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INTRODUÇÃO
1. Considerações gerais
Elaborar uma dissertação de doutoramento em Arquivística constitui, logo
à partida, uma aventura, já que se trata da primeira tentativa, em Portugal, de
concretização de um projecto deste género. Embora, em países estrangeiros,
existam experiências de investigação nesta área, elas são em número reduzido,
pois a própria afirmação da Arquivística como disciplina científica apenas se tem
evidenciado nos anos mais recentes. A vertente técnica que tem dominado este
campo do saber, ao longo do século XX, relegou para segundo plano a
componente de investigação, o que se comprova pelo escasso número de estudos
com cariz teorizante. Mas se, por um lado, foi necessária alguma coragem para
enveredar por este domínio de investigação, em que os suportes teóricos são
frágeis e estão ainda em construção, por outro lado, foi deveras aliciante trilhar
este caminho e ousar contribuir para um conhecimento mais rigoroso desta nova
área científica.
No momento actual, a Arquivística encontra-se num ponto de viragem em
que se assiste, em vários países, a uma procura dos seus fundamentos teóricos e a
uma afirmação da sua cientificidade, inserindo-a no campo da Ciência da
Informação. A reflexão da disciplina sobre si própria e a sua evolução é uma
condição imprescindível para o conhecimento arquivístico desde as suas origens,
clarificando o seu objecto de estudo e definindo o seu método científico. Desde
os anos 80 que, em diferentes países, se revelam manifestações no sentido da
procura de uma teoria arquivística, cuja expressão se tem concretizado em
variados artigos publicados em revistas da especialidade e em algumas
colectâneas de estudos. A maior parte desta investigação surge no Canadá e nos
Estados Unidos, embora a Europa não esteja arredada deste processo. Em Itália,
as preocupações teorizantes não são apenas destes últimos anos. Desde o século
XIX, a partir da escola de Florença, e afirmando-se no presente século através de
nomes como Eugenio Casanova, Giorgio Cencetti ou Antonio Panella, a
arquivística italiana sempre se evidenciou pela procura dos fundamentos teóricos.
Esta tradição assume particular relevo na actualidade, com os estudos de Elio
Lodolini e seus seguidores1. A investigação desenvolvida na Alemanha,
sobretudo pela Escola de Marburg, também não pode deixar de ser referida pela
importância dos seus contributos2. Com menos impacto, também têm surgido,
mais ou menos esporadicamente, sinais destas preocupações em países como a
França, a Espanha, o Brasil ou a Austrália.
Para a compreensão do campo epistémico da Ciência da Informação e, em
particular, do domínio específico da Arquivística, é fundamental ter uma visão
diacrónica da sua evolução, não apenas por um mero interesse histórico, mas,
sobretudo, pelo contributo epistemológico imprescindível à consolidação de um
conhecimento verdadeiramente científico.
Não cabe aqui traçar a linha evolutiva da Arquivística, quer em termos
históricos, quer epistemológicos. Alguns autores têm publicado obras e estudos
sobre a história dos arquivos (e, também em parte, da Arquivística) e a reflexão
de tipo espistemológico está também ensaiada e em vias de publicação3. Mas,
mesmo assim, consideramos importante assinalar os momentos mais
1 Sobre a tradição arquivística italiana e a teorização desenvolvida em Itália ao longo dos tempos, ver a síntese apresentada por Elio Lodolini à Jornada de Estudo sobre a Arquivística, realizada em Roma, em 1989: LODOLINI, Elio - L’Archivistica in Italia dall’età classica alla metà del sec. XX. In GIORNATA DI STUDIO SULL’ARCHIVISTICA, Roma, 1989 - Studi sull’Archivistica : atti... A cura di Elio Lodolini. Roma : Bulzoni Editore, 1992. ISBN 88-7119-387-3. p. 41-75; ver também: LODOLINI, Elio - Lineamenti di storia dell’archivistica italiana : dalle origini alla metà del secolo XX. Roma : La Nuova Italia scientifica, 1996. ISBN 88-430-0241-4. 2 Também Eckhart Franz, na Jornada de Estudo realizada em Roma (referida na nota anterior), traçou a evolução arquivística na Alemanha, onde tem especial relevo a Escola de Marburg: FRANZ, Eckhart G. - Archives et Archivistique dans la République Fédérale d’Allemagne. In GIORNATA DI STUDIO SULL’ARCHIVISTICA, Roma, 1989 - Op. cit. p. 27-40. 3 O contributo para uma epistemologia da Arquivística foi ensaiado por um grupo de arquivistas - - Armando Malheiro da Silva, Júlio Ramos, Manuel Luís Real e a autora - docentes nas Faculdades de Letras de Coimbra e do Porto, numa obra em que procuraram sistematizar a teoria e a prática dos arquivos, em novas bases científicas. Dados de natureza histórica sobre a evolução da disciplina podem aí ser colhidos em pormenor ou complementada a informação através das referências bibliográficas para as quais é remetido o leitor. Daí que, na breve síntese que aqui esboçamos, não haja a preocupação de citar sistematicamente a bibliografia de referência, pois isso é feito na obra em causa, da qual está ainda apenas concluído o vol. 1, a saber: SILVA, Armando Malheiro da [et al.] - Arquivística : teoria e prática de uma Ciência da Informação. Porto : Edições Afrontamento, 1998 (ainda no prelo).
significativos na evolução do conhecimento arquivístico, como elemento
essencial para a compreensão do que é, na actualidade, a ciência dos arquivos.
2. Breve evolução da Arquivística
A Arquivística como prática é tão velha como a própria escrita e a
constituição de arquivos consubstancia-se na necessidade de preservar, ao longo
dos tempos, a memória da actividade humana, através de registos sob as mais
variadas formas e nos mais diversos suportes. Desde as origens que os arquivos
foram, portanto, encarados como bases e veículos de informação.
Os primeiros arquivos de que há notícia evidenciavam já características
que se tornaram permanentes e que a disciplina arquivística veio a incorporar nos
seus fundamentos, como sejam a estrutura orgânica e a função serviço/uso das
entidades produtoras, regras de controlo e procedimentos eficazes para garantir a
identidade e a autenticidade dos documentos, valor como prova e como
instrumento de informação.
A prática arquivística das civilizações pré-clássicas assentava já em
princípios intuitivamente assumidos e, no mundo greco-romano, todo o
desenvolvimento das estruturas sociais e jurídico-administrativas implicou
avanços importantes na organização dos arquivos4. A afirmação do conceito e a
fixação do termo Arquivo representam uma tomada de consciência das suas
especificidades e estabelecem a diferença em relação a outros sistemas de
informação, designadamente as Bibliotecas.
A instabilidade social e política verificada na transição do Mundo Antigo
para o Mundo Medieval e mesmo durante a Alta Idade Média conduziram à
mutilação e à transferência de arquivos, com graves consequências para a sua
integridade e preservação da sua estrutura sistémica original. Aliada a isto,
também a mobilidade dos arquivos, que acompanhavam os governantes nas suas
4Sobre os arquivos na Antiguidade, ver por exemplo: POSNER, Ernst - Archives in the Ancient World. Cambridge (Massachussetts) : Harvard University Press, 1972.
deslocações, bem como a pouca resistência dos suportes documentais utilizados,
contribuíram para o desaparecimento e a desarticulação de importantes cartórios.
O valor atribuído à “palavra dada” (o sistema de prova assentava sobretudo no
testemunho, no juramento, na fé) em detrimento da “palavra escrita” - que era
apanágio apenas de uma reduzida camada social - também não favoreceu a
organização arquivística. Não admira, pois, que exista um grande vazio de
conhecimentos sobre o processo arquivístico até quase à Época Moderna e que os
arquivos alti-medievais sejam pouco abundantes e mal conservados, constituindo
excepção alguns casos de arquivos eclesiásticos.
Nos finais da Idade Média, o desenvolvimento dos Estados e das
administrações públicas e senhoriais contribuiu para uma maior necessidade de
organização arquivística e, nas grandes cortes europeias, assiste-se à nomeação
de funcionários para zelarem pela boa ordem dos arquivos, sendo incumbidos de
organizar inventários e responsabilizados pela garantia de autenticidade dos
documentos (passagem de certidões e treslados)5.
O processo evolutivo dos arquivos prossegue, sem cortes abruptos, na
transição para a Idade Moderna. O processo de reforma levado a cabo por Filipe
II no Arquivo Geral de Simancas, que se traduziu na promulgação do primeiro
regulamento arquivístico, é um exemplo paradigmático desta evolução em
continuidade. Tal reforma foi, afinal, o corolário de uma série de procedimentos,
grandemente inspirados na organização dada à Torre do Tombo nos séculos XV
e XVI. O sistema arquivístico da coroa portuguesa, estabelecido ainda em pleno
século XIV e modernizado nos séculos seguintes, foi o “modelo” escolhido para
servir de base à organização do arquivo do Estado moderno do país vizinho6.
Na Idade Moderna, o trabalho arquivístico passou a assentar em normas
escritas e, no século XVII, aparecem os primeiros manuais em que a realidade
5 Sobre a organização arquivística na Idade Média e na Época Moderna, ver por exemplo: BAUTIER, Robert-Henri - Les Archives. In L’Histoire et ses méthodes. Dir. de Charles Samaran. Paris : Gallimard, cop. 1961. p. 1121-1166; DUCHEIN, Michel - The History of European archives and the developments of archival profession in Europe. The American Archivist. Chicago. ISSN 0360-9081. 55 (1992) 14-24; FAVIER, Jean - Les Archives. 3ème ed. Paris : P. U. F., 1975. 6 Ver: RODRÍGUEZ DE DIEGO, José Luis - Instrucción para el gobierno del Archivo de Simancas : (año 1588). Madrid : Ministerio de Cultura, Dirección General de Bellas Artes y Archivos, [1989?]. ISBN 84-7483-560-7.
dos arquivos é vista à luz de uma concepção essencialmente jurídica. Assiste-se,
portanto, a uma evolução da prática arquivística, a qual se torna mais estruturada
à medida que a acção humana e social que lhe é inerente se torna mais complexa.
Esta maior estruturação conduziu forçosamente à necessidade de reflexão sobre o
próprio trabalho arquivístico. “Pensar a prática”, sistematizar o saber,
designadamente através de obras sobre a organização dos arquivos, são os
primeiros sinais da afirmação da Arquivística como disciplina, reflectindo sobre
uma realidade multissecular e desde sempre muito bem definida (os arquivos),
que veio a converter-se em objecto de trabalho e, mais tarde, de estudo.
A uma primeira concepção jurídico-administrativa que envolveu a
Arquivística, seguiu-se uma outra postura, a iluminista, a qual deu atenção
sobretudo ao valor histórico dos documentos, crescendo o interesse pelos
arquivos, não apenas pelos da administração pública (como anteriormente), mas
também pelos cartórios de natureza privada (eclesiásticos e familiares). Em
função desta perspectiva, graves desvios foram realizados, designadamente pelo
uso de classificações metódicas, de base intelectual - que vieram adulterar a
estrutura original dos arquivos - e pela preferência da ordenação cronológica dos
documentos sem atender ao seu contexto de produção. Esta concepção iluminista
teve especial expressão na arquivística francesa, com natural influência em
outros países, a que Portugal não foi alheio. As medidas de reorganização da
Torre do Tombo, após o terramoto de 1755, traduzem claramente tal influência e
espelham essa mesma concepção iluminista.
O reforço e a centralização do poder absoluto, especialmente no século
XVIII, conduziram a uma concentração dos arquivos de Estado em grandes
depósitos, o que se pode considerar uma utilização, de certo modo abusiva, ao
serviço da política e já não apenas uma necessidade de uso para fins meramente
administrativos.
