidades e distorções tradicionalmente presentes nas

diversas expressões da religiosidade difundidas nas produções audiovisuais.

1 UNESCO / Agência Internacional de Educação. Education and religion: the paths of tolerance.

Prospects: Revista quadrimestral de educação comparada. v. XXXIII, n. 126, jun. 2003. Quadrimestral.

2 Cf. RUEDEL, Pedro. Educação religiosa: fundamentação antropológico-cultural da religião

segundo Paul Tillich. São Paulo: Paulinas, 2007.

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Além disso, os subsídios em vídeo produzidos pelas produtoras religiosas

apresentam dificuldades de falar numa linguagem apropriada para o educando do

século XXI. Constata-se que não há uma produção audiovisual voltada

especificamente para o Ensino Religioso no Brasil. Os professores utilizam diversos

gêneros de vídeos como subsídios motivadores de suas aulas: Filmes de ficção ou

de histórias bíblicas, documentários sobre religião ou religiões, vídeos pastorais e de

caráter confessional das diversas confissões religiosas. Porém, esse material nem

sempre é utilizado em todo o seu potencial, devido à distância entre a cultura

academicista do educador, de uma racionalidade marcadamente moderna, e a

cultura eletrônica do educando, marcadamente audiovisual. Essa situação se agrava

na educação religiosa porque há uma indisposição cultural do educando a essa

disciplina.

A temática do diálogo entre culturas e religiões é de grande importância no

atual contexto da educação brasileira. A produção de subsídios em vídeo com uma

abordagem transdisciplinar para o Ensino Religioso se apresenta não só como uma

oportunidade no campo da pesquisa, mas também como uma tarefa para o

desenvolvimento pleno do ser humano nas suas dimensões mais íntimas e

profundas. Nesta mesma perspectiva, é tarefa fundamental desta pesquisa contribuir

para o avanço do conhecimento científico no campo das Ciências da Religião,

proporcionando critérios para que o Ensino Religioso ajude as pessoas no seu

processo de exteriorização religoso-cultural, e assim contribua para o discernimento

do que há de verdadeiro e legítimo, em coerência com o sentido profundo dos seres

humanos inseridos num mundo plural.

A proposta é buscar uma epistemologia que dê critérios para uma educação

que fale na linguagem audiovisual. E a partir deste referencial epistemológico,

analisar uma das produções audiovisuais utilizadas pelos professores do Ensino

Religioso, que dê conta desta linguagem. O referencial de amostragem foi colhido

entre as produções mais indicadas pelos órgãos de fomento ao Ensino Religioso,

tais como a FONAPER - Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso, GPER –

Grupo de Pesquisas para o Ensino Religioso e a revista Diálogo, publicação

direcionada aos professores e pesquisadores da educação religiosa no Brasil.

Na primeira parte do Capítulo 1 será apresentada uma historiografia da

construção da legislação que regula o Ensino Religioso no Brasil. Na segunda parte

7

deste mesmo capítulo será feito um levantamento do campo religioso brasileiro,

identificando quais são suas principais manifestações e qual é a matriz religiosa que

define a experiência do sagrado. Essa pesquisa é importante para constatar se os

vídeos usados na educação religiosa contemplam a legislação e a pluralidade de

expressões do fenômeno religioso brasileiro e sua matriz subjacente.

No Capítulo 2 será realizada uma análise epistemológica com base nos

referenciais teóricos da fenomenologia da religião3 numa abordagem

transdisciplinar4 do fenômeno religioso. A abordagem fenomenológica é importante

nesta pesquisa porque não se trata do estudo dos fatos religiosos, mas da

abordagem destes fatos nos vídeos usados no Ensino Religioso. A fenomenologia

contribui para avaliar a intencionalidade destes testemunhos numa abordagem de

sentido. Diante da pluralidade dos fenômenos religiosos a fenomenologia oferece a

possibilidade de se estabelecer uma morfologia dos fatos religiosos imprescindível

para a investigação do significado de tais expressões. A transdisciplinaridade

oferece referenciais epistemológicos fundamentais para a pesquisa, tais como a

ideia de complexidade5, a concepção de diversos níveis de realidade6 e a lógica da

inclusão (o terceiro incluído)7.

Ainda no Capítulo 2 será apresentado os referenciais epistemológicos para a

análise audiovisual. O principal referencial é a teoria da Modulação de Pierre Babin8.

A Modulação desenvolve critérios epistemológicos para a abordagem do fenômeno

religioso pela linguagem audiovisual através da imersão (envolvimento global),

vibração (conhecimento sensorial e analógico pela via do prazer) e ground (relação

entre o ambiente e a figura principal na elaboração da mensagem). A linguagem da

modulação é o ambiente ideal para fazer uma experiência intensa, sensitiva e

contemplativa do sagrado na cultura eletrônica. Mas não basta ficar neste nível, é

importante encontrar métodos para manter na audiência esta experiência. Nessa

3 Cf. CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: Uma introdução à

fenomenologia da religião. São Paulo: Paulinas, 2001. p. 24-27.

4 Cf. NICOLESCU, Barsarab. Fundamentos metodológicos para o estudo transcultural e

transreligioso. In: VVAA. Educação e transdisciplinaridade II. São Paulo: Triom, 2002.

5 Cf. MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005.

6 Cf. BERNI, Luiz Eduardo. O vórtex sagrado-profano, uma zona de não-resistência entre níveis de

realidade. In: VVAA. Educação e transdisciplinaridade III. São Paulo: Triom, 2005.

7 Cf. NICOLESCU, op. cit.

8 Cf. BABIN, Pierre. Linguagem e cultura dos mídias. Lisboa: Bertrand, 1993.

8

perspectiva será proposto o Pluralismo Metodológico Integral de Ken Wilber9 como

referencial epistemológico para a construção de uma espiritualidade do audiovisual.

No Capítulo 3 será realizada a análise de um filme de ficção, representativo

dos filmes utilizados pelos professores do Ensino Religioso no Brasil para falar do

sagrado ou da religiosidade brasileira. Num primeiro momento será feita uma leitura

das categorias sonoras e visuais dessa produção, a partir de seus operadores

audiovisuais. Em seguida, a análise será enriquecida com os referenciais

epistemológicos estudados no capítulo precedente. Esta análise servirá também

para comprovar se há adequação à linguagem audiovisual e às exigências da

legislação brasileira na abordagem do fenômeno religioso no filme. Servirá também

para avaliar a adequação à matriz religiosa brasileira, em referência ao estudo

realizado no primeiro capítulo.

Com base nos resultados desta análise, nas exigências curriculares da

educação religiosa, nas principais características da matriz religiosa brasileira, e nos

referenciais teóricos da Transdisciplinaridade, da Modulação e do Pluralismo

Metodológico Integral, será proposta uma criteriologia para a produção de subsídios

em vídeo para o Ensino Religioso no Brasil, fundamentada em uma espiritualidade

mistagógica audiovisual.

9 WILBER, Ken. Espiritualidade integral: Uma nova função para a religião neste início de milênio.

São Paulo: Aleph, 2006.

9

1 HISTÓRIA DO ENSINO RELIGOSO NO BRASIL

1.1 História que se consolida nas leis

Para compreender o contexto atual do Ensino Religioso é imprescindível uma

abordagem histórica que recolha as principais reflexões que culminaram na

elaboração legal que orienta esta disciplina hoje. Além do enfoque histórico, é

imprescindível uma análise da legislação que subjaz à educação religiosa brasileira

nos diversos períodos da história do Brasil, que remonta não só ao período colonial,

mas tem suas raízes no período pré-histórico ou indígena.

Os objetos arqueológicos e os testemunhos da arte rupestre comprovam que,

muito antes da chegada dos europeus, os indígenas brasileiros já viviam sua

religiosidade própria. Dentre os testemunhos mais eloquentes se destacam as

pinturas rupestres realizadas em épocas pré-históricas, encontradas nos sítios

arqueológicos do Parque Nacional da Serra da Capivara, localizado no sudeste do

estado do Piauí, na região Nordeste do Brasil. O Parque está inscrito como

Patrimônio Mundial em razão de ser composto por uma densa concentração de

sítios arqueológicos, a maioria com pinturas e gravuras rupestres, nos quais se

encontram vestígios extremamente antigos da presença do homem, datados em

100.000 anos antes do presente. Atualmente estão cadastrados 912 sítios, entre os

quais, 657 apresentam pinturas rupestres, distribuídos em sítios ao ar livre,

acampamentos ou aldeias de caçadores-coletores e aldeias de ceramistas-

agricultores. As ocupações eram grutas ou abrigos, sítios funerários e sítios arqueo-

paleontológicos. Diferentemente das características dos sítios arqueológicos

europeus, onde os lugares escolhidos pelo homem pré-histórico para pintar foram os

interiores das cavernas, os registros rupestres do Parque Nacional da Serra da

Capivara foram as paredes dos abrigos sob rocha ao ar livre.

Estas pinturas apresentam características únicas, também presentes em

outros sítios arqueológicos do nordeste do Brasil, que levaram os pesquisadores a

classificá-las numa categoria conhecida como tradição Nordeste10. Além de

10

Cf. PESSIS, Anne-Marie. Das origens da religião no Brasil indígena. In: BRANDÃO, Sylvana (Org.). História das religiões no Brasil. Recife: Editora da UFPE, 2004. v. 2, p. 211-250.

10

fornecerem informações sobre a vida cotidiana nas comunidades pré-históricas

desta região, as figuras indicam dados sobre suas manifestações rituais e crenças

religiosas. Representam o período inicial da experiência religiosa das comunidades

pré-históricas manifestada em ritos, agenciamentos míticos e manifestações

mágicas que foram se diversificando ao longo do tempo e configuram o panorama

cultural dos diversos grupos indígenas encontrados na época da invasão

portuguesa. Alguns dos padrões ritualísticos identificados nestas pinturas são

encontrados ainda hoje em tribos indígenas remanescentes destes povos da área do

norte-nordeste, como os Krahô e os Pankararu no sertão pernambucano. Mesmo

com a escassez de fontes históricas destas culturas identificadas desde a conquista

dos portugueses, há alguns relatórios sobre a vida e crença dessas comunidades.

Destaca-se o estudo de Anne-Marie Pessis que descreve a semelhança entre

elementos encontrados nas pinturas do Parque Nacional da Serra do Capivara com

os relatos orais, mitos e convicções dos Cariris11.

Os arqueólogos também recolhem valiosas informações dos rituais fúnebres

que são reconstituídos com o auxílio dos vestígios das escavações nos cemitérios

arqueológicos encontrados nestas regiões. Cemitérios como o da Pedra do

Alexandre, no sítio arqueológico do Seridó, no Rio Grande do Norte, e da Furna do

Estrago, no município de Brejo da Madre de Deus, em Pernambuco, apresentam

uma grande variedade de procedimentos utilizados em diferentes ocorrências

fúnebres de origem pré-histórica. A análise das disposições dos corpos ou dos

ossos, alguns pintados com tinta vermelha de óxido de ferro, bem como a análise

dos materiais e utensílios encontrados junto a esses sepultamentos, demonstram

que haviam práticas ritualísticas fúnebres. As distâncias cronológicas de sucessivos

sepultamentos nestes mesmos locais corroboram a hipótese da existência de

lugares sacralizados. Estas evidências levam os pesquisadores a concluir que esses

comportamentos padronizados ou ritualizados dos indígenas brasileiros cumpriam

uma função mnemotécnica fundamental para transmitir os conhecimentos

acumulados socialmente às novas gerações12. Tanto a ritualística quanto a

iconografia indígenas foram as primeiras formas milenares de transmissão da

tradição religiosa no Brasil, marcadamente narrativa, oral e visual.

11

Cf. PESSIS, 2004, p. 211-250.

12 Cf. Ibid., p. 237.

11

Com a armada de Tomé de Souza, chega ao Brasil o primeiro missionário

cristão, o jesuíta Manoel da Nóbrega. Assim que aportou, em 1549, deu início ao

trabalho de catequese dos indígenas. A motivação da empresa marítima portuguesa

estava intimamente ligada à evangelização e era justificada pela lenda corrente de

que São Tomé, o apóstolo das Índias, os precedera naquelas terras. O próprio

Manoel da Nóbrega corroborou a lenda ao escrever, poucos meses depois de sua

chegada ao Brasil, que “eles (os indígenas) têm memória do dilúvio [...] e dizem que

São Tomé, a quem chamam Zomé, passou por aqui”13. Mais tarde Anchieta repetiu o

mesmo na sua Informação do Brasil e de suas Capitanias à Coroa Portuguesa14. Os

colonizadores descobriram pegadas em rochas que atribuíram serem do apóstolo

acompanhado de um ajudante e ainda detectaram vestígios da pregação apostólica

nas crenças indígenas. Essas e outras crenças difundidas entre os colonizadores

eram fortes argumentos para o discurso evangelizador universalista que

desconhecia as fronteiras do outro.

Durante o primeiro período colonial a evangelização se caracterizou pela

doutrinação da fé cristã. Os missionários utilizaram artifícios persuasivos para

doutrinar os índios através da eloquência da voz e dos gestos. O discurso

predominante era em prol do aumento da religião cristã através da pregação do

evangelho para a salvação das almas. Porém, a conversão dos gentios só acontecia

após a sujeição dos mesmos, o que levou a uma compreensão da “evangelização”

como justificativa da opressão e escravização dos indígenas e dos africanos trazidos

para o Brasil. Todo o processo missionário estava vinculado ao regime do padroado,

que era a institucionalização jurídica da relação de dependência entre o Papado e a

Coroa portuguesa. A Igreja delegava aos monarcas portugueses sua administração

eclesiástica e organização em seus domínios. Através do regime do padroado

Portugal controlava o envio de missionários, seus honorários e as correspondências

do clero com Roma. O regime do padroado impedia a comunicação do Papado com

o Brasil no primeiro período colonial. A administração colonial portuguesa tratava de

maneira diferente o clero das sedes coloniais, em detrimento dos missionários do

13

HOORNAERT, Eduardo. et al. História da Igreja no Brasil: Ensaio de interpretação a partir do povo. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1979. p. 24.

14 Cf. ANCHIETA, José de. Informação do Brasil e de suas capitanias, 1584. São Paulo: Obelisco,

1964.

12

interior. O número e a dispersão dos missionários no território brasileiro estava em

função do projeto de expansão colonial e não da evangelização.

Outra característica do período missionário no Brasil é que ele é formado por

movimentos missionários que correspondem a quatro momentos da colonização

portuguesa15. O primeiro movimento é o de conquista e ocupação da costa

brasileira, marcado pela cultura da cana-de-açucar; o segundo movimento é

marcado pela ocupação do interior brasileiro efetuado através dos rios, cuja principal

artéria foi o Rio São Francisco; o terceiro movimento foi o maranhense, por onde os

missionários realizaram a grande obra missionária na região norte; e o quarto

movimento, que é considerado um movimento de missão leiga, não clerical, ocorreu

na região de Minas Gerais. Estes movimentos missionários foram marcados por

ciclos que variavam desde o dinamismo do florescimento até a acomodação. Os

ciclos missionários passaram por vários conflitos. O conflito mais marcante resultou

na perseguição e consequente expulsão dos jesuítas em 1759 como decorrência de

seu trabalho missionário, em contraponto à Reforma Pombalina. O Marquês de

Pombal pretendeu introduzir a sociedade lusitana e brasileira na modernidade

européia liderada pela Inglaterra, com forte espírito anti-católico.16 A Reforma

Pombalina levantou as bandeiras do “progresso e da ciência” impregnadas pela

ideologia do racionalismo iluminista, da maçonaria, das doutrinas galicanas e

jansenistas e do liberalismo político-religioso.

A Instrução Religiosa, como era chamado o Ensino Religioso, foi um dos

principais elementos de sustentação ideológica do projeto colonial português. O

discurso doutrinário, fundamentado no Catecismo Romano, era fiel ao Concílio de

Trento. Era estruturado através da exposição de perguntas e respostas com vistas a

salvaguardar e expandir a fé católica. A doutrina deveria ser memorizada através de

fórmulas definidas antes de ser assimilada. As Constituições Primeiras do

Arcebispado da Bahia, de 1707, trazem a Breve Instrucçam dos Mystérios da Fé,

accomodada ao modo de fallar dos escravos do Brasil. As Constituições e o

Catecismo abreviado para escravos propagavam um pequeno catecismo intitulado

15

Cf. HOORNAERT, 1979, p.42ss.

16 Cf. NERY, Irmão José Israel. O Ensino Religioso Escolar no Brasil, no Contexto da História e das

Leis. In: Revista de Educação AEC: Ensino Religioso Escolar. Ano 22, n.88, Julho/Setembro de 1993. Brasília: AEC do Brasil, 1993. p.7-20.

13

Forma da Doutrina Cristã, que consiste num resumo do Catecismo Romano17.

Foram realizadas várias tentativas de adaptação destes catecismos aos índios,

incluindo a redação de versões na língua vernácula dos gentios. Os

estabelecimentos de ensino eram organizados no sistema de escolas paroquiais ou

no sistema dos Colégios de Religiosos. Com a Reforma Pombalina e a consequente

expulsão dos jesuítas, ocorreu uma desorganização total da educação e algumas

escolas usaram o texto do Catecismo como cartilha para o ensino da língua

portuguesa.

No período do regime imperial da Monarquia Constitucional a educação

recebeu uma atenção diferenciada devido à chegada da família real e sua corte ao

Brasil e a promoção da Colônia a Reino-Unido. O país passou por grandes

modificações sócio-político-culturais e surgiram novas idéias de liberdade e

emancipação devidas à influência da Revolução Francesa. A burguesia se instalou

com poder e domínio. O regime do padroado se manteve, agora impregnado da

ideologia regalista, doutrina que defende a ingerência do chefe de estado em

questões religiosas, e a religião se estagnou. O Ensino Religioso passou por uma

fase mais privada e doméstica do que institucional e a Igreja passou a atuar através

dos leigos agrupados em irmandades, confrarias e ordens terceiras, enquanto o

clero se dedicava ao alto funcionalismo do Império. O Imperador Pedro I outorgou

em 25 de março de 1824 a “Constituição Política do Império do Brasil”, que reza no

seu artigo 5º: “A Religião Cathólica Apostólica Romana continuará a ser a Religião

do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou

particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior de Templo”.

Neste período houve uma acentuada restrição à liberdade religiosa porque a

Religião Católica Apostólica Romana foi oficializada como “Religião do Império”18. O

Ensino Religioso continuou sob o protecionismo do Estado, o regalismo chegou ao

seu apogeu e acentuou o processo de dependência e subordinação da religião.

No período do Segundo Reinado surgiu um novo cenário que possibilitou a

busca de novos caminhos para o Ensino Religioso. A Igreja recuperou sua

autonomia por ter enfraquecido suas relações com o governo do Império. Surgiram

17

Cf. FIGUEIREDO, Anísia de Paulo. Ensino Religioso: Perspectivas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 1995.

18 Cf. Ibid., p. 62.

14

novas publicações de compêndios, manuais e cartilhas nas diferentes regiões do

país. Estas publicações eram normalmente baseadas no Catecismo Romano sob a

orientação do Concílio de Trento. A entrada do protestantismo no Brasil a partir de

1810, em consequência do tratado comercial com a Inglaterra e a imigração

americana, iniciou a divulgação da Bíblia. Os protestantes conseguiram penetrar no

interior do país e despertaram no povo o interesse pela Bíblia. Idéias abolicionistas,

burguesas, liberais e republicanas são realimentadas e a Santa Sé, através da

Encíclica Quam Cura do Sillabus de Pio IX, realiza um manifesto contra a

Maçonaria, o espírito científico e a própria modernidade. Na medida em que a Igreja

Católica diminui seu poder temporal, vê crescer o seu prestígio espiritual no mundo

com as reformas provindas do Concílio Vaticano I (1869-1870). No Brasil os bispos

decidem por uma romanização mais forte e promovem a vinda de congregações

docentes com o objetivo de investir maciçamente na Escola Católica. No final do

século XIX o Ensino Religioso, compreendido como catequese complementar da

escola, foi efetivado como instrumento de defesa diante das tendências do

modernismo. Porém, a maçonaria influenciou na difusão da idéia da distinção entre a

“catequese” como tarefa da comunidade de fé, sob os cuidados da comunidade e da

família, enquanto a “instrução religiosa” como atividade complementar na escola.

Com a implantação e implementação do Regime Republicano surgiu um novo

quadro do Ensino Religioso. O Decreto 119 “A” de 7 de janeiro de 1890, dispositivo

do Governo Provisório da República, extinguiu o padroado e estabeleceu a

separação entre Igreja e Estado no Brasil. Os constituintes de 1891 se posicionaram

pelo caráter laical da educação pública e promulgaram a Constituição da República

dos Estados Unidos do Brasil em 24 de fevereiro do mesmo ano, com o seguinte

enunciado: “será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos” (art. 72 §

6). A liberdade religiosa é debatida em diversas instâncias, sobretudo no setor

jurídico. “A laicidade do Estado e do ensino recebeu diversas interpretações e, por

isso, também aplicação diferenciada. Rui Barbosa, redator principal da carta magna

republicana, inspirando-se na legislação dos Estados Unidos da América do Norte,

admitia o Ensino Religioso confessional na escola pública. [...] Outros líderes

republicanos, achegados à prática laicista francesa, baniam o Ensino Religioso da

legislação e vedavam sua prática na escola oficial”.19

19

RUEDELL, 2007. p. 20.

15

A Igreja Católica reagiu através do incentivo à proliferação de escolas

paroquiais, escolas primárias e colégios católicos com o Ensino Religioso em suas

grades curriculares. O Ensino Religioso tornou-se sinal da luta pelo poder das duas

correntes. A corrente republicana, sustentada por ideais positivistas, alegava que a

religião na escola contrariava o princípio da liberdade religiosa assegurado na

Constituição. A corrente da Igreja Católica defendia os direitos do cidadão a

frequentar ou não a aula de religião, por ser a escola um local de respeito à

liberdade. Argumentava que o princípio da liberdade não poderia ser regido pela

neutralidade. Estas radicalizações nem sempre tocaram em aspectos fundamentais.

Constituíram-se como luta por maior influência política e se repetiram em muitas

ocasiões de elaboração de leis desde a primeira assembléia constituinte até a de

1988 e nos debates para a confecção das leis de diretrizes e bases da educação

nacional de 1961 a 1996. Depois de quatro décadas, a ala católica, com o apoio do

governo provisório de Getúlio Vargas, conseguiu incluir no texto constitucional de

1934 o Ensino Religioso, que adquiriu nova roupagem, mas continuou com o teor

catequético, que prevaleceu até a década de 1970. O Ensino Religioso era

entendido como um corpo estranho dentro do conjunto das disciplinas escolares.

Somente com a intensificação das mudanças sócio-culturais da década de 1960 o

Ensino Religioso passou por um processo de adaptação à realidade escolar.

O período seguinte à Segunda Guerra Mundial foi marcado por grandes

mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais que geraram um novo

paradigma sociocultural chamado de pós-modernidade. No campo religioso o

Concílio Vaticano II, ocorrido de 1961 a 1966, propôs uma nova configuração da

Igreja Católica no mundo, orientada a estar atenta aos “sinais dos tempos”. O

Concílio Vaticano II propôs que a Igreja concentrasse suas forças nas necessidades

e possibilidades emergentes do contexto atual e contribuísse para uma maior

humanização das atividades humanas, para a valorização das culturas, promoção do

diálogo, do desenvolvimento integral de todos os povos e da construção da paz com

base na justiça social. No contexto ocidental, incluindo as demais confissões cristãs,

a partir da década de 60 houve um processo de ressignificação da religião que

passou a ocupar foros de cidadania sem caráter impositivo ou de privilégio. A

religião ganhou espaço dentro do movimento mundial de afirmação dos direitos

humanos e de liberdade individual, da qual a liberdade religiosa é elemento

16

integrante.20 Apesar de todo esse clima de renovação, o desejo da unidade dos

cristãos, uma das principais conquistas do Vaticano II, ainda não abriu caminhos

para uma nova modalidade do Ensino Religioso que valorizasse a prática ecumênica

e o diálogo entre as religiões. Ainda continuaram correntes os termos “catequese

escolar”, “religião na escola” e “catecismo na escola”. Os programas de Ensino

Religioso de algumas Secretarias Estaduais de Educação foram elaborados por

equipes de catequese dos Secretariados Diocesanos de Catequese.21

A sociedade brasileira, envolvendo educadores, representantes de entidades

civis, religiosas, educacionais, governamentais e não governamentais, de diferentes

setores de atuação, sensibilizados e comprometidos com a causa do Ensino

Religioso, se mobiliza por ensejo da elaboração da Constituição Federal e da Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). O impulso renovador da Igreja

Católica no Brasil, através da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),

motiva a criação do Secretariado Nacional de Ensino Religioso (SNER), que se

converte no Grupo de Reflexão do Ensino Religioso, além dos Encontros Nacionais

de Ensino Religioso (ENERS). Acontecem também as assembléias e seminários do

Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER). Estes organismos

realizaram estudos que passaram a considerar o Ensino Religioso como um

componente escolar sem caráter de doutrinação. Desempenharam um importante

processo de renovação da legislação referente ao Ensino Religioso. O crescente

pluralismo religioso da sociedade levou o Setor de Ensino Religioso da CNBB a

apresentar em 1989 uma nota que descreveu a problemática ligada ao caráter

confessional.22 Depois de um longo processo de articulações e aprofundamento, a

sociedade apresentou uma emenda popular pró-Ensino Religioso à Constituinte de

1987-1988, com o seguinte texto: “A educação religiosa será mantida pelo Estado no

ensino de 1º e 2º graus, como elemento integrante da oferta curricular, respeitando a

pluralidade cultural e a liberdade religiosa”.23 A elaboração da atual LDB (Lei n.

9.294/96) foi fruto de muito estudo e acalorados debates que continuaram mesmo

depois de sua publicação. O artigo 33 recebeu uma cláusula, fruto de recurso

20

Cf. RUEDELL, 2007, p. 22.

21 Cf. FIGUEIREDO, 1995, p. 82.

22 Cf. CNBB, Regional Sul 3. Texto referencial para o Ensino Religioso escolar. Petrópolis: Vozes,

1996. p. 127.

23 RUEDELL, op. cit., p. 31.

17

regimental, que ressalva: “sem ônus para os cofres públicos”. Esse artigo inviabilizou

a aplicação da lei. A mobilização nacional e as reflexões dos ENERS e do

FONAPER possibilitaram a Roque Zimmerman, da Comissão de Educação da

Câmara dos Deputados, introduzir, como relator, nas duas casas do Congresso

Nacional, a Lei 9.475, como texto substitutivo do art. 33 da LDBEN e que foi

homologada pelo presidente da República em julho de 1997, com o seguinte texto24:

Art. 33 – O Ensino Religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.

§ 1. Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do Ensino Religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores.

§ 2. Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do Ensino Religioso.

(Art. 33 da Lei nº 9475, de 22 de julho de 1997, que dá nova redação ao Art. 33 da Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996).

A publicação da LDBEN com o substitutivo de 1997 abriu as portas para um

novo Ensino Religioso no Brasil. Com estes dispositivos legais o Ensino Religioso

passou do domínio das confissões religiosas para a área administrativa dos sistemas

de ensino. O Ensino Religioso passou do domínio exclusivo do saber teológico para

os diversos saberes das Ciências da Religião, contemplando assim qualquer

expressão cultural portadora de religiosidade. Perdeu o caráter de iniciação a uma

religião e ganhou elementos para a formação integral da pessoa humana inserida

num mundo plural. Abriu-se a qualquer pessoa, sem discriminação de qualquer

natureza. O Ensino Religioso, erroneamente entendido como ensino de uma religião

ou das religiões na escola, passa a ser uma disciplina fundamentada nas Ciências

da Religião e da Educação. Tem como objetivo proporcionar conhecimentos em

torno dos fenômenos religiosos experimentados no contexto dos educandos e

valorizar a diversidade cultural religiosa presente na sociedade, além de incentivar

ações a favor da promoção dos direitos humanos.

