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Universidade Federal do Rio de Janeiro INUNDAÇÃO NO DESERTO: A TOXICOMANIA PELO VIÉS DA MELANCOLIA SELENA DE ARAÚJO LEITE CARAVELLI 2005

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

INUNDAÇÃO NO DESERTO: A TOXICOMANIA

PELO VIÉS DA MELANCOLIA

SELENA DE ARAÚJO LEITE CARAVELLI

2005

i

UFRJ

INUNDAÇÃO NO DESERTO: A TOXICOMANIA

PELO VIÉS DA MELANCOLIA

SELENA DE ARAÚJO LEITE CARAVELLI

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-graduação em Teoria

Psicanalítica do Instituto de Psicologia da

Universidade Federal do Rio de Janeiro -

UFRJ, como parte dos requisitos necessários à

obtenção do título de Mestre em Teoria

Psicanalítica.

Orientadora: Profa Dra. Teresa Silveira

Pinheiro

Rio de Janeiro

2005

ii

INUNDAÇÃO NO DESERTO: A TOXICOMANIA

PELO VIÉS DA MELANCOLIA

Selena de Araújo Leite Caravelli

Orientadora

Prof. Dra.Teresa Silveira Pinheiro

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria

Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro -

UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria

Psicanalítica.

Aprovada por:

_______________________________________

Presidente: Profa. Dra.Teresa Silveira Pinheiro

_______________________________ Profa. Angélica Bastos Grimberg _______________________________ Profa. Salette MariaBarros Ferreira

Rio de Janeiro

2005

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FICHA CATALOGRÁFICA

Caravelli, Selena de Araújo Leite Inundação no deserto: a toxicomania pelo viés da melancolia / Selena de AraújoLeite Caravelli. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2004. vii, 112f; cm. Orientador: Teresa Silveira Pinheiro Dissertação (mestrado) – UFRJ, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, 2004. Referências Bibliográficas: f. . . 1. Dissertação. 2. Psicanálise. 3. Melancolia. 4.Toxicomania. 5.Autocrueldade. 6. Corpo. 7. Passagem ao ato I. Pinheiro, Maria Teresa da Silveira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. III. Inundação no deserto: a toxicomania pelo viés da melancolia

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AGRADECIMENTOS

À Profa Teresa Pinheiro, pelo crédito em meu projeto e pela orientação sempre atenta e decisiva; Aos professores do Programa de Pós Graduação em Teoria Psicanalítica, especialmente à Profa Angélica Bastos Grimberg, pelo rigor com que exercem seu trabalho; Ao PROJAD-IPUB/UFRJ, Salette Barros e Marcelo Cruz, pela acolhida. Aos colegas da Pesquisa Comparação Metapsicológica entre Pacientes Melancólicos e Pacientes Portadores de Doenças Autoimunes, liderado pelos Profs. Júlio Verztman e Teresa Pinheiro, grupo a um só tempo coeso e plural, de onde extraio não apenas riquezas teórico-clínicas, mas também testemunho expressões de carinho e solidariedade. A Fernandinha e Diane, meu beijo especial; A Lindinaura e Mariema, pela escuta, pela generosidade e delicadeza; A Eliane Costa e Silva, Sara Buzak, Abigail Rocha, Consuelo Monteiro, a fratria que escolhi; À Abuela, de quem tenho a aprender noventa anos de lições de amor e simplicidade; Ao Tio Romeu, pelos livros todos, por todos os livros; Aos meus irmãos; a fratria que me foi dada, e que me ensinou a dividir; Ao meu pai, de quem deduzi as lições que me daria, e à minha mãe, com quem aprendi as múltiplas faces da coragem, da persistência, do amor e da função materna; Ao Nick, pela lição de não desistirmos um do outro; À Mariana e Babucha, para quem espero retransmitir a lição da persistência.

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RESUMO

INUNDAÇÃO NO DESERTO: A TOXICOMANIA

PELO VIÉS DA MELANCOLIA

Selena de AraújoLeite Caravelli

Orientadora: Maria Teresa Silveira Pinheiro

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação

em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de

Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre

em Teoria Psicanalítica.

O presente trabalho tem por objetivo apontar as possíveis interfaces entre a

toxicomania e a melancolia. Para tal, articulamos às afecções dois pontos de contato: a

correlação que melancólicos que se tornaram toxicômanos mantêm com o próprio corpo

e a correlação que liga tais sujeitos à possibilidade de um tipo de passagem ao ato, o

suicídio.

Delineamos tais conexões, a partir da metapsicologia freudiana da melancolia,

iniciada no Manuscrito G (1895) e que se robustece com o desenrolar da obra,

notadamente após os textos de 1923. De Lacan, utilizamos o conceito do estádio do

espelho, que será recuperado por Lambotte para sustentar seu postulado de moldura

vazia, vicissitude possível do momento de subjetivação e que acarretará a constituição

melancólica.

Para tratarmos da toxicomania, nos utilizamos, além dos autores citados, de

Hassoun, para quem a toxicomania reatualiza uma forma de melancolia, e Zafiropoulos,

que defende a inexistência da toxicomania como causalidade primária. Agregamos a tais

postulados as contribuições freudianas e lacanianas sobre a angústia e a passagem ao

ato.

Dois fragmentos clínicos foram apresentados a fim de evidenciarmos as

correlações propostas.

Palavras-chave: dissertação, melancolia, toxicomania, autocrueldade, corpo,

passagem ao ato

RIO DE JANEIRO

Janeiro de 2005

vi

RÉSUMÉ

INONDATION DANS LE DÉSERT: LA TOXICOMANIE

PAR LE BIAIS DE LA MÉLANCOLIE

Selena de AraújoLeite Caravelli

Directrice d’études: Maria Teresa Silveira Pinheiro

Résumé de la dissertation de DEA présentée dans le cadre du programme de

Pós-graduação en Théorie Psychanalytique de l’Institut de Psychologie de

l’Université Fédérale de Rio de Janeiro – UFRJ comme partie des conditions

nécessaires à l’obtention du titre de Mestre en Théorie Psychanalytique.

Ce travail a pour but de souligner les possibles interfaces entre la toxicomanie et

la mélancolie. Aussi, avons-nous relié aux affections deux points de contact: la

corrélation que des mélancoliques qui sont devenus toxicomanes gardent avec leur

propre corps et la corrélation qui rattache de tels sujets à la possibilité d’un type de

passage à l’acte, le suicide.

Nous avons cerné ces connexions à partir de la métapsychologie freudienne de la

mélancolie commencée dans le Manuscrit G (1895) et qui se renforce dans le

déroulement de l’œuvre, en particulier après les textes de 1923. Chez Lacan, nous avons

exploité le concept de état du miroir, qui sera repris par Lambotte pour soutenir son

postulat de cadre vide, vicissitude du moment de subjectivation et qui entraînera la

constitution mélancolique.

Pour traiter de la toxicomanie, nous nous sommes servis, outre les auteurs cités,

de Hassoum, chez qui la toxicomanie remet à jour une forme de mélancolie et de

Zafiropoulos, qui défend la non existence de la toxicomanie comme causalité primaire.

Nous rapprochons de ces postulats les contributions freudiennes et lacaniennes sur

l’angoisse et le passage à l’acte.

Deux fragments cliniques ont été présentés afin de mieux détacher les

corrélations proposées.

Mots-clé : dissertation, mélancolie, toxicomanie, auto-cruauté, corps, passage à

l’acte.

Rio de Janeiro - Janvier 2005

vii

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 1

CAPÍTULO I TOXICOMANIA E MELANCOLIA NA PSICANÁLISE....... 13

1.1 A MOLDURA VAZIA .............................................................................. 15

1.2 ARTICULAÇÕES TEÓRICAS ENTRE A TOXICOMANIA

E A MELANCOLIA ...............................................................................

17

1.3 A TOXICOMANIA NA PSICANÁLISE ............................................... 22

1.4 UM PANORAMA DA MELANCOLIA NA PSICANÁLISE ............... 29

1.4.1 Sigmund Freud ...................................................................................... 29

1.4.1.1 Uma Nota sobre o Objeto ....................................................................... 33

1.4.1.2 Luto e Melancolia ................................................................................... 36

1.4.2 UMA NOTA SOBRE JACQUES LACAN E A MELANCOLIA.......... 40

CAPÍTULO II TOXICOMANIA E MELANCOLIA: A RELAÇÃO

COM O CORPO ..........................................................................

43

2.1 O CORPO EM FREUD .......................................................................... 44

2.2 O CORPO EM LACAN ......................................................................... 51

2.2.1 Alienação e Separação .......................................................................... 55

2.3 O CORPO MELANCÓLICO ................................................................. 60

2.4 O CORPO TOXICOMANÍACO ............................................................ 64

2.4.1 Uma Nota Sobre o Super Eu e a Pulsão de Morte ............................. 65

2.5 A HISTÓRIA DE MARIA ..................................................................... 69

CAPÍTULO III TOXICOMANIA E MELANCOLIA: A RELAÇÃO COM

A PASSAGEM AO ATO ...........................................................

73

3.1 O ACTING OUT E A REPETIÇÃO ....................................................... 75

3.2 A PASSAGEM AO ATO ....................................................................... 77

3.3 INIBIÇÃO, ATO E ANGÚSTIA ........................................................... 82

3.4 PASSAGEM AO ATO, MELANCOLIA E TOXICOMANIA:

A HISTÓRIA DE PEDRO .....................................................................

85

CONCLUSÃO .......................................................................................................... 94

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 106

INTRODUÇÃO

Nos primórdios de sua obra, Freud sedimentou, por via de uma metáfora, a

entropia pulsional na melancolia, descrita por ele como se fosse uma hemorragia

interna, que se instala nas outras pulsões e funções.1 (FREUD, 1895?/1973, III,

p.3.507-8) Através desta hemorragia é que o sujeito seria conduzido ao deserto

melancólico. Nesse escrito ele define ainda o que considera a melhor formulação da

melancolia: inibição psíquica com empobrecimento pulsional e dor correspondente.

(Ibidem)

A dor psíquica sempre intrigara Freud e permaneceu uma questão viva ao longo

de sua obra. Iremos reencontrá-la no texto Inibição, Sintoma e Angústia (1925/1973),

portanto, quase 40 anos após o Manuscrito G, persistindo ainda como alvo especulativo.

Quando a separação de um objeto produz angústia, quando produz luto e quando

produz somente dor? - pergunta-se ele. (Op. cit, III, p.2.835)

Sua resposta é que a dor psíquica seria o resultado de um alto investimento

objetal, que, no caso do luto, uma vez perdido o objeto, o sujeito continuaria ainda a

investir nele, como se aquele estivesse ainda presente. A tarefa do enlutado seria, então,

desfazer os laços, levantar suas âncoras e prosseguir à procura de outros investimentos

em novos mares significantes, o que encerraria o fim deste trabalho psíquico.

Apesar de não referida nesse texto de 26, podemos reconhecer na lógica

melancólica que persiste nesta época uma derivação do que já havia sido postulado no

texto Luto e Melancolia (1915a/1973). Na melancolia, o Eu se identifica com o objeto

perdido e é fagocitado e engolfado por ele. De que objeto se trata?

O melancólico ignora. Este objeto não pode ser nomeado ou reconhecido. É um

astro enorme, que vai sombreando o Eu a ponto de submetê-lo a um total eclipse,

jogando-o nas trevas e drenando de vez sua seiva narcísica. A partir daí, o sujeito passa

1 Nota da autora: Todos os textos de FREUD citados constituem tradução livre da autora, que teve como fonte a edição espanhola das Obras Completas, conforme consta das Referências Bibliográficas.

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ao cultivo de sua aridez existencial, seca de auto-estima e de desejo. A melancolia leva-

o a habitar um deserto indivisível, marcado por dois sentimentos fundamentais: dor e

vazio. Paradoxalmente o vazio melancólico é álgico e insuportável.

Essa asserção nos remete aos fragmentos clínicos das falas melancólicas, que em

geral se enovelam ao redor da queixa desse vazio. Deste significante derivam

polissemicamente outros: a sensação de “ter um buraco”, “sentir um vazio”, “estar

vazio”, “perder pensamentos no vazio”, “ser um nada”. O sujeito parece habitar uma

tópica negativizada, desencarnada, incolor, apática, marcas de uma escritura através da

qual a inibição psíquica e o empobrecimento pulsional podem se evidenciar e se dar a

conhecer.

Pensamos que esta pode ser uma condição de emergência da escolha tóxica: de

forma oportunista, a droga surgiria como um recurso, matéria-prima que, apesar da

inadequação, faz valer sua condição anestésica.

O prazer narcótico é fascinante porque é duplamente negativo: para além da sedação da dor física, ele é a sedação do mal de viver. Toda droga é paradoxalmente anestésica. Mesmo as euforizantes.” (SISSA, 1999, p.12)

Assim, é no desabrigo de seu deserto interior que o sujeito se oferece para ser

inundado pela droga, à qual ele atribui a função de selar seu vazio, coagular sua

hemorragia narcísica e aliviar sua dor de existir.

É desta dinâmica que partimos, neste trabalho, para postular a existência de um

tipo particular de toxicomania que se estabelece pela vertente da melancolia.

Tentaremos sustentar o argumento de que a melancolia, estabelecida nos primórdios do

sujeito a partir de uma vicissitude no estádio do espelho (traduzido pelo postulado

lambottiano da moldura vazia), provocará uma falha identificatória, uma trinca

narcísica que levará o sujeito a tentar tamponar o vazio e a dor provocados pela

separação de um olhar não constitutivo do Outro, alienando-se num substitutivo que

será encarnado pela droga.

Nosso trabalho tem como objetivo pensar a questão da adicção às substâncias

psicoativas a partir da afecção melancólica. De saída, esclarecemos que não é nossa

intenção traçar uma hipótese única e generalista para a etiologia da toxicomania,

eliminando quaisquer outras possibilidades de sua ocorrência. É, sim, uma tentativa de

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correlacionar um tipo particular de drogadicção que se estabeleceria a partir de um

quadro melancólico. Questão que permite um segundo desdobramento: por que e em

que medida seria a melancolia um campo fértil para a drogadicção.

Muito embora consintamos com o fato de que a afecção melancólica não

esclareça em definitivo a questão da toxicomania, já que esta é uma prática que pode

estar presente em todas as estruturas clínicas, consideramos que postular a existência de

um tipo de particular de toxicomania que se estabelece pela vertente da melancolia

ultrapassa em muito a mera coincidência. Foi a expressiva casuística que indica a

coexistência de ambos os fenômenos, o fato clínico que nos levou a indagar sobre sua

ocorrência.

Portanto, a interface entre toxicomania e melancolia, binômio inspirador deste

trabalho, não se colocou para nós de maneira aleatória. Ao contrário, evidenciou-se com

tal recorrência e exuberância na fala dos pacientes que nos vimos obrigados a refletir

sobre ele. Por esta razão, classificamos nossa opção temática como uma imposição que

sobreveio de generoso material clínico, decorrência de nosso trabalho com pacientes

dependentes de substâncias no PROJAD-IPUB-UFRJ (Programa de Assistência e

Pesquisa em Dependência de Álcool e Drogas - Instituto de Psiquiatria da Universidade

Federal do Rio De Janeiro).

Se a clínica nos foi pródiga, a teoria nem tanto. Ainda que não fosse original ou

inédita, nossa problematização não encontrou uma literatura extensa sobre o tema. Uma

produção bibliográfica que vinculasse a toxicomania à melancolia revelou-se modesta e

não muito prolífera. Como conseqüência, pesquisar e comparar novos postulados para

avançar na questão tornou-se um desafio e um esforço nem sempre recompensados.

Cedo nos deparamos com verdadeiros impasses entre autores, o que fez por vezes a

tarefa de comparar teorias uma coleção de pares incompatíveis e mutuamente

excludentes.

A redação do trabalho suscitou inúmeras dúvidas. Embora nosso ponto de

partida fosse eminentemente clínico, isto não nos livrava de exigências das quais em

absoluto poderíamos abrir mão na construção do edifício teórico. Tarefas como a

manutenção do rigor na condução conceitual e o enxugamento do tema tornaram-se por

vezes incompatíveis. Paradoxalmente, o vasto caudal teórico que contempla em

separado a melancolia e a toxicomania revelou-se para nós uma grande dificuldade, pois

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havia o risco de escrevermos paralelamente sobre os dois temas, sem que ficassem o

bastante articulados e enfeixados entre si.

Sabíamos da necessidade de circunscrever o mais imediatamente possível nossa

questão para evitarmos a generalização que algumas revisões teóricas correm o perigo

de fazer, causando um esmaecimento do núcleo do problema. Confessamos que nem

sempre o esforço empreendido afastou esse risco e a correção pela via da orientação

volta e meia nos chamava a atenção para os descaminhos aos quais podemos ser levados

por perseguir idéias contingentes ao assunto principal.

Após vários impasses, optamos por avançar no tema norteados pelos possíveis

pontos de contato entre as afecções, tal como se apresentam na clínica. Assim, elegemos

articular a melancolia e a toxicomania pivotadas por um duplo eixo: as possíveis

correlações entre toxicomania e melancolia sob o ponto de vista do corpo e sob o ponto

de vista da passagem ao ato. Optamos por estruturar o presente trabalho em três

capítulos, respectivamente:

Capítulo I: TOXICOMANIA E MELANCOLIA NA PSICANÁLISE

Capítulo II: TOXICOMANIA E MELANCOLIA: A RELAÇÃO COM O

CORPO

Capítulo III: TOXICOMANIA E MELANCOLIA: A RELAÇÃO COM A

PASSAGEM AO ATO

1. DO CAPÍTULO I: TOXICOMANIA E MELANCOLIA NA PSICANÁLISE

Para uma costura do tema, optamos por um alinhamento de autores que julgamos

esclarecer nossa problematização, dando-lhe um formato menos esgarçado e mais

contínuo. Nossa proposta é partir diretamente do binômio melancolia e toxicomania,

para então aderir a ele as contribuições dos comentadores – Lambotte e Hassoun – e dos

autores princeps – Freud e Lacan.

Abrimos nossa discussão por meio do conceito de moldura vazia, que consiste

na proposição de Lambotte para uma metapsicologia da melancolia. Esta comentadora

soma as contribuições freudianas sobre a melancolia, o objeto e o narcisismo à

construção lacaniana sobre o estádio do espelho, esta, por sua vez, derivada de Wallon.

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Para que haja uma constituição subjetiva, em um desdobramento sem percalços,

haveria um primeiro tempo, tempo de ver – primeiro momento do estádio do espelho,

que se constitui como um tempo predicativo do voto materno –, ao qual se agregariam

os dois tempos seguintes, tempo de compreensão e tempo de conclusão.

Lambotte postula que poderia haver uma falha naquele momento, o instante de

ver – primeiro dos tempos da constituição do sujeito –, caso o bebê não se sinta objeto

de desejo da mãe, produzindo-se assim uma fissura narcísica que precederá o advento

do sujeito melancólico. Esse ato, esse olhar vazio, terá a condição de dar ao sujeito um

estatuto de existência, mas não um estatuto de atribuição.

A moldura vazia significaria assim um “acidente” que produziria então um

sujeito que “existe”, porém sem atributo. Esse vazio irá se tornar um dos paradigmas da

melancolia, segundo o qual o sujeito carregaria consigo uma marca identificatória com

o nada2, o que justificaria o desinteresse patognomônico da afecção.

O Capítulo I avança para que falemos das ARTICULAÇÕES TEÓRICAS

ENTRE A MELANCOLIA E A TOXICOMANIA. Aqui, fazemos uma apresentação

dos autores que, na psicanálise, trabalham o tema de forma interseccionada. Entre eles,

há uma coincidência no sentido de reconhecerem na droga um caráter substitutivo para

a angústia, uma retomada da asserção freudiana que, em O Mal-Estar na Civilização

(1929/1973), vê na eleição tóxica um recurso para a anestesia para o mal-estar, um

caráter de Sorgenbreher, amortecedor de inquietações. (Op. cit., III, p.3.026 ).

Dos autores trabalhados neste tópico, realçamos Hassoun (2002), que considera

que a toxicomania reatualiza uma forma arcaica de melancolia, originada por problemas

identificatórios surgidos no momento do Estágio do Espelho e que se perpetuaria a

partir daí ao impossibilitar o surgimento de uma base legisladora fundamental para o

sujeito. Assim, ele estaria exposto a uma dupla falta: a do desejo da mãe e a da

mediação da figura paterna.

Prosseguimos o trabalho discorrendo sobre a TOXICOMANIA NA

PSICANÁLISE. Nesse tópico, apresentamos a variedade das proposições de diversas

correntes psicanalíticas sobre a questão. Tentamos ilustrar as nítidas oposições

existentes entre esta multiplicidade de postulados sobre a toxicomania na psicanálise e

as contribuições freudianas enfocando diretamente o tema.

2 Notas pessoais do I Seminário de Itatiaia com Marie-Claude Lambotte em março, 2003.

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Observamos que o legado freudiano, no que concerne à toxicomania, carece de

uma teoria encorpada e densa. O que iremos encontrar serão alusões de Freud à

drogadicção, esparsas ao longo de seus escritos, o que se inaugura pelo período

abarcado pelas obra Sobre a Cocaína (1884) e vai até o Mal-Estar na Civilização

(1929). Fica clara a necessidade de que, para falarmos da toxicomania na psicanálise,

busquemos conceitos outros que nos apóiem na edificação de um postulado, o que, em

nossa opinião, explica a variedade e assimetria dos diversos argumentos entre autores.

Como penúltimo tópico do Capítulo I, traçamos UM PANORAMA DA

MELANCOLIA NA PSICANÁLISE. Em relação ao parágrafo anterior, aqui se

evidencia um contraste. As contribuições de Freud à melancolia são generosas e,

comparando-se à questão da toxicomania, a pesquisa do tema na obra deixa de ser um

“garimpo” para tornar-se uma tarefa mais suave. A afecção dá-se a conhecer à flor dos

textos e, como sabemos, foi alvo de um dos principais escritos freudianos.

Luto e Melancolia (1915a/1973) seguirá a lógica do pensamento anterior de

Freud sobre as duas afecções, quase sempre trabalhadas em paralelo. A obra traz o luto

como paradigma da melancolia, e versará sobre o trânsito da libido na metabolização da

perda de um objeto. O luto é apresentado como um processo não patológico e

necessário à perda de uma pessoa querida, pátria ou ideal, conclusões de modo geral já

presentes em um texto anterior, Sobre a Transitoriedade (1915b/1973) e em tudo se

apresenta menos enigmático que a melancolia.

Freud refere-se à variedade clínica que a melancolia pode assumir, e a

metapsicologia da afecção é descrita a partir das conseqüências produzidas por um

abalo na escolha objetal. Com a perda do objeto, o investimento libidinal fica suspenso

e a libido desempregada, em vez de ser investida em um novo objeto, retorna para o Eu.

Essa volta irá produzir uma identificação entre o Eu e o objeto abandonado. Nesta

passagem, Freud sedimenta a identificação melancólica, um tipo de identificação em

que o Eu do sujeito se identifica com o caráter enigmático do objeto perdido. Para

Freud, o melancólico pode até saber que objeto ele perdeu, mas não o que se perdeu

nele. (1915a/1973, p.2.095)

Assim, a sombra do objeto caiu sobre o Eu, que será julgado como o objeto

abandonado por uma instância especial. (Ibidem) Uma das conseqüências desta

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referência na teoria freudiana é que a instância crítica aqui mencionada conduzirá

posteriormente à sedimentação do conceito Super Eu e da culpabilidade.

Luto e Melancolia será o primeiro e último livro específico sobre o tema em sua

obra, mas o interesse de Freud não cessou aí e ele continuou a falar sobre a melancolia

em vários momentos de sua trajetória. Este tópico do Capítulo I traz uma breve

exposição desse percurso. A referência final à melancolia é feita na Conferência XXXI-

Dissecção na Personalidade Psíquica (1932), em que Freud a irá mencionar como uma

doença ainda enigmática, e localizar a etiologia do acesso melancólico no extremo rigor

do Super-Eu, que submete e humilha o Eu aos piores castigos. (FREUD, 1932/1973, III,

p.3.133)

O Capítulo I encerra-se com uma referência à conceitualização lacaniana da

melancolia, que apresentamos aqui cotejada por alguns comentários de Laurent (1995).

Para nós, é importante ressaltar que Lacan reconhece no objeto perdido da melancolia

não um objeto em si, mas das Ding, a Coisa, que por não ser significantizável é

impossível de ser nomeada. Consideramos que a escolha toxicômana possa ser uma

tentativa frustra do sujeito de encarnar e significantizar esse objeto que na verdade, é

inassimilável e perdido para sempre.

2 – DO CAPÍTULO II: TOXICOMANIA E MELANCOLIA – A RELAÇÃO

COM O CORPO

Neste capítulo da dissertação pretendemos trabalhar nossa primeira interface

clínica entre melancolia e toxicomania. A relação que drogadictos mantêm com o

próprio corpo deixa evidenciar a autocrueldade em muitos de seus aspectos – forma

correlativa, em nossa opinião, ao tratamento que o melancólico dá a seu Eu, segundo as

afirmações do próprio Freud.

Para percorrermos teoricamente a questão, apresentamos tópicos sobre o corpo

em Freud e Lacan, e, de forma semelhante, tentamos fazer um breve painel de como o

tema se desenvolveu em suas respectivas obras. Objetivamos com isso evidenciar o

pressuposto freudiano de um corpo para além das fronteiras do organismo. Ponto de

partida este que vem a se completar com a contribuição lacaniana de que um corpo só

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pode se unificar na linguagem e na relação com o grande Outro, ultrapassando a ordem

estabelecida da realidade física e das teorias desenvolvimentistas.

Estarão historiados no tópico as contribuições de Wallon e os acréscimos feitos

por Lacan à proposição original do estádio do espelho. Nosso objetivo é realçar a

fundamental importância do olhar para a constituição subjetiva e as conseqüências da

deserção do Outro, nos tempos da alienação e da separação. Estes últimos, alienação e

separação, representam um binômio que nos é caro por representar as operações de que

o sujeito necessita para entrar no Simbólico e que pressupõem sempre uma perda e uma

falta.

Do corpo melancólico, pretendemos realçar a anestesia, a identificação ao nada,

a sensação de peso em que o corpo é vivido como uma espécie de ectoplasma impessoal

que ele arrasta atrás de si (LAMBOTTE, 1997, p.237), a sensação dolorosa do vazio.

Realçamos a passagem da vivência desse vazio quando o sujeito, na tentativa de buscar

uma totalidade, tenta preenchê-lo através do recurso da drogadicção. Pensamos na

hipótese de identificar na crueldade com a qual o toxicômano trata o seu corpo, a

mesma tirania, o extremo rigor e os piores castigos infringidos pelo Eu ao Super Eu

descritos por Freud em sua última alusão à melancolia (1931/1973, III, p.3.133).

O último tópico deste capítulo trata do CORPO TOXICOMANÍACO. Tentamos

defender a idéia de que a autocrueldade com que o toxicômano trata seu corpo

representa na realidade um deslizamento da tirania superegóica na melancolia.

Visando um melhor embasamento desta idéia, julgamos necessária uma pequena

digressão sobre a construção do conceito de Super Eu na obra freudiana, que se deu de

forma evolutiva. Tanto a denominação quanto as funções específicas desta futura

instância e suas relações com as demais só tardiamente se instalarão no seio do

freudismo. No entanto, foi necessário que ingredientes teóricos se juntassem à massa

dos conceitos para que a fermentação pudesse se fazer.

Apresentamos evolutivamente as contribuições feitas ao tema a partir de Uma

Introdução ao Narcisismo (1914/1973), em que o Super Eu aparecerá em seu estado

germinal, sob a forma da transição do Eu Ideal para o Ideal do Eu e terá como função

manter a perfeição narcísica infantil. Tentamos recolher as contribuições aderidas ao

conceito, que vai se adensando no curso evolutivo da teoria, e que percorreremos até a

obra Compêndio de Psicanálise (1938a/1973). Na conclusão deste texto, Freud afirmará

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que o Super Eu assume uma posição intermediária entre o Isso e o mundo exterior,

reunindo ao redor de si influências do presente e do passado. Em acréscimo a isso,

considerará o papel mediador superegóico, um exemplo de como o presente se converte

em passado. (Op.cit, III, p.3.418)

Para dar continuidade ao capítulo, fomos inspirados pela asserção de

Roudinesco, para quem, apesar da insistência freudiana, de que a pulsão de morte não

pode ser localizada ou isolada, poderemos localizar uma exceção desse silêncio, que

reside na experiência da melancolia (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.631). Isso nos

conduziu a traçar também uma digressão sobre a pulsão de morte, com a qual a noção

de Super Eu se entrecruza, sempre com o intuito de embasar teoricamente nossa

hipótese de identificar na autocrueldade corporal presente na toxicomania uma

derivação metonímica da autocrueldade psíquica da melancolia.

Enriquez liga a falta do prazer identificatório à eleição de um corpo de

sofrimento, marcado pela anedonia, desabitado, sem afetos (ENRIQUEZ, 1999, p.146);

descrição que muito bem serviria ao corpo melancólico, onde encontraremos a

anestesia; a identificação ao nada (“não tenho valor”; “sou um zero à esquerda”) e a

sensação paradoxal de um vazio álgico.

Realçamos a passagem do corpo vazio que busca a tentativa de totalidade

através da drogadicção. O vazio que o sujeito evita daí em diante é o da abstinência, e o

volume da substância necessário para preenchê-lo torna-se sempre crescente, numa

desobediência cega às leis da pletora, passagem que claramente evoca a situação de

passagem de corpo de sofrimento ao corpo de necessidade. (Ibidem, p. 147)

Ilustramos o final do capítulo com o caso clínico de Maria, uma ex-presa política

para quem a experiência da tortura desencadeou o evento do consumo e da dependência

de drogas.

Concluímos o segundo capítulo com a idéia de que se como melancólico o

sujeito não sabe o que perdeu, ao entrar na drogadicção ele julga ter achado. Para dar

finalidade e controle à sua falta, o toxicômano triunfa onde o melancólico fracassa: na

tentativa de desertar da dor de existir, faz do vazio melancólico um continente para a

droga. Cai no engodo de preencher o que realmente não tem fundo e coloca na esfera da

necessidade o que é da ordem (sempre insaciável) do desejo.