A Revolução Francesa representa um novo marco na evolução da
Arquivística e na história dos arquivos, surgindo uma reacção de sentido oposto à
concepção do Antigo Regime. As nacionalizações dos bens das anteriores classes
dominantes acarretou consigo a natural apropriação dos respectivos cartórios,
pois aí se conservavam os títulos de posse e a documentação indispensável à
administração das propriedades confiscadas. Assistimos, portanto, a um novo
movimento de incorporações em massa de arquivos privados nos depósitos do
Estado, os quais passaram a ter a designação de “Archives Nationales” (1789,
Decreto de 18 Brumário) e a ter funções de conservação e manutenção dos
documentos oficiais em que passava a assentar o novo regime. Estas medidas não
deixaram de ser marcadas por factores de carácter ideológico, como o do expurgo
de documentos relativos a títulos puramente feudais ou outros desprovidos de
interesse para a gestão dos bens do Estado. Distinguem-se também os
documentos de valor administrativo daqueles que apenas eram considerados de
interesse histórico e cultural. Estes últimos, à luz da legislação então promulgada,
deviam ser transferidos para as bibliotecas do Estado.
Em nome destas concepções, inúmeros cartórios foram deslocados e
transferidos para a posse do Estado e deu-se a desagregação de muitos deles, por
força de interesses e valores político-ideológicos estranhos aos próprios arquivos.
A quebra da unidade sistémica dos arquivos e as reorganizações que sofreram
após a sua integração nos depósitos do Estado, sem atender à respectiva estrutura
de origem, foram as mais graves consequências da Revolução Francesa, no que
toca à organização arquivística. Apesar disso, a Revolução também foi
responsável por alguns aspectos inovadores, especialmente no que respeita à
liberalização do acesso aos arquivos e ao estabelecimento de um órgão nacional e
independente para a superintendência dos mesmos. Tais aspectos tiveram, daí em
diante, reflexos em variados países e marcaram uma nova concepção que tem
perdurado até aos nossos dias7.
A expansão dos ideais revolucionários de França veio a ter uma influência
decisiva na instauração de regimes liberais em diversos países, com
consequências idênticas no que toca à nacionalização dos bens do clero e de parte
da nobreza e à centralização dos arquivos respectivos. As reordenações dos
7 Sobre os arquivos na Época Moderna e o desenvolvimento da Arquivística, ver especialmente: BAUTIER, Robert-Henri - La Phase cruciale de l’histoire des archives : la constitution des dépôts d’archives et la naissance de l’archivistique (XVIe - début du XIXe siècle). Archivum. Paris. 18 (1968) 139-150.
documentos, que se sucedem às incorporações, vão ser desastrosas do ponto de
vista arquivístico, pois misturam-se diversos cartórios sob uma ordem geral
cronológica e/ou temática. Em Portugal, a transferência dos arquivos das ordens
religiosas masculinas extintas, por efeito do Decreto de 28 de Maio de 1834, para
os Próprios da Fazenda Nacional e, posteriormente, para a Torre do Tombo
(Portaria de 1 de Março de 1836), é um exemplo bem ilustrativo dos efeitos das
incorporações em massa. No Arquivo Nacional, a documentação pertencente às
ordens religiosas veio a constituir a chamada “Colecção Especial”, a qual foi
organizada sem atender a quaisquer critérios de proveniência, resultando numa
ordenação cronológica absolutamente anti-arquivística8.
A política concentracionista e a subsequente reorganização dos arquivos
atingiu, em França, tais proporções que a situação se tornou preocupante e, de
certo modo, incontrolável. O estado de “caos” que se vivia impôs a necessidade
de criar uma ordem e daí resultou a formulação de umas “instruções” para
ordenação e classificação dos arquivos departamentais e comunais, promulgadas
pelo Ministério do Interior, em Abril de 1841. Foi o historiador Natalis de Wailly
que inspirou tal resolução, na qual foi enunciado aquilo que veio a ser
futuramente conhecido como o princípio do respeito pelos fundos. Embora
determinando a separação dos documentos por fundos, atendendo à sua
proveniência, as instruções também previam a ordenação por matérias, dentro de
cada fundo. Tratava-se de uma medida de carácter essencialmente pragmático e
com um certo hibridismo na solução apresentada, embora tenha sido
aperfeiçoada, mais tarde, designadamente pela associação do princípio do
respeito pela ordem original, defendido em 1867 por Francesco Bonaini com o
nome de “metodo histórico” e regulamentado em 1874-1875, nos arquivos da
Toscânia.
A aplicação do princípio acima referido foi rapidamente feita em vários
países da Europa, tendo-se consagrado o conceito através do termo fundo.
8 Sobre os erros de organização de que esta colecção enferma, ver: AZEVEDO, Rui de - A Colecção Especial do Arquivo Nacional da Tôrre do Tombo : sua génese e corpos que a formam : reconstituição destes fundos pelos seus elementos arquivísticos : o itinerário do cartório de Moreira. Revista Portuguesa de História. Coimbra. 3 (1947) 5-26.
Embora tenha surgido como uma “regra” de carácter prático, veio a consagrar-
-se-lhe um valor teórico evidente, o que fez com que o “respeito pelos fundos”
viesse a ser considerado como o fundamento essencial da Arquivística9.
Durante a segunda metade do século XIX, época caracterizada pelo
historicismo e pelo romantismo, a que se associa todo um movimento de
renovação da historiografia e, em consonância, uma forte valorização das fontes
históricas e da pesquisa nos arquivos, estes últimos passam a constituir autênticos
laboratórios do conhecimento histórico. Neste contexto, a Arquivística - que já
adquirira uma posição instrumental relativamente à Paleografia e à Diplomática,
disciplinas em ascensão desde o século XVIII - ganha um carácter de disciplina
auxiliar da História. A preparação de reportórios e inventários de fontes, a
publicação dos documentos mais importantes do ponto de vista da pesquisa
histórica, bem como a abertura ao público dos arquivos, são manifestações que
denotam o tipo de relação existente entre a Arquivística e a História, numa clara
condição de subsidiariedade da primeira.
A acção de Alexandre Herculano quando, em 1853-1854, visita os
cartórios eclesiásticos do Reino10, em busca dos documentos que viriam a
integrar os Portugaliæ Monumenta Historica, bem como a Lei de 2 de Outubro
de 1862, que determinou a incorporação no Arquivo da Torre do Tombo de todos
os documentos dos cartórios das igrejas e corporações religiosas, anteriores a
1600, são exemplos ilustrativos da dependência que os arquivos têm sofrido
relativamente a interesses culturais externos a si próprios. Este primado da
História, embora tivesse suscitado uma maior atenção para o valor dos arquivos,
teve, sem dúvida, consequências perversas do ponto de vista arquivístico. A
concepção historicista - apesar do acentuar da perspectiva técnica que a
Arquivística vai sofrer a partir de finais do século XIX - perdurará, praticamente,
9 Sobre a origem e disseminação do princípio de “respeito pelos fundos” é essencial a leitura de uma obra recentemente editada, a saber: MARTÍN-POZUELO CAMPILLOS, M. Paz - La Construcción teórica en Archivística : el principio de procedencia. Madrid : Universidad Carlos III; Boletín Oficial del Estado, 1996. ISBN 84-340-0898-X. 10 Ver: HERCULANO, Alexandre - Do Estado dos archivos ecclesiasticos do Reino e do direito do Governo em relação aos documentos ainda nelles existentes : projecto de consulta submettido á Segunda Classe da Academia Real das Sciencias : 1857. In Opusculos. 2ª ed. Lisboa : Em Casa da Viuva Bertrand & Cª, 1873. tomo 1, p. 207-251.
até à Segunda Guerra Mundial e mesmo na actualidade ainda persistem laivos da
sua presença, sobretudo nos chamados arquivos históricos.
A publicação, em 1898, do manual de Muller, Feith e Fruin, intitulado
Handleiding voor het ordenen en beschreijven van archieven11, mas
correntemente conhecido como “manual dos arquivistas holandeses”, é
considerado como um outro marco na evolução da Arquivística, pois, a partir daí,
abriu-se uma nova era para a afirmação da disciplina. A obra representa um
grande avanço na teorização arquivística, não só pelo pensamento que lhe está
subjacente, mas também pelo carácter sistemático com que se apresenta. Muitos
dos aspectos considerados hoje essenciais no corpus teórico da Arquivística já aí
são formalizados e tratados com o devido relevo. Não será, pois, excessivo
afirmar que o “manual dos holandeses” marca o início de um período diferente,
acentuando a vertente técnica da disciplina e autonomizando-a definitivamente
de outras a que antes estivera ligada. Aliás, não será por acaso que, pela mesma
época, se começou a vulgarizar o termo Arquivística, para designar um campo de
saber específico.
Na viragem do século e até cerca dos anos 30, vários aspectos são de
salientar no que respeita à consolidação da Arquivística. Por um lado, a
propagação do modelo herdado da Revolução Francesa, que começou a assentar
em diversas medidas regulamentadoras, entre as quais a criação de um organismo
central de coordenação arquivística, em variados países. Em Itália, surgem
também diplomas legislativos mais específicos e inovadores, designadamente
regulamentos destinados aos arquivos da administração central (1900) ou à
selecção de documentos (1902). Por outro lado, assistimos a desenvolvimentos
importantes, quer nos Estados Unidos da América, onde Waldo Leland
formaliza, em 1912, alguns princípios arquivísticos fundamentais para a
aplicação em serviços do Estado, mercê dos contactos com arquivistas europeus
(no âmbito do Congresso Internacional de Arquivistas e Bibliotecários, realizado
11 MULLER, S.; FEITH, J. A.; FRUIN, R. - Handleiding voor het ordenen en beschreijven van archieven. Groningen : Erven B. van der Kamp., 1898. (Trad. brasileira de Manoel Adolpho Wanderley, sob o título: Manual de arranjo e descrição de arquivos. 2ª ed. Rio de Janeiro : Ministério da Justiça, Arquivo Nacional, 1973.)
em Bruxelas em 1910), quer no Leste Europeu, onde ocorreram grandes
alterações ao nível da organização e da política arquivísticas, em consequência da
revolução russa de 1917. Além disso, o aparecimento de manuais especializados
como o de Hilary Jenkinson, na Grã-Bretanha, intitulado A Manual of Archive
Administration (1922)12, que se tornou a obra de referência mais importante para
os arquivistas britânicos e americanos, ou o do italiano Eugenio Casanova, com o
título Archivistica (1928)13, é um sintoma evidente da afirmação da disciplina.
Apesar destes factores de consolidação do suporte legislativo e teórico da
organização dos arquivos, surgiram em simultâneo alguns “desvios”, cujos
efeitos negativos também importa assinalar. Referimo-nos à influência que as
classificações bibliográficas, aparecidas no último quartel do século XIX, como a
Dewey Decimal Classification ou a Classificação Decimal Universal, tiveram no
mundo dos arquivos. Vários países ensaiaram a sua aplicação a arquivos das
administrações locais ou mesmo centrais, desrespeitando, assim, os princípios
arquivísticos que ganhavam expressão sobretudo a partir da “escola” italiana, já
desde o terceiro quartel de Oitocentos14.
Um outro desvio que surgiu, sobretudo nos anos 20, foi a ideia de criação
de arquivos temáticos, constituídos artificialmente, como, por exemplo, os
“arquivos da 1ª Guerra Mundial”, facto a que alguns arquivistas italianos não
ficaram alheios, tendo-se insurgido vivamente contra tais opções.
