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INVESTIGAÇÃO NUMA PEQUENA COMUNIDADE DE VIZINHANÇA Eduardo Stotz

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INVESTIGAÇÃO NUMA PEQUENA COMUNIDADE DE VIZINHANÇA

Eduardo Stotz

Os eventos relatados a seguir tem por cenário uma comunidade

conhecida pelo nome de Travessa; o casario situado no morro faz a

ligação entre a grande avenida circular que, abaixo, margeia o curso

do principal rio da cidade e, acima, a estrada de acesso ao centro

urbano. O casario se dispõe na forma de um paralelogramo torto para

o lado esquerdo e estreito na ponta. Numa visão aérea parece um

navio encalhado na rocha em cuja proa se encontra a Casa de Lata.

Parte I

A menina de 10 anos caminha ao lado das colegas, subindo a Travessa. Fazem uma algazarra ao lembrar alguns dos meninos da turma, comentando imaginários namoros. Ela nada fala, mas participa da alegria até o momento em que as outras começam a maldizer um garoto efeminado e que aprontaram para ele no recreio.

Um automóvel passa por elas, na direção do casario. A mulher que está no lugar do carona fala com o homem ao volante. Diz: você precisa pegar a conta de luz do imóvel, mudar para o teu nome. Ele não responde. Estaciona o automóvel na única vaga disponível no pátio da Travessa. Agora vamos descarregar as compras, declara para encerrar o assunto.

A velha senhora doente assiste outra vez à entrada do ex-marido com a nova mulher. A coabitação no terreno comum, ela na casa antiga, ele numa garagem transformada em casa de cômodos, fora o acordo para não pagar a separação judicial e dividir os bens, essa aporrinhação que parece inclusive atrair pessoas mais aquinhoadas pela sorte. Mas na época não tinha a fulaninha vinte anos mais moça que ele introduziu assim que acabou a reforma da garagem. Acontece sempre assim: no meio da tarde, após trancar o automóvel estacionado no pátio da Travessa, os dois chegam a pé, ele reclamando de carregar as compras. Depois que saem da visão dela, a velha senhora os esquece. A vida dela se divide entre os cuidados com a neta e o sofrimento imposto pelo tratamento médico. Não está mais em condições de lhe dar a atenção merecida, de penteá-la e fazer trancinhas naquele cabelo lindo, de saber como tem sido os dias na escola, de oferecer um pedaço de bolo (geralmente de fubá) que costuma preparar no começo da tarde, essas coisas de uma avó transformada em mãe desde o desaparecimento da filha

com um namorado, há muitos anos. Maldita doença, fala para as paredes.

Um pouco acima, em residência situada no ângulo mais aberto do casario, uma mulher acaba de pendurar a última peça de roupa no varal. O dia está agradável, ensolarado e venta bastante; camisolas, peças íntimas e meias ficarão com o agradável cheiro de novas – avalia com satisfação. Percebe a chegada do ex-marido da vizinha doente, aquele traste, soletra tras-te, repete tras-te, como se ele pudesse ouvi-la. O pensamento logo desvia para as tarefas domésticas. Entra em casa pela área de serviço, quando o telefone toca. Atende a um apelo de socorro: a voz trêmula do outro lado da linha diz não saber o que fazer. Diante do pedido de calma para saber o acontecido, ouve o relato da vizinha do meio ter acordado ontem, de noite, com o barulho de alguém socando a persiana. Assustada, disse ter chamado pelo marido, acorda, acorda que tem um ladrão aí fora! Quando ele despertou o ladrão já tinha ido embora. Não pode ser ladrão, tem de ser maluco para esmurrar a casa do outro, repara. Pode ser, mas você tem de me ajudar, suplica a vizinha do meio. A minha filha está apavorada e eu mesma estou com medo de dormir. Está bem. Fique tranquila, vamos encontrar uma solução – responde.

