Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de...

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Universidade Federal de Pernambuco Centro de Ciências Sociais Aplicadas Departamento de Ciências Administrativas Programa de Pós-Graduação em Administração – PROPAD André Luiz Maranhão de Souza Leão Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de compreensão da significação das marcas pelos consumidores inspirada na segunda filosofia de Ludwig Wittgenstein Recife, 2007

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Universidade Federal de Pernambuco Centro de Ciências Sociais Aplicadas

Departamento de Ciências Administrativas Programa de Pós-Graduação em Administração – PROPAD

André Luiz Maranhão de Souza Leão

Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de compreensão da

significação das marcas pelos consumidores inspirada na segunda filosofia de Ludwig Wittgenstein

Recife, 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO

CLASSIFICAÇÃO DE ACESSO A TESES E DISSERTAÇÕES Considerando a natureza das informações e compromissos assumidos com suas fontes, o acesso a monografias do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Pernambuco é definido em três graus: - "Grau 1": livre (sem prejuízo das referências ordinárias em citações diretas e indiretas); - "Grau 2": com vedação a cópias, no todo ou em parte, sendo, em conseqüência, restrita a

consulta em ambientes de biblioteca com saída controlada; - "Grau 3": apenas com autorização expressa do autor, por escrito, devendo, por isso, o texto,

se confiado a bibliotecas, que assegurem a restrição, ser mantido em local sob chave ou custódia.

A classificação desta tese se encontra, abaixo, definida por seu autor. Solicita-se aos depositários e usuários sua fiel observância, a fim de que se preservem as condições éticas e operacionais da pesquisa científica na área da administração. Título da Tese: “Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de compreensão da significação das marcas pelos consumidores inspirada na segunda filosofia de Ludwig Wittgenstein”. Nome do Autor: André Luiz Maranhão de Souza Leão Data da aprovação: Classificação, conforme especificação acima: Grau 1 Grau 2 Grau 3

Recife, 2007

Assinatura do autor

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André Luiz Maranhão de Souza Leão

Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de compreensão da

significação das marcas pelos consumidores inspirada na segunda filosofia de Ludwig Wittgenstein

Orientador: Prof. Sérgio C. Benício de Mello, Ph.D.

Tese apresentada como requisito complementar para obtenção do grau de Doutor em Administração, área de concentração em Gestão Organizacional, do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Pernambuco.

Recife, 2007

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Souza Leão, André Luiz Maranhão de Investigações marcárias : uma caminhada em busca de compreensão da significação das marcas pelos consumidores inspirada na segunda filosofia de Ludwig Wittgenstein / André Luiz Maranhão de Souza Leão. – Recife : O Autor, 2007. 413 folhas : fig. e tab. Dissertação (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco. CCSA. Administração, 2007. Inclui bibliografia e apêndice. 1. Marcas comerciais. 2. Valor. 3. Etnografia. 4. Discurso. 5. Linguagem ordinária. I. Título. 658 CDU (1997) UFPE 658.8 CDD (22.ed.) CSA2007-023

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À minha mulher,

Rúbia, que mudou minha vida,

a quem nunca me canso de dizer “eu te amo!”.

Ao meu pai, avô e avó,

que Deus me tirou muito cedo,

sem que eu desse conta que deveria

tê-los dito ao menos uma vez “eu te amo”.

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Agradecimentos

Sempre achei a coisa mais cafona do mundo aquela imensa lista de

agradecimentos que artistas abrem ao ganhar um Oscar. E eis que aqui estou eu, sem Oscar,

mas com uma página em branco, toda minha, e sem uma musiquinha irritante que diga a hora

de eu parar. E daí a cafonice?

Sendo assim, vamos lá:

Agradeço, em primeiro lugar, à minha família, pela paciência em minhas horas

irritadiças e pela compreensão quando de minha ausência, se não física, mas certamente

espiritual, em várias ocasiões.

Em seguida, agradeço muitíssimo a Sérgio Benício, não apenas pela sua valorosa

orientação, mas também pelo seu companheirismo e, sobretudo, por me propiciar e estimular

alçar vôo.

Com caríssima estima, agradeço a todos aqueles que, sem saber, por mim foram

observados em sua privacidade para que este trabalho existisse.

A todos os meus professores do PROPAD, aos colegas de núcleo e de academia,

agradeço pelas contribuições intelectuais valorosas para as minhas reflexões.

À diretoria da Faculdade Boa Viagem, meu muito obrigado pelo suporte durante

estes últimos quatro anos.

Aos participantes de minha banca, meu agradecimento por me honrar com tão

inestimável presença e contribuições.

Mas não vou parar por aqui. Agradeço ainda a todos aqueles que, de alguma

forma, me ensinaram e influenciaram, e mesmo alguns que me inspiraram, e que sinto como

se os conhecesse (por ordem quase aleatória a partir do segundo): Wittgenstein, Debord,

Goffman, Peirce, Lyotard, Baudrillard, Hall, Castells, Mead, Bauman, Jameson, Eco,

Benjamim, Adorno, Horkheimer, Marx, Rokeach, Bourdieu, Berger, Luckman, Merleau-

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Ponty, Frued, Maffesoli, Cova, Firat, Brown, Smithee, Gumperz, Hymes, McCracken, Pinto,

Spaniol e tantos outros que certamente esqueci, mas que teriam a compaixão de me perdoar

pelo lapso.

Mas, muita calma nessa hora, ainda não acabou! Não poderia deixar de mencionar

importantes contribuições ao longo de minha vida: U2, pela inspiração, e Madonna, pela

transpiração, companhias de mais de duas décadas; Chico (Science), pela pernambucanidade,

e Chico (Buarque), pela brasilidade; Renato, Caetano e Cazuza, pela poesia; Woody Allen e

Almodóvar, pela dor e pela alegria; Clarice e Camus, só pela dor; e Gabú, só pela alegria. Mas

ainda falta muita gente. Tudo bem, vou simplificar: todos os Titãs, Tribalistas e Tropicalistas;

todos os mangueboys; os punks, new-wavers, góticos e grunges, e também os britpops.

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“Quando pensamos no futuro do mundo, temos sempre em mente a

situação que ele virá a alcançar se prosseguir na direção em que o

vemos agora mover-se; não nos ocorre que a sua marcha é sinuosa e

não em linha reta e que a sua direção constantemente se altera”.

Ludwig Wittgenstein, 1929 (fragmento de “Cultura e Valor”).