Ainda nas primeiras décadas deste século, assistimos aos primeiros sinais
de ruptura da política centralizadora. As transferências em massa para os
depósitos de Estado atingem proporções enormes, a ponto de se chegar a um
verdadeiro colapso das estruturas materiais necessárias para abarcar as
incorporações exigidas por lei. O modelo historicista, de inspiração francesa,
começa, um pouco por todo o lado, a entrar em crise justamente na fase de maior
apogeu.
12 JENKINSON, Hilary - A Manual of archive administration. Oxford : Clarendon Press, 1922. (2ª ed.: 1937; 3ª ed.: 1965) 13 CASANOVA, Eugenio - Archivistica. Siena : Stab. Arti Grafiche Lazzeri, 1928. (Reimp.: 1966) 14 Sobre a utilização de classificações bibliográficas nos arquivos, ver: LASSO DE LA VEGA, Javier - - Necesidad de aplicar un sistema organico a la ordenación de los archivos administrativos. Arquivo de Bibliografia Portuguesa. Coimbra. 2:7 (Jul.-Set. 1956) 165-181; 2:8 (Out.-Dez. 1956) 289-303.
Em Portugal, logo após a instauração do regime republicano, a
documentação à espera de dar entrada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo
atingia tais dimensões, que foram necessárias medidas de descentralização dos
depósitos. À época, era Júlio Dantas quem estava à frente da Inspecção das
Bibliotecas e Arquivos e a sua acção pautou-se, entre outras coisas, pela criação
de anexos da Torre do Tombo (Arquivo dos Feitos Findos, Arquivo dos Registos
Paroquiais), dos Arquivos Distritais, do Arquivo das Congregações e, mais tarde,
de alguns arquivos históricos de Ministérios15.
No período que medeia entre as duas guerras mundiais, preocupações de
novo tipo caracterizam a Arquivística, as quais têm sobretudo a ver com os
problemas da avaliação, selecção e eliminação, em consequência do aumento
considerável da produção de documentos. Tanto as administrações como os
próprios arquivistas vão ser obrigados a encarar o problema de uma forma mais
determinada. Em diferentes países definem-se tendências, nem sempre
homogéneas, no que respeita à definição dos critérios a aplicar para a
determinação do valor dos documentos. Na Grã-Bretanha, por exemplo,
considerava-se que a tarefa de eliminação devia ser deixada a cargo das próprias
administrações não havendo intervenção por parte dos arquivistas. Pelo contrário,
os alemães defendiam que as administrações não deviam ser os únicos juízes em
matéria de selecção documental e achavam que os profissionais de arquivo
deveriam ter aí uma influência decisiva. O conceito de valor nos países
socialistas sofria de uma carga ideológica, pelo que aí se definia uma teoria
oficial a tal respeito. Nos Estados Unidos, também se estabeleciam critérios para
a avaliação, em consonância com as ideias da Europa, em especial as britânicas,
dando, por isso, às entidades produtoras dos arquivos o papel decisório. Mas tal
perspectiva não foi impeditiva de que, alguns anos mais tarde, outras teorias
surgissem, as quais davam também bastante importância ao valor secundário dos
documentos, à semelhança das posições alemãs16. Particularmente importante
15 Sobre a acção de Júlio Dantas, ver por exemplo: IRIA JÚNIOR, Joaquim Alberto - Arquivística e História : contribuição de Júlio Dantas. Lisboa : Academia Portuguesa da História, 1965. 16 Sobre a problemática da avaliação documental em diversos países, ver: KOLSRUD, Ole - The Evolution of basic appraisal principles : some comparative observations. The American Archivist. Chicago. ISSN 0360-9081. 55:1 (Winter 1992) 26-39.
nesta matéria é o estudo de T. R. Schellenberg, intitulado Modern archives :
principles and techniques17, que defende a existência de diferentes tipos de valor,
obra que se tornou a referência principal para os arquivistas americanos.
O aumento da produção documental torna-se especialmente significativo a
partir de meados dos anos 40 e a evolução tecnológica teve também efeitos
importantes sobre os arquivos, já que o fenómeno da chamada “explosão
documental” não se limitou à informação científico-técnica, mas abrangeu
igualmente a informação produzida por estruturas administrativas de todo o
género. Em face do crescente volume de documentação produzida e devido à
saturação dos arquivos ditos históricos - receptáculos das massas documentais
sem interesse para as administrações - o problema da avaliação e das eliminações
ganha particular importância. Neste contexto, surge uma estrutura artificial - com
o nome de pré-arquivo ou arquivo intermédio - destinada a receber os
documentos considerados desnecessários para as entidades produtoras e que
deveriam ser sujeitos a uma avaliação e posterior triagem, com vista à futura
incorporação nos arquivos históricos.
À figura do arquivo intermédio, surgida por razões de ordem pragmática e
perfeitamente inserida na noção encadeada das três idades dos documentos,
passou a corresponder uma função própria e um conceito específico, que vieram
a perverter o seu sentido natural. De facto, a criação deste tipo de depósitos veio
criar uma ruptura na evolução natural dos arquivos, isolando os arquivos
históricos dos arquivos administrativos, como se de duas realidades diversas se
tratasse, exigindo técnicas diferenciadas e com vocações distintas (os primeiros
ao serviço da História e da Cultura, os segundos ao serviço das administrações).
O próprio facto de ser atribuída a designação de pré-arquivo a este estádio
intermédio na “vida” dos documentos e de se considerar como de pré-arqui-
vagem a actividade relativa ao tratamento durante esse mesmo estádio, já
evidencia, só por si, uma postura que considera como “não-arquivísticas” as fases
que antecedem a incorporação nos arquivos históricos.
17 SCHELLENBERG, T. R. - Modern archives : principles and techniques. Chicago : University of Chicago Press, 1956. (2ª ed.: 1957; reimp.: 1975)
O surgimento, em 1941, nos Arquivos Nacionais de Washington, do
conceito de record group - adaptação americana do “princípio de respeito pelos
fundos” muito difundido na Europa - directamente aplicado a documentação
ligada à área administrativa (e ainda não considerada “de arquivo”) veio
propiciar o aparecimento, também nos Estados Unidos da América, do chamado
records management, entendido como a aplicação de métodos de economia e
eficácia na gestão dos documentos, logo na primeira idade destes, ou seja, desde
a sua produção e durante a tramitação nos serviços administrativos. Os
canadianos, os franceses, os espanhóis e outros acabaram por aderir aos
pressupostos do records management, vindo a incorporar tal noção na sua prática
e a traduzi-la através do termo “gestão de documentos”18.
A pré-arquivagem e a gestão de documentos consagram-se como dois
fenómenos característicos da época do pós-guerra. Mas, enquanto a pré-arquiva-
gem - apesar das consequências nefastas que acarretou relativamente ao
entendimento dos arquivos como estruturas sistémicas com uma linha evolutiva
única - denota sobretudo uma fase “etária” dos arquivos, a gestão de documentos
afirmou-se como uma nova área técnica, distinta da Arquivística. Isto significou,
pois, ainda maiores rupturas anti-naturais no seio dos próprios arquivos e da
disciplina que os abarca como seu objecto de estudo, rupturas essas que só muito
recentemente começaram a ser postas em causa, graças à perspectiva mais
integradora que vemos afirmar-se, nos últimos anos.
A necessidade de coordenação a nível internacional e a procura de
consensos quanto aos conceitos e aos métodos de trabalho estiveram na base da
criação, no âmbito da UNESCO, em 1950, do Conselho Internacional de
Arquivos (C.I.A.)19. Este organismo teve, desde logo, um papel fundamental para
a aproximação dos arquivistas de todo o mundo, designadamente através da
organização de congressos internacionais, de reuniões técnicas dedicadas a temas
18 Sobre o modelo americano subjacente ao conceito de records management, ver: ESPOSEL, José Pe- dro - Arquivos: uma questão de ordem. Rio de Janeiro : Muiraquitã, 1994. ISBN 85-85483-07-5. p. 94- -112. 19 A este propósito, ver: BAUTIER, Robert-Henri - La Collaboration internationale en matière d’archives. In CONFÉRENCE INTERNATIONALE DE LA TABLE RONDE DES ARCHIVES, 6, Varsovie, 1961 - Actes. Paris : Direction des Archives de France, 1963. p. 57-76; KECSKEMÉTI, Charles - Consejo Internacional de Archivos. Boletín Interamericano de Archivos. Córdoba (Argentina). 1 (1974) 47-58.
específicos, da publicação da revista Archivum e de outros documentos com
carácter orientador ou mesmo normativo.
A década de 50 foi sobretudo marcada por preocupações de carácter
pragmático, embora a componente teórica não tenha estado ausente por
completo. Obras como o manual do alemão Adolf Brenneke (1953)20, o estudo já
referido de Theodore Schellenberg, sob o título Modern archives : principles and
techniques (1956)21, ou mesmo o trabalho do italiano Leopoldo Cassese,
intitulado Introduzione allo studio dell’archivistica (1959)22, são exemplos da
procura de sistematização teórica que envolveu a Arquivística, num período em
que a acentuada evolução tecnológica criou e agudizou problemas práticos de
vulto, acentuando-se a tendência tecnicista na forma de encarar a disciplina.
A 7ª Conferência Internacional da Table Ronde des Archives (Madrid,
1962), subordinada ao tema O conceito de arquivo e as fronteiras da
Arquivística, evidencia o tipo de questões com que a comunidade arquivística
internacional se debatia23. Delimitar o campo da disciplina era uma preocupação
importante, sobretudo devido à separação artificial que se estabelecera entre os
conceitos de records e archives, especialmente no mundo anglo-saxónico.
Também a definição sobre o que deveria ser considerado “material de arquivo” e
o estabelecimento de fronteiras entre arquivos, bibliotecas e museus, foi alvo de
debate na década de 60. Ressalta, pois, a ideia de que há uma procura de
definição do objecto da Arquivística, embora ainda não tenha sido possível
chegar a uma formulação teórica consistente.
Não obstante tal limitação, autores houve que tentaram fazer a afirmação
do carácter científico da Arquivística, sendo de realçar o caso do argentino
20 BRENNEKE, Adolf - Archivkunde : ein Beitrag zur Theorie und Geschichte des Europäischen Archiwesens. Leipzig : Köhler und Amelang, 1953. Desta obra conhecemos a tradução italiana: BRENNEKE, Adolf - Archivistica : contributo alla teoria ed alla storia archivistica europea. Testo redatto ed integrato da Wolfgang Leesch sulla base degli appunti alle lezioni tenute dall’autore ed agli scritti lasciati dal medesimo; trad. italiana di Renato Perrela. Milano : Per i tipi dell’editore Dott. Antonino Giuffrè, 1968. 21 SCHELLENBERG, T. R. - Ob. cit. 22 CASSESE, Leopoldo - Introduzione allo studio dell’archivistica. Roma, 1959. (Reed. in: CASSESE, Leopoldo - Teoria e metodologia : scritti editi ed inediti di paleografia, diplomatica, archivistica e biblioteconomia. A cura di Attilio Mauro Caproni. Salerno : Pietro Laveglia, 1980) 23 CONFERÉNCE DE LA TABLE RONDE INTERNATIONALE DES ARCHIVES, 7, Madrid, 1962 - - Le Concept d’archives et les frontières de l’Archivistique : actes... Paris : Imprimerie Nationale, 1963.
Aurelio Tanodi, cujo Manual de archivología hispanoamericana : teorías y
principios (1961)24 se pode hoje considerar uma obra clássica e de referência
obrigatória. Neste trabalho apresentam-se preocupações bastante inovadoras em
torno do objecto e do método da “arquivologia”, considerados como elementos
fundamentais de qualquer ciência.