10

3 – DO CAPÍTULO III: TOXICOMANIA E MELANCOLIA: A RELAÇÃO

COM A PASSAGEM AO ATO

Pivotar melancolia e toxicomania pela vertente da passagem ao ato reenfatiza o

caráter clínico de nosso trabalho. Sabemos que um dos movimentos obrigatórios ao

recuperarmos o olhar que vem da clínica é o trabalho de desintrincamento conceitual

que deve ser feito a partir das impressões colhidas. Optamos por seguir uma trilha

teórica que nos permita diferenciar primeiramente os conceitos de ação e agir em

Freud: o primeiro, referido e mediado pelo princípio de realidade, e o segundo,

compulsivo e pura manifestação do inconsciente.

Uma vez localizado nosso território como concernente ao agir, nosso segundo

passo será fazermos uma diferenciação entre os conceitos de acting out, repetição e

passagem ao ato. O primeiro tópico do capítulo versará sobre O ACTING OUT E A

REPETIÇÃO. Este, considerado como um tipo de rememoração que se repete para o

sujeito, e que encarna uma mensagem cifrada, um “saber que não se sabe”. Embora o

acting out escape à cadeia associativa, ele estará regulado pelas leis da castração e se

constituirá em um apelo ao Outro, nos limites da transferência. Nesse tópico traçamos

uma pequena geografia do percurso deste conceito na obra freudiana.

Quando se trata da passagem ao ato, a questão sofrerá uma transformação

dramática. É do que trataremos no próximo tópico, A PASSAGEM AO ATO,

trabalhado por nós a partir de sua gradação máxima, o suicídio. Tentaremos demonstrar

que, desde o escrito Psicopatologia da Vida Cotidiana (1900), a questão do suicídio

colocou-se para Freud e permaneceu em suas conjecturas, de início como perplexidade,

e mais tarde, de forma teoricamente elaborada, como a expressão superlativa do reinado

tirânico da pulsão de morte no Super Eu, que, na melancolia, terá o poder de condenar o

Eu à morte: o que está influenciando agora o Super Eu é, por assim dizer, uma cultura

pura da pulsão de morte, de fato, ela com bastante freqüência obtém o êxito de levar o

Eu à morte. (FREUD, 1923a/1973, III, p.2.724)

O segundo tópico prosseguirá com várias asserções de Freud enfocando a

passagem ao ato. Em O Problema Econômico do Masoquismo (1924/1973), ele ressalta

o servilismo do Eu ao Super Eu, que, pela via do sadismo/masoquismo, poderá levar ao

aniquilamento do Eu.

11

Denominamos INIBIÇÃO, ATO E ANGÚSTIA o terceiro tópico deste nosso

capítulo. Tentamos, a partir do texto Inibição, Sintoma e Angústia (1925/1973) colocar

lado a lado a inibição característica da melancolia, com seu reverso, a passagem ao ato.

Esse texto nos parece fundamental por localizar na angústia primordial o núcleo do

desamparo, anterior até mesmo às representações do sujeito. A angústia mantém-se

assim articulada ao perigo. Situação de perigo é aquela que evoca a possibilidade de

dissolução, miticamente situada em um momento de desamparo fundamental. (VIEIRA,

2001, p.63) São feitos comentários sobre o texto, do qual fazemos realçar o face a face

da angústia do nascimento com a angústia de morte, sentimentos correlatos vividos pelo

sujeito que resiste à separação (inevitável) do Outro fundamental.

Intitulamos o último tópico deste capítulo PASSAGEM AO ATO,

MELANCOLIA E TOXICOMANIA: A HISTÓRIA DE PEDRO. Tratamos

primeiramente das possíveis ressonâncias de uma má entrada na história subjetiva, que,

ao ocorrer, tem a potência de carrear uma angústia superlativa que será vivida como um

fardo insuportável e indivisível. Trata-se de uma situação em que os sucedâneos do

Outro e da lei simbólica, tais como a civilização e o destino, colocam-se para o sujeito

como um enigma com o qual ele só poderá se confrontar ao preço da ruptura de seus

reservatórios de desejo – dinâmica, desde os primórdios gregos, chamada “melancolia”.

É a partir de seu acontecimento que alguns sujeitos tentarão uma forma de

resistência, o Sorgenbreher, amortecedor de inquietação, obturando com a droga o

paradoxal vazio álgico que caracteriza a afecção. Apelam a ela como faz Antônio, que

recorre ao agiota Shylock em O Mercador de Veneza, e toma um empréstimo sob o aval

de uma libra de carne de seu próprio corpo.3

As condições de negociação com a droga são semelhantes e ela será implacável

ao cobrar seu preço. Com a repetição do uso, advirá a dependência, transformando a

sensação de completude, a volúpia estonteante dos primeiros tempos de convivência

com a substância, em um estado de privação que o sujeito imperiosamente precisa

evitar. A angústia apresenta-se de novo, cobrando em dobro a libra de carne do sujeito,

agora sem disfarces, sob a forma de abstinência. Aqui adentramos na esfera da

passagem ao ato.

3 SHAKESPEARE, W. (1594-6) O Mercador de Veneza in Obras Completas, II, São Paulo, Victor Civita, p. 301.

12

A passagem ao ato, possível na melancolia, porém muitas vezes barrada até

mesmo pela inibição motora do sujeito, adquire na toxicomania sua cor mais

exuberante. É a ruptura do sujeito com qualquer traço que o enderece ao Outro, um

curto-circuito em que o sujeito nada mais quer saber, nada mais tem a recolher no

campo significante, e que, no suicídio, se apresentará como um puro jorro mortífero,

sem tempo, sem futuro. Na passagem ao ato, o sujeito precipita-se lá de onde ele está,

do lugar da cena onde apenas como fundamentalmente historicizado ele pode manter-

se em seu estatuto de sujeito, diz Lacan (1962-3, Lição IX, inédito).

Apresentamos neste capítulo a história de Pedro, cujo primeiro episódio

melancólico apresentou-se ainda na infância, logo após a revelação de que era filho

adotivo e que inicia o uso de substâncias aos 11 anos, tendo desenvolvido uma

dependência pesada já aos 16. Demanda tratamento após uma tentativa frustrada de

suicídio em que, após tocar fogo à sua casa, salta pela janela do quarto andar.

Finalizamos trazendo algumas considerações lacanianas no seminário A

Angústia (1962-3), com alguns comentários sobre os possíveis significados da mais

visceral forma de passagem ao ato, o suicídio. Nos avatares da passagem ao ato / ato

final, o sujeito separa-se radicalmente do simbólico, ejetando-se para sempre do campo

do Outro, e numa alienação definitiva, solipsismo irreversível, retira-se para tomar a

direção de das Ding, a Coisa sem significado.

CAPÍTULO I

TOXICOMANIA E MELANCOLIA NA PSICANÁLISE

CAPÍTULO I

TOXICOMANIA E MELANCOLIA

Abrimos este trabalho com a seguinte questão: como, na paisagem da aridez

desértica da melancolia, pivotar a experiência inundante da drogadicção, juntando

opostos clínicos como a busca da estase e a busca do êxtase? No encontro com esses

pacientes, sejam eles melancólicos ou drogadictos, uma primeira observação se

apresenta: são pessoas que não podem se projetar em um futuro. Para o melancólico –

cujo Ideal de Eu é um correlato que tem funções do Super Eu e ao qual o Eu se submete

– a projeção temporal entravada é uma imagem inalcançável, imagem impossível que o

paralisa. No toxicômano, o tempo será regulado pela próxima dose. Paradoxalmente,

essas duas afecções juntam tempos opostos: paralisação, na melancolia; urgência, na

drogadição.

Foi através do cotidiano da escuta, em suas modulações, que nossa questão se

apresentou. Embora para a grande maioria dos autores essas afecções corram em

paralelo, há atualmente um caudal teórico que se curva à evidência que melancolia e

toxicomania vêm, conexas, adquirindo na modernidade, e que por essa razão passou a

articular esses dois temas.

Na decisão para se escrever esse trabalho, tratou-se da interface entre as duas

afecções – melancolia e toxicomania –, descritas pela geografia teórica que localiza

nossa tópica no universo da psicanálise, por onde seremos guiados através das

referências de Freud e de Lacan. Pensar a melancolia e a toxicomania, articuladas ou

não, requer antes de tudo um mapeamento teórico, no qual, de início, constatamos

divergências em grande parte das vezes, inconciliáveis e até mesmo auto-excludentes.

Cientes das dificuldades da questão, tentaremos não recuar diante de suas assimetrias

iniciais. É a tarefa que iniciaremos a seguir.

15

1.1 A MOLDURA VAZIA

Para um manejo claro dos conceitos, decidimos inicialmente apresentar o

primeiro dos pressupostos teóricos que consideramos indispensável para nossa trajetória

no tema. Elegemos como diretriz teórica, o conceito de moldura vazia, postulado por

Lambotte (1997). Esta autora, para além de historiar a melancolia, propõe para a

afecção não só uma metapsicologia, mas também uma possibilidade de tratamento,

conforme suas últimas concepções sobre o objeto estético.

Sua proposição localiza a constituição melancólica originada no momento no

estádio do espelho, momento primordial e fundante do sujeito, postulado por Lacan e

que detalharemos num tópico posterior do presente trabalho. Esse é descrito como o

momento decisivo da constituição subjetiva onde se imbricam imagem, corpo e

linguagem, momento em que o bebê encontrará, a partir da alienação na presença, no

contato, no desejo e no olhar do Outro, as condições de posteriormente se separar dele e

tornar-se um sujeito único e singular, passando assim da alienação à separação. Na

alienação, o sujeito é produzido dentro da linguagem que o aguarda e é inscrito no

lugar do Outro (LAURENT, 1997, p.43) e na separação, Lacan reconhecerá o que

Freud denomina a Ichspaltung [clivagem, divisão] do sujeito. (LACAN, 1964/1998,

p.856)

No entanto, o momento crucial do estádio do espelho pode sofrer uma

vicissitude que irá reverberar na constituição melancólica. Se, nesse instante dramático,

faltar ao sujeito um olhar materno que possa envolvê-lo em desejo, se o bebê

experimenta um olhar vazio do Outro materno, vazio de intenção, produz-se uma trinca

em sua auto-imagem. Ocorre o que Lambotte denomina a catástrofe narcísica, que fará

do sujeito o herdeiro de um ponto inacessível, visado através dele [sujeito] ,[um ponto

que o atravessa] ponto que fará furo (...) O sujeito crê que se se juntar a este ponto, ele

recobrirá sua imagem. (LAMBOTTE, 1997, p.197)

Se o sujeito “é” apenas como existente, como “vivo”, que tipo de recheio

narcísico poderá ser amalgamado a partir desse olhar materno que simplesmente o

atravessou? O que reter de um olhar, olhar da mãe, água do primeiro banho de desejo,

quando este se apresenta à criança apenas para contornar-lhe o corpo e dar-lhe bordas,

mas não para preenchê-lo?

16

É no que se traduzirá a moldura vazia: é a metáfora de uma moldura oca, sem

recheio, que não captura o olhar do Outro. É a vivência de um bebê que, ao testemunhar

um olhar materno que é auto-referente e indiferente a ele, sente que não pode ser o falo

da mãe, não pode indenizá-la narcisicamente. Com a fissura na tríade imaginária,

à falta de um primeiro olhar constituinte e de um desejo erigido para si, torna-se impossível para o sujeito a identificação à imagem especular, que, em virtude disso, apresenta a aparência de uma moldura vazia. (LAMBOTTE, 1997, p.177-186)

Lambotte retomará Lacan para afirmar o quanto o estádio do espelho deixa clara

a questão entre o sujeito e a falta do Outro. E é com a falta do Outro que o melancólico

se identificará: o que continua a brilhar no desaparecido, do qual o neurótico pode

separar, manifesta-se como o vazio insuportável com o qual o melancólico tem que se

ver, mas não possui representação para tal. Seria uma catástrofe original anterior à

representação. Um vazio que estará ligado com algo que é da ordem do absoluto e da

identificação com o nada.4

Diferentemente de um objeto, o que nesse sujeito parece estar perdido é esse

momento atributivo, estatuto de uma existência sem recheio. O melancólico torna-se

assim um desempregado psíquico do mundo do grande Outro, e parte solitário para sua

“grande jornada noite adentro”. Noite íntima, indivisível, interior. É essa identificação

ao nada que levaria ao negativismo generalizado da melancolia e que se expressa

também em um discurso, cuja realidade é plana e sem relevo, em que todo objeto vale

por um outro.5

O mundo será sempre interessante para as pessoas, mas não para ele. O que esse

sujeito endereça ao Outro trará o colorido de uma certa perplexidade pseudofilosófica,

marcada por um niilismo segundo o qual nada terá sentido. Seu olhar estará desnudo de

intencionalidade. O mundo e os objetos do mundo, o que recolheu daquele primeiro

olhar materno sem interesse, desejo e investimento é a matéria-prima da resposta global

de sua álgebra: tudo é igual a zero. É a negação da intenção. Nada tem sentido, não há

verdade. Há a indicação de uma crença no absoluto. Se o cotidiano é imperfeito, por

4 Notas pessoais de Conferência de Marie-Claude Lambotte em 2002, UFRJ. 5 Notas pessoais de Conferência de Marie-Claude Lambotte em 2003, UFRJ.

17

que viver? Se a realidade é insignificante, é por trás dessa realidade absoluta que há

“une vraie vérité” - uma verdadeira verdade.6

A lógica melancólica justifica assim seu não investimento na realidade. Se na

neurose se pode investir no objeto quando há um brilho narcísico, na melancolia o

desejo não pode se deter como projeção narcísica, pois a fragilidade de sua imagem

especular impede que o sujeito venha a se fixar em um objeto.

Consideramos este um cenário privilegiado para a escolha toxicômana:

atravessados pela dor do vazio desértico da melancolia, alguns desses sujeitos decidem

inundá-lo com a droga. No entanto, o vazio não é um estado estável, o oposto do cheio,

e que a plenitude curará: o vazio se afunda à medida que o enchemos. (SISSA, 1999,

p.10) Mas o engodo desta lógica só muito mais tarde será percebido pelo sujeito.

Quando o melancólico resolve preencher com a droga o vazio de sua moldura,

crê muito sinceramente ter encontrado a têmpera do incolor, a expressividade de sua

inibição, o amortecedor que irá abrandar seu mal-estar e sua dor de existir. Seus

primeiros encontros – o chamado flash – com a substância ratificam a substituição

quimérica e então, a álgebra da necessidade inicia o seu trabalho. (Ibidem, p.35) A

falta radical será então substituída pela privação, cada vez menos tolerada pelo sujeito, e

que, de forma implacável, baixará seu limiar à abstinência, elevando dia a dia a

quantidade tóxica do produto.

1.2 ARTICULAÇÕES TEÓRICAS ENTRE A TOXICOMANIA E A MELANCOLIA

Uma articulação entre toxicomania e a melancolia não é nova. Ao contrário, uma

proximidade entre as afecções pode ser encontrada desde os primórdios. A mitologia

incaica, por exemplo, considera as folhas de coca um presente dos deuses que levaria os

infelizes a esquecer suas misérias (PINKUSFELD, 1991, p.26). A Odisséia conta-nos

que Helena, para evitar que a profunda melancolia pela falta de Ulisses invadisse seus

convidados, fez juntar ao vinho o sumo de uma planta que esconjurava as dores e os

6 Notas pessoais de Conferência de Marie-Claude Lambotte em 2003, UFRJ.

18

males. Aquele que dela bebesse, ainda que visse seu próprio filho imolado pelo fogo,

perderia a recordação de seu sofrimento.7

Quando avançamos pelo século XIX, encontraremos o mundo científico voltado

para a obtenção e combinação de substâncias puras. É desta época a dicotomia da

química em orgânica e inorgânica. Particularmente a neurofisiologia se interessa pelas

substâncias psicoativas que saem da cozinha da ciência. Por exemplo, de 1816 a 1885,

serão obtidas em laboratório a morfina, a cocaína e a efedrina. (TIBON-CORNILLO,

1993, p.173)

No discurso científico, se podemos encontrar um denso caudal teórico que

contemple em separado Toxicomania e Melancolia, uma produção que vise enfeixar os

dois temas é sensivelmente mais rarefeita na literatura. O que se verifica em tais

publicações é que a toxicomania será contemplada sob os mais variados postulados

teóricos e, na maior parte das vezes, com um contato mínimo entre os autores.

Interserir droga e melancolia não tem sido alvo de escolha entre um número

significativo de autores. E, embora esse fato constitua um percalço para que avancemos

no tema, o que nos tem guiado e feito persistir nele, mais que a constatação de

coincidências bibliográficas, é a visibilidade que esse entrecruzamento adquire, quando

nos colocamos no face a face da clínica de toxicômanos.

Percebemos que por trás da boda insana e cruel com a droga, há uma história

pré-nupcial com ela, que repousa nos primórdios da constituição subjetiva. Essa

história, por sua vez, guarda uma impressionante simetria com o discurso melancólico e

sua já mencionada busca pseudofilosófica pela “verdadeira verdade”. Paradigma já

presente na cultura do etilismo, por exemplo, como no adágio latino, que afirmará: in

vino veritas, no vinho, a verdade.

De saída, reafirmamos que a droga encarnaria o caráter do Sorgenbrecher, o

amortecedor do mal-estar e da angústia, o que, em nossa opinião, solidifica na teoria seu

caráter substitutivo: é possível, por meio desse amortecedor de preocupações

[Sorgenbrecher], em qualquer ocasião afastar-se da pressão da realidade e encontrar

refúgio num mundo próprio. (FREUD, 1929/1973, III, p.3.026) Diversos autores –

como Calais (1995), Sissa (1999) – trabalham a inquietação mencionada neste escrito

freudiano correlacionada ao conceito do Sorge heiddegeriano, que engloba a angústia

7 HOMERO. Odisséia. Trad. Nunes, Carlos A. Rio de Janeiro: Edições de Ouro.

19

como principal atitude. A idéia da droga como Sorgenbrecher, quitapenas (quebrador

de inquietação) se harmoniza com a dor de existir da melancolia.

Postulamos uma forma de entrada na drogadiccção em que o sujeito tenta, por

meio da boda tóxica, uma (impossível) substituição de seu vazio pela completude

ilusória com a droga. Defendemos a idéia de que este preenchimento visa não a um

vazio qualquer, mas um vazio advindo dos primórdios da constituição do sujeito. Este

amortecedor tentará anestesiar a dor causada nesta perda narcísica fundamental do

sujeito, restabelecendo, pela via da conjugalidade com a substância, a função de fazer

suplência ao divórcio não consentido do sujeito com o primeiro Outro – primeiro Outro

representado aqui pelo olhar da mãe que, mesmo que não o tenha abandonado, se

desinteressou dele. Nas palavras de Sissa,

o drogadicto pode se tornar paradigma do desejo, visto que nada o pode satisfazer, porque toda coisa comprada, cobiçada, possuída não se substitui à mãe (...) É o modelo de um desejo não saciado, que se alimenta da própria insatisfação. (1999, p.30)

A postulação de Lacan inspirou ainda Olivenstein, para quem a toxicomania

começa a ser erigida a partir do estádio do espelho, momento que o autor denomina

espelho partido, momento de fragmentação da própria imagem. É da incerteza de ser

amado que o sujeito sofre quando o espelho se quebra. (OLIVENSTEIN, 1990, p.34).

Fazer coincidir a importância desse momento constitutivo do olhar para a vinculação

toxicômano-melancólica se presentifica em outros importantes comentadores. Por

exemplo, Zafiropoulos considera a droga uma tentativa de resposta para um

desmoronamento deste olhar que é intensamente procurado mas que se obstina em não

aparecer (1994, p.27). A toxicomania seria uma resposta procurada para ser uma

tentativa simbólica de recompor o que se rompeu no lado imaginário da relação

primordial.

Hassoun será mais explícito ao vincular as duas afecções, e propõe a

toxicomania como forma sintomática da melancolia. Está posto, desde Freud, o caráter

enigmático que tem o objeto perdido da melancolia, e a droga se apresentará no lugar

desse objeto sob a forma de uma presença enigmática, que se apresenta de forma

compulsiva e repetitiva:

20

Esta [repetição] surge, para tentar paradoxalmente livrar o sujeito do enigma de uma ausência, dando-lhe a consistência de um objeto (a droga) que ele erigirá como ser de ausência. O sujeito não sabe o que perdeu nem quem perdeu. É com esse impossível que ele será confrontado. (HASSOUN, 2002, p.27)

O autor fundamenta sua teoria ao postular a existência de uma falha

identificatória na constituição do sujeito, falha que se perpetuaria em uma hiância pela

impossibilidade de se erguer ali a base, o suporte da figura paterna, legisladora e

fundamental. A esta ausência se agregaria ausência do objeto perdido, cuja origem o

autor localiza como uma

falha de desmame: a droga cristaliza e indexa uma forma muito antiga de melancolia, contemporânea da fase do espelho e que se manteve desconhecida do sujeito e de seus próximos (HASSOUN, 2002, p.34).

Embora sem citar as contribuições de Lambotte sobre a moldura vazia, Hassoun

parece em tudo harmonizar com tal contribuição. Ao questionar-se quem seria este

Outro da melancolia e que tipo de estatuto ocuparia na vida da criança, parte da idéia de

que o melancólico é aquela criança abandonada cedo demais por uma mãe demasiado

ocupada na contemplação da própria imagem (HASSOUN, 2002, p.65). Inspirado em

Lacan, como os demais autores citados, e nas teorias da subjetivação a partir do olhar do

Outro e da qualidade deste olhar, Hassoun menciona um dos desvãos possíveis do

estádio do espelho. Esse momento se daria caso o olhar da mãe estivesse ausente ao ser

procurado pela criança que busca seu reconhecimento. Supondo que esta a mãe vire a

cabeça ou lhe devolva um olhar vazio, o autor pergunta:

que poderá advir senão um encontro com o impossível? Num ponto crucial - aquele que funda o reconhecimento, as potencialidades de identificação - o lugar do Outro é mudo. (Ibidem, p.66)

Hassoun ratificará, portanto, o ponto de vista freudiano da função substitutiva da

droga e acrescentará que esta virá se colocar no lugar desse Outro que se ausentou, mas

que o sujeito não consegue significantizar:

21

essa falha da primeira identificação, articulada com a ausência de objeto poderia explicar esta forma particular de melancolia, que vê desencadear-se a crueldade e instalar-se a marginalidade em vez e lugar da Lei. (Ibidem, p. 33)

A droga iria então encarnar esta falta como uma possibilidade significante. Ela

preencherá esta lacuna que foi escavada desde a deserção do grande Outro e nada terá

de nova: o que ela faz é positivar uma ausência primitiva, preenchendo a moldura vazia

deixada por esse Outro que não compareceu. Seu papel seria oferecer um “terceiro

termo de identificação” para um luto que não se fez. Assim, o autor defende a idéia de

que a substância encarna de forma mimética os sinais da melancolia clássica, revelados

principalmente na autocrueldade.

Consideramos que, na toxicomania, a existência do grande Outro (tão

enigmática para a constituição melancólica) passa a ser encarnada aqui pelo

significante-droga. Se concordamos, por um lado, com Nogueira Filho (1999) que

define a droga como um “significante novo”, defendemos, por outro lado, a idéia de que

este significante só terá condições de emersão a partir de uma lacuna, uma fenda, que

estará lá como um continente, para recebê-lo e engendrá-lo. Lacuna esta, que nada tem

de nova, mas que está presente desde a fase especular do sujeito, contornado por uma

“moldura vazia” – ou seja, uma “lacuna emoldurada”, se assim podemos dizer, que foi

atravessada pelo olhar da mãe, conforme a mencionada articulação de Lambotte. Nesse

tempo não atributivo e crucial, com o esvaziamento do olhar da mãe, o primeiro Outro,

o reconhecimento não comparecerá. Para Hassoun, no momento das primeiras marcas

identificatórias, o desinteresse do Outro provocará no sujeito uma sideração que se

instala além do luto. (HASSOUN, 2002, p.66 e segs.)

Não ser convocado a indenizar a castração da mãe e não ser o depositário do

olhar desejante materno serão os fatos balizadores do universo discursivo desse

sujeito.“Não sou nada”. Essas serão mais tarde as palavras de um bebê plebeu, que foi

bebê, mas nunca majestade. Palavras que nos levam à questão do vazio, tanto na

questão melancólica quanto na questão toxicômana. Na melancolia, equivaler-se ao

nada, o fenômeno da vivência de ruína e empobrecimento, evidencia a questão desse

sujeito, que

colocado sobre [a questão do] ser, dá conta de um efeito performático que testemunha a negatividade […] a metapsicologia da melancolia supõe o

22

abandono do sujeito pelo objeto que deveria iniciá-lo no campo do desejo (suicídio do objeto, diz Lacan) e que teria brutalmente desaparecido. O sujeito se identificará com o traço desse objeto perdido: traço de um gozo insuficientemente simbolizado, no qual a nostalgia o impede de aceder à realidade. (HASSOUN, 2002, p.66 e segs)

É do não comparecimento do Outro que advirá a identificação ao nada que por

sua vez remeterá à certeza de um objeto absoluto e uma possibilidade de completude

está implícita como sendo um projeto que se tornará viável.. [No entanto será um]

projeto fadado ao fracasso. (Ibidem).

Se na melancolia, a questão do absoluto levará a um desbotamento afetivo dos

objetos, transformando-os em uma cadeia (in)significante onde tudo é igual a zero, na

toxicomania, esse absoluto será a substância, a droga. Outro-inanimado, desafetivado,

que o sujeito julgará ter o poder de conceder-lhe a atribuição que não houve. A clínica

da toxicomania nos aponta rotineiramente esse sujeito que se apresenta não com seu

nome próprio, mas com a atribuição “Eu sou um drogado”, significante que comparece

em lugar da autonomeação. Assim, diante da impossível tarefa de ser falado pelo Outro,

o toxicômano elegerá a droga, porta-voz do Outro que não compareceu para preenchê-

lo, na ilusão de que ela poderá lhe selar a libido hemorrágica, foz de sua constituição

melancólica.

Outros autores compartilham da direção teórica que pivota toxicomania e

melancolia. Bittencourt refere-se a esta saída toxicomaníaca da melancolia, em que se

dá uma certa organização do vazio, [com a droga] aparecendo para estes pacientes

como forma de automedicação da depressão (BITTENCOURT, 1994, p.50). O artigo

trata do que o autor denomina toxicomanias melancolizadas, que se iniciariam

no ponto onde a dissolução imaginária do objeto impede o sujeito de restaurar o vínculo com o objeto fundamental, o objeto a, verdadeiro objeto que como causa permitiria a substituição do objeto de amor. (Ibidem, p.56)

1.3 A TOXICOMANIA NA PSICANÁLISE

O vasto espectro que contempla a etiologia da toxicomania abarcará

extraordinários contrastes. Assim, nas teorias explicativas sobre a toxicomania iremos

23

encontrar, entre outras, a hipótese neuroquímica (o sujeito elegeria a droga para

autocompensar e autoregular neuroquimicamente o déficit operatório de determinados

neurotransmissores) e a hipótese genética (que privilegia o estudo em gêmeos

univitelinos adotados e criados separadamente), teorias que excluem qualquer

questionamento sobre a subjetivação na relação com a droga.

Outro fato notório é o de que, caso haja uma correlação entre toxicomania e a

melancolia, esta tem para os autores um peso meramente fático, estatístico ou

descritivo, sem que dela sejam tiradas hipóteses ou ilações. Vejamos, a título de

exemplo, o que nos dizem Kaplan et al., autores de referência na formação acadêmica

dos técnicos de saúde mental no Brasil:

30 a 50% de todas as pessoas com abuso ou dependência de opióides e cerca de 40% das pessoas com abuso de álcool ou dependência reúnem critérios para uma depressão maior em algum momento de suas vidas. O uso de substâncias é também um fator desencadeante para o suicídio. As pessoas que abusam de substâncias estão vinte vezes mais propensas do que a população em geral à morte por suicídio (...) 15% das pessoas com abuso ou dependência de álcool cometem o suicídio. Esta freqüência de suicídios perde apenas para o transtorno depressivo maior. (KAPLAN et al., 1996, p.369)

Há de nossa parte uma intencionalidade em citar o fragmento de um tratado

psiquiátrico: reconhecermos no discurso médico o mérito de convocar a correlação

melancolia - toxicomania, ainda que sob argumento estatístico. Por sua vez, na

psicanálise, que privilegia o discurso do sujeito do inconsciente, há quase um silêncio

na correlação do tema.

Teorias controversas sobre a drogadiccção encontram-se também no próprio seio

da psicanálise, tendo a toxicomania sido descrita a partir dos mais variados paradigmas.

Alcoolistas já foram relacionados, ao longo da literatura psicanalítica com histéricos,

obsessivos, perversos em geral, homossexuais latentes, maníacos e compulsivos. Por

exemplo, os pioneiros da psicanálise elegeram a oralidade como causa primordial da

drogadicção. Tal correlação estará presente em autores como Abraham (1916), Rado

(1926), Glover (1928), Bergler (1933), Robbins (1935), Knight (1937), Fenichel (1945),

Meerloo (1952), Rosenfeld (1960), Brow (1965), LimentanI (1968), Rosenfeld, D.

(1974/92), Wurmser (1974), Khantzian (1978) e Maldonado (1995).

24

Outros autores irão localizar a toxicomania no nicho das perversões. Ferenczi

(1911), ao estudar um caso de paranóia alcóolica, situa os desejos homossexuais

inconscientes como determinantes e atribui ao álcool o papel de destruir as sublimações.

Em 1917 e 1919 torna-se mais enfático ao situar a homossexualidade inconsciente como

o problema primordial subjacente ao alcoolismo.(FERENCZI, 1911/1952) Clark (1919)

chama atenção para a existência de conflitos homossexuais em apenas alguns casos,

percebendo em outros a prevalência de traços sadomasoquistas. Kielholz (1924), citado

por Rosenfeld (1964), avança nesta direção ao esclarecer que na toxicomania estariam

presentes tanto fantasias homossexuais quanto fantasias sádicas, que estariam ligadas à

angústia relacionada à cena primária.8

Ainda no universo das perversões, autores contemporâneos como Birman vêem

na droga a constituição de um fetiche através do qual o sujeito restabeleceria

concomitantemente o Eu ideal e a mãe fálica. (BIRMAN, 2001a, p. 214). Melman

compartilha em parte desta opinião, mas não no caso do alcoolismo, que considera

distinto das demais adicções. No caso, o álcool viria não para representar, mas para

denegar o falo, o que tornaria o alcoolismo uma perversão um pouco especial

(MELMAN, 1992, p.132). Ao que Santiago replica por julgar que a lógica utilitarista

da toxicomania seria radicalmente diferente do que está em jogo da lógica do objeto na

perversão (SANTIAGO, 1992, p.12).