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Resumo

Qual o valor das marcas para os consumidores? Apesar de seu discurso, entendo que a

atividade e o conhecimento de marketing estejam verdadeiramente engajados apenas com a

geração de valor para as organizações, sendo seus clientes tão somente um meio necessário

para tal. Assumindo o consumo como sendo de signos e não de objetos, e as marcas como

signos fundamentais na sociedade de consumo, revisito a economia política, sob uma

perspectiva semiótica, para uma crítica e uma reavaliação da noção de valor de uso. Inspirado

na segunda filosofia de Ludwig Wittgenstein, considero a possibilidade de resgate de tal

noção, num mundo dividido entre o sistema e o vivido, por meio de sua noção de significado

como uso, o que me possibilita sugerir que as marcas são significadas apenas quando

utilizadas, enquanto signos, pelos consumidores em suas vidas cotidianas. Com isto em

mente, realizamos nossas investigações marcárias por meio de um caminho metodológico no

qual incorporamos princípios da etnografia da comunicação e da sociolingüística interacional,

em que observamos participativamente interações sociais ocorridas em grupos diversos.

Nossos achados corroboram minha premissa. Contudo, sugerem que vivemos em um mundo

em crise e que este tem sido o habitat natural das marcas. Nossas reflexões me possibilitaram

propor idéias seminais para uma terapia social que se destine a consumidores, executivos,

educadores, imprensa, políticos e todos os agentes sociais que estejam, de alguma forma,

envolvidos com a produção e o consumo de marcas em sociedades contemporâneas.

Palavras-chave: Marcas. Valor. Etnografia. Discurso. Vida cotidiana. Linguagem ordinária.

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Abstract

What is the value of brands for consumers? In spite of its discourse, I understand that

marketing activity and knowledge are truly engaged with generation of value for

organizations, being its customers only a necessary way for it. Assuming consumption as

being of signs and not of objects, and brands as fundamental signs in the consumer society, I

revisit the political economy, under a semiotics perspective, for a critic and a revaluation of

the notion of use-value. Inspired in Ludwig Wittgenstein's second philosophy, I consider the

possibility of recovering this notion, in a world divided between the system and the lived,

through his notion of meaning-as-use, what makes it possible for me to suggest that brands

are signified only when used, while signs, by consumers in their daily lives. Having this in

mind, we carried out our brand investigations through a methodological way in which we

incorporated principles of ethnography of communication and interactional sociolinguistics,

in which we have observed in a participant way, social interactions which happened in diverse

groups. Our discoveries corroborate my premise. However, they suggest that we live in a

world in crisis that has been the natural habitat of brands. Our reflections made it possible for

me to propose seminal ideas for a social therapy destined for consumers, executives,

educators, the press, politicians and all social agents that are, in some way, involved with

production and consumption of brands in contemporary societies.

Key-words: Brands. Value. Etnography. Discourse. Day-by-day life. Ordinary language.

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Lista de figuras

FIGURA 1 (1): ARCABOUÇO DE AAKER DE “VALOR DE MARCA”.................................................27

FIGURA 2 (1): ARCABOUÇO DE KELLER DE “VALOR DE MARCA”................................................28

FIGURA 3 (1): PROPOSTA DE KAPFERER SOBRE A RELAÇÃO ENTRE IDENTIDADE E IMAGEM DE

MARCA........................................................................................................................................31

FIGURA 4 (1): MODELO SHANNON-WEAVER DE COMUNICAÇÃO................................................33

FIGURA 5 (11): ÁRVORE DE SIGNIFICADOS DA “IDENTIDADE”..................................................333

FIGURA 6 (11): ÁRVORE DE SIGNIFICADOS DO “ESTIGMA”.......................................................343

FIGURA 7 (12): ÁRVORE DE SIGNIFICADOS DA “DISTINÇÃO SOCIAL”........................................356

FIGURA 8 (13): ÁRVORE DE SIGNIFICADOS DOS “VALORES”.....................................................368

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Lista de tabelas

TABELA 1 (6): RELAÇÕES DA FUNÇÃO “CARACTERIZAR”.........................................................164

TABELA 2 (6): RELAÇÕES DA FUNÇÃO “CHAMAR ATENÇÃO”...................................................166

TABELA 3 (6): RELAÇÕES DA FUNÇÃO “CORROBORAR”...........................................................167

TABELA 4 (6): RELAÇÕES DA FUNÇÃO “DEDUZIR”...................................................................168

TABELA 5 (6): RELAÇÕES DA FUNÇÃO “DESVELAR”.................................................................170

TABELA 6 (6): RELAÇÕES DA FUNÇÃO “ENFATIZAR”................................................................172

TABELA 7 (6): RELAÇÕES DA FUNÇÃO “IRONIZAR”..................................................................173

TABELA 8 (6): RELAÇÕES DA FUNÇÃO “[DE]MO[N]STRAR”......................................................175

TABELA 9 (6): RELAÇÕES DA FUNÇÃO “PRESERVAR[-SE]”.......................................................176

TABELA 10 (6): RELAÇÕES DA FUNÇÃO “PROJETAR-SE”..........................................................178

TABELA 11 (6): RELAÇÕES DA FUNÇÃO “PROPICIAR”...............................................................179

TABELA 12 (6): RELAÇÕES DA FUNÇÃO “PROVOCAR”..............................................................181

TABELA 13 (6): RELAÇÕES DA FUNÇÃO “SOLICITAR”...............................................................182

TABELA 14 (6): RELAÇÕES DA FUNÇÃO “SUGERIR”..................................................................183

TABELA 15 (7): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DA “ÊNFASE TÔNICA”........................................190

TABELA 16 (7): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DA “SOLETRADA”..............................................195

TABELA 17 (7): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DA “VOZ ALTA”.................................................201

TABELA 18 (7): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DA “VOZ BAIXA”...............................................206

TABELA 19 (7): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DA “ELOCUÇÃO LENTA”....................................208

TABELA 20 (7): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DA “ELOCUÇÃO RÁPIDA”...................................215

TABELA 21 (7): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DA “AFIRMATIVA”.............................................217

TABELA 22 (7): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DA “EXCLAMATIVA”..........................................224

TABELA 23 (7): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DA “INTERROGATIVA”.......................................234

TABELA 24 (7): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DOS “TONS”.......................................................245

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TABELA 25 (7): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DA “VARIAÇÃO DIALETAL”................................258

TABELA 26 (7): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DA “VARIAÇÃO FONÉTICA”................................259

TABELA 27 (8): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DO “CONTATO VISUAL”.....................................262

TABELA 28 (8): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DO “ROSTO”......................................................265

TABELA 29 (8): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DE “EXPRESSÕES DE SORRISOS”.........................271

TABELA 30 (8): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DO “MOVIMENTO DA CABEÇA”..........................276

TABELA 31 (8): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DE “MOVIMENTOS DÊITICOS”............................278

TABELA 32 (8): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DE “POSTURA”...................................................282

TABELA 33 (9): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DE “ALTERNÂNCIA DE CÓDIGO”........................285

TABELA 34 (9): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DE “CENÁRIO”...................................................287

TABELA 35 (9): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DE “CONHECIMENTO DE MUNDO”......................289