Outras posições de carácter teorizante surgem, também nos anos 60, em
diferentes pontos do globo. Nos Estados Unidos, é de salientar a teoria
desenvolvida por Oliver Holmes, sobre os níveis a considerar para a organização
e descrição dos arquivos25. Importa destacá-la, pois aí se podem encontrar os
fundamentos da norma ISAD(G), adoptada recentemente pelo C. I. A. para a
descrição arquivística.
Por outro lado, na Austrália, Peter Scott formula, em 1966, críticas ao
conceito americano de record group, questionando a sua validade, devido a
contradições entre a sua formulação e o princípio do respeito pela ordem
original26. A defesa da série como unidade arquivística fundamental veio dar
corpo a uma teoria que, ainda hoje, constitui a referência de base para os
arquivistas australianos.
Também no Canadá assistimos, em finais da década, à problematização
dos fundamentos da Arquivística, sendo significativo o artigo que Louis Garon
publica no primeiro número da revista Archives (1969) sobre o princípio da
proveniência27. Este trabalho representa um marco na teorização arquivística do
Canadá, numa época em que as questões de ordem prática dominavam as
atenções.
As manifestações tendentes a postular os fundamentos teóricos da
Arquivística, que vemos surgir nos anos 60, vão ganhar maior relevo na década
seguinte. Embora nos congressos e reuniões internacionais do C. I. A. os
aspectos técnicos, legislativos, de acessibilidade, de relação com os utilizadores,
24 TANODI, Aurelio - Manual de archivología hispanoamericana : teorías y principios. Córdoba (Argentina) : Universidad Nacional, 1961. 25 HOLMES, Oliver W. - Archival arrangement : five different operations at five different levels. The American Archivist. Chicago. 27 (Jan. 1964) 21-41. 26 SCOTT, Peter J. - The Record Group concept : a case for abandonment. The American Archivist. Chicago. 29 (Oct. 1966) 493-503. 27 GARON, Louis - Le Principe de provenance. Archives. Quebéc. 1 (Juil.-Dec. 1969) 12-19.
de reconstituição dos patrimónios arquivísticos nacionais (repondo situações de
apropriação indevida de arquivos durante a 2ª Guerra Mundial e equacionando a
propriedade dos arquivos após movimentos de descolonização) ainda continuem
a dominar os debates, fora do âmbito daquele organismo diferentes preocupações
se manifestam.
Ao nível das obras de síntese, queremos salientar a publicação do Manuel
d’Archivistique, em França (1970)28, obra que marcou a sua época e teve larga
influência externa, nomeadamente em Portugal. Durante anos, este manual foi a
referência básica para os alunos do Curso de Bibliotecário-Arquivista. Outros
tratados do género surgiram, por exemplo, na Alemanha, embora menos
conhecidos fora do mundo germânico.
No que se refere ao aprofundamento das questões teóricas, não podem ser
ignorados dois trabalhos surgidos em França, um da autoria de Carlo Laroche
(1971)29 e outro pelo punho de Michel Duchein (1977)30. Embora defendendo
perspectivas muito diferenciadas, os dois problematizam o chamado “princípio
de respeito pelos fundos”, procurando formular teorias consistentes para a sua
aplicação. Laroche apresenta-nos uma visão estruturalista, que entende a
Arquivística como uma verdadeira ciência, enquanto que Duchein procura,
essencialmente, definir princípios para orientar os arquivistas na aplicação do
“respeito pelos fundos”, considerado este como o fundamento essencial da
disciplina.
Também o conceito de record group (formulação americana equivalente à
noção europeia de fundo) é alvo de críticas por parte de canadianos e “o respeito
pela ordem original” é posto em causa por vários arquivistas americanos. No
entanto, as posições defendidas não conseguem aparecer sustentadas por sólidos
argumentos teóricos, sendo essencialmente definidas com base em motivos de
índole pragmática e operativa.
28 ASSOCIATION DES ARCHIVISTES FRANÇAIS - Manuel d’Archivistique : théorie et pratique des archives publiques en France. Paris : S. E. V. P. E. N., 1970. 29 LAROCHE, Carlo - Que signifie le respect des fonds? Esquisse d’une Archivistique structurale. Paris : Association des Archivistes Français, 1971. 30 DUCHEIN, Michel - Le Respect des fonds en Archivistique : principes théoriques et problèmes pratiques. La Gazette des Archives. Paris. 2:97 (1977) 71-96.
É ainda na década de 70 que surgem as primeiras preocupações com a
informática e os novos suportes documentais dela resultantes, e bem assim a
informação enquanto objecto de análise dos arquivistas. Autores americanos
como Charles Dollars e Richard Lytle podem ser considerados os precursores
duma linha de pensamento e acção que irá marcar, de forma indelével, os anos
80.
A procura de uma fundamentação teórica que dê corpo a uma prática
empírica milenar e que formalize os princípios intemporais que têm estado
subjacentes a essa mesma prática tem sido uma das principais vertentes
caracterizadoras da Arquivística, nos anos mais recentes. Por outro lado, uma
visão mais integradora do conceito de arquivo, procurando superar as divisões
artificiais entre records e archives, bem como as rupturas geradas pelos
chamados arquivos intermédios, pré-arquivos ou record centers, constitui
também uma nova concepção, cuja essência assenta no entendimento do arquivo
como sistema de informação específico e coerente. Esta perspectiva aponta
inequivocamente para o entendimento da Arquivística como ciência, embora
posturas diversas ainda coexistam, mais tecnicistas e pragmáticas, sintoma de
que os últimos anos se configuram como um período de transição, em que o
debate e a reflexão sobre a disciplina e o seu objecto de estudo são
imprescindíveis e emergem um pouco por todo o lado.
No início dos anos 80, as preocupações com o carácter científico da
actividade arquivística e o seu método estiveram no centro dos debates do 9º
Congresso Internacional de Arquivos (Londres, 1980), tendo como base de
discussão um sucinto mas interessante relatório apresentado por Arié Arad31. O
autor concluía que a Arquivística ainda não podia ser considerada uma ciência,
mas defendia que a análise da situação e dos fundamentos da disciplina era o
primeiro passo para um avanço qualitativo.
Esta procura das bases teóricas da Arquivística teve particular relevo, na
década de 80, nos Estados Unidos da América, através de vários artigos
publicados, em jeito de polémica, pela revista The American Archivist. Frank 31 ARAD, Arié - The International Council on Archives and archival methodology. Archivum. Paris. ISSN 0066-6793. 29 (1982) 182-186.
Burke, Lester Cappon, Gregg Kimball, Frank Boles, Frederick Stielow, Harold
Pinkett e John Roberts são os nomes que mais se evidenciaram neste debate
sobre o tema da archival theory32. Constituem contributos de inegável
importância, embora não cheguem à discussão de questões centrais como a da
definição do objecto e do método da Arquivística.
Outros autores americanos têm tido também uma importância fundamental
pelos estudos que publicaram em torno de conceitos essenciais. Richard Berner,
David Bearman e Richard Lytle sobressaem pela sua preocupação em revalorizar
o chamado “princípio da proveniência”, encarando-o com um novo enfoque, que
atenta na informação arquivística sobretudo em consonância com o respectivo
contexto de produção. São também estes autores, a par de outros como, por
exemplo, Max Evans, os primeiros a abordar a problemática do controlo de
autoridade no âmbito dos arquivos33.
Questões tão importantes como a da avaliação e selecção documental têm
sido também objecto de estudos recentes e de teorização inovadora nos Estados
Unidos. Nesta matéria ressalta o nome de Helen Samuels, que propõe a análise
funcional como método para chegar ao conhecimento das entidades produtoras
de arquivos34.
No que respeita ao impacto da informática e das novas tecnologias na
teorização arquivística, também há autores americanos que têm tido um papel
32 BOLES, Frank - Disrespecting original order. The American Archivist. Chicago. ISSN 0360-9081. 45:1 (Winter 1982) 26-32; BURKE, Frank G. - The Future course of archival theory in the United States. The American Archivist. Chicago. ISSN 0360-9081. 44:1 (Winter 1981) 40-46; CAPPON, Lester J. - What, then, is there to theorize about? The American Archivist. Chicago. ISSN 0360-9081. 45:1 (Winter 1982) 19-25; KIMBALL. Gregg D. - The Burke-Cappon debate : some further criticisms and considerations for archival theory. The American Archivist. Chicago. ISSN 0360-9081. 48:4 (Fall 1985) 369-376; PINKETT, Harold T. - American archival theory : the state of the art. The American Archivist. Chicago. ISSN 0360-9081. 44:3 (Summer 1981) 217-222; ROBERTS, John W. - Archival theory : much ado about shelving. The American Archivist. Chicago. ISSN 0360-9081. 50:1 (Winter 1987) 66-74; STIELOW, Frederick - Archival theory redux and redeemed : definition and context toward a general theory. The American Archivist. Chicago. ISSN 0360-9081. 54:1 (Winter 1981) 14-26. 33 Ver, por exemplo: BERNER, Richard C. - Archival theory and practice in the United States : a historical analysis. Seattle : University of Washington Press, 1983; BEARMAN, David; LYTLE, Richard - The Power of the principle of provenance. Archivaria. Ottawa. ISSN 0318-6954. 21 (Winter 1985-1986) 14-27; EVANS, Max J. - Authority control : an alternative to the record group concept. The American Archivist. Chicago. ISSN 0360-9081. 49 (Summer 1986) 249-261; BEARMAN, David - - Authority control issues and prospects. The American Archivist. Chicago. ISSN 0360-9081. 52 (Summer 1989) 286-299. 34 Ver: SAMUELS, Helen W. - Improving our disposition : documentation strategy. Archivaria. Ottawa. ISSN 0318-6954. 33 (Winter 1991-1992) 125-140.
muito relevante. Charles Dollars tem-se preocupado sobretudo com a produção
de documentos electrónicos e a sua avaliação35, enquanto que David Bearman,
por exemplo, discute os problemas do acesso e da recuperação da informação e a
influência dos documentos electrónicos no futuro de instituições culturais como
os arquivos, as bibliotecas e os museus36.
Se nos Estados Unidos assistimos ao confronto de variadas perspectivas e
a um grande incremento da investigação arquivística, noutros países, desde o
dealbar dos anos 80, há também uma clara afirmação de novas preocupações,
especialmente no que se refere à cientificidade da Arquivística e à respectiva
fundamentação teórica. Do Canadá chegam-nos estudos que são expressão de
uma dinâmica vigorosa relativamente aos estudos arquivísticos. As revistas
Archives e Archivaria, bem como variados manuais e obras de síntese que têm
sido publicados nos últimos quinze anos, denotam a força e a profundidade que, a
nível teórico, têm sido atingidas pela arquivística canadiana37.