A menina de 10 anos se despede da neta da velha senhora doente e das duas outras colegas pelo caminho. Está quase a chegar a casa. Continua a pensar na atitude preconceituosa da amiga. Lembra que a neta da vizinha doente a convidou para conhecer os amigos no Facebook dela. Era pura fofoca, muito desrespeito com outros a partir de coisas tipo espinhas no rosto, pequenos defeitos físicos, brigas em sala de aula, denúncias de cola em prova, mentiras. Pior é o caso do garoto fru-fru. Ela apenas vê um menino acanhado, sem energia. Fru-fru? Ainda não alcança a plenitude do entendimento dessa expressão; sabe ser uma coisa vergonhosa, pois os garotos da turma um dia passaram a mão na bunda dele. O garoto chorou. As meninas pressionam o garoto depois da saída da professora, roçam nele e aos gritos histéricos “fru-fru” saem correndo. Nojento, pensa. Feio, muito feio. Um misto de asco e de tristeza a toma por inteiro; chega a sentir ânsia de vomitar quando abre o portão da casa onde mora.

A mãe da menina de 10 anos avista a filha se aproximar e pensa na beleza: a imagem de uma flor destacando-se na folhagem da árvore no começo da rua. Às vezes ela está com Américo e, sem querer, fala: olhe ali, que bonito! Onde? Ali na árvore! O quê? A flor!

Ah, a flor... é mesmo bonita. Bem, o que interessa no mundo são os detalhes. Certamente é aonde muitas vezes o diabo se esconde. Contudo como chegar ao todo senão pelas partes? Esse pensamento a conduz à situação imediata. A filha cruza por ela, sem beijá-la, entra e tranca-se no quarto. Alguma coisa aconteceu. Conhece a filha: precisa de um tempo; o mal estar, qualquer que seja, vai passar. Sabe que ela deitará na cama, fechará os olhos, concentrada apenas na música ouvida no iPhone. Mais tarde irá falar com ela, saber o que se passou. Ajeita uma mecha do cabelo ruivo atrás da orelha com uma escova e vira o rosto para contemplar o brinco que comprara no shopping domingo passado. Olha-se novamente no espelho e diz: teu nome é vaidade, mulher. Sorri. Ah, os cuidados da beleza, como são envolventes, pensa e continua a escovar o cabelo. Nem por isso uma mulher precisa ser inculta e tola. Lembra-se da mãe, sempre preocupada com tais cuidados. Professora primária, numa época em que a formação na escola normal bastava para se adquirir conhecimentos e uma vasta cultura, a mãe tivera a oportunidade de assistir aulas de língua portuguesa proferidas por José Oiticica, um velho anarquista de quem sempre falava quando enfatizava a importância da autonomia das pessoas. Tratava-se de um dever para com a dignidade humana. Um dever que (aí era a mãe falando) incluía atenção para a aparência. Vestir-se sempre com apuro, cuidar de si, advertia. A mãe da menina de 10 anos se dá conta de que está a devanear enquanto passa a hora de cuidar dos outros, da família. Termina de se arrumar, pega uma caneta e um bloco de papel no qual estão anotados itens de consumo e vai até a dispensa. Abre a porta do armário, registra o que precisa comprar. Depois vai até o quarto de Iracema, avisa que vai sair, mas não demora a voltar.

Anoitece. O silêncio progressivo no casario se faz acompanhar da escuridão nas casas, apagando-se as luzes ora nas salas, ora nos quartos. Entretanto há um período de quase uma hora durante o qual os diálogos da novela das oito compõem o cenário virtual no qual todos estão imersos. Caso algum caminhante solitário atravessasse aquela comunidade nesse momento imaginaria estar ouvindo a voz amplificada e hipnótica de um invisível gigante. Transcorresse um tempo depois do final da novela e dos pratos do jantar lavados e postos a secar, encontraria todos recolhidos às camas, a cochichar ou a ressonar.