TABELA 36 (9): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DE “CONTEXTO”................................................301

TABELA 37 (10): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DE “AMEAÇA DE FACE”....................................307

TABELA 38 (10): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DE “SALVAÇÃO DA FACE”................................313

TABELA 39 (10): RELAÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO DE “FOOTING”.................................................319

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Sumário

PRÓLOGO 15

PARTE I - PRENÚNCIO DE UMA LONGA CAMINHADA 17

1 “VALOR DE MARCA” PARA QUEM? 19 1.1 ONTOGÊNESE MARCÁRIA 20 1.2 DUAS PERSPECTIVAS, UMA PREMISSA 24 1.3 O PAI-MARKETING E O FILHO-CONSUMIDOR 29 1.4 COMUNICAÇÃO COMO ENGENHARIA HUMANA 33 1.5 O HOMEM MODERNO COMO RECEPTÁCULO 35 1.6 A [RE]EMERGÊNCIA DO HOMO SYMBOLICUS 39

2 PARA UMA CRÍTICA À CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA DO SIGNO 42 2.1 O PROBLEMA DA SIGNIFICAÇÃO 43 2.2 A CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA DO SIGNO 47 2.3 DOIS MUNDOS OU BIDIMENSIONALIDADE MUNDANA? 49 2.4 UMA CRÍTICA À CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA DO SIGNO 55

3 A “TEORIA” DA SIGNIFICAÇÃO NA SEGUNDA FILOSOFIA DE LUDWIG

WITTGENSTEIN 59 3.1 UMA BREVE BIOGRAFIA 60 3.2 SIGNIFICADO PELO USO: LINGUAGEM COMO JOGO 63 3.3 AS REGRAS DO JOGO: LIMITES DE UM RELATIVISMO GRAMATICAL 66 3.4 FORMA DE VIDA: NATURALISMO ANTROPOLÓGICO 69 3.5 MEINEN: IMPOSSIBILIDADE DE UM “EU” DESPÓTICO 71 3.6 PARA ALÉM DO DUALISMO INTERNO/EXTERNO: SUPERAÇÃO DO DILEMA MENTE/CORPO 74 3.7 UM MÉTODO POR EXEMPLOS: TERAPIA AO FEITIÇO DA LINGUAGEM 76

4 PRINCÍPIOS PARA NOSSAS INVESTIGAÇÕES MARCÁRIAS 79 4.1 NO CAMINHO PARA UMA ELABORAÇÃO TEÓRICA SOBRE O VALOR DE USO DAS MARCAS

ENQUANTO SIGNOS 80 4.2 SOBRE O MÉTODO NAS INVESTIGAÇÕES MARCÁRIAS 83 4.3 NOTAS COMPLEMENTARES À COMPREENSÃO DO MÉTODO NAS INVESTIGAÇÕES MARCÁRIAS 90

4.4 MAS POR QUE FAZER AS INVESTIGAÇÕES, AFINAL? 906

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PARTE II - INVESTIGAÇÕES MARCÁRIAS 100

DE SIGNIFICÂNCIA 103

5 ATIVIDADES MARCÁRIAS 105 5.1 ADESÃO A OUTRA MARCA 106 5.2 ASPECTO DA MARCA 107 5.3 ASSUNTO RELATIVO À MARCA 110 5.4 CARACTERÍSTICA DO USUÁRIO DA MARCA 112 5.5 COMPARAÇÃO DA MARCA 113 5.6 COMPORTAMENTO DA MARCA 115 5.7 CONFIANÇA NA MARCA 117 5.8 CONHECIMENTO DA MARCA 118 5.9 CONSTRANGIMENTO EM RELAÇÃO À MARCA 119 5.10 DEFESA DA MARCA 121 5.11 DESABONO À MARCA 122 5.12 DESCONFIANÇA DA MARCA 125 5.13 DESCONHECIMENTO DA MARCA 126 5.14 DIFERENÇA EM RELAÇÃO À MARCA 127 5.15 DISSIMULAÇÃO EM RELAÇÃO À MARCA 128 5.16 ENVOLVIMENTO COM A MARCA 129 5.17 ESCOLHA DA MARCA 130 5.18 EXPECTATIVA EM RELAÇÃO À MARCA 132 5.19 FORMA DE USO DA MARCA 133 5.20 FRUSTRAÇÃO EM RELAÇÃO À MARCA 134 5.21 GAFE EM RELAÇÃO À MARCA 136 5.22 INADEQUAÇÃO DO USUÁRIO À MARCA 138 5.23 INCOERÊNCIA EM RELAÇÃO À MARCA 139 5.24 INTERESSE PELA MARCA 139 5.25 INTIMIDADE COM A MARCA 140 5.26 JUÍZO A RESPEITO DA MARCA 141 5.27 LEMBRANÇA DA MARCA 148 5.28 NOME DA MARCA 149 5.29 OBJETO DA MARCA 150 5.30 OPINIÃO SOBRE A MARCA 150 5.31 PRECONCEITO RELACIONADO À MARCA 151 5.32 REJEIÇÃO À MARCA 152

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5.33 SENTIMENTO PELA MARCA 153 5.34 SITUAÇÃO RELACIONADA À MARCA 155 5.35 SUGESTÃO DA MARCA 156 5.36 SURPRESA EM RELAÇÃO À MARCA 158 5.37 USO DE CONCEITO DA MARCA 158 5.38 VALOR DA MARCA 160

6 FUNÇÕES DO USO DA LINGUAGEM NA SIGNIFICAÇÃO DAS MARCAS 162 6.1 CARACTERIZAR ALGO RELATIVO À MARCA 163 6.2 CHAMAR ATENÇÃO PARA ALGO RELATIVO À MARCA 165 6.3 CORROBORAR ALGO RELATIVO À MARCA 167 6.4 DEDUZIR ALGO A RESPEITO DA MARCA 168 6.5 DESVELAR ALGO A RESPEITO DA MARCA 169 6.6 ENFATIZAR ALGO RELATIVO À MARCA 171 6.7 IRONIZAR ALGO RELATIVO À MARCA 173 6.8 [DE]MO[N]STRAR ALGO RELATIVO À MARCA 174 6.9 PRESERVAR[-SE] DE ALGO RELATIVO À MARCA 175 6.10 PROJETAR-SE POR MEIO DE ALGO RELACIONADO À MARCA 177 6.11 PROPICIAR ALGO EM RELAÇÃO À MARCA 179 6.12 PROVOCAR ALGO EM RELAÇÃO À MARCA 180 6.13 SOLICITAR ALGO A RESPEITO DA MARCA 181 6.14 SUGERIR ALGO A RESPEITO DA MARCA 182