24

BRASIL, República Federativa do. LDBEN. Lei nº 9475, de 22 de julho de 1997.

18

Atualmente há um esforço conjunto de organismos da educação e de setores

organizados das igrejas em prol da aplicação efetiva do novo Ensino Religioso

através da formação de educadores, incremento de pesquisas científicas no campo

religioso e encontros nacionais para a elaboração de parâmetros curriculares

adequados a esta nova perspectiva25.

O Conselho Nacional de Educação (CNE) institui em 1998 as Diretrizes

Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (Resolução CEB/CNE nº. 02/98)

e confere status de área de conhecimento ao Ensino Religioso entre as dez áreas

que compõem a base nacional comum. Desta maneira é garantida a igualdade de

acesso aos conhecimentos religiosos dos povos da humanidade como tarefa do

Ensino Religioso.

O último capítulo da trajetória do Ensino Religioso no Brasil é marcado pelo

recente Acordo Entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé, assinado pelo

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 13 de novembro de 2008, que rege sobre o

“Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil”. Em seu artigo 11 se refere ao Ensino

Religioso nos seguintes termos:

§ 1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação26.

O Acordo é considerado um retrocesso por entidades como a FONAPER, que

logo em seguida publica um manifesto denunciando a ilegalidade do documento e o

desconhecimento do processo de renovação do Ensino Religioso no Brasil:

[...] o encaminhamento da proposta de Ensino Religioso acordada entre o Governo Brasileiro e a Santa Sé não contempla os Princípios e Fins da Educação Nacional, ao propor a oferta de segmentar os conhecimentos religiosos segundo cada denominação religiosa, quando a LDBEN nº. 9.394/1996 prescreve que o ensino será

25

Cf. FÓRUM NACIONAL PERMANENTE DO ENSINO RELIGIOSO. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Religioso. São Paulo, SP: Ave Maria, 1997.

26 BRASIL, República Federativa do. Acordo Entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé

relativo ao estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil. Art. 11, § 1º de 13 de novembro de 2008. Disponível na Internet. http://www.mre.gov.br/portugues/imprensa/nota_detalhe3.asp?ID_RELEASE=6031

19

ministrado com base em princípios, entre os quais se encontra “o pluralismo de idéias”27.

Na abertura do Ano Brasileiro do Ensino Religioso, iniciado em 15 de outubro

de 2009, diversas entidades organizadas da sociedade civil emitem uma circular que

aponta as contradições entre o Acordo Brasil-Santa Sé e a legislação brasileira:

A redação do Art. 11 do Acordo Brasil-Santa Sé propõe uma outra redação à Lei nº. 9.475 (artigo 33 da LDBEN 9.394/1996), sancionada pela Presidência da República em 22 de julho de 1997, cujo conteúdo sugere e encaminha uma outra concepção de Ensino Religioso e consequente organização curricular.

O § 1º do Art. 11 do Acordo, ao apresentar o Ensino Religioso como “católico e de outras confissões religiosas”, contrapõe o caput da Lei 9.475/1997, pois esta não orienta que o Ensino Religioso seja de uma e outra denominação religiosa. Em princípio, enquanto componente curricular, o Ensino Religioso deve atender à função social da escola, em consonância com a legislação do Estado Republicano Brasileiro, respeitando, acolhendo e valorizando as diferentes manifestações do fenômeno religioso no contexto escolar, a partir de uma abordagem pedagógica que estuda, pesquisa e reflete a diversidade cultural-religiosa brasileira, vedadas quaisquer formas de proselitismos28.

A carta denuncia outras contradições. A substituição do termo “proselitismo”

da Lei nº. 9.475/1997, pelo termo “discriminação” na redação do § 1º do Art. 11 do

Acordo contribui para a concepção de um Ensino Religioso confessional. O termo

“discriminação” se refere à exclusão ou restrição baseada em raça, descendência ou

origem e abre margem para a idéia de “tolerância”. Esse uso do termo permite um

Ensino Religioso centrado numa religião específica e que “tolere” outras expressões

religiosas. Já o termo “proselitismo” se refere ao ato deliberado de converter uma ou

mais pessoas a uma causa, idéia ou religião. O uso do termo “proselitismo” na lei

assegura um Ensino Religioso voltado para a diversidade cultural e religiosa em

consonância com os desafios contemporâneos de não se guiar por uma prática

proselitista e de estimular o conhecimento e o diálogo entre os diferentes.

A carta continua afirmando que é uma ilusão de democracia, igualdade ou de

diálogo inter-religioso assegurar que no espaço da escola pública os fiéis católicos

27

FÓRUM NACIONAL PERMANENTE DO ENSINO RELIGIOSO. Manifesto referente ao Acordo firmado entre Brasil e Santa Sé. Art. 3º, inciso III, Circular via e-mail, 13 de novembro de 2008.

28 FÓRUM NACIONAL PERMANENTE DO ENSINO RELIGIOSO et al. Carta aos professores do

ensino religioso. Circular via e-mail, 15 de outubro de 2009.

20

tenham um Ensino Religioso católico e que os fiéis “de outras confissões religiosas”

o tenham com seus semelhantes de fé.

A legislação brasileira tem avançado na direção da igualdade de direitos e

deveres da disciplina Ensino Religioso em relação às demais áreas de conhecimento

da Educação Básica. Os § 1º e § 2º da LDBEN 9.394/1996 legislam que “os

sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos

conteúdos do Ensino Religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e

admissão dos professores” e “ouvirão entidade civil constituída pelas diferentes

denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do Ensino Religioso”.

Estas determinações legais garantem assim a participação do conjunto de

denominações religiosas brasileiras constituídas em entidade civil junto aos

Sistemas de Ensino na elaboração de conteúdos a serem socializados com os

educandos do Ensino Fundamental. Sistemas de Ensino, Estados da federação,

Universidades e Entidades Civis de diversas denominações religiosas, de forma

coletiva, vêm definindo os conteúdos do Ensino Religioso e habilitando seus

professores em consonância com as diretrizes consolidadas pelo artigo 33 da

LDBEN nº. 9.394/1996. O artigo 11 do Acordo Brasil-Santa Sé representa um

retrocesso neste processo de consolidação de leis que assegurem a qualidade do

Ensino Religioso e a habilitação e a admissão de professores aptos à tarefa do

ensino numa sociedade democrática e diversa no aspecto religioso.

Estabelecida pela Lei nº 9.475/1997 e pela Resolução do Conselho Nacional

de Educação n° 2/1998 como área de conhecimento a partir da escola, a disciplina

Ensino Religioso, nos parâmetros do Acordo Brasil-Santa Sé, de caráter

confessional, passa ao domínio das confissões religiosas. Fere assim a própria lei

brasileira, que já se posicionou por um Ensino Religioso antropológico e plural, fere

também os Sistemas de Ensino e o seu papel de estabelecer normas para a

habilitação e admissão do corpo docente para o Ensino Religioso e coloca o

professor sob a tutela da autoridade religiosa. Inviabiliza o Ensino Religioso,

econômica e pedagogicamente, porque o Estado teria que ofertar uma educação

religiosa que contemplasse todas as religiões dos educandos em sala de aula. Desta

maneira o Acordo fere a Constituição Brasileira, que veda o pagamento de

honorários a serviços de cunho religioso confessional em lugares públicos.

21

As igrejas protestantes também questionam o Acordo Brasil-Santa Sé

alegando que o Acordo fere preceitos constitucionais como a separação entre

Estado e Igreja. Em carta pastoral emitida em 6 de fevereiro de 2009, Walter

Altmann, presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB),

entende legítimos e comuns acordos entre Estados. Mas “espera, na medida em que

o Acordo contenha direitos e prerrogativas para a Igreja Católica, que o governo

brasileiro os estenda, com naturalidade, às demais confissões, pois trata-se de

preceito constitucional que não pode ser ferido”. A IECLB avalia que as

conseqüências e repercussões do Acordo em relação ao Ensino Religioso nas

escolas públicas é um assunto que diz respeito não apenas à Igreja Católica, mas

também às demais igrejas. “Nesse sentido, lamentamos que o Acordo tenha sido

elaborado, negociado e, por fim, assinado, sem que tivesse havido uma troca de

idéias e um diálogo com outras confissões religiosas, bem como com a sociedade

em geral” 29.

Ao longo da história do Ensino Religioso no Brasil duas forças polarizam

desde cedo as discussões, a Igreja Católica, que não quer perder o seu espaço

majoritário no cenário nacional e no foro público, e a força dos “sinais dos tempos”,

cuja terminologia foi cunhada pela própria Igreja Católica no Concílio Vaticano II. É

curioso figurarem organismos oriundos da própria Igreja Católica dentre os que mais

contribuíram para uma formulação jurídica de cunho antropológico para o Ensino

Religioso no Brasil. Ao invés de desestimular, essa dialética motiva discussões

maduras para o desenvolvimento de leis e para a implementação de práticas que se

coadunem com as novas concepções do ser humano.

Embora cronologicamente a permanência das religiões indígenas em território

brasileiro tenha sido muitas vezes superior ao período subsequente à invasão

portuguesa, é a Igreja Católica que polariza a reflexão em torno do Ensino Religioso.

As demais confissões religiosas que formaram o rico e diversificado campo religioso

brasileiro, tais como as demais igrejas cristãs e as religiões de matriz africana e

indígena, foram literalmente excluídas das reflexões acerca do Ensino Religioso 29

IGREJA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO BRASIL. Carta pastoral referente ao Acordo Brasil – Vaticano. Porto Alegre: Circular IECLB nº 162444/09 de 16 de fevereiro de 2009. Disponível na Internet. http://www.luteranos.com.br/attachments/Documentos/20090206_Acordo_Brasil_Vaticano_REV_SB_MS-WA.pdf

22

durante a maior parte do tempo. Somente com a virada de paradigma que originou o

novo Ensino Religioso é que estas religiões começaram a figurar na reflexão. O

panorama da pluralidade religiosa contemporânea introduz também a contribuição

das religiões judaica, muçulmana e demais religiões orientais, nas reflexões em

torno do Ensino Religioso.

1.2 História que tem raízes

Para os objetivos desta pesquisa é imprescindível conhecer quais são,

justamente, essas matrizes religiosas que nutrem o espectro religioso brasileiro.

José Bittencourt Filho, em sua publicação intitulada MATRIZ RELIGIOSA

BRASILEIRA: Religiosidade e mudança social30, opta por uma abordagem

sociológica da religião ao considerar que as mutações religiosas estão

correlacionadas aos acontecimentos sociais numa relação dialética. Tal abordagem

ultrapassa os limites de nossa pesquisa, visto que almejamos apenas identificar o

substrato religioso que insiste em subsistir na cultura brasileira acima dos limites de

tempo e espaço e das determinações históricas. O estudo de Bittencourt nos ajuda

porque aponta para a idéia de que a matriz religiosa está fundada nos valores

profundos que se encontram e permanecem na dinâmica simbólica sacramental e se

cristalizaram no encontro de culturas e mundividências dos diversos povos que

formaram o Brasil. Para compreender a cosmovisão de nossa sociedade é preciso

conhecer quais são os sistemas de crenças religiosas que povoam o domínio

simbólico dessa cosmovisão. O foco não está na dimensão institucional das

religiões, mas sim na religiosidade entendida como as formas concretas,

espontâneas e variáveis por meio das quais a religião é vivenciada pelas pessoas e

pelos grupos, vinculadas a crenças, mitos e símbolos comumente carentes de maior

organização e sistematização31. Estas condutas religiosas, formas e estilos de

espiritualidade semelhantes, evidenciam a presença de um substrato religioso-

cultural que nosso autor denomina Matriz Religiosa Brasileira:

30

BITTENCOURT FILHO, José. Matriz religiosa brasileira: Religiosidade e mudança social. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Koinonia, 2003.

31 Cf. Ibid, pág. 68.

23

Esta expressão deve ser apreendida em seu sentido lato, isto é, como algo que busca traduzir uma complexa interação de idéias e símbolos religiosos que se amalgamaram num decurso multissecular, portanto, não se trata stricto sensu de uma categoria de definição, mas, de um objeto de estudo. Esse processo multissecular teve, como desdobramento principal, a gestação de uma mentalidade religiosa média dos brasileiros, uma representação coletiva que ultrapassa mesmo a situação de classe em que se econtrem. É oportuno sublinhar que essa mentalidade expandiu sua base social por meio de injunções incontroláveis, como soe acontecer com os conteúdos culturais, para, num determinado momento histórico, ser incorporada definitivamente ao inconsciente coletivo nacional, uma vez que já se incorporara, através de séculos, à prática religiosa32.

Um dos principais instrumentos por meio dos quais a matriz religiosa brasileira

pôde ser engendrada foi o sincretismo e a miscigenação. Na formação da

nacionalidade brasileira, vários elementos se fundiram num amálgama de

concepções que resultou na composição da matriz religiosa. Esse processo passou

por um período de sedimentação que durou vários séculos. Daí a importância de

recorrer à formação histórica da nacionalidade para compreender as raízes da

religiosidade brasileira. Inclino-me a colocar na base as religiões indígenas devido à

sua preeminência no tempo e no território brasileiro. Apesar do processo de

mestiçagem e em grande parte de extinção de costumes e crenças, essa

religiosidade ainda resiste nos recantos mais distantes da “civilização” ou mesmo

“mixada” nas mais variadas formas de religiosidade. Destaca-se o papel

preponderante do catolicismo ibérico e da magia européia trazidos pelos

conquistadores, o primeiro imposto e a segunda camuflada no próprio catolicismo

medieval que tanto a combateu. A escravidão trouxe a influência das religiões

africanas que se articularam num vasto sincretismo. No século XIX se consolida a

matriz religiosa brasileira com a entrada do kardecismo europeu e a influência do

catolicismo romanizado.

A Igreja católica estrategicamente assimilou essa religiosidade difusa a seu

favor, convivendo com as formas religiosas sincréticas. Desta maneira abarcou um

maior número de fiéis como “católicos” alcançados pelas práticas sacramentalistas.

A presença e a influência da matriz religiosa brasileira nunca representou um

problema a ser enfrentado pela Igreja Católica. No máximo representou uma

dificuldade a ser contornada sutilmente. O aggiornamento promovido pelo Concílio

32

BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 40-41.

24

Vaticano II exigiu uma fidelidade doutrinária, litúrgica e devocional mais explícita por

parte dos fiéis diante da inserção da modernidade. Esse quadro fez emergir a

problemática da matriz religiosa brasileira com o desagrado das massas de fiéis

católicos em relação ao mergulho na modernidade secularizada, na qual valores

matriciais arraigados, repentinamente, encontravam-se ameaçados. A solução foi

uma revalorização da religiosidade popular como a mais rica e original produção

cultural da civilização brasileira. A criação da identidade das comunidades arcaicas

sempre se deu por meio de mediações simbólicas capazes de manter o vínculo com

as entidades ancestrais que lhes deram origem. Esse mecanismo é o mesmo da

dinâmica sacramental, que traz para o presente o fato fundador original, por

intermédio dos ritos e das festas de caráter religioso33.

Já o protestantismo histórico rechaçou num primeiro momento os valores

religiosos identificados com a matriz religiosa brasileira identificando-os com o mal, o

pecado e a heresia. Essa rejeição tornou-se um elemento constitutivo da identidade

evangélica brasileira e enriqueceu seu discurso apologético anticatólico. Desta

maneira contribuiu para fixar a matriz religiosa brasileira ainda mais no plano do

inconsciente, permanecendo ali intocados até eclodir nas diversas modalidades de

carismatismo que levaram a profundas divisões internas nas denominações

tradicionais a partir dos anos 1960. A religiosidade matricial foi reprocessada pelos

pentecostalismos dentro de sua cosmovisão, discriminando e classificando aquilo

que do senso comum pertenceria ao domínio de Deus e aquilo que se situaria na

jurisdição do Diabo.

Bittencourt Filho conclui que o sucesso de uma religião no campo religioso

brasileiro depende de seu comprometimento explícito com a matriz religiosa

brasileira. Conseqüentemente, o distanciamento da matriz religiosa brasileira tem

como resultado o esvaziamento de uma proposta religiosa, como se verifica no atual

contexto de crise de identidade do catolicismo tradicionalista, bem como das igrejas

protestantes históricas34.

33

Cf. TABORDA, Francisco. Sacramento, Práxis e Festa: Para uma teologia latino-americana dos sacramentos. Petrópolis: Vozes, 1994.

34 BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 44.

25

Há um movimento de relativa homogeneização do pluralismo religioso no

Brasil, que não se confunde com o monopólio católico35. O fator preponderante

dessa homogeneização é a crença nas presenças sobrenaturais. A matriz religiosa

brasileira que transita pelo inconsciente das pessoas é o resultado do encontro de

cosmovisões indígenas, européias e africanas, cosmovisões estas marcadas pelas

presenças sobrenaturais.

A maior parte da população do século XVI europeu era formada por massas

de analfabetos, enquanto algumas importantes cortes cultivavam as letras e as

artes. Essas massas tinham uma visão mágica do mundo impregnado de

ingredientes folclóricos. A cultura religiosa católica apenas conseguiu encobrir com

um verniz superficial as divindades pagãs. Os sacramentos da Igreja Católica eram

associados aos gestos, símbolos e objetos mágicos remetidos consciente e

inconscientemente a antigas crenças pré-cristãs. Trata-se do período histórico onde

as massas estiveram mais propensas a acreditar. Havia um consenso da fé. A

condição das maiorias, expostas às intempéries da natureza, às epidemias, à fome e

à falta de instrução, propiciou a inexistência de uma fronteira entre os domínios

natural e sobrenatural. O imaginário europeu era povoado pela existência de

paraísos terrestres de paz e prosperidade e de terras habitadas por monstros e

criaturas demoníacas.

Essa cosmovisão importada pelos conquistadores europeus para o Novo

Mundo foi um dos fatores que justificou a escravidão dos nativos, tidos como

criaturas semidemoníacas, carentes de conversão, argumento que justificou

concomitantemente a cristianização. As tradições européias acabaram fundindo-se

às multisseculares tradições indígenas e africanas e encontraram nelas terreno fértil

para alimentar as concepções mágicas do mundo. O catolicismo da cristandade

imposta adquiriu contornos excêntricos em relação à ortodoxia romana. O

catolicismo brasileiro, formado por negros, mulatos e índios, com a peculiaridade de

ser organizado sob o controle do proprietário e chefe de família, possibilitou

exercícios autônomos de criatividade religiosa. Um elemento de destaque é o culto

aos santos como mediadores na religiosidade católica popular e a devoção comum

aos antepassados nas religiosidades indígena e africana, facilitando desde cedo a

combinação de concepções similares. Os indígenas e africanos não tiveram

35

BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 230.

26

dificuldades em incorporar a cosmovisão religiosa do catolicismo ibérico medieval

porque acreditavam numa ligação direta entre o mundo espiritual, o mundo natural e

o cotidiano. Para eles as forças da natureza eram presididas por espíritos superiores

e personagens míticos. Nessa cosmovisão o ser humano estava imerso num mundo

sobrecarregado de mistério. Nessa sociedade colonial, tipicamente agrária, as festas

religiosas continham elementos ancestrais de cultos ligados às forças da natureza e

restauravam a confiança para vencer os muitos obstáculos da existência num

ambiente hostil.

O indígena era concebido, pelos missionários católicos, como uma tabula

rasa carente da evangelização. Simultaneamente, o catolicismo dos missionários era

reformulado pela influência de elementos indígenas incorporados pelos próprios

catequistas para tornar crível o cristianismo para os nativos. Os africanos realizaram

um vasto e complexo processo sincrético, acolhendo conteúdos análogos das

religiões indígenas e camuflando suas crenças por meio da justaposição dos orixás

com os santos católicos. Desta forma evitavam confrontos diretos com os senhores

que não lhes permitiam a prática de sua religião. Essas sínteses sincréticas

resultaram numa inédita experiência religiosa que fundou as bases da cultura e

religiosidade brasileira. Somente no século XIX a entrada do espiritismo kardecista

completou o caldo cultural que traçou com mais clareza o perfil da religiosidade

média dos brasileiros.

Uma das características da matriz religiosa brasileira que mais intriga os

pesquisadores é a coexistência das mais variadas concepções religiosas numa

única pessoa. É um fato que ultrapassa o sincretismo:

O que chama a atenção na religiosidade brasileira média, como já assinalamos, é a coexistência numa só pessoa de concepções religiosas, filosóficas e doutrinárias por vezes opostas e mesmo racionalmente inconciliáveis. Por sinal, em nossa avaliação, a acomodação desses elementos simbólicos variegados e até contraditórios seria uma das atribuições fundamentais da Matriz Religiosa Brasileira, o que ultrapassa o processo sincrético e plasma uma autêntica religiosidade, aquela que chamamos de Religiosidade Matricial36.

Religiosidade matricial é o substrato da matriz religiosa brasileira. Trata-se do

sistema de crenças desenvolvido pelas camadas populares de maneira singular, que

36

BITTENCOURT FILHO, 2003, p.68.

27

ultrapassa as fronteiras confessionais e as filiações religiosas. Essa criatividade no

âmbito da religiosidade popular propiciou a reapropriação, a reinterpretação e a

reinvenção de conteúdos pertencentes aos sistemas religiosos institucionalizados.

Ao mesmo tempo, seja de maneira natural ou como uma estratégia para abarcar

adeptos, os sistemas religiosos institucionalizados se apropriam de elementos

próprios da religiosidade popular.

A religiosidade matricial está presente na alma dos brasileiros pelas trilhas da

memória inconsciente, da intuição, da emoção e do afeto. É uma experiência

religiosa não estritamente racionalizada que transcende as elucubrações teológicas

e sistematizações oficiais das religiões. Neste âmbito, Bittencourt Filho afirma que “a

Matriz Religiosa Brasileira enseja e a Religiosidade Matricial ratifica o êxtase

religioso, como uma espécie de ápice da experiência direta com o sagrado”37. O

êxtase religioso faz parte da mundividência religiosa das maiorias no Brasil. Milhões

de brasileiros entregam-se diariamente a êxtases místicos e a outras formas de

arrebatamento religioso e de possessão pelas divindades, espíritos e forças

sobrenaturais. Ao mesmo tempo, outra grande parcela da população que não

participa das possessões, acredita piamente na possibilidade, na necessidade e na

naturalidade destas práticas, independentemente da religião que dizem professar,

ou mesmo não professando nenhuma. O fenômeno atual da procura intensa por

experiências religiosas, independente da necessidade de pertença formal a qualquer

religião, demonstrado também pelo fato das identidades flutuantes38, corrobora a

existência de uma relativa homogeneização da matriz religiosa brasileira nesta

busca pelo êxtase ou pelo transe com toda a sua carga emocional e sentimental, em

torno das presenças sobrenaturais.

Por essa razão, nossa análise dos produtos audiovisuais utilizados pelos

professores do Ensino Religioso nas escolas públicas e privadas do Brasil,

privilegiará a capacidade destas obras cinéticas veicular e despertar na audiência

essas experiências fundantes da matriz religiosa brasileira e da religiosidade

matricial que dela decorre. Em consonância com as deliberações da legislação 37

BITTENCOURT, 2003, p. 72.

38 O conceito de “identidades flutuantes” se refere à identidade própria do indivíduo pós-moderno,

marcada pela liberdade relativamente autônoma de escolhas subjetivas, em meio ao convívio pluralista da religiosidade contemporânea, resultando numa indefinição do trânsito religioso. Cf. LAIN, Vandereli. Religião e pós-modernidade. In: LAIN, Vanderlei (Org.). Mosaico Religioso: Faces do Sagrado. Recife: Fasa, 2009. p. 25-43.

28

brasileira para o Ensino Religioso, o foco da reflexão não é a veiculação de

conteúdos doutrinais dos sistemas religiosos institucionalizados, e sim a rica

diversidade religiosa que compõe e dá sentido à religiosidade brasileira. A escolha

metodológica pelo referencial teórico da Transdisciplinaridade possibilita uma

abordagem que coaduna com a pluralidade religiosa brasileira, consciente dos níveis

de complexidade para a intelecção do fenômeno religioso brasileiro. A busca de uma

metodologia para o uso do vídeo na educação religiosa se apresenta como uma

possibilidade de despertar no educando a experiência espiritual, aqui entendida

como experiência religiosa matricial, num nível de realidade que transcende as

barreiras de crença ou confissão religiosa. Para alcançar esse objetivo é preciso

perceber como o fenômeno religioso é estudado no campo das ciências e quais

referenciais epistemológicos ajudam a conhecer como nosso corpo assimila os

conteúdos audiovisuais e reage a eles, bem como os especialistas da imagem e do

som desenvolvem as teorias de comunicação cinética e as aplicam em suas

produções.

29

2 O SAGRADO E O AUDIOVISUAL

2.1 Uma epistemologia do sagrado

Qualquer estudo no campo das Ciências da Religião deve considerar o seu

desenvolvimento como ciência e quais referenciais epistemológicos essa área do

conhecimento apresenta. Somente assim o pesquisador poderá escolher um ou

mais referenciais teóricos que se adequem melhor ao seu objeto de estudo.

Tradicionalmente o estudo da religião não constituía objeto de uma pesquisa

autônoma. Pertencia ao domínio da teologia e era concebido a partir da etimologia

do termo religio (de religare) como o vínculo que une o homem a Deus39. Neste

contexto, presente nos tratados de teologia fundamental, o estudo da religião estava

vinculado ao conhecimento do cristianismo, que era visto como a superação de

todas as religiões. O entendimento da religião era atrelado ao entendimento do

cristianismo e dele dependia. O estudo da religião e das religiões começa a se

emancipar através de estudos filológicos, etnológicos e da pesquisa histórica que se

interessam pelo fenômeno religioso. Pesquisadores da segunda metade do século

XIX se voltam para estudos antropológicos e procuram sistematizar, através da

comparação, análise e interpretação, os conhecimentos a respeito dos diferentes

povos e suas culturas, obtidos através da etnografia. Esses cientistas consideram o

“religioso” como de sua competência na medida em que têm como objeto de estudo

o homem e a sociedade.

A religião passa a ser objeto de estudo de outras disciplinas ligadas às

ciências humanas, como a sociologia, a psicologia e a antropologia cultural. Esse foi

um grande passo para a constituição das Ciências da Religião. Porém, esses

estudos não têm como objeto a religião em si, e sim a natureza da relação entre a

religião e a sociedade. Suas conclusões em relação à religião são determinadas por

sua função na estruturação da sociedade.

Com o intuito de compreender melhor nossa civilização e seus costumes, a

antropologia cultural desenvolve pesquisas junto às sociedades chamadas

“primitivas” e chega à conclusão de que tais sociedades precisam de grandes

39

Cf. TERRIN, Aldo Natale. Introdução ao estudo comparado das religiões. São Paulo: Paulinas, 2003.

30

símbolos para sobreviver. Esses símbolos são oferecidos pela religião e a relação da

religião com a sociedade ajuda o homem a encontrar esquemas ideais de

comportamento. Esse esquema fundamental é chamado de funcionalista porque vê

a religião em função de um papel na sociedade. Salienta o aspecto instrumental da

religião sem aprofundar o seu caráter de significado e valor de verdade. Nesse

esquema não há uma separação entre a religião e a sociedade. O autor

paradigmático dessa concepção é Émile Durkeheim, fundador da escola francesa de

sociologia. Na sua obra “As formas elementares da vida religiosa”40, de 1912, ele

parte do pressuposto do totemismo como religião elementar dos povos primitivos

para chegar à conclusão de que a religião é o mito que a sociedade faz de si

mesma, ou seja, que a religião e a sociedade são uma coisa só.