Portanto, o que já se coloca de início é o engodo teórico-clínico que

representaria uma proposição monolítica que apontasse uma causalidade única para as

toxicomanias. Por isso, julgamos que perseguir um postulado universal para clínica tão

controversa poderia nos levar à situação tragicômica dos dois cegos que ignoravam estar

ou não descrevendo o mesmo elefante ou elefantes diferentes.9

Nosso ponto de partida para um exame da toxicomania na psicanálise nada tem

de original. Parte especificamente de Freud, cujo interesse pelo tema da drogadicção se

presentificou já nos primórdios de seu percurso pela neurologia. Inspirado pelo espírito

de seu tempo, o (ainda) neurologista Sigmund Freud interessou-se particularmente pelos

novos achados do que já se desenvolvia como os primórdios da psicofarmacologia.

8 Para maiores detalhes, consultar VAILLANT, G. (1983) The Natural History of Alcoholism. Cambridge, Massachusetts: Havard University Press. 9 Consultar RAMOS (1997).

25

Ele inicia a pesquisa da cocaína e reitera seu uso terapêutico para quadros

psíquicos como a neurastenia, a melancolia, e para o tratamento da morfinomania, este

último, um engano que por pouco não lhe custou a carreira (PINKUSFELD, 1991,

p.28). Esta incursão teve amplos desdobramentos em sua vida pessoal. Sabemos que ele

próprio consumiu cocaína, pelo longo período de 11 anos, mais precisamente, de 1884 a

1895.10

Em sua primeira teorização sobre a toxicomania, Freud faz derivar as

drogadicções como substitutos da protomania, a masturbação. No inverno de 1897, em

uma carta a Fliess, Freud faz uma referência à toxicomania:

ocorreu-me que a masturbação é o primeiro e único dos grandes hábitos, a “protomania”, e que todas as demais adicções, como a do álcool, morfina, etc., só aparecem na vida como substitutos e deslocamentos daquela. (1887-1902/1973, III, p.3.594)

Uma nota de pé de página no próprio texto envia o leitor aos posteriores

acréscimos sobre o tema da toxicomania, que em Freud não são muitos. Há uma alusão

indireta ao tema em 1912: todos estamos de acordo que o tema da masturbação é pouco

menos que inesgotável (FREUD, 1912a/1973, II, p.1.709). A próxima contribuição

associando toxicomania e masturbação virá apenas em 1928:

o “vício” da masturbação aparece substituído pela paixão pelo jogo, é o que acusa claramente a acentuação da apaixonada atividade das mãos. A paixão pelo jogo é um equivalente a pretérita obsessão onanista. (FREUD, 1927a/1973, p.3.014)

Em 1912, voltará ao tema da drogadicção ao perguntar-se sobre a relação que o

bebedor mantém com o vinho, que ele denomina o casamento feliz, em tudo diferente

da relação do amante com seu objeto sexual, sujeita ao evanescimento, ao

desinvestimento erótico e à suspensão do interesse. (FREUD, 1912b/1973, II, p.1.716)

No texto, chega a observar que a relação de harmonia entre o sujeito e o álcool é tal que

deveria servir de modelo a muitos casamentos. A referência seguinte só virá três anos

depois: ao tratar da questão da dor, correlativa à lesão de um órgão, Freud reconhecerá

10 Para detalhes, ver BYCK (1974).

26

que esta só remitirá sob os efeitos de uma supressão de uma droga ou sob a influência

exercida por um distrator psíquico (FREUD, 1915a/1973, II, p.2.053).

O caráter de supressão pela via da droga reaparecerá em Luto e Melancolia:

aqui, a embriaguez alcoólica será considerada como pertencente à mesma série de

estados da mania e da melancolia. No caso, também no alcoolismo estaria suprimido

(Unterdrückung) o caráter do recalque, por intermédio de uma via tóxica. A toxidade é

também um dos elementos comuns que ele reconhece em formas endógenas de certos

tipos de mania e de melancolia:

o conteúdo da mania é idêntico ao da melancolia. Ambas as afecções lutariam contra o mesmo “complexo”, que subjuga o Eu na melancolia e que manteria o eu apartado ou dominado, na mania [...] A embriaguez alcoólica, contanto que seja alegre, pertence a esta mesma série de estados, pode ser explicada do mesmo modo; aqui se trata da supressão, por via tóxica, dos gastos com a repressão. (FREUD, 1915b/1973, II, p.2.098)

No mesmo texto, ao descrever o complexo melancólico como uma ferida aberta,

Freud alude a um possível fator somático, não psicogênico, também de origem tóxica,

que geraria certas formas da afecção (Op. cit., p.2.097). Aqui, ele aponta para a

correlação entre a via tóxica e a supressão (Unterdrückung) do recalque, reconhecendo

na droga um agente capaz de atuar sobre a via libidinal do sujeito (SANTIAGO, 2001,

p.96).

Santiago chama a atenção para o fato da existência, na obra freudiana, de uma

marca indelével pela busca de uma ação tóxica na economia libidinal, marca esta que

pode ser rastreada desde os estudos sobre a cocaína, partindo de uma consideração

econômica sobre o aparelho psíquico:

A droga suprime ou suspende as forças inibidoras sobre as quais pesava o recalque (...) O prazer obtido pela Unterdrükung (supressão) tóxica, provém de uma economia do dispêndio psíquico, de um alívio das pressões exercidas pela razão crítica. (SANTIAGO, 2001, p.97-8)

Se não há uma teoria específica da toxicomania na psicanálise, ela é

indiretamente contemplada a partir das reflexões freudianas sobre o mal-estar. O Mal-

Estar na Civilização (1929) é com freqüência classificado como pessimista e soturno.

Freud usa o texto para tratar das barganhas e ilusões humanas na busca da felicidade,

27

busca que estará bifurcada entre a evitação do desprazer e a busca do prazer,

fundamentos da homeostase da balança pulsional proposta por ele.

Os recursos do sujeito para suportar o mal-estar serão buscar na sublimação, na

religião, no belo ou na estética da perfeição das formas uma maneira de evitar o mal-

estar. Mas há ainda álibi pelo qual o humano evitaria ou se ocultaria da dor: a

toxicomania. É assim que Freud reconhece no poderoso aliado químico, um preposto do

princípio do prazer na eterna fuga humana do desprazer e da dor.

É então que nos apresenta a intoxicação como o mais efetivo dos métodos para

evitação do sofrimento. Apesar do reconhecimento da eficácia da afetação tóxica,

refere-se a seu caráter enigmático:

Não creio que alguém até hoje tenha compreendido seu mecanismo, mas é evidente que existem certas substâncias estranhas ao organismo cuja presença no sangue ou nos tecidos nos proporciona sensações prazerosas, modificando assim as condições de nossa sensibilidade, de maneira que nos impedem de perceber estímulos desagradáveis. (FREUD, 1929/1973, III, p.3.026)

Em seguida, volta à hipótese autotóxica, endógena, através da qual, em estados

como a mania, o sujeito apresentaria uma condição semelhante à intoxicação. Nesse

ponto, Freud lamenta a obscuridade científica na qual fenômenos referentes ao lado

tóxico dos problemas mentais se encontravam ainda envolvidos. Reconhece a eficácia

dos veículos intoxicantes como “Sorgenbrecher (quebradores de inquietação)”11 por

permitirem um afastamento da pressão da realidade. Menciona em seguida a adesão ao

tóxico como um coadjuvante eficaz na busca da estase psíquica:

É possível [por meio desse amortecedor de preocupações], em qualquer ocasião afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições de sensibilidade. (FREUD, 1929/1973, III, p.3.026)

Esse é o reconhecimento freudiano ao caráter substitutivo da droga para certos

sujeitos, ainda que não definitivo para todos. Está para além do sintoma e tem como

alvo velar o insuportável do sujeito e aliviar a dor psíquica. No entanto, deve de

antemão ficar claro que o que o sujeito busca não seria o prazer, mas a cessação do

11Entre aspas, no original. Em espanhol, “quitapenas”, expressão que em nossa opinião traduz e enfatiza o caráter de dissipador do mal-estar que FREUD tenta ressaltar em sua argumentação.

28

desprazer. É assim que o prazer se transforma: cessação de não-dor, prazer negativo.

(SISSA, 1999, p.9)

Caso transitemos de Freud a Lacan nas alusões à toxicomania, veremos que,

neste segundo autor, a escassez de uma referência direta ao tema é ainda maior. De fato,

ela estará referida explicitamente em dois momentos de sua extensa obra. A primeira

data de 1938, em que Lacan contrasta o desmame do filhote animal ao do bebê humano:

correlaciona o primeiro ao final do instinto materno, enquanto que o segundo será

regulado pela cultura. Nesta oposição entre natureza e cultura, acrescentará as falhas

que podem ocorrer no segundo caso:

o desmame, através de qualquer das contingências operatórias que comporta, muitas vezes é um trauma psíquico cujos efeitos individuais – as chamadas anorexias nervosas, as toxicomanias pela boca, as neuroses gástricas – revelam suas causas à psicanálise. (LACAN, 1938/2003, p.37)

A segunda alusão lacaniana às toxicomanias só será diretamente expressa quase

40 anos depois: não há nenhuma outra definição para a droga que não esta: ela rompe

o casamento do corpo com a coisinha de fazer pipi. (LACAN, 1975) (Wivimacher - no

caso, uma referência à designação de Hans sobre seu pênis). Esta breve afirmação de

Lacan suscita ainda hoje entre os lacanianos diversas discussões. Há, em geral, uma

concordância entre seus comentadores de que existe uma transição em sua obra do

primeiro momento citado para o segundo, que visaria reforçar a função de separação

da droga em relação ao gozo que afeta o sujeito na sua dor de viver. (SANTIAGO,

2001, p.162)12

De nossa parte, ressaltamos que nosso apoio na teoria lacaniana privilegia o

momento do estágio do espelho, que, aliás, em muito coincide com o momento da

lactação e do desmame, mas que ultrapassa esta fase tanto por sua abrangência quanto

por suas conseqüências simbólicas. A formulação da moldura vazia é a prova cabal dos

desdobramentos que podem advir da fase do espelho e suas vicissitudes.

Por outro lado, gostaríamos de enfatizar que o norteamento clínico do presente

estudo – a tentativa de interfacear a adicção de substâncias com a melancolia – brotou

da alta incidência semiológica que esta correlação enfeixa. Em números atuais, no Rio

12 Nesta obra, SANTIAGO faz um minucioso percurso sobre a toxicomania na teoria lacaniana.

29

de Janeiro, 70% dos adolescentes deprimidos passam ao uso de álcool e Cannabis13,

casuística congruente com os estudos feitos em alta escala, caso das anteriormente

citadas estatísticas americanas.

Isso não representa para nós apenas um dado na literatura especializada.

Consideramos a entrada na adicção de substância uma resposta do sujeito à

impossibilidade de preencher o vazio melancólico, que passa a ser significantizado a

partir da eleição da droga. Se como melancólico o sujeito não sabe o que perdeu, ao

entrar na drogadicção ele julga ter achado. Para dar finalidade e controle à sua falta, o

toxicômano triunfa onde o melancólico fracassa: na tentativa de desertar da dor de

existir, faz do vazio melancólico um continente para a droga. Cai no engodo de

preencher o que realmente não tem fundo e coloca na esfera da necessidade o que é da

ordem (sempre insaciável) do desejo.

1.4 UM PANORAMA DA MELANCOLIA NA PSICANÁLISE

1.4.1 Sigmund Freud

Sabemos que, se foi apenas em Luto e Melancolia que Freud publicamente

teorizou sobre a melancolia, seu interesse por ela é anterior. Já na correspondência com

Fliess (1894), no Manuscrito E, ele dialoga sobre a questão (1894?/1973, III). O tema o

instigou de maneira recorrente. Apesar do interesse, parecia existir uma incerteza até

mesmo na maneira adequada para designar a afecção. Freud o fez de muitas maneiras

diferentes. Tourinho (1988, p.25) apura doze diferentes referências à depressão e à

melancolia no período de correspondência com Fliess, que se prolonga de 1887 a 1902.

Se no início Freud apenas de forma tangencial esbarrou com a questão, anos

mais tarde de fato viria a abordar magistralmente o tema em sua obra Luto e

Melancolia, efeito provocado talvez pela parceria intelectual com Karl Abraham,

discípulo que se dedicou exaustivamente ao assunto. No referido Manuscrito E (Op.

cit., p.3.493), Freud está preocupado em situar a origem da angústia que já

correlacionara à sexualidade. Ele tira conseqüências do vitorianismo e conclui que, se

13 Dados da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. In: O Globo (06.06.2004), Jornal da Família, p.3.

30

alguém pagava caro pelos costumes da época, pelo adiamento do gozo no coito

interrompido, esse alguém eram seus pacientes neuróticos. Assim, o que as virgens, as

beatas, os masturbadores têm em comum é a abstinência:

Trata-se de uma acumulação de tensão sexual física (...) Assim, a neurose de angústia é uma neurose de represamento, como a histeria (...) A angústia surgiu por transformação, a partir da tensão sexual acumulada. (Ibidem, p.3.495)

É a partir desse parágrafo que Freud trata da melancolia. Seu interesse privilegia

a angústia, mas o fenômeno da melancolia parece ser algo que sobrevém de sua clínica e

carece de explicações. Ele prossegue:

Com freqüência muito especial, verifica-se que os melancólicos foram anestésicos. Não têm necessidade de relação sexual (e não têm sensação correlata). Mas têm grande anseio de amor, na sua forma psíquica- poder-se-ia dizer, tensão erótica psíquica. Nos casos em que esta se acumula e permanece insatisfeita, desenvolve-se a melancolia. Aqui, pois, poderíamos ter a contrapartida da neurose de angústia. Onde se acumula tensão sexual física - neurose de angústia. Onde se acumula tensão sexual psíquica - melancolia. (Ibidem, p.3.496)

A questão melancólica finalmente vem ocupar o centro das preocupações de

Freud no Manuscrito G. Algumas afirmações nos parecem emblemáticas de suas

conclusões sobre a melancolia até então. Na primeira, encontramos a afirmação de que

existem notáveis correlações entre a melancolia e a anestesia [sexual] (FREUD,

1895?/1973, III, p.3.503). Vemos que a lógica freudiana faz uma proporção inversa

entre excesso de tensão e falta de desejo sexual. O segundo ponto ressalta que a

melancolia se desenvolve como a neurastenia, através da masturbação. Há uma

correlação entre a inibição melancólica e os sintomas da debilidade astênica. Freud

parece compartilhar com a idéia comum na medicina do século XIX, a da perda de

vitalidade correlacionada com a masturbação.

Em seguida vêm duas evidências clínicas: a melancolia surge numa combinação

com a angústia intensa, e a outra, o tipo e forma extremos da melancolia parece ser a

forma periódica ou simples. Com esta última afirmação Freud endossa a Psicose

Maníaco-Depressiva de Kraepelin (1889), para quem esta afecção é constitucional e

hereditária. No entanto, Freud aponta para a angústia intensa. Vemos que o afeto é

31

colocado como um fator coadjuvante para o desencadeamento da doença, o que, sem

dúvida, faz toda diferença em relação à visão organobiológica da época. Ele usa a via do

acesso para interrelacionar o luto à melancolia:

(a) O afeto correspondente à melancolia é o do luto, isso é, o desejo de recuperar algo que foi perdido. Assim, na melancolia trata-se de uma perda na área da vida pulsional. (b) A neurose nutricional paralela à melancolia é a anorexia (...) Perda de apetite, em termos sexuais, é perda de libido. Portanto, não seria muito errado partir da idéia de que a melancolia consiste no luto por perda da libido. (FREUD, 1895?/1973, III, p.3.504)

A partir de um diagrama esquemático da sexualidade, conclui que, se os

indivíduos potentes facilmente tendem para a neurose de angústia, os impotentes

tendem para a melancolia. Uma descrição dos efeitos da melancolia inclui inibição

psíquica com empobrecimento das pulsões e sofrimento correspondente. A anestesia

sexual parece reforçar a melancolia; o que não quer dizer que ela funcione como causa,

mas como indicação de uma tendência melancólica: é possível a pessoa sofrer de

anestesia sem ser melancólica, no entanto a anestesia é sinal de um pródromo da

melancolia. (Ibidem, p.3.505) Na última parte do manuscrito, além de ilustrar a

invaginação melancólica, ele sintetiza os sintomas da melancolia: inibição psíquica,

com empobrecimento pulsional e respectivo sofrimento. Descreve, ainda:

Se o grupo sexual psíquico defronta-se com grande parte de sua excitação, pode acontecer uma retração para dentro da esfera psíquica, o grupo sexual psíquico invagina-se quando há perda de sua excitação (...) produzindo um efeito de sucção sobre as quantidades de excitação contíguas. Os neurônios são obrigados a desfazer-se de sua excitação, o que produz sofrimento. Desfazer excitações é sempre doloroso. (Ibidem, p.3.507)

Freud manterá esse ponto em 1915 em Luto e Melancolia, quando tratar do

desligamento da libido objetal. Voltando ao Manuscrito G, encontraremos uma das mais

belas metáforas de sua obra. Trata-se da hemorragia interna, causada nas pulsões e

funções psíquicas. Esta invaginação atuaria de forma inibidora, como uma

ferida, de modo análogo ao da dor. [Enquanto que] na neurastenia é como se a excitação escapasse através de um furo [furo de excitação somática], na melancolia esse furo é na esfera psíquica. (Op. cit., p.1507-8)

32

É digna de nota a originalidade de Freud nessa passagem. Há aqui um passo

inaugural que constitui uma abordagem da melancolia não apenas sob o ponto de vista

orgânico, mas com os matizes de um olhar que privilegiava o psíquico. O uso da

metáfora da hemorragia interna parece denunciar uma insuficiência descritiva da

literatura científica da época, interessada na melancolia, mas incapaz de entendê-la sob

o ponto de vista pulsional por carecer ainda dos conceitos que viriam a ser fornecidos

pela própria psicanálise. O que nos parece importante é demarcar aqui o início de um

FREUD que troca a clínica do ver pela do ouvir.14

No entanto, ele cessa temporalmente de avançar sobre o tema da melancolia.

Será apenas em 1909 que irá se ocupar da questão do suicídio em seu caso clínico

Análise de um Caso de Neurose Obsessiva - O Homem dos Ratos. (FREUD, 1909/1973,

II, p.1.441) Ali, trata das idéias de suicídio de seu paciente, ligando-as à autopunição.

Um ano mais tarde, faz uma exposição na Associação Psicanalítica de Viena,

publicada no mesmo ano sob o título Contribuições ao Simpósio sobre o Suicídio. Nesta

conferência, mostra-se curioso com a origem obscura sobre o domínio a que é

submetida a pulsão de vida, nos casos de suicídio. Indica que o ponto de partida para

esta questão deverá estar na melancolia, em comparação ao estado do luto. Mas não se

mostra otimista quanto à progressão imediata que leve ao esclarecimento da questão.

Os processos afetivos na melancolia, entretanto, e as vicissitudes experimentadas pela libido nessa condição nos são absolutamente desconhecidos. Nem chegamos a uma compreensão psicanalítica do afeto crônico do luto. (FREUD, 1910a/1973, II, p.1.637)

Stratchey traz sobre este texto uma nota (Ibidem, p.1.638) em que ressalta a

importância do binômio que aqui fica sedimentado entre luto e melancolia. Mas é

apenas cinco anos depois que Freud retoma a questão. Antes disso, escreve Totem e

Tabu (1912), onde trabalhará o significado do luto consecutivo à morte do animal

totêmico, que seria, na realidade, uma simbolização do pai. Ao descrever a cena do final

do banquete totêmico, o choro e lamento do clã estarão justificados pelo temor de um

castigo e têm por objeto retirar do clã a responsabilidade contraída. (FREUD,

1912c/1973, II, p.1.837) Ele prosseguirá fazendo equivaler o animal totêmico à figura

14 Vários comentadores de FREUD atestam esta mudança. Por exemplo: ALBERTI (1997, p.217) e LAMBOTTE (1997, p.88).

33

do pai através de uma identificação totêmica ou simbólica, ou seja, através de uma

incorporação dos traços ou do ideal do pai morto pelos irmãos da horda. O que aqui nos

interessa é a operacionalização no conceito de luto como possibilitador de uma saída do

complexo de Édipo. Na realidade, o que este texto faz é preparar o terreno para o que

virá em Luto e Melancolia.

Em 1914, surgirá o texto Sobre o Narcisismo, uma Introdução (FREUD,

1914/1973, II, p.2.017). Privilegiaremos o fato de que, entre muitos outros pontos, há o

lançamento de uma nova semiologia psicanalítica e uma diferenciação entre as

Psiconeuroses de Transferência e as Psiconeuroses Narcísicas. Psiconeuroses de

Transferência seriam o efeito do recalcamento e introversão das pulsões sexuais.

Psiconeuroses Narcísicas seriam efeito de uma libido que se retira para o Eu. O conceito

de narcisismo permitiu que a melancolia fosse pensada como uma absorção, seguida de

um esgotamento da libido, e, finalmente, da perda do Eu. (Ibidem, p.2.018).

1.4.1.1 Uma Nota sobre o Objeto

Fizemos referência ao hiato de quase uma década, em que Freud deixou de

avançar sobre a questão da melancolia. Porém, indiretamente, as bases para a retomada

do tema foram lançadas neste intervalo. Houve o estabelecimento de vários conceitos

que seriam fundamentais para a própria sedimentação da psicanálise e também para o

posterior entendimento da melancolia, que revelaram de maneira inegável as relações

entre o Eu e o Objeto.

Acreditamos que se faz mister, nesse momento, delimitar a questão e a definição

do Objeto na teoria psicanalítica. Devido à densidade do conceito, dedicaremos a ele

apenas o espaço necessário para que nos ajude a operacionalizá-lo como instrumento de

trabalho nas relações que este mantém com a melancolia, tanto na visão de Freud e dos

pós-freudianos quanto na visão de Lacan e seus comentadores. Para isto nos apoiaremos

em Rabinovich (1990, p.11 e segs.). Para a autora, o objeto e seus destinos na obra

freudiana podem ser encontrados basicamente sob três grandes aspectos: o objeto do

desejo, o objeto da pulsão e o objeto do amor.

34

De forma reduzida, diríamos que é no capítulo III dos Três Ensaios... (1905),

que Freud trabalha a noção do objeto primordial, ligada à noção de apoio. Este seria o

paradigma do primeiro objeto, isso é, a primeira finalidade para onde o ser humano

orienta seu desejo. Um objeto que será alvo da pulsão sexual, encarnado

fora do corpo do próprio infante, sob a forma do seio da mãe, e que se tornará o protótipo de toda relação do amor (...) O encontro com o objeto é, na realidade, o reencontro dele. (1905/1996, p.228)

É o início da constituição subjetiva, que fará com que o sujeito tente para sempre

encontrar nas relações objetais posteriores, esse objeto-primeiro perdido para sempre.

Sabemos da impossibilidade da realização desse projeto. Ao novo objeto, sempre faltará

algo. A posição diante dessa falta determinará, em cada um, a maneira de lidar com ela.

O objeto de amor estará relacionado com o futuro tipo de escolha objetal de um

sujeito e poderá se dar de duas diferentes maneiras: escolha anaclítica ou de ligação e

escolha narcísica. Assim, as posteriores relações objetais serão, na realidade, tentativas

de reencontro desse objeto original perdido. Para Freud, teremos então que:

a) - Na Escolha anaclítica ou de ligação: o objeto eleito estará baseado em

modelos infantis, anteriormente amados ou odiados;

b) - Na Escolha narcísica: o objeto eleito estará baseado no próprio Eu do

indivíduo. Esta é uma outra importante articulação que poderemos encontrar em Sobre o

Narcisismo (1914).

Em 1915, com o trabalho A Pulsão e seus Destinos, será definido o objeto da

pulsão como aquilo em que ou por quem ela pode alcançar seu objetivo. (FREUD,

1915c/1973, II, p.2.042) O que aí se evidencia são as infinitas possibilidades de permuta

que o objeto pode adquirir para o sujeito.15

Paralelamente ao conceito de Objeto (Objekt) em Freud, devemos também nos

referir ao que ele denomina a Coisa- das Ding, que anos mais tarde será retomada e

robustecida por Lacan, tornando-se um conceito de grande importância para sua teoria

do Real. A primeira referência a das Ding encontra-se no Projeto para uma Psicologia

Científica.(1895), referida como “fora” do aparelho psíquico, circunscrita por

percepções relacionadas com o movimento do desejo para realizar a identidade da

15 Cf. RABINOVICH, 1990, p. 6.

35

percepção. Posteriormente, ele refere-se à necessidade do Outro (Nebenmensch) para

renovar a experiência de satisfação. No Projeto, das Ding aparece como o Outro

originário do desejo, o Outro absoluto do sujeito, o Outro Real, do qual a língua seria

a prova. (KAUFFMANN,1996, p.84)

Em 1929, em O Mal-Estar na Cultura, a Coisa inefável se presentifica: Na

origem, a escrita era a linguagem do ausente, a morada, o substituto do corpo materno,

primeira morada cuja nostalgia talvez ainda persista em nós, onde estávamos tão

seguros. (FREUD, 1929/1973, III, p.3.034) Não é difícil, portanto, identificar na Coisa

o objeto para sempre perdido, desde Freud.

Em Lacan, a Coisa, das Ding, é o que estará fora-do-significado, o

irrepresentável. Ela estará em oposição a die Sachen, as coisas tangíveis, representáveis,

as coisas que estão na superfície, conceitos que serão trabalhados no Seminário VII - A

Ética na Psicanálise. (LACAN, 1966/1988) Isso levou à interpretação lacaniana de que

das Ding seria o objeto que faz sombra na máxima freudiana que reconhece que na

melancolia a sombra do objeto que se projetou sobre o Eu..

Feitas estas rápidas considerações sobre o objeto, retornemos à melancolia. Em

1915, Freud escreve Sobre a Transitoriedade. (1915b/1973, II, p.2.119) É um texto

breve que tem como pano de fundo uma caminhada de Freud junto a dois amigos,

durante a qual dialogam sobre a perenidade, a passagem do tempo e de sua incidência

sobre o que é belo. Uma flor não nos parece menos esplêndida pelo fato de suas pétalas

permanecerem viçosas por apenas uma noite, diz ele ao amigo que protesta contra a

fatalidade da passagem do tempo. (Ibidem, p.2.120) Usando como ponto de partida a

inconformidade de seus interlocutores pela efemeridade do belo, Freud menciona a

naturalidade com que os leigos olham para o luto em oposição ao enigma que este

constitui para a psicanálise. No entanto, ele mencionará esta etapa como necessária e

resolutiva na superação das perdas objetais do sujeito. Findo o luto, nossa libido fica

uma vez mais livre para substituir os objetos perdidos por novos, igualmente, ou ainda

mais preciosos (FREUD, 1915b/1973, II. p.2.119). No texto não aparece ainda uma

metapsicologia desse processo. É em Luto e Melancolia (1915a/1973) que este conceito

será minuciosamente detalhado. Este é o ponto que desejamos comentar a seguir.

36

1.4.1.2 Luto e Melancolia

Já no início desta obra Freud nos aponta suas dificuldades para com a

Melancolia e classifica de oscilante sua definição conceitual. Observa a multiplicidade

clínica do quadro, cuja síntese em uma unidade não parece assegurada, e dentre estas

algumas sugerem afecções mais somáticas do que psicógenas. Justifica então o uso do

binômio luto-melancolia pelo quadro geral dos dois estados (Op. cit., II, p.2.091).

O luto será definido como um fenômeno reacional à perda de uma pessoa

querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como pátria, ideal, etc. No

entanto, está expresso no texto seu caráter de normalidade e a possibilidade de

superação. O colorido patológico será dado se houver aí uma vicissitude tal que o

sujeito, em vez de enlutar-se, se torne um melancólico. Freud define os principais traços

da melancolia, aproximando-os do luto em quase tudo, exceto por um único traço de

distinção: falta, no luto, a perturbação do sentimento de auto-estima. No resto é a

mesma coisa. (Ibidem) O “resto”, isso é, os pontos de contato entre as afecções são

vários: desânimo, caráter doloroso, perda da capacidade de amar e inibição de toda

atividade.

No entanto, constatamos que, ao avançar no texto, Freud aprofunda essas

diferenças e a metapsicologia da afecção ficará então descrita a partir de um modo de

funcionamento particular. Se o modelo do luto serve inicialmente como paradigma à

melancolia, a partir de um determinado momento, este não mais lhe será suficiente. O

que difere um e outro é que no luto, é o mundo que se tornou pobre e vazio; na

melancolia é o próprio ego. Tal esvaziamento irá aprofundar as diferenças entre as

afecções. Por exemplo, na melancolia, teremos

a perturbação do sentimento de auto-estima; (...) a falta de vergonha perante os outros;(...) e uma superação da pulsão que compele todo ser vivo a se apegar à vida. (Ibidem, p.2.092-2.093)

Vai ficando mais clara, à medida que o texto se desenvolve, a variedade clínica

da expressão melancólica, com a metapsicologia da afecção descrita a partir das

conseqüências produzidas por um abalo na escolha objetal. Na melancolia, a libido terá

por destino privilegiado o retorno sobre o Eu, volta que evidencia a identificação entre o

37

Eu e o objeto abandonado, em um tipo de clivagem inteiramente diverso do processo do

luto. Assim, a sombra do objeto caiu sobre o Eu (Ibidem, p.2.095), que será julgado

como o objeto abandonado por uma instância especial (Ibidem). Uma das

conseqüências desta passagem na teoria freudiana é que a instância crítica aqui

mencionada conduzirá posteriormente à sedimentação do conceito Super Eu e da

culpabilidade, como teremos oportunidade de detalhar mais adiante em nosso trabalho.