DA SIGNIFICAÇÃO 185

7 PROSÓDIA MARCÁRIA 187 7.1 ACENTUAÇÃO 188 7.1.1 A ÊNFASE TÔNICA 189 7.1.2 A SOLETRADA 195 7.2 ALTURA DA VOZ 200 7.2.1 VOZ ALTA 200 7.2.2 VOZ BAIXA 206 7.3 DURAÇÃO DA ELOCUÇÃO 207 7.3.1 A ELOCUÇÃO LENTA 207 7.3.2 A ELOCUÇÃO RÁPIDA 214 7.4 ENTOAÇÃO 216 7.4.1 AFIRMATIVA 217

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7.4.2 EXCLAMATIVA 223 7.4.3 INTERROGATIVA 233 7.5 TOM 244 7.6 VARIAÇÕES ORTOÉPICAS 257 7.6.1 VARIAÇÃO DIALETAL 257 7.6.2 VARIAÇÃO FONÉTICA 259

8 CINÉSICA MARCÁRIA 261 8.1 CONTATO VISUAL 262 8.2 EXPRESSÃO FACIAL 264 8.2.1 EXPRESSÕES COM O ROSTO 264 8.2.2 EXPRESSÕES DE SORRISO 270 8.3 MOVIMENTO DA CABEÇA 275 8.4 MOVIMENTO DÊITICO 278 8.5 POSTURA 281

9 VISÃO ÊMICA MARCÁRIA 284 9.1 ALTERNÂNCIA DE CÓDIGO 285 9.2 CENÁRIO 286 9.3 CONHECIMENTO DE MUNDO 288 9.4 CONTEXTO 300

10 “ALTER-‘EU’” MARCÁRIO 305 10.1 FACE 306 10.1.1 AMEAÇA 307 10.1.2 SALVAÇÃO 312 10.2 FOOTING 318

DOS SIGNIFICADOS 328

11 MARCAS COMO SIGNOS IDENTITÁRIOS 330 11.1 IDENTIDADE 332 11.2 ESTIGMA 341

12 AS MARCAS NA BUSCA DE DISTINÇÃO SOCIAL 351

13 MARCAS COMO REFLEXO DE VALORES HUMANOS 365

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PARTE III - DESFECHO DESTA CAMINHADA 379

14 AS MARCAS NUM MUNDO EM CRISE 381 14.1 PODEMOS FALAR DE UM JOGO DE LINGUAGEM MARCÁRIO? 381 14.2 SÃO AS MARCAS IMPORTANTES PARA AS PESSOAS? 386 14.3 É DE VALOR O USO DAS MARCAS? 389

15 PARA UMA TERAPIA MARCÁRIA 394 15.1 POR UMA SOCIEDADE (DE CONSUMO) RESPONSÁVEL 395 15.2 POR UM MARKETING HUMANO 399

EPÍLOGO 402

BIBLIOGRAFIA 403

APÊNDICE - EXEMPLO DE DESCRIÇÃO DE OBSERVAÇÃO E DE SUA ANÁLISE

PRELIMINAR 411

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Prólogo

Desde que precisei optar por um curso quando prestei vestibular – e lá se vão uns

bons quinze anos –, percebi a importância das marcas em minha vida. Minha escolha por

Publicidade & Propaganda se deveu ao fato de eu querer entender o que fazia as pessoas

preferirem certas marcas em detrimento de outras, mesmo quando seus produtos eram tão

parecidos – para não dizer idênticos, o que ocorre na maioria dos casos. Evidentemente, este

não é um curso que trate, especificamente, de marcas, e hoje acho que foi por isso que

procurei a área de marketing para minha pós-graduação. No mestrado, se ainda não me ative

às marcas em si, foi porque quis entender como e por que as pessoas decidem comprar o que

compram.

Foi desde que comecei a pensar em fazer um doutorado que minha atenção,

finalmente, se ateve focadamente às marcas. Motivações para isto não faltaram. Como se não

bastasse meu interesse original, meu orientador – de mestrado, e que também viria a ser de

doutorado e que houvera tratado do assunto em seu doutorado – vem entusiasmadamente

discutindo e dividindo idéias comigo a este respeito há cerca de cinco anos. Mas acredito que

a razão que tem sustentado meu interesse é minha vontade de compreender o mundo em que

vivemos. Como assim? Bem, vivemos em um mundo guiado muito mais pelo que as pessoas

parecem ser do que pelo que elas de fato são, em que o ser humano tem se tornado importante

apenas pelo que representa para o sistema. Enfim, um mundo em que ser parece não ser o

mais importante. Mas será que é isto mesmo? Será que as pessoas desistiram de ser? Ou será

que o mundo de hoje não comporta pessoas que são? Quero dizer, será que ser alguém ou

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alguma coisa unissonamente possibilita às pessoas todos os deslocamentos necessários para

sua vida em sociedade? Penso que as pessoas acreditam que precisam ser várias. Mas será que

isto é possível? Talvez sim, ou pelo menos acreditem que sim. Pelo menos no parecer ser...

Mas como se fazer assim, se só somos algo ou alguém se os outros nos creditam como tal? É,

parece que precisamos de uma ajudinha... De onde vem? Pelo menos uma maneira me parece

ser através dos signos que manipulamos em nossas interações, quando efetivamente nos

fazemos ser.

Vocês devem estar agora se perguntando como retornarei à questão das marcas

após tamanha digressão. De fato não foi uma digressão, mas uma volta. Neste mundo que

apresentei, ainda que o sistema pareça estar se sobressaindo sobre a vida das pessoas – e

talvez até mesmo por isso –, que signos seriam melhor manipuláveis por estas pessoas do que

as marcas, para que elas sejam perante os outros – e, assim, perante a si mesmas?

Foi sobre isto que tentei refletir nas páginas que aqui estão. Nelas descrevo as

investigações que encampei durante um ano com o intuito de compreender o papel das marcas

na vida cotidiana das pessoas, as reflexões que me levaram a tal aventura, bem como a

aprendizagem que me propiciou.

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Parte I Prenúncio de uma longa caminhada

Há quem diga que o marketing está se tornando branding. De minha parte, tendo a

concordar, mas não pelas mesmas razões daqueles que defendem tal premissa. Outrossim,

vejo esta como uma forma mais evidente de estabelecermos uma linha divisória entre o

marketing enquanto ciência social e a atividade de administração de marketing1.

Contudo, entendo que a verdadeira razão disto está no fato das marcas terem, nas

últimas décadas, assumido um papel de relevância não só econômica, mas também social e

cultural. De outra forma, poderíamos estar aqui satisfeitos com a troca por outro termo, como

producting, pricing, placing ou, o que provavelmente estaria mais alinhado à prática

mercadológica dos nossos dias, promoting2.

Entendo que a emergência da importância das marcas se assente sobre a inversão

da lógica do consumo ocorrida no mesmo período que destaquei do crescimento da relevância

das mesmas. Temos experimentado a desmaterialização do consumo, que se torna simbólico,

para além de qualquer funcionalidade que ainda possa existir. Senso assim, vejo que as

marcas se apresentam como o signo fundamental de tal perspectiva de consumo.