Dos estudos publicados merece especial referência a reflexão levada a
cabo em torno do conceito de fundo, que é formulado em novos moldes e
considerado como um sistema de documentos em relação uns com os outros, em
que os elementos “estrutura” e “função” são apresentados como componentes
essenciais desse mesmo sistema. A “análise de sistemas de arquivos” é defendida
35 DOLLAR, Charles M. - Appraising machine-readable records. The American Archivist. Chicago. ISSN 0360-9081. 41 (Oct. 1978) 423-430; DOLLAR, Charles M. - La Teoria e la prassi archivistica di fronte all’informatica : alcune considerazione. In CONFERENZA INTERNATIONALE, Macerata, 1990 - - L’Archivistica alle soglie del 2000. Atti... Macerata : Università, cop. 1992. ISBN 88 7663 123 2. p. 303-321. 36 Ver, por exemplo: BEARMAN, David - Archival and bibliographic information networks. Journal of Library Administration. Binghamton. ISSN 0193-0826. 7:2/3 (1986) 99-110; BEARMAN, David - - Experience delivery services. In CONGRESSO NACIONAL DE BIBLIOTECÁRIOS, ARQUIVISTAS E DOCUMENTALISTAS, 5, Lisboa, 1994 - Multiculturalismo : comunicações. II - Arquivos. Lisboa : BAD, 1994. ISBN 972-9067-20-1. p. 153-159. 37 A tese de doutoramento de Louise Gagnon-Arguin, sobre a evolução da Arquivística no Québec, permite avaliar o salto qualitativo que o Canadá conseguiu dar nos últimos trinta anos (GAGNON-AR-GUIN, Louise - L’Archivistique : son histoire, ses acteurs depuis 1960. Québec : Presses de l’Université, 1992. ISBN 2-7605-0692-4). No que se refere aos manuais e obras de síntese, sobressaem especialmente: COUTURE, Carol; ROUSSEAU, Jean-Yves - Les Archives au XXe siècle : une réponse aux besoins de l’administration et de la recherche. Montréal : Université, 1982. ISBN 2-89119-026-2; The Archival fonds : from theory to practice. Ed. by Terry Eastwood. [S. l.] : Bureau of Canadian Archivists, 1992. ISBN 0-9690797-6-1; Canadian archival studies and the rediscovery of provenance. Ed. by Tom Nesmith. Metuchen ; London : Society of American Archivists; Association of Canadian Archivists ; The Scarecrow Press, 1993. ISBN 0-8108-2660-7; ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTURE, Carol - Les Fondements de la discipline archivistique. Québec : Presses de l’Université, 1994. ISBN 2-7605-0781-5.
como o método da ciência arquivística e defendida como válida para todas as
acções que afectam os documentos de arquivo desde a sua criação38.
No Canadá, não só os estudos de carácter teórico têm marcado os anos
mais recentes, mas também aspectos mais técnicos têm sido valorizados, como
seja o caso da normalização, sobretudo ao nível da descrição arquivística. Em
1990 surgem as Rules for archival description39 e, em torno deste tema, variados
trabalhos têm sido editados. A problemática do controlo de autoridade tem sido
também abordada em alguns estudos da autoria de Louise Gagnon-Arguin ou
Elizabeth Black, por exemplo40.
Igualmente interessante tem sido a reflexão feita, ainda no Canadá, sobre o
impacto da informática nos arquivos e na teorização arquivística. Nesta matéria
pomos em evidência os nomes de Catherine Bailey41 e de Luciana Duranti
(autora de origem italiana). Esta última tem-se preocupado especialmente com os
novos caminhos da Diplomática, por força dos documentos electrónicos, e com o
valor probatório de tais documentos42.
O movimento de renovação dos estudos arquivísticos, que se faz sentir no
continente norte-americano e de que aqui deixamos uns breves apontamentos,
salientando o que se nos afigura como mais relevante, tem idêntica expressão em
variados países da Europa e mesmo em outras zonas do globo. Em Itália,
sobressai o nome de Elio Lodolini, cuja obra Archivistica : principi e problemi,
sintetiza de forma notável toda a sua visão, designadamente quanto à
fundamentação científica da Arquivística43. A defesa que faz do carácter
científico da disciplina assenta, grandemente, na existência de um método
38 Ver: The Archival fonds... (op. cit.). p. 1-14. 39 Rules for archival description. Ottawa : Bureau of Canadian Archivists, 1990. ISBN 0-9690797-4-5. 40 Ver: GAGNON-ARGUIN, Louise - Une Introduction au contrôle d’autorité pour le traitement des noms propres en Archivistique. [Ottawa?] : Bureau Canadien des Archivistes, Comité de Planification sur les Normes de Description, 1989. ISBN 0-9690797-2-9; BLACK, Elizabeth - Le Controle d’autori- té : un manuel destiné aux archivistes. [Ottawa?] : Bureau Canadien des Archivistes, Comité de Planification sur les Normes de Description, 1991. ISBN 0-9690797-5-3. 41 Ver, por exemplo: BAILEY, Catherine - Archival theory and electronic records. Archivaria. Ottawa. ISSN 0318-6954. 29 (Winter 1989-1990) 180-196.. 42 Particularmente interessante é a série de artigos publicada na revista Archivaria (ver: DURANTI, Luciana - Diplomatics : new uses for an old science. Parts I-VI. Archivaria. Ottawa. ISSN 0318-6954. 28 (Summer 1989)-33 (Winter 1991-1992)). 43 LODOLINI, Elio - Archivistica : principi e problemi. 7ª ed. ampliata. Milano : Franco Angeli, 1995. ISBN 88-204-3378-8.
próprio, designado por metodo storico, o qual é identificado pelo autor com os
princípios da proveniência e da ordem original, defendidos por arquivistas
italianos já desde o século XIX, a partir da “escola” de Florença.
Em países como a França ou a Espanha, a vertente técnica da Arquivística
ainda continua a predominar, pelo que os contributos teóricos são reduzidos. O
recente manual francês intitulado La Pratique archivistique française44 é um bom
exemplo de que as questões de carácter prático estão no centro das preocupações,
pese embora o facto de autores como Michel Duchein ou Bruno Delmas, por
exemplo, divulgarem trabalhos importantes de investigação arquivística45. Em
Espanha, a partir dos anos 80, assiste-se a uma considerável produção de estudos
arquivísticos, em que as questões técnicas de organização, classificação e
descrição preponderam nitidamente. Porém, a teorização não está de todo ausente
e nomes como Antónia Heredia Herrera, Vicenta Cortés Alonso, Pedro López
Gómez, Olga Gallego, entre outros, são referências fundamentais da arquivística
espanhola. Igualmente se salientam devido à enorme influência que têm tido, ao
nível da divulgação da teoria e da formação profissional, em países da América
Latina e, muito especialmente, em Portugal. O manual de Antónia Heredia,
intitulado Archivística general : teoría y práctica (1984)46, é, porventura, a obra
mais significativa da arquivística espanhola recente, embora haja diversos outros
estudos com importância, quer ao nível dos arquivos municipais, quer sobre
técnicas de descrição documental, quer ainda sobre aplicações informáticas
(neste caso salienta-se o projecto de informatização do Archivo General de
Indias, em Sevilha47). Escritos recentes de certos autores, dos quais se salienta o
nome de Maria Luisa Conde Villaverde, demonstram que uma nova postura
44 La Pratique archivistique française. Dir. de Jean Favier. Paris : Archives Nationales, 1993. ISBN 2- -86000-205-7. 45 Ver, por exemplo: DUCHEIN, Michel - Études d’Archivistique, 1957-1992. Paris : Association des Archivistes Français, 1992; DUCHEIN, Michel - The History of European archives... (op. cit.); DELMAS, Bruno - Trente ans d’enseignement de l’Archivistique en France. La Gazette des Archives. Paris. ISSN 00165-522. Nouvelle série. 141 (2e trim. 1988) 19-32; DELMAS, Bruno - Bilancio e prospettive dell’archivistica francese alle soglie del terzo millenio. In CONFERENZA INTERNATIONALE, Macerata, 1990 - L’Archivistica alle soglie del 2000... (op. cit.) p. 79-107. 46 HEREDIA HERRERA, Antonia - Archivística general : teoría y práctica. 4ª ed. Sevilla : Diputación Provincial, 1989. ISBN 84-7798-008-X. 47 A este propósito, ver: VÁSQUEZ DE PARGA, Margarita; GONZÁLEZ, Pedro - Changing techno-logies in European archives. The American Archivist. Chicago. ISSN 0360-9081. 55:1 (Winter 1992) 156-166.
também começa a afirmar-se em Espanha, entendendo os arquivos de forma
global, como sistemas coerentes e como uma realidade inserida no mundo da
informação48.
Na Grã-Bretanha, esta mesma perspectiva de inserção dos arquivos na
área da informação também ganha expressão na última década. O manual de
Michael Cook, publicado em 1986, sob o título The Management of information
from archives49, é um exemplo representativo desta nova concepção que toma
corpo em variados países do mundo.
O reconhecimento de que a Arquivística está num ponto de viragem,
aproximando-se de uma nova era, é igualmente assumido na Alemanha, onde
sobressai o nome de Angelika Menne-Haritz, da escola de Marburg. Numa
comunicação apresentada ao XII Congresso Internacional de Arquivos
(Montréal, 1992)50, esta autora considera precisamente que a “arquivística
descritiva”, que se consolidou a partir do período de entre guerras, está prestes a
ser substituída por uma nova fase, por ela designada como “arquivística multi-
funcional”. Defende, ainda, que nesta nova fase a Arquivística se imporá como
ciência e que a análise é o método a seguir no trabalho do arquivista. Limita,
contudo, a sua perspectiva teórica ao domínio específico da avaliação
documental, à semelhança, aliás, de outros autores, como Helen Samuels, atrás
referida.
Para além do continente norte-americano e da Europa Ocidental, onde têm
surgido, nas duas últimas décadas, os mais significativos estudos e onde a
investigação arquivística está mais desenvolvida, há outros pontos do mundo
onde igualmente se assiste a uma renovação teórica e a uma nova perspectiva
visando a defesa da Arquivística como ciência da informação. Na Europa de
48 CONDE VILLAVERDE, Maria Luisa - El Papel del archivo en la gestión y en la calidad de la información. In CONGRESSO BRASILEIRO DE ARQUIVOLOGIA, 10, São Paulo, 1994 - Anais. São Paulo : Associação dos Arquivistas Brasileiros, Núcleo Regional de São Paulo, 1998. (CD-ROM) 49 COOK, Michael - The Management of information from archives. Aldershot : Gower, 1986. ISBN 0- -566-03504-9. 50 MENNE-HARITZ, Angelika - Formation en Archivistique : pour répondre aux besoins de la société du XXIe siècle. Montréal, 1992. (Texto policopiado)
Leste51, na América Latina (aqui queremos salientar o caso do Brasil e os nomes
de Heloísa Bellotto e José Maria Jardim)52, na Austrália53, vemos surgir trabalhos
de bastante importância, a partir dos quais se percebe que há uma preocupação
em clarificar os fundamentos teóricos da nova ciência arquivística, relacionando-
-a, mais ou menos directamente, com a área da informação.
Nos anos mais recentes, não pode também deixar de ser referida a acção
do C. I. A., que através dos congressos internacionais, de encontros sobre temas
específicos, de publicações várias, tem procurado debater as questões que mais
preocupam a comunidade arquivística mundial. No âmbito do Programa RAMP
têm sido divulgados estudos sobre temáticas diversificadas: a organização e a
gestão de arquivos, o ensino e a formação dos arquivistas, a avaliação de
diferentes tipos documentais, a gestão dos documentos correntes, o acesso, a
utilização e a transferência da informação nos arquivos, os documentos
electrónicos, etc.
Uma outra preocupação do C. I. A. tem sido, já desde há muito, a
terminologia arquivística. Em 1984, sob a direcção de Frank Evans, François
Himly e Peter Walne, foi publicada a 1ª edição do Dictionary of Archival
Terminology, com definições em inglês e francês e traduções em alemão,
espanhol, italiano, neerlandês e russo; em 1988, surgiu a 2ª edição revista deste
mesmo dicionário54. O C. I. A. também editou, há alguns anos, dois outros
léxicos, sobre temas específicos: um sobre automatização (1983)55 e outro sobre
conservação (1988)56.