Continuando no texto, Freud dirá que, uma vez que o objeto perdido fique

identificado com a perda do Eu, uma cisão se estabelecerá no interior do próprio Eu,

que ficará então bipartido entre a instância crítica de um lado, e, de outro, a parte

modificada através da identificação com o objeto perdido.

Este duplo destino do investimento selaria a bipolarização interegóica na

melancolia: de um lado, um modo de identificação com o objeto “perdido”; de outro,

pela ação da ambivalência, o investimento que retornaria à etapa do sadismo, este

último apontado por Freud como o responsável pelas tendências suicidas do sujeito

melancólico. Só este sadismo resolve para nós o enigma da tendência ao suicídio, pela

qual a melancolia se torna tão interessante e tão perigosa (Ibidem, p.2.096). Parece-

nos que Freud retoma aqui algumas das questões que ele próprio havia se colocado,

cinco anos antes, no Simpósio sobre o Suicídio. Conforme sua suposição na época, a

experiência clínica havia solucionado vários dos problemas teóricos que o luto

suscitava. Procuraremos nos aprofundar nesta discussão no capítulo III desta

dissertação, quando trabalharmos as relações da melancolia e da toxicomania com a

passagem ao ato.

A questão da identificação melancólica ou narcísica é um conceito-chave para na

compreensão da economia do fenômeno melancólico. Florence (1994) vê na

identificação melancólica um fracasso na identificação simbólica com o ideal. A

introjeção do objeto inconsciente da melancolia acaba por clivar o Eu e é mortífera para

ele, que não procura novos objetos, ao contrário do luto. A perda desse objeto

enigmático dá lugar a algo sem medida e sem sentido, fora do significado

(FLORENCE, 1994, p.130).

Pinheiro (1998) ressalta que o conceito de identificação melancólica se tornou

um divisor de águas, pelo fato de que, até então, o modelo paradigmático de

identificação na psicanálise era o da identificação histérica, que segundo os conceitos do

38

narcisismo tornava semelhantes as diferenças. Na histeria, diz a autora, o objeto perdido

pode ser reencontrado. Já na melancolia,

a perda foi negada, foracluída. Há que se manter o objeto a qualquer preço, mesmo que seja caro (...) É como se a identificação trouxesse o objeto na sua totalidade como cópia fiel, um decalque (PINHEIRO, 1998, p.122)

Laurent, por sua vez, sintetiza sobre a questão e apontará duas interfaces que

tornam mais clara a exposição freudiana. O autor reconhecerá na teoria duas interfaces

da identificação melancólica: a identificação com o pai morto e a identificação com a

Coisa imaginária. Ele situa as duas exposições em dois momentos da obra: em “O Eu e

o Isso”, com o pai morto, e em “Luto e Melancolia”, com a Coisa. (LAURENT, 1995,

p.162)

Na melancolia, das Ding - a Coisa, como já adiantamos, equivale ao objeto, que,

tatuado ao ego do sujeito pela identificação melancólica, barra seu acesso à

simbolização da perda. Não há representação para a Coisa - das Ding, pois ela é fora do

significado, é irrepresentável, fora da possibilidade de significação:

É em função desse fora-do-significado e de uma relação a ele que o sujeito conserva sua distância e constitui-se num mundo de relação, de afeto primário, anterior a todo recalque (LACAN, 1962, inédito).

Se a elaboração do luto é a constituição de novos significantes, na melancolia

isso se torna impossível, porque a identificação é com a Coisa, com a qual não há

barganha significante.

O acesso ao simbólico pressupõe a morte da Coisa. Pressupõe a entrada na ordem do relativo e da compensação; troca-se a Coisa pela palavra, aceita-se a condição de objeto substituível e entra-se no jogo social (PINHEIRO, 1998, p.129).

Portanto, consideramos que, para a identificação melancólica, a perda não será

da ordem de um objeto, mas da perda da Coisa, das Ding, que não pode ser

ressignificada a partir da eleição e investimento de um novo objeto, como no luto.

Em Luto e Melancolia Freud nos fala de economia e das idas e vindas da libido e

do objeto. No luto, a libido abandonará a representação de coisa do objeto, que é

39

inconsciente. Esta representação é portadora dos traços também inconscientes. Esse

processo é lento, o que fica evidenciado na própria lentidão de seu transcurso. Já na

melancolia, o processo difere um pouco:

Na melancolia se tramam em torno do objeto inúmeras batalhas isoladas, nas quais o ódio e o amor combatem entre si: um para desligar a libido do objeto, outro para defender contra o ataque esta posição da libido. (FREUD, op. cit., p.2.099)

Freud situa essas batalhas no Inconsciente. No luto, esses processos, apesar de

inconscientes, migrarão para o Consciente. Na melancolia, o acesso ao Consciente

estará bloqueado, e o objeto perdido permanecerá no Inconsciente, assim como a

ambivalência e as experiências traumáticas. Todo esse jogo é desenrolado até que

sobrevenha a expressão característica da melancolia, que Freud situa na auto-

agressividade do Eu. Se o Eu do enlutado barganha o objeto perdido em troca da própria

sobrevivência, a opacidade do objeto melancólico leva o sujeito a identificar-se com o

que se perdeu, sem possibilidade de significantização.

Uma afirmação de Freud, neste momento especialmente, nos interessa. Como já

nos referimos, ele desenha em Luto e Melancolia as bases do futuro Super Eu, nesta

época ainda designado instância crítica, que exerce um papel fundamental após a

retração da libido para o Eu. A partir daí é que o conflito se torna consciente, e se

expressará como

um conflito entre uma parte do ego e a instância crítica. O que a consciência apreende do trabalho melancólico não é portanto sua parte principal (...). Vemos que o ego se degrada, se enfurece contra si mesmo (Ibidem, p.2.100).

A questão da Melancolia, como todo o resto da obra freudiana, não cessou com

estes textos. Em 1915, com o texto A Pulsão e seus Destinos, Freud coloca o ódio como

mais antigo que o amor, em relação ao objeto (Op. cit., 1915c/1973, II), além de

suscitar a questão do masoquismo primário. Este seria semelhante à melancolia

narcísica, em que a extinção de qualquer laço libidinal parece não ser um simples

retorno da agressividade para com o objeto, mas impõe-se como anterior a qualquer

possibilidade de posição do objeto.(KRISTEVA, 1989, p.22)

40

O conceito da pulsão de morte advirá em Para Além do Princípio do Prazer

(1919-1920/1973) e as conseqüências dessa obra em todo legado freudiano serão mais

bem trabalhadas por nós no próximo capítulo. Em O Eu e o Isso (1923b/1973), Freud se

dedicará novamente à questão da melancolia. Ali, ele trata a culpabilidade como uma

tensão existente entre o Ideal de Eu e o Eu, como efeito de uma condenação do Eu por

sua instância crítica. A melancolia como a neurose obsessiva seriam afecções em que o

Ideal do Eu mostra uma particular hostilidade para com o Eu, fazendo dele o objeto de

sua ira e sendo por vezes extraordinariamente cruel. No que concerne à melancolia

o Eu não se atreve a fazer qualquer tipo de protesto [contra o Super Eu]. Reconhece-se culpado e se submete ao castigo (...) A melancolia nos demonstra que o objeto sobre o qual recai a ira do Super-Eu foi acolhido no Eu. (FREUD, 1923b/1973, III, p.2.723)

Na verdade, este é um texto em que a melancolia é contemplada em vários

pontos nos quais Freud, por exemplo, compara a melancolia, a neurose obsessiva e a

histeria em relação à culpabilidade. Nas duas primeiras afecções, esta seria

excessivamente consciente, enquanto que na histeria a culpabilidade estaria

inconsciente.

O Problema Econômico do Masoquismo (1924/1973) retoma também as

questões do masoquismo primário, e teremos, finalmente, na Conferência XXXI (1932)

a última alusão de Freud à melancolia. Ali, ele parece ratificar o que havia dito em O Eu

e o Isso. Apesar de mencioná-la como uma doença sobre a qual ainda se saberia muito

pouco, ele aponta como causa do acesso melancólico o extremo rigor do Super-Eu, que

submete e humilha o Eu aos piores castigos.(Op. cit., 1932/1973, III, p.3.133)

1.4.2 UMA NOTA SOBRE JACQUES LACAN E A MELANCOLIA

Muitos autores não acreditam que haja um uma teoria da melancolia em

Lacan; outros dirão o contrário. Por exemplo, Laurent (1995) reconhece uma teoria da

melancolia na obra lacaniana a partir 1938 e que depois evoluiu, solidária com a

evolução global de seu ensino. Ele considera que se há algum laconismo em sua obra

com relação aos distúrbios do humor, este seria comparável ao laconismo de Freud – no

41

que se refere ao tema –, que abordou explicitamente a melancolia apenas em Luto e

Melancolia e O Eu e o Isso. Nas demais publicações freudianas, ainda segundo Laurent,

o tema teria sido apenas tangencialmente mencionado, sem que fossem modificadas as

constatações primordiais.

É em Os Complexos Familiares... (1938/2003) que Lacan situa a psicose

maníaco-depressiva na clínica diferencial das psicoses, sob o ponto de vista do

narcisismo, ao afirmar que, nesta época, a jubilação diante do espelho lhe parecia

compensar a prematuração do organismo. Lacan afirma ainda que

um ritmo biológico decerto regula alguns dos distúrbios afetivos chamados ciclotímicos, sem que sua manifestação seja separável de uma intensa expressividade de derrota e de triunfo (apud LAURENT, 1995, p.156).

Laurent reconhece aqui a marca jasperiana que distingue entre ritmo biológico,

que leva ao processo, e o sentido, que advém da subjetividade.

Em 1946, Lacan afasta-se de Jaspers para priorizar a pulsão de morte freudiana.

Em Formulações sobre a Causalidade Psíquica (1946) comparou então o distúrbio

afetivo que pode provir da jubilação narcísica com o conhecimento paranóico: Eis aqui

ligados, o eu essencial do alienado e o sacrifício primitivo como essencialmente suicida

(LACAN, 1946/1998, p.156). Ainda segundo Laurent, podemos identificar aqui as

posições psíquicas propostas por Klein: as posições esquizo-paranóide e depressiva.

A partir de 1953, sob a contribuição saussurreana, Lacan introduziu a hipótese

do inconsciente estruturado como uma linguagem. Em Função e Campo da Fala e da

Linguagem em Psicanálise (1953/1998) a dialética hegeliana e a linguística serão unidas

para constituir a Coisa, das Ding. A melancolia sai do campo do narcisismo para estar

submetida também às leis da linguagem, leis que fundam o simbólico, ficando o

sacrifício narcísico subordinado a elas.

Em julho de 1963, Lacan considera a mania uma não-função do objeto a, que

assim produz um sujeito não mais lastreado na cadeia significante, disperso na fuga de

idéias. Por fim, em 1974, ele redefine o problema em Televisão. Ainda segundo Laurent

a mania é apreendida como retorno do real do que é rechaçado pela linguagem por

mais que a recusa do dever de bem-dizer, por ser rechaço do inconsciente, vá para a

psicose. A orientação de Lacan sobre a melancolia não é através do afeto de tristeza, mas,

ao contrário, em relação ao ato suicida. O ato suicida seria identificado como um rechaço

42

do inconsciente, uma impossibilidade do sujeito de significar pela via do simbólico,

pela fala.

Colocadas as várias interfaces da melancolia e da toxicomania no seio da

psicanálise, passaremos agora a articular sobre as condições nas quais tal associação

adquire relevo e visibilidade clínicos. O contato com esses pacientes nos leva de pronto

à constatação de que o uso que fazem de seu próprio corpo transcende à auto-regulação

a que estão submetidos os corpos dos demais sujeitos. Parece haver na toxicomania um

tipo de voracidade que reconvoca de forma tautológica uma saciedade que jamais é

obtida e que nenhum tipo de recheio consegue aplacar. O corpo, os órgãos internos

trazem consigo os efeitos dessa sobrecarga, e chega o momento em que,

extenuados,passam a operar em disfunção. Ainda assim, não é com a redução da

substância que o toxicômano responde a esta tentativa de basta do corpo.

Ao contrário, convoca-o a trabalhar de maneira muitas vezes superlativa,

aumentando a ingesta de substância a níveis que finalmente farão com que o corpo

transborde. Mais que um desafio das possibilidades do próprio corpo, o que

testemunhamos nesses sujeitos é um exercício de autocrueldade que nos faz relembrar a

descrição freudiana da crueldade do Super Eu para com o Eu na melancolia. Em nossa

opinião, é de forma simétrica que vemos, na toxicomania, o sujeito tratar seu próprio

corpo. Também neste caso, o sujeito não é senhor em sua própria casa. É sobre essa

possível superposição, esta interface, a autocrueldade na melancolia e na toxicomania,

que pretendemos trabalhar o próximo capítulo.

CAPÍTULO II

TOXICOMANIA E MELANCOLIA:

A RELAÇÃO COM O CORPO

CAPÍTULO II

MELANCOLIA E TOXICOMANIA: A RELAÇÃO COM O CORPO

2.1 O CORPO EM FREUD

O corpo sempre presentificou-se como objeto da ciência, nas mais diversas

modalidades de discurso. Na filosofia, esteve presente desde os gregos. Em Platão, é

considerado uma cópia imperfeita, obstáculo de conhecimento. RUSSEL considera que

em Platão,

enquanto estamos no corpo, a alma não é satisfeita (...) O corpo é duplamente mal: fonte de infinitos incômodos, devido ao simples fato de termos que alimentá-lo. É ainda, um obstáculo para a verdade. (RUSSELL, 1967, p.158)

Os estóicos por sua vez defendiam um materialismo rígido: dado que só o corpo

poderia agir ou sofrer uma ação, só o corpo existe. Sêneca afirmava que é corpo, o bem,

como são corpos a emoção e os vícios (ABAGNANO, 1986, p.23). Esta escola clássica

admitia apenas quatro coisas incorpóreas: o significado, o vazio, o lugar e o tempo.

Tudo que existe é corpo (...) Apenas os corpos podem ser causa, sendo que nenhum corpo pode ser efeito. Os corpos são causa, uns para os outros, de efeitos que não são corpos: [tais efeitos] são os [chamados] incorporais. (GARCIA-ROZA, 1990, p.79)

Para os empiristas, o corpo é considerado o veículo para a realidade. Descartes

irá considerá-lo em homologia à máquina. Nele, tudo é movimento. Ménard menciona

esse traço do corpo cartesiano apontando-o com um corpo meramente reativo. A tomada

de consciência se dará a partir de um estímulo exterior que estimulará os espíritos

animais e a glândula pineal. A alma será incorporal e comanda o corpo, que não pensa

de modo algum (MÉNARD, 2000, p.16).

45

A Viena do final do século XIX fervilhava, inspirada pela oposição entre o

idealismo e o positivismo, que opunha à tradição kantiana e hegeliana uma atitude

epistemológica ligada à prática de diversos métodos científicos ao mesmo tempo

racionais e experimentais.16 Juntamente com o fisicalismo, o Círculo de Viena é

banhado pela torrente positivista. Freud – discípulo de Meynert, Brücke e Breuer – é

ainda contemporâneo das idéias da psicometria advindas de Fechner.

Freud não recebia de maneira ingênua o pluralismo ideológico daqueles tempos.

Apesar de ser fruto dessa época, coloca-se à frente dela. É neste terreno que ele dialoga,

é neste solo que funda o diálogo que culminará na psicanálise. Ele já criticava

a medicina positivista hegemônica no campo dos cuidados. Isso porque esta se centrava apenas em uma leitura objetivista dos sintomas, esquecendo-se de que era sempre pela linguagem que os enfermos comunicavam seus males para os médicos. (BIRMAN, 2003)

Por outro lado, o idealismo alemão deixa nele as suas marcas. Podemos

identificar no Projeto para uma Psicologia Científica (1895) os efeitos que ele retirou

desta corrente de pensamento. A proposta de uma ciência natural para o psiquismo

dificilmente não estaria relacionada a uma ciência do espírito17. E o “estojo” para o

psíquico, naturalmente, será o corpo. O corpo é considerado um receptáculo e é óbvio

que não há mente nem psiquismo sem corpo, uma materialidade se faz necessária. Essa

afirmação evidente, no entanto, não deixa de suscitar ainda hoje as questões sobre a

existência de uma predominância ora do corpo, ora do psiquismo, na concepção

freudiana.

Consideramos que uma resposta unívoca para a questão monismo/dualismo em

Freud seria banalizadora. Garcia nos aponta nos escritos originais de Freud, duas

diferentes designações para corpo: Körper e Leib; Körper designaria um estatuto

material, aparente; ao passo que Leib significaria o corpo simbólico, da fantasia

(GARCIA, 1990, p.18). Mesmo levando em conta que tal diferenciação é barrada à

maioria dos leitores, já que as traduções disponíveis eliminam a diferença do original,

não podemos deixar de partir da perspectiva de que o ponto de largada no pensamento

freudiano foi exatamente do lugar onde falhou o saber do medicalismo da época. O que

16 Encyclopaedia Universalis France S.A. 2002. 17 Sobre o assunto, consultar GARCIA-ROZA, 1991, p 69.

46

fez falar o corpo histérico não foram as doutrinas contemporâneas a Freud, que sabiam

ainda aos vapores das teorias morais do século XVIII, mas sim o ponto opaco em que as

luzes da anátomo-fisiologia faziam ao teatro de sombras das conversões histéricas.

O fenômeno conversivo origina na teoria freudiana duas idéias: a primeira, a de

que a energia psíquica é uma viajante que tem o poder de migrar e habitar as inervações

somáticas; a segunda, a de que o corpo e os sintomas motores, mais que uma máquina

biológica operando em função/disfunção, portavam a mensagem de um desejo obscuro

que, por permanecer insatisfeito, encontrava a expressão da conversão histérica –

fenômeno este passível não de medicalização, banhos ou sangrias, mas de deciframento

e interpretação. Encontraremos Freud, nos primórdios de sua obra, a dar os primeiros

contornos no que seria o grande corte epistemológico operado pela psicanálise em

relação ao pensamento científico de seu tempo.

Ele considera que qualquer tipo de acontecimento ou impressão psíquica é

dotado de um colorido, um valor afetivo libertado pelo Eu, seja por meio de reação

motora, seja através de trabalho psíquico associativo. Um trauma se constituirá quando

um sujeito estiver impossibilitado ou desejar pôr em prática esses meios. Aí, a

recordação da impressão de que se trata adquirirá a importância de um trauma e se

constituirá na causa dos sintomas da histeria. (FREUD, 1888-93/1973, I, p.21)

A histérica sofre de reminiscências, foi o que Freud anunciou a Fliess em seus

primeiros escritos sobre a histeria. Uma “teoria das reminiscências” fazia pensar na

história do sujeito. Mas a ousadia de fundar a geografia de um corpo que se mapeava

pelo desejo necessitava ainda aprofundamentos. É então que ele decide voltar suas luzes

para os primórdios do desenvolvimento psicossexual, focando no período infantil do

sujeito. Os Três Ensaios para uma Teoria Sexual (1905) vêm assim, à tona. Nesse texto

ele busca em Haverlock Ellis a designação para um conceito que imbricaria

definitivamente o orgânico e o psíquico na história do sujeito e o denomina auto-

erotismo. Partindo do hábito infantil de sucção do polegar, Freud descreve o caráter

mais notável desta atividade: o fato de que a pulsão não se orienta para outras pessoas.

Encontra satisfação no próprio corpo (FREUD, 1905/1973, II, p.1.199) do sujeito.

Ao fundar na tautologia autoerótica o binômio sujeito-desejo, a doutrina

freudiana estava também colocando a questão das pulsões e os desdobramentos que daí

adviriam: as zonas erógenas. Lócus de entrincheiramento dos trilhamentos do desejo,

47

compreenderiam daí para frente a história sexual do sujeito numa geografia que fixava

para sempre na teoria um corpo muito além das fronteiras do organismo descrito pela

anatomia de então.

O que Freud inaugura é uma expansão da função fisiológica que a partir da

psicanálise torna o corpo uma tela para as tintas libidinais que o colorem segundo as

nuances da pulsão e a história individual de cada um, tornando-o uma tela simbólica que

será afetada pelas vicissitudes do contato do sujeito com o Outro, que – por manejar a

dependência visceral que sujeito infantil tem para com ele – afinal é quem fixará a zona

erógena.

Em 1910, encontraremos a teoria ainda com seu feixe teórico desamarrado em

relação às conexões entre corpo e psiquismo: a psicanálise não se esquece nunca de que

o mental repousa sobre o psíquico, ainda que não possa avançar em seu trabalho além

desta afirmação. (FREUD, 1910b/1973, II, p.1.634) Neste texto, para marcar mais uma

vez sua oposição em relação ao medicalismo da época, ele relata as inúmeras situações

em que um corpo pode ser afetado pelo simbólico. Entretanto, a teoria tinha ainda muito

a avançar.

Em 1914 Freud escreve o texto Para Introduzir o Narcisismo. O conceito de

narcisismo já vinha sendo trabalhado por ele desde 1905, mas é somente nesta obra

específica que ele se aprofunda no tema, dividindo-o em narcisismo primário e

narcisismo secundário. No narcisismo primário é localizado o modo de satisfação

libidinal auto-erótico, com as pulsões parciais satisfazendo-se no próprio corpo. É o

tempo de um eu não constituído. Neste primeiro narcisismo, o próprio corpo é que será

objeto do investimento pulsional. Esse é um momento em que o bebê, depositário do

desejo parental, é um bebê-majestade, em quem os investimentos narcísicos do Outro

estarão depositados: o amor parental (...) não é mais que a ressurreição do narcisismo

dos pais, que revela sua antiga natureza em sua transformação em amor objetal.

(FREUD, 1914/1973, II, p.2.027)

Ao narcisismo secundário, ele fará corresponder o narcisismo do Eu, momento

de retorno para o Eu da libido depositada nos objetos. Para Freud, o narcisismo

secundário não designa apenas certos estados extremos de regressão; é também uma

estrutura permanente do indivíduo. (LAPLANCHE; PONTALIS, 1967, p.369)

48

Ao ser envolvida pelo Outro é que a criança sentirá sua exigência, traduzida pelo

simbolismo da linguagem e que fornecerá a matéria-prima para a estruturação do Ideal

do Eu, conceito essencial e balizador das relações afetivas do sujeito, já que

corresponderá ao ideal que foi depositado pelo desejo parental, matriz ideal à qual o

sujeito procurará sempre responder. É segundo esta forma de responder ao Ideal do Eu

que ele se posicionará definitivamente no campo do Outro.

Mesmo que os autores não enumerem quantos divisores de água comporta a

teoria psicanalítica, uma afirmação sobre o tema é unívoca: o conceito de pulsão é um

deles. Presente já em 1905, o problema da pulsão será o alvo específico de dois escritos

na obra freudiana. A Pulsão e seus Destinos (1915) trará o conceito de pulsão definido

como um limite entre o somático e o psíquico, como um representante psíquico

procedente do interior do corpo. (FREUD, 1915c/1973, III, p.2.041)

Às pulsões estarão agregados os quatro termos: Pressão, Finalidade, Objeto e

Fonte (respectivamente, Drang, Ziel, Objekt e Quelle). Além dos quatro termos, a

pulsão terá quatro destinos: a transformação em seu contrário; a orientação para uma

outra pessoa; o recalque e a sublimação (Ibidem, p.2.044). O que é fixo na pulsão é a

satisfação, sendo que os objetos serão variáveis. Portanto, da fonte ao alvo, o trajeto

pulsional visará sempre se satisfazer.

Alguns desses destinos serão desdobrados por Freud: a transformação em seu

contrário se subdividirá em retorno da atividade/passividade, desaguando nos pares

antitéticos sadismo/masoquismo e escopofilia/exibição. Já a inversão de conteúdo tem

como exemplo a transformação do amor em ódio. As vicissitudes das pulsões estariam

sujeitas às três polaridades dominantes da vida psíquica: a polaridade biológica,

relacionada com a atividade/passividade; a realidade, relacionada à divisão Eu/mundo; e

a terceira polaridade, econômica, relacionada ao prazer/desprazer.

Ménard nos chama atenção para o fato de que as noções de corpo erógeno e de

pulsão clarearam para Freud os caminhos da conversão histérica, pela razão de estas

serem, ao mesmo tempo, um fenômeno causal e um fenômeno simbólico, que

significava, simultaneamente, a transposição de uma energia ou um afeto - domínio

psíquico - para um domínio heterogêneo: o corpo. (MÉNARD, 2000, p.15) A partir daí,

a conversão significa também um segundo aspecto: além da passagem de uma energia

49

psíquica para a inervação somática, a descoberta do estatuto do corpo na transferência.

(MÉNARD, 1989, p.79)

Em 1920, há uma revirada na teoria das pulsões. Mais Além do Princípio do

Prazer anuncia que havia nas pulsões algo que não se inscreve, um remanescente do

umbigo do sonho, de 20 anos atrás. Desde aquela época Freud já apontava a existência

de um ponto opaco que se anunciava no sonho, mas que permanecia oculto, com um

vazio de significação. Até o aparecimento do Mais além..., o aparelho psíquico será

composto por idéias representadas psiquicamente, numa obediência à lógica do

recalque, presente na primeira tópica: o desprazer é afastado (recalcado) e o prazer,

mantido. Mas isso se dá ainda no campo das representações, entendendo-se por

“representação” o que da pulsão se dá a representar, fato que influencia também a

condução da clínica freudiana. Até 1920, a direção do trabalho analítico calcava-se

principalmente no recurso da técnica interpretativa: uma interpretação precisa levaria à

supressão do recalque, tornando o inconsciente, consciente.

No início de nossa nova técnica o analista não poderia aspirar a outra coisa senão adivinhar o inconsciente oculto para o enfermo, reuni-lo e comunicá-lo à paciente. A psicanálise era sobretudo uma ciência de interpretação. (FREUD, 1919-1920/1973, III, p.2.514)

Na virada radical, Freud reconhece que algo que escapa à rememoração retorna

sempre ao mesmo ponto numa repetição, repetição que é por ele apontada sob quatro

diferentes situações na vida do sujeito: no jogo infantil; na compulsão de destino; nos

sonhos da neurose traumática e na transferência. Em Mais Além... Freud nos indicará

que esse algo que escapa à representação, esse algo que se insubordina à ordem prazer-

desprazer é a pulsão de morte:

... um caráter geral não reconhecido até agora – das pulsões e talvez da vida orgânica. Seria uma tendência própria do organismo à reconstrução de um estado anterior, que o animado teve que abandonar sob o influxo de forças exteriores, perturbadoras. Uma espécie de elasticidade orgânica, ou melhor dizendo, a manifestação da inércia na vida orgânica. (Ibidem, p.2.525)

Repetir o sofrimento da reminiscência ejeta o sujeito para um ponto além do

princípio do prazer, o que irá conferir à pulsão uma atividade, uma linguagem ruidosa,

como se refere Birman. Se a pulsão de morte é caracterizada pelo silêncio, e portanto do

50

lado oposto à linguagem, não quer dizer que não possa se expressar de maneira indireta,

porém ruidosamente. Ruídos que materializam a exigência de trabalho imposta ao

psíquico por sua ligação com o corporal. (BIRMAN, 2001b, p.194)

As repercussões da elaboração desta nova teoria pulsional preparam uma nova

dobradura da teoria. Em 1923, surge O Eu e o Isso, em que Freud redesenha seu modelo

psíquico. Se durante toda a vigência da primeira tópica o Eu aparece como lócus da

consciência, o deslizamento para a segunda tópica comporta uma diferença

fundamental. Aqui, o Eu será considerado como a parte do Isso modificada pelo mundo

externo; o palco das energias objetais abandonadas; o continente da história das

escolhas de objetais e, o que nos interessa: o Eu é, acima de tudo, corporal, além de

constituir-se na projeção de uma superfície. Em uma nota de 1927, ele acrescenta que o

Eu é derivado das sensações somáticas, especialmente as superficiais: por isso podemos

considerar o Eu como uma projeção mental de tal superfície e além disso, como já

visto, correspondente à superfície do aparelho psíquico. (FREUD, 1923b/1973, III,

p.2.708)

Aparece aqui clara a posição de Freud no que diz respeito ao ultrapassamento de

uma visão organicista que muitos de seus comentadores insistiram em dar à psicanálise.

Ele concebe no Eu a escrita histórica do sujeito, sua dimensão simbólica, o que do

precipitado de suas identificações se fez linguagem. Mas a isso atrela o corpo, carne que

se faz verbo, o que implica desejo e linguagem. Garcia-Roza reafirma que o grande

impacto da concepção freudiana para a história do pensamento é que a partir dela se faz

mister que a alma deixe de ser considerada apriorística e que, por sua vez, o corpo deixe

de ser considerado apenas sob o prisma médico-biológico. O autor considera que Freud

inaugura um novo corpo e uma nova alma. (GARCIA-ROZA, 1990, p.80)

No entanto, é verdade que as contribuições freudianas sobre o corpo levaram a

debates que se tornaram uma das questões bizantinas da psicanálise: a questão

monismo/dualismo. Não foram poucas as instituições psicanalíticas ao longo do século

XX que procuraram colocar uma supremacia do psíquico sobre o somático, ao mesmo

tempo em que, ao contrário, houve tentativas de ressaltar o fisicalismo em Freud,

posição comum em diversos autores. Como exemplo, Belin-Capon (1992) nos dirá que,

apesar de reconhecer a ausência de uma elaboração conceitual específica sobre o corpo

na psicanálise, é importante a consideração de que a obra freudiana

51

É regularmente atravessada pela preocupação de fundar um ponto de vista orgânico da psicanálise. Isso em toda obra e não apenas na obra do “jovem” Freud; (...) sem dúvida por sua formação de psiquiatra e neurologista, [ele] jamais perdeu de vista a questão do substrato fisiológico e biológico do psiquismo. (BELIN-CAPON, 1992, p. 207)

Sobre isso, acreditamos que ao pensarmos conceitos-chave da teoria

psicanalítica, tais como as pulsões ou a divisão das tópicas, sempre iremos nos deparar

com os conceitos que nos levam a pensar em fronteiras ou bordas. Tais são a noção de

pulsão, entre o somático e o psíquico (FREUD, 1915c/1973, II, p.2.044), ou ainda nas

funções e origens do Eu, tanto na primeira, quanto na segunda tópica, onde este

aparecerá como um eu corporal, e não apenas um ser de superfície.