Mas, apesar disto, estaríamos nos preocupando com a importância das marcas

para as pessoas? Esta é uma questão sobre a qual tenho me debruçado e que me fez chegar à

presente reflexão. A mesma, depois de evidenciadas minhas perturbações, chega a uma

1 Desenvolvo uma articulação mais apurada acerca deste problema e como o interpreto no Capítulo 4. 2 Faço aqui uma alusão ao chamado “composto de marketing”.

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discussão com base na economia política e ancora-se na perspectiva da filosofia da linguagem

ordinária de Ludwig Wittgenstein.

É com base nisto que me proponho a encampar uma investigação sobre o uso das

marcas enquanto signos pelas pessoas em suas vidas cotidianas. Por ora, segue a articulação

reflexiva que me levou a desenvolver meu plano investigativo.

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1 “Valor de marca” para quem? Em nosso tempo, as marcas têm ganho uma importância e um status ímpares. Não

que elas sejam uma novidade. De fato, desde os mais remotos comércios, vendedores se

utilizam do artifício de “nomearem” e “marcarem” seus produtos como forma de diferenciá-

los daqueles dos seus concorrentes. A questão é que as marcas ocupam hoje, no mundo do

efêmero, das imagens, enfim, do espetáculo, um espaço privilegiado. Basta que olhemos, a

qualquer momento, ao nosso redor para perceber isto: provavelmente não haverá situação em

que não nos deparemos com alguma delas.

Mas se estamos falando que as marcas têm ganho cada vez mais importância em

nossas sociedades, uma grande questão é iminente: se elas são importantes, o são para quem?

O discurso do marketing aponta para a satisfação das necessidades dos

consumidores o seu maior objetivo, sendo a lucratividade das organizações uma conseqüência

deste pressuposto3. Isto leva à suposição de que as marcas devem ter valor tanto para as

organizações quanto para os seus clientes4. Aliás, que tenham valor para estes até mesmo

antes de terem para aquelas5.

No entanto, o que vemos é um grande esforço em se pensar a importância das

marcas para as organizações. Não é de hoje que o marketing discute que em um mercado

3 Trata-se de um discurso hegemônico, presente nos principais livros-texto da disciplina, vide Churchill e Peter (2000), Kotler e Armstrong (2003), Kotler e Keller (2005), dentre outros. 4 Durante o decorrer da tese me refiro diversas vezes a consumidores e a clientes. Estes não devem ser considerados aqui como termos sinônimos. Ao usar o termo “consumidor” tenho em mente qualquer pessoa desempenhando um papel de consumo. Ao usar o termo “cliente”, por outro lado, tenho em mente o consumidor de determinado produto ou marca, que se encontre, assim, numa situação de troca com alguma organização. 5 O intercâmbio sinonímico que faço entre os termos “importância” e “valor” é incidental. Ele pressupõe que, tanto na produção quanto no consumo, ter importância é ter valor. Este aspecto será mais evidente a partir do próximo capítulo.

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competitivo as organizações precisam identificar e distinguir suas ofertas e que esta

diferenciação é apresentada aos consumidores justamente na forma de uma marca.

Mas o que se pensar sobre a importância das marcas para as pessoas? Afinal, o

que faz uma marca ser tida por elas como algo de valor, quiçá algo importante em suas vidas?

O que faz com que valorizem mais certas marcas em detrimento de outras quando, quase

sempre, elas oferecem basicamente os mesmos produtos?

Em sua retórica, o marketing afirma que as marcas têm valor para os

consumidores porque garantem a qualidade e a procedência dos produtos; facilitam a

interpretação e o processamento de informações pelo consumidor; geram confiança na decisão

de compra; reduzem riscos inerentes ao processo de escolha; funcionam como dispositivos

simbólicos; possibilitam satisfação de uso dos produtos etc.6

Mas será mesmo que o valor das marcas para os consumidores está nestes

aspectos? Será que as organizações e os profissionais de marketing realmente sabem o que os

consumidores valorizam em suas marcas? Será que sabem por que ou como as valorizam?

1.1 Ontogênese marcária

Apesar da ênfase atual, as marcas têm origem deveras anterior à sua noção

moderna. Já na Antiguidade temos indícios de uso de marcas. Em paralelo aos primórdios da

6 Ver, por exemplo, Aaker (1996), de Chernatony e McDonald (1998), Kapferer (2003), Keller (2003).

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publicidade7 temos os primeiros espécimes de logomarcas. Ao mesmo tempo em que

desenvolviam os primeiros anúncios de que temos registro – inscrições babilônicas em tábuas

de argila anunciando a venda de produtos, leiloeiros divulgando a venda da carga dos navios

nos portos gregos – comerciantes usavam de pinturas identificando suas mercearias,

sobretudo na Grécia e na Roma Antigas. Na Idade Média, por sua vez, torna-se comum os

artesãos com habilidades especiais marcarem seus artigos com um símbolo ou assinatura que

os identificassem, como forma tanto de garantir a procedência de tais mercadorias quanto de

se protegerem de falsários. Já no início dos tempos modernos, os criadores de gado do novo

mundo recém-descoberto desenvolvem o hábito de marcar com ferro quente cada animal com

um símbolo que representasse sua propriedade. É exatamente desta prática que advém o uso

do termo “marca” (DE CHERNATONY e MCDONALD, 1998; PEREZ, 2004; ROOM, 1998).

Mas é com a chamada segunda revolução industrial8 que as marcas modernas têm

origem. Com o movimento da produção das comunidades locais para fábricas, tem início o

domínio dos produtos de massa. Para serem vendidos em um mercado amplo e considerando-

se a competição ainda forte com ofertas locais, era necessário se criar uma identificação que

propiciasse aos consumidores uma familiaridade com tais produtos; que os diferenciasse dos

demais. Neste sentido, durante as primeiras décadas do século passado, várias técnicas

publicitárias (slogans, mascotes, jingles, dentre outros) associadas aos meios de comunicação

7 Utilizo aqui o termo “publicidade” de forma diferente daquela típica dos livros de marketing traduzidos para o português. O sentido que aqui dou é de sinônimo do que aparece naqueles livros como “propaganda”, o que poderá me levar, inclusive, a utilizar ambos os termos com o mesmo significado. De fato, os termos “publicidade” e “propaganda” referem-se a uma mesma prática, mudando apenas o objeto de cada uma – produtos e ideologias, respectivamente. Os mesmos termos existem com este mesmo significado em inglês – advertising e propaganda, respectivamente – mas as traduções de livros de marketing apresentam publicity como referente a publicidade e advertising como propaganda. Vale ressaltar que publicity refere-se a atividades de relações públicas, desenvolvidas sobremaneira pelo que chamamos de assessorias de imprensa (Souza Net et al., 2004). 8 Refiro-me aqui a um novo ciclo de mudanças tecnológicas surgidas no desenvolvimento industrial, ocorrido a partir da segunda metade do século XIX, marcado pela eletricidade, pelo desenvolvimento das telecomunicações e pelos métodos científicos aplicados à produção, enquanto o ciclo original, começado cem anos antes, havia sido marcado pela energia oriunda do vapor (vide CASTELLS, 2002a). Foi esta segunda revolução industrial que, efetivamente, possibilitou a produção de bens de consumo em grande escala e, assim, antecipou a chamada “sociedade de consumo”.