Parte II

A iluminação pública próxima à moradia localizada no estacionamento projeta-se para dentro do quarto do casal pelas frestas da persiana. A mulher tem o sono agitado. Às vezes ergue as mãos diante do rosto, como se procurasse afastar um inseto. De repente a iluminação é bloqueada com a sombra de um vulto. Imediatamente se afasta para desfechar socos com os punhos cerrados sobre a madeira. Ela desperta apavorada. Talvez sonhasse com a ameaça de invasão da casa, pois chama pelo marido aos gritos de “ladrão!”. Quando, aturdidos, erguem-se da cama e, cambaleantes, se encaminham, ele para a sala, ela para o quarto da filha, ouvem apenas sua própria respiração sobressaltada. O homem abre a porta para o frio da madrugada. Vai até o portão, sai e caminha pelo estacionamento. Não distingue ou ouve pessoal ou animal perambulando pelas redondezas nessa noite de lua nova.

Parte III

Ao abrir a porta da casa pela manhã, a mãe da menina de 10 anos encontra um papel dobrado no chão. Trata-se de um bilhete, sem assinatura, no qual está escrito: "A situação é grave. Convide as mulheres para um lanche na sua casa". Caminha até a sala, senta-se no sofá ao lado da mesa de telefone. Fica imóvel, meditando. Então pega o aparelho e, após um forte suspiro, faz a discagem dos números para acertar a reunião com as vizinhas da ponta, do meio e a faladeira. Combinam de se encontrar na tarde do dia seguinte.

A vizinha da ponta que fica do lado da Casa de Lata chega antes da hora marcada. A mãe da menina de 10 anos chateia-se com a antecipação, pois está a arrumar a casa. A faxineira faltou, a bagunça do domingo se espalha em miudezas e restos pelos cômodos: o que as outras vão dizer? Agora não tem mais jeito, a vizinha está na sala. Para entretê-la, pergunta se vai chover; a outra diz esperar que não. Mesmo com a advertência a respeito da necessidade de chuva por conta da prolongada estiagem desde o inverno findo, replica que podia chover se fosse longe daqui, o clima seco e fresco durar o ano todo. Passam segundos em silêncio. Para sorte da mãe da menina de 10 anos, a campainha soa anunciando mais visitantes.

Estão agora sentadas em volta da mesa. Serviram-se do café com biscoitos e água oferecidos pela anfitriã. Demoram um pouco para ficar à vontade e entrar no assunto, falam das filhas, de compras, da carestia da vida. Então as visitantes olham para ela, na expectativa de uma fala inicial; mas também reparam o penteado, a roupa, as unhas pintadas. A mãe da menina de 10 anos é uma bela mulher. Ela toma a iniciativa de mostrar o bilhete e pergunta se alguma delas o tinha escrito.

Fui eu – disse a vizinha da ponta - mas não disse nada a ninguém até saber, pela vizinha do meio, ter acontecido a mesma agressão...

...que aconteceu conosco ontem – completou a bela mulher. Bem, por que estamos aqui sem os maridos? Olhou com firmeza para as outras. Sabemos por quê: os homens, sempre afoitos, logo querem resolver o assunto nos sopapos; pior, uma atitude assim pode favorecer o agressor, ao inverter o papel para o de vítima.

Lembra que apenas três delas foram vítimas de agressão na madrugada em suas casas. Ela (aponta a vizinha faladeira) não foi ameaçada. Nem a senhora doente. Ou a esposa do professor. Como explicar isso? - conclui a fala com a pergunta.

A mais incomodada parece ser a vizinha faladeira. Ela observa não ter sido vítima de agressão como as outras, mas ressalva não merecer ser agredida.

O comentário suscita a reação indignada da vizinha do meio, indagando se por acaso ela e as outras tem com o agressor alguma dívida, fizeram algum mal a ele pelo qual deveriam pagar.

A vizinha faladeira, ao se dar conta da embrulhada em que se metera, fala num impulso: quem age assim é louco e louco somente pode ser alguém que não divide nem a palavra com os outros, fica enfiado naquela casinha de lata.