Essa noção de borda, de “dentro-fora” aparece também com relação ao sistema

Pcpt-Cs, ao qual Freud atribui uma posição no espaço. Ele deve ficar na linha

fronteiriça entre e exterior e o interior, tem que achar voltado para o sistema externo e

tem que envolver outros sistemas psíquicos (FREUD, 1919-1920/1973, III, p.2.517),

nos diz ele. O que convém aqui novamente ressaltar é o corpo na psicanálise não apenas

como um organismo, mas o corpo pleno, afetado pelo simbólico, por significantes.

Rocha considera que em Freud, o corpo não é apenas meio de expressão: é

também receptáculo, memória e escritura (ROCHA, 1990, p.25). Esse corpo pode

conter um texto, ser depositário do desejo do outro – idéias que são robustecidas por

Lacan, mas já estarão contidas em Freud. É com ele que a percepção do corpo

ultrapassa e inova o ideal médico do século XIX, o que não quer dizer absolutamente

que em sua teoria o psiquismo seja desencarnado. Distanciando-nos das querelas

teóricas, apontamos apenas que a questão do corpo frutificou ainda na teoria

psicanalítica avançando para diferentes vertentes técnicas e teóricas.

2.2 O CORPO EM LACAN

Uma nova dobradura vem se colocar no leque teórico da psicanálise a partir das

contribuições de Jacques Lacan. Compartilhando com Freud a opção pela medicina, o

jovem Lacan irá aos poucos se descolar do discurso médico para tentar situar a

psicanálise como um campo autônomo. Em seu célebre “retorno a Freud”, ele retomará

todo o percurso já trilhado pelo mestre, e a questão do corpo, se não foi exponencial

52

como outros conceitos que foram trabalhados, esteve presente, mesmo que de forma

implícita, em grande parte de sua obra e de seu ensino.

Lacan atrela corpo e história, e, com isso, coloca em cena o peso simbólico e as

relações fundamentais e dramáticas que o humano necessita para constituir-se na

subjetividade. O sujeito lacaniano, para fundar-se, necessita de “movimentos”

fundamentais em que o Outro da linguagem é co-partícipe. Uma recusa da passagem

pela linguagem e pelo simbólico é possível, porém seu preço corresponderá à entrada na

psicose. Nascer é entrar no jogo cultural com suas leis, leis do Outro, que de agora em

diante serão os interlocutores do sujeito. O corpo em Lacan, nos dirá Ogilvie , deixa de

ser

... o corpo ele mesmo [para ser] algo que funciona antes de tudo na linguagem: o que intervém entre o ser humano e sua própria realidade sob a forma de uma “segunda natureza” que não obedece às mesmas leis que aquelas da natureza puramente corporal ou anima (...) O “corpo” humano não é qualquer coisa “dada” na ordem da realidade física. Ao contrário, é construído ao longo de uma história que lhe dá o estatuto de uma imagem. (OGILVIE, 1992, p.224)

A questão da imagem em Lacan tornou-se alvo de interesse já na aurora de seu

trajeto pela psicanálise. Em 1933, ele já se preocupa com as questões do corpo ligadas

aos desdobramentos psicopatológicos na constituição imaginária. Assim é que interpreta

como metafórico o crime das irmãs Papain, e procura nos atos hediondos cometidos

pela dupla e nos casos de delírio a dois um simbolismo, metáfora da indissociação

imaginária que soldava a dupla de irmãs, fazendo de uma, seu outro si-mesmo.

(LACAN, 1933/1987, p.381)

No mesmo ano, ao freqüentar os seminários de Kojève, Lacan interessa-se pela

filosofia hegeliana e pela gênese da consciência de si. Daí, desliza seu foco de atenção

para a segunda tópica freudiana. Em oposição à escola americana de psicanálise, o que

move sua questão é a afirmação feita por Freud que aponta o Eu como um depósito de

identificações. Para pensar na constituição do Eu e do imaginário, Lacan volta-se

também para as contribuições de Henri Wallon, neurologista francês que elabora uma

teoria do desenvolvimento neuropsicológico da criança, tema que foi alvo de vários de

seus contemporâneos notáveis, tais como Buller, Gessel, Piaget e Spitz.18

18 Henry Ey traça uma esclarecedora diferença entre os autores citados. Cf. EY, H. et al., 1978, p.14-20.

53

Wallon divide o desenvolvimento infantil de 0 a 4 anos em cinco fases:

0 a seis meses: Fase de Impulsividade Motora;

sete a 18 meses: Fase Emocional;

18 a 24 meses: Fase Sensoriomotora;

dois a quatro anos: Fase do Personalismo;

e finalmente vem a Fase Escolar, até os 15 anos, caracterizada pela aquisição gradativa

do pensamento categorial. Lacan interessa-se especialmente pela Fase da Impulsividade

Motora, na qual, por volta dos seis meses, o bebê passa a reagir à própria imagem no

espelho.

Wallon partira da observação comparada entre animais e humanos e percebera,

por exemplo, que para os animais a imagem especular se mistura à realidade. Notou que

mamíferos domésticos como cães e gatos não se reconheciam na própria imagem,

enquanto que chimpanzés reagiam ao próprio reflexo olhando e procurando a imagem

atrás do espelho. Comparou suas observações ao comportamento do bebê humano, no

qual notou que este apresentava dificuldades para fazer coincidir, no tempo e no

espaço, a presença de alguém [um outro] e seu reflexo (RIBEIRO, 1995, p.7).

O bebê perceberia a duplicidade, mas não subordinava àquela imagem virtual

uma imagem real correspondente. Wallon notara que a auto-imagem levava o bebê à

ilusão de realidade. Por exemplo, quando chamado por alguém diante do espelho, o

bebê respondia rindo e estendendo os braços para o reflexo, olhando em seguida para o

espelho, como se ali estivesse presente um outro.

Lacan faz derivar dessas observações de Wallon importantes conseqüências.

Parte dos estudos das imagens produzidas pelo espelho plano (1936) e em um segundo

momento, trabalha com o espelho convexo (1953-4, apoiado no modelo do físico Henri

Bouasse). São essas as contribuições que usará para edificar seu modelo de constituição

do sujeito e sua relação com a alteridade.

O primeiro andar desse edifício teórico é comunicado em Mariembad em 1936, e

publicado sob o título A Agressividade em Psicanálise (1948). O texto define o estádio

do espelho como

o dinamismo afetivo pelo qual o sujeito se identifica primordialmente com a Gestalt de seu corpo: (...) valorizada por todo o desamparo original (...) do filhote de homem nos primeiros seis meses de vida (LACAN, 1948/1998, p.115).

54

Em sua obra seguinte, O Estádio do Espelho como Formador do Eu

(1949/1998), faz equivaler o estádio do espelho a uma identificação e reafirma a função

da fase como um caso particular da função da imago: (...) estabelecer uma relação do

organismo com sua realidade. Classifica-o como um drama, cujo impulso interno

precipita-se da insuficiência para a antecipação. Para Lacan, esse é o momento de um

sujeito capturado por sucessivas fantasias, que irão de uma imagem despedaçada do

corpo até uma forma de totalidade ortopédica (...) armadura enfim assumida como uma

identidade alienante. (LACAN, 1949/1998, p.100)

Lacan faz ainda derivar da fantasia do corpo despedaçado diversas

manifestações do inconsciente, dos sonhos às figuras esquartejadas de Hieronymus

Bosch, bem como a anatomia fantasística do espasmo histérico ou dos conteúdos

delirante-alucinatórios cenestésicos presentes nas psicoses, esses últimos expressos mais

claramente aqui do que em sua análise no já referido caso das irmãs Papain.

Até esse momento da teoria lacaniana, o corpo é tratado como imagem integral

tendo o processo da identificação como catalisador, pois, conforme já dissemos, desde

os seminários de Kojéve, o Eu afirmado como corporal e sede das identificações era o

que o movia seu interesse dentro da teoria freudiana. Um acréscimo advirá às suas

cogitações: a linguagem. Os matizes da lingüística saussureana que tanto intrigara

Lacan se concretizarão em uma visão do corpo inédita na teoria psicanalítica:

A fala com efeito, é um dom da linguagem, e a linguagem não é imaterial. É um corpo sutil, mas é corpo. As palavras são tiradas de todas as imagens corporais que cativam o sujeito; podem engravidar a histérica, identificar-se com o objeto do penisneid, representar a torrente de urina da ambição uretral, ou o excremento retido do gozo avarento. (LACAN, 1953/1998, p.302)

Esta posição será reafirmada nas aulas de seu seminário inaugural, onde o

estádio do espelho e a constituição do sujeito terão um lugar exponencial. A conexão

imagem/corpo/linguagem estará expressa ao longo de toda essa obra:

Aquilo que o sujeito vê no espelho é uma imagem fragmentada, inconsistente, descompletada (...) É a relação simbólica que define a posição do sujeito como aquele que vê. É a palavra, a função simbólica que define a maior ou menor completude ou menor grau de perfeição (...) do imaginário. O ideal do eu comanda o jogo de relações de que depende a relação a outrem. E dessa relação outrem depende o caráter mais ou menos satisfatório dessa relação imaginária. (LACAN, 1953-4/1983, p.164-5)

55

A presença e a importância do Outro na constituição da subjetividade são

enfatizadas:

o corpo despedaçado encontra sua unidade na imagem do outro, que é sua própria imagem antecipada (...). O sujeito é ninguém. É decomposto, despedaçado. Ele é aspirado pela imagem do outro. (LACAN, 1954/1985, p.74).

O avançar do estudo lacaniano trouxe modificações próprias à evolução de seu

ensino que se construía. Em Radiofonia a questão do corpo será discutida em sua

relação com o Simbólico. Ali o encontraremos afirmando que o corpo, a levá-lo a sério,

(…) é aquilo que pode portar a marca adequada para situá-lo numa seqüência de

significantes (LACAN, 1970/2003, p.407).

Nos derradeiros seminários, a formulação do corpo não mais estará apoiada no

esquema óptico e no estádio do espelho. Daí para frente, a topologia será utilizada em

articulação ao nó borromeano, abolindo-se a primazia do simbólico e fazendo-se

equivaler igualmente os registros Real, Simbólico e Imaginário. No seminário XXIII, Le

Sinthome (1975-6, p.83), Lacan examina a correspondência de James Joyce a sua

mulher Nora, para em seguida comparar o corpo a uma luva, que envelopa de maneira

equivalente os três registros, amarrando definitivamente os três laços do nó borromeano,

traduzido nas instâncias do Real, Simbólico e Imaginário.

2.2.1 Alienação e Separação

Apesar das várias modificações da teoria, há conceitos germinais, pilares, que

foram se edificando pouco a pouco, e o fato de pertencerem a um momento mais remoto

do edifício teórico não impede que sejam peças fundamentais no alicerce para o que

viria a seguir. Tais são em Lacan os conceito de alienação e separação, conceitos

utilizados para embasar o advento da subjetividade. A criança não habita apenas o

Imaginário. Seu corpo vivo é tomado pelo significante e a partir daí ela entra no jogo da

linguagem, o quer dizer encontrar e eleger significantes. Assim, entrar no Simbólico

equivale a encontrar um primeiro significante (S 1) para em seguida ligá-lo a outro, em

56

seguida a outro, formando assim uma cadeia, indefinidamente: esta cadeia é a cadeia

simbólica, o tesouro dos significantes.

Para falar da constituição do sujeito e do momento dessa sua entrada na

linguagem, Lacan dividirá os campos do sujeito e o campo do Outro, fazendo

corresponder a este último o lugar em que se situa a cadeia significante, em cujos

interstícios o sujeito deverá aparecer. O trajeto sujeito-Outro será definido como

circular, porém dissimétrico. Isso faz com que o encontro do sujeito com o Outro não

seja da ordem de uma adição, ou seja, o sujeito somado ao Outro, mas sim da ordem de

uma reunião, termos que Lacan toma emprestado da teoria matemática dos conjuntos.

Sabemos o que a matemática nos ensina da operação de reunião. Esta se daria

quando, num encontro de dois conjuntos, tivéssemos elementos comuns a um e outro.

Lacan exemplifica: se tenho dois conjuntos de cinco elementos e tenho aí dois

elementos comuns aos dois conjuntos, na operação de reunião terei oito elementos e

não dez elementos, o que seria o caso da adição. Há na reunião, um elemento que

comporta qualquer que seja a escolha que se opere, um nem um, nem outro. (LACAN,

1964b/1985, p. 200)

Esse encontro do sujeito com o Outro não é traduzido, portanto, através de uma

operação de soma ou adição, mas consistirá, isso sim, em uma operação de reunião. Ou

seja: em vez da adição sujeito mais Outro, temos uma reunião, o que ocasiona uma

perda para o sujeito. Ele tenta mostrar aqui que os problemas da perda já estarão

embutidos nesse momento, pois o que há em comum entre o campo do sujeito e o

campo do Outro é a falta. Para melhor exemplificar esta perda do sujeito, Lacan alude à

“libra de carne”, que, em O Mercador de Veneza, é o lastro com o qual Antônio

cauciona sua dívida com o agiota Shylock. Caso a dívida não fosse paga, este teria o

direito de exigir uma libra de carne, que seria cortada de qualquer parte do corpo de

agrado do credor, como lemos na Cena III do Ato I:

Shylock a Antônio: (...) Será estipulado que, se não pagardes em tal dia, em tal lugar, a soma ou as somas combinadas, a penalidade consistirá numa libra exata de vossa bela carne, que poderá ser escolhida e cortada de não importa que parte de vosso belo corpo. (SHAKESPEARE, 1594-6, p.301)

Essa libra de carne torna-se, assim, uma metáfora da perda que o sujeito sofre

para entrar no simbólico. Esta operação de subjetivação se dará em dois momentos: o

57

momento da alienação e o momento da separação. Assim que o bebê encontra o Outro

materno, este lhe outorga os primeiros cuidados e o acolhe em momento primeiro,

momento que Lacan denomina alienação. A alienação é própria do sujeito, nos diz ele

(1964a/1998, p.853-4). Na alienação, explicará Laurent,

o sujeito é produzido dentro da linguagem que o aguarda e é inscrito no lugar do outro. Ele está dividido, despedaçado entre as pulsões parciais, parciais na medida de que sempre há perda... (1997, p.43)

Esse é o momento em que o sujeito aparece/desaparece no Outro, movimento

que a teoria lacaniana identifica como único, mas provido de um batimento, uma

pulsação de abertura e fechamento. O movimento de alienação estará sempre ligado ao

significante: num campo de objetos, não é concebível nenhuma relação que gere a

alienação, a não ser a do significante. (LACAN, 1964a, p.854) Por isso, poderíamos

falar desse momento alienante como não identitário, em que o sujeito é um ser sem

objeto .

O que no momento da alienação ainda opera é uma soldagem entre o sujeito e o

Outro, completude à qual advirá o segundo tempo da constituição subjetiva: a

separação. Soller nos apontará que essa é a grande novidade desse momento do ensino

de Lacan:

a alienação é o destino, destino ligado à fala. Nenhum ser falante pode evitar a alienação. A separação requer que o sujeito ‘queira’ se separar da cadeia significante. É algo que pode ou não estar presente. (SOLLER, 1997, p.62)

Lacan liga expressamente a separação à Ichspaltung, clivagem do eu, presente

na teoria freudiana: [na separação] reconheceremos o que Freud denomina Ichspaltung

ou fenda do sujeito (LACAN, 1964a/1998, p.856). Iremos nos deparar com o termo

clivagem primeiramente como tributário de toda uma corrente de pensamento

psiquiátrico do século XIX que trabalhava a duplicidade de consciência. Por exemplo,

Bleuler identifica na Spaltung, clivagem, o distúrbio da esquizofrenia. Já no percurso de

Freud, num primeiro momento o termo clivagem será referido à separação consciente –

inconsciente e só mais tardiamente particularizado como Ichspaltung, clivagem do Eu.

Este último, um conceito que começa a ser esboçado em O Fetichismo (1927b/, 1973,

III, p.2.993) e que será definitivamente estabelecido no artigo inacabado A Clivagem do

58

Eu nos Processos de Defesa (1938a/1973). Nesse escrito, a partir de um caso clínico,

Freud demonstra como a clivagem do Eu mantém uma dualidade no próprio eu, sem

que suas partes se conflitem. No caso em que duas reações opostas em um conflito se

mantêm como núcleo de uma clivagem do Eu (Ichspaltung). (Op. cit, p. 3.375)

Convém fazermos notar que o termo clivagem não é um conceito unívoco em

Freud, podendo por vezes ser recoberto pela noção de renegação. Em Lacan, a clivagem

estará ligada à constituição do sujeito,

desde sempre representado de um significante para outro, indefinidamente clivado por força da cadeia significante (...) o sujeito reencontra no desejo do Outro sua equivalência ao que ele é como sujeito do inconsciente (KAUFMANN, 1996, p.83-4).

A separação representa um momento fundamental para o sujeito, pois será o

ponto de incidência em que ele irá se deparar com o desejo do Outro, antes mesmo que

ele o possa chamá-lo de desejo, e muito menos imaginar seu objeto (LACAN,

1964/1985, p.858). Na separação,o sujeito perde sua dimensão natural. Nesse momento,

haverá uma intersecção das duas faltas, a do sujeito e a do Outro, de onde Lacan extrai o

objeto a: ao evocar a cessão do objeto de desmame, a operação de separação tem como

resto um objeto que faltará para sempre e que será, por isso, causa de desejo. A falta é

articulada por Lacan em todas as suas conseqüências, mas já estará presente na

psicanálise desde o Projeto..., a partir da idéia de que o seio e o desmame cavarão uma

falta que originará o desejo.

É importante o pressuposto de que a relação do sujeito com o seu corpo fica

além da imagem especular. Esse ultrapassamento é a condição de saída da operação de

alienação e separação, em um espaço no qual o sujeito “pulsa”, aparecendo e

desaparecendo no desejo do Outro, emergindo em intervalos, enquanto o sentido faz

sua aparição (SCHEINKMAN, 1995, p.63)

Uma outra idéia de suma relevância é a de que, enquanto a alienação é um

primeiro tempo fundado na operação de reunião, a separação é fundada no momento de

intersecção, que surge do recobrimento de duas faltas. (LACAN, 1964/1985, p.201).

Isso é, se pensarmos novamente na teoria dos conjuntos, o conjunto vazio estará contido

em qualquer conjunto. Na derivação lacaniana da constituição subjetiva, o que há de

intersecção entre o sujeito e o Outro é a falta, o vazio. Uma falta recobre a outra,

59

completa Lacan (Ibidem, p. 803) Outro ponto fundamental é o de que a alienação estará

do lado do ser (o futuro sujeito), enquanto que a separação estará do lado do Outro, do

sentido, ou seja, o sujeito virá ao campo do Outro através do sentido (o mundo dos

significantes). Entre um e outro, estará o não senso, o inconsciente e o sujeito terá

obrigatoriamente que fazer essa escolha para habitar o Simbólico.

Na dialética sujeito/Outro, estarão contidas, portanto, as operações de alienação

e de separação. A alienação (o ser) deve entrar e operar na separação (o Outro, o sentido

dado pelo Outro, tesouro de significantes). Ao alienar-se, o sujeito perde alguma coisa,

mas ganha vida simbólica. Para existir, deve perder. Lacan usa o que ele denomina vel

de exclusão, como correlativo para uma escolha que envolva uma opção radical, como

por exemplo, a bolsa ou a vida. Se escolher a bolsa, o sujeito perderá a ambos, se

escolher a vida, tem a vida decepada (LACAN, 1964/1985, p.201) (a falta, a castração).

É o ingresso que deve comprar, o preço a pagar, a libra de carne para entrar no

Simbólico.

A vida constitui-se no movimento de alienação e separação e ao alienar-se na

linguagem, o sujeito entrega-se ao Outro e ao significante, não apenas com seu

psiquismo, mas também com seu corpo. Lembremo-nos da referência freudiana de que

o Eu é acima de tudo um Eu corporal, a projeção de uma superfície

(FREUD,1923b/1973, III, p.2.709). Portanto, ele não se dirige “desencarnado” ao

campo do Outro. Sua libra de carne estará lá para lastreá-lo. É seguindo esta lógica que

nos permitiremos sustentar, nas próximas páginas deste trabalho, que, ao alienar-se na

droga, o sujeito melancólico, entregará não apenas o Eu à tirania e à crueldade do Super

Eu, mas também o próprio corpo, do qual nem sempre cede apenas uma libra.

O ser

(o sujeito)

O

não-senso

O sentido

(o Outro)

a bolsa a vida

corpo

60

Antes de avançarmos em nossas considerações, gostaríamos de ressaltar que

nosso objetivo nesta breve exposição sobre o lugar do corpo na teoria psicanalítica foi

apontar que, mesmo sem uma teoria específica sobre o corpo, podemos claramente

identificar, na leitura daqueles a quem consideramos seus expoentes maiores – Freud e

Lacan –. uma visão do corpo muito além daquela apontada tanto pela medicina quanto

pela psicologia.

Para ilustrar nossa posição, fazemos nossas as palavras de Garcia-Roza, segundo

as quais não se trata de afirmar o corpo psicanalítico como antítese do biológico, mas

simplesmente de afirmá-lo como diferença (1990, p.84).

2.3 O CORPO MELANCÓLICO

O corpo advém, como vimos, de onde outros desejos estiveram. O sujeito

humano é uma valise que carrega vidas e desejos passados, compósito de vozes, toques

e olhares pretéritos. Trajeto longo e acidentado, cujo ponto final desemboca na

constituição subjetiva. Ser um sujeito dono de seu próprio corpo é um rebuscado

percurso que passa longe da linha reta, um percurso cujo desenho beira os arabescos

mouriscos.

A esse percurso junta-se uma gramática, que o sujeito deve dominar para se

afirmar. “Eu sou” talvez seja a mais difícil e delicada das operações de linguagem, pois,

para que tal afirmação se efetue, é necessária a pré-condição de uma porosidade do

sujeito em relação ao Outro, que lhe impõe um simbólico e do qual o sujeito precisa se

separar, ainda que isso acarrete uma experiência de perda. Conforme já mencionamos, o

sujeito adentra o campo do Outro não apenas com o psiquismo, mas também com o

corpo: o sujeito do inconsciente só toca na alma por meio do corpo (LACAN,

1974/1993, p.19) Será a partir daí que irão se atrelar as posteriores classes e funções

gramaticais, percurso do sujeito pelo mundo dos significantes, operadas a partir das

identificações primárias e secundárias, resultado dos processos de alienação e

separação.

Podemos depreender do que já afirmamos em relação à imagem corporal, que

esta dependerá de uma arquitetura particular e delicada, em que o olhar do Outro

61

funcionará como uma argamassa fundamental que permitirá que, de um corpo

despedaçado advenha, mais tarde, um sujeito. É nos tabuleiros desse xadrez dramático e

determinante que se inicia um tipo de jogo no qual o sujeito-iniciante se depara com as

leis do Outro-veterano. Ignorar ou recusar essas regras terá seus efeitos, às vezes

indeléveis. Esse Outro (em geral, a mãe ou seu preposto) será a condição sine qua non,

cuja qualidade de presença e cuidado determina a qualidade dos primeiros despertares

da criança, da mesma forma que as possibilidades da sua estruturação.(LAMBOTTE,

1997, p.197)

O que o bebê recolhe dos cuidados cotidianos que recebe transcende em muito

os objetivos ditados pela puericultura ou pelo higienismo. O preenchimento puro e

simples de tais condições não assegura a ele o sentimento de ser depositário do desejo

materno. Aí reside a sutileza desse momento: há um mais além nos cuidados maternos,

que será recolhido pelo bebê e utilizado posteriormente como matéria-prima em sua

constituição psíquica.

Sabemos que a captura da mãe pelo bebê irá se fazer por meio de fragmentos

imaginários que ele recolhe através do campo perceptual na operação de introjeção, e

que esta captura é primariamente fragmentada e parcial. Assim, não só o toque,

essencial na operacionalização da maternagem, mas também o olhar e voz da mãe serão

elementos primordiais no que se converterá no processo identificatório do sujeito. Na

constituição corporal (simbólica) do sujeito, vários elementos estarão em jogo e os

objetos parciais serão fundamentais não apenas na condição de presença-ausência, mas

também pela qualidade do olhar da mãe que no bebê se deposita. Esboçado pela

primeira vez no olhar do Outro, o sujeito só pode encontrar no espelho os contornos da

silhueta imaginária que se lhe concedeu com maior ou menor benevolência.

(LAMBOTTE, 1997, p.193)

Assim, mais que um “tempo de ver”, esse primeiro momento do estádio do

espelho seria um tempo atributivo do voto materno, ao qual se agregariam os tempos

seguintes de compreensão e conclusão. Essa operação seria para os sujeitos em geral,

mas não para o melancólico. Retomemos por um instante os conceitos de Lambotte: sua

leitura da melancolia traz o conceito da moldura vazia, conceito que retraça os

caminhos do estádio do espelho proposto por Lacan, a partir de Wallon, também

apresentados por nós anteriormente.

62

É no momento em que, ao ser olhado pela mãe, o “instante do ver” – primeiro

dos tempos da constituição do sujeito – se produz uma fissura que precederá o advento

do sujeito melancólico. Esse ato, esse olhar, na melancolia, terá a condição de dar ao

sujeito um estatuto de existência, mas não um estatuto de atribuição (HERZOG, 2003).

A “moldura vazia” significaria um “acidente” que produziria então um sujeito que

“existe”, porém sem atributo.

No estado de dependência da criança em relação à mãe, jogam-se as primeiras relações afetivas, onde o olhar não é separável do corpo. Mais olhar, mais corpo. (LAMBOTTE, 1997, p.179)

Se o sujeito “é” apenas como existente, como “vivo”, que tipo de recheio

narcísico poderá ser amalgamado a partir desse olhar materno que apenas o atravessou?

Como preencher o círculo traçado pelo olhar-compasso da mãe, que se apoiou no centro

do sujeito, descreveu seu giro, 360 graus de bordas que deveriam contornar um desejo

que ali não se depositou?

Este olhar que se perde para além do corpo do sujeito, atravessando-o, não é um

“olhar que não vê”. Esse bebê poderá mesmo vir a receber os cuidados maternos, porém

esta será uma operação protocolar, burocrática, destituída de desejo.

Trata-se de um olhar incapaz de apostar que ali tem um semelhante, incapaz de inventar imaginariamente um psiquismo. Faz moldura, atesta a existência, mas não é capaz de dar atributos, predicar. (...) Ele é uma forma, um corpo, uma imagem, mas não o projeto dos pais. (HERZOG; PINHEIRO, 2003)

A apatia do melancólico em relação ao próprio corpo parece apontar para uma

reminiscência do sujeito deste momento não atributivo. O corpo anestesiado da

melancolia é uma descrição presente já nos primórdios da psicanálise: existem notáveis

relações entre a melancolia e a anestesia, apontava Freud (1895/1973, I, p.3.495).

A clínica da melancolia nos mostra corriqueiramente o enorme esforço

empreendido pelo sujeito para realizar os atos mais prosaicos do cotidiano. Relatos

sobre a dificuldade em sentir o próprio corpo, que define como anestésico; a descrição

de carregá-lo como um peso ou como um fardo; a dificuldade em executar tarefas

simples, tais como comer ou banhar-se são comuns mesmo nos pródromos da

melancolia. Os mais simples cuidados consigo mesmo são vividos pelo sujeito como

63

uma tarefa penosa, inútil, não raro de execução quase impossível, que ele vive como se

nenhum esforço para ele próprio valesse a pena.

O melancólico vive uma sensação quase insuportável com o próprio corpo, em

que este é vivido como uma espécie de ectoplasma impessoal que ele arrasta atrás de si

(LAMBOTTE, 1997, p.237), um saco de pedras que tem atado a si e do qual se sente

cativo. Seu corpo representa para ele uma casa em ruínas que lhe foi outorgada pelo

Outro, lugar que ele – sujeito - deveria habitar, mas que, em oposição a isso, faz com

que se sinta exposto, desabrigado e vazio.

É de novo para a clínica que apontaremos para uma afirmação que parece ser

paradigmática da melancolia: “Não sou nada, estou vazio”. É com esta fala que o sujeito

em geral descreve a deserção de seu desejo. Parece não se tratar da perda de um objeto.

Diferentemente, o que nesse sujeito parece estar perdido é o momento atributivo que

não veio do Outro, que não o iniciou no campo do desejo e que acabou por lhe

consagrar o estatuto de uma existência sem recheio. Desempregado psíquico do mundo

do grande Outro, parte para sua “grande jornada noite adentro”. Noite íntima,

indivisível, interior. O melancólico

não tendo encontrado o olhar desejante do Outro, o limite no infinito do que teria sido o objeto de desejo se viu reduzido, como uma casca de desgosto, ao que resta do Outro ausente, a saber, o nada. (LAMBOTTE, 1997, p.241)

Exílio. O sujeito carrega consigo a marca identificatória com o nada19. O mundo

será sempre interessante para as pessoas, mas não para ele. O mundo e os objetos do

mundo: o que recolheu daquele primeiro olhar materno sem interesse, desejo e

investimento serão a matéria-prima da resposta global de sua álgebra – tudo é igual a

zero. O melancólico perscruta o mundo valorando-o negativamente. Nada vale a pena,

nada tem valor, tudo se iguala. Ele desbasta as arestas do mundo anulando as diferenças,

colabando as bordas de maneira a anular e reduzir todas as diferenças e destituir todos

os valores. O que endereça ao Outro trará o colorido de uma certa perplexidade

pseudofilosófica, marcada por um niilismo segundo o qual nada terá sentido. Seu olhar

estará desnudo de intencionalidade para com todas as coisas. Ele passa a operar através

de uma negação da intenção. Para o melancólico, nos apontará Lambotte,

19 Notas pessoais do Encontro de Itatiaia com Marie-Claude Lambotte. Abril/2003

64

... nada tem sentido, não há verdade. Há a indicação de uma crença no absoluto. Se o cotidiano é imperfeito, por que viver? Se a realidade é insignificante, é por traz dessa realidade absoluta que há “une vraie vérité” - uma verdadeira verdade. (Ibidem)

Através da crença no absoluto, o que brilha através da realidade é a fusão, algo

da ordem do que há de mais totalizante e regressivo. Isso nos situará nas esquinas do

gozo: qualquer coisa que não se simbolizou completamente. O absoluto é regressivo e

alienante. Como nos ensina Lacan sobre a alienação, não é a falta que está em jogo. São

os significantes, a linguagem. Não há ainda a falta porque sequer há objeto, pois este só

se constitui na separação. Aí, sim, a falta advirá como operadora, a definir a quem

concerne o sujeito e o objeto. Na melancolia, o sujeito é vítima de um luto que ignora

tanto a origem quanto o objeto. (Ibidem, p.261)

Como que numa defesa final, alguns desses sujeitos decidem opor ao vazio

alienante, um pleno. Esse vazio, velho conhecido, aponta para uma falaciosa

possibilidade de preenchimento. É então ali, do outro lado da rua, que encontramos

freqüentemente a toxicomania. O melancólico, um pseudofilósofo, pesquisador da

verdadeira verdade, um desabrigado do desejo a errar na planície do banal cotidiano,

encontra muitas vezes esse abrigo e abre sua porta. É como um hóspede de ocasião que

entrará nesse edifício, é como prisioneiro que não mais sairá dele.