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de massa foram utilizadas para desenvolver os nomes das marcas (DE CHERNATONY e

MCDONALD, 1998; LOW e FULLERTON, 1994; ROOM, 1998).

Apesar disto, até metade do século as marcas em si não tinham um valor

significativo reconhecido pela atividade da administração mercadológica, a não ser pela sua

capacidade de distinguir os produtos. Demonstração disto está na definição de marca dada

pela AMA (American Marketing Association) pela primeira vez em 1960 e que poucas

alterações sofreu em quase meio século. A mais recente definição é a seguinte (AMA, 2005):

“A name, term, design, symbol, or any other feature that identifies one seller’s good or service as distinct from those of other sellers” [“Um nome, termo, desenho, símbolo ou qualquer característica que identifique o produto ou serviço de um vendedor como distinto daqueles de outros vendedores”].

Foi Gardner e Levy (1955) que primeiro sugeriram que o nome de uma marca é

mais do que isso, propondo que se tratava de símbolos complexos que representam uma

variedade de idéias e atributos. No entanto, demorou para que este pensamento tivesse eco e

apenas no final dos anos 1960 é publicado a primeira obra dedicada exclusivamente às marcas

(KING, 1970), em que o executivo de propaganda Stephen King reflete sobre como as mesmas

vão muito além dos produtos a que nomeiam.

Ainda assim, entendo que esta “descoberta” não tenha mudado muito – apenas

ampliado, eu diria – a visão vigente sobre as marcas como uma forma de se diferenciar os

produtos de uma organização, acrescentando que as mesmas poderiam contar com

dispositivos, ou “dimensões”, funcionais e simbólicos9.

Ironicamente, quem desvela o fenômeno que mudaria a forma das organizações

lidarem com as marcas é a comunidade financeira, quando percebe que empresas estavam

sendo vendidas a valores extremamente superiores aos dos seus ativos graças à força de suas

marcas (DE CHERNATONY e MCDONALD, 1998; ROOM, 1998). Por outro lado, em paralelo a

tal fenômeno, crescem cada vez mais as pressões das organizações para mensurar os

9 Vide Doyle (1989), de Chernatony e McDonald (1998), Keller (2003), entre outros.

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resultados dos esforços de marketing (BLATTBERG e DEIGHTON, 1996; RUST et al. 2001). A

marca começa a ser vista como o elemento objetivo possível de canalizar o efeito da atividade

de administração de marketing. Vemos, a partir dos anos 1980, várias organizações

começarem a lançar o valor estimado do nome de suas marcas em seus balanços, o que gerou

uma onda de desenvolvimento de mecanismos para se medir o valor das marcas. Assim, as

marcas passam a ter uma importância maior para as organizações justamente na medida em

que são tratadas como ativos10.

A academia de marketing começa a concentrar sua atenção para o fenômeno

marcário fundamentalmente a partir dos anos 1990, em que o lançamento, em 1991, do livro

“Managing brand equity: capitalizing on the value of a brand name”, de David Aaker, pode

ser considerado marco desta fase. Desde então, os estudos sobre o valor das marcas cresceram

significativamente e, nos últimos anos, algumas novas perspectivas têm sido empreendidas,

no que vemos abordagens diversas, como psicanalítica (MARK e PEARSON, 2001),

antropológica (HOLT, 2004) e semiótica (PEREZ, 2004), por exemplo.

Contudo, talvez a maior demonstração de que as marcas deixaram de ser um

fenômeno simplesmente gerencial e se transformaram num fenômeno social seja o interesse

de outras áreas do conhecimento. Neste sentido, temos algumas reflexões das marcas numa

perspectiva sociológica/econômica (LURY, 2004), filosófica/sociológica (LIPOVETSKY e

ROUX, 2005), sociológica/crítica (FONTENELLE, 2002), do empreendedorismo (KOEHN, 2001),

do jornalismo investigativo crítico (KLEIN, 2002). Por outro lado, mesmo quando o próprio

fenômeno não é o foco, vemos indícios de sua presença, quando, por exemplo, a McDonald’s

torna-se sinônimo do globalismo (BARBER, 2003).

10 A visão da marca enquanto ativo não elimina aquela relativa à sua função diferencial, e sim aumenta o escopo de sua importância para as organizações. Esta visão pode ser vista em Aaker (1996), de Chernatony (2001), Kapferer (2003), dentre outros.

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Minha abordagem, como ficará mais evidente, debruça-se sobre o valor das

marcas sob a ótica do consumo, mas, todavia, dentro de uma perspectiva da filosofia da

linguagem ordinária, em que as mesmas são investigadas como signos circulantes na vida

cotidiana.

Neste sentido, entendo que caiba aqui uma maior elaboração desta noção do que

assumo como marca. Como prerrogativa, mantenho uma pressuposição já consagrada na

literatura de marketing: uma marca deve representar uma oferta ao mercado. Em outras

palavras, deve ser signo identificador de produtos tangíveis, serviços, experiências, pessoas,

organizações, eventos, lugares, dentre outros, que sejam disponibilizados em mercados para

troca.

Por outro lado, como adoto a perspectiva do consumidor, uma outra faceta

peculiar do que seja uma marca, assumo sob outro ponto de vista. Ao contrário do que temos

na literatura tradicional, aceito como marca um signo, conforme escopo que há pouco

mencionei, que seja distinto um do outro, não segundo a definição das organizações que os

detêm, mas sim que seja reconhecido por consumidores envolvidos em situações sociais,

independentemente de seu trato mercadológico.

1.2 Duas perspectivas, uma premissa

Graças à importância crescente das marcas para as organizações, a análise destas

foi elevada de um nível tático a um nível estratégico. Com isto, as discussões sobre marcas

passaram a circundar, fundamentalmente, o conceito de “valor de marca”. De fato, existe certa

dificuldade de se precisar uma definição para “valor de marca”. Como muitos outros, o termo

é polissêmico. Assim, várias são as abordagens e definições encontradas na literatura,

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incluindo não apenas a disciplina de marketing, mas também a de finanças. Contudo, o que

parece ser aceito como certo é que o “valor de marca” gere valor tanto para as organizações

quanto para seus clientes11.