As vizinhas da ponta e a do meio a ouvem sem demonstrar espanto. Também antipatizam com o homem da Casa de Lata, mas é melhor que a suspeita seja apresentada pela faladeira. Sabem que, por ser a única naquela comunidade a viver sozinha após o falecimento do marido, sem ter filhos e nada além daquelas paredes, os móveis e um gato que arranha suas pernas, ocupa seu tempo observando os demais moradores.

Por isso, as duas não acusam o homem da Casa de Lata; preferem a exclusão dos suspeitos: a da ponta, com sorriso malicioso, refere-se ao professor e a mulher dele como pessoas acima de qualquer suspeita pois, além de não terem sido agredidos, a casa deles sobressai-se na comunidade por ter sido construída sobre um espaçoso porão.

Por outro lado, diz a vizinha do meio, o ex-marido da velha senhora doente pode ser o agressor.

A atual mulher do ex-marido perceberia a saída dele no meio da noite – contradiz a vizinha faladeira. Tem de ser o homem da Casa de Lata – reafirma. E acrescenta:

É necessário trazer a polícia para tomar conta da situação e enquadrar o doido.

A vizinha bonita está encostada na parede ao lado da janela da sala. Em silêncio até o momento, busca inverter o rumo da conversa que conduz ao veredicto contra o homem da Casa de Lata. Faz lembrar às outras que o problema da agressão começara há poucos dias, mas enfatiza não acreditar que o responsável seja aquele que é o morador mais antigo da Travessa e pessoa de boa índole. Diante do argumento de que todo mundo passa longe dele – com medo, diz a vizinha do meio – retruca não haver prova nem fundamento para a esquisitice explicar um comportamento agressivo.

Essa defesa do homem da Casa de Lata é contestada incisivamente pela vizinha faladeira:

Não estamos de acordo quanto ao culpado: a solução tem de resultar de uma investigação policial.

Pede, em nome do grupo, que a apresentação da queixa seja feita pelo marido da anfitriã por causa do bom nome dele na praça.

A ousadia, maldade e inveja percebidas naquela declaração da vizinha faladeira deixam a bela mulher aborrecida. Diz:

Aceito encaminhar a queixa contra a agressão desde que sem denunciar ninguém especificamente – declaração à qual as vizinhas manifestam pleno acordo.

Então, visivelmente satisfeita de ter descontado sua raiva na lindinha metida a importante e conseguido implicá-la na ação comum, a vizinha faladeira despede-se, alegando um serviço urgente.

Parte IV

Nessa noite o professor chega a casa um pouco mais cedo. Estaciona com cuidado o fusquinha amarelo na garagem situada na curva de acesso ao estacionamento. É a única garagem alugada no casario. Locomover-se em várias direções da cidade para dar conta das três jornadas diárias de aula sem o fusquinha valente seria impossível. A sorte de ter sido o primeiro a dispor de automóvel no final dos anos setenta e poder alugar a garagem também evitou, na disputa de vaga de estacionamento, o conflito com vizinhos. Na comunidade há pessoas razoáveis, outras nem tanto.

Depois sobe a pé, devagar, observando o entorno. O vento cessa de soprar no momento em que um último raio de sol se projeta das montanhas no horizonte; a luz faísca num átimo e depois a paisagem começa a mergulhar na penumbra. Ele gosta desse momento de serenidade. Há uma mudança no ritmo que afeta a mente, aquietando-a. Nesse estado de espírito encontra a esposa e o filho em casa. Durante o jantar o professor é notificado dos eventos comunitários.