2.4 O CORPO TOXICOMANÍACO

No tópico anterior, ao tratarmos do corpo melancólico, pretendemos realçar a

anestesia; a identificação ao nada; a sensação de peso; a sensação dolorosa do vazio.

Realçamos o momento em que poderá haver um deslizamento do corpo vazio para uma

tentativa de busca da totalidade através da drogadicção. Estamos agora diante da tarefa

de acrescentar um passo a mais em nossas conjecturas: pensamos poder identificar na

crueldade com a qual o toxicômano trata o seu corpo, a mesma tirania, o extremo rigor e

os piores castigos infringidos pelo Super Eu ao Eu descritos por FREUD em sua última

alusão à melancolia. (1931/1973, III, p.3.133) No entanto, achamos necessário fazer

antes disso uma pequena incursão a respeito das contribuições freudianas ao Super Eu e

à pulsão e morte.

65

2.4.1 Uma Nota sobre o Super Eu e a Pulsão de Morte

Com relação ao Super Eu, consideramos necessária uma pequena digressão

sobre a construção deste conceito na obra freudiana, que se dá de forma evolutiva.

Tanto a denominação quanto as funções específicas desta futura instância e suas

relações com as demais só tardiamente se instalarão no seio do freudismo. Foi

necessário que ingredientes teóricos se juntassem à massa dos conceitos para que a

fermentação pudesse se fazer.

A primeira contribuição para adensá-la concretiza-se no texto de 1914, Uma

Introdução ao Narcisismo, já mencionado em outros momentos do presente trabalho. O

Super Eu aparecerá aqui em seu estado germinal, sob a forma da transição do Eu Ideal

para o Ideal do Eu e terá como função manter a perfeição narcísica infantil. Um

exemplo efetivo desta ação usado por Freud se daria no momento da cisão do Eu na

melancolia, supervisionada por uma instância crítica, igualmente referida neste

trabalho. Já em 1917, mesmo ano da publicação de Luto e Melancolia, o núcleo do Eu

aparecerá como um órgão inspetor formado pela consciência moral (1917/1973, III,

p.2.434), afirmação que será retificada em uma nota de 1923, quando o tal núcleo será

situado por Freud no sistema P.-Cc. Após nova retificação, no texto O Humor

(1927c/1973, III, p. 2.999), o núcleo da consciência moral residirá no próprio Super Eu.

Em 1921 a melancolia servirá novamente de paradigma para a questão da

introjeção do objeto, fazendo com que Freud repita, ipsis literis, a metáfora do objeto e

sua sombra. Mas servirá também para que se realize uma reaglutinação das funções

críticas em torno do Ideal do Eu (Ideal-Ich), responsável pelas funções de auto-

observação, consciência moral, censura onírica e influência no recalcamento, além de

ser considerado o herdeiro do complexo de Édipo. (1920-1921/1973, III, p.2.387-8)

Em 1923, Freud publicará O Eu e o Isso, onde será cunhado o termo Super Eu

(Uber-Ich) para designar uma outra instância, que, embora originária do Eu, será

destacada e independente dele, enquanto que será próxima do Isso. Esse texto possui

injunções que se tornaram axiomáticas para a psicanálise. Por exemplo, o Eu é corporal

e será formado a partir das identificações que substituem investimentos abandonados

pelo Isso; a primeira dessas identificações originará o Super Eu, que deve sua relação ao

Eu a partir de dois fatores: foi a primeira identificação e ocorreu ainda quando o Eu era

66

muito frágil, e, em segundo lugar, será o herdeiro do complexo de Édipo. Um dos

poderes do Super Eu será o domínio do Eu, que lhe obedece, como a um imperativo

categórico. Fica muito clara no texto a potência de crueldade da nova instância, que

pode ser supermoral ou tornar-se tão cruel quanto o Isso pode ser. (FREUD,

1923b/1973, III, p.2.711)

O papel do Super Eu consolida-se na teoria, o que leva Freud a afirmar que a

atitude desta instância deveria ser levada em consideração (o que até então não havia

sido feito) em qualquer forma de enfermidade psíquica. (1923b/1973, III, p.2.743)

Assim, o legado freudiano prospera, ratificando a função opressora e tirânica do Super

Eu, agora como instância diferenciada, dotado de certas independências e com

intenções próprias. (FREUD, 1931/1973, III, p. 3.134)

O paradigma psicopatológico da ação despótica superegóica será, mais uma vez,

a melancolia, muito embora este trabalho seja aberto com esclarecimento de que a

etiologia do adoecimento psíquico em geral é sempre o resultado de um conflito entre

as exigências pulsionais e a resistência que se coloca a elas. (Ibidem, p. 3.132) Ou seja,

ainda que o crivo do Super Eu esteja presente nas interações psíquicas, a exacerbação

deste modus operandi estará na melancolia, na neurose obsessiva e nos sentimentos de

culpabilidade inconscientes da histeria, conforme Freud já explicitara em O Eu e o Isso

(1923).

Nesse momento de sua obra, Freud retoma a geografia do Super Eu, que se

confirma ancorada nos ideais e na identificação com os modelos parentais: a

instauração do Super Eu pode ser descrita como um caso plenamente realizado de

identificação com a instância parental. (1923c/1973, III, p.3.) O Super Eu continuará a

encarnar o papel de instância crítica, observadora, proibitiva e aparecerá nos textos

finais da obra freudiana como o principal fator interno para a renúncia pulsional do

sujeito. (1934-8/1973, III, p.3.311)

Freud não restringirá a expressão do modelo do Super Eu apenas às exigências

parentais: todos que venham a representar algum tipo de autoridade na vida posterior do

sujeito encarnarão de alguma maneira esta função. O final da teoria subordinará tanto o

Isso quanto o Super Eu à vida pretérita do sujeito, ficando o Eu como representante das

vivências próprias do indivíduo; quer dizer, pelo atual e acidental. (1938b/1973, III,

p.3.380) No entanto, Freud concluirá este texto dizendo-nos que o Super Eu assume

67

uma posição intermediária entre o Isso e o mundo exterior, reunindo ao redor de si

influências do presente e do passado. Além disso, mais ainda, considerará o papel da

mediação superegóica, um exemplo de como o presente se converte em passado.

(FREUD, 1938a/1973, III, p.3.418)

Permitimo-nos esta pequena incursão na evolução teórica do Super Eu para

marcarmos, primeiramente, o lugar delegado por Freud a esta instância, considerada um

conceito operatório e imprescindível na assunção do sujeito à lei e à renúncia pulsional,

passos que serão fundamentais à entrada na cultura e no simbólico. Herdeiro do

complexo de Édipo, antes de ser um tirano, é o Super Eu que livrará o sujeito do

excesso amoral do Isso, moeda de ingresso no respeito aos limites do Outro.

Um segundo aspecto ainda não mencionado trata das relações estreitas entre a

instância superegóica e a pulsão de morte. Apesar de reconhecer seu caráter silencioso –

a pulsão de morte é silenciosa e todo o fragor da vida parte principalmente de Eros

(1923b/1973, p.2.720) – Freud aponta suas expressões no sadismo, na compulsão à

repetição e na reação terapêutica negativa. Segundo Roudinesco, há uma insistência do

ponto de vista freudiano, de que a pulsão de morte não pode ser localizada ou isolada,

no entanto, a exceção estará na experiência da melancolia. (ROUDINESCO; PLON,

1998, p.631)

De fato, com relação a esta afecção, há uma ênfase na ação da pulsão de morte:

a noção de superego se entrecruza com a de pulsão de morte e o retorno de uma

dimensão de ataque pulsional, vai incidir sobre o estudo do superego. (CARDOSO,

2002, p.26) O relato freudiano dá conta de que o sadismo mostrado pelo Super Eu ao

fustigar o Eu virá encharcado pela pulsão de morte: o que influencia o Super Eu é a

pura cultura da pulsão de morte, e de fato, a melancolia impulsiona às vezes o Eu à

morte. (FREUD, 1923b/1973, p.2.724) É aí que residirá a razão da crueldade superlativa

do Super Eu, que se torna algoz do Eu, acossando o sujeito melancólico no sofrimento.

Esta particularidade nos remete à nossa questão, que tentamos fazer derivar da

expressividade melancólica. Parece-nos haver, na toxicomania, também uma relação de

crueldade superegóica não para com o Eu, caso da melancolia, mas uma crueldade em

relação ao corpo do sujeito. Consideramos este um imbricamento fundamental entre a

toxicomania e a melancolia. A indiferença para com os destinos do próprio corpo revela

que o melancólico não pode o tomar como entidade narcísica. Na toxicomania,

68

conforme apontamos anteriormente, teremos no corpo um correlativo do Eu assujeitado

ao Super Eu na melancolia clássica. Porém, em vez da desfalicização e da indiferença

melancólica, haverá aqui um passo além: a atrocidade e a auto crueldade.

ENRIQUEZ liga a falta do prazer identificatório à eleição de um corpo de

sofrimento, marcado pela anedonia, desabitado, sem afetos (1999, p.146), imagem que

muito bem serviria para descrever o corpo melancólico, onde encontraremos a anestesia;

a identificação ao nada (“não tenho valor”; “sou um zero à esquerda”), a sensação

dolorosa do vazio e a vivência de um corpo que é sentido como uma espécie de

ectoplasma impessoal que ele arrasta atrás de si (LAMBOTTE, 1997, p.237).

Realçamos a passagem do corpo vazio que busca a tentativa de totalidade

através da drogadicção. O vazio que o sujeito evita daí em diante é o da abstinência e o

volume da substância necessário para preenchê-lo torna-se sempre crescente, numa

desobediência cega às leis da pletora, passagem que claramente evoca a situação de

passagem de corpo de sofrimento ao corpo de necessidade. (...) O corpo da

necessidade, jamais escutado no momento querido, que não indenizou quem se

encarregou dos cuidados com a criança, (ENRIQUEZ, 1999, p.147) servirá de tela à

metaforização impossível de uma falta indizível, que só pode se expressar pela via da

autocrueldade e desrespeito às leis da suportabilidade, vindo a ilustrar o que, sob

“licença teórica”, poderíamos considerar uma pura cultura da pulsão de morte.

O corpo toxicômano furado, encharcado, erodido, defronta-se com o imperativo

categórico da potência da droga. O uso cada vez mais transbordante e agressivo da

substância provoca um dia a falência do corpo, pela via da overdose, versão de

passagem ao ato, que só sob uma ótica ingênua poderíamos considerar acidental.

(Ibidem)

Podemos falar

da experiência toxicomaníaca como uma prática de escape, que age diretamente sobre o corpo e resiste a se integrar em qualquer cadeia ou filiação simbólica – o desvanecimento próprio ao êxtase da narcose – funcionando para o sujeito como uma solução para a angústia. (BITTENCOURT, 1994, p.52)

A subjetividade do melancólico, diante da ausência de atribuição, será, a partir

de sua entrada na toxicomania, demarcada unicamente pelo corpo e pelas sensações. O

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corpo vazio da palavra será matéria-prima do corpo-copo de sensações, que a partir daí

estará sempre em busca da completude evanescente provocada pela substância.

Olivenstein nos fala desse momento em que a opção pela droga torna-se uma forma de

existência, que permite ao sujeito tudo encontrar na centelha fusional com o produto.

(2003, p.39) É essa nota promissória que o sujeito oferecerá na barganha pelo êxtase da

droga. A palavra não lhe serve de garantia e é com as sensações que assina sua

gramática corporal.

Boire comme un trou (beber com um buraco), dizem os franceses. A tentativa de

preenchimento muda o corpo em um recipiente aberto... Enchimento, esvaziamento: na

prática é a mesma coisa. (SISSA, 1999, p.10) Desobediente das leis físicas da pletora, o

corpo toxicômano desafia todos os limites de continência. Como se não tivesse fundo,

entra, literalmente, no círculo vicioso, que o faz girar incessantemente entre a angústia

dolorosa da abstinência e o excesso insuportável de doses cada vez maiores. A ironia

reside na vivência de que quanto maiores as doses, maior o vazio. O quebrador de

inquietação perde sua função primeira tornando-se o causador de inquietação. A

substância que irá aos poucos erodir as mucosas e os órgãos cava também a mina da

angústia, cada vez mais caudalosa. Para o melancólico que encontrou a droga, o

absoluto possui agora um objeto. Seu corpo ascende à condição de ser preenchido com

um objeto absoluto, de maneira absoluta.

2.5 A HISTÓRIA DE MARIA

Maria é uma mulher de 55 anos. Seu prontuário relata 23 internações pregressas

e 12 episódios de overdose. Em virtude da longa vigência em uso de substância,

apresenta severo comprometimento gástrico, hepático e cardiorrespiratório. Justifica a

demanda de tratamento após ultimato do clínico do serviço hospitalar em que estivera

internada pela última vez.

Na primeira entrevista, menciona ser ex-presa política e relata o início do uso de

cocaína e álcool após sua libertação. Nossos primeiros encontros são marcados por suas

inflamadas críticas à situação econômico-política, com poucas referências à sua história

de vida. Aos poucos, começa a falar do período de militância política. Sua adesão à

70

causa fora intensa a ponto de fazê-la participar de ações arriscadas, o que a alçou a uma

posição de comando na organização subversiva da qual fazia parte. A ousadia de suas

ações exigiu que entrasse para a clandestinidade, o que fez com que abandonasse a

universidade que cursava e encerrasse o relacionamento com um rapaz de quem gostava

muito.

A prisão de um companheiro fez com que ela e um outro viessem a ser

procurados e presos pelos órgãos de repressão. Durante dias foram brutalmente

interrogados e torturados. Maria permaneceu na prisão por vários meses e, quando

libertada, decidiu sair do país, interrompendo todos os laços que mantinha com a

organização e a família. “Minha primeira dose foi no aeroporto, jamais havia bebido.”

Relata ter se embebedado por seis meses, quase ininterruptamente. Sobrevivia fazendo

pequenos serviços, dando aulas de português até encontrar uma comunidade hyppie,

onde passou a viver e a experimentar todos os tipos de droga.

O final de uma relação amorosa fez com que retornasse ao Brasil. Aqui,

continuou o uso pesado de álcool e secundariamente de cocaína, o que, com o passar

dos anos, acabou por desencadear sua longa série de internações. Tempos depois, Maria

foi selecionada para trabalhar em uma grande empresa. Todo o dinheiro que recebia era

gasto na compra de álcool e cocaína. Se primeiramente o uso de substâncias ficara

restrito aos horários em que não estava no trabalho, com o passar dos anos o consumo

foi se tornando alastrante. No período em que permanecia na empresa, como recurso

para evitar o hálito etílico, Maria inala cocaína.

Esta estratégia falha pelas alterações de comportamento que passou a apresentar,

até por fim ser demitida. A partir daí, volta a fazer pequenos trabalhos e dar aulas

particulares. Começa a freqüentar os Alcoólicos Anônimos, passa a fazer uso

intermitente de álcool e usa a cocaína apenas recreativamente. No entanto, suas recaídas

tornam-se cada vez mais graves, fato que se repetiu durante anos.

Sua decisão de procurar o IPUB é o que classifica como a “última cartada”. Ela

adverte a analista de que nada se lembrava de sua infância, o que não considerava

relevante, por situar no alcoolismo seu verdadeiro problema. O correr das sessões faz

com que Maria comece a entrar em sua história. Relata que, fora dos horários de

atendimento, surpreende-se tentando lembrar-se de seu passado, movimento inverso ao

71

que fizera até então, desde que saíra da prisão. “Minha tentativa de apagar tudo

começou com a tortura”.

Refere-se, “pela primeira vez na vida”, às brutalidades que sofrera. Sua recusa

em passar informações sobre a organização clandestina de que faziam parte levara os

algozes a torturar diante dela, seu companheiro, para que ela finalmente relatasse os

detalhes que sabia. Sua resistência no interrogatório, no entanto, levou-o a perecer

diante dela. Recontar esta cena é de tal forma angustiante para Maria que a analista

decide remarcar o próximo horário para aquele mesmo dia. Nesta segunda sessão, a

paciente dá-se conta do silêncio que mantivera consigo mesma por todos aqueles anos e

da culpa que sentira pela morte do companheiro. A analista pergunta-lhe que outra saída

poderia ter tido, já que se encontrava tão impotente quanto o amigo que perecera diante

dela. Ela concorda, e lhe é apontado que, talvez, durante todos esses anos, estivesse

refém de um débito, cujo pagamento era impossível.

Este momento alterou de forma marcante o curso do tratamento. A partir daí,

Maria passa a falar de sua infância e adolescência. As lembranças que traz são a

indiferença da mãe, “uma mulher omissa” e a crueldade do pai para com seus três outros

irmãos. Este, um imigrante europeu, entrevia na boa performance acadêmica a única

possibilidade de sucesso dos quatro filhos. Nos finais de semana, costumava submetê-

los a uma sabatina, em volta da mesa de jantar da família. A punição para as respostas

erradas eram castigos físicos. Maria, pela excelência de seu potencial cognitivo, sempre

respondia o que lhe era perguntado, o que a livrava de receber castigos.

Consegue lembrar-se que, após tais momentos, culpava a si própria por não ter

sido punida como os irmãos; e à mãe culpava por jamais ter interditado a punição da

prole. A omissão da mãe e seu desinteresse pelos filhos passam a ser recorrentes em seu

relato. Revela que, até os sete anos, ela e os irmãos erravam de casa em casa, a ponto de

não ser possível saber onde passariam a próxima semana. A mãe tinha o hábito de

“distribuir” os quatro filhos pela casa de parentes, por não “agüentar cuidar de todos ao

mesmo tempo. Sempre fomos um peso para ela.” Relembra-se de que sempre fora uma

criança triste, o que resultou num baixo sentimento de auto-estima e de

inadequação.“Quando era criança, muitas vezes me sentia tão triste que pensava em

morrer... Sempre fui triste. Nunca consegui falar de meus sentimentos. Nunca tive

amigos, me achava uma traidora de meus irmãos. Por isso me isolava com meus livros”.

72

Primeiro, alienando-se nos livros, depois, em uma causa política em função da

qual teve que renunciar a todos os laços que fizera. Assim, Maria tenta tamponar a dor

de não se sentir causa de desejo de sua mãe. Mas isso não lhe será suficiente. Precisa

expor-se mais, tornar-se mais visível para ser punida. Assalta bancos, tem a foto

estampada em cartazes que a procuram. Quando finalmente é capturada, advém a

punição que tanto procurara. Se a cena da tortura na juventude por si só produziria um

efeito catastrófico, em Maria ela teve ainda o caráter de uma segunda cena, que fresou e

reatualizou a cena traumática infantil. A cena de uma mãe que “fechava os olhos”, não

amparando nem protegendo os filhos que sofriam ante a intrusão de um pai mortífero,

que anos mais tarde apareceu reencarnado da figura do torturador.

Se, neste segundo momento, Maria comparece com sua “libra de carne”, que é

torturada e esmagada, isso não é suficiente pela exigência que seu Super Eu encarnou.

Sua dívida é ainda muito mais arcaica. Continuar a pagá-la era seu imperativo

categórico. Já que não morreu na tortura, sobreviveu ao amigo como sobrevivera aos

irmãos, descobrirá na droga uma dupla função. A primeira, anestesiar sua dor psíquica,

antiga como a infância; a segunda, pagar novamente com o próprio corpo, sob a ação da

substância que não cessa de erodi-lo.

O consumo passa a ser regulado por esse princípio dito absoluto. Absoluto em seu poder (...) A atenuação do sofrimento nunca é estável, uma vez que o buraco da necessidade jamais cessa seu trabalho (...) O prazer não passa de alívio, compensação da dor (...) É uma soma algébrica igual a zero: anulado o sofrimento, sobe-se ao ponto da não-dor. (SISSA, 1999, p.68)

Assim, o melancólico que passa à toxicomania reedita a torpeza superegóica no

próprio corpo. A cena branca e íntima da crueldade melancólica desliza do interior do

sujeito para adquirir visibilidade no corpo toxicômano, exibindo-o como

espaço de sofrimento que acompanha o espaço de carência e de privação, transformado em fonte e lugar de sofrimento privado da droga. (AULAGNIER, 1985, p.153).

CAPÍTULO III

TOXICOMANIA E MELANCOLIA:

A RELAÇÃO COM A PASSAGEM AO ATO

CAPÍTULO III

TOXICOMANIA E MELANCOLIA:

A RELAÇÃO COM A PASSAGEM AO ATO

Pensarmos a questão do ato na Melancolia e na Toxicomania impõe

primeiramente um desdobramento conceitual entre quatro termos que se entrelaçam – e

não raro se superpõem – a partir do conceito de ato: o agir, a repetição, o acting-out e a

passagem ao ato. Apesar de vicinais, estes conceitos podem (e devem) ser diferenciados

entre si teórica e clinicamente.

De início, impõe-se uma dificuldade: a tarefa de se trabalhar a noção de ato na

psicanálise é de tal forma abrangente que, se imaginarmos uma linha hipotética que

tivesse como ponto inicial o conceito de ação específica e que seguisse sendo graduada

por conceitos diferenciados como os atos falhos, atos involuntários, repetição, acting-

out e passagem ao ato, teríamos como percurso final uma geografia que literalmente

percorreria a trajetória psíquica do sujeito de seu nascimento até sua morte.

Numa primeira tentativa de reduzir a amplitude desse espectro, consideramos

que se faz mister diferenciar as noções de ação e de agir, às vezes utilizadas

indistintamente. Assim, partiremos da noção de que, na teoria psicanalítica,

o agir seria compulsivo, repetitivo, irreal. A ação levaria em conta o princípio de realidade, por se submeter a ela como à Ananké, por se adaptar a ela [realidade] ou transformá-la; a ação seria, portanto, o resultado de um trabalho psíquico. (PONTALIS, 1985, p.6)

Balizados por esta tentativa de organização no campo conceitual, definimos

primeiramente que seria portanto do agir, e não da ação, que faríamos derivar a noção

de ato, noção fundamental à clínica psicanalítica, muito embora essa ênfase possa

parecer paradoxal, já que a psicanálise tem como ato inaugural o tratamento pela fala.

Mas é exatamente quando algo nessa fala falta ou se altera, que o corpo é convocado,

75

para aí fazer irromper o ato em sua conseqüência mais crua e fatal: a passagem ao ato.

Este fato nos mostra que na desregulação pulsional, é através do palco do corpo que se

anunciará a ânsia da satisfação a qualquer preço, que desalojará do silêncio e dará

expressão à pulsão de morte.

3.1 O ACTING OUT E A REPETIÇÃO

Uma segunda redução teórica viria com a necessidade de diferenciarmos acting-

out e passagem ao ato, conceitos robustecidos clinicamente em especial a partir dos

anos 40. O acting out – tradução stracheyriana do agieren freudiano – esteve presente

na psicanálise interfaceando teoria e técnica, desde os primórdios. Freud, após

testemunhar tantas e tantas vezes esta repetição cega das histéricas – que não sabem que

repetem – formula finalmente que o que parecia ser uma longa cadeia repetitiva e sem

sentido de situações e/ou atitudes similares na história dos pacientes, continha uma

mensagem. Consegue com isso atribuir, mais uma vez, sentido ao que não tinha sentido.

Escreve, então, que o analisando

não recorda nada que esqueceu ou recalcou, mas expressa-o pela atuação (agieren) ou atua-o. Não o reproduz como recordação, mas como ato; repete sem naturalmente saber que está repetindo. (FREUD, 1914b/1973, II, p.1.684)

Esta descoberta incide sobre a teorização da transferência, que já fora alvo da

apreciação técnica de Freud, que a partir daí a considera como fragmento da repetição e

zona intermediária entre a enfermidade e a vida (Ibidem., p.1.687), o que coloca a

repetição em um espectro mais amplo que a transferência. Esta ampliação permite a

Freud considerar que na repetição estará contido, tudo que foi incorporado a partir das

fontes do recalcado: as inibições, as tendências paralisantes e os traços de caráter

patológico. (Ibidem, p.1.685)

Tudo isso será interpretado como uma expressão das resistências do sujeito. Este

novo achado freudiano permitiu que atitudes dos pacientes no tratamento – tais como os

abandonos súbitos, atrasos, auto-sabotagens, etc. – fossem interpretadas sob uma nova

perspectiva: a de que um agir se repetia por conter uma mensagem que, embora cifrada

76

sob o selo do recalque, pulsava e se manifestava sob ele, conferindo-lhe uma

positividade.

A questão da repetição ressurgirá nas formulações de O Estranho (1919), em

que a vivência de estranheza do sujeito é trabalhada a partir da perspectiva da repetição.

As preliminares de uma novidade estariam germinando aqui; diz Freud:

assinalo, que a atividade psíquica inconsciente está dominada por um automatismo ou compulsão à repetição, inerente à essência mesma das pulsões, com poder suficiente para se opor ao princípio do prazer. (1919/1973, III, p.2.496)

Às vésperas da viragem teórica de 1920, a pulsão de morte já se anuncia nos

interstícios deste texto. É no ano seguinte, que a repetição se apresentará ligada ao

excesso pulsional. Mais Além do Princípio do Prazer (1920) permitirá que daí em

diante, a psicanálise venha a lidar com a repetição e com o ato munida do conceito da

pulsão de morte. Outro aspecto fundamental deste texto contempla as considerações

sobre o sadismo – uma pulsão de morte que é expulsa do Eu e que não aparece senão

no objeto – e em seu contraste, o masoquismo – a pulsão parcial complementar do

sadismo, que deveria ser considerada como o retorno do sadismo ao Eu (Op. cit.,1919-

1920/1973, III, p.2.535-6), que nos serão fundamentais para pensarmos na

autocrueldade presente tanto na melancolia quanto no ato de drogar-se. É a partir daí

que a repetição será definitivamente ligada à pulsão de morte: não podemos atribuir à

pulsão sexual a característica de uma compulsão para repetir, dirá Freud. (Ibidem,

p.2.539)

As conseqüências que podem ser extraídas desta afirmação são dramáticas e

fundamentais para a teoria pulsional que até então vigorava. Se havia na balança

pulsional um equilíbrio de forças e uma tendência à ligação (Bindung) e à superação de

diferenças que viriam sempre no sentido de conter a dispersão de energia e aglutinar

econômica e funcionalmente o aparelho psíquico, a pulsão de morte virá anunciar que,

para além dos já traçados destinos da pulsão, poderá haver uma desmesura, um excesso

pulsional não ligado e que se expressará, entre outras maneiras, pela compulsão a

repetir. Enquanto isso, haverá uma intensidade na pulsão de vida, que virá ligada à

representação.

77

Embora não seja a pulsão de morte em estado bruto, a compulsão à repetição

fala do domínio desta, apesar de podermos aí reconhecer um trabalho do Eu em se

expressar. Em certo sentido, é uma maneira que Freud tem de resgatar o traumático pela

via de uma tautologia e de uma ciclicidade que faz com que o sujeito, em vez de

rememorar, repita.

A compulsão à repetição como a alternativa forçada de uma rememoração

fornece elementos para se pensar a questão do acting-out. Vidal cita Fenichel, que deu

ao acting-out a equivalência do sintoma freudiano, com a especificidade de aliviar a

tensão interna pela via da descarga. (VIDAL, 1992-1993, p.63) O acting out seria algo

que comporta um saber opaco por parte do sujeito, um saber que ele não sabe, porém

um saber atuado, encenado, fora da cadeia associativa, mas que trilha a linguagem.

No entanto, é importante ressaltar duas coisas sobre o acting. A primeira é que,

embora seja uma expressão da repetição e de escape à cadeia associativa, o acting acha-

se sujeito aos limites impostos pela castração, ou seja, submete-se aos limites do Outro

ao qual ele se endereça. É possível dar-lhe um contorno e um destinatário. Nesse

sentido, opera-se uma característica fundamental quanto à sua emergência, no sentido

de que esta não se constitui como um jorro puro, mas, ao contrário, ele endereça-se a

um Outro. Está, portanto, referido a um campo transferencial e tem um endereçamento à

figura do psicanalista.

3.2 A PASSAGEM AO ATO

O acting out não é a expressão derradeira que possui o sujeito de lidar com sua

angústia. Para além dele encontra-se a passagem ao ato, movimento radical do sujeito

representado aqui pelo ato do suicídio, ruptura total com o Outro, em que o sujeito

decide imprimir com as tintas da pulsão de morte o que ele decide ser a última página

de sua história. Há uma genealogia da passagem ao ato? E, em caso afirmativo, onde

estaria esta nascente? A clínica é plena de exemplos afirmativos para a primeira

pergunta e a teoria psicanalítica tenta explicar a segunda.

Freud contemplou a questão inicialmente através de algumas situações clínicas,

mas uma referência ao suicídio aparece mais bem formulada em Psicopatologia da Vida

78

Cotidiana (1900), em que descreve as tentativas de suicídio conscientes e inconscientes.

Ali, considera que os ferimentos auto-infligidos são um compromisso entre essa pulsão

e as forças que se opõem a ela. (1900/1973, I, p.869) A visão de uma desintrincação

pulsional permanece nos anos seguintes e, embora ainda velada e não nomeada, a

pulsão de morte encontra-se já na teoria.

Conforme já nos referimos no capítulo I, no desenvolvimento de seu interesse

pela melancolia podemos seguir o percurso empreendido por Freud na teorização do

suicídio. Ele menciona as idéias suicidas no caso do Homem dos Ratos (1909) como

ligadas à autopunição, em virtude dos sentimentos de ódio do paciente dirigidos à avó

enferma de sua amada, o que teria causado o afastamento da moça por alguns dias. Na

tradução de Freud: “Mate-se para castigar-se de seus impulsos coléricos e assassinos!”