Feldwick (1996) propõe uma classificação das diferentes definições utilizadas

para “valor de marca”. Uma primeira apresenta-o como o valor total de uma marca como algo

passível de ser lançado no balanço de uma organização; uma segunda apresenta-o como uma

medida da força de afeição dos consumidores a uma marca; finalmente, uma terceira

apresenta-o como uma descrição das associações e crenças que o consumidor tem sobre a

marca. Wood (2000) interpreta que, sendo a primeira classificação referente ao valor

financeiro da marca, esta assume uma perspectiva mais alinhada à área de finanças. Por outro

lado, as outras duas definições estariam alinhadas à área de marketing e seriam referentes à

lealdade à marca e à imagem de marca, respectivamente. Para a autora, as várias definições de

“valor de marca” acabam por se ajustar a uma ou mais dessas classificações propostas por

Feldwick. Para efeito da presente reflexão, excluo a primeira definição por motivos óbvios e a

primeira das de marketing por entender que “lealdade à marca”, se é que exista, reflete do

resultado da importância das marcas para os consumidores, quando o que pretendo é, antes,

tentar compreender se esta importância realmente existe.

Assim, atenho-me ao terceiro aspecto apresentado. No entanto, não o faço sem

problematizá-lo, pois não o interpreto em seu sentido restrito, mas um ampliado, o que merece

uma reflexão. Tal aspecto está alinhado a definições alternativas à da AMA, que assumem

11 Na verdade, temos um problema já na tradução, para o português, do termo original em inglês, para “valor de marca”, que é brand equity. Não vejo a adequação necessária do termo “valor” para significar “equity” – esta foi uma escolha daqueles que traduziram livros para português. Contudo, passando ao plano conceitual, o termo “equity” (eqüidade) parece propor-se justamente a indicar que se trata de um conceito que se baseia num princípio gerador de valor para ambas as partes envolvidas na troca mercadológica, ou seja, na geração de valor tanto para a organização detentora da marca quanto para seu cliente. Na tradução do termo em português, portanto, temos uma duplicidade ambígua do termo valor: um valor primeiro (o de marca) que gera um valor segundo (este, bifacetado, tanto para a organização quanto para o seu cliente). Graças a estas questões, grafo o termo entre aspas. Com isto, tenho uma dupla intenção: minimizar o impacto do que considero um erro grotesco de tradução, por um lado, e, por outro, me beneficiar deste equívoco através de um trocadilho, já que me questiono, como ficará mais evidente, se este “valor de marca” gere mesmo valor para os consumidores.

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uma perspectiva orientada para o consumidor, apresentando a marca como benefícios para

este e/ou como imagens na mente destes12. De fato, as perspectivas do produto e do

consumidor representam diferentes formas de se observar o “valor de marca” e, assim, têm

criado diferentes maneiras de abordá-lo. Apesar disto, os assumo dentro de um mesmo

espetro, o que ficará mais evidente e compreensível.

Fazendo-se uma varredura na literatura sobre “valor de marca”, podemos

identificar que duas definições e seus respectivos arcabouços são amplamente (se não os

mais) utilizados: os de Aaker (1996) e de Keller (2003). Além de representarem as

abordagens mais influentes na discussão sobre “valor de marca”, estes também são

representativos das diferentes perspectivas apontadas. Desta forma, minha análise sobre

“valor de marca” se baseará nas definições e arcabouços dos respectivos autores13.

Aaker (1996) define “valor de marca” como um conjunto de ativos e passivos

ligados a uma marca, seu nome e seu símbolo, que se somam ou se subtraem do valor

proporcionado por um produto ou serviço para uma organização ou para os clientes dela. O

autor agrupa esses ativos e passivos em cinco categorias: lealdade à marca, consciência do

nome da marca, qualidade percebida e associações à marca em acréscimo à qualidade

percebida e outros ativos, como patentes, relações com os canais de distribuição etc. Para

Aaker, o “valor de marca” proporciona valor para a organização na medida em que aumenta a

eficiência e a eficácia dos programas de marketing, a lealdade à marca, os preços e as

12 A base aqui é a noção de imagem de marca, apresentada inicialmente por Gardner e Levy (1955), que propuseram que produtos têm uma natureza psicológica e social assim como física. As idéias e atitudes que os compradores têm em relação às marcas, os conjuntos de sentimentos, a imagem que eles percebem, portanto, são cruciais para suas escolha. 13 Trabalhos de vários outros autores corroboram uma ou mais dimensões dos arcabouços de Aaker e de Keller. Para se dar alguns exemplos, Blackston (1992), Ambler (1995) e Davis e Hallingan (2002) apresentam que o “valor de marca” é uma função do relacionamento com os clientes; Dekimpe et al. (1997) e Knox e Walker (2001), destacam o papel da lealdade à marca como parte do “valor de marca”; Biel (1991), Caldwell e Coshall (2002), Chen (2001) e Río et al. (2001) identificam as associações da marca como ponto crítico para o “valor de marca”; Woodside e Wilson (1985) avaliam os efeitos da consciência das marcas; Ambler (1997), por sua vez, sugere que o “valor de marca” é feito de memórias de diferentes tipos e, que figurativamente, pode-se dizer que exista nos corações e nas mentes dos consumidores. Todos estes aspectos são críticos nos arcabouços propostos por aqueles autores (vide Figuras 1 e 2).

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margens, as extensões de marca, o incremento com o trade e a sua vantagem competitiva. Por

outro lado, proporciona valor para o cliente na medida em que aumenta sua interpretação e

processamento de informações, confiança na decisão de compra e satisfação de uso. A Figura

1 apresenta seu arcabouço. A abordagem de Aaker aponta para o que a organização tem ou

pode fazer para desenvolver este “valor de marca”. Neste sentido, o passo seguinte do autor

(AAKER, 1998) apresenta uma clara preocupação com a criação da identidade da marca e com

um sistema para tal, no que destaca o papel das associações organizacionais e da

personalidade da marca.

Figura 1: Arcabouço de Aaker de “valor de marca”

Por outro lado, Keller sugere que o “valor de marca” seja compreendido sob a

ótica do consumidor e, desta forma, apresenta sua proposta como o “‘valor de marca’ baseado

no cliente”, que define o efeito diferencial do conhecimento da marca na resposta do

consumidor aos seus esforços de marketing. Inicialmente (Keller, 1993), o autor analisou o

“valor de marca” com base nas dimensões do conhecimento da marca, no qual identificou a

consciência de marca e a imagem da marca. Depois (Keller, 2003), desenvolveu seu

arcabouço, que se baseia em seis blocos: saliência, desempenho, imagem, julgamento,

Lealdade à marca

“Valor de marca”

Conhecimento do nome

Qualidade percebida

Associações da marca

Outros ativos da empresa

Valor para o cliente

Valor para a empresa

Fonte: Adaptado de Aaker (1996)

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sentimento e ressonância. Estes blocos se referem a diferentes níveis da marca, representados

por uma pirâmide. As duas dimensões de conhecimento da marca formam os dois primeiros

níveis da pirâmide. Na base, a saliência da marca refere-se aos aspectos da consciência da

marca, cuja criação é necessária para a identidade da marca. O segundo nível, chamado de

significado da marca, refere-se à imagem da marca e é composto por dois blocos, ambos de

associações da marca, que podem ser funcionais (desempenho) ou abstratas (imagens). O

terceiro nível da pirâmide se refere às respostas dos consumidores e também é composto por

dois blocos: julgamentos que os consumidores fazem da marca ou sentimentos que aqueles

nutrem por esta. Vale destacar que nesses níveis intermediários, a divisão em dois blocos é

relativa ao que Keller chamou de advindos do coração ou da mente dos consumidores.