A sociologia da religião, inaugurada por Marx, Durkheim e Weber, se propõe a

entender as práticas sociais e vê a religião como um dos fatores destas práticas.

Não se ocupa em especular sobre o seu significado. A sociologia não se pergunta

sobre a verdade da fé, mas procura analisar como a crença numa prática religiosa

incide sobre o fato social. Nasce no contexto das mudanças sociais e do

pensamento proporcionadas pelo florescimento do iluminismo na passagem do

século XVIII ao XIX. Há uma mudança na visão de mundo, que passa de uma

concepção fundada na autoridade religiosa e no pensamento mítico para uma visão

baseada na razão iluminada pela ciência. Grandes transformações no campo político

e econômico são ocasionadas pela Revolução Francesa e pelas inovações

tecnológicas que criam uma nova divisão do trabalho, gerando novas classes

sociais. Nessa nova concepção liberal da humanidade a figura do indivíduo aparece

como base do novo paradigma cartesiano para a interpretação do mundo. O

pensamento mítico e religioso é substituído pelo pensamento racional e a sociedade

passa por um processo crescente de secularização onde dogmas e verdades

eternas passam a ser questionáveis. Esse período histórico é chamado de

Modernidade. A Modernidade emerge, portanto, num inevitável conflito com o

paradigma religioso de até então. E a sociologia se constitui o campo do saber que

confina a religião em seu corpus e assume uma postura autônoma em relação à

autoridade religiosa. Esse papel crítico da sociologia não se manifesta somente em

40

Cf. DURKEHEIM, Emile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

31

relação à religião, mas tem se manifestado também em relação à crítica da própria

Modernidade41.

Os autores clássicos da sociologia tiveram abordagens diferentes da religião,

embora concordassem que a religião era um elemento essencial para a

compreensão da sociedade. Os três autores, Marx, Durkheim e Weber, vêem a

religião como um importante elemento na construção dos laços sociais, embora em

graus diferentes. Marx foi o primeiro dos três a tratar da religião em sua reflexão em

torno da sociedade, na segunda metade do século XIX. Para ele a religião é uma

realidade histórica dependente do desenvolvimento das condições materiais de vida

e da consciência dos indivíduos.

Marx destaca a função ideológica da religião. A religião tem a função de ser o

suporte dos sistemas de poder e opera como ideologia dominante42. A crítica da

religião desenvolvida por Marx não deve ser compreendida, como ingenuamente se

tem compreendido, sem considerar sua crítica da cultura histórica em geral e dos

processos econômicos em particular. É uma crítica materialista à história das

sociedades, que é marcada pela luta de classes e tem como alvo as concepções

idealistas de interpretação da realidade. A sua crítica está enraizada na

compreensão da religião como um fator de alienação e legitimação da sociedade.43

A religião oculta o real e as relações de exploração e de dominação social. É o

reflexo da condição alienada da humanidade nas sociedades capitalistas.

Diferentemente de Durkheim e Weber, para os quais a religião tem um papel

permanente na sociedade, Marx acredita que a religião desaparecerá com a

evolução dos processos históricos e das consciências individuais44. A religião

desaparecerá na medida em que o processo de desalienação acontecer. E isto

ocorrerá na medida em que for instaurado um novo modo de produção e de relações

sociais que Marx chama de socialismo. Neste estágio, a consciência humana estará

livre da necessidade da religião. Marx utiliza uma metodologia materialista dialética

41

Cf. GIDDENS, Anthony. Em defesa da sociologia: Ensaios, interpretações e tréplicas. São Paulo: UNESP, 2001. p. 97-113.

42 Cf. MILBANK, John. Teologia e teoria social. São Paulo: Loyola, 1995. p. 239.

43 Cf. ENGELS, Friedrich; MARX, Karl; BADIA, Gilbert; BANGE, P; BOTTIGELLI, Emile (Sel.) Karl

Marx e Friedrich Engels sobre a religião. 2.ed. Lisboa: Ed.70, 1972. 44

Cf. NUNES, Maria J. R. A sociologia da religião. In: USARSKI, Frank (Org.). O espectro disciplinar da Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2007. p. 97-119.

32

que o leva a conceber a sociedade de maneira dualista como infraestrutura e

superestrutura. A religião está como superestrutura da sociedade. A infraestrutura é

que determina a superestrutura. Então, a religião é uma criação do homem, que cria

abstrações que legitimam estruturas de poder na sociedade45. Segundo Milbank,

Marx coloca a religião num paralelismo tal com a economia que:

Os dois processos de desenvolvimento determinado, religioso e econômico, seguem num paralelo preciso, culminando no cristianismo como a religião mais „abstrata‟ e sem conteúdo, e no capitalismo como a economia mais regulada pela „não-realidade‟ do valor46.

A crítica da religião feita por Marx desemboca também num reducionismo em

que a religião é concebida em função de sua análise do capitalismo.

Para Durkheim, a religião tem um papel fundamental de coesão social. Ele

procura identificar as formas mais elementares da religião para encontrar uma

definição adequada que possa incluir todas as religiões. Busca, então, nas formas

mais simples, os elementos que lhe servem de fundamento e os encontra nas

sociedades tribais australianas. Ele define a religião com base em duas

características presentes em todas as religiões em suas evoluções históricas, os

símbolos, ritos e crenças comuns a uma coletividade e a dimensão comunitária,

expressa na noção de “igreja”47. Durkheim elabora o conceito de efervescência

coletiva como fator essencial para a coesão social, no qual a religião tem um papel

preponderante. A religião é a condição de possibilidade da existência da sociedade

e, por isso, nunca desaparecerá, como preconizou Marx. Mesmo que as formas

tradicionais de religião desapareçam, a sociedade encontrará novos símbolos

religiosos. A religião sempre tem uma função social a cumprir. Também Durkheim

instrumentaliza a religião ao identificá-la com a sociedade e reduzi-la à sua função

social.

Weber vê religiões como uma espécie particular de agir coletivo capaz de

influenciar os processos históricos. Não coloca o foco nas elocubrações sobre o

significado da religião, mas dedica-se a compreender a sua relação com a sociedade

como contingente e variável, dependente dos processos sociais. Analisa como as

45

Cf. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 9. ed. São Paulo: Difel, 1984.

46 MILBANK, 1995, p. 240.

47 Cf. DURKHEIM, 1996, Cap. I.

33

concepções de mundo influenciam as organizações e os comportamentos

individuais. Como as imagens religiosas do mundo se interrelacionam com as

possibilidades de mudança social. Na sua análise do advento do capitalismo ele

constata que o protestantismo ascético puritano teve um papel significativo48. O

protestantismo formou a base de valores que possibilitou o desenvolvimento do

capitalismo. A atitude religiosa do protestantismo em relação ao sucesso material faz

com que a vida cotidiana e o trabalho sejam organizados como garantia da

salvação. Trata-se de uma racionalização do cotidiano que se torna possível com a

ascese puritana, uma ética do trabalho que encontra sua primeira expressão no

cumprimento das tarefas profissionais exigidas pela lei da natureza49. Talvez esta

seja a maior contribuição de Weber para a sociologia da religião, a orientação para

uma investigação da religião a partir da ascese intramundana. Há uma clara relação

intrínseca entre essa atitude religiosa e o comportamento econômico capitalista.

Weber leva sua reflexão a uma crítica à idéia de “progresso” gerada pelo processo

racionalizador da sociedade. Para ele a sociedade capitalista nos encerrará numa

“gaiola de ferro” da racionalização excessiva e fria50. Weber se distingue de Marx e

Durkheim ao colocar a força na subjetividade, nos comportamentos individuais

motivados por valores, e na objetividade da estrutura social, no sentido histórico das

ações, na dinâmica das instituições. Ele não percebe apenas o papel de legitimação

do poder social da religião, mas também se pergunta sobre as motivações religiosas

que levam a rupturas com o modo de vida vigente da sociedade.

Os três autores clássicos da sociologia da religião orientam suas pesquisas

para a investigação da religião em função do seu papel na sociedade. A crítica recai

sobre o uso de suas conclusões com a pretensão de abarcar o fenômeno religioso

como um todo. O pesquisador da religio pode utilizar a sociologia para suas

investigações, mas não deve considerar esta abordagem como absoluta.

O mesmo acontece se tomarmos como critério epistemológico autores ligados

à psicologia da religião. As abordagens da religião feitas pelos fundadores da

psicologia, Sigmund Freud e Carl Gustav Jung, cada um a seu modo, identificam a

48

Cf. WEBER, Marx. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

49 Cf. MOTTA, Roberto. Notas para a leitura de “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”.

Estudos de Sociologia. Recife: UFPE, v. 1, n. 2, p. 65-83.

50 Cf. NUNES, 2007, p. 108

34

religião com o objeto de seus interesses, a psique. Enquanto Freud compreende a

religião no labirinto escuro do inconsciente, seu herdeiro intelectual, Jung, que mais

tarde rompe com o mestre, empresta à religião um papel importante na constituição

do self51. Ao campo da psicologia da religião compete o estudo dos aspectos mais

pessoais, experienciais e criativos do ser humano questionado pelo sentido último

das coisas. Enquanto a sociologia da religião dirige seu olhar para o sagrado que

aparece na sociedade, a psicologia da religião encontra os símbolos religiosos na

interioridade do ser humano.

Para Freud, os símbolos religiosos são fragmentos irônicos, disfarçados, da

infância não-resolvida, que representam a dependência do ego.52 Para Jung a

racionalidade unilateral não é o ponto final da evolução do ego, pois concebe a

integração do self como uma meta importante. Desta maneira Jung vê os símbolos

religiosos também como mediadores positivos entre o ego e uma parte mais

profunda do self, como agentes ativos de mudança psicológica e recentramento que

contribuem para uma emergente e mais abrangente autoconsciência do ego. Desta

maneira, os símbolos religiosos representam projeções de transcendência do ego.

A grande contribuição da psicologia da religião, especificamente da psicologia

jungiana53, é fornecer uma conexão sistemática entre tipos de caminhos religiosos e

tipos de processos psicológicos54. Na cultura pós-religiosa, científica e individualista

da virada do século XIX para o século XX, herdeira da cultura judaico-cristã, a

psicologia da religião jungiana traduziu a religião em psicologia.

Pelo menos o self, a psique, é real. Se os espíritos não estão lá fora, pelo menos estão aqui dentro. A religião é tão real quanto as realidades psicológicas que ela representa.55

A tradução jungiana da religião deu validade psicológica aos símbolos

religiosos e fornece, assim como outras áreas do saber, uma estrutura para analisar

a religião onde a psique é o amplo referente. Como nas abordagens sociológicas da

religião, a psicologia da religião examina os dados religiosos a partir de diferentes

51

Cf. PADEN, William E. Interpretando o sagrado. São Paulo: Paulinas, 2001. p. 91-121.

52 Cf. Ibid., p. 93.

53 Cf. JUNG, Karl Gustav. Psicologia e religião. Petrópolis: Vozes, 1995.

54 Cf. Ibid., Resposta a Jó. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

55 Cf. PADEN, op. cit., p. 117.

35

olhares, agora voltados para a interioridade do ser humano. Embora reducionistas

ao identificar a religião com o objeto de suas investigações, as abordagens

sociológicas e psicológicas oferecem olhares importantes para a pesquisa das

religiões. O cuidado é não considerar esta ou aquela a única abordagem capaz de

esgotar a realidade em torno do fenômeno religioso.

Outras áreas do saber também contribuíram para a reflexão no campo das

ciências da religião, como a filosofia da religião, a teologia e a história comparada

das religiões. Desta última derivou a fenomenologia da religião, que dá um passo

maior na constituição do campo epistemológico das ciências da religião, ao se

perguntar pelos conteúdos e valores profundos da religião. A fenomenologia da

religião coloca o seu foco na confrontação dos grandes temas religiosos com base

na compreensão e na participação no mundo das religiões. Na sua metodologia, que

é atribuída a R. Otto e à sua obra “O sagrado”56 de 1917, procura valorizar a

experiência religiosa:

Seu pressuposto fundamental está em querer manter a religião no plano de uma experiência vivida (grifo do autor), não a reduzindo a um simples objeto de estudo, e sim, ao contrário, favorecendo a experiência religiosa que cada religião é capaz de transmitir, por ser vivida por uma comunidade e ser parte essencial do modo de sentir e de entender do homem que crê57.

A fenomenologia da religião resguarda a autonomia e a especificidade da

religião e da experiência religiosa diante das tendências reducionistas. O

fenomenólogo da religião tem a convicção de que é possível alcançar os valores

profundos das religiões e captar a sua verdade, porque essa metodologia lhe

permite um esforço de identificação com aquele que crê.

Neste ponto se faz a crítica à fenomenologia da religião. Por estar demasiado

comprometida com o sentido e o valor da experiência religiosa, a fenomenologia da

religião não teria mais condições de fazer ciência. Porém, essa objeção é

questionada pela própria ciência que se pergunta sobre a possibilidade de uma

relação com o objeto de estudo que não implique em um pressuposto que antecipe e

oriente o sentido da pesquisa científica58. Outra objeção à fenomenologia da religião

56

OTTO, Rudolf. O sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992.

57 TERRIN, 2003, p.23.

58 Cf. Ibid., p. 24.

36

parte da própria história comparada que vê com dificuldade a redução da

diversidade de religiões a uma única expressão de sentido. A fenomenologia, no

entanto, tem consciência da variedade de religiões, mas acredita que a experiência

religiosa pode ser captada num sentido comum a todas as expressões religiosas.

Também há a crítica da concepção atemporal da fenomenologia da religião ao não

considerar o desenvolvimento dos fenômenos religiosos no tempo e não estudar o

ambiente histórico em que surgem as religiões. Desta maneira a fenomenologia da

religião deixa em aberto a dimensão histórica dos fatos. A fenomenologia não pode

desconsiderar a história para não correr o risco de cometer arbitrariedades na sua

busca de sentido dos fenômenos religiosos59.

O meio científico vive um momento novo, uma verdadeira revolução, iniciada

particularmente pela física e a biologia. As recentes descobertas destas ciências

colocaram em cheque a visão de mundo da ciência moderna, focada na idéia de

uma separação total entre o indivíduo conhecedor e a realidade, tida como

completamente independente do indivíduo que a observa e no estabelecimento de

postulados fundamentais deterministas que geraram teorias e ideologias

mecanicistas e materialistas da realidade. A ciência moderna, apoiada na existência

de leis universais e de caráter matemático, instaurou o paradigma da simplicidade60,

solidificado na compreensão de mundo da física clássica, fundamentada nas idéias

de continuidade, causalidade local e determinismo.

Barsarab Niculescu61, físico que busca lógicas alternativas para a

compreensão da natureza, percebe o redutivismo da física clássica ao conceber a

realidade. Ele afirma que a redução do funcionamento do universo ao de uma

máquina perfeitamente regulada e previsível levou a ciência moderna a descartar

todos os outros níveis de realidade e de percepção. Para a ciência moderna o

universo precisaria ser dessacralizado para ser conquistado. Todos os demais níveis

59

Cf. TERRIN, 2003, p. 24-26.

60 Para Edigard Morin, o “paradigma da simplicidade” é a concepção determinista e mecânica do

mundo, característica do pensamento científico clássico. É um princípio de organização do pensamento que separa campos do conhecimento tais como a física, a biologia e as chamadas ciências humanas, resultando numa especialização disciplinar, evidenciando a idéia de um saber parcelado. Esta noção de separabilidade, formulada por Descartes, é fundamental para o conhecimento científico moderno, que concebe o estudo do fenômeno a partir da redução do complexo ao simples. Cf. MORIN, Edgard. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005.

61 Cf. NICOLESCU, 2002.

37

de conhecimento da natureza e do ser humano não cabiam nesta concepção de

ciência e foram taxados de irracionais ou supersticiosos.

As recentes descobertas da física quântica, iniciadas no século XX, buscaram

derrubar os pressupostos da ciência moderna. Essa revolução científica abriu a

possibilidade de diálogo com áreas do conhecimento que eram rotuladas como não-

científicas. Conceitos como a não-separabilidade entre o sujeito e o objeto e o

conceito de indeterminismo no nível subatômico levaram os cientistas a questionar a

existência de apenas um nível de realidade e a propor que há diferentes níveis na

natureza (escalas subatômicas e macroscópicas, o infinitamente pequeno e o

infinitamente grande, por exemplo) que são regidos por leis diferentes. Diante do

paradigma da simplicidade da física clássica aparece a idéia de complexidade do

real, não entendida como sinônimo de complicação, mas como uma concepção

integral da complexidade de relações que compõe a Realidade62.

Essa nova concepção do real se espalhou para a sociedade e encontrou

respaldo nas ciências exatas, nas ciências humanas e nas artes. Levou a ciência a

questionar o nível da interdisciplinaridade e buscar superá-lo no nível da

Transdisciplinaridade. A ciência é motivada a um novo diálogo, que ultrapassa o

nível das disciplinas e as impele a considerar o que está entre, através e além delas

mesmas. O sagrado, excluído até então do meio acadêmico, tido pela ciência

moderna como categoria secundária, fruto de desejos humanos reprimidos e não

realizados, “passa a retomar seu devido lugar no espaço acadêmico de reflexão, não

apenas restrito ao âmbito das Ciências da Religião, mas de maneira geral

promovendo um diálogo na complexidade da Realidade”63. A Transdisciplinaridade

se firma como referencial de conhecimento e alicerça suas bases metodológicas nos

pilares da complexidade64, da concepção de diversos níveis de Realidade65 e da

lógica da inclusão ou do terceiro incluído66.

62

Cf. MORIN, 2005.

63 BERNI, 2005.

64 Cf. MORIN, op. cit.

65 Cf. NICOLESCU, 2002. p. 45.

66 Cf. LUPASCO, Stéphane; MAILLY-NESLE, Solange; NICOLESCU, Basarab. O homem e as suas

três éticas. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.

38

O referencial epistemológico da Transdisciplinaridade se apresenta como uma

oportunidade para as Ciências da Religião no que concerne ao pluralismo de seu

objeto de estudo, o fato religioso. Seus pilares conceituais possibilitam uma análise

mais integral do fenômeno religioso, ao considerá-lo na sua complexidade; além de

conceber a possibilidade de diálogo de concepções consideradas irreconciliáveis

num nível superficial de abordagem, mas que podem dialogar em outros níveis de

Realidade. Da mesma maneira, o referencial epistemológico da

Transdisciplinaridade é fundamental para a pesquisa em torno dos subsídios

audiovisuais para o Ensino Religioso, porque se trata de um objeto de estudo que

pode ser classificado em um outro nível de Realidade, o da a linguagem cinética,

que possibilita uma outra abordagem do fenômeno religioso, onde a experiência

religiosa é mediada pela eletrônica.

Figura n. 1 - Abordagem transdisciplinar da natureza e do conhecimento. Fonte: NICOLESCU, 2002.

39

Nicolescu nos mostra como a abordagem transdisciplinar pode conduzir a

uma fundamentação metodológica para o estudo transcultural e transreligioso.67 Ele

apresenta o diagrama da Figura 1 para descrever a abordagem transdisciplinar da

natureza e do conhecimento. A parte esquerda representa, simbolicamente, os

níveis de Realidade (NRn, ..., NR2, NR1, NR0, NR-1, NR-2, ... , NR-n) onde o índice n

pode ser finito ou infinito. Não é por acaso que, juntamente com o autor, utilizo o

termo Realidade com o R maiúsculo. Realidade difere do Real. O Real designa

aquilo que é, enquanto Realidade diz respeito à parcela do Real captada na nossa

experiência humana. O Real está velado para sempre, enquanto a Realidade é

acessível ao nosso conhecimento.

A abordagem transdisciplinar está apoiada na concepção de diversos níveis

de Realidade. Os diversos níveis de Realidade coexistem, mas se distinguem pela

quebra de leis e conceitos fundamentais nos seus diferentes níveis. Esta quebra é o

que determina a passagem de um nível ao outro. Por exemplo, as leis quânticas,

que determinam o nível subatômico, são radicalmente diferentes das leis do mundo

físico.

A lógica transdisciplinar opera de maneira diferente da lógica clássica, que

está fundamentada nos axiomas da identidade (A é A), da não-contradição (A não é

não-A), do terceiro excluído (não existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo

A e não-A). Na lógica transdisciplinar o axioma do terceiro incluído (existe um termo

T que é ao mesmo tempo A e não-A) conecta os níveis de Realidade adjacentes na

Figura 1.

Se permanecemos num único nível de Realidade, todo fenômeno se

manifesta como uma luta entre elementos contraditórios. Porém, em um outro nível

de Realidade, aquilo que percebemos como desunido está de fato unido e aquilo

que percebemos como contraditório é percebido como não contraditório. A dinâmica

do estado T na lógica transdiciplinar é representada por um triângulo de relações

onde um vértice está situado em um nível de Realidade e os dois outros em outro

nível de Realidade, como representado na Figura 2.

67

Cf. NICOLESCU, 2002, p. 47.

40

Figura n. 2 – Lógica do terceiro incluído. Fonte: NICOLESCU, 2002.

A lógica do terceiro incluído corrobora a existência de um fluxo de

informações transmitido de forma coerente entre os níveis de Realidade num

processo interativo que perpassa indefinidamente a todos os níveis conhecidos e

concebíveis. Há uma coerência da unidade dos níveis de Realidade, representada

pelas flechas associadas à transmissão de informações de um nível ao outro na

Figura 1. Se a coerência for limitada apenas a certos níveis de Realidade, ela se

interrompe nos níveis limítrofes do conhecimento. Nicolescu sugere que a unidade

dos níveis de Realidade se estende a uma zona de não resistência às nossas

experiências, representações, descrições, imagens e formulações. Essa zona de

não resistência corresponde ao véu do Real que se situa tanto no nível mais alto,

quanto no mais baixo da totalidade dos níveis de Realidade e estão unidos por uma

zona de transparência absoluta. Trata-se dos níveis que não são captados pela

limitação de nossos corpos com os seus órgãos sensoriais, nem pelas ferramentas

que utilizamos para estender esses órgãos sensoriais e medir a Realidade. Para

Nicolescu, essa zona de não resistência corresponde ao sagrado – àquilo que não

se submete a nenhuma racionalização.68

Nessa zona de transparência absoluta não há níveis de Realidade. É por isso

que os três loops de coerência do fluxo de informações da Figura 1 estão situados

apenas na zona em que não há níveis de Realidade, e esses fluxos perpassam

também entre os níveis de Realidade. Como afirma Nicolescu:

A zona de não resistência do sagrado penetra e cruza os níveis de Realidade. Em outras palavras, a abordagem transdisciplinar da Natureza e do conhecimento oferece uma ligação entre Real e Realidade.69

68

Cf. BIÈS, Jean. O caminho do sábio. São Paulo: Triom, 2001. p. 353.

69 Cf. NICOLESCU, 2002, p. 55

41

Desta maneira, o sagrado se manifesta justamente na relação entre a

Natureza e o conhecimento. Está naquilo que une e liga todos os níveis de

Realidade e os ultrapassa, numa zona de transparência absoluta, tanto de

transcendência quanto de imanência. Na visão transdisciplinar, a Realidade está

perpassada pelo sagrado, porém, o sagrado continua resguardado em sua zona de

transparência absoluta. Sem abandonar uma atitude científica, a

Transdisciplinaridade permite uma abordagem que integra o sagrado como aquilo

que perpassa e conecta a Natureza e o conhecimento.

O conhecimento humano tem acesso aos níveis de Realidade através dos

diferentes níveis de percepção. Na Figura 1 os níveis de percepção estão

representados à direita (NPn, ..., NP2, NP1, NP0, NP-1, NP-2, ... , NP-n). Através de

uma relação de correspondência com os níveis de Realidade, os níveis de

percepção permitem uma visão cada vez mais geral e unificadora da Realidade, sem

jamais esgotá-la completamente. Com os níveis de percepção ocorre o mesmo que

com os níveis de Realidade, há uma zona de não resistência à percepção. Nesta

zona não há níveis de percepção. Ao conjunto dos níveis de percepção e sua zona

de não resistência, Nicolescu dá o nome de Sujeito transdisciplinar.

A comunicação entre Sujeito e Objeto transdisciplinares só é possível quando

há correspondência entre os fluxos de consciência que passam entre os níveis de

percepção e os fluxos de informações que passam entre os níveis de Realidade. As

zonas de não resistência de ambas devem ser idênticas e os dois fluxos estão

interligados porque compartilham da mesma zona de resistência: “O conhecimento

não é nem exterior nem interior: é simultaneamente exterior e interior.”70 Mas os

fluxos de consciência não se confundem nem se misturam com os fluxos de

informação, porque a zona de não resistência executa o papel do terceiro

secretamente incluído que preserva a sua diferença, e ainda permite a unificação do

Sujeito transdisciplinar e do Objeto transdisciplinar. Este é o ponto “X” onde os arcos

de informação e consciência se encontram. É o termo de Interação entre o Sujeito e

o Objeto transdisciplinar, que não pode ser reduzido nem ao Sujeito nem ao Objeto.

Com a abordagem transdisciplinar da Natureza e do conhecimento, Nicolescu

propõe uma superação da divisão binária da metafísica moderna (Sujeito, Objeto) e

70

Cf. NICOLESCU, 2002, p. 56.

42

aponta para uma visão ternária (Sujeito, Objeto, Interação) que oferece uma base

metodológica para a transcultura e a transreligião.

Para os objetivos desta pesquisa em torno dos subsídios audiovisuais usados

pelos professores do Ensino Religioso, a Transdisciplinaridade oferece critérios

científicos para a análise dos operadores audiovisuais que aparecem justamente no

encontro dos fluxos de informações e de consciência que perpassam os diversos

níveis de Realidade e de percepção, que constituem a Realidade cinética, e o

Sujeito, o educando que frui estas mensagens. A comunicação audiovisual, vista sob

o prisma transdisciplinar, se dá em diversos níveis pelos quais passam informações

que são percebidas em diversos níveis de conhecimento, numa dinâmica que

possibilita o despertar do sagrado. A Figura 3 transpõe o diagrama de Nicolescu ao

fenômeno da comunicação audiovisual:

Figura n. 3 – Abordagem transdisciplinar do audiovisual

43

O Filme (Realidade cinética) constitui aqui o Objeto transdisciplinar. A

Realidade cinética é composta por diversos níveis de Realidade. Para os fins deste

estudo destaquei três níveis de Realidade: O nível de Realidade Eletrônica, o nível

de Realidade Audiovisual e o nível de Realidade Ficcional. O nível de Realidade

Eletrônica opera sob as leis da linguagem Eletrônica, que será estudada adiante. A

Eletrônica é o que possibilita a criação e a existência da Realidade cinética. É o nível

que possibilita a produção, montagem e exibição do produto audiovisual. Encontra-

se logo abaixo do nível Audiovisual porque possui um alto grau de imanência. O

nível Audiovisual é o nível imediato aos nossos sentidos. Por isso se situa no centro

do gráfico. É responsável pelas informações visuais e sonoras imediatas. Já o nível

Ficcional opera sob outras leis. Nele o espaço e o tempo não são medidos da

mesma maneira que no espaço-tempo natural, trata-se do espaço-tempo cinético.

Está acima do nível Audiovisual porque corresponde a um maior grau de

transcendência.

O Sujeito transdisciplinar (educando) é aquele que frui a mensagem cinética.

Ele corresponde aos níveis de percepção representados no lado direito da Figura 3.

Os níveis de percepção são também três: O nível Sensitivo, o nível Audiovisual e o

nível Imaginário. Eles correspondem aos níveis de Realidade representados no lado

esquerdo e seu grau de percepção da Realidade é também correlativo. Ao nível

mais inferior de Realidade Eletrônica corresponde o nível Sensitivo de percepção,

que é o nível mais imanente de percepção e opera sob as leis fisiológicas que regem

os sentidos. Ao nível de Realidade Audiovisual corresponde o nível de percepção

Audiovisual, aquele que percebe as primeiras impressões da mensagem audiovisual.