51 Ver, por exemplo: VINOGRADOV, V. M. [et al.] - Theoretical problems of archive maintenance from the standpoint of information science. Scientific and Technical Information Processing. New York. ISSN 0147-6882. 11:5 (1984) 1-14 (citado por: STIELOW, Frederick - Op. cit. p. 25). 52 Ver: BELLOTTO, Heloísa Liberalli - Arquivos permanentes : tratamento documental. São Paulo : T. A. Queiroz, 1991. ISBN 85-7182-006-6; JARDIM, José Maria; FONSECA, Maria Odila - As Relações entre a Arquivística e a Ciência da Informação. Cadernos de Biblioteconomia, Arquivística e Documentação. Lisboa. ISSN 0007-9421. 2 (1992) 29-45. 53 Keeping archives. Dir. by Anne Pederson. Sydney : Australian Society of Archivists, 1987. ISBN 0- -9595565-9-1 (2ª ed.: 1993). 54 Dictionary of archival terminology = Dictionnaire de terminologie archivistique : english and french with equivalents in dutch, german, italian, russian and spanish. Ed. by Peter Walne. 2nd rev. ed. München [etc.] : K. G. Saur, 1988. (ICA Handbook Series; 7). ISBN 3-598-20279-2. 55 INTERNATIONAL COUNCIL ON ARCHIVES. Committee on Automation - Elementary terms in archival automation. Koblenz : Bundesarchiv, 1983. 56 Glossary of basic archival and library conservation terms. Ed. by Carmen Crespo Nogueira. Mün-chen : K. G. Saur, 1988. (ICA Handbook Series; 4). ISBN 3-598-20276-8.
O tema que, nos anos 90, tem aglutinado os arquivistas de todo o mundo
tem sido o da normalização, designadamente no que se refere à elaboração de
normas descritivas e criação de registos de autoridade. Foi igualmente por acção
do C. I. A. que esta problemática passou a constituir objecto de estudo, tendo
sido criada, em 1990, uma Comissão Ad Hoc sobre Normas de Descrição, com a
finalidade de preparar uma norma internacional. A Comissão elegeu como
documentos de trabalho as regras americanas da autoria de Steven Hensen57, a
norma britânica consubstanciada no MAD2 de Michael Cook e Margaret
Procter58 e as regras canadianas, editadas pelo Bureau of Canadian Archivists59,
por serem consideradas as de mais ampla aplicação a nível internacional. Do
trabalho da citada Comissão Ad Hoc resultaram já três documentos normativos:
uma declaração de princípios orientadores da descrição arquivística, a norma
ISAD(G) e uma outra norma destinada à criação de registos de autoridade, com a
designação de ISAAR(CPF)60.
A importância atribuída às normas de descrição levou a que a sua
discussão fosse objecto de encontros internacionais, tendo sido realizado um na
cidade do México (1993)61 (aquando da 29ª Conferência Internacional da Table
Ronde des Archives) e outro em San Miniato, Itália (1994)62. Nestes dois
encontros, arquivistas de várias nacionalidades caracterizaram e discutiram a
situação existente nos seus países relativamente à aplicação das normas
descritivas.
57 HENSEN, Steven - Archives, personal papers and manuscripts : a cataloging manual for archival repositories, historical societies and manuscript libraries. 2nd ed. Chicago : Society of American Archivists, 1989. ISBN 0-931828-73-2. 58 COOK, Michael; PROCTER, Margaret - Manual of archival description. 2nd ed. Aldershot : Gower, cop. 1989. ISBN 0 566 03634 7. 59 Rules for archival description ... (op. cit.). 60 INTERNATIONAL COUNCIL ON ARCHIVES. Ad Hoc Commission on Descriptive Standards - Sta-tement of principles regarding archival description. 1st version rev. Madrid : I. C. A., 1992; INTERNA-TIONAL COUNCIL ON ARCHIVES. Ad Hoc Commission on Descriptive Standards - ISAD(G) : general international standard archival description. Ottawa : I. C. A., 1994; INTERNATIONAL COUNCIL ON ARCHIVES. Ad Hoc Commission on Descriptive Standards - ISAAR(CPF) : international standard archival authority record for corporate bodies, persons and families. Ottawa. I. C. A., 1996. 61 SEMINARIO SOBRE NORMAS INTERNACIONALES PARA LA DESCRIPCIÓN ARCHIVÍSTICA, México, 1993 - Actas. Washington : [s. n.], 1994. 62 SEMINARIO INTERNAZIONALE, San Miniato, 1994 - Gli Standard per la descrizione degli archivi europei : esperienze e proposte : atti… Roma : Ministerio per i Beni Culturali e Ambientali, Ufficio Centrale per i Beni Archivistici, 1996. ISBN 88-7125-109-1.
As reuniões internacionais não se esgotam, porém, nas iniciativas acima
referidas. Em Itália, tiveram lugar dois encontros da maior importância no que
respeita à discussão das bases científicas da Arquivística. O primeiro, realizado
em 1989 na Escola de Arquivistas e Bibliotecários da Universidade de Roma,
congregou especialistas diversos que reflectiram sobre a situação dos estudos
arquivísticos nos respectivos países. As actas desta jornada foram publicadas em
1992, sob a direcção de Elio Lodolini, num volume intitulado Studi
sull’Archivistica63. O segundo realizou-se na Universidade de Macerata, em
1990, tendo-se preocupado especificamente com a Arquivística enquanto
disciplina científica, a sua evolução histórica, os seus fundamentos, o seu método
e os novos problemas que a afectam por força das tecnologias informáticas64. As
intervenções apresentadas na Conferência Internacional de Macerata revestem-se
de uma qualidade notória e evidenciam bem as preocupações com a
cientificidade da disciplina, que caracterizam o momento actual.
3. A Arquivística como disciplina cienctífica
Procurámos traçar o quadro de desenvolvimento da Arquivística,
assinalando os momentos mais significativos e os estudos mais importantes, com
particular relevo para o que, nos anos mais recentes, vem sendo produzido.
Primeiramente numa situação de disciplina “auxiliar” de outras ciências (recurso
necessário e indispensável para o desenvolvimento e a afirmação científica
delas), mais tarde autonomizando-se e delimitando o seu espaço - ainda que
assente num conhecimento essencialmente empírico -, a Arquivística evoluiu
numa linha coerente e muito própria, a ponto de, no presente, ter conseguido
ganhar um estatuto de cientificidade.
63 GIORNATA DI STUDIO SULL’ARCHIVISTICA, Roma, 1989 - Studi sull’Archivistica : atti... A cura di Elio Lodolini. Roma : Bulzoni Editore, 1992. ISBN 88-7119-387-3. 64 CONFERENZA INTERNAZIONALE, Macerata, 1990 - L’Archivistica alle soglie del 2000 : atti... A cura di Oddo Bucci. Macerata : Università, cop. 1992. ISBN 88 7663 123 2. (Informatica e documentazione; 2)
O seu enquadramento geral é, sem dúvida, no seio das Ciências Sociais,
mas confinando o respectivo âmbito de estudo a uma área mais restrita, a da
Ciência da Informação. Esta interage com um leque diversificado de campos,
desde a Comunicação Social, a Cibernética, a Informática, a Sociologia, a
Psicologia Cognitiva, etc., partilhando entre si um objecto de estudo
polifacetado, que é produto da actividade social - a informação. Este objecto de
estudo, quando contextualizado em sistemas específicos (que geram, manipulam
e difundem o produto social “informação”) ganha características próprias que o
singularizam e o afectam a disciplinas aplicadas como a Arquivística, a
Biblioteconomia e a Gestão da Informação, que se debruçam sobre os sistemas
de informação social, sejam eles os arquivos, as bibliotecas ou variantes mais
modernas destas últimas, os serviços de documentação e/ou informação,
incluindo os de suporte inteiramente electrónico e/ou digital65.
Quanto à caracterização dos sistemas de informação e recorrendo às
formulações da Teoria Geral dos Sistemas66, podemos considerar que eles são
físicos e abstractos, já que compreendem relações que são mensuravéis
fisicamente e outras que o não são, além de serem artificiais, isto é, devidos a
actos conscientes do homem. Do ponto de vista metodológico, podem classificar-
-se amplamente em abertos e fechados. Os primeiros caracterizam-se por
variáveis endógenas e leis de tipo absoluto e por terem comportamentos
independentes da influência de variáveis externas; os segundos singularizam-se
pelo facto de o seu comportamento não se achar determinado estritamente a
partir de dentro.
Estas formulações aplicadas ao caso concreto dos Arquivos carecem de
algumas considerações, já que não é de todo linear a dicotomia entre sistemas
abertos e fechados. Embora os arquivos sejam sistemas de informação
65 Para um maior desenvolvimento sobre o enquadramento científico da Arquivística, no âmbito das ciências da informação e sobre a caracterização do seu objecto de estudo e do método arquivístico, consultar o trabalho já referido: SILVA, Armando Malheiro da [et al.] - Op. cit. cap. 1 e 3. Tendo como base de referência esta obra, limitamo-nos aqui a esboçar um quadro teórico básico, com o objectivo de situar, em termos científicos, o tema de estudo desta dissertação. 66 A Teoria Geral dos Sistemas, doutrina científica aplicável a todos os sistemas em geral, foi formulada por Bertalanffy, Emery, Einberg, Rapoport e outros. Sobre o assunto, ver por exemplo: BERTALANFFY, Ludwig von - Théorie générale des systèmes. Pref. de Ervin Laszlo; trad. par Jean- -Benoîst Chabrol. Paris : Dunod, 1993. ISBN 2 10 001841 8.
produzidos no quadro de uma máxima organicidade (na génese do processo
informacional há um peso considerável das estruturas institucionais,
administrativas, pessoais, etc.), eles não podem, em rigor, ser classificados
taxativamente como sistemas fechados. O factor funcional (uso interno e,
posteriormente, externo) também está presente e, em muitos casos, verifica-se
mesmo a influência de variáveis externas. Sendo assim, parece mais correcto
considerar os Arquivos como sistemas de informação (semi-)fechados que
podem, em diversos casos, evoluir no sentido de uma abertura em que o factor
funcionalidade tem maior peso.
Entendido o Arquivo da forma acima exposta, é evidente a definição de
Arquivística como uma disciplina científica de informação social, que estuda os
arquivos (= sistemas de informação (semi-)fechados), quer na sua estruturação
interna e na sua dinâmica própria, quer na interacção com outros sistemas
correlativos que existem no seu contexto envolvente.
Nesta concepção sistémica, o Arquivo tem de ser apreendido na sua
globalidade e na simbiose dinâmica dos dois factores que modelam a sua
tipologia, isto é, o factor estrutura orgânica e o factor funcional (serviço/uso),
aos quais se associa um terceiro - a memória - imbricado nos anteriores.
Tendo em conta o primeiro deste factores, verifica-se que o arquivo pode
configurar-se de duas formas distintas: como sistema de informação unicelular,
isto é, assentando numa estrutura orgânica de reduzida dimensão, a qual é gerada
por uma entidade individual ou colectiva que não carece de divisões
organizacionais para executar as suas funções administrativas; como sistema de
informação pluricelular, assentando numa estrutura média ou de grande
dimensão, dividida em dois ou mais sectores funcionais, podendo mesmo atingir
um elevado grau de complexidade.
A caracterização da estrutura orgânica, por si só, não é suficiente para o
conhecimento global do arquivo. Há que ter em conta o segundo factor referido -
- a função serviço/uso - o qual, por sua vez, permite a identificação de dois tipos
de arquivos: o centralizado (unicelular ou pluricelular), que opera o controlo da
respectiva informação através de um único ponto, onde se concentra fisicamente
essa mesma informação e se faz o seu tratamento técnico; o descentralizado
(pluricelular), que controla a sua própria informação através de sectores
orgânico-funcionais (e, por vezes, subsistemas) com relativa autonomia, do ponto
de vista da gestão e do tratamento técnico dessa informação.