(1909/1973, I, p.1.547), foi o conteúdo original das idéias suicidas prevalentes que com

regularidade acometiam Lanzer.

No ano seguinte, 1910, Freud é convocado a falar num simpósio e ali menciona

a obscuridade do ato suicida, mas novamente realça a misteriosa causa para a pulsão de

vida subjugada: questiona-se se esta razão seria a libido desiludida ou se o Eu pode

renunciar à sua autopreservação, por seus próprios motivos egoístas. (1910a/1973, II,

p.1636). Este é um texto importante por intrincar de forma definitiva, o luto e a

melancolia, binômio que perdurou até os últimos escritos freudianos.

No texto de Luto e Melancolia (1915), as teorizações sobre a melancolia vêm

acompanhadas de uma advertência a respeito do perigo que ela oferece em função da

possibilidade de suicídio. Ali, a tendência à passagem ao ato é tratada como um enigma,

e atribuída ao retorno da libido à etapa do sadismo pela ação da ambivalência. Freud

contrapõe o temor de morte – classificado como expressão máxima da libido narcísica

– ao desejo de morrer, inexplicável sob esse ponto mesmo ponto de vista: é

incompreensível que o EU possa consentir em sua própria destruição. (FREUD,

1915a/1973, III, p.2.096) Considera que os impulsos suicidas neuróticos são uma

reversão dos impulsos homicidas orientados originalmente a outras pessoas e que se

revertem em direção ao próprio Eu do sujeito – idéias já expressas no Manuscrito N.

(FREUD, 1897/1973, III, p.3.573). Esclarece, no entanto, que até então a transformação

desses impulsos em atos continuava sem compreensão.

79

É neste momento que aponta para um possível aclaramento desta questão, que

poderia advir através da dinâmica melancólica. O Eu poderá se matar caso dê a si

próprio o mesmo tratamento hostil dispensado ao objeto. Assim, na regressão a partir

da escolha narcísica do objeto, o objeto foi de fato suprimido, mas provou ser mais

poderoso que o próprio Eu. Nas formas antitéticas – enamoramento e suicídio – o Eu é

subjugado pelo objeto. (1915a/1973, II, p.2.096-7)

Conforme apontado em vários momentos deste trabalho, a revolução na teoria

das pulsões se deu com Mais Além do Princípio do Prazer (1920), que trouxe a nova

idéia de uma pulsão não ligada, um estado fora da representação. A pulsão de morte

viria encarnar e nomear as alusões freudianas às “forças ocultas” que subjugavam a

pulsão de vida nos atos ou idéias suicidas. A partir de então, há uma seqüência na obra

que permite que seja aberta uma pequena trilha para se pensar melhor a questão da

passagem ao ato. Esta pode ser visualizada pelo viés dos novos aportes dados à teoria

pulsional, o que parece ter facilitado a Freud avançar nos desdobramentos da própria

pulsão de morte, no Super Eu e em suas ações na cena psíquica.

O primeiro desses escritos é Psicogênese de um Caso de Homossexualidade em

uma Mulher (1920), um texto que coloca de forma relevante a questão do suicídio.

Freud descreve aí o caso de uma jovem que, após desenvolver atração por uma mulher

madura, tenta se matar quando é vista pelo pai em companhia desta. Após deparar-se

com o olhar colérico e desaprovador que o pai lhe dirige, a jovem deixa-se cair

(Niederkommen lassen) na linha do trem. Neste texto, imediatamente escrito após a

postulação da pulsão de morte, Freud considera que ninguém encontra a energia

psíquica necessária para se matar se não mata simultaneamente um objeto ao qual se

identificou, voltando contra si mesmo um desejo de morte. A jovem tem seu gesto

analisado por ele como uma tentativa de uma autopunição e a satisfação de um desejo.

(1920/1973, III, p.2.555)

Em seu Seminário X (1962-3), Lacan construirá um primoroso deslizamento da

expressão original de Freud, o deixar-se cair (Niederkommt lassen) da jovem no fosso

dos trilhos do trem, para o deixar-se cair do melancólico que salta de uma janela para a

morte:

80

a janela, na medida em que ela nos lembra esse limite entre a cena e o mundo, indica-nos o que significa esse ato pelo qual o sujeito faz retorno a essa exclusão fundamental. (LACAN, 1962-3, Leçon VIII, inédito)

Esse momento é o que o autor considerará como o de uma identificação absoluta

ao objeto de desejo que se perde para sempre, ao qual o sujeito fica reduzido, perdendo-

se como ele. Esse objeto perdido será considerado por Lacan como o objeto do luto em

que nós havíamos feito o suporte de nossa castração. (Ibidem) Voltaremos à questão

quando tratarmos da angústia e da alienação.

A postulação da pulsão de morte não cessou de impactar a psicanálise. Este

impacto revelou-se a tal ponto dramático que, em função da nova balança pulsional que

a teoria estabeleceu, Freud decide remapear as instâncias psíquicas. É o acontecimento

teórico que justifica aparecimento do texto O Eu e o Isso (1923). Neste escrito, a partir

das considerações sobre a culpabilidade, Freud irá comparar as relações que neuróticos,

obsessivos, histéricos e melancólicos mantêm para com o suicídio: na neurose

obsessiva, o sujeito não estaria impelido ao suicídio pelo fato de que o objeto estará

retido no Eu. O Eu defende-se dos impulsos agressivos, antigos impulsos amorosos que

se transformaram, enquanto que o Super Eu se volta contra esse objeto, que julga

procedente do Eu. Para Freud, é o que explicará a tortura sistemática do objeto.

(1923b/1973, p.2.723) O obsessivo reage, portanto, através de formações reativas e atos

anulatórios, mas protege-se do suicídio. Há uma crítica entre autores a essa posição

freudiana, que considera ingenuidade eleger o fato de que a internalização do objeto

poderia ser suficiente para barrar a passagem ao ato na neurose obsessiva.

(AMBERTÍN, 2003, p.117)

Para o caso da histeria, Freud considera que o Eu auxilia as pulsões de morte do

Isso a controlar a libido, porém trata-se de um processo arriscado, pois esse contato

pode fazer com que o próprio Eu se torne objeto das pulsões de morte e vir a perecer.

Sabemos que a histérica escapa da culpa se vitimizando e culpando o outro.

No caso da melancolia, há uma confirmação do perigo e da proximidade que ela

se encontra da passagem ao ato:

Segundo nossa concepção de sadismo, diz Freud, diremos que o componente destrutivo instalou-se no Super Eu que se revoltou contra o Eu. No Super Eu reina então a pulsão de morte, que consegue, com freqüência, levar o Eu à

81

morte, quando este não se livra de seu tirano refugiando-se na mania. (1923b/1973, p. 2.724)

Mais uma vez, Freud confirma o reinado da pulsão de morte ao estilhaçar e

polvilhar o Eu, que, impotente e sem poder manter o objeto, se dissolve de vez e se

deixa invadir pela pulsão de morte. É o Super Eu quem mediará a pulsão de morte em

sua implacável caça ao Eu: O que está influenciando agora o Super Eu é, por assim

dizer, uma cultura pura da pulsão de morte; de fato, ela com bastante freqüência obtém

o êxito de levar o Eu à morte. (Ibidem)

A questão da passagem ao ato novamente estará presente em O Problema

Econômico do Masoquismo (1924). Nesse texto, Freud diferencia três diferentes formas

de masoquismo: masoquismo erógeno, masoquismo feminino e masoquismo moral,

sendo este último inconsciente e representado pelo sentimento de culpabilidade e

denominado necessidade de punição. (1924/1973, III, p.2.756) Esta seria resultante de

uma tensão entre o Super Eu e o Eu, que reage com angústia às exigências irrealizáveis

dos ideais impostos pelos Super Eu. No final do texto, Freud irá dizer que os fenômenos

da consciência nos mostram que a agressividade do mundo externo é também

assimilada pelo Super Eu, o que aumenta o sadismo contra o Eu. Ele refere-se a uma

complementaridade entre as duas instâncias: sadismo do Super Eu e masoquismo do Eu.

(Ibidem, p.2.758)

A resultante desse trabalho fusionado seria o masoquismo moral, derivado da

pulsão de morte, que deixou de se dirigir para o exterior. Por outro lado, pode haver a

desfusão das pulsões, quando o sujeito for levado a agir contra o destino, representante

do poder parental, logo, do Super Eu. O masoquista, para vingar-se, poderá agir contra

seus próprios interesses, arruinar as perspectivas que se abrem para ele no mundo real

ou destruir sua própria existência real. (Ibidem)

A questão do destino é uma velha conhecida dos melancólicos. Atrelada a ela

aparecem em seus relatos a fatalidade, a impossibilidade de escapar à crueldade dos

fatos da vida. “Nasci para sofrer”, “meu destino é assim” revelam um traço indelével da

afecção que se traduz na impotência desses sujeitos frente à crueldade super-egóica e

frente à impossibilidade que sentem em lidar com o próprio desejo, que escapa através

da hemorragia narcísica.

82

3.3 INIBIÇÃO, ATO E ANGÚSTIA

Retomando o percurso freudiano para seguir as pistas da passagem ao ato,

iremos nos deparar com Inibição, Sintoma e Angústia (1925). Ele trata neste texto das

patologias do não-agir, como a procrastinação obsessiva; as inibições da fobia social e

as grandes inibições, caso da melancolia.

Com relação à melancolia, as duas antíteses do ato podem se apresentar. Por um

lado, na inibição geral, na mais grave de suas formas (FREUD, 1925/1973, III,

p.2.835), mas por outro lado, sua outra face, o excesso pulsional da passagem do ato,

que muitas vezes se apresenta de forma abrupta e paroxística. De novo, nos remetemos

ao alerta freudiano: … a tendência ao suicídio é o que torna a melancolia tão

interessante e tão perigosa. (FREUD, 1915a/1973, II, p.2.099) Assim, na melancolia, se

de um lado temos a inibição como um severo estreitamento funcional do Eu, iremos

encontrar, no outro extremo, o Eu totalmente demolido, invadido pela pulsão de morte e

aberto para a passagem ao ato. Como este deslizamento fatal se produziria?

Em nossa opinião, a tentativa de uma resposta definitiva talvez nem seja

possível, mas passos importantes para esta reflexão devem necessariamente passar pelo

que Freud sedimentou e pelos acréscimos de Lacan sobre a angústia. Freud classifica a

angústia como um afeto, e o Eu como sua verdadeira sede. (1925/1973, III, p.2.837) A

angústia primordial é localizada na experiência do nascimento; portanto, anterior a

qualquer organização psíquica. A partir de reflexões sobre a fobia, o texto conclui que é

a angústia que produz o recalque e não o recalque que produz a angústia. (Ibidem,

p.2.846) Freud é categórico ao alçar a angústia de castração como o verdadeiro motor

do recalque, o que o movimenta e o faz trabalhar, e mais categórica ainda será sua

afirmação de que a angústia jamais surge da libido recalcada. (Ibidem)

Percebemos avanços e recuos freudianos no sentido de definir ou generalizar a

angústia e suas manifestações. A um certo ponto, o texto diz que

a angústia é algo que se sente, denominado estado afetivo, embora não saibamos bem o que é um afeto. (...) Nem todo desprazer é chamado de angústia, pois há outros sentimentos como a tensão, a dor, ou o luto, que têm caráter de desprazer. (Ibidem, p.2.859)

83

Nesse ponto do texto ele menciona três diferentes componentes dos estados de

angústia: caráter específico de desprazer; atos de descarga e percepção dos atos de

descarga, sendo que os dois últimos revelariam a diferença entre a angústia

propriamente dita e estados semelhantes, como luto ou dor. (Ibidem)

Para nós é de um significado especial esta preocupação de Freud em relação ao

luto, assim como a aproximação que se dará no mesmo texto, em que ele correlacionará

a angústia primeva à separação da mãe, ligando, portanto, o significado da perda do

objeto como determinante da angústia. Pela lógica freudiana, esta angústia pela perda

da mãe será transformada em angústia de castração, que por sua vez se transformará em

angústia moral. Finalmente,

a transformação pela qual [o Eu] passa o medo do Super Eu é o medo da morte (ou medo pela vida), que é um dos medos do Super Eu projetados no destino. (Ibidem, p.2.864)

Freud encerra o texto afirmando a angústia com uma reação ao perigo. Isso nos

parece fundamental porque na origem dessa lógica se encontra o momento do sujeito

em sua entrada no mundo. Esta, uma retomada freudiana de Rank e que coloca o

nascimento como condição de desamparo e sensação de perigo: a angústia mantém-se

assim articulada ao perigo. Situação de perigo é aquela que evoca a possibilidade de

dissolução, miticamente situada em um momento de desamparo fundamental. (VIEIRA,

2001, p.63)

O texto não se encerra aí. Iremos nos deparar com o Adendo C, em que Freud

trabalha os destinos da perda na angústia, na dor e no luto. Com alusão ao luto, cuja

dinâmica ele considera já ter sido aclarada pela psicanálise, resiste opaca na teoria a dor

enigmática que o caracteriza, definida por Freud como peculiar e inexplicável. Em uma

breve exposição, faz uma diferenciação segundo a qual a dor é uma reação real à perda

do objeto, enquanto que a angústia é uma reação de perigo à perda desse objeto.

(1925/1973, p.2.881)

Sobre a dor propriamente dita, Freud dirá que se sabe muito pouco sobre sua

expressão psíquica, a dor pela perda de um objeto. Esta não é uma preocupação nova

para ele. Relembremos aqui que esta descrição já estará presente em suas primeiras

incursões sobre a melancolia – no Manuscrito G (1895?), em que ele resume o que

84

considera a melhor formulação da melancolia: inibição psíquica com empobrecimento

pulsional e dor correspondente. (1895?/1973, III, p.3.507-8)

Se a dor física pode ser examinada em sua economia, (tarefa já feita desde o

texto do Narcisismo em 1914), a passagem da dor física para a esfera psíquica resta

enigmática. O recurso de Freud para avançar na questão é servir-se do modelo do

narcisismo para fazer derivar a segunda. Assim, propõe que, se pelo lado da dor física

ocorre um alto grau de investimento narcísico do ponto doloroso, na dor mental

haveria uma mudança do investimento narcísico para o investimento do objeto.

(1925/1973, III, p.2.883) Um alto investimento no objeto e a impossibilidade de barrar

tal investimento levariam à dor psíquica e ao sentimento de desamparo. No caso do luto,

seria necessário que o sujeito abandonasse o investimento no objeto perdido. No

entanto, ocorreria uma incongruência, já que mesmo com a ausência do objeto,

persistiria o investimento, uma insistência de anseio, que faz com que o objeto não seja

abandonado pelo sujeito como alvo de deposição de libido. A dor psíquica aconteceria

em vista desse investimento objetal ser impossível de se satisfazer.

Embora denso e multifacetado, Inibição, Sintoma e Angústia (1925) nos permite

importantes desdobramentos teórico-clínicos. A angústia do nascimento e o desamparo

iniciam nesse texto o traçado de uma grande circunferência que irá se fechar na angústia

de morte. Freud considera que elas são correlatas, o que nos leva a pensar que o

desamparo, característico do nascimento, é aterrador exatamente porque evoca a

possibilidade do desaparecimento e o aniquilamento.

Esse processo torna-se mais dramático quando levamos em conta que nascer

apenas não basta ao sujeito. Esta é a primeira das barreiras que ele tem a vencer, mas é

apenas sua entrada no cenário humano. Restam ainda para ele as tarefas de percorrer e

habitar a cena da linguagem. Para tornar-se um sujeito, outros círculos terão ainda que

ser traçados. Primeiro, o círculo que o liga ao Outro, pela via da alienação; depois, a

tarefa inversa, na disjunção das esferas, a separação. Veremos que alguns deles não

executam o desenho subjetivo esperado.

85

3.4 A PASSAGEM AO ATO, A MELANCOLIA E A TOXICOMANIA: A HISTÓRIA

DE PEDRO

Os sujeitos, uma vez no mundo, tentam se adequar às “regras do jogo”. A

estratégia para jogá-lo, embora compartilhada com o Outro, tem que ser decidida a

partir da solitária opção de como cada um responde à castração e ao simbólico. Entrar

na cultura, na linguagem, renunciar às pulsões, à agressividade, ao incesto, e guiar-se

pelos sucedâneos do Super Eu são faturas a pagar na tarefa humana para habitar a

civilização.

É o que escreve Freud em O Mal-Estar na Civilização (1929). Através dessa

obra podemos refletir que, mesmo após transigir em todas as demandas do campo do

Outro, a angústia e o desamparo se colocam ainda para o sujeito. A operação de

alienação/separação do Outro cria uma dízima infinita, a libra de carne com a qual deve

comparecer diante das exigências do laço social. No entanto,

entrevemos o paradoxo insuportável sobre os instintos, que faz com que o sujeito, em lugar de dissipar a angústia moral ou o sentimento de culpa, ao contrário, venha ainda mais a acentuá-lo. (LAMBOTTE, 1996, p.42)

A tarefa humana de embrenhar-se pela floresta significante, a civilização,

encarnada pelo Outro e suas leis, leva o sujeito sempre a se confrontar com o

desamparo, angústia primordial que, pela operação de separação, o colocará de frente

para a falta. A falta é para todos, não há uma prótese seladora que restaure o perdido,

mas em geral os seres humanos aprendem a não morrer por isso, transformando a falta

no desejo e sua busca. Nas palavras de Lacan, nossa falta pode ser desejo, desejo

acabado, na aparência indefinido, porque a falta sempre participando de algum vazio

pode ser preenchida de várias maneiras. (1962-3, p.34)

A referência lacaniana ao desejo designa o que resta da separação, objeto a, que

consiste no que se precipitou quando se fez a decantação pela dialética da

alienação/separação. Trata-se do objeto cambiante do desejo, deslizante e em torno do

qual o sujeito tenta se ver com sua angústia. Nas várias asserções lacanianas sobre a

angústia, podemos recortar:

86

A angústia é o afeto por onde somos solicitados para fazer surgir tudo que o desejo comporta (...) É falso dizer que a angústia é sem objeto (...) É ao objeto [pequeno] a que Freud se refere quando fala da angústia. (LACAN, 1962-3, Lições II, III e VI)

Certo é que muitas vezes o sujeito confunde desejo com demanda ou

necessidade, as neuroses estão aí para marcar isso; no entanto, em geral ele não recua,

ainda que seja pela via da repetição e do sintoma. Após percorrermos este trabalho,

podemos com alguma segurança afirmar que na melancolia, hemorragia narcísica, se

trata de uma patologia do desejo, melhor dizendo, da falta dele, ou de seu

evanescimento. Retomando Lambotte, desse encontro do sujeito com o objeto que se

perde e não pode ser reposto, dessa exponencial conseqüência do encontro faltoso com

o Outro, é que se arquiteta o desencontro com o olhar e com o desejo maternos. É esta a

origem do acidente narcísico, que vem a enuclear a constituição melancólica.

De forma exponencial, é na melancolia que poderemos localizar o nervo

exposto, o material constituinte desse núcleo que é a angústia. É também por esse viés

que reencontramos a procura da função do Sorgenbreher, o amortecedor de

inquietações:

pode-se fazer todos os empréstimos que se quer para tapar os buracos do desejo e da melancolia, e há o judeu que sabe um bocado das contas e que pede, no fim, a libra de carne. (Ibidem, Lição IX)

Consideramos que o melancólico faz um empréstimo com a droga, e com ela o

sujeito na angústia celebra a boda química. Duplo engano: troca desejo por uma

necessidade mortífera e falta por privação. Nada falta que não seja da ordem simbólica.

Mas a privação é alguma coisa do real. (Ibidem, Lição X) A partir do momento em que

a lógica da privação tóxica entra em cena, a angústia começa a se infiltrar pelo corpo e

sua tradução é a síndrome de abstinência. É então que o sujeito começa a pagar a dívida

com sua libra de carne. O corpo entra em um estado de urgência, e o objeto opaco da

melancolia e tudo que ele lastreia é finalmente nomeado. Freud afirmou que o

melancólico não sabe o que se perdeu no objeto perdido. Aquele melancólico que

escolhe a droga tenta constituir um saber sobre isso.

Para ele, não mais se trata da angústia, do desamparo, ou de seu vazio. Com o

advento da drogadicção, o objeto da opacidade melancólica adquire um brilho que se

87

transformará daí em diante no foco da vida do sujeito, e a temporalidade suspensa da

melancolia adquire um marcador. É um tempo novo que passa a operar na vida do

sujeito: a próxima dose, o próximo “tapa”, o próximo pico. Seu deserto interior

finalmente estará irrigado.

O centramento da droga como núcleo recobre a angústia e promove profundas

alterações na vida do sujeito melancólico. A falta de desejo é permutada por um novo

fator, que inaugura uma lógica da necessidade que norteia, exige a procura cotidiana

pelo produto. Assim, a paralisação, o delta zero da inibição melancólica inicia um giro

centrípeto em volta da droga e o sujeito passa a operar em função dela. O raio desta

circunferência pode se ampliar muito.

Quando a dependência finalmente se instala, o único risco inadmissível é ficar

sem a próxima dose e o sujeito irá a qualquer lugar para consegui-la. Sob o imperativo

da autocrueldade, selvagemente dirigida agora ao próprio corpo, ele pouco a pouco vai

tomando a estrada para o absoluto e para a dissolução dos laços com Outro. Entramos

na esfera da passagem ao ato.

Pensamos que é principalmente através e em razão da clínica que se impõe uma

reflexão sobre a passagem ao ato. Ao redor dela podemos fazer pivotar diversas

estruturas clínicas não só em sua sintomatologia clássica, mas também na atualidade das

chamadas patologias do ato, tais como a

delinqüência, a toxicomania e a psicopatia, que convidam a repensar as categorias fundamentais mais freqüentemente utilizadas [na psicanálise] na expressão verbal, na lei e na ordem simbólica. (PONTALIS, 1985, p.7)

Pedro tem 20 anos, é originário de uma família de classe média. Aos oito anos

de idade, a mãe revela a ele e ao irmão um ano mais velho que ambos são filhos

adotivos. A notícia é devastadora para ele. Recusa-se a continuar freqüentando o

colégio, tem alterações de comportamento, afasta-se do irmão, até então seu melhor

companheiro, e da turma de amigos comuns. A partir da revelação, torna-se uma criança

retraída e triste. “Minha mãe verdadeira nem deve ter querido olhar para mim. Às vezes

fico na frente do espelho pensando o que em mim pode ser parecido com ela”.

Pedro tem tatuagens, piercings em vários lugares e diversas cicatrizes de

queimaduras de cigarro por todo seu corpo. Relata que na infância às vezes se sentia tão

88

triste que adquiriu o hábito de riscar palitos de fósforos e apagá-los contra a pele. “A

dor me fazia esquecer minha tristeza”.

Aos 11 anos Pedro juntou-se a uma tribo dark, vestia-se apenas de preto e

passou a consumir crack e maconha. A partir daí passou ao uso de vários tipos de droga,

inclusive por via intravenosa. Aos 16 anos, já dependente, sua vida sofre novo revés

com a separação dos pais. Ele escolhe ficar com o pai, que pede transferência para a

Espanha. Lá, Pedro tem contato com drogas pesadas como heroína e LSD, e faz um

tratamento para depressão. Após um ano, retorna ao Brasil e vai morar com a mãe e o

irmão. Este mantinha um ótimo desempenho acadêmico, mantendo a vida regular de um

adolescente de sua idade. Isso aumenta a distância entre eles.

Pedro entra e sai de diversas clínicas e colégios, não consegue fazer laços,

droga-se em casa com álcool e cocaína. Contrai dívidas com traficantes e é torturado e

quase morto por eles pelo atraso de um pagamento. Ao fazer 18 anos, conhece uma

garota por quem se apaixona. Estabiliza-se, decide se tratar e voltar a estudar. Recebe

então a notícia de que a gravidez da companheira levara seu pai, ainda residente na

Espanha, a se casar novamente. Relata que foi lastreado pelo amor à namorada que pôde

suportar a notícia, que considerou como uma ruptura definitiva dos laços com o pai.

Uma noite, após a aula, vê sua namorada beijando um outro rapaz. Pedro ingere

15 latas de cerveja, cheira vários papelotes de cocaína. Nesta noite, é internado em

extrema agitação. Quando obtém alta, retorna a casa. Passa dias bebendo, até que,

sentindo-se muito deprimido, decide incendiar a casa e saltar pela janela. A fumaça

chama a atenção de vizinhos, que arrombam a porta e tentam convencê-lo a não pular.

Ele salta do quarto andar, e, ainda que politraumatizado, sobrevive à queda.

Passa meses se recuperando e, após a alta, pede para internar-se no IPUB. Diz

ter pensado em morrer porque não tinha mais de quem receber amor.“Comecei a ser

abandonado no dia em que eu nasci. Eu já não tinha mais nada para perder”. Nenhum

laço que se colocara em sua vida fora suficiente para tamponar a falta fundamental que

nele se produziu, uma ferida que jamais cicatrizou, desde que foi dado em adoção.

A fantasia de jamais ter sido olhado pela mãe parece ter reverberado também em

sua tendência à modificação corporal. As cicatrizes, tatuagens e piercings com os quais

se faz marcar parecem um desesperado recurso que ele utiliza para dar visibilidade e

contorno a seu corpo vazio, que não pôde ser alvo do olhar materno; o meio de atrair

89

para si o olhar do Outro é dar figurabilidade a seu corpo através das inúmeras tatuagens,

perfurações e cicatrizes. Ainda que pela via do excesso, é como consegue ser

permanentemente alvo do olhar dos substitutos do Outro primordial, a mãe biológica,

que, em sua fantasia, se recusou a dirigir-lhe um único olhar.

Com a chegada da adolescência, Pedro vai fazendo a transição da angústia

negativizada da inibição melancólica para as ruidosas e sucessivas passagens ao ato da

toxicomania. Do momento em que começa abandonar os amigos na infância ao salto

pela janela, podemos presumir que o que realmente se modificou em Pedro não foi a

intensidade de sua angústia, mas a forma de expressá-la e dirigi-la ao Outro. Das auto-

agressões corporais ao “deixar-se cair”, há a passagem do apelo para a desistência total

de dirigir-se ao Outro. Queimar a casa é incinerar a história, tornar em cinzas seus

significantes, dolorosos demais para que continuasse a carregá-los.

Na passagem ao ato, o sujeito precipita-se lá de onde ele está, do lugar da cena onde somente como fundamentalmente historicizado ele pode se manter em seu estatuto de sujeito. (LACAN, 1962-3, Lição IX)

A história de Pedro não é única, nem a mais trágica, nem a última, numa clínica

da drogadicção. Embora possa se apresentar sob todas as expressões da clínica, sabemos

o quanto a passagem ao ato adquire visibilidade na toxicomania.

Lacan, no seminário A Angústia (1962-3), ao espacializar a passagem ao ato,

localiza-a totalmente lastreada pela angústia; esta, por sua vez, situada no ponto extremo

do embaraço, da perturbação, da dificuldade e do movimento:20

Dificuldade

inibição impedimento embaraço

emoção sintoma passagem ao ato

perturbação acting-out angústia

20 Lacan deriva esse grafo do texto freudiano Inibição, Sintoma e Angústia (1925/1973) e o representa com diferentes acréscimos em várias lições do Seminário X (Lições I;VI; XXIV, XXV). No entanto, a posição de seus termos mantém-se fixa ao longo do seminário.

M o v i m e n t o

90

Nas lições finais deste texto, ele tenta fazer uma síntese de cada um dos termos

trabalhados ao longo das lições daquele ano. Aí encontraremos:

Na conjuntura da angústia com sua estranha ambigüidade (...) introduzimos uma distinção, este caráter da angústia de ser sem causa mas não sem objeto (...) Não somente ela não é sem objeto, mas designa provavelmente o objeto, o mais profundo, o último objeto, a Coisa. É nesse sentido que lhes ensinei que ela é aquilo que não engana. (LACAN, 1962-3, Lição XXIV)

Também ao toxicômano a angústia não engana, mas o sujeito tenta, numa

operação inútil, engodá-la através da droga, tamponar o que não tem fundo. Ele fusiona-

se e aliena-se de tal maneira no produto que, quando a separação se tornar necessária,

irá se revelar uma tarefa impossível. Durante a passagem ao ato, realizou-se algo que é

fusão e acesso a esse mais além, diz Lacan. (1956-57/1995, p.85)

No capítulo I desta dissertação, dissemos que o suicídio significa um rechaço,

uma impossibilidade de significação pela via da fala do sujeito. Aqui, é do reencontro

com das Ding, com a Coisa, que se trata. Em Lacan, este objeto das Ding está perdido

para sempre.

... O Ding como Fremde, estranho, e pode ser hostil num dado momento, é em torno do que se orienta todo encaminhamento do sujeito. Das Ding é o que chamaremos de o fora-do-significado. É em função desse fora-do-significado e de uma relação a ele que o sujeito conserva sua distância e se constitui num mundo de relação, de afeto primário, anterior a todo recalque. (1962, Leçon de 14/03/62)

Não é um objeto constituído a partir do encontro com o seio e em seguida

imaginarizado e perdido. É mais absoluto que isso. Não se “tem” a Coisa e em seguida

ela é perdida. A Coisa pertence ao Real exatamente por não ser significantizável. Ela é,

sim, o próprio furo em torno do qual o Inconsciente será estruturado.

No momento decisivo da passagem ao ato, a maneira fatal pela qual a alienação

se apresenta, ainda que variável, sob vigência ou abstinência da droga, traduz uma só e

única situação: entre a bolsa ou a vida, o sujeito escolherá a bolsa.

A etiologia dessa ruína subjetiva, sob o eclipse do Simbólico, Lacan irá localizar

não na perda do objeto [como no luto], mas em um desenlace que é da ordem do

suicídio do objeto. (1960-1/1992, p. 380) Com a perda da ilusão com a droga, o que se

91

segue para o sujeito é o reencontro com o remorso por ter sido o infiel-depositário

daquele primeiro objeto do desejo que desapareceu de seu campo.