Já ao nível de Realidade Ficcional corresponde um nível de percepção superior ao

nível Audiovisual, o nível Imaginário, que se encontra num grau correspondente de

transcendência superior. É o nível de percepção Imaginário que possibilita perceber

as informações do nível de Realidade Ficcional, ou seja, que leva o Educando a

entrar dentro do Filme, a sentir-se parte da trama, a ponto de perder a noção de

espacialidade e temporalidade.

A linguagem característica destes níveis de Realidade e percepção será

abordada na segunda parte deste capítulo. Antes é preciso entender como a

abordagem transdisciplinar contribui para a percepção do sagrado que aparece nos

subsídios audiovisuais usados pelos professores do Ensino Religioso. Existe um

44

fluxo de informação, representado pelas flechas na Figura 3, que perpassa todos os

níveis de Realidade, responsável pela coerência da Realidade cinética. A este fluxo

de informação corresponde um fluxo de consciência que perpassa todos os níveis

de percepção do Sujeito Educando. Esses fluxos de informação e consciência

perpassam todos os níveis conhecidos e concebíveis e atingem uma zona de não

resistência à percepção, onde não existe nível de Realidade nem de percepção.

Essa zona transparente do Real é o âmbito do sagrado, representado pelos loops

nos fluxos de informação e consciência.

Os fluxos de informações e de consciência penetram e cruzam todos os

níveis de Realidade e de percepção nas direções de uma maior imanência e

transcendência através da zona de não resistência ao sagrado. É o que possibilita o

acesso ao sagrado nas produções cinéticas. A comunicação acontece na interseção

do fluxo de informações com o fluxo de percepção no ponto da Modulação (X), que é

o termo de interação entre o Filme e o Educando. Neste ponto, a zona de não

resistência ao sagrado de ambos são idênticas e os fluxos de informação e de

percepção compartilham da mesma zona de resistência, possibilitando a percepção

do sagrado através da experiência audiovisual.

Concepções que em apenas um nível aparecem como antagônicas, se

reconciliam num terceiro termo (T) situado em outro nível. A lógica do terceiro

incluído possibilita a reconciliação, por exemplo, de religiões, que num nível

imediato, no nível Audiovisual, parecem antagônicas. Estas mesmas religiões podem

se apresentar reconciliadas no nível Ficcional na Realidade cinética. Desta maneira,

a lógica do terceiro incluído contribui para uma abordagem do sagrado nas

produções audiovisuais que corresponda à riqueza da diversidade religiosa

brasileira. A abordagem transdisciplinar das produções audiovisuais usadas pelos

professores do Ensino Religioso ajuda a perceber como estas produções podem

contribuir para a percepção do sagrado no imaginário e na consciência dos

educandos, num nível mais experiencial que conceitual.

É imprescindível, tanto para aquele que produz o material audiovisual

(produtor, roteirista, diretor, equipe de produção e elenco), quanto para aquele que

utiliza este material para a educação religiosa (professor do Ensino Religioso),

conhecer e transitar nesta cultura do audiovisual. Os educandos já se encontram

imersos nesta linguagem e sua compreensão do Real é mediada por seus

45

caracteres. A comunicação somente será estabelecida se ambos falarem a mesma

linguagem. Faz-se necessário uma epistemologia da imagem que aprofunde a

dinâmica da linguagem na cultura audiovisual.

2.2 Uma epistemologia do audiovisual

Para os fins desta pesquisa de caráter religioso e audiovisual é imprescindível

o aporte das ciências da Comunicação. Como já foi dito, o audiovisual é capaz de

despertar o sagrado. A pergunta central é como essas produções audiovisuais estão

comunicando o sagrado. Parto do pressuposto de que a linguagem audiovisual é

capaz de comunicar o sentido profundo do sagrado, mas é preciso uma metodologia

adequada para a abordagem desta linguagem. O referencial epistemológico para a

análise audiovisual é a teoria da “Modulação” do pesquisador francês Pierre Babin71,

que se dedica à pesquisa em torno da comunicação e religião. A Modulação

desenvolve critérios epistemológicos para a abordagem da linguagem audiovisual

através do que o autor chama de “imersão”, “vibração” e “ground”. A “imersão” é a

capacidade da linguagem audiovisual realizar a comunicação através de um

envolvimento global. As imagens e sons são recebidos de maneira globalizante

pelos nossos sentidos e somos levados a fazer parte da cena representada, a

imergir na história, a participar, o que o autor chama de interatividade72. A “vibração”

trata do efeito que a linguagem audiovisual produz no público. Por predominar na

linguagem audiovisual o conhecimento sensorial e analógico, a comunicação

acontece pela via do prazer. Só entramos na dinâmica da comunicação cinética na

medida em que somos tocados pelas imagens e sons. O “ground” está relacionado

com a ambientação produzida pela mensagem audiovisual. Nesta linguagem o

ambiente influencia a figura em primeiro plano, dando novos sentidos à mensagem.

71

Cf. BABIN, 1993.

72 O conceito de “interatividade” é matizado por Pierre Lévy como um termo utilizado por diferentes

autores, mas que não é suficientemente explicado por eles. Para Lévy, há diferentes tipos de interatividade, desde a mensagem linear da imprensa, rádio, TV, cinema e conferências eletrônicas, até a mensagem participativa dos videogames e dos diversos dispositivos de comunicação em mundos virtuais envolvendo negociações contínuas. O que caracteriza a interatividade é a possibilidade crescente, com a evolução dos dispositivos técnicos, dos envolvidos na comunicação se tornarem, ao mesmo tempo, emissores e receptores da mensagem. Cf. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 2003.

46

A linguagem da Modulação é o ambiente ideal para fazer uma experiência

intensa, sensitiva e contemplativa do sagrado porque leva a pessoa a um outro nível

de envolvimento que ultrapassa o nível da razão instrumental para um outro nível de

experiência de conhecimento. É importante encontrar métodos para manter na

audiência esta experiência, para assimilá-la também no nível da intelecção. Pierre

Babin propõe uma nova pedagogia que module em “estéreo” 73, em que predominem

os dois canais, o dos sentidos e da afetividade, e o da abordagem conceitual;

abordagem intuitiva e abordagem dedutiva. Na cultura do audiovisual a educação

deve dar lugar aos dois modos de compreender, conjugando-os no tempo e nos

métodos. Estamos imersos numa nova cultura global onde:

O meio tecnológico moderno, em particular a invasão das mídias e o emprego de aparelhos eletrônicos na vida quotidiana, modela progressivamente um outro comportamento intelectual e afetivo.74

A expressão “meio tecnológico” é entendida, juntamente com Pierre Babin, no

sentido mais amplo que abrange desde os computadores pessoais conectados à

Internet de banda larga, passando pelas câmeras de segurança instaladas em

lugares públicos, até os aparelhos de telefonia celular móvel, em suma, toda

aparelhagem familiar que determina, simplifica e controla nosso dia-a-dia. Também

se inclui nesta expressão as grandes mídias, que transformaram nosso modo de

compreender e de comunicar. O meio tecnológico é uma rede imensa, cujas malhas,

muitas vezes invisíveis, determinam nossa vida, cujo deus, mais ou menos oculto,

chama-se “Eletrônica”.

As novas gerações estão imersas na nova cultura do audiovisual. O fato

constantemente constatado da dificuldade de adaptação aos novos recursos

tecnológicos por parte dos idosos, enquanto as crianças, na mais tenra idade,

dominam equipamentos eletrônicos de última geração, demonstra que existe uma

interpenetração de culturas. Nasceu uma nova cultura após vários anos de

impregnação de televisão, de cinema, de jogos eletrônicos e de uso de diferentes

aparelhos eletrônicos. Isto não significa que uma cultura esteja se sobrepondo à

outra, como erroneamente se interpretou Marshall McLuhan, como o profeta da

73

Cf. BABIN, Pierre; KOULOUMDJIAN, Marie-France. Os novos modos de compreender. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 13.

74 BABIN, 1989, p. 11.

47

morte do livro em contraposição à nova cultura audiovisual, em sua publicação A

galáxia de Gutemberg75.

Existem dois momentos de interpenetração das culturas, a cultura de

Gutemberg, dominada pelo paradigma da mecanização e da impressão tipográfica, e

a cultura audiovisual, dominada pelo paradigma da eletrônica. Essas culturas

primeiro passaram por um processo de “mixagem”, categoria extraída das mesas de

comando de mixagem das ilhas de edição de imagens e sons. “Quando a imagem

invade o texto do livro, deve-se falar de mixagem”76. Quando utilizamos slides e

projetamos nos aparelhos de data show em uma palestra, estamos fazendo essa

“mistura”. A outra categoria, também extraída das ilhas de edição, para falar da nova

cultura audiovisual, é a idéia do “estéreo”, que já adiantamos acima. Na nova cultura

não basta falar de mixagem, deve-se falar de estéreo, da união de dois canais

diferentes, cada um com sua sonoridade própria e predominando um de cada vez.

Na cultura audiovisual, e nos sistemas de comunicação e informação que dela

decorrem, predominam tanto elementos da cultura de Gutemberg, quanto elementos

adquiridos na nova cultura. Na cultura audiovisual predominam os sentidos e a

afetividade, próprios da linguagem eletrônica, e ao mesmo tempo, em estéreo, a

nova cultura veicula elementos de uma abordagem conceitual, típica da cultura do

livro.

Compreender os caracteres desta nova linguagem na qual estamos imersos é

imprescindível para a educação religiosa. É natural a tendência dos professores do

Ensino Religioso desenvolver uma pedagogia do livro (linguagem de Gutemberg)

para um público formado de crianças, adolescentes e jovens que já nasceram

imersos na nova cultura audiovisual (linguagem eletrônica). O ambiente escolar

tradicionalmente privilegia abordagens conceituais (linguagem de Gutemberg). Com

a concepção predominantemente mecanicista da ciência moderna, o simbólico, o

lúdico, o artístico, o musical e o religioso foram desvalorizados como campos do

saber e a escola privilegiou as ciências exatas. Esse é o modo de compreender

predominante ainda hoje no inconsciente da maioria dos educadores, porque foram

formados na cultura do livro.

75

Cf. McLUHAN, Marshall. A galáxia de gutenberg: A formação do homem tipográfico. 1. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1972.

76 BABIN, 1989, p.12.

48

Num primeiro momento, que categorizamos como o da mixagem, formaram-

se duas grandes avenidas paralelas e nitidamente diferentes em sua forma, a

“eletrônica-espetáculo”, onde predominou a televisão, o cinema, a música e os

jogos, e a “eletrônica-informática”, onde predominou os computadores, calculadoras

e demais aparelhos programados. Na primeira avenida prevaleceu a dimensão

intuitiva, enquanto na segunda predominou uma abordagem extremamente racional

e rigorosa. Com o advento da Internet e o fenômeno da aldeia global, entra em cena

a segunda fase desta nova cultura eletrônica, que chamamos de estéreo, onde as

duas vias tendem a juntar-se. Daí a necessidade de uma pedagogia que conjugue

de maneira equilibrada esses saberes, o intuitivo, lúdico e artístico, e o dedutivo e

racional, predominando um de cada vez na educação dos jovens.

Educadores, pais e educandos, estamos todos imersos nesta nova cultura

eletrônica que tem sua linguagem própria, a linguagem audiovisual. É impossível

compreender os esboços dessa nova cultura se não compreendemos os traços

característicos de sua linguagem. É uma linguagem onde “fala-se mais do que se

escreve. Vê-se mais do que se lê. Sente-se mais antes de compreender”77. Babin

atribui sete características à linguagem audiovisual78: É mixagem, é linguagem

popular, é dramatização, é a relação entre fundo e figura (ground), é presença ao pé

do ouvido, é composição por “flashing”, é disposição por “razão de ser”.

O audiovisual é “mixagem”, termo inspirado na própria produção audiovisual,

como já foi dito acima. Nas ilhas de edição é realizada a mágica da composição do

som, palavra e imagem para resultar numa produção audiovisual. Essa alquimia

acontece no fervilhar de emoções do realizador que faz com que esses elementos

distintos entrem em interação. Nunca em superposição, mas sempre em interação e

complementaridade. Cada elemento tem seu papel na obra audiovisual, está a

serviço das sensações que vai provocar no público que vai assistir ao produto final.

Os ruídos conduzem o público a uma atmosfera e o lança para dentro de uma

situação concreta, a música cria um clima e um coeficiente passional, a imagem

prende a atenção enquanto transporta para outro mundo, a palavra estrutura. Esses

77

BABIN, 1989, p. 38.

78 Aqui utilizamos o termo linguagem “audiovisual” justamente porque essa não é a linguagem “das

imagens”. O audiovisual não é a imagem, nem a gramática da imagem e nem a composição de sequências de imagens. Esses elementos particulares fazem parte da linguagem audiovisual, mas não são “a linguagem”. O audiovisual é a mixagem do som e da imagem.

49

elementos não atuam separadamente, atuam de maneira simultânea e combinada,

quebrando barreiras de espacialidade e temporalidade, conduzindo o público a um

outro mundo, a um outro nível de Realidade. Nesta linguagem, som, palavra e

imagem não são símbolos isolados. Na linguagem audiovisual é o todo que faz o

símbolo. Esses elementos se tornam simbólicos na medida em que são mixados,

amplificados, enquadrados e multiplicados.

Quando som, imagem e palavra se sobrepõem uns aos outros numa

montagem audiovisual, o produto final se torna cansativo e abstrato, porque nele a

mixagem é artificial. A música atua apenas como um fundo sonoro, o texto apenas

comenta a imagem. Uma boa mixagem acontece quando é capaz de criar uma

experiência global unificada, quando afeta o ser como um todo, quando a pessoa se

sente envolvida, tomada, posta em estado de reação geral e tocada sem saber dizer

onde. A boa mixagem determina uma experiência. Aqui está a grande oportunidade

de comunicar a experiência religiosa. Neste ponto a linguagem audiovisual, própria

do novo modo de compreender na cultura eletrônica, propicia um ambiente ideal

para a experiência religiosa e, portanto, para o Ensino Religioso.

O audiovisual é linguagem popular. No cinema e na televisão a fala é diálogo.

Um discurso lido ou uma conferência não são bem aceitos nestes meios de

comunicação. A sofisticação literária e intelectual não combina com essa linguagem.

Na linguagem audiovisual predominam as formas mais familiares e menos literárias.

O audiovisual exige uma linguagem que exprima uma relação primitiva, essencial,

original e até mesmo física entre os seres e as coisas. Por sua natureza que concilia

som e imagem, o audiovisual pede palavras mais concretas e frases mais unidas à

matéria. Dizer: “Não me incomodem, preciso de um momento de paz”, é falar numa

linguagem escrita, literária e abstrata. Já dizer: “Me deixe em paz!”, é uma linguagem

que evoca um gesto e uma mímica, cola à imagem, é audiovisual. Por causa de sua

identidade com a linguagem popular, a linguagem audiovisual propicia deslizes,

como a vulgarização da televisão. Mas não é verdadeiro definir a linguagem popular

por sua degradação. Ora, como falar de temas religiosos na cultura eletrônica, com a

linguagem audiovisual, sem recair na vulgarização do religioso? Como fazer ver e

sentir quase fisicamente a “violência” da religiosidade?

A dramatização é o gênero próprio da linguagem audiovisual. A dramatização

está constantemente presente na cultura eletrônica. É o apelo a captar os olhares, a

50

despertar cada vez mais o gosto de ver e ouvir. As manchetes em letras de

destaque nos jornais são dramatização. Os títulos de revistas e os cartazes de

cinema são dramatização. Até mesmo as notícias televisionadas são dramatização.

E somos levados a viver no drama, drama das notícias, da publicidade, das

telenovelas, dos filmes, dos jogos. A arte de captar a atenção é a arte de dramatizar.

E o artista do script ou o editor do telejornal é aquele que se sente sacudido

afetivamente pelo tema ou pelo fato que será notícia. O autor audiovisual é capaz de

provocar o sentimento crescente de tensão e, com habilidade, proporcionar o

relaxamento na medida certa, para novamente criar a tensão, e manter o público

neste ciclo tensão-relax-tensão: “Escrever audiovisual é levar ao máximo a tensão, e

só escolher como programa o que é „dramatizável‟”79. O drama dá realce e cria

tensão. Um fato ou acontecimento ganha força, se torna chocante com a arte da

dramatização, ganha densidade e relevância através da mídia eletrônica. Religião é

dramatização. Dramatização da vida e da morte. Dramatização das questões limites

do ser humano. Mas se não é tratada com o “tempero” do drama, perde sua força na

cultura eletrônica. Os filmes e documentários utilizados pelos educadores para falar

de religião ou religiosidade somente são vistos pelos educandos se trabalham bem a

dramatização. Simplesmente exibir o filme não basta. É preciso uma metodologia. A

metodologia somente funciona na cultura eletrônica, se contém em si mesma o

drama, se é uma metodologia dramatizada.

O sentido e a eficácia de uma mensagem na cultura eletrônica dependem da

relação entre figura e fundo, entre texto e contexto. Essa teoria inspira-se em certos

elementos da teoria Gestalt80. A relação entre figura e fundo na linguagem de

Gutemberg acontece de maneira diferente do que ocorre na linguagem audiovisual.

Na linguagem escrita, as palavras que estão em primeiro plano têm a maior

importância. A atenção é centralizada na figura, que é a palavra. Na linguagem

audiovisual, a mensagem está na relação entre o fundo e a figura, no efeito que a

79

BABIN, 1989, p. 44.

80 A Psicologia da forma ou Psicologia da Gestalt considera que o conhecimento de um todo é

anterior à percepção de suas partes e que esse conhecimento do todo dá sentido às partes. Cf. ENGELMANN, Arno (ORG). Wolfgang Köhler. São Paulo: Ática, 1978. (Coleção Grandes Cientistas Sociais). KOHLER, Wolfgang. Psicologia da Gestalt. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. KOFFKA, Kurt. Princípios da Psicologia da Gestalt. São Paulo: Cultrix, 1975. MARX, Melvin; HILLIX, Willian. Sistemas e Teorias em Psicologia. São Paulo: Cultrix, 1976. PIAGET, Jean. Psicologia da inteligência. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

51

distância entre o fundo e a figura produz em nós. Quanto mais equilibrado for este

contraste entre figura e fundo, maior é o efeito produzido. O sucesso da capa de um

livro não está, em primeiro lugar, no seu título, está no efeito produzido pela relação

entre a tipologia e a cor de fundo, no efeito do contraste entre a imagem estampada

e as poucas massas de texto. “A relação figura-campo determina uma vibração

especial que nos afeta. A mensagem está nesse efeito produzido”81.

Não se trata somente de contrastes de imagens. Na linguagem audiovisual,

as distâncias entre a voz e o silêncio, entre a música e a imagem, entre a tonalidade

da voz e a palavra pronunciada, entre a cor dominante e a cor secundária, veiculam

a mensagem. Nesta cultura, o bom comunicador é aquele que sabe usar destas

correspondências e distâncias para criar o realce. Não se trata de carregar nas tintas

como frequentemente acontece com os cartazes nas escolas e igrejas, carregados

de elementos onde um símbolo superpõe a outros e há excesso de palavras. Tudo

se torna figura e a figura desaparece num emaranhado sem sentido. A própria

expressão “sentido”, derivada de “sentir”, desvela a dinâmica da linguagem

audiovisual. Nesta linguagem o sentir vem primeiro. A dramatização da

correspondência entre fundo e figura afeta e provoca um sentimento no destinatário

da mensagem. Aí está o sentido na cultura eletrônica.

Uma das constatações mais antigas sobre os efeitos das mídias é o efeito de

“presença”. A eletrônica torna presente, amplia essencialmente o efeito de presença:

Conselho dado aos que aprendem a falar na televisão: „Principalmente, não esqueçam de ser familiares, pessoais; as pessoas vêem você na sala delas. Não aceitam o que é forçado nem discurso doutoral‟. Assim, pela televisão, por um momento, a imagem do presidente me pertence. A presença, antes de mais nada, é a abolição das distâncias geográficas. Mas é também uma qualidade especial de ressonância em nosso corpo82.

O canal eletrônico traz para a minha sala o que está longe: o presidente da

república, a Copa do Mundo, a guerra do Iraque, o terremoto do Haiti. Da minha

poltrona vibro com os gols do Brasil na Copa do Mundo, ouço as bombas e sou

impactado pela dor provocada pelas guerras, vejo os mortos e feridos e sou movido

a uma atitude de solidariedade com as vítimas das catástrofes naturais. Estas

imagens e sons aumentam o efeito de vibração no meu corpo. A eletrônica amplia o

81

BABIN, 1989, p. 47.

82 Ibid, p. 49.

52

efeito de vibração e nos faz penetrar numa intimidade específica porque aumenta as

vibrações corporais e nos isola de qualquer distração. Há uma abolição do espaço,

uma limitação do foco e uma supervoltagem das vibrações. Esse efeito de presença

é provocado pela imagem e, sobretudo, pelo som. Pelo fone de ouvido estou

presente no palco do show, pelo fone do celular estou vibrando com a voz, pela

potência dos amplificadores sou solicitado por inteiro.

Qual é então a lógica desta linguagem audiovisual? O que rege os

encadeamentos e as inter-relações das sequencias ou dos planos? Ao contrário do

que possa parecer, a composição visual não é linear, não se desenrola do início ao

fim como uma história regular. Não é didática, não se desenvolve em partes

articuladas e lógicas. Não é sintética, não parte de uma visão de conjunto para

mostrar ou analisar sucessivamente as partes. A composição audiovisual opera por

flashing. O enredo é desvelado pelo encadeamento sucessivo de imagens, sons e

palavras em flashes aparentemente sem ordem, num fundo comum, que formam

sequências. Basta olharmos as sequências nos filmes ou mesmo nos programas

televisivos. É comum modos de composição que não correspondem a uma ordem

linear ou causal. A composição por flashing é a lógica operante no próprio interior

das sequências. As sequências são formadas pelo encadeamento de cenas, que por

sua vez são formadas pelo encadeamento de planos, que são as diversas formas de

recortar e enquadrar uma realidade, resultando numa composição por flashes da

realidade. Recebemos esses estímulos visuais e sonoros como objetos lançados ao

rosto. Mas essa aparente desordem esconde uma rigorosa ordem subjetiva

expressa numa unidade de lugar e de experiência. É no encontro dos fluxos de

informações e de conhecimento que perpassam os diversos níveis de realidade e de

percepção que os estímulos visuais e sonoros despertam o sentido.

Há uma distinção importante entre os conceitos de percepção global e de

percepção das partes. Na linguagem audiovisual, a percepção global do lugar

aparece desde o inicio. A unidade se dá pela dominância da cor, do ritmo e do tema

sonoro. Para dar dramatização à composição audiovisual, os elementos são

trabalhados numa sucessão do detalhe ao global e do global ao detalhe. O terreno é

sugerido desde o princípio, criando uma tensão psicológica no espectador. “O

terreno é o fundo que espera sua forma, a terra que espera sua planta”83.

83

BABIN, 1989, p. 53.

53

Mas então não existe realmente ordem alguma entre os flashes? Há, mas

como já dissemos, essa ordem não é necessariamente linear, causal, didática,

articulada ou lógica. É da ordem da subjetividade do emissor da mensagem. Aqui se

entende a sensação de desordem que temos diante de filmes em que passamos

noventa e cinco por cento do tempo sem entender a trama, e, como num passe de

mágica, no final, se descortina o sentido e tudo se revela. É a figura final que

aparece em claro e dirige a ordem. A essa característica da linguagem audiovisual

Pierre Babin dá o nome de “disposição pela razão de ser”84. Essa figura final que

desvela a mensagem, apesar de ser em grande parte o produto da imaginação

criadora de um autor, não é pré-estabelecida. Uma obra literária ou um

acontecimento histórico ganha novos sentidos ao ser adaptada para o meio

audiovisual pela marca própria do diretor. É ele quem concebe os planos e traduz

em imagens na obra cinética. O diretor é o personagem-chave da “disposição pela

razão de ser” numa produção audiovisual. Cada ator, repórter ou técnico duma

produção audiovisual encarna essa diretriz dada pelo diretor.

Porém, essa disposição pela razão de ser que nasce no ato criador do diretor

não é um puro capricho completamente desligado das realidades objetivas e da

ordem interior que anima o ser humano em geral. A razão de ser de uma produção

só tem receptividade se exprimir, de alguma maneira, a razão de ser de seu público.

Como vimos, a comunicação só acontece quando a zona de não resistência ao

sagrado dos níveis de Realidade e de percepção são idênticas e os fluxos de

informação e de percepção compartilham da mesma zona de resistência. Desta

maneira, a disposição pela razão de ser na linguagem audiovisual é um amálgama

da realidade subjetiva do criador em complementaridade com as percepções

humanas universais. A síntese é feita no ato criador do diretor:

Assim, a ordem audiovisual por razão de ser é a obra de um diretor que recria sua experiência, exprimindo, ao mesmo tempo, uma experiência coletiva. Definitivamente, a razão de ser é a necessidade interior que leva as coisas a se ordenarem e a se completarem para que cada parte possa entrar num todo significativo. Qual o sinal de que uma mensagem audiovisual foi bem construída, de acordo com uma disposição pela razão de ser? No público, produz-se uma experiência unificada, que corresponde a uma expectativa pré-consciente85.

84

BABIN, 1989, p. 54-59.

85 Ibid., p. 58.

54

A consequência desse tipo de disposição pela razão de ser dada pela cultura

eletrônica é o surgimento de um novo modo de compreender, no qual:

Os esquemas e as filosofias lineares vão deixar de predominar sobre o pensamento [...] A eletricidade, a eletrônica, as conexões audiovisuais avançam depressa demais e, com isso, somos levados a querer mudar a lentidão das deduções de causa e efeito: daqui por diante, pensa-se no efeito com a causa. Por seu lado, o computador, multiplicando indefinidamente as conexões possíveis entre semelhanças ínfimas, dá ao homem o gosto de ultrapassar a lentidão das operações tradicionais da lógica humana. Por sua extrema rapidez para calcular, ele nos incita a funcionar não por silogismo, mas de outro jeito: seu uso, bem como o do audiovisual, nos estimula a funcionar na velocidade da intuição e das analogias86.

A esse conjunto de características da linguagem audiovisual denominamos

“teoria da Modulação”. Essa nova cultura, da televisão aos jogos eletrônicos,

impregnou a linguagem e o modo de compreender, especialmente dos jovens que já

nasceram imersos neste ambiente. Daí a importância dos educadores de hoje

apreenderem como perceber o mundo através do audiovisual. O que caracteriza a

mulher e o homem audiovisual não é somente a vista, é uma combinação da vista e

do ouvido. A percepção auditiva está no centro do audiovisual porque o som conduz

o ouvinte para dentro. O ouvido é o sentido da interioridade. Ele permite que a

realidade penetre até o fundo do ser. Por isso dizemos: “ser todo ouvidos”, para

expressar uma atitude de escuta atenta e acolhimento de uma mensagem que vem

de fora. Ao ouvir algo, reagimos física e psicologicamente primeiro, antes de analisar

o sentido. A impressão de relevo sonoro nos dá a impressão do ambiente que nos

envolve mesmo sem a informação visual. E a sensação da espessura sonora é tão

intensa que pode chegar a agredir.