Os tipos de arquivo referidos, configurações determinadas pelos dois
factores mencionados, combinam-se, obviamente, em resultado da conjugação
desses mesmos factores, ambos indispensáveis à caracterização do arquivo total,
isto é, enquanto sistema de informação.
Para além dos tipos citados, há ainda a considerar a existência de um
outro, surgido em consequência do modelo nacionalista e centralizador resultante
da Revolução Francesa. Trata-se dos vulgarmente chamados Serviços de
Arquivo, estruturas criadas especificamente para a concentração, custódia e
divulgação de acervos arquivísticos num mesmo espaço, com o fim de preservar
a memória indispensável à História da Nação. Tais estruturas - produto de uma
determinada conjuntura histórica - foram concebidas, de forma artificial,
sobrepondo-se aos factores orgânico e funcional, atrás enunciados. Estes
arquivos especializados são sistemas pluricelulares, criados propositadamente
para incorporar, preservar e difundir qualquer arquivo desactivado (a respectiva
entidade produtora cessou a sua actividade) ou para incorporar a documentação
sem interesse administrativo, proveniente de arquivos activos (a entidade
produtora continua em plena actividade).
A Arquivística técnica, que tem dominado ao longo deste século, tem-se
preocupado sobretudo com a gestão dos arquivos especializados (vulgo arquivos
históricos), numa visão quase exclusivamente dedicada aos problemas das
técnicas próprias para executar o tratamento documental e permitir o acesso e a
recuperação da informação. Esta perspectiva continua a entender os arquivos,
essencialmente, como serviços, descurando ou mesmo ignorando o necessário
conhecimento deles desde a sua génese e em toda a sua complexidade sistémica.
Daí a excessiva valorização do factor funcional e a aceitação passiva de uma
certa subalternização da Arquivística em relação a outras ciências, que usam a
informação produzida e conservada pelos arquivos como fonte de estudo e de
recolha de dados.
A assunção da Arquivística como ciência, implica, por um lado, a
caracterização e representação do seu objecto, o qual, como vimos, se apresenta
multifacetado, ou seja, com diferentes configurações determinadas pela
conjugação dos factores orgânico e funcional e por factores exógenos, como é o
caso dos arquivos especializados. Por outro lado, exige também um dispositivo
de investigação adequado ao conhecimento da realidade arquivística,
representada como objecto cognoscível, isto é, um método apropriado. O
dispositivo metodológico deve congregar a possibilidade de quantificação, já que
existem aspectos (variáveis) do objecto passíveis de observação, de
experimentação e de medida, e a análise qualitativa, em que se insere a
interpretação/explicitação e a formulação de hipóteses/teorias, em suma, a
intervenção do sujeito na construção do conhecimento arquivístico.
O método arquivístico afirma-se através de uma investigação quadripolar
(pólo epistemológico, pólo teórico, pólo técnico e pólo morfológico) que se opera
e se repete continuamente no respectivo campo de conhecimento67.
4. O objecto de estudo desta dissertação
Uma vez expostos os fundamentos teóricos essenciais para a afirmação do
carácter científico da Arquivística, importa agora delimitar o campo de estudo
que escolhemos como objecto desta dissertação e situá-lo devidamente, quer no
quadro da realidade arquivística, quer na linha de investigação que relativamente
ao tema tem sido desenvolvida.
Estudar e reflectir sobre o acesso à informação nos arquivos, analisado
numa perspectiva diacrónica e devidamente contextualizado no quadro de
desenvolvimento dos diferentes tipos de arquivo, bem como delinear um modelo
67 Para um maior desenvolvimento das questões metodológicas, ver novamente: SILVA, Armando Malheiro da [et al.] - Op. cit. cap. 3.
teórico passível de fundamentar a elaboração dos instrumentos destinados a
possibilitar esse acesso, são os objectivos que nos propomos atingir com este
trabalho.
Sentimos, desde logo, necessidade de definir claramente o que
entendemos por acesso e em que perspectiva este conceito é usado na abordagem
que dele fazemos. O acesso à informação nos arquivos pode ser definido como a
disponibilidade de qualquer suporte informativo para consulta, em resultado quer
de uma autorização legal para o efeito, quer da existência de instrumentos de
acesso adequados. O primeiro pressuposto, isto é, a autorização legal para
consulta, precede obviamente o segundo e é uma condição imprescindível para
que o acesso se possa concretizar. As disposições de natureza legal inserem-se no
âmbito das chamadas condições de acessibilidade, constituindo a primeira
barreira ao acesso ou, pelo contrário, o primeiro dispositivo que o torna efectivo.
A existência de intrumentos capazes de orientar na localização e recuperação de
qualquer dado ou suporte informativos, que decorre da função serviço/uso
inerente a qualquer sistema de informação (neste caso, o arquivo), é uma
condição necessária (embora não a única) para que o acesso se efectue e,
dependendo da qualidade desses mesmos instrumentos, é uma condição essencial
para que o acesso seja eficaz e a pesquisa de informação tenha sucesso.
Dos dois pressupostos atrás referidos como implícitos no conceito de
acesso, optámos por estudar apenas o segundo. Assim, não vamos analisar
questões de ordem legislativa nem determinações susceptíveis de permitir ou
barrar o acesso, mas sim as questões relativas aos instrumentos que se produzem
para o tornar possível.
A problemática que escolhemos como tema central deste estudo envolve
duas facetas essenciais: a análise diacrónica do contexto em que se tem
processado o acesso à informação; a caracterização dos instrumentos de acesso,
quanto à sua tipologia, estrutura interna e pontos de acesso que incluem.
5. Antecedentes do tema na investigação arquivística
A problemática do acesso à informação nos arquivos tem sido muito
pouco abordada na literatura da especialidade, do ponto de vista teórico, e é
igualmente ignorada no que toca à sua evolução, em termos diacrónicos. Ao
longo dos tempos foram-se criando e desenvolvendo instrumentos destinados a
possibilitar e facilitar esse acesso, mas a sua construção tem-se resumido a
procedimentos de ordem técnica e prática sem a necessária fundamentação.
Trata-se, sobretudo, de um “saber de experiência feito” sem uma definição de
princípios, regras ou quaisquer outros fundamentos. Existem alguns estudos
relativos à elaboração de instrumentos de pesquisa (os tradicionais guias,
inventários, catálogos, índices e outras variantes com designações diversas ou
sinónimas), mas a imprecisão terminológica é notória e a indefinição de critérios
para tipificar e caracterizar tais instrumentos também subsiste.
As preocupações com a normalização, que se têm acentuado desde 1990,
mercê sobretudo da acção do C. I. A., dirigem-se especialmente para a questão
das técnicas descritivas e para o estabelecimento de pontos de acesso como
forma de recuperar informação. As normas de descrição saem do âmbito deste
nosso estudo, embora os elementos que integram a descrição arquivística sejam
essenciais para uma definição correcta dos pontos de acesso a estabelecer.
Também sobre este tema não abundam os estudos, se nos cingirmos à área dos
arquivos. Em contrapartida, no campo da Biblioteconomia, existe literatura
variada e em quantidade muito significativa sobre esta questão, uma vez que a
elaboração de códigos catalográficos data já de meados do século XIX e tem
sofrido uma evolução e uma actualização permanente ao longo deste século68.
A aplicação das chamadas novas tecnologias ao tratamento e pesquisa da
informação - desenvolvida fundamentalmente a partir dos anos 50 e que começou
por ser feita nos centros de documentação científica e técnica - rapidamente se
alargou ao domínio das bibliotecas, em geral, contribuindo para acelerar os
68 Sobre a evolução da prática catalográfica e respectivos códigos, poder-se-á consultar: Foundations of cataloging : a sourcebook. Ed. by Michael Carpenter, Elaine Svenonius. Littleton : Libraries Unlimited, 1985. ISBN 0-87287-511-3.
procedimentos normalizados, requisito indispensável à troca de informação entre
serviços, por via da automatização.
A influência da informática sobre as técnicas documentais não deixou de
alastrar aos arquivos, embora mais tardiamente69. A ideia de que cada arquivo
possui um acervo muito específico, com carácter de unicidade, fez com que
demorasse mais o surgimento de redes de comunicação e se mantivesse um certo
isolamento das entidades detentoras de arquivos, umas em relação às outras. As
aplicações informáticas nos arquivos surgiram mais para acelerar procedimentos
de rotina e para facilitar o trabalho de gestão do que para estabelecer trocas de
informação com o exterior70. Esta perspectiva começou a alterar-se, sendo
sintoma disso as grandes bases de dados criadas nos Estados Unidos da América,
com a finalidade de processar informação de vário tipo, já que o objectivo central
era o de permitir pesquisas temáticas. Assim nasceram sistemas informáticos de
grande envergadura integrando informação proveniente de bibliotecas, de
arquivos, de serviços de informação especializada e mesmo de museus, em que
se procurava unificar técnicas de tratamento da informação, quer ao nível
descritivo, quer ao nível do estabelecimento de pontos de acesso71.
A perspectiva biblioteconómica dominante nestas experiências conjuntas
teve efeitos perversos do ponto de vista arquivístico, pois o tratamento
documental não era adequado à correcta descrição dos documentos de arquivo,
uma vez que não se valorizava a sua inserção no contexto original de produção.
A reacção contra tais desvios veio a favorecer o aparecimento, em vários países
69 Meyer Fishbein, num artigo dedicado à história da automatização de arquivos, afirma que, até cerca de 1970, a importância potencial dos computadores não fora reconhecida pelos arquivistas. E nesse mesmo artigo podemos aperceber-nos do atraso que os arquivos sofreram, em termos informáticos, face a outras áreas (ver: FISHBEIN, Meyer - La Automatización de archivos : historia sumaria. ADPA. Madrid. 3:3 (1981) 9-13). 70 Em 1985, o Comité de Automatização do C. I. A. realizou um inquérito internacional sobre as aplicações informáticas nos arquivos, o qual veio demonstrar que a maioria dos sistemas informáticos existentes estavam mais em fase de planificação do que em fase operativa, que havia uma escassez de software específico para o tratamento documental e um incipiente estabelecimento de redes de comunicação em linha. Os resultados do inquérito podem-se consultar em: COOK, Michael - Encuesta internacional sobre aplicaciones informáticas a la gestión archivística. ADPA. Madrid. ISSN 0211-7312. 5:2 (1986) 43-54. 71 Um exemplo deste tipo de bases de dados é designado por RLIN AMC (Research Libraries Information Network - Archives and Manuscript Control) e sobre ele pode-se ver: REED, Dale - The RLIN AMC format : an experiment in library-compatible archival data automation. Journal of the Society of Archivists. Abingdon. ISSN 0037-9816. 7:7 (Apr. 1985) 450-455.
(designadamente nos Estados Unidos, no Canadá, na Grã-Bretanha), de normas
arquivísticas e de formatos próprios para a troca de informação automatizada,
como seja o caso do MARC-AMC (Machine-Readable Cataloging - Archival and
Manuscripts Control).
A elaboração de normas de descrição arquivística implica uma definição
dos elementos informativos que integram a própria descrição e pressupõe que,
em paralelo, sejam criados pontos de acesso relativos às unidades arquivísticas
descritas. Esta matéria só muito recentemente passou a constituir objecto de
estudo no âmbito do C. I. A. Em 1994, surgiu a versão provisória (tornada
definitiva em 1996) da primeira norma destinada à construção de registos de
autoridade - a ISAAR(CPF) -, ou seja, o estabelecimento dos pontos de acesso
autorizados em ligação com as descrições feitas segundo a norma ISAD(G).