De todas as informações parece ter incomodado mais, pode-se dizer até causado certo desencanto, a relativa à autoria da queixa. Afinal, eles, professor e a bela vizinha, conheciam-se desde a adolescência. Embora nunca ousasse ser um pretendente, tivera por ela uma longa paixão inconfessada. Uma época de preconceito e a condição humilde demoveram-no de qualquer expressão de sentimentos. Tornou-se amigo dela, transformando sua atração em escuta atenta das vicissitudes que vivia na época. Dá-se conta do mutismo em que caíra em decorrência de tais lembranças e volta a participar da conversa com a esposa e o filho. Manifesta acordo quanto a faltar ao homem da Casa de Lata motivo para socar as persianas da casa dos outros de madrugada; assinala outro aspecto a se considerar em favor dele: a idade avançada do antigo morador contrasta com a impressionante mobilidade do agressor. Pois então faltam peças nessa espécie de jogo de quebra-cabeça, arremata o

filho. Mas é a esposa quem diz o que não se pode negar: a desavença na comunidade se aprofunda.

Provavelmente em decorrência dessa preocupação, o professor tem, nessa noite, um sonho perturbador. Encontra-se no interior de uma sala imensa, onde se encontra um equipamento de grande proporção cujo eixo é movido por dois dínamos, girando um no sentido horário, outro no anti-horário. Fica intrigado com a ausência de ruído, mas tem a sensação de que o eixo está a se desacelerar para inverter o sentido da rotação. Quando se aproxima mais, quase a tocar no aparelho, todo movimento cessa. Nesse momento percebe tratar-se de um holograma. Dá um passo e o atravessa para acordar ao lado da esposa adormecida. Pensa: sonhei com a máquina do mundo.

Parte V

O agente da lei está diante da mulher bonita e de seu marido com um papel na mão. Lê em voz alta:

Ameaça é uma tipificação de um delito que pode ou não gerar uma investigação, a depender do registro da ocorrência em boletim, cujas informações devem ser verdadeiras, os declarantes precisam ser denominados e qualificados e as partes envolvidas identificadas.

Acabada a leitura a respeito da tipificação da queixa, pergunta se pretendem prosseguir a ação; com a anuência do casal, entrega um formulário do boletim de ocorrência, solicitando o preenchimento dos dados e a entrega da respectiva documentação o mais rápido possível.

A formalização da queixa apresentada conduz à tomada de depoimentos das moradoras pelo agente da lei na manhã seguinte, passando a compor o processo 43-A.

Parte VI

Um dia depois, às 15h30min horas, em meio a uma neblina que

prenuncia chuva, o agente da lei estaciona o automóvel no pátio da

comunidade da Travessa.

O agente da lei está aborrecido: a mulher bonita e seu marido retiraram a queixa sob a alegação de não pretender, com o processo, intimidar nenhum morador da Travessa. Em outros termos, não há mais queixa. Informadas a respeito, as outras depoentes e os respectivos maridos decidem manter suas opiniões incriminatórias, mas se recusaram a formalizá-las. Outro processo inconcluso. Pior: indicador de baixa produtividade policial. Contudo, o agente da lei é um tipo sistemático, não deixa o dito pelo não dito. Para ele, dizer é o verbo da lei.

Por isso encontra-se ali. Faz a pé o percurso em torno do que lhe parece ser uma pequena aldeia disposta no patamar de um morro, em leve e sinuoso declive. Depois de percorrê-la por inteiro uma vez sem se deter, constata, na segunda caminhada, que as vias de acesso parecem compor em torno do casario um paralelogramo dentro do qual conta 10 imóveis. Na extremidade norte desse paralelogramo localiza a assim denominada Casa de Lata. Trata-se de uma comunidade consolidada pois a energia elétrica e a rede de abastecimento atingem todas as residências. Quanto ao abastecimento há também, segundo informações obtidas na companhia distribuidora, captação de água de mina. Na realidade um dos problemas mais sérios parece ser o do acesso às residências por automóvel. O estacionamento onde se encontra não tem vagas para todos os veículos. O lote não tem arruamento regular. A Casa de Lata, por ser a mais antiga, provavelmente definiu o avanço das demais. Quem sabe, pensa, mas isso não faz parte da investigação, os moradores mais antigos saíram há muito tempo, sobrando apenas esse homem da Casa de Lata. O muro da casa faz um ângulo reto na servidão com a Travessa e a casa ao lado está encostada no muro em diagonal. Estima a distância entre o muro e a casa em cinquenta centímetros, o que mal permite passar um adulto. Então se dá conta de que o homem da Casa de Lata se encontra na varanda com a filha. Interrompe a caminhada para assistir, da rua, a cena dele a pentear os longos cabelos dela, para seu espanto, grisalhos. Ele tem a aparência de um tipo comum, de estatura baixa, atarracado, com uma expressão bonachona no rosto, conforme descrita num dos depoimentos; usa uma roupa caqui, talvez uma espécie de uniforme de trabalho. Ela, uma mulher idosa com feição de menina, está imóvel, abandonada aos carinhos do pai. Por algum motivo, o homem se dá conta de ser observado e vira o rosto, a escova suspensa na mão. Encontra os olhos baços do agente da lei a mirá-lo. Devolve um olhar inexpressivo e meneia a cabeça, cumprimentando-o. Os