Ao contrário do espaço físico que é limitado por blocos e formas variadas,

mais ou menos coloridos, o sentido da audição provoca uma sensação de perda de

limites, de sentir-se no devir do tempo e de se perder no tempo simultaneamente. A

música evoca movimentos, esquemas, tensões e relaxamento que sedimentam a

experiência motora e afetiva do ouvinte. É consenso a influência da música na

cultura audiovisual. O êxito da MTV (Music Television) junto aos jovens é prova

eloquente. É consenso também a importância da música e da sonoridade como

veículo que conduz ao sagrado nas religiões. Na meditação budista, nos cantos

86

Cf. BABIN, 1989, p. 58-59.

55

gregorianos, no êxtase pentecostal, nos ritos tribais ou nos cantos do povo das

comunidades eclesiais de base, o som é elemento fundamental da experiência

religiosa. O fiel faz uma experiência profunda do sagrado através da música. Essa

experiência sensorial que eleva o corpo para uma dimensão superior é da mesma

ordem da experiência audiovisual. A vibração do som tem sempre uma ressonância

psicológica e emocional que envolve o ouvinte como um todo.

Mas não basta sermos impactados pelos apelos audiovisuais. Queremos

tocar, apreender a realidade do objeto audiovisual através da ilusão do toque, pela

percepção tátil. Enquanto a televisão desenvolve a fascinação pelo objeto que se

tem ao alcance das mãos, como demonstra a manipulação dos botões do controle

remoto, o cinema desenvolve tecnologias 3D que criam a ilusão do relevo. A

eletrônica possibilita aos jogos eletrônicos a sensação cada vez mais intensa de

espacialidades, texturas, relevo e movimento.

Para a percepção multidimensional específica da maneira de perceber o

mundo na cultura eletrônica, a visão e o ouvido têm papéis predominantes. A

percepção sonora tem um peso especial porque provoca respostas que tendem a

ser globais e a exprimir-se de modo físico e afetivo. A imagem pode diminuir o

campo da projeção psicológica causada pelo som puro ao ser inserida como

audiovisual porque impõe uma representação precisa da realidade e assim limita a

imaginação. Neste sentido, o audiovisual reduz a polissemia, a possibilidade de uma

mensagem ter diferentes sentidos, e aumenta o índice de adesão e cumplicidade do

espectador. Isto não significa que a linguagem audiovisual não é polissêmica, mas

sua polissemia é reduzida em relação ao som puro.

A linguagem audiovisual treina múltiplas atitudes perceptivas, constantemente

solicita a imaginação e devolve à afetividade um papel de mediação primordial no

mundo. Enquanto o homem de Gutemberg foi treinado para a distância afetiva e

para a desconfiança da imaginação, a mulher e o homem da civilização eletrônica

audiovisual faz intuitivamente as ligações entre sensação e compreensão,

imaginação e conceito. “Sem afetividade não há audiovisual”, diz Pierre Babin87.

Vejamos então como nosso autor entende as diferentes fases do ato de

compreender no audiovisual. Tudo começa com o que podemos chamar de “choque

87

BABIN, 1989, p. 107.

56

audiovisual”. É a primeira fase da percepção iniciada por um estímulo que causa

uma sensação. A imagem que vem à mente é a de uma pedrinha lançada num lago

que provoca um choque na superfície da água. O movimento habitual das correntes

é afetado e a tranquilidade é interrompida. Um choque provocado pela mistura de

som-palavra-imagem age globalmente sobre a personalidade e causa ruptura,

mudança de registro. O choque determina uma nova sensibilidade. Na abordagem

transdisciplinar do audiovisual na Figura 3, esta primeira fase da percepção se situa

no nível imediato que chamei de nível Audiovisual.

A este choque inicial segue-se um “abalo” sem conteúdo preciso. Um estado

emocional confuso e ambíguo. Sente-se e não se sabe qual é o sentido dessa

emoção. É um sentimento fundamental porque depois representa um papel de pré-

orientação da percepção ou do conhecimento. Um bom filme é aquele que conhece

o mecanismo da percepção audiovisual e, por isso, evoca nos primeiros minutos da

apresentação a tonalidade afetiva, em germe, do filme inteiro. É pelo enfoque

emocional que vamos determinar a lógica do filme e nossos olhos e ouvidos vão

filtrar as palavras e imagens da obra audiovisual. Diferentemente do livro, as

sequências não têm nenhuma lógica dedutiva do tipo I, II, III e Conclusão. O que

determinará a compreensão do espectador é essencialmente a tonalidade afetiva do

começo. Essa tonalidade afetiva é um elemento sutil e fundamental presente em

todas as palavras, ações, imagens e músicas da linguagem audiovisual. O realizador

da obra audiovisual parte de uma emoção que será traduzida em sons e imagens.

Essa emoção é a alma do diretor nato posta em cena para ser filmada e exibida em

forma de filme. Nela está a mensagem na linguagem audiovisual. Nesta fase da

percepção a mensagem está ainda velada nesta emoção fundamental. Na

abordagem transdisciplinar está num nível mais imanente em que as vibrações

eletrônicas do som e da imagem tocam no nível Sensitivo.

Segue-se a “elaboração do sentido”, fase que marca a saída da confusão

inicial gerada pelo impacto do audiovisual. Nesse estágio busca-se um sentido para

as imagens e sons, mesmo que nada compreenda. O espectador vislumbra o

caminho que levará ao sentido. Ele passa a compreender e não somente sentir.

Para que aconteça a compreensão, o espectador, ao mesmo tempo em que recebe

a mensagem audiovisual, perde mais ou menos toda distância crítica em relação a

essa mensagem. E essa é uma constatação que assusta aos professores que

57

saíram das cultura tradicional: “Compreender a mensagem audiovisual é perder,

num primeiro momento, o recuo dado pela consciência de si, ou perder reflexão

crítica; é aceitar estar „dentro‟ antes de estar „acima‟”88. Queiram ou não queiram,

essa é a dinâmica da linguagem audiovisual. É preciso se permitir mergulhar fundo e

deixar o sentimento fruir para assimilar a mensagem. Esse estágio é próprio do nível

Ficcional e do Imaginário na abordagem transdisciplinar do audiovisual.

A postura “científica” de blindar-se interiormente diante dos elementos

afetivos da mensagem, pensando que assim se atinge melhor a realidade, evitando

distorções devidas à imaginação e aos afetos, conduz a um fechamento e a uma

incapacidade de compreender a cultura audiovisual de maneira integral. Na cultura

audiovisual há uma interpenetração íntima dos elementos cognitivos e afetivos. Até

mesmo numa aula de matemática televisionada, os elementos afetivos têm grande

peso para o êxito da mensagem. A personalidade do professor, o brilho dos atores,

o tom das vozes, a focalização dos rostos, o fundo musical, a beleza dos gráficos, os

gestos e o conjunto do espetáculo devem estar carregados de emoção. Se apenas

se vê um professor recitando sua lição bem aprendida, o resultado é um programa

ruim e um público aborrecido.

As versões midiáticas de religiosidade incentivam os fiéis a permanecerem

nesta etapa, gozando do sentimentalismo próprio do espetáculo, sem vivenciar uma

verdadeira conversão que supere uma adesão simplesmente mágica e sentimental.

É preciso ultrapassar essa etapa para apropriar-se da mensagem. A última etapa na

compreensão audiovisual é a que denominamos de “ressonância”, da distância que

permite a reflexão sobre o que se viveu e sentiu, a conceitualização e a apropriação

ou reconstrução de sua própria linguagem. Nesta fase se opera o julgamento crítico

sobre o conteúdo, a forma, a linguagem, a técnica, os processos utilizados, as

pretensões comerciais e econômicas postas em jogo. Após o ato de compreensão,

afetivamente muito imerso, é tempo de manter uma distância intelectual para a

análise e o julgamento crítico do vivido.

Em seu livro Espiritualidade Integral89, o filósofo Ken Wilber apresenta

critérios fundamentais para a análise madura de qualquer fenômeno. A abordagem

88

BABIN, 1989, p. 112.

89 WILBER, 2006.

58

integral é apropriada à etapa da distância crítica do audiovisual porque contribui para

uma postura madura diante da mensagem veiculada. Toda a realidade e qualquer

ocasião possuem uma dimensão “dentro” e uma “fora”, e ainda uma dimensão

individual e uma coletiva. Uma abordagem que ignore essas dimensões da realidade

torna-se insatisfatória de acordo com os conhecimentos humanos confiáveis da

atualidade. Geralmente termina em uma reivindicação de totalidade a partir de uma

área do saber em detrimento das outras. Para uma análise coerente dos fenômenos,

Ken Wilber propõe o “Pluralismo Metodológico Integral”, método de compreensão da

realidade que envolve oito metodologias fundamentais. Para visualizar essas

metodologias fundamentais é preciso conceber a realidade em “quadrantes”, como

na Figura 4:

Figura n. 4 – Pluralismo Metodológico Integral

59

Podemos imaginar qualquer fenômeno nos diversos quadrantes e observá-los

a partir de seu próprio dentro ou fora. Isso nos dá a visão interna e externa do

indivíduo e do coletivo. Os quadrantes são representados por eu, você/nós, ele e

eles, que são variações dos pronomes de 1ª, 2ª e 3ª pessoas, comparáveis às

variações do Bom, o Verdadeiro e o Belo; a arte, os princípios morais e a ciência. É

uma visão que abrange a verdade objetiva da ciência externa (do ele/eles), a

verdade subjetiva da estética (do eu) e a verdade coletiva da ética (do vós/nós). Ao

olhar cada quadrante em sua visão interna e externa, encontramos oito perspectivas

primordiais:

Habitamos esses oito espaços – essas zonas, esses mundos vivos – como realidades práticas. Cada uma dessas zonas não é apenas uma perspectiva, uma injunção, um conjunto concreto de ações em uma área do mundo real. Por meio das diversas perspectivas, cada injunção gera ou revela fenômenos compreendidos. Não que as perspectivas venham primeiro e as ações ou injunções, depois; elas surgem simultaneamente (na verdade, as quatro surgem ao mesmo tempo)90.

Essas oito perspectivas fundamentais envolvem oito metodologias

fundamentais, que são oito abordagens possíveis de um único fenômeno. É ao

conjunto dessas abordagens que Ken Wilber se refere como “Pluralismo

Metodológico Integral”. O exemplo que ele apresenta para facilitar a compreensão é

a da experiência de um “eu” no quadrante superior esquerdo:

Esse “eu” pode ser visto de dentro ou de fora. Eu posso vivenciar meu próprio “eu” de dentro, neste momento, como a percepção de ser um sujeito de minha experiência presente, uma 1ª pessoa vivenciando uma experiência de 1ª pessoa. Neste caso, os resultados incluem introspecção, meditação, fenomenologia, contemplação, e assim por diante91.

A fenomenologia é o campo epistemológico que resume esse tipo de

abordagem do “eu” visto de dentro. Mas esse “eu” pode ser visto “do lado de fora”,

numa abordagem objetiva e “científica”. Isto acontece quando tento ser “objetivo”

sobre mim mesmo, ou tento “me ver como outros me vêem”, ou quando tento ser

científico no estudo sobre o modo que as pessoas vivenciam seu “eu”. O campo

epistemológico que abrange esse tipo de abordagem é a teoria dos sistemas e o

estruturalismo.

90

WILBER, 2006, p. 55-56.

91 Ibid., p. 57.

60

Podemos também realizar o estudo de um “nós” do lado de dentro e do lado

de fora no quadrante inferior esquerdo. Os estudos do lado de dentro de um “nós”

são as tentativas de compreensão mútua sobre qualquer coisa, quando o seu e o

meu “eu” se reúnem no que você e eu chamamos de nós. A arte e a ciência da

interpretação do nós é a hermenêutica. Já o estudo desse “nós” visto pelo lado de

fora é o campo das ciências que estudam a “aparência” das coisas. Aparência aqui

tem o sentido de a maneira como um fenômeno aparece no Real, visto de fora. Já a

visão de dentro é a “sensação”, do lado de dentro das coisas. As ciências que

melhor dão conta da visão de fora de um “nós” são a semiologia, a genealogia, a

arqueologia, a gramatologia, os estudos culturais, o pós-estruturalismo, o neo-

estruturalismo e a etnometodologia. Todas ciências que abarcam a maneira que as

coisas aparecem como fenômenos sociais.

A visão dos quadrantes nos permitem fazer uma distinção entre os olhares

“de dentro” e “de fora”, e as perspectivas “internas” e “externas”. Os olhares “de

dentro” e “de fora” resultam nas oito maneiras de abordar os fenômenos através de

metodologias apropriadas. As perspectivas “internas” e “externas” se referem às

perspectivas dos quadrantes, que podem ser internas (os quadrantes esquerdos) e

externas (os quadrantes direitos). Os quadrantes esquerdos partem de uma

perspectiva subjetiva e intencional (superior esquerdo), e intersubjetiva e cultural

(inferior esquerdo); os quadrantes direitos, de uma perspectiva objetiva e

comportamental (superior direito), e interobjetiva e social (inferior direito). Também

podemos fazer a distinção entre os quadrantes superiores e os inferiores, onde os

quadrantes superiores se referem a uma dimensão “singular” (eu, ele) e os

quadrantes inferiores a uma dimensão “plural” (nós, eles). Assim, a visão quadrática

nos oferece lentes mais precisas para analisar os fenômenos.

Vimos até aqui quais as principais metodologias de abordagem dos

quadrantes esquerdos, de perspectivas interiores (eu, nós). Vamos concluir esse

resumo do Pluralismo Metodológico Integral com uma simples menção aos

quadrantes direitos, de perspectivas exteriores (ele, eles). O quadrante superior

direito estuda o organismo objetivo, que também pode ser visto “de dentro” ou “de

fora”. As abordagens de dentro estão relacionadas aos estudos da neurociência,

psiquiatria biomédica, psicologia evolutiva, sociobiologia e das descobertas da

ciência cognitiva e abordagens autopoiéticas relacionadas. Se tomarmos o cérebro

61

como exemplo, trata-se da visão objetiva de dentro do cérebro, a visão do que

acontece no interior do cérebro. Mas se essa visão for desconectada de seus

correlatos nos demais quadrantes, especialmente no quadrante superior esquerdo,

que aborda a visão subjetiva desses mesmos eventos, pode-se ter uma abordagem

reducionista do fenômeno, que considere apenas o absolutismo de um único

quadrante. O absolutismo de quadrante pode acontecer em qualquer um dos

quadrantes quando uma ciência tem a pretensão de um conhecimento total dos

fenômenos. É o que acontece com o materialismo científico, que parte de uma visão

de fora no quadrante superior direito e o considera como o único real:

A visão de mundo do “materialismo científico” considera o quadrante superior direito como o único quadrante real, e tenta explicar o universo como se objetos do quadrante superior direito fossem seus únicos componentes. Essa curiosa diluição homeopática de consciência humana e de espiritualidade, que deixa o universo composto apenas de pó, pode parecer uma coisa estranhíssima de se fazer, e certamente o é, mas a culpa não é minha. Há dois erros que podemos cometer em relação a esse quadrante. Um é torná-lo absoluto; outro, é negá-lo. A modernidade comete o primeiro; a pós-modernidade, o segundo92.

Para a teoria integral, tanto o lado esquerdo como o direito são igualmente

reais e importantes. Todos os eventos que acontecem num lado tem seus correlatos

no outro lado, e ainda, em todos os quadrantes. Todo estado de consciência, como

o estado meditativo que ocorre no quadrante superior esquerdo, tem seu correlato

correspondente num estado cerebral que ocorre simultaneamente no quadrante

superior direito. Como o empirismo é a metodologia que melhor configura a visão de

fora do quadrante superior direito, e o materialismo científico supervaloriza o

empirismo como a única forma de conceber o real e descarta as realidades interiores

do quadrante superior esquerdo, acaba alimentando esse absolutismo de quadrante.

Apesar do reducionismo destas abordagens do superior direito, o Pluralismo

Metodológico Integral leva esse quadrante e seus fenômenos muito a sério. As

disciplinas características que estudam a consciência do ponto de vista de fora neste

quadrante são a neurofisiologia, a bioquímica cerebral, a pesquisa genética, a onda

cerebral e pesquisa de estados cerebrais, e a biologia evolutiva.

Nos resta ainda o quadrante inferior direito para completarmos nosso resumo

da teoria integral. O quadrante inferior direito se refere ao sistema social, que

92

WILBER, 2006, p. 212.

62

também pode ser visto numa perspectiva de dentro ou de fora. Visto de uma

perspectiva de dentro temos a autopoiese social como metodologia predominante.

Organismos ou membros sociais estão dentro do sistema social e seus

“significadores” ou artefatos trocados são internos ao sistema. Numa correlação com

o quadrante inferior esquerdo, o que são “significadores” no inferior direito, são

“significados” no inferior esquerdo. Aplicando uma semiótica integral, entende-se

como significadores os referentes materiais do quadrante inferior direito que

encontram seus correlatos no inferior esquerdo composto de significados culturais

coletivos93. Se observarmos esse quadrante social de fora teremos como

perspectiva a teoria dos sistemas. Nesta perspectiva, os organismos ou membros

sociais são vistos como um conjunto de elementos inter-relacionados que formam

um todo complexo.

Como já foi dito, qualquer uma das perspectivas, se considerada como a

única correta, dá uma percepção errônea da realidade, que, de acordo com o

Pluralismo Metodológico Integral, apresenta pelo menos oito maneiras de ser

abordado cientificamente, e em termos transdisciplinares, aparece em vários níveis

de realidade. O Pluralismo Metodológico Integral se apresenta como uma

metodologia de abordagem apropriada ao estudo do fenômeno religioso porque

inclui os fenômenos do quadrante superior esquerdo que não foram aceitos como

ciência pelo cientificismo moderno (que considera tais fenômenos como pré-

modernos) e foram atacados pelo pós-modernismo (que encara tudo isso como

extremismo).94 Com o Pluralismo Metodológico Integral é possível localizar os

fenômenos religiosos no seu lugar do conhecimento dentro dos quadrantes e

considerar a sua ressonância nos demais quadrantes.

O fenômeno do êxtase espiritual, por exemplo, presente em praticamente

todas as religiões, pode ser visto sob a perspectiva do quadrante superior direito.

Estudos recentes de rastreamento simultâneo, possibilitados pela Eletrônica, utilizam

equipamentos de ressonância magnética para efetuar a medição de padrões de

onda cerebral durante os diferentes estados de meditação espiritual.95 Porém, o

materialismo científico não considera esse tipo de pesquisa como indícios de que o

93

Cf. WILBER, 2006, p. 222-224.

94 Cf. Ibid., p. 212.

95 R. Jevning, A. Newberg, Y. Kubota, L.I. Aftanas, S.A. Golocheikine, P. Arambula, J. Infante e G.

Tooley são pesquisadores que tem estudado os efeitos neurológicos de estados meditativos.

63

fenômeno do êxtase espiritual é real. Seus resultados levam os empiristas a afirmar

que as realidades espirituais não são nada além do que fisiologia cerebral. A

meditação somente ativa determinadas áreas do cérebro material e não traz

nenhuma informação sobre algo real fora do organismo.96 Porém, o reducionismo

dessas abordagens do SD envolve o que chamamos de absolutismo de quadrante, e

conduz a uma visão míope da Realidade.

Uma abordagem integral, além de levar esse quadrante e seus fenômenos

muito a sério, afirma que tanto o quadrante superior direito quanto o superior

esquerdo são igualmente reais e importantes. Todo estado cerebral do superior

direito tem seu correlato como estado de consciência no quadrante superior

esquerdo. Ambos ocorrem juntos e são dimensões reais de um mesmo fenômeno

que não pode ser reduzido um ao outro. Com as ferramentas do Pluralismo

Metodológico Integral, os abusos e reducionismos do materialismo científico são

superados e a dimensão espiritual do ser humano é reintroduzida no rol das

ciências.

O Pluralismo Metodológico Integral oferece instrumentais teóricos

fundamentais para a análise e o julgamento crítico propostos por Pierre Babin como

etapa necessária de distanciamento intelectual na compreensão das mensagens

audiovisuais que chegam em nossos sentidos na cultura eletrônica. Com esta

abordagem, é possível ensaiar uma espiritualidade integral voltada ao audiovisual.

Filmes e documentários que abordam a temática das culturas e religiões

costumam reforçar uma visão míope dessas expressões culturais e religiosas.

Grande parte destas produções apresentam, de maneira caricaturada, as profundas

e preciosas verdades das tradições religiosas pré-modernas. Isto ocorre porque

estamos imersos num contexto bastante influenciado pela modernidade, que

supervaloriza os quadrantes do lado direito da prova externa objetiva; e pela pós-

modernidade, que se concentra no quadrante inferior esquerdo da verdade

intersubjetiva na construção social da realidade. Já as verdades das tradições

culturais e religiosas pré-modernas surgiram num contexto histórico em que estes

três quadrantes ainda não haviam se diferenciado, o que só ocorreu com a chegada

da modernidade. A riqueza cultural e religiosa pré-moderna gerou um conhecimento

96

Cf. WILBER, 2006, p.214.

64

especializado do quadrante superior esquerdo, com todos os seus estados e

estágios de consciência, percepção e experiências espirituais, que foram reprimidos

pela modernidade e pós-modernidade97.

O Pluralismo Metodológico Integral permite um distanciamento crítico na

produção e uso de materiais audiovisuais que contemplem tradições culturais e

religiosas pré-modernas. Permite reconstruir as verdades relevantes das tradições

contemplativas e místicas, agora sem os sistemas metafísicos que não sobreviveram

às críticas modernista e pós-modernista. A pós-metafísica integral que aí surge, tem

consciência de que a matéria não ocupa o último degrau de desenvolvimento da

realidade. A matéria nada mais é do que a forma externa de uma evolução que tem

sua correspondência interior em níveis de sentimentos, percepção, consciência e

demais dimensões interiores. A abordagem integral não faz um juízo de valor que

considere a matéria como sendo de um nível inferior e a vida, a mente, ou a alma,

de nível superior. A matéria é justamente a forma externa de cada um desses níveis

internos. Essas realidades que os sábios pré-modernos consideraram como

metafísicas são realidades intrafísicas, não estão acima da matéria, nem além da

natureza, nem metafísica, nem sobrenatural. Elas não estão acima da natureza,

estão dentro dela, não estão além da matéria, estão em seu interior, como mostra a

Figura 5.

Nesta perspectiva todos os quadrantes estão em constante crescimento,

desenvolvimento ou evolução espiritual. As verdades metafísicas absolutas dos

antigos sábios eram, na realidade, culturalmente moldadas e condicionadas ao

estágio de desenvolvimento em que se encontravam. A existência de contextos

culturais no quadrante inferior esquerdo não significa que não existam verdades

transculturais ou universais. A pós-metafísica integral não pretende anular estas

verdades, mas está ciente de que identificá-las no contexto atual exige muito mais

cuidado do que a metafísica pôde imaginar. Essa tarefa não pode mais ser realizada

com metafísica especulativa, e sim com as metodologias de pesquisa das diversas

disciplinas que compõem o rol das ciências. E os sistemas sociais, que aparecem no

quadrante inferior direito, não estão num nível inferior de existência. Eles são

dimensões externas do coletivo que também correspondem ao desenvolvimento

espiritual da humanidade.

97

Cf. WILBER, 2006, p. 66.

65

98

Figura n. 5 – Aspectos humanos dos quadrantes. Fonte: WILBER, 2006, p. 284.

Desta maneira, em todos os quatro quadrantes, o ser humano está se

desenvolvendo. É um desenvolvimento tetra-espiritual, que ocorre simultaneamente

em todos os âmbitos e tem repercussões em todas as dimensões da existência, ou

seja, em todos os quatro quadrantes. O mesmo Espírito99 que eleva o ser humano

98

O Pluralismo Metodológico Integral concebe que há “estágios de consciência” que representam os verdadeiros marcos de crescimento e desenvolvimento do ser humano e da humanidade. Para se referir aos graus desses níveis de desenvolvimento, Ken Wilber utiliza as cores do arco-íris, numa referência às culturas tradicionais e seu sistema de chakras, que dispõe as cores na ordem natural, do vermelho (arcaico), passando pelo laranja (racional), pelo verde (pluralista), depois o azul (integral), até o vazio da luz transparente. Cf. WILBER, 2006, p.74-96.

99 Para Ken Wilber os quadrantes abrangem tudo e o Espírito se manifesta primeiro na existência.

Existe Espírito na 1ª, na 2ª e na 3ª pessoa e é preciso integrar 1ª, 2ª e ª e 3ª pessoa: “O Espírito na 1ª pessoa é o grande eu, o eu-eu, [...] o Espírito como aquele grande Observador em você [...]; o Espírito na 2ª pessoa é o grande Você, o grande Tu, o Deus radiante, vivo, generoso diante do qual devo me render em amor, devoção, sacrifício e libertação. [...] esse algo-que-é-sempre-maior-que-eu. [...] Esse Grande Deus(a) que me encara neste momento, que fala comigo agora, que está Se revelando a mim como uma comunhão com o Tu em um nós sagrado [...]; o Espírito na 3ª pessoa é grande Ele, o Grande Sistema ou a Grande Teia da Vida.” WILBER, 2006, p. 204-205.

66

aos mais elevados estados de consciência (quadrante superior direito) é o Espírito

que conduz a humanidade a desenvolvimentos mais relacionais com a matéria

(quadrante superior direito), do coletivo e cultural (quadrante inferior esquerdo) e no

desenvolvimento da história (quadrante inferior direito).

Com a abordagem integral o Ensino Religioso pode falar de religiosidade e

espiritualidade de uma maneira mais compreensível ao educando do século XXI. O

Pluralismo Metodológico Integral contribui para uma leitura madura de temas

relacionados com espiritualidade e mística, veiculados tanto na grande mídia, quanto

em produções audiovisuais utilizadas pelos professores para a educação religiosa. A

abordagem Integral oferece uma metodologia que previne o absolutismo de

abordagens totalizantes, sem recair em uma metanarrativa, porque a concepção de

quadrantes, estágios e níveis de desenvolvimento se abre para todas as ciências,

relativizando suas conclusões de acordo com seus pontos de vista.

Já que a nova cultura audiovisual promoveu novos modos de compreender, é

imprescindível conhecer as metodologias de análise desta linguagem. A palavra

“imagem” tem sua raiz no latim imago, que se refere a toda e qualquer visualização

gerada pelo ser humano, seja em forma de objeto, de obra de arte, de registro

fotográfico, de construção pictórica (pintura, desenho, gravura), cinética (imagens

em movimento) e até de pensamento (imagens mentais)100. O ato de perceber

imagens e sons é um dos mais conhecidos modos de relação entre o ser humano e

o mundo. Um dos primeiros sentidos a se desenvolver já na gestação do ser

humano é o ouvir. O feto reage a estímulos sonoros no próprio ventre materno. Um

dos fatos mais marcantes de minha experiência de pai ocorreu no nascimento de

meu primeiro filho. No período de gestação sempre conversei com ele bem perto da

barriga de minha esposa. Acompanhei o parto e ao nascer ele chorava muito.

Porém, ao ouvir minha voz dizendo: “Não chore não. Papai está aqui!”, meu filho

parou imediatamente de chorar e se acalmou. Alguém poderia dizer ser apenas uma

coincidência, mas há estudos que comprovam o reconhecimento da voz dos pais

pelos recém-nascidos101. Logo após nascer o bebê começa a receber estímulos

100

Cf. COUTINHO, Iluska. Leitura e análise da imagem. In: DUARTE, Jorge; BARROS, Antonio. Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 330-344.

101 A fonoaudióloga Lorene Butkus Lindner afirma que “O bebê recém-nascido traz consigo uma

memória auditiva de pelo menos quatro meses”. Cf. LINDNER, Lorene Butkus. O feto como ser

67

visuais, ainda sem nitidez, mas que progressivamente vão se intensificando. É a

primeira linguagem do ser humano, estímulos sonoros e visuais, a linguagem

audiovisual. Através de imagens e de sons começamos a nos relacionar com o

mundo. Desenvolvemos desde cedo a capacidade de receber e reagir a estes

estímulos. A análise de imagens é uma faculdade natural de todo ser humano, uma

de suas formas mais comuns de comunicação com o outro e com a sociedade.