A problemática do controlo de autoridade aplicado à informação
arquivística, embora só nos últimos anos tenha sido encarada ao nível
internacional, começa a ser abordada já desde meados dos anos 80,
especialmente nos Estados Unidos da América. Existem, pois, alguns escritos
sobre o tema, mas faltam estudos abrangentes do ponto de vista teórico e
trabalhos de aplicação prática, bem como a definição de critérios de
aplicabilidade. A experiência biblioteconómica nesta matéria constitui, contudo,
uma base de trabalho importante e um auxiliar precioso para a definição dos
fundamentos teóricos apropriados.
Em síntese, podemos afirmar que os estudos relativos a esta variável de
investigação arquivística traduzem uma perspectiva da problemática em questão,
bastante parcelar, pouco sistemática e, em grande parte, empírica.
6. O método de investigação seguido
No desenvolvimento do estudo que agora se apresenta foram diversas as
componentes metodológicas seguidas nas várias fases da investigação. Tal como
atrás referimos, o método arquivístico desenvolve-se através de quatro pólos, os
quais congregamos, naturalmente, neste trabalho. A componente epistemológica
está presente na investigação de tipo retrospectivo que desenvolvemos com vista
a uma construção do objecto científico de estudo e à delimitação da problemática
em análise; a componente teórica manifesta-se através da racionalidade do
sujeito sobre o objecto, da formulação de conceitos operatórios, hipóteses, teorias
e subsequente verificação ou refutação; a componente técnica (que tem sido a
mais desenvolvida pela Arquivística ao longo deste século), pela qual o
investigador toma contacto, por via instrumental, com a realidade objectivada,
permite afirmar a capacidade probatória do dispositivo metodológico e validar
(ou não) o “contexto teórico” e está presente neste estudo através de duas
operações essenciais: a observação de casos e de variáveis e a avaliação
retrospectiva e prospectiva; a componente morfológica diz respeito à análise dos
dados recolhidos e afirma-se através da exposição de todo o processo que
permitiu a construção do objecto científico de estudo, devidamente aferido nos
pólos epistemológico e teórico.
A investigação que desenvolvemos passou por diferentes fases
correspondentes a diversas vertentes da problemática em estudo e orientou-se da
seguinte forma:
- conhecimento do modo como, ao longo do tempo, se tem efectivado o
acesso à informação nos arquivos, considerados estes no seu processo de
formação, desenvolvimento e consolidação;
- caracterização dos instrumentos de pesquisa, de acordo com níveis de
análise arquivística, com vista ao estabelecimento de um modelo teórico passível
de definir tipologias e uma terminologia adequada;
- análise da estrutura interna dos instrumentos de acesso e dos elementos
informativos tendentes a ser considerados como pontos de acesso à informação,
visando determinar uma adequação à função que desempenham;
- estudo dos efeitos que, por força da normalização descritiva e da
aplicação de tecnologias informáticas, se fazem sentir na actual produção de
isntrumentos de acesso à informação.
Com vista ao conhecimento do modo como se tem processado ao longo
dos tempos o acesso à informação nos arquivos, procurámos traçar uma
perspectiva diacrónica, escolhendo como campo de trabalho os arquivos
portugueses. Para o efeito, recolhemos toda a informação publicada que nos foi
possível referenciar, legislação diversa e dados informativos não publicados
existentes em alguns arquivos especializados. O material recolhido possibilitou
uma análise retrospectiva tendente a um conhecimento fundamentado desta
problemática, no quadro de desenvolvimento dos arquivos do nosso país. O facto
de não haver estudos que permitam um conhecimento dos arquivos portugueses
no passado levou-nos a desenvolver uma análise aprofundada sobre a matéria, a
qual nos permitiu contextualizar devidamente, e na medida do possível, os
aspectos relativos ao acesso à informação.
A análise e caracterização dos instrumentos de pesquisa baseou-se
também na realidade portuguesa. Procurámos fazer um levantamento o mais
exaustivo possível dos instrumentos publicados, que se destinam a possibilitar o
acesso à informação dos arquivos, tendo como limite temporal o ano de 1996. É
óbvio que a falta de fontes de referência adequadas a um levantamento deste tipo
condiciona o resultado da investigação e gera omissões que comprometem o
carácter de exaustividade pretendido. O facto de muitos dos instrumentos
existentes terem sido publicados em revistas ou outras publicações de carácter
local e regional também constituiu um problema praticamente insolúvel, pois o
tratamento analítico das publicações periódicas não está, em geral, feito e é
materialmente impossível proceder à consulta sistemática de tais publicações.
Para a abordagem dos aspectos teóricos relativos aos instrumentos de
acesso à informação baseámo-nos, quase exclusivamente, em literatura
estrangeira, que não é muito abundante, e recorremos à fundamentação científica
da Arquivística para propor metodologias específicas.
7. Fontes de informação utilizadas
A recolha da informação necessária ao desenvolvimento deste estudo
processou-se em diversas etapas e teve como suporte diferentes fontes de
informação. Os dados de natureza histórica relativos aos arquivos portugueses,
bem como o levantamento dos instrumentos de acesso à informação dos mesmos
arquivos foram essencialmente compilados a partir de fontes bibliográficas
(monografias, revistas, jornais e legislação). No entanto, estas foram
significativamente complementadas por outras, designadamente fontes
arquivísticas.
A instituição onde efectuámos a grande maioria das pesquisas de tipo
bibliográfico foi a Biblioteca Pública Municipal do Porto. Esta biblioteca foi
abrangida, desde a sua fundação, pela lei do depósito legal e possui instrumentos
de pesquisa capazes de possibilitar o acesso à bibliografia portuguesa de que é
depositária, na sua quase totalidade. Algumas lacunas que aqui encontrámos,
relativas a publicações cuja referência conhecíamos, foram superadas na
Biblioteca Nacional, na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, na
Biblioteca Pública de Braga e, ainda, na Biblioteca Central da Faculdade de
Letras da Universidade do Porto. Recorremos também ao Arquivo Histórico
Ultramarino para referenciar instrumentos de pesquisa editados no Brasil, mas
relativos a arquivos portugueses e, esporadicamente, à Bibliothèque Nationale de
Paris para obtenção de publicações estrangeiras bastante antigas.
No que se refere à informação colhida em arquivos, consultámos o
Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo, especialmente para obtenção
de dados históricos acerca do próprio Arquivo Nacional, o Arquivo Histórico
Municipal do Porto, o Arquivo da Universidade de Coimbra, o Arquivo Distrital
do Porto, o Arquivo da Santa Casa da Misericórdia do Porto e a Biblioteca da
Ajuda. Nestas instituições procurámos recolher informação sobre os instrumentos
de pesquisa (não publicados) em uso, procurando assim exemplos diversificados
e, ao mesmo tempo, ilustrativos dos vários tipos de arquivos (da administração
central, municipais, eclesiásticos, de família, pessoais, etc.).
Tal como já atrás referimos, o levantamento bibliográfico a partir de
publicações periódicas (especialmente revistas) apresenta-se muito dificultado
pela falta de tratamento analítico de tais publicações. Tal dificuldade sentimo-la
particularmente no levantamento dos instrumentos de acesso à informação dos
arquivos portugueses. Tínhamos como objectivo inicial fazê-lo de uma forma
exaustiva, mas sabemos que, possivelmente, não atingimos tal desiderato, por
falta de meios para a referenciação bibliográfica. Se, no que respeita a
publicações antigas, é difícil a sua localização, pois são raras ou mesmo
inexistentes e nem sempre estão devidamente catalogadas nas nossas bibliotecas,
para obras recentes as barreiras ao acesso são também muitas vezes
intransponíveis. Acontece que muitas editoras não cumprem a lei do depósito
legal e, por ironia, tal facto dá-se mesmo com trabalhos editados pelos próprios
arquivos. Não foram raros os casos em que tivemos de escrever ou telefonar para
as instituições a pedir que nos enviassem um exemplar de um guia, um inventário
ou qualquer outro instrumento de pesquisa que não havíamos conseguido
encontrar no acervo das várias bibliotecas onde fizemos a pesquisa.
O levantamento bibliográfico dos instrumentos de acesso à informação
dos arquivos portugueses foi ainda completado através de outra fonte de
informação: as próprias entidades detentoras de arquivos. Assim, enviámos um
pedido de informação, solicitando que nos remetessem referências bibliográficas
ou fotocópias dos instrumentos que possuíam, indicando no nosso pedido aqueles
de que já tínhamos conhecimento.
Relativamente à informação arquivística de natureza teórica e de carácter
técnico, ela foi sobretudo recolhida a partir de fontes de informação estrangeiras
e de bibliografia, também estrangeira, existente em instituições nacionais.
Indicamos apenas aquelas onde fizemos recolhas sistemáticas, dispensando-nos
de referir outras a que só ocasionalmente recorremos. Consultámos inúmeros
catálogos de editoras e de instituições especializadas (salientamos os boletins do
Centro de Información y Documentación Archivística (C.I.D.A.), em Madrid, e
as publicações do Conselho Internacional de Arquivos); a biblioteca do Centro de
Documentação Europeia (no Porto); os catálogos do ex-Gabinete de
Biblioteconomia da Biblioteca Nacional; os núcleos bibliográficos de apoio aos
Cursos de Especialização em Ciências Documentais existentes na Biblioteca
Geral da Universidade de Coimbra e nas Faculdades de Letras das Universidades
do Porto e de Lisboa; a biblioteca da Associação Portuguesa de Bibliotecários,
Arquivistas e Documentalistas (BAD); a biblioteca de referência técnica do
Arquivo Histórico Municipal do Porto; a base nacional de dados bibliográficos
(PORBASE); a base de dados bibliográficos LISA em cd-rom, dedicada às
ciências da informação, que é particularmente útil pelo facto de disponibilizar
resumos das obras referenciadas.
Consideramos que, no essencial, esgotámos as fontes de informação
disponíveis em Portugal para referenciação de estudos estrangeiros sobre a
temática que nos propusemos abordar. As consultas feitas ao C.I.D.A., na base de
dados LISA, bem como uma pesquisa - que encomendámos - efectuada na base
OCLC (nos Estados Unidos), permitiram-nos uma referenciação, ao que
julgamos, bastante exaustiva, da literatura estrangeira de interesse para o nosso
trabalho. O facto de encontrarmos uma grande coincidência de referências nas
diferentes consultas efectuadas é um bom indicador do grau de exaustividade
atingido.
Além das fontes de informação já referidas, utilizámos também as próprias
obras consultadas como meio de referenciação de outros estudos afins e
presumivelmente pertinentes. O acesso a eles teve de ser através da encomenda
directa, quer de originais, quer de reproduções, feita por via de livrarias,
empréstimo inter-bibliotecas, requisição de fotocópias e mesmo por correio
electrónico. Não queremos deixar de assinalar, com mágoa, quão morosa e
incomportável do ponto de vista financeiro ainda é a obtenção de estudos
estrangeiros, apesar das “auto-estradas da informação” serem já uma realidade
presente.
As obras de referência, os manuscritos e a bibliografia utilizados nesta
dissertação são mencionados no final da mesma. Para uma melhor
sistematização, nas referências bibliográficas apresentadas, procurámos
estabelecer algumas divisões, correspondendo a unidades temáticas ou
tipológicas, em detrimento de uma ordenação alfabética geral, menos útil para
consulta.
As referências bibliográficas dos instrumentos de acesso à informação dos
arquivos portugueses72 são apresentadas no Anexo 1, por ordem alfabética e
devidamente numeradas. A numeração destina-se a servir de elemento de
referência nos quadros analíticos (Anexos 2, 3 e 4) elaborados a partir dos dados
informativos extraídos dos próprios instrumentos reportoriados.
72 Para evitar repetições, não incluímos na bibliografia final os instrumentos de acesso à informação citados ao longo do texto, a não ser nos casos em que eles nos serviram como obras de referência.