pensamentos acerca do estranho, quaisquer que sejam, são deixados de lado para entregar-se novamente ao ato de escovar os cabelos da filha, lentamente, sempre no mesmo sentido. O agente da lei segue adiante.

A Travessa concentra o casario do lado esquerdo, pois uma pedra estendida até o topo do morro serve de limite pelo lado direito. Na ponta sul do casario, num dos maiores terrenos, encontram-se as residências da velha senhora e a do ex-marido. Contorna o casario e caminha pelo lado esquerdo. Percebe, ao lado de uma casa, uma garagem fechada e, após uma subida tortuosa, chega ao estacionamento novamente. Passa diante da casa de mulher bonita. A família dela tem uma garagem própria. Contudo, para sair de automóvel as pessoas são obrigadas a chamar o vizinho cujo veículo esteja estacionado diante do portão naquele momento. Constata nessa residência uma das características daquela comunidade, a saber, a facilidade de transpor os portões, sem cadeados e, portanto, de aproximar-se das janelas com persianas sem nenhuma dificuldade. Termina a investigação do local às 16 horas e três minutos.

Parte VII

Senhor agente da lei?

Sim – responde o agente ao deparar-se com o professor. Antecipa-se à apresentação dele:

E o senhor é o professor. (O agente surpreende-se ao se deparar com um homem negro, entre 45 e 50 anos de idade.) O que deseja?

O senhor parece ter concluído a investigação.

Sem dúvida – confirma.

Como eu não fui procurado, certamente não julgou necessário, pois não fui vítima da ameaça...

Não é parte – corrige.

Sim, não sou parte; por isso tomo a liberdade de levar ao seu conhecimento algumas informações a respeito dessa pequena comunidade na qual vivo há quarenta e cinco anos.

Pode reportar – concede.

Estamos, o senhor e eu, acostumados, por ofício de profissão, a avaliar os outros, embora em posições bastante diferentes.

Correto, prossiga.

Por isso, o método de avaliação tem uma relativa importância. Quando se apresenta um problema a ser examinado temos de saber quem está envolvido e, mais importante, de que forma.

Sim – concorda.

Geralmente deixamos de lado tudo o que não pertence ao “aqui e agora”.

Sem dúvida.

Assim, a história começa por meio da nossa interpelação dos fatos; no fundo parece não existir uma história independente de nossa consciência e vontade.

O agente começa a perceber uma ameaça ao seu trabalho. Lembra ter assistido a uma aula de Direito Penal no qual um psicólogo convidado pelo professor da disciplina apresentava instruções a um sósia para permitir que os implicados não tivessem receio de abrir a guarda e falassem de si por meio de outrem. Resolve sair da atitude aparentemente passiva:

Certamente o senhor conhece o chamado homem da Casa de Lata.

Sim, o conheço há um bom tempo, mas temos falado pouco ultimamente.

A neblina torna-se mais espessa e de repente clareia. Eles ouvem um

trovão, segundos depois outro. Uma tempestade se aproxima.