Além de recuar no tempo biológico ou fisiológico de uma vida humana,

podemos também recuar no tempo histórico e cultural da humanidade. O ser

humano sempre comunicou através de sons e imagens. As pinturas rupestres são as

mais eloquentes testemunhas de que a informação visual é o mais antigo registro da

história humana. “Do mito da caverna à Bíblia, aprendemos que nós somos imagens,

seres que se parecem com o Belo, o Bom e o Sagrado”.102

Na tradição judaico-cristã, que nos legou a cultura ocidental, desde o ato da

Criação, Deus cria o ser humano a sua imagem e semelhança103. O homem e a

mulher ficaram privados da visão de seu Criador. Não perceberam que Deus estava

presente neles mesmos, sua imagem e semelhança104. Deus estabelecera a sua

comunicação primordial com a humanidade através da dialética da ausência-

presença de sua imagem. O povo judeu acreditava que o ser humano não podia ver

o rosto de Deus sem morrer105. Mas Deus foi até as últimas conseqüências para se

comunicar com o ser humano ao se fazer Ele mesmo imagem humana na pessoa de

Jesus. A imagem do Criador é a imagem da criatura. “Quem me vê, vê o Pai” 106,

dizia Jesus no capítulo 14, versículo 9 do Evangelho de João. O rosto de Deus não

está mais oculto. E a partir da lenda da representação da face de Cristo no lenço da

Verônica, esta imagem do Deus feito homem se identifica com tantas imagens de

rostos sofridos da humanidade. É fascinante o fato de a única imagem que

provavelmente remeta à verdadeira imagem de Jesus seja a impressa no chamado

ouvinte. 1999. 48 f. Monografia (Especialização em Audiologia Clínica). Centro de Especialização em Fonoaudiologia Clínica, Porto Alegre, 1999. 102

JOLY, apud COUTINHO, 2008, p. 331.

103 Cf. o texto bíblico Gênesis 1,26-27. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada: Tradução da CNBB. São

Paulo: Loyola; Paulus, 2001. p. 17.

104 A segunda narrativa bíblica da Criação em Gênesis 2,4b-3,24 narra o mito de Adão e Eva, no qual

o ser humano rompe a relação harmônica com o mundo e com Deus. Ibid., p. 17-20.

105 No texto bíblico Êxodo 19,21 Deus adverte o povo de o ver. Cf. Ibid., p. 96.

106 Ibid., p. 1415.

68

Santo Sudário, uma peça única tecida em linho datada a cerca de dois mil anos que

teria envolvido o corpo de Cristo para o seu sepultamento e que misteriosamente

fixou a imagem de seu corpo ensanguentado. Ao ser fotografada, o seu negativo

revela a imagem de um homem com detalhes impressionantes do tipo de flagelo que

era infligido pelos romanos aos condenados à crucifixão107. Esta é a “fotografia” que

Deus deixou de sua imagem feito homem. Um corpo marcado pela violência da

injustiça. Somente este fato traz consequências filosóficas, antropológicas e

teológicas que mereceriam uma reflexão que extrapola os limites deste trabalho.

A linguagem cinética audiovisual é primordial e nos precede na história e na

cultura. Somos imagem e nela estamos imersos. Vivemos na era da imagem.

McLuhan já profetizava que viveríamos a mais forte mudança na história da

humanidade, mudança concernente à Eletrônica que potencializa a capacidade de

comunicação do ser humano ao extremo, a era da comunicação108. Curioso é

estarmos vivendo o ápice desse fenômeno e ao mesmo tempo encontrarmo-nos

inaptos para a leitura e análise da linguagem audiovisual. Esta dificuldade se

apresenta justamente por estarmos imersos nesta cultura da imagem. Ainda com

Martine Joly: “O trabalho do analista é precisamente decifrar as significações que a

„naturalidade‟ aparente das mensagens visuais implica”.109

A pesquisadora Iluska Coutinho110 agrupa a pesquisa da imagem em três

grandes grupos: imagem como documento, imagem como narrativa e exercícios do

ver. Na linha de investigação da imagem como documento, destacam-se as

abordagens de caráter etnográfico. A imagem é concebida como registro de uma

realidade, representação ou situação. Neste grupo predomina a fotografia por seu

caráter de registro técnico e isento da imagem, como evidência de que um fato

realmente aconteceu. O estudo da relação entre a imagem fotográfica e o objeto

representado levou os pesquisadores a se indagarem sobre o caráter de

objetividade da fotografia e destacarem o caráter de reconstrução não objetiva

107

Cf. MARINELLI, Emanuela. O Sudário: Uma imagem “impossível”. São Paulo: Paulus, 1998; BARBET, Pierre. A paixão de Jesus Cristo segundo o cirurgião. São Paulo: Loyola, 1983.

108 Cf. McLUHAN, 1972.

109 JOLY, apud COUTINHO, 2008, p. 43.

110 Cf. COUTINHO, 2008, p. 331-333.

69

presente na mesma. Os estudiosos da linguagem e da comunicação111 perceberam

que cada fotografia representa um recorte da realidade fotografada e, por isso, é

fruto de uma escolha consciente ou não do fotógrafo. Isto se aplica muito bem nas

fotografias usadas para fins publicitários. Porém, o caráter subjetivo da fotografia

não desvalida a análise da imagem como documento. A fotografia tem grande

importância como fonte histórica e é valioso registro das formas de ver ao longo do

tempo.

A segunda linha de estudos concebe a imagem como narrativa112, ora com

destaque na análise semiótica, ora privilegiando os aspectos discursivos da imagem.

Enquanto na linha de análise da imagem como documento predominam os registros

visuais estáticos, nas análises da imagem como narrativa os pesquisadores

privilegiam o estudo dos registros visuais em movimento tais como imagens

televisivas, de vídeo ou cinema. Alguns autores113 defendem que a análise destas

imagens não deve ser feita a partir de categorias linguísticas e sim através de

unidades puramente visuais: figuras geométricas, ângulos de câmera, montagem,

etc. O cuidado nesse processo é de não se ater à análise das imagens a partir da

formalização e abstração. É fundamental que se avance no estudo dos valores

sociais e culturais que estas imagens evocam.

Os estudiosos do terceiro grupo destacado por Iluska Coutinho estimulam

estudos que analisam as imagens como exercícios do ver114. O resultado da

banalização da imagem com o desenvolvimento dos meios de comunicação de

111

Cf. NEIVA JR., Eduardo. A imagem. São Paulo: Ática, 1986, p. 67; BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 129; LEITE, Míriam Lifchitz Moreira. Texto visual e texto berbal. In: Desafios da imagem: fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais. Campinas: Papirus, 1998; KOSSOY, Boris. A fotografia como fonte histórica: introdução à pesquisa e à interpretação das imagens do passado. São Paulo: Museu da Indústria, Comércio e Tecnologia de São Paulo, SICCT, 1980; LOUZADA, Silvana. A inauguração de Brasília pelas lentes de O Cruzeiro e Manchete. In: Mídia, ética e sociedade, Anais do XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Belo Horizonte: Intercom 2003. (CD-ROM).

112 Cf. MARANHÃO, Jorge. A arte da publicidade: estética, crítica e kitsch. Campinas: Papirus,

1988; SOUSA, Jorge Pedro de. Estereotipização e discurso fotojornalístico nos diários portugueses de referência: os casos do Diário de Notícias e Público. In: Mídia, ética e sociedade, Anais do XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Belo Horizonte: Intercom, 2003. (CD-ROM); SOUZA, Tania C. Clemente de. A análise do não verbal e os usos da imagem nos meios de comunicação. Ciberlegenda N. 6, 2001. Disponível em: <www.uff.br/mestcii/tania3.htm>.

113 Cf. VILCHES, Lorenzo. La lectura de la imagen: cine, prensa, televisión. Barcelona: Paidós,

1991.

114 Cf. MARTÍN BARBERO, Jesús; REY, German. Os exercícios do ver: hegemonia audiovisual e

ficção televisiva. São Paulo: Senac, 2001; SQUIRRA, S.C. Imagens e palavras. Palestra realizada nas Faculdades Integradas São Pedro: Vitória (ES), 1999.

70

massa foi o esvaziamento de sentido e a submissão à lógica da mercadoria. Em

outras palavras, a tecnologia e o ritmo acelerado em que as imagens são veiculadas

levou a uma mudança na forma de olhar que não privilegia o desejo de saber e sim

uma mera pulsação de ver. Daí a importância de (re)ver a maneira de analisar as

imagens numa perspectiva de busca de sentido.

Uma das questões fundamentais para a análise da linguagem cinética é a

transposição do código visual para o verbal. Pela premissa de os trabalhos

científicos serem apresentados no formato de texto há necessidade de se realizar

uma “tradução” das informações audiovisuais em signos lingüísticos, o que os

estudiosos chamam de “transcodificação midiática”115. Alguns pesquisadores

defendem a tese de que a transcodificação midiática implica numa redução dos

significados de uma imagem ou som devido à impossibilidade da linguística

representar a polissemia da linguagem audiovisual.116 De acordo com essa

perspectiva o resultado da análise seria a produção de novas imagens e sons.

Transpor em palavras os signos audiovisuais é necessariamente redutor porque se

trata de interpretar. Nesse processo a imagem e o som estão sujeitos a

interpretações subjetivas, tanto do produtor e do receptor das mensagens

audiovisuais, quanto do pesquisador. Porém o caráter subjetivo da análise cinética

não invalida a pesquisa, antes a torna mais consciente de seus limites. A questão é

encontrar a melhor metodologia para realizar essa transcodificação midiática. Uma

das opções é realizar a transposição na etapa de leitura e interpretação. Outra

opção é utilizar categorias da visualidade no início da análise e realizar a

transcodificação somente na redação final do trabalho. Seja qual for a escolha do

pesquisador o percurso para a análise audiovisual nas pesquisas de comunicação

envolve os procedimentos metodológicos de leitura, interpretação, síntese e

conclusão final.

A linguagem audiovisual é de natureza heterogênea devido ao seu caráter

polissêmico. A correlação entre essas heterogeneidades é o que define a sua

identidade. Essa correlação acontece através de operadores discursivos não verbais

que chamarei de operadores audiovisuais. São estes operadores as unidades de

análise da linguagem cinética: enquadramento, composição, luz e sombra, cores,

115

COUTINHO, 2008, p. 334.

116 Cf. NEIVA JR., 1986, p. 11.

71

cenário, ângulo da câmera, ritmo da edição, trilha sonora, entonação da voz, etc. A

apreensão das mensagens audiovisuais ocorre de maneira multifocal. A mensagem

afeta simultaneamente os sentidos e tem um efeito globalizante no receptor que a

experimenta. Há um envolvimento global, não racional, com a mensagem que atinge

primeiro os sentidos117. Daí a preponderância da linguagem do prazer porque trata-

se de um conhecimento sensorial. O protagonismo é da audiência que escolhe

aquilo que lhe dá mais prazer. As variações de tons dos operadores audiovisuais

alteram o conteúdo da mensagem.

O enquadramento é um dos principais operadores audiovisuais. Enquadrar

uma imagem é determinar qual parcela da cena representada será mostrada ao

público. Ao enquadrar uma cena o realizador define a sua mensagem. Para definir

os diversos tipos de enquadramento existe um padrão desenvolvido a partir do

desenho e da pintura e usado na fotografia, no cinema e na televisão, chamado de

planos. Os planos são os caracteres da gramática audiovisual. A convenção usada

no cinema varia desde o Grande Plano Geral, passando pelo Plano Geral, Plano de

Conjunto, Plano Médio, Plano Americano, Primeiro Plano, Close-up e Plano de

Detalhe. Cada plano usado define a intenção do autor de deixar ver uma parcela da

cena representada, desde o Grande Plano Geral, onde se vê grande parte da cena,

até o Plano de Detalhe, que mostra uma pequena parcela do objeto representado

para valorizar algum aspecto da mensagem. Cada recorte feito pelo autor tem uma

função narrativa.

O enquadramento, somado aos movimentos de câmera na linguagem

cinética, dá maior ou menor expressividade à mensagem. Os movimentos de

câmera mais comuns são a Panorâmica Horizontal ou Vertical, que tem a função de

dar uma visão panorâmica da cena ou objeto representado; o Dolly, movimento em

que a câmera se movimenta sobre rodas ou stead cam118 e se aproxima ou se

afasta do objeto; o Travelling, movimento horizontal da câmera sobre rodas ou stead

cam e a Grua, movimento livre da câmera com o auxílio de uma espécie de

guindaste. O posicionamento da câmera em relação ao objeto representado define

as intenções do autor da mensagem. A câmera alta (plongé) passa uma sensação

117

Cf. BABIN, 1993, p. 52-175.

118 Equipamento utilizado pelo cinegrafista para estabilizar os movimentos de câmera.

72

de inferioridade ao objeto representado, enquanto a câmera baixa (contra-plongé)

passa uma sensação de superioridade do objeto representado.

A composição é também um importante operador audiovisual. A composição

clássica é a chamada proporção áurea ou regra dos terços, na qual se divide o

espaço visual em três partes iguais e se define o centro de interesse da mensagem

visual. Apesar de a pintura, a fotografia, o cinema e a televisão terem desenvolvido

regras, tais como a proporção áurea e a perspectiva, a composição depende muito

da habilidade do autor na busca do equilíbrio dos elementos usados para compor a

mensagem. Uma boa composição compreende uma boa relação entre os espaços

livres e os objetos representados, compreende uma boa relação entre o fundo e a

figura que não significa uma relação de maior status entre eles.119 Uma boa

composição compreende as relações entre o primeiro plano e o segundo plano e

abarca também a busca da perspectiva que dá uma sensação de profundidade às

imagens.

Outro operador audiovisual é a relação claro/escuro, o uso de cores, cenário e

objetos de cena. Este conjunto de elementos visuais compreende o que é chamado

de “Fotografia” no cinema e na televisão. Uma boa Fotografia depende da forma

como uma cena é iluminada e da gama de cores utilizada para compor o ambiente.

A Fotografia é um elemento fundamental para o êxito da mensagem porque contribui

para criar uma atmosfera adequada à mensagem.

O elenco também deve ser analisado pelo pesquisador da linguagem cinética.

A relação entre protagonistas, figurantes, apresentadores, repórteres e personagens

também define as intenções do autor da mensagem cinética. O desenrolar destas

relações constitui o conjunto de fatos desencadeados numa obra de ficção, em

obras documentais ou jornalísticas. Esta análise deve considerar os operadores

audiovisuais de áudio, tais como os diálogos e a entonação nas falas dos atores,

apresentadores e repórteres.

Todos esses elementos são trabalhados na etapa final da produção

audiovisual, a chamada montagem ou edição. Na edição são trabalhados os

elementos da narrativa audiovisual para dar a forma final à mensagem. Ela define o

119

Cf. BABIN, Pierre; ZUKOWSKI, Angela Ann. Mídias, chance para o Evangelho. São Paulo: Loyola, 2005.

73

encadeamento ou ritmo da narrativa, sua temporalidade, dá um tratamento final às

imagens através de efeitos visuais de cores e movimento, compõe a trilha sonora.

Estes elementos discursivos são também operadores audiovisuais que devem ser

considerados na análise.

Estes operadores audiovisuais devem ser considerados dentro do contexto da

produção e recepção. A mensagem audiovisual é produzida através de diferentes

meios de comunicação (cinema, vídeo e televisão) que têm características próprias e

é recebida por públicos distintos. Há um certo consenso entre os estudiosos da

linguagem audiovisual de que as imagens têm função distinta no cinema e na

televisão. No cinema a imagem é vista como imagem mesma devido ao tamanho

das telas de exibição e à ambientação das salas escuras. Na TV há uma tentativa de

silenciamento da imagem pelo excessivo uso de comentários, áudio e cortes120.

Porém, apesar das diferentes funções que a comunicação cinematográfica,

videográfica e televisiva tem entre si, não diria que há uma diminuição do status da

imagem mesma com o seu uso na TV. Cada meio utiliza a imagem como imagem

que é, para estabelecer a comunicação com o seu público. Não vamos ao cinema

com as mesmas intenções e disposições com que nos colocamos em frente a uma

TV. Daí a necessidade da linguagem televisiva ser mais dinâmica e informacional. A

imagem continua com o seu status de imagem em todos os meios de comunicação

audiovisual. Imagem é toda representação visual construída pelo ser humano para

estabelecer uma comunicação. E aqui poderíamos incluir as novas mídias que a

tecnologia vem possibilitando, tais como a Internet, os iPods, iPads, MP4 e telefones

celulares, cada um desempenhando sua função na comunicação audiovisual.

A linguagem audiovisual tem sua gramática própria. Talvez sintamos

dificuldade em reconhecer os seus caracteres. Porém, estamos imersos nesta

linguagem, sendo afetados por ela a cada instante, a cada facho de luz que penetra

as nossas retinas ou ondas sonoras que vibram em nossos ouvidos. Estamos

imersos na cultura audiovisual contemporânea. A paisagem religiosa que

contemplamos na atualidade é pintada com matizes desta cultura. A geração atual já

nasceu dentro da cultura audiovisual e se desenvolve dentro da lógica desta cultura.

O Ensino Religioso deve considerar tanto a riqueza da paisagem religiosa atual

quanto a linguagem em que transitam os educandos. A linguagem audiovisual da

120

Cf. COUTINHO, 2008, p. 341.

74

cultura contemporânea se apresenta como oportunidade privilegiada para falar da

dimensão espiritual do ser humano.

O advento da interatividade estimula a participação. A cultura participativa

estimula a interatividade. As pessoas não querem só doutrinas, elas querem viver a

experiência. A educação religiosa deve promover o serviço comunitário, a

participação, a interatividade, a partilha das crenças e diferenças culturais para

despertar o espiritual. O Ensino Religioso na cultura audiovisual deve ter como base

o pluralismo e a Transdisciplinaridade. Deve mudar da linguagem racional para a

linguagem sensitiva com flexibilidade. O prazer pode dirigir a experiência espiritual

na cultura audiovisual. Comunicar o invisível é o grande desafio dos subsídios

audiovisuais para o Ensino Religioso. Estes subsídios devem expressar não os fatos

religiosos, mas a imagem somada à emoção e ao sentimento do sagrado. Assim o

educando poderá reconhecer que a mensagem religiosa toca-lhe primeiro no

coração porque é linguagem básica do seu ser.

O campo religioso abrange diversas ciências e cada uma delas desenvolve

sua própria terminologia para descrever o que é a religião. Vimos que há o perigo da

pretensão de uma abordagem unilateral do fenômeno religioso abarcar a totalidade

desse fenômeno. Na busca de uma epistemologia própria, as Ciências da Religião

deve considerar a contribuição dos mais diversos campos do saber. Portanto, esta

recente ciência constitui o seu aparato epistemológico apoiado nas demais ciências

que se interessam pelo religioso. A própria terminologia Ciências (no plural) da

Religião aponta para o seu caráter transdisciplinar. Por isso opto pelas perspectivas

da Transdisciplinaridade e da Modulação como um par de lentes epistemológicas

que melhor permitem enfocar o objeto de estudo deste trabalho. Por se tratar de

uma pesquisa que também abrange o campo da comunicação, tomo emprestado

desta área do conhecimento uma metodologia de análise de produtos de

comunicação coerente com o objeto de pesquisa.

75

3 Deus é brasileiro

Professores do Ensino Religioso utilizam programas televisivos,

documentários e filmes de ficção como subsídios para suas aulas. Porém, não basta

usar estes subsídios da mesma maneira como se usa um livro. É preciso conhecer a

sua linguagem, saber como identificar seus caracteres, ou melhor, como atuam os

operadores audiovisuais. Já os realizadores das produções de vídeos ou filmes que

se destinam ao Ensino Religioso, além de dominar tecnicamente a linguagem

audiovisual, devem conhecer a pluralidade religiosa da realidade brasileira. Estes

profissionais, artistas da imagem e do som, devem sentir-se tocados pela

diversidade cultural e religiosa para que esses sentimentos sejam veiculados em

suas obras. Não basta a piedade religiosa voltada para uma ou outra religião

específica, o que levaria à produção de materiais confessionais. As novas diretrizes

para o Ensino Religioso da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional121

exigem subsídios que contemplem a diversidade cultural e religiosa do Brasil e que

contribuam para o desenvolvimento da dimensão espiritual dos educandos.

O Fonaper, Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso, que reúne

professores e pesquisadores de todo o país em torno da temática do Ensino

Religioso, disponibilizou em sua home page uma lista com sugestões de filmes122

que podem ser usados como subsídios para aulas de Ensino Religioso. Nesta

amostragem selecionei o filme Deus é brasileiro123 para nos ajudar a entrar no

domínio da linguagem audiovisual. A análise desta produção contribui para uma

leitura integral dos fenômenos religiosos retratados nestes filmes, e ajuda a levantar

critérios para a produção adequada deste material. Qualquer um dos filmes

sugeridos pelo Fonaper poderia ser escolhido para este fim, porque são os filmes

mais utilizados pelos professores do Ensino Religioso nas escolas públicas e

particulares do Brasil.

121

BRASIL, 1997.

122FONAPER. Lista de filmes. Disponível na Internet. Http://www.gper.com.br. Acesso em 14 de nov.

2009.

123DEUS é brasileiro. Direção: Cacá Diegues. Roteiro: Cacá Diegues; João Emanuel Carneiro e

Renata de Almeida. Produção: Renata de Almeida Magalhães. Fotografia: Affonso Beato. Intérpretes: Antônio Fagundes; Wagner Moura; Paloma Duarte; Castrinho; Stepan Nercessian e outros. Rio Vermelho Filmes Ltda, 2003. DVD (110 min), cor.

76

Como vimos, dentre os diversos gêneros, a ficção é o mais adequado a esta

linguagem porque é eminentemente audiovisual. Daí a escolha de um filme para

esta pesquisa. A escolha do filme Deus é brasileiro se justifica porque é uma

produção que utiliza bem a linguagem cinematográfica e retrata a realidade e a

religiosidade brasileiras com sensibilidade. Ele nos ajuda a perceber como a matriz

religiosa brasileira está sendo veiculada nas obras cinematográficas nacionais. Nos

ajuda também a detectar se há coerência com a realidade e a diversidade cultural e

religiosa brasileiras nestas produções. Para comunicar sua mensagem, o diretor

usou com maestria a linguagem audiovisual, o que contribui para os propósitos deste

estudo. Esta produção nos ajuda a compreender melhor como se articulam os

operadores audiovisuais da comunicação cinematográfica e contribui para uma

busca de critérios para a produção de subsídios audiovisuais para o Ensino

Religioso no Brasil.

Deus é brasileiro é um filme nacional lançado em 2003, do gênero comédia,

dirigido por Cacá Diegues, um dos grandes diretores fundadores do movimento do

Cinema Novo, no início da década de 1960. O roteiro é baseado no conto “O Santo

que não acreditava em Deus“124 de João Ubaldo Ribeiro, e adaptado por Cacá

Diegues e João Ubaldo Ribeiro, com a colaboração de João Emanuel Carneiro e

Renata de Almeida. A fotografia é de Affonso Beato e a trilha sonora foi idealizada

por Chico Neves, Hermano Viana e Sérgio Mekler. O elenco é composto por Antônio

Fagundes, Wagner Moura, Paloma Duarte, Castrinho, Stepan Nercessian, Bruce

Gomlevsky e atores locais dos estados onde foi rodado o filme. As filmagens

aconteceram nos estados de Tocantins, Pernambuco, Alagoas e Rio de Janeiro.

O filme narra a vinda de Deus para o nordeste brasileiro em busca de um

santo que o substitua durante as suas férias. Deus está cansado dos problemas

causados pelo ser humano e precisa de um descanso. Ele está estressado e precisa

de férias. Deus, interpretado por Antônio Fagundes, aparece para um típico

borracheiro e pescador nordestino, interpretado por Wagner Moura, e lhe pede ajuda

nesta busca. Taoca, o borracheiro pescador, com o interesse de ganhar algum

benefício vantajoso de Deus, decide ajudá-lo. Aí se inicia uma jornada pela margem

esquerda do Rio São Francisco, passando pelos estados de Alagoas, Pernambuco e

124

Cf. RIBEIRO, João Ubaldo. Já podeis da pátria filhos e outras histórias. São Paulo: Nova Fronteira, 1991.

77

Tocantins, o que dá à obra cinematográfica características de um filme de estrada

(road moovie). Uma jovem, Madá, órfan de mãe e de irmão, interpretada por Paloma

Duarte, resolve fugir com os dois, sem saber que um deles é Deus. Eles adentram

pelo sertão em busca do santo, que era um militante de causas sociais. Mas o

objetivo não se concretiza, forçando-os a passar por vários lugares e encontrar

diversas pessoas e histórias de vida e sofrimento. Quando finalmente encontram o

tal santo, ele não aceita a proposta porque não acredita em Deus e o deixa furioso.

Daí em diante, o que parecia ser uma jornada perdida, se revela como realização de

uma profunda relação entre os personagens principais. Toda a história se desenrola

com muito humor, de uma maneira bastante leve e divertida.

O gênero comédia é um dos responsáveis pelo sucesso deste filme como

subsídio para o Ensino Religioso. Um dos maiores desafios do educador desta área

do conhecimento é falar de temáticas relacionadas à espiritualidade, à

transcendência, à busca de sentido e de valores da vida, ao respeito ao diferente, à

dignidade do ser humano, num ambiente escolar. A escola tradicionalmente

privilegia as demais disciplinas, basta ver a grade curricular. Somada a esta

dificuldade institucional, há a dificuldade da linguagem. Despertar no educando a

sensibilidade pelos temas do Ensino Religioso é um grande desafio para os

professores porque os jovens estão imersos na nova cultura eletrônica na qual os

educadores sentem dificuldade de transitar. O próprio nome da disciplina, “Ensino

Religioso”, torna-se uma barreira para a comunicação porque o educando tem

rejeição automática a tudo o que se relaciona com o “religioso”. Característica

presente não só na juventude, mas na sociedade contemporânea como um todo. Ao

mesmo tempo, há um fascínio do jovem pelo diferente, pelo exótico e pelo

sobrenatural, característico da pós-modernidade, que pode ser explorado como

abertura para a transcendência, mas que precisa ser maturada na dinâmica do

Ensino Religioso numa espiritualidade integral. A comédia, desde que não seja

jocosa, se apresenta como um instrumento para a quebra destas barreiras na

educação religiosa. Temas que a uma primeira vista parecem “chatos” ou sem

aplicação imediata para o jovem, tornam-se prazerosos quando tratados com humor.

Somada à dramatização, a comédia possibilita que o educando perceba que os

temas do Ensino Religioso fazem parte da vida, que têm influência direta no

cotidiano.

78

O drama é, portanto, o grande responsável pela capacidade do filme de nos

conduzir a um outro nível de realidade e de nos despertar para os grandes temas da

vida, de uma maneira mais sensível e agradável. Cacá Diegues, autor e diretor de

Deus é brasileiro, afirma que não teve a pretensão de discutir sobre Deus e nem de

ser religioso em seu filme125. Ele se apropria do Deus literário do livro mais lido da

literatura ocidental e o recria na tela. Para ele, a idéia de Deus, o criador, atua como

uma óbvia metáfora da condição do diretor de cinema, que também recria na tela o

mundo e os homens. A ficção possibilita a absurdidade de um Deus que vem à terra

procurar um santo e abre para a discussão de temas humanos que levam à

transcendência. Mesmo sem a pretensão de discutir Deus ou o religioso, a obra de

Cacá Diegues tem a capacidade de despertar no educando valores profundos a

serem aprofundados na dinâmica do Ensino Religioso. Isto acontece porque a obra

já não pertence mais ao autor desde o momento em que é exibida na tela. Daí em

diante, a dinâmica da linguagem audiovisual e sua polissemia, na relação entre a

sensibilidade do autor e a sensibilidade do público, abre para novos sentidos. A

natureza heterogênea da linguagem audiovisual, ao invés de tornar-se elemento de

dispersão, é um potente aglutinador de significado por sua capacidade de tocar a

pessoa como um todo e provocar um efeito globalizante. A correlação entre essas

heterogeneidades é o que dá o sentido à mensagem. No estudo desta obra

cinematográfica vamos perceber como acontece essa correlação através da análise

dos seus operadores audiovisuais.