O remorso parece residir na incompetência que ele se atribui por não ter podido

fixar o olhar do Outro materno, como vimos, ato e fato imprescindíveis na constituição

subjetiva do infans. Com a perda da eficiência da droga que exige doses cada vez

maiores ou com a falta dela – que evoca a falta visceral e erosiva daquele primeiro olhar

que repousou, mas não permaneceu sobre o indivíduo –, o sujeito reencontrará seu vazio

álgico, dreno de uma libido que não se acumula, bateia invertida que, de novo, coloca a

perder o ouro narcísico, que ejeta o sujeito para fora do campo do Outro.

Como fez Pedro, finalmente, ele “deixa-se cair”, desaparece, colado ao objeto.

“Eu não tinha mais nada para perder”, disse ele sobre sua tentativa de se matar. Lacan,

no Seminário A Transferência (1960-1), nos diz que, se é possível ao enlutado

reconstruir o objeto perdido significante por significante, na melancolia se trata da perda

do objeto a, o que o coloca frente a frente com das Ding, a Coisa sem significado. Para

os melancólicos,

o objeto estará ali, muito menos apreensível por estar presente, e por deslanchar efeitos infinitamente mais catastróficos, já que eles chegam até o esgotamento daquilo que Freud chama o sentimento mais fundamental, o apego à vida. (Ibidem)

O suicídio, a perigosa possibilidade da melancolia, é o final infeliz que muitas

vezes ficou barrado por uma inibição motora que indiretamente impediu que o sujeito se

matasse, tentativa de solução para eliminar o resto não simbolizado. (SISSA, 1999,

p.68) Na toxicomania, esta inibição estará basculada. O movimento coagulado e parado

do fotograma melancólico inverte-se então numa sucessão de curtos ou longos circuitos,

cuja finalidade para o sujeito reside em saturar-se mais e mais com o produto, até

finalmente fazer cessar o excesso, submergindo nele.

Com a repetição, o que não cessa de se inscrever, através de um uso cada vez

mais transbordante, o deserto melancólico sofre finalmente a inundação fatal e

torrencial da droga. Uma quantidade do produto ultrapassa em muito o volume possível

do corpo de sensações, que, alagado, entra em falência.

92

E não posso enxotar a tristeza que me traz

a manhã de hoje.

....................................................................

Encho a minha taça e olho para longe

..................................................................

eu também seria capaz de escrever poemas

[sublimes

se pudesse pairar no céu, entre os astros.

Em vão bebo para afogar minha amargura.

Li Po

O poeta chinês Li Po, alcoólatra, morreu em 762 d.C., ao saltar de um barco para

abraçar a lua que se refletia nas águas do lago.21 Este fragmento de poema anuncia a

passagem ao ato que estava por vir. É verdade que raros toxicômanos o revelam de

forma tão explícita. No entanto, o que se desvela na toxicomania é o mesmo que já se

encontra velado no discurso melancólico: a busca da totalidade e sua mencionada busca

pela verdadeira verdade.

A overdose, famélica busca do absoluto e de atenuação do sofrimento, faz o

corpo abrir de vez suas comportas. Eu também poderia escrever poemas sublimes/ Se eu

pudesse pairar no céu entre os astros: o verso do poeta deixa entrever a absolutização

que sua busca alienante encarna. Sua verdadeira verdade: fazer poemas sublimes ao

preço de alcançar o reflexo da lua, objeto impossível. Para não se separar dele, alienado,

embriagado, salta de seu bote para o reflexo no lago. Afoga-se.

O ato é solipcista, circular. Em geral, o sujeito já o presenciou ou ouviu falar

dele como um fim freqüente entre drogadictos. Testemunhou a falência de outros

companheiros, os viu primeiro no alagamento das rodas em que compartilhavam a

substância, e pôde testemunhar a violência voraz quando, pela overdose, outros corpos

se saturaram com a droga. De maneira paradoxal, isso às vezes coloca o sobrevivente

sob a impressão errônea de uma invulnerabilidade que realmente ele não possui.

Um dia, nua em pêlo, sobrevém a angústia e o sujeito tenta correr dela, pela

droga, ou pela janela, seja saltando para vazio ou alagando-o. Se nossa capacidade de

21 LI PO, TO FU. (1996) Poemas chineses. Trad. Cecília Meirelles. Rio de Janeiro. Nova Fronteira

93

simbolização reside no a-posteriori, o sujeito que passa ao ato prescinde disso ao

excluir-se da possibilidade do só-depois, que é elidido no gesto que ele consuma. O ato

é indiferente a seu futuro... O ato existe por si só. (ANSERMET, 2003, p.181)

A passagem ao ato encarnará a alienação fatal que poderá prescindir da

linguagem, porque nada mais haverá a dizer. Não haverá endereçamento nem ao Outro,

nem ao tempo. O sujeito, que desde os primórdios de sua constituição, se viu

embaraçado como aquele que não pode reter o desejo do Outro, torna-se, ele próprio, o

objeto perdido e não significável. Muda-se, então, do deserto melancólico que decidiu

inundar pela drogadicção, para a atopia insular de das Ding, a Coisa insignificável,

disjunta da linguagem e do mundo do Outro.

CONCLUSÃO

95

CONCLUSÃO

O presente trabalho apoiou-se em uma constatação da clínica que em tudo

ratifica a frase provocativa de Zafiropoulos: o toxicômano não existe. (1994, p.19) Essa

inexistência de que fala o autor tem a importância de nos fazer interrogar teorias que

reconheçam a drogadicção como etiologia primária, para fazê-la assumir um papel

contingente na vida do sujeito que recorre à droga. É uma constatação que advém da

clínica, mas que produz como ilação teórica o reconhecimento de que o fenômeno

toxicômano tem uma função de velamento do mal-estar na história do indivíduo – fato

que tem o mérito de desalojá-lo de um estatuto de causalidade, para realocá-lo como

uma conseqüência plurifacial e multiforme a ser encontrada em todas as expressões

clínicas.

Entre as múltiplas faces pelas quais este fenômeno se apresenta, tanto o tema

quanto fio condutor deste trabalho recaíram sobre o que consideramos uma estreita

correlação entre a toxicomania e a melancolia. O fato de não termos encontrado, no

corpus da teoria psicanalítica, um argumento único que nos permitisse sustentar o

postulado que afirma a existência e as conseqüências de um tipo de toxicomania que se

desdobra a partir da melancolia, nos fez optar pelo caminho de recolher subsídios para

nossa argumentação a partir das ferramentas teóricas que nos pudessem ser fornecidas

pela própria psicanálise.

Para tal, dispusemo-nos à colheita de conceitos adensados e estabelecidos

diretamente pela produção freudiana, caso da metapsicologia da melancolia, ao qual

agregamos contribuições posteriores, tais como o estádio do espelho; alienação e

separação em Lacan e moldura vazia, em Lambotte.

Dessa primeira costura, recolhemos a patoplastia do fenômeno melancólico,

citada por Freud em Luto e Melancolia:

96

desânimo profundamente doloroso, suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e um rebaixamento da auto-estima. (1915a/1973, p.2.091)

Com o avançar do texto, deparamo-nos com a advertência ao grande perigo da

melancolia: a tendência ao suicídio, que faz a melancolia tão interessante e tão

perigosa. (Ibidem, p.2.096)

Quanto à metapsicologia da afecção propriamente dita, Freud descreve uma

reassimilação no Eu de um objeto que é dado pelo sujeito como perdido, mas que,

paradoxalmente, tem para ele um caráter enigmático. Este na melancolia – ao contrário

do objeto perdido do processo do luto – terá caráter opaco e inconsciente. Será este o

objeto enigmático que retornará ao Eu, que, clivado, se identifica em parte com o objeto

perdido. No que resta da metade egóica, um rigoroso tribunal se instala: trata-se da ação

feroz de uma instância crítica (o futuro Super Eu, na evolução teórica), que tratará dura

e cruelmente a parte do Eu identificada com o objeto perdido. (Ibidem, p.2.095)

Agregamos às contribuições freudianas, o conceito de moldura vazia de

Lambotte (1996 e 1997), que localiza a constituição melancólica no momento

constitutivo do estágio do espelho, em que, ao contrário de ser alvo, o bebê será

desviado do foco do olhar desejante do Outro:

O modelo do estádio do espelho de Lacan, põe em jogo, uma dupla identificação: a identificação com a forma da espécie, por um lado, através do rosto da mãe (Ideal do Eu) e com o reflexo do espelho (Eu Ideal), auxiliada nisto pelo quadro já familiar do primeiro rosto. Ora, tudo se passa como se o sujeito melancólico estivesse diante de uma moldura vazia, dentro da qual não houvesse imagem.(...) Por pouco que esses olhos tenham atravessado a criança sem a ver e lhe atribuir contornos que incrementam seu corpo no espaço, disso resultará para ela uma fixação mortífera na mera moldura vazia. (LAMBOTTE, 1966, p.328)

É a descrição do olhar que não deixa de ser dirigido ao bebê, mas que ainda

assim o descentra, transformando-o não no núcleo, mas apenas em um detalhe a mais

nas franjas da cena narcísica definitiva para os movimentos de alienação/separação do

Outro fundamental. A conseqüência dessa tragédia íntima é uma impossibilidade à

identificação da imagem especular, que criará um campo vazio que estará ligado ao

absoluto e à identificação ao nada. (LAMBOTTE, 1997, p.177-186)

Essas seriam as condições para a emersão da afecção melancólica, localizada no

tempo remoto da constituição subjetiva, mas que se espraia pela vida do sujeito sob a

97

forma de uma permanente destituição, e que irão servir o não investimento no mundo

significante. “Nada vale a pena”; “nada tem valor”; “nada tem sentido”; “para que

viver”: são exemplos de falas melancólicas que irão traduzir o que Lambotte reconhece

como formas de identificação ao nada e denegação da intenção, descrédito

patognomônico da melancolia, que fará com que o sujeito delegue ao destino a essência

da própria imobilidade e do congelamento temporal em que vive. “Tinha que ser

assim”; “Era essa minha sorte”; “Nasci sob a má estrela”: são frases paradigmáticas que

revelam a recusa e a impossibilidade do melancólico em se reconhecer autor da própria

história e em se autorizar como um ser de desejo – fatos que revelam sua sujeição ao

Super Eu tirânico, aqui travestido por um sucedâneo, o destino.22

Consideramos ser esta a condição para que o evento da boda tóxica possa vir a

se estabelecer. Esse sujeito, submetido de forma incessante à drenagem narcísica

característica da melancolia, que seca cada vez mais seu universo afetivo, esboçará uma

reação decidindo eleger um amortecedor (e consideramos perfeito o sentido que a

justaposição desse significante tem o poder de evocar) de seu mal-estar. É o

Sorgenbreher, evocado por Freud (1929) e bastante citado em nosso trabalho, que traz

para o vazio melancólico a possibilidade de uma substituição ilusória de preenchimento

e de anestesia da dor de existir através do casamento feliz com a droga.

Repetimos aqui a assertiva de Olivenstein, que afirma, a respeito dos avatares da

toxicomania, que é da incerteza de ser amado que o sujeito sofre quando o espelho se

quebra. (1990, p.34) Entendemos nessas palavras uma ratificação da idéia do quanto o

estádio do espelho se constitui como o momento fundante, essencial e delicado para a

constituição subjetiva. A experiência de não ter sido alvo do desejo materno terá um

caráter indissipável, e que irá comprometer para sempre as raízes identificatórias desse

sujeito, acarretando sua identificação com o vazio.

Se para o melancólico, num primeiro tempo, um encontro infeliz com o Outro

produziu a ausência de intenção, que daí em diante inibiu que seu desejo se depositasse

nos objetos; se sua existência vazia se tornou uma longa “cadeia de insignificantes”,

onde as equivalências foram sempre iguais a zero, ao tornar-se drogadicto o sujeito dará

um passo além.

22 Segundo Freud, o destino é uma das versões através das quais o sujeito tem de curvar-se ao Super Eu, herdeiro do Complexo de Édipo: a última figura na série iniciada com os pais é o Destino, que apenas poucos de nós são capazes de encarar como impessoal. Cf FREUD, 1924, III, p.3.757.

98

No ensaio de restaurar sua fratura narcísica – por onde o desejo escorre – através

do falacioso preenchimento da bacia para sempre furada, ele se verá transformado num

tipo de Prometeu acorrentado e sedento a buscar para sempre a próxima dose. É o que

inaugura o flash, momento primeiro do encontro com a droga, que desvelará para o

sujeito uma plenitude e que, daí em diante, poderá a vir imperiosamente a regular sua

vida.

De todos os autores percorridos nesse trabalho, nenhum deles apresenta a ênfase

de Hassoun, no que diz respeito à correlação entre melancolia e toxicomania:

... vindo substituir a melancolia – em sua forma clássica - a droga, do flash inicial à dependência final, se oferece como um terceiro termo de identificação (...) Essa ausência de objeto poderia chamar-se falha de desmame (...) A droga representa o lugar de uma ausência enigmática, que não pára de apresentar-se compulsivamente. (2002, p.33-35)

O drogar-se daí por diante será um imperativo categórico na vida do sujeito, e

foi esta a lógica através da qual tentamos derivar as pedras de toque para correlacionar,

no primeiro terço deste trabalho, a melancolia e a toxicomania.

Em nosso segundo capítulo – TOXICOMANIA E MELANCOLIA: A

RELAÇÃO COM O CORPO – tentamos recuperar na teoria psicanalítica um dos

desdobramentos da tirania que se apresenta no melancólico que elege a drogadicção.

Essa correlação tentou evidenciar a transformação da autocrueldade psíquica da

melancolia, descrita por Freud como o resultado do extremo rigor do Super Eu, que

submete e humilha o Eu aos piores castigos (1932/1973, III, p.3.133). Em nossa

hipótese, tal tirania expressa-se de forma correlata na toxicomania, na qual o corpo do

drogadicto toma a condição de alvo privilegiado, vindo assim a substituir o Eu,

classicamente o lócus para o exercício da crueldade superegóica na melancolia.

Acreditamos que o deslizamento da crueldade intrapsíquica para uma crueldade no

corpo possa ser resgatado na teoria se nos embasarmos na afirmação de Freud de que o

Eu é, acima de tudo, corporal e não apenas um ser superficial. (1923b/ 1973, p.2.708)

Derivando para os termos lacanianos da constituição subjetiva, na operação de

alienação e separação, consideramos que o ser – isto é, o sujeito – certamente não fará

sua entrada na alienação apenas com o psiquismo. Disto podemos derivar que o ser que

se aliena no Outro, no sentido, é também um corpo, e é com esta libra de carne que o

sujeito caucionará tanto sua entrada (alienação) quanto sua saída (separação) no

momento compreendido como o

99

estádio do espelho. Nisso reside a torção através da qual a separação representa o retorno da alienação. [Será devido ao fato do sujeito] operar com sua própria perda, à qual o reconduz a seu começo. (LACAN, 1964/1998, p.858).

Portanto, de maneira alguma consideramos estranho que o Super Eu, que na

melancolia já mantinha o Eu como presa, faça também na toxicomania, do corpo, um

vassalo.

Com o objetivo de fundamentar clinicamente nossa hipótese, lançamos mão da

história de Maria, cuja foz melancólica infantil somou, à indiferença da mãe, a presença

de um pai agressor e mortífero. Trata-se de uma conjunção indissipável e que, no a-

posteriori, será revivida na experiência de sua prisão política, fato que virá ainda a

acarretar seu testemunho da morte do companheiro junto a quem vinha sendo

sistematicamente torturada – excessos de tal forma dramáticos e culpabilizantes que

marcarão de forma indelével sua existência futura.

A experiência da tortura reevoca e reatualiza para Maria a cena infantil dos

irmãos castigados pelo pai e a omissão da mãe por sua prole. Após sua libertação,

conviver com o paradoxo de ter sido poupada dos castigos físicos na infância e de, na

prisão, ter sobrevivido ao companheiro será insuportável para ela e, que irá desaguar

em uma tortura ainda maior: o vazio, o remorso e a culpa por ter sobrevivido. É o que

levará Maria das autocensuras às mais variadas formas de autocrueldade.

Primeiro, na comunidade hyppie em que viveu, ao despojar-se da propriedade de

seu corpo para que este fosse possuído por quem quisesse se servir dele; depois, ao

fazer-se cobaia de si mesma, experimentando todo o tipo de drogas; e, finalmente, ao

submeter o próprio corpo à experiência-limite de doze overdoses.

Do remordimento cruel das autoacusações melancólicas ao corpo autófago do

usuário de drogas, que se nutre à custa da própria destruição, reconhecemos o

deslocamento de um corpo vazio que se transmuta, via ação tóxica, em corpo de

necessidade. O sujeito recorre à ação, como afirma Le Poulichet, de esculpir

... para si um corpo circular: tornar-se incessantemente o que se incorpora, para que o eu tenha enfim a ilusão de encerrar-se em suas próprias bordas e resistir a uma abertura mortal. (1996, p.112).

O corpo como invólucro esvaziado, sem consistência, deserto, que bascula do

nada para o inchaço do excesso, e do excesso ao horror da privação: eis o roteiro que

100

percorre o melancólico que escolheu a drogadicção para escapar aos horrores

impingidos pelos rigores do Super Eu. Relembremos aqui que Freud jamais deixou de

enfatizar sobre esta autocracia superegóica na melancolia, o que o fez também nos

advertir sobre o perigo que encerra a face letal da afecção: o suicídio.

Foi essa a correlação que nos guiou na eleição de uma segunda simetria entre a

afecção melancólica e a drogadicção. Nosso terceiro capítulo – TOXICOMANIA E

MELANCOLIA: A RELAÇÃO COM A PASSAGEM AO ATO – tratou de contemplar

as relações da toxicomania e da melancolia com a passagem ao ato, representado aqui

pelo suicídio.

Ao tentarmos buscar as raízes da transformação do que seria uma clínica da

inibição por excelência em uma clínica do ato (também por excelência), recorremos

uma vez mais a Freud, que, no escrito Inibição, Sintoma e Angústia (1925), define a

inibição como a expressão de um estreitamento do Eu, enquanto que a angústia é

reconhecida como um afeto primordial e que se constitui como o núcleo do desamparo.

Ele considera que enquanto que a dor representará uma reação real à perda de objeto,

a angústia representará uma reação de perigo à perda desse objeto. (1925/1973, III,

p.2.881)

Diferenciada da noção de ação, ligada ao princípio de realidade, encontraremos

na noção de ato uma pura formação do inconsciente, uma impulsão do sujeito que

assinala um retorno do recalcado. (LAPLANCHE; PONTALIS, 1967, p.28) No

entanto, esta afirmação genérica escamoteia radicais diferenças internas do conceito que

dão ao ato uma vasta gama de expressões e figurabilidade clínicas. Como exemplo,

veremos no ato falho um caráter diverso do acting out: o primeiro apresenta-se como

o conjunto das falhas da palavra, da memória, da ação e do comportamento em que o indivíduo é habitualmente capaz de obter êxito, e cujo fracasso é tentado a atribuir ao acaso.(Ibidem, p.32)

Diferentemente, no caso do acting out, há uma função apelativa, em que o

sujeito “responde” sem saber ao Outro, o que o coloca numa direta ligação com a

transferência, conforme demonstrado no capítulo III desta dissertação.

Embora reconheçamos a existência desses e outros tipos de ato na clínica da

melancolia articulada à toxicomania (e nas demais), em que estes podem aparecer –

inclusive mesclados ou sobrepostos –, a correlação à qual visamos nesse trabalho elegeu

um tipo de ato que se coloca para além dos demais. Trata-se da passagem ao ato, que

101

possui igualmente sua variabilidade interna, expressa em atos impulsivos violentos,

agressivos, delituosos. (Ibidem, p.29)

Diferentemente do acting-out, a passagem ao ato terá o seu valor próprio, diz

Lacan. (1962-3, inédito) Deste espectro, retiramos o suicídio. Para falarmos desta forma

particularmente dramática de passagem ao ato, percorremos as perplexidades de Freud

sobre o tema, num arco temporal iniciado com o Manuscrito N (1897/1973, III, p.3.573)

e que tem, na outra extremidade, textos tardios. Como exemplo, citamos as

considerações sobre o masoquismo moral (derivado interior da pulsão de morte), que

será colocado em oposição à pulsão de vida, na desfusão pulsional, situação em que o

sujeito, agindo contra o destino (de novo, aqui, um subrogado do Super Eu), pode

destruir sua própria existência real. (FREUD, 1924/1973, III, p.2.756)

Apesar do trilhamento freudiano sobre o suicídio apresentar vários meandros,

notamos que, na teoria, ele segue um curso que levará à conclusão de que, quando a

balança pulsional se desequilibra, não será o prato de Eros, mas o da pulsão de morte,

que definirá o peso e o preço da libra de carne que sujeito tem a pagar. Muitas vezes,

conforme nos disse Lacan, é com a vida que ele liquida sua fatura.

Lá nos avatares do Imaginário, no pulsar bifacial da operação de

alienação/separação, a maioria dos sujeitos descobriu que uma libra de carne bastava

para habitar o Simbólico. O resto da dívida, pagou como pode: aprendeu a encarar a

falta e herdou junto com ela a angústia.

A angústia é o afeto por onde somos solicitados a fazer surgir tudo que o desejo comporta. (...) Segundo Freud, a angústia é um sinal do Eu. Ela deve estar no lugar do Eu Ideal. É um fenômeno de borda do campo imaginário do Eu, “borda” porque o Eu é uma projeção de superfície. (LACAN, 1962-3, Lições II e IX. Inédito)

Portanto, a falta primordial e tudo que ela engendra serão elementos essenciais

para que se erija um sujeito do desejo. Porém, caso esse sujeito venha a ser

narcisicamente ferido (por vicissitudes sistematicamente descritas ao longo de nosso

trabalho), terá aberto um dreno, que deitará fora toda sua reserva de desejo: o desejo

falta porque se desmoronou o Ideal. (Ibidem, Lição XXV) Resulta daí o vazio, que na

melancolia é paradoxalmente álgico, e traz junto com ele a inibição característica.

Entretanto, tal inibição oculta o seu antípoda, que pode bascular para o

movimento incapturável, o passo em falso da passagem ao ato:

102

...o sujeito se suprime para se livrar de toda perda, mesmo aquela marcada pelo tempo no corpo. (...) Tratando-se como objeto, se faz desaparecer, tomado por um impulso para reencontrar seu ser. È dessa forma que o melancólico passa através da própria imagem para atingir o objeto cujo comando lhe escapa. (ANSERMET, 2003, p.175)

Na melancolia, é possível que a passagem ao ato – via suicídio – venha a

acontecer, porém o movimento inibido de certa forma protege o sujeito de matar-se. No

entanto, é na toxicomania, que tal perigo torna-se exponencial.

O sujeito de que se tratou neste trabalho deu um passo além da melancolia. Na

tentativa de livrar-se de seu deserto, aliviar e anestesiar a dor narcísica, elegeu o

Sorgenbreher, o quebrador de inquietação. Abriu os canais de seu corpo para receber

fluxos cada vez maiores de droga, que primeiro o irrigam, depois o encharcam e, caso

passe ao ato, alagam seu corpo, pois nenhuma overdose é meramente acidental.

Evocamos a história de Pedro, para quem a revelação de ser adotivo

desencadeou a melancolia ainda na infância. Não ter “servido” para indenizar a mãe foi

uma ruptura que o levou a se sentir como um dejeto, condição que atuou no próprio

corpo, desconsiderando até mesmo os limites da dor física. Drogar-se, esfolar-se,

queimar-se: era esse o tratamento cruel que dava a si mesmo. Por fim, passar ao ato:

queimar a história e, pela janela, jogar-se fora.

Trata-se do deixar-se cair, Niederkommen lassen, como evoca Lacan no

Seminário da Angústia (1962-3) a propósito do caso freudiano da jovem homossexual

que se joga nos trilhos do trem. Lastreada pela angústia, conforme espacializa Lacan no

referido seminário, a passagem ao ato rompe com todas as formas de simbolização, de

temporalidade e de alteridade.

Pelas reverberações que pode adquirir, é para a clínica da passagem ao ato que

miramos ao pensarmos num só-depois do presente trabalho. São questões que talvez

encarnem verdadeiras aporias, mas que nos levam a pensar até que ponto, como

analistas, podemos ouvir esse silêncio ruidoso, antes que aconteça? Que sinais do

sujeito devemos privilegiar na escuta para reconhecer os pródromos de uma passagem

ao ato? Seria possível desintrincar o nó górdio de um discurso em que se enovelam ato,

inibição e angústia? Dissemos que, através da passagem ao ato, o sujeito se demite do

Simbólico e abre mão de tudo que lhe coube, ainda que não se tenha autorizado a

usufruir. É da angústia que o ato toma emprestado sua certeza... [É ela] que nos

introduz na função da falta, diz Lacan (1962-3, Lições VI e X. Inédito)

103

Interrogar sobre duas afecções levou-nos a produzir este trabalho, convocando

os mestres e os doutos. Se esta convocação teve o mérito de sedimentar nossa convicção

de uma estreita proximidade entre melancolia e toxicomania, consideramos que através

uma reflexão mais profunda sobre a angústia, o desequilíbrio da balança pulsional e as

manifestações da pulsão de morte poderemos avançar para melhor pensarmos a

passagem ao ato, que ronda com freqüência o território dessas afecções.

A clínica da toxicomania ressalta outros impasses. Sustentar nosso desejo de

analistas diante desses pacientes representa um constante desafio. Em primeiro lugar

porque, via de regra, dependentes químicos são pacientes peregrinos, que erram de uma

instituição a outra, com um pedido de “cura” que nem sempre se transforma em

demanda de tratamento. Ao encalacrar-se nas engrenagens dentadas da dependência, o

sujeito sabe que se desvencilhar dela significa ver-se com o velho monstro de sua

angústia, contra o qual já empreendeu uma fuga a preço alto, caucionando o próprio

corpo para livrar-se dele.

Mais do que em qualquer outra prática na psicanálise, na clínica da dependência

química, testemunhamos o dilema do sujeito que “sabe” que, para ganhar, precisa

perder. Perder a função de tamponamento que delegou à substância – o Sorgenbreher,

amortecedor de preocupações, perder a trincheira que conseguiu cavar para ocultar-se

da angústia, quando esta se tornou insuportável. Abrir mão do anteparo que montou

para ver descortinar diante de si sua própria castração, para contemplar o sentimento de

ineficiência em ser causa de desejo do Outro, torna-se uma cláusula com a qual o sujeito

não se permite transigir.

O “contrato”, a necessidade de fazer esta renúncia soa-lhe ainda mais leonino

que o pacto já existente com a droga, mantido e estabelecido às expensas de seu próprio

corpo. Assim, não raro, o sujeito recua e volta ao “financiador” antigo, para um tempo

depois recomeçar sua tentativa de tratar-se. Esse movimento pendular que passa a

existir entre a droga e o pedido de tratar-se é nossa chance como analistas, para a

construção de uma demanda. Aprendemos a aceitá-lo em toda sua insipiência e

modulações, e reaprendemos sempre no ofício desta clínica que qualquer avanço é bem-

vindo quando podemos vislumbrar uma abertura para a retificação subjetiva, ainda que

mínima.

Assim, manter a direção de um tratamento apenas voltado para a abstinência é

um lugar onde nem sempre conseguimos chegar, e, ainda quando alcançado, não

necessariamente livra o sujeito das recidivas. Esse fato nos ensina a lidar com simples

104

reduções da ingesta ou da quantidade substância como um avanço que de forma alguma

é destituído de importância e dispensável.

No entanto, quando advém a abstinência é que verdadeiramente nos deparamos

com o núcleo da questão, e é esse o momento em que a escuta encarna de forma

exponencial toda sua função. O estabelecimento da transferência permite que pouco a

pouco vão emergindo, sob o discurso obturador de “Eu sou drogado”, histórias cujo

conteúdo desvela uma carga de dramaticidade que muitas vezes beira os limites da

suportabilidade. O distanciamento do produto fará aflorar no discurso, ainda que de

forma não associativa, as razões de sua eleição. A clínica nos aponta vários entraves na

escuta desses sujeitos, mas nenhum é maior que o risco da passagem ao ato.

Ouvimos sobre maus-tratos, abusos, abandonos, perdas, mortes, relatos

contundentes e que constituíram um fator decisivo para nossa iniciativa em escrever este

trabalho. Percebemos em grande número delas um núcleo comum, que poderia se

reduzir a elementos como angústia e desamparo, que, vividos de forma tão visceral,

primeiramente alojaram o sujeito na melancolia, para realocá-lo mais tarde na

toxicomania.

Essas questões clínicas colocam-se a cada novo paciente, e a maneira que temos

de nos apaziguar diante delas é pensarmos que a clínica da dependência química é feita

principalmente de descontinuidades e que a regularidade não é o seu tempo de

referência, apesar de esta se constituir um grande trunfo. Pensarmos uma direção da

escuta desses pacientes nos coloca essa reflexão sobre a temporalidade. Inspiramo-nos

nas palavras de Hassoun que apontam para o uso do tempo e o “ritmo das sessões”

como moduladores que poderiam ser generalizados e incluídos na experiência histórica

dos sujeitos. Uso do tempo como experiência de uma Lei organizadora e estruturante,

em que, por exemplo, a próxima dose pode ser trocada pela próxima sessão – o que

possibilitaria a constituição de um objeto suscetível de dar contorno e forma a uma

imagem ausente. (HASSOUN, 2002, p.40)

Este tempo se apresenta muito mais recheado de impasses que de avanços, o que

inclui momentos de inibição e perplexidade também por parte do analista; e o único

movimento que não podemos nos dar ao luxo é o da desistência e do esvaziamento de

nosso lugar, lugar do ato analítico.

Psicanalisar não cessa com o fim de uma sessão. É na teoria, na escritura e na

transmissão de saber que descobrimos o quanto o tempo dos mestres é incessante e

produtivo. Retornar aos compêndios, ao contrário de rechear nossas hiâncias teóricas,

105

faz com que estas se abram ainda mais, em uma mitose infinita como o universo

significante.

Da revolução freudiana à revolução lacaniana, estende-se um mundo teórico tão

vasto quanto podem ser as expressões do inconsciente. Podemos, como interessados

pela teoria, perscrutar cada interstício entre conceitos, estendê-los, adensá-los, reduzi-

los, torná-los justapostos por similitude, antinomia, contigüidade, cronologia. Porém,

jamais encerrá-los em um universo fixo. Por esta razão é que estamos dispostos a

prosseguir.

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