Quando meus pais chegaram à Travessa a única casa existente era a de lata – continua o professor. Eles me contaram a seguinte história: construída no início da primeira guerra mundial a casa passou de pai para filho por volta de 1930; continuou a viver lá com a esposa até que, por volta de 1965, nasceu a menina; a mãe morreu devido à complicação no parto. Deve ter hoje uns... trinta anos; sofre de deficiência mental, o pai cuida dela. É uma boa moça... Ele era um ferroviário, operador prestes a se tornar maquinista; foi aposentado compulsoriamente em 1964 e trabalha desde então como jardineiro. Na verdade ele é quem nos conhece há muito tempo, viu muita gente

daqui crescer, pessoas a chegar e sair, outras a morrer. Às vezes, quando retorno das minhas diversas jornadas escolares, o percebo trabalhando num quintal e outro, lá para cima onde vive o pessoal mais aquinhoado.

Pois bem, e então?

Com um gesto de mão para pedir paciência, o professor conclui:

Em resumo, ele é inocente e nada tem a ver com a agressão e a denúncia de alguns moradores. A raiz desse problema tem a ver com o fato de que formamos uma comunidade de vizinhança que, ao longo do tempo, com a entrada e saída de pessoas, acabou por não ter mais uma história comum. Aos poucos, em nossa época marcada, como sabe, por um individualismo extremado, os mais jovens...

O agente da lei considera que tem de puxar a corda de volta para si:

Talvez o senhor prossiga sua própria pesquisa histórica durante a noite, após o jantar – intervém abrupta e rudemente o agente, dando o assunto por encerrado.

O professor não se dá por vencido. Contradizer é o desígnio de sua arte, a literatura. Tenta um último recurso:

O senhor está a nos deixar no momento em que outros indícios permitem apontar não o culpado, mas uma pessoa que encontrou apenas uma forma de reagir. Porque, quase certamente, não pode, não consegue falar de um problema mais grave que...

O agente da lei o interrompe, dessa vez definitivamente. Com voz grave, pausada, afirma:

Aproveito a oportunidade deste encontro para lhe informar, pois o vejo como uma pessoa esclarecida dessa... como a denomina?

...pequena comunidade de vizinhança...

Isso mesmo, dessa pequena comunidade de vizinhança... a respeito do transcurso e a conclusão da investigação. Na medida em que os depoimentos nada acrescentaram de específico e não apontaram pistas, obrigaram-me a tentar entender a lógica do agressor no próprio espaço da comunidade.

Explica como esquadrinhou o casario e o traçado das ruas, os ângulos e a possibilidade da passagem de automóvel desde que a Casa de Lata fosse recuada, o que implicaria a sua demolição parcial e reconstrução.

O estacionamento é o busílis – arremata convencido de seu raciocínio. Continua:

Não há evidências diretas, mas é provável tenha ocorrido um entrevero entre o homem da Casa de Lata e o ex-marido da senhora doente. Provável, repete. Ao final das contas, professor, o senhor e os demais moradores puderam constatar que a vigilância da lei se fez presente, talvez onde nunca tenha chegado antes. É uma advertência – diz o agente – capaz de refrear o maléfico intento do agressor.

O celular toca. O agente da lei pede desculpas e se afasta para atender. A neblina parece ter atingido o ponto de máxima concentração, mal se distingue o vulto dele. Quando retorna, entrega um cartão ao professor:

Se o senhor tiver algo mais a me dizer, por favor, ligue para este número.

O professor fica parado no portão observando a saída do

agente. A neblina se dissipa rapidamente. Os trovões se sucedem.

Começa a chover.

Stotz, Eduardo

Investigação numa pequena comunidade de vizinhança/ Petrópolis: dezembro de 2012 – abril de 2017.

15 p.: il.

Crédito

Casa de Lata: detalhe. Imagem fotográfica do autor, 03 de dezembro de 2012.