A maneira como a realidade é captada em Deus é brasileiro traz os traços do

diretor, a “disposição pela razão de ser” que nos fala Pierre Babin. A filmografia de

Cacá Diegues tem como uma de suas principais características a busca da

brasilidade. Desde sua juventude cinematográfica, Cacá Diegues vê a identidade

brasileira retratada nas favelas do Rio de Janeiro ou no sertão nordestino. Era uma

maneira de mostrar um Brasil então desconhecido da classe média que povoava a

zona sul do Rio de Janeiro. O Cinema Novo retratava a realidade com tons de

denúncia ao expor as fraturas e contradições do tecido social. E Cacá Diegues não

fugiu à regra, embora em seus trabalhos mais presos a uma estética da denúncia,

ele tenha pintado a tela com os matizes alegres da riqueza popular do Brasil. O

125

Cf. DIEGUES, Carlos. Diário de Deus é brasileiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p. 14.

79

Cinema Novo surge num contexto de efervescência política com a ditadura militar e

reflete o papel do cinema de revelar o que se queria encobrir.

Já Deus é brasileiro surge num novo momento político do país em que a

eminente ascensão de um ícone do proletariado à presidência do Brasil reflete na

tela um olhar otimista. A câmera de Cacá Diegues percorre o nordeste brasileiro e

flagra as antigas carências do velho Brasil, mas as apreende com um olhar terno e

amoroso. Os planos abertos valorizam o cenário e mostram as belas paisagens

nordestinas. Deixam ver o horizonte recortado de palmeiras e os lindos bancos de

areia das margens do rio. Utiliza bem as perspectivas, valorizando a profundidade

das imagens. Trabalha bem a relação entre o fundo e figura em primeiro plano. Há

uma preocupação em não se concentrar exclusivamente nos atores nem no cenário,

mas em um “permanente equilíbrio entre a humanidade de um rosto e a paisagem

generosa, seja essa uma exuberante cachoeira no meio da mata ou uma miserável

favela no caos urbano.”126 Em Deus é brasileiro o cenário também fala, é um

operador audiovisual como são os planos. O uso sucessivo de planos fechados nos

diálogos confere identidade e verossimilhança à interpretação dos atores. O diretor

revela a preocupação com os enquadramentos pelo fato de ter feito o storyboard127

de boa parte do filme. Os usos da câmera alta (plongé) e da câmera baixa (contra-

plongé) nos diálogos entre Deus e Taoca têm a função de reforçar a sensação de

superioridade de Deus. Para acentuar a dramaticidade na medida certa, o diretor

utiliza a aproximação em travelling128, valorizando o sentimento vivido pelos

personagens.

A Fotografia de Affonso Beato, ao enquadrar, iluminar e dar cor à realidade

cultural da margem esquerda do rio São Francisco, revelam o belo, presente até

mesmo nas situações limite. A unidade visual é proporcionada pela textura do filme.

A luz é suave, e até sob o sol escaldante do meio dia, não acentua os contrastes de

luz e sombra, mas valoriza a beleza das cores. A intenção de Cacá e Affonso foi

dividir o filme em quatro fases fotográficas:

126

DIEGUES, 2003, p. 40.

127 O storyboard é o estudo preliminar dos planos que serão gravados no filme. Ele é feito através do

desenho de cada plano, como uma história em quadrinhos do que será o filme.

128 Movimento de câmera sobre um trilho na direção horizontal ou de aproximação.

80

Na primeira parte, na margem e na foz do rio São Francisco, a imagem deverá ser mais quente e brilhante, com azuis e verdes acentuados, sobretudo no encontro de Taoca com Deus. Conforme nossos heróis vão seguindo pelo continente adentro, em Recife, na caatinga, pela estrada etc., pretendemos dessaturar a imagem, descromatizá-la, fazendo com que quase perca sua cor. Quando Deus finalmente acha seu candidato a santo, a ideia é privilegiar um tom mostarda que lembre, ao mesmo tempo, a tradição de nossas igrejas barrocas e a vegetação desta parte do cerrado tocantinense, dominado pelo chamado capim dourado. Na última parte do filme, de volta ao São Francisco, a imagem volta também ao que foi no início dele.129

Essas nuances da fotografia aparecem de maneira sutil e até mesmo

imperceptível para o público do filme, mas o efeito produzido nos nossos sentidos

direciona e determina a mensagem. Uma marcação mais perceptível na fotografia do

filme é a que define os espaços oníricos e “reais” de Deus é brasileiro. Espaços

“reais” aparecem aqui entre aspas porque os espaços oníricos têm o mesmo status

de realidade que os espaços “reais” na linguagem audiovisual. O sonho de Taoca

que se repete e se completa no desenvolvimento do filme é uma metáfora visual do

drama vivido por ele. A entrada do céu no sonho de Taoca é representada por uma

estação de trem, cuja textura azulada e contrastada da imagem difere da vivacidade

e suavidade das cores dos espaços “reais”.

A direção de Arte de Vera Hamburguer também contribui na síntese entre

ficção e realidade no filme. O figurino de Deus em azul celeste contrasta com a cor

de terra do primeiro figurino de Taoca e com a as vestimentas comuns do povo do

sertão nordestino. O sobrenatural (Deus) se destaca e se integra, ao mesmo tempo,

com a realidade (nordeste). Do mesmo modo, a direção de Arte do filme conseguiu

ser fiel a cada locação. Utilizou bem os adereços de cena das culturas regionais,

contribuindo assim para a verossimilhança do enredo e para a atmosfera cultural da

margem esquerda do rio São Francisco. O cuidado com a composição visual está

presente em todas as cenas do filme. Os cenários e ações que neles ocorrem

captam nossa atenção por si só e transmitem a mensagem. Os operadores

audiovisuais enquadramento, composição, arte e fotografia, bem utilizados, como

nesta obra cinematográfica, desvelam a intencionalidade do autor e contribuem para

o estabelecimento da comunicação entre autor e público.

129

DIEGUES, 2003, p. 33.

81

Cinema é a arte da imagem em movimento. E o enredo do filme Deus é

brasileiro é marcado pelo movimento da busca pelo santo para substituir Deus,

passando por diversos estados do Brasil. É um filme de estrada, um road moovie de

histórias que se entrecruzam e se unem por algo comum. As aproximações

sucessivas entre os personagens vão construindo o enredo. Esta mobilidade é muito

bem trabalhada através do encadeamento das imagens, efeitos visuais, diálogos,

sonoplastia e trilha sonora na montagem do filme. As imagens permanecem na tela

o tempo suficiente para serem apreendidas pelos sentidos. Há uma alternância entre

ritmos de montagem mais rápidos e mais lentos, de acordo com a mensagem visual

a ser apresentada. Logo no início do filme, a cena em que Taoca coloca pregos na

estrada para furar o pneu dos carros é secionada em elipses da mesma sequência,

num ritmo que cria a sensação de dinamismo, enquanto em outro momento do filme,

quando Deus é invadido por sentimentos nostálgicos diante de sua criação, a edição

de imagens demora-se em paisagens bucólicas de pôr do sol. O ritmo das imagens

contribui para a carga emocional do filme e para a dramatização, na alternância

entre momentos de pico dramático e de relaxamento.

A montagem é primordial para captar e manter a atenção do público,

especialmente nos longas-metragens do cinema. A longa duração dos filmes é vista

como um fator que dificulta o seu uso como subsídio para aulas do Ensino Religioso,

devido à carga horária limitada desta disciplina. Porém, o que parece ser um

empecilho, é uma vantagem para a educação. É preciso um tempo psicológico

suficiente para que o público “entre na história”. E o longa-metragem permite ao

realizador utilizar bem os minutos iniciais de uma produção para criar no público

essa sensação de fazer parte da história. O filme “gasta” tempo nas primeiras

aparições dos personagens-chave para criar uma identificação com o público. No

filme Deus é brasileiro, o diretor utilizou a cena onírica para criar essa simbiose entre

o público e a história. A solução para o uso do longa-metragem nas aulas do Ensino

Religioso é realizar um trabalho transdisciplinar que possibilite a exibição durante o

tempo de duas aulas, envolvendo disciplinas que possam contribuir para um

aprendizado integral a partir do filme exibido. A montagem cinematográfica que

utiliza bem a alternância de ritmos para o desenvolvimento do enredo torna-se

fundamental para as produções destinadas ao público jovem, acostumado ao ritmo

82

dinâmico das produções televisivas. Contribui também para uma educação do olhar

defendida pelos pesquisadores da imagem como exercícios do ver.

Os efeitos visuais são fundamentais em uma produção como Deus é

brasileiro, que tem Deus como personagem. Cacá Diegues contou com uma

tecnologia avançada de efeitos especiais para realizar este filme. O cinema brasileiro

não contava com esses recursos até então inacessíveis aos orçamentos das

produções realizadas no Brasil. O diretor utilizou tecnologia de ponta e assegurou

um equilíbrio importante no uso dos efeitos especiais. Os efeitos tiveram a função de

ajudar a narrar a história. Estão, portanto, em função do enredo do filme. Além da

preparação de detalhados story boards, Cacá Diegues organizou um trabalho de

pré-produção que foi decisivo, tanto para o planejamento das filmagens, quanto para

a preparação dos efeitos especiais.

Destaca-se também a interpretação dos atores para tornar verossímil os

efeitos. No encontro de Deus com Taoca, ele realiza um “milagre dos peixes” para

que o borracheiro pescador acredite que ele é Deus. Os peixes que interagem com

Taoca foram criados digitalmente em tecnologia 3D, a partir da textura de peixes

reais, e o ator precisou ser bem orientado em seus movimentos para que houvesse

sincronismo na montagem final. A cena final também contou com a tecnologia digital

e resultou numa das mais belas cenas do filme. Nesta cena Taoca e Madá estão

deitados numa canoa e a câmera faz um movimento giratório de grua em contra-

plongé. No rio vê-se os peixes saltando e girando em torno da canoa. A lua reflete

sua imagem no rio. Toda essa cena foi gravada em um estúdio, sobre um fundo

azul, que posteriormente foi substituído pelas imagens do rio, com os peixes,

refletindo a lua. E a partir de uma certa distância, toda a imagem foi substituída por

imagens digitais, até a câmera abrir para um plano geral do rio. O curioso é que

grande parte dos efeitos visuais do filme foram realizados em um equipamento

chamado “Inferno”.

O movimento de aproximações sucessivas no filme Deus é brasileiro está

presente também na relação entre o folclórico e o moderno, expressa na trilha

sonora. As músicas refletem a cultura da margem esquerda do rio São Francisco

numa simbiose entre as expressões tipicamente regionais e as inovações

contemporâneas. A nova cultura convive em harmonia com a antiga. É o resultado

da presença de Nelson da Rabeca, Quinteto Armorial, Lenine, Cordel do Fogo

83

Encantado e Nação Zumbi na mesma trilha sonora de Deus é brasileiro. Essa

mixagem vem na direção da cultura eletrônica que faz a síntese entre o arcaico e o

moderno, quebrando essa lógica binária e entrando numa lógica ternária que

incluem novas expressões. No filme isto aparece bem expresso na execução de

músicas de Luiz Gonzaga com os arranjos contemporâneos de Lenine. Desta

maneira, o operador audiovisual trilha sonora também contribui para criar uma

aproximação entre o filme e o educando, imerso na cultura eletrônica.

Um dos operadores audiovisuais que mais contribui para o êxito de uma

produção audiovisual, especialmente no contexto da educação, é o operador

diálogo. Uma produção pode ser brilhante do ponto de vista da fotografia, na

qualidade técnica e beleza das imagens, mas se os diálogos não forem bem

construídos e bem interpretados, se a entonação dos atores não corresponder com

a carga dramática das cenas, todo o trabalho cai por terra. Para a definição dos

atores do filme Deus é brasileiro o diretor realizou testes com centenas de pessoas.

Somente para a escolha do intérprete de Taoca foram realizados vários testes. Cacá

Diegues ressalta que encontrou diversos atores do mesmo nível de Wagner Moura,

mas se convenceu de que o então jovem ator seria perfeito para o papel por sua

desenvoltura na pele do personagem. O único ator que já estava definido na cabeça

do diretor desde a criação do roteiro era Antônio Fagundes no papel de Deus. Para

Cacá Diegues, somente Fagundes poderia interpretar o Deus de Deus é brasileiro.

O Deus de Deus é brasileiro, embora aparentado um homem maduro, branco

e de cabeça branca, quebra algumas imagens pré-concebidas que temos de Deus.

Ele é estressado e não gosta de fazer milagres. A última coisa que se pode esperar

dele é que passe a mão na cabeça das pessoas. Ao mesmo tempo é um Deus

orgulhoso de sua criação e insatisfeito com os rumos tomados pela humanidade,

como expresso em suas palavras no filme:

“Você não sabe como foi a primeira manhã no paraíso. Eu tinha acabado de criar o mundo. Quando eu me vi na frente daquela beleza toda, eu senti foi um orgulho de mim mesmo. Era tudo uma perfeição.”

“A culpa não é minha, a culpa não é minha! Eu fiz o mundo e logo em seguida o livre arbítrio.[...] Eu deixei o destino nas mãos de vocês. Tá aqui, vão em frente com toda liberdade, agora vocês resolvem. E eu fico levando a culpa de tudo! Não posso fazer mais nada.”

84

Essa imagem de Deus é construída pela interpretação de Antônio Fagundes

e transparece nos seus diálogos e monólogos no filme. É um Deus que fala a nossa

língua, de uma maneira muito coloquial, do jeito da gente, por onde ele passa. A

entonação de sua voz, a variação dos tons, toca nossos ouvidos e provoca uma

sensação. Esse paradoxo da imagem de Deus veiculado no filme Deus é brasileiro

está presente nas diversas revelações de Deus nas religiões, resultado da maneira

como as diferentes culturas humanas interpretam as manifestações do sagrado.

Esse pluralismo das concepções do sagrado é importante para quebrar nossa

imagem pré-concebida da Divindade e nos conduzir a uma visão madura do

fenômeno religioso. Esse é um fator positivo para o Ensino Religioso, o fator

surpresa de uma imagem de Deus totalmente inesperada para o imaginário do

educando, que o “pega” de surpresa e capta sua atenção.

O personagem Taoca aparece como o interlocutor de Deus que encarna a

visão média das nossas maneiras de conceber a Divindade. Taoca é a voz do

público em suas reações diante desse Deus tão inesperado. Diferente do inusitado

Deus, Taoca é o estereotipado malandro nordestino, herdeiro de João Grilo do Alto

da Compadecida de Ariano Suassuna. Ele é o principal responsável pelo tom de

comédia impresso no filme. Na boca desse personagem, Cacá Diegues coloca as

principais questões do ser humano diante de Deus. Porém, por mais profundos ou

supérfluos que sejam, esses questionamentos são colocados com muita

naturalidade e humor, trazendo leveza ao filme. E o ator baiano Wagner Moura

desempenha bem o papel de tornar o personagem verossímil para o público. É esse

malandro, borracheiro de beira de estrada, que Deus escolhe como companhia em

sua busca pelo santo no sertão do Brasil. Cacá Diegues define Deus é brasileiro

como “um filme sobre a grandeza de certos defeitos humanos, um elogio da

imperfeição”130, aludindo às fragilidades, fraquezas e defeitos do ser humano que

estão presentes no filme e que dão grandeza à natureza humana.

Até aqui empreendemos uma leitura dos principais caracteres da linguagem

audiovisual que aparecem através de diversos operadores audiovisuais. Em todos

os operadores audiovisuais que analisamos no filme Deus é brasileiro o drama está

presente. Na dramatização dos atores, no contraste entre atores e cenários, entre

figurinos, no equilíbrio da fotografia, na tensão da estrada. O drama está presente

130

DIEGUES, 2003, p. 13.

85

em todo o filme, na ação de todos os personagens, desde a jornada dos três

protagonistas, Deus, Taoca e Madá, até nos personagens incidentais que eles vão

encontrando pelo caminho. Porém, é um drama que não carrega na dramaticidade,

tem pouca ênfase dramática, mas traz no seu interior a tensão indispensável para o

êxito de qualquer obra cinematográfica. Do interior do drama, carregado de tensões

entre o humano e o sagrado, surge o terceiro incluído da lógica transdisciplinar.

Deus é brasileiro transcende a lógica binária e deixa entrever uma lógica ternária

tanto no drama do fazer o caminho, quanto no drama dos que aparecem na estrada.

O sagrado aparece nestes encontros entre Deus e o humano, e no encontro entre

personagens distintos. A Transdisciplinaridade de Barsarab Nicolescu e a

Modulação de Pierre Babin ajudam a compreender como o sagrado aparece nestas

relações e pode ser captado pelo educando no Ensino Religioso.

Como vimos na Figura 3, a abordagem Transdisciplinar pode ser aplicada ao

audiovisual. O filme, Realidade cinética, constitui o objeto transdisciplinar e o

educando é o sujeito transdisciplinar, aquele que assiste ao filme e frui sua

mensagem. A Realidade cinética é constituída de diversos níveis de Realidade, que

são percebidos através de vários níveis de percepção pelo educando.

Figura n. 6 – Zonas de transparência absoluta da Realidade cinética.

86

A Modulação de Pierre Babin nos ajuda a perceber os diversos níveis de

apreensão da mensagem na linguagem audiovisual. A linguagem da Modulação

atua como o ambiente ideal para a experiência do sagrado na linguagem

audiovisual. A mensagem audiovisual constitui um fluxo de informações que passa

por entre e além dos níveis de Realidade, através da lógica do terceiro incluído. É

toda informação gerada pelos operadores audiovisuais no filme Deus é brasileiro.

Essas informações ultrapassam os níveis de Realidade conhecidos, na direção da

ficção a uma zona de transcendência absoluta, e na direção da eletrônica a uma

zona de imanência absoluta, que constituem as zonas de não resistência à

percepção ou zona de transparência do Real. Esse fluxo de informações,

representado pelas flechas da Fig. 6, perpassa os níveis de Realidade, o que

possibilita uma comunicação entre o Real e a Realidade.

Uma dinâmica semelhante acontece com a percepção do educando. Um fluxo

de conhecimento perpassa os níveis de percepção do educando na direção de uma

transcendência absoluta e/ou de uma imanência absoluta, de acordo com sua maior

imersão no imaginário do filme, e/ou de sua sensibilidade às informações

audiovisuais.

Figura n. 7 – Ponto de Modulação

87

A comunicação acontece quando há correspondência entre o fluxo de

informações e o fluxo de conhecimento no ponto de Modulação, indicado na Figura

7. A Modulação é o que possibilita a correspondência entre os níveis de Realidade

e de Percepção e entre as zonas de não resistência ao sagrado. É o ponto de

sintonia entre o que está sendo transmitido no filme e o que está sendo assimilado

pelo educando. Porém, esta assimilação acontece em várias etapas. E o filme Deus

é brasileiro nos ajuda a compreender como elas acontecem.

A primeira etapa é o que Pierre Babin chama de “choque audiovisual”. É o

primeiro estímulo que acontece no nível de Realidade Audiovisual e é percebido no

nível de percepção Audiovisual correspondente. É a primeira impressão diante do

filme, que acontece, como já foi visto, nas cenas iniciais com o sonho de Taoca e

algumas sequências seguintes. Essas cenas têm o objetivo de tocar a nossa

sensibilidade, produzir uma ruptura e nos conduzir a uma troca de registro, ou seja,

de fazer com que o público “entre na história”. É nesta etapa que nos são

apresentados os personagens e temos a primeira impressão diante deles.

A etapa seguinte é a de um “abalo” sem conteúdo preciso, que constitui um

ligeiro aprofundamento desse conhecimento inicial. É quando nos sentimos

envolvidos com o drama que nos é apresentado. Se dá também nos minutos iniciais

do filme. É quando sentimos o medo que Taoca tem de Baudelé Vieira, quando

sentimos a vontade de Deus encontrar o santo para substituí-lo, quando sentimos o

estresse de Deus, quando sentimos a inconstância de Madá... Note que tudo é na

ordem do sentimento e se dá num nível de maior imanência provocado pelos

recursos do nível de Realidade eletrônico e percebidos num nível de percepção

sensitivo, como mostra a Figura 7. Nesta etapa da apreensão audiovisual nos

sentimos vibrando com os personagens do filme. Mas ainda não há uma

compreensão clara, mas sim uma confusão de sentimentos provocados pelas

vibrações eletrônicas das imagens e dos sons. Essa vibração, que no filme Deus é

brasileiro é marcada pelo tom de comédia, dá a tonalidade afetiva que vai determinar

a mensagem.

Somente agora, na terceira etapa identificada por Pierre Babin, a da

“elaboração do sentido”, é que o educando “se entrega” inteiramente à dinâmica

audiovisual. É quando o público busca um sentido para as imagens e sons que está

recebendo, mesmo sem compreender de maneira conceitual. Mas passa a

88

compreender num outro nível de maior transcendência. É a etapa em que, como se

vê na Figura 7, se entra no nível de Realidade Ficcional e no correspondente nível

de percepção do Imaginário. Nesta etapa o público perde qualquer distância crítica

diante da história. É quando, no filme Deus é brasileiro, perdemos a noção do tempo

real e estamos totalmente imersos dentro do filme, com os personagens, seguindo

Deus na sua busca pelo santo. Quando vibramos com os acontecimentos da história

ou quando rimos das conversas de Taoca com Deus. É o nível de maior grau de

afetividade e de emoção. E por isso é o nível de maior possibilidade de conduzir o

educando a sentimentos espirituais de transcendência. Quem não se sente movido

por um verdadeiro sentimento de amor na cena final de Taoca e Madá na canoa? Aí

passamos a compreender e não somente sentir. Mesmo sem uma clareza da

mensagem do filme, percebemos que, antes de se tratar de um filme de religião, o

filme trata de sentimentos profundos, como o sentimento do amor. E chega-se a

essa percepção, não pela via da racionalidade instrumental, mas porque se “sente

com” o personagem do filme, pela via de uma racionalidade intuitiva que opera

através do sentimento.

A percepção audiovisual vai se tecendo na trama do enredo, na superação

das dualidades e na integração dos sentimentos em outros níveis mais imanentes ou

transcendentes de realidade, perpassados pelos fluxos de informação e de

conhecimento. Quanto mais imanente ou transcendente, estes níveis de realidade

se aproximam de uma zona de transparência do Real, que também perpassa esses

níveis através dos fluxos de informação e conhecimento, e possibilita ao audiovisual

veicular mensagens carregadas de espiritualidade, ou seja, de tudo o que torna o

educando mais humano e, portanto, mais divino.

Mas não basta mergulhar na linguagem audiovisual e curtir os sentimentos

provocados pelo filme. Pierre Babin sugere que é preciso ainda uma quarta etapa

em que se estabelece um distanciamento intelectual para fazer uma análise crítica

que conduza à compreensão da mensagem. A esta fase do ato de compreender na

cultura audiovisual chamamos de “ressonância”. Aqui o educador tem um papel

fundamental na educação religiosa: O papel de ajudar o educando a refletir sobre o

que se viveu e sentiu. Existem diversas técnicas e metodologias direcionadas ao o

julgamento crítico sobre o conteúdo, a forma, a linguagem, a técnica, os processos

utilizados, as pretensões comerciais e econômicas postas em jogo. E todas estas

89

metodologias são bem-vindas. O importante é contribuir para uma visão madura do

educando diante da realidade que aparece no filme, uma visão que integre os

conteúdos do filme nas dimensões da realidade. O Pluralismo Metodológico Integral

de Ken Wilber contribui para esta etapa do conhecimento. O cuidado é não deixar

que o educando recaia sobre algum absolutismo de quadrante ao interpretar o filme,

mas que integre o conhecimento adquirido no quadro geral dos quadrantes que

representam a realidade, como vimos na Figura 4.

Ao discutir, por exemplo, sobre a criação do mundo, tema recorrente no filme

Deus é brasileiro, o educando pode recair no cientificismo do quadrante superior

direito e conceber a criação como fruto de uma evolução iniciada pela grande

explosão do Big Bang, em contraposição aos mitos da criação realizada por Deus

nas diversas religiões, concepção própria do quadrante superior esquerdo. O

absolutismo de quadrante pode acontecer também de maneira inversa, levando o

educando a uma concepção estreitamente fechada na visão mitológica da criação,

em contraposição com os avanços científicos. O Pluralismo Metodológico Integral

propõe não só a reconciliação destas concepções nos quadrantes superiores, mas

sobretudo a integração do fenômeno da criação em todos os quatro quadrantes,

incluindo a sua repercussão na visão de mundo (quadrante inferior esquerdo), no

sistema social e na ecologia (quadrante inferior direito). Desta maneira o educando

perceberá que a criação vista pelos mitos é tão real quanto a criação vista pela

ciência, desde que situada no seu devido quadrante e em seu respectivo estágio de

desenvolvimento.131 Perceberá que essas diversas concepções da criação têm

repercussões em toda a realidade, desde as visões do ser humano e do sagrado,

até as concepções da natureza e da sociedade. Não se trata de alimentar a

polêmica evolucionismo x criacionismo, mas de superar esta lógica binária e ajudar o

educando a integrar o fenômeno da criação no seu devido lugar na realidade e no

conhecimento, dentro de uma nova lógica que corresponda melhor a essa realidade.

Outro absolutismo de quadrante extremamente nocivo ao novo Ensino

Religioso previsto no Art. 33 da LDBEN132 é justamente o absolutismo do quadrante

superior esquerdo, que consiste em considerar como verdades absolutas as

131

Sobre estágios de desenvolvimento, cf. nota 98 na p. 61.

132 Como vimos no capítulo 1, o Ensino Religioso previsto pela atual legislação brasileira prevê uma

abordagem do fenômeno religioso que contemple a realidade e diversidade religiosa e cultural do Brasil. Cf. BRASIL, LDBEN, 1997.

90

asserções pré-modernas de religiosidade e espiritualidade, em contraposição às

verdades adquiridas com a modernidade e pós-modernidade. É a tendência

predominante no Ensino Religioso confessional. Essa perspectiva leva a uma

compreensão limitada e estreita das mensagens veiculadas em filmes como Deus é

brasileiro. Interpretações como a de que o Deus de Deus é brasileiro é católico

porque cita constantemente episódios bíblicos, pela presença da simbologia bíblica

em vários momentos do filme (os nomes de Deus, a pesca milagrosa, a sarça

ardente, nomes de personagens como o menino Messias, medalhinha de Nossa

Senhora do Perpétuo Socorro, e outros); ou que é protestante porque se encantou

com a pregação de um pastor e lhe ajudou financeiramente, são interpretações que

não situam o enredo em seu contexto. Uma abordagem integral coloca o Deus de

Deus é brasileiro no seu devido lugar, como o próprio Deus afirma no início do filme:

“Se eu fosse Deus das girafas, vinha com cara de girafa.”

No filme que estamos analisando, a relação de Deus com a religiosidade

popular é muito tênue, chegando ao desprezo, como nas cenas em que Deus não

demonstra nenhum interesse pelas orações e até reclama delas, ou na sequência da

cidadezinha do interior de Tocantins em que a presença do padre é ignorada, ou na

cena em que Deus reage diante do fato de Madá estar fazendo consulta a espíritos

pela internet. Estas manifestações religiosas retratam bem a religiosidade matricial

presente no cenário cultural em que acontece o filme. Religiosidade

predominantemente católica popular, com influências do catolicismo europeu, do

neopentecostalismo protestante e do espiritismo. Porém, a relação de Deus com

essas expressões no filme é, antes de tudo, de uma denúncia sutil do desamor e da

injustiça. Na cena noturna na frente da igreja de portas fechadas e cheia de

mendigos que brigam por um pedaço de pão, Deus diz que fez alguma coisa errada

na criação do homem. Em outra ocasião Deus denuncia a atitude incoerente do

padre que aproveitava da irmã de Taoca. Ao reclamar das orações, denota uma

religiosidade utilitarista e mágica:

“Tudo acaba sempre nas minhas costas mesmo! Todo mundo só quer moleza, é tudo de mão beijada. É só Deus me dê saúde, Deus me dê marido, Deus me faça ganhar na loteria, Deus mais isso, Deus mais aquilo, é Deus quem sabe. Não tem quem aguente mais, é tudo eu,eu,eu,eu,eu... A pessoa se estressa!”

91

A pretensão de Cacá Diegues não é falar da religiosidade brasileira em seu

filme. Mas um filme ambientado na margem do rio São Francisco não poderia deixar

de entrever essa religiosidade. Porém, a ficção permite trabalhar esse tema em outro

nível de realidade, permite que a religiosidade brasileira apareça como um pano de

fundo que compõe a cena, sem ser o principal, mas que está sempre presente em

suas tipologias culturais. Assim, desde o início do filme, no sonho de Taoca,

aparecem elementos da diversidade religiosa brasileira, como na secretária

eletrônica do “serviço geral de informações celestiais” que tem como opções

religiosas o cristianismo, o espiritismo e o islamismo. E Taoca, é claro, opta pelo

cristianismo católico romano, embora não seja praticante, como a maioria dos

brasileiros. Na mesma cena do sonho, Taoca recorre a Nossa Senhora como a

intercessora nas suas dificuldades. E é nessa mesma religiosidade mariana que o

final do filme se inspira. É a medalhinha de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro que

salva Madá da morte.

Mesmo sem a pretensão de falar sobre teologia ou religião, Cacá Diegues dá

algumas “alfinetadas” no cristianismo. Na cena da pensão, Deus critica a imagem de

Jesus com “esse olhar azul” e com “essa cara de americano”. E o moço da pensão

faz um ataque frontal, usando o mesmo “foi tudo errado” que Deus sempre repetiu

no filme ao criticar os homens: “Foi tudo errado, é o pai que tem que se sacrificar pro

filho vencer na vida!”, se referindo ao sacrifício cristão. Quando revela a Taoca a sua

pretensão de encontrar um santo no Brasil e Taoca fica surpreso com a

nacionalidade do santo, Deus diz: “O Brasil é um dos países mais religiosos do

mundo e nunca teve um santo reconhecido oficialmente.” Outro elemento que

aparece no filme compõe o contexto de secularização das religiões tradicionais: O

fenômeno do ateísmo, na reação do “santo que não acreditava em Deus”, tem uma

carga mais fundamentalista do que as próprias religiões dentro do filme.

Embora o filme apresente elementos importantes da religiosidade no Brasil,

falta-lhe alguma alusão às matrizes religiosas afro-brasileiras e indígenas, tão

presentes na religiosidade popular da margem esquerda do rio São Francisco e do

interior do Brasil. Nem mesmo nas cenas que acontecem na aldeia indígena essa

religiosidade não aparece. Seria interessante, ver no filme, Deus visitando um

terreiro de Candomblé. Embora Bittencourt Filho afirme o êxtase religioso como

ápice da experiência do Sagrado na religiosidade brasileira, o filme Deus é brasileiro

92

não carrega nas tintas da busca pelo transe com uma carga emocional. Isso iria

desviar o motivo principal que vai aparecendo na trama do filme, que, pelo contrário,

acaba sendo a humanização de Deus e a divinização do ser humano.

É essa a grande Modulação que esse filme produz no público. Graças à

dinâmica transdisciplinar audiovisual, a pretensa busca de um santo para substituir

Deus torna-se uma busca da humanização de Deus e da divinização do ser humano.

A Eletrônica possibilita à Realidade cinética vibrar os sentidos do público e envolve-

lo por inteiro no nível de percepção Sensitivo. Pela imersão no nível de percepção

Imaginário o público entra no espaço-tempo da Realidade ficcional. Sem perceber, o

educando está imerso nesse novo cosmos criado pela trama do filme. O que, no

primeiro nível de Realidade audiovisual, parecia ser uma busca por um santo

passando por várias localidades do Brasil nordestino, se revela, no nível de

Realidade ficcional, como o encontro de Deus com a humanidade. O espaço

ficcional realiza o seu papel mistagógico133 no audiovisual, o papel de possibilitar

que o público adentre no mistério humano e divino.

O terceiro incluído que faz a reconciliação entre o humano e o Sagrado nesta

trama é o amor. Como explicar o paradoxo humano/sagrado? Num nível superficial

humano e sagrado são realidades dicotômicas que não podem se reconciliar. A

lógica do terceiro incluído aponta o caminho. Num outro nível de realidade, em

nosso caso o ficcional, humano e sagrado se reconciliam, o sagrado se torna mais

humano no amor, e o humano se torna mais sagrado no amor. O Deus estressado

do início do filme vai se humanizando na medida em que caminha por esse sertão e

contempla a beleza de sua gente, mesmo sofrida, a beleza de Madá, que se revela

na cena da mágica no Recife antigo, na relação de Madá com o povo na boleia do

caminhão, na simplicidade da dança do côco da festa de casamento no sertão, na

beleza da natureza pujante em meio à aridez, na poesia do Cordel do Fogo

Encantado que canta: “Foi com os homens que Deus aprendeu a amar”, e ao

133

“Mistagogia” é um conceito caro aos padres dos primeiros séculos da era cristã, período conhecido na teologia católica como patrologia, e que, a partir do Concílio Vaticano II, vem se impondo na teologia litúrgico-sacramental como método mistagógico, no qual se faz teologia através da análise do rito, a partir da experiência vivida no mesmo. Extraído da teologia cristã, este conceito nos ajuda a compreender como a linguagem audiovisual contribui para levar o educando a viver uma experiência do Mistério, que perpassa todos os níveis de Realidade, elevando o ser humano em direção a uma maior transcendência e imanência. Cf. GIRALDO, Cesare. Num só corpo: Tratado mistagógico sobre a eucaristia. São Paulo: Loyola, 2003, p. 1-24.

93

explicar o canto Deus diz que “foi amolecendo o coração com o dengo dos anjos

caídos”.

O amor é o terceiro incluído que une dois opostos como Taoca e Madá, que

numa primeira visada pareciam tão diferentes. Aqui aparece novamente um

antagonismo em um nível superficial de realidade, que visto em outro nível, se

reconcilia. Taoca finalmente vê que a Nossa Senhora de seu sonho reflete o rosto

de Madá. E no final os dois se unem numa linda cena numa canoa no meio do rio

São Francisco. É o ápice do filme e revela a “disposição pela razão de ser” de que

nos fala Pierre Babin, a mensagem do diretor do filme: Deus se humanizou e o

homem se divinizou no amor de Taoca e Madá, “um elogio da imperfeição”134.

A razão de ser do filme Deus é brasileiro, revelada no final, só tem sentido

porque foi construída em todo o caminho percorrido pelos personagens. Como disse

Taoca na cena final: “Eu acho que a vida é um porto, onde a gente não chega no

final nunca.” Ou seja, o sentido se constrói no ato de caminhar, pois o Real perpassa

todo o caminho, e não está no início ou no fim. A viagem como fator de

transformação é o leitmotiv do filme. Não é atoa que esse gênero é chamado no

cinema de filme de estrada, o road moovie. É extremamente cinematográfico porque

o cinema é a arte do movimento. E no filme de estrada tudo está em movimento, os

personagens mudam e a paisagem também muda. Em Deus é brasileiro as histórias

se entrecruzam e se unem pela mobilidade. A lógica do filme, ao contrário de uma

lógica dual, tão presente nos filmes norte americanos repletos de antagonismos, em

que só alcança o seu termo na eliminação do oponente, se dá em Deus é brasileiro

na dinâmica de uma lógica ternária. Nesta lógica os fluxos de informações e de

conhecimento perpassam toda a narrativa, e reconciliam os antagonismos em outros

níveis imanentes de sensação, e em outros níveis transcendentes do imaginário e do

ficcional. É na travessia que se revela o mistério humano e divino. Deus é brasileiro

realiza assim uma mistagogia do caminho.

134

DIEGUES, 2003, p. 13.

94

CONCLUSÃO

Desde o início foi proposta uma busca de critérios para a produção de

subsídios audiovisuais para o Ensino Religioso. Uma hipótese que percorreu todo

esse percurso é a de que o audiovisual é capaz de contribuir para uma experiência

do sagrado, especialmente no contexto cultural contemporâneo, tão marcado pela

linguagem eletrônica das mídias.

Buscamos na história do Ensino Religioso no Brasil uma fundamentação

jurídica para justificar a necessidade de subsídios audiovisuais que correspondam às

exigências da educação religiosa na cultura eletrônica. Percorremos o percurso da

construção do Ensino Religioso ao longo da história, passando por diversas políticas

educacionais, que finalmente se consolidaram em leis que apontam critérios para

uma educação religiosa voltada para o desenvolvimento pleno do ser humano, numa

perspectiva de busca de sentido e de valores para a vida. Constatamos que esse

novo Ensino Religioso não admite mais uma educação religiosa apologética ou

confessional, e exige uma abordagem madura do fenômeno religioso, que

contemple a rica diversidade cultural e religiosa brasileira.

Em busca da matriz religiosa que deu origem ao caldo cultural e religioso

brasileiro, percebemos que nossa religiosidade é originalmente plural, herdeira do

catolicismo hibérico e da magia européia, mixada às multisseculares tradições

indígenas e às influências das religiões africanas, articuladas num vasto sincretismo.

A entrada do kardecismo europeu e a influência do catolicismo romanizado

consolidam a matriz religiosa brasileira no século XIX. Essa paisagem religiosa

propicia o surgimento de uma religiosidade singular no Brasil, que ultrapassa as

fronteiras confessionais e as filiações religiosas. Trata-se do substrato da matriz

religiosa brasileira, que denominamos religiosidade matricial. Uma religiosidade

popular, que reapropria e reinterpreta os conteúdos pertencentes aos sistemas

religiosos institucionalizados, e os reinventa com criatividade. Ao mesmo tempo, os

sistemas religiosos institucionalizados se apropriam destes elementos próprios da

religiosidade popular, de maneira natural ou como uma estratégia de crescimento. A

religiosidade matricial é um substrato religioso presente na memória inconsciente

dos brasileiros, que opera no nível da intuição, da emoção e do afeto, e é ratificado

pela busca do êxtase religioso ou pelo transe, com toda a sua carga emocional e

95

sentimental, em torno das presenças sobrenaturais. O audiovisual contribui para

despertar a religiosidade matricial do educando, porque toca-lhe justamente nestes

níveis da intuição, da emoção e do afeto.

As deliberações legais e a religiosidade matricial brasileira delimitaram nossa

busca de critérios para a produção de subsídios para o Ensino Religioso no Brasil. O

foco da reflexão não poderia ser a veiculação de conteúdos doutrinais dos sistemas

religiosos institucionalizados, e sim a rica diversidade religiosa que compõe e dá

sentido à religiosidade brasileira. Daí surge os primeiros critérios para a produção

desses subsídios:

O material audiovisual produzido para o Ensino Religioso deve

contemplar a diversidade cultural e religiosa brasileira;

A abordagem madura do fenômeno religioso, na sua pluralidade de

expressões, deve ser o foco destas produções;

A mensagem veiculada pelos subsídios audiovisuais deve contribuir

para o desenvolvimento pleno do ser humano, numa perspectiva de

busca de sentido e de valores para a vida;

Por ser a religiosidade matricial brasileira expressa nos níveis da

intuição, da emoção e do afeto, esses subsídios devem tocar a

sensibilidade do educando nestes mesmos níveis, para comunicar a

mensagem.

Na busca de uma ou mais epistemologias que fundamentassem essa

pesquisa, recorremos à Transdisciplinaridade de Barsarab Nicolescu, à Modulação

de Pierre Babin e ao Pluralismo Metodológico Integral de Ken Wilber. Esse

referencial de conhecimento subsidiou a investigação do filme Deus é brasileiro,

produção cinematográfica utilizada pelos professores nas aulas do Ensino Religioso.

As contribuições dessa análise têm o alcance de proporcionar critérios não só para

aqueles que produzem esse tipo de subsídio, mas também para os educadores das

escolas públicas e particulares do Brasil.

Para o novo Ensino Religioso é preciso uma mudança de cultura na

educação. Essa é uma exigência do nosso tempo. Estamos vivendo uma época de

transformações sem precedentes na história, potencializada pela evolução das

96

tecnologias eletrônicas, que concerne desde o imaginário e a sensibilidade popular

até a concepção mesma de ciência. Ultrapassamos a era de Gutemberg e estamos

na era Eletrônica, passamos pela modernidade e estamos no que se convencionou

chamar de pós-modernidade. Concomitante a essas transformações culturais,

mudam também os modos de compreender, antes marcados pelo cientificismo

moderno, agora regidos por uma lógica ternária não-linear. É preciso ultrapassar o

nível da interdisciplinaridade e adentrar no nível da transdisciplinaridade; É preciso

modular em estéreo, ou seja, transitar pela cultura eletrônica, sem abandonar as

aquisições da cultura tradicional. Na educação deve predominar os dois canais, o

dos sentidos e afetividade, e o canal da abordagem conceitual; os canais de

abordagem intuitiva e os canais de abordagem dedutiva. Na cultura do audiovisual, a

educação deve dar lugar aos dois modos de compreender, conjugando-os no tempo

e nos métodos. São necessárias pedagogias que conjuguem de maneira equilibrada

esses saberes, o intuitivo, lúdico e artístico, e o dedutivo e racional, predominando

um de cada vez na educação dos jovens.

A lógica transdisciplinar aplicada ao audiovisual nos ajudou a compreender a

trama do conhecimento na cultura eletrônica. E a análise do filme Deus é brasileiro

corroborou, na prática, a teoria transdisciplinar, e apontou critérios para uma

produção adequada à linguagem do nosso tempo. Para a análise do filme, optamos

por uma abordagem a partir dos operadores audiovisuais da linguagem cinética.

Esta metodologia contribui para uma análise do audiovisual através dos próprios

caracteres desta linguagem (dramatização, enquadramento, cenário, áudio,

montagem, etc.). Com a contribuição da teoria da Modulação de Pierre Babin,

entramos na dinâmica do conhecimento Transdisciplinar em quatro fases: o choque

inicial, o abalo sem conteúdo preciso, a elaboração do sentido, e a ressonância, que

nos conduziu ao Pluralismo Metodológico Integral de Ken Wilber como metodologia

recomendada para a conceitualização e o julgamento crítico.

A análise do filme Deus é brasileiro nos ajudou a perceber que na linguagem

audiovisual a apropriação da mensagem se dá na medida em que entramos em

outros níveis de percepção e Realidade, como nos mostrou a Figura 7. A análise se

deu desde o nível imediato, que chamamos de nível de Realidade e de percepção

Audiovisual. Neste nível ocorre o choque inicial propiciado pelas primeiras imagens e

sons do filme, provocando uma mudança de registro em nossa percepção.

97

Em seguida passamos pelo nível de Realidade Eletrônica, que é assimilado

no nível de percepção Sensitivo, onde ocorre um abalo sem conteúdo preciso, que

nos envolve no drama e produz um conhecimento embrionário. Uma vibração nos

toca neste nível mais imanente dos sentidos e nos acompanha durante todo o filme,

dando o tom da mensagem. No filme Deus é brasileiro vimos que a comédia pode

dar uma tonalidade afetiva à mensagem, além de ser um bom recurso para falar de

temas relativos à religiosidade para os jovens nascidos na cultura audiovisual.

Porém, a comédia está no limite do caricato, podendo chegar ao jocoso e à

zombaria, e se não for bem trabalhada, pode causar efeitos nocivos, como o de

desdém ou deboche do diferente. A tecnologia eletrônica é a responsável pela

capacidade dos sons e imagens tocarem cada vez mais os nossos sentidos e

provocar reações que nos mantêm atentos à história.

Esse envolvimento crescente conduz-nos a um nível de Realidade e

percepção mais transcendente, o nível de Realidade Ficcional, que é assimilado no

nível de percepção Imaginário. Nesta fase da elaboração do sentido passamos a

compreender e não somente sentir. A perda da distância crítica diante da história é o

que nos dá a sensação de estarmos em outra temporalidade, em outro cosmos; em

Deus é brasileiro, o sertão nordestino. Temos a sensação de estar “dentro” do filme,

seguindo Deus, Taoca e Madá na busca do santo, sentindo com eles as emoções

vivenciadas pelo caminho.

A dinâmica Transdisciplinar do conhecimento é de outra lógica, a lógica do

terceiro incluído, que difere da lógica tradicional binária. Vimos que no filme Deus é

brasileiro a lógica do terceiro incluído atua em toda a trama, reconciliando as

dicotomias do humano e sagrado em níveis cada vez mais profundos de imanência e

transcendência. No filme, Deus se humaniza na relação com o ser humano,

enquanto Taoca e Madá se divinizam na medida em que descobrem o amor. A

comunicação da mensagem se dá na medida em que os fluxos de conhecimento e

de percepção perpassam todos os níveis de Realidade na direção de uma maior

imanência e transcendência, passando pelas zonas de transparência do Real, o que

possibilita a apropriação da mensagem no ponto que chamamos de Modulação. A

Modulação faz o papel do terceiro incluído que permite a comunicação da

mensagem na linguagem audiovisual. É o ponto onde a polissemia da linguagem

audiovisual se aglutina em um sentimento primordial que dá sentido à mensagem.

98

A abordagem transdisciplinar confirmou nossa tese de que o audiovisual é um

ambiente ideal para vivenciar o sagrado na cultura eletrônica. Percebemos que a

concepção de diversos níveis de Realidade realiza um papel mistagógico na cultura

audiovisual, ou seja, possibilita ao educando entrar num estado de consciência e de

adesão tal às vibrações sonoras e visuais, que provoca sentimentos análogos aos

sentimentos mais profundos experimentados pela experiência do sagrado. A

linguagem audiovisual possibilita despertar no educando os sentimentos próprios de

sua religiosidade matricial.

Nossa análise demonstrou que não basta ficar no sentimentalismo próprio da

linguagem audiovisual. Para a educação religiosa é fundamental a fase da

ressonância, onde tomamos um distanciamento crítico para aprofundar a mensagem

recebida e realizar um julgamento maduro da mesma. Vimos que o educador tem

um papel preponderante como motivador de uma reflexão em torno do que se viveu

e sentiu durante a exibição do filme. E apontamos o Pluralismo Metodológico Integral

como uma metodologia adequada para uma compreensão dos fenômenos que

apareceram no filme. A abordagem Integral ajuda a ter uma visão abrangente de

qualquer fenômeno, especialmente do fenômeno religioso em todas as suas

dimensões e em todas as possibilidades de abordagem pelas ciências. Desta

maneira, não se corre o risco de interpretações equivocadas, que considerem suas

conclusões como as únicas e verdadeiras acerca de temas relevantes para a

educação religiosa, a partir de um único ponto de vista da realidade.

A lógica da comunicação audiovisual na cultura eletrônica é um alerta de mão

dupla, tanto para os realizadores das produções audiovisuais destinadas à educação

religiosa, quanto para os educadores do Ensino Religioso. Aos produtores

audiovisuais, especialistas da linguagem audiovisual, imersão na experiência do

sagrado; Aos professores, acostumados à lógica formal da cultura de Gutemberg,

formação por imersão na cultura eletrônica. Mas como transitar bem nesta cultura

eletrônica? Como realizar esta imersão? O filme Deus é brasileiro nos dá uma

valiosa pista: Na formação simbólica se aprende primeiro pela viagem e pelo andar,

pela vibração e pela expressão do corpo. A formação por imersão se dá

primeiramente pela experiência vivida pelo meio. O ground é mais importante que a

figura em primeiro plano, o ambiente conta tanto como o ensinamento formal.

99

Entrar na cultura eletrônica pela via da experiência é mais eloqüente. Vivi esta

experiência quando realizei uma oficina de educomunicação para educadores e

alunos do ensino médio na cidade de Ponte Nova, Zona da Mata mineira. O objetivo

da educomunicação é uma educação pela comunicação, neste caso, através da

imersão na experiência de realizar uma produção audiovisual. A vida de grupo

proporcionada pela relação entre educadores e alunos, a necessidade da criação, o

despertar para a qualidade de expressão, o contato com os equipamentos, levou

esses educadores e alunos a entrarem na cultura eletrônica pela via de um saber

constituído pela experiência. Aqui não importou tanto a qualidade técnica do material

produzido por eles, mas sim a experiência vivida, o rito de passagem entre dois

mundos, que possibilitou, especialmente aos educadores impregnados da cultura de

Gutemberg, falar na linguagem da cultura eletrônica de seus alunos.

Já aos realizadores das produções audiovisuais destinadas à educação

religiosa, imersos na cultura eletrônica, primeiro ser sensível, para depois comunicar

o sagrado na linguagem audiovisual. A Transdisciplinaridade nos mostra que a trama

do conhecimento acontece na relação entre o sujeito e o objeto. E essa relação

modela tanto o sujeito quanto o objeto transdisciplinar. Nossa análise do filme Deus

é brasileiro revelou que a mensagem do filme é carregada do que Pierre Babin

chamou de disposição pela razão de ser, que é justamente a alma do realizador

posta em imagens e sons. Os produtores de material audiovisual para o Ensino

Religioso devem ser pessoas capazes de traduzir em imagens o sentimento religioso

presente na cultura brasileira. Este objetivo só será conseguido na medida em que

os realizadores se sentirem impactados por esta realidade.

Os critérios levantados nesta pesquisa se direcionam aos realizadores,

responsáveis pela transposição dos fenômenos religiosos para a linguagem cinética

audiovisual. Alguns critérios têm validade também para os educadores, responsáveis

pela motivação e dinâmica pedagógica na exibição e análise desses subsídios.

Ambos, realizadores e educadores, são os comunicadores da educação religiosa.

Esta pesquisa nos mostrou que é imprescindível uma produção de subsídios

audiovisuais para o Ensino Religioso que contemple os seguintes critérios:

O produto audiovisual deve prezar pela boa mixagem dos operadores

audiovisuais. Os elementos que o compõe: som, palavras e imagens,

100

devem se integrar sem superposição, a fim de produzir uma

experiência sensorial global e unificada no educando;

O audiovisual deve falar na linguagem popular, através do diálogo, sem

sofisticação literária nem intelectual. Por ser da ordem da experiência

sensorial, a linguagem audiovisual pede palavras concretas, mais

familiares, onde o sentir vem primeiro e deve ser ressaltado o efeito de

presença;

O privilégio é da dramatização. A obra audiovisual deve ser capaz de

criar no educando estados de tensão e relaxamento pela via do prazer.

Sem o prazer de ver não há comunicação na cultura eletrônica. E a

ficção é o gênero audiovisual por excelência, porque conduz o público

a viver uma experiência sensorial fundante. A dissertação é um gênero

adequado para o Ensino Religioso. O seu caráter narrativo contribui

para comunicar o fenômeno religioso com sua riqueza de símbolos e

gestos. A dinâmica transdisciplinar do conhecimento aplicada ao

audiovisual corrobora para a capacidade que a dramatização tem de

conduzir o educando a outros níveis de Realidade cinética onde é

possível vivenciar uma experiência do sagrado;

A dramatização deve estar presente em todo o processo.

Simplesmente exibir o filme não basta. É preciso uma metodologia. A

metodologia somente funciona na cultura eletrônica, se contém em si

mesma o drama, se é uma metodologia dramatizada. O Pluralismo

Metodológico Integral se apresenta como uma metodologia adequada

para a etapa de aprofundamento do que foi vivenciado na experiência

sensorial de assistir um filme, porque contribui para uma visão integral

do fenômeno religioso, e evita o absolutismo de abordagens

unilaterais;

Prezar pelo equilíbrio entre figura principal e fundo, tanto em relação à

composição visual, na criação de uma ambientação, quanto nas

distâncias entre a voz e o silêncio, entre a música e a imagem, entre a

tonalidade da voz e a palavra pronunciada, entre a cor dominante e a

cor secundária é fundamental por causa da polissemia da linguagem

101

audiovisual. Nesta linguagem todos os elementos vistos e ouvidos são

portadores da mensagem e determinam o acesso aos níveis de

percepção e de Realidade;

Trabalhar com bons atores, treinados na linguagem audiovisual, para

garantir a autenticidade da mensagem e a coerência do enredo. A

análise do filme Deus é brasileiro mostra a importância do elenco para

o êxito da mensagem;

Garantir a qualidade técnica do som e das imagens é fundamental na

linguagem audiovisual. A Fotografia, os planos, as cores, o figurino, a

trilha sonora, devem estar a serviço da mensagem que se quer

comunicar, do tipo de ambientação que a determina. É critério

fundamental uma boa equipe de direção em uma obra cinematográfica,

composta pelos quatro pilares formados pela direção, diretor de arte,

diretor de fotografia e diretor musical;

A direção de uma obra audiovisual deve ter a capacidade de transmitir

para toda a equipe sua “disposição pela razão de ser”, critério

imprescindível numa produção, que perpassa todo o processo e é

portador da mensagem que será veiculada pelo produto final. Esse

envolvimento do diretor com o fenômeno religioso que está sendo

colocado em imagens não é do nível da fé, mas sim da experiência e

da percepção de que existem ali valores éticos, estéticos e/ou culturais

que lhe afetam sensivelmente e que são importantes para a sociedade

contemporânea.

O educador deve encarnar essa “disposição pela razão de ser”

veiculada na obra audiovisual para motivar o educando, preparando-o

previamente para a exibição do filme. Não basta apenas o

conhecimento intelectual da tradição religiosa que está sendo

retratada, nem mesmo da obra cinética que será exibida. O educador

deve estar imerso na linguagem audiovisual da cultura eletrônica e ser

afetado pela experiência que será trabalhada em aula, a fim de criar no

educando a predisposição necessária para assistir ao filme.

102

Por ser a cultura eletrônica marcada pela linguagem do flash, é

importante imprimir um ritmo definido, com vigor, que exprima uma

vibração positiva e decidida, a fim de tocar o educando em seus

sentimentos mais profundos. A lógica transdisciplinar aplicada ao

audiovisual afirma que a mensagem só é comunicada na medida em

que o educando é tocado sensivelmente no nível de percepção

imaginário e é conduzido a vivenciar uma experiência sensorial

profunda em um nível de Realidade ficcional. Tocado nestes níveis,

experimenta sentimentos da mesma ordem da experiência espiritual

que está sendo comunicada.

Nossa abordagem dos subsídios audiovisuais usados pelos professores do

Ensino Religioso contribui para o estatuto epistemológico das Ciências da Religião

por sua natureza transdisciplinar. As asserções das Ciências da Comunicação se

apresentaram como um importante referencial no estudo do fenômeno religioso que

aparece na mídia eletrônica. A teoria da Modulação de Pierre Babin revela o

potencial do audiovisual como oportunidade de viver uma experiência do sagrado na

cultura eletrônica. Os referenciais epistemológicos da Transdisciplinaridade e do

Pluralismo Metodológico Integral conferem novas possibilidades de abordagem do

fenômeno religioso em sua complexidade, colocando tais fenômenos no seu devido

lugar no rol das ciências.

103

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