Finalmente, o último nível da pirâmide, a ressonância, se refere ao nível de relacionamento

que os consumidores têm com a marca. A Figura 2 apresenta seu arcabouço.

Figura 2: Arcabouço de Keller de “valor de marca”

Identidade da marca

Significado da marca

Respostas à marca

Relacionamento com a marca

Saliência

Ressonância

Desempenho Imagens

Sentimentos Julgamentos

Fonte: Adaptado de Keller (2003) Fonte: Adaptado de Keller (2003)

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Como antecipado, minha escolha por apresentar esses dois arcabouços ocorreu

não apenas pela relevância que ambos demonstram ter, mas por representarem orientações

diferentes. Enquanto o de Aaker apresenta-se orientado para o produto, o de Keller assume a

perspectiva do consumidor. Contudo, o que se dizer do fato do primeiro apontar para a

geração de valor para o cliente e do segundo assumir como aspecto básico a definição das

características da marca? Enquanto Aaker engoda o discurso relativo à geração de valor para

o cliente através das marcas, mas não acredita que estes devam ter algum tipo de influência

sobre o que estas venham a oferecer-lhes, Keller, apesar de apontar para o consumidor a

função de significar as marcas, assume a necessidade da definição de suas características ser

levada pela organização. Minha avaliação é de que, apesar de partirem de perspectivas

diferentes, ambos assumem, em última instância, unicamente a orientação da organização. É

bem verdade que ambos os arcabouços deduzem, direta (no caso do de Aaker) ou

indiretamente (no caso do de Keller) que a marca cria valor tanto para o consumidor quanto

para a organização. No entanto, como destacam Río et al. (2001) a marca provê valor para a

organização na medida em gera valor para o consumidor. E isto fica evidente tanto na

perspectiva do produto quanto na do consumidor. O que podemos nos questionar é se o valor

para o cliente não se torna, desta forma, apenas um meio e não um fim para as organizações.

Ou seja, não estaria a geração de valor para o cliente cumprindo como sua função única a de

gerar valor para a organização?

1.3 O pai-marketing e o filho-consumidor

Talvez uma maneira de analisar o que estamos discutindo mais acuradadamente

seja através da reflexão de Kapferer (2003). O autor propõe um arcabouço que parece a

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síntese daqueles de Aaker e de Keller. Fundamentalmente, ele sugere que o processo pelo

qual uma “imagem de marca” é desenvolvida na mente dos consumidores advém da forma

como a “identidade de marca” é construída e transmitida para estes, o que pode ser entendido

como um processo de comunicação. Desta forma, o autor trata a identidade de marca e a

imagem de marca como representações de um emissor e de um receptor, respectivamente.

A esta relação ele denomina “equação da marca”. Nesta proposta, portanto, a

perspectiva sobre imagem de marca centra-se na premissa de que certo público imagina uma

marca e que isto se refere à maneira à qual este público decodifica os sinais emitidos por esta,

através de seus produtos, serviços, programas de comunicação – enfim, seu composto de

marketing14. A identidade, por sua vez, está do lado do profissional de marketing, cujo dever é

desenvolver as características adequadas a uma marca, através do correto diagnóstico de quais

sejam os elementos relevantes, para o seu cliente potencial, que uma marca deva ter, o que

pode ter outras fontes de inspiração, como em processos de mimetismo, oportunismo ou

idealismo da marca, por exemplo. A proposta é a de que, através da comunicação destas

características, consiga-se que a visão dos consumidores sobre a marca seja satisfatória; que

suas características fiquem “marcadas” em suas mentes15. Evidentemente, espera-se que o

resultado da decodificação seja espelho dos códigos emitidos; que o produto entre emissão e

recepção seja congruente a ponto de não comprometer o conceito (significado) desenvolvido

para a marca. Isto pressupõe, inclusive, que a identidade tenha força bastante para fugir da

interferência (ruídos) de seus concorrentes. A Figura 3 sintetiza tal visão.

14 Composto de marketing é o nome dado ao grupo de programas de ações táticas da atividade de marketing, também chamado de “4 Ps”, por incluir os aspectos relativos ao produto (seja um bem tangível, um serviço ou qualquer outra forma de oferta a um mercado), preço, praça (distribuição e ponto de venda) e promoção (ações de comunicação de uma forma geral). 15 Esta visão de Kapferer está bem sustentada por parte significativa da literatura sobre “valor de marca”, que aponta o modelo de comunicação de massa, especificamente por meio da publicidade, como assumindo um papel fundamental no desenvolvimento de tal valor (e.g., AAKER e BIEL, 1993; RANDAZZO, 1993; AMBLER, 1997; WANSINK e RAY, 1993; CHAUDURI, 2002). Neste sentido, Ambler (1997) destaca que a importância do “valor de marca” se torna aparente na avaliação do quão bem a publicidade funciona. Portanto, o objetivo imediato de toda publicidade de marca é elevar o “valor de marca”.

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Mas, ora, por trás da idéia de Kapferer podemos perceber claramente o

pressuposto de que a atividade de marketing deverá definir os elementos de uma marca que

sejam adequados para os clientes que uma organização pretende ter. Ele mesmo defende que a

organização centre-se na identidade para ter controle sobre a imagem. De fato, identidade e

imagem da marca representam dois lados de uma mesma moeda. Tratam-se, pois, dos

mesmos elementos. Afinal de contas, todo este esforço baseia-se na premissa de acertar a

forma como a marca, finalmente, será percebida pelos consumidores.

Figura 3: Proposta de Kapferer sobre a relação entre identidade e imagem de marca

Além disto, está também a premissa de que, mesmo que diversas associações,

através de diferentes elementos, sejam necessárias para se remeter a uma marca, elas deverão,

sempre, remeter a um mesmo conceito (significado)16.

Neste sentido, não é coincidência que um dos pontos de convergência das

abordagens dos arcabouços de Aaker e Keller seja o fato de ambos lidarem com as noções de

identidade e de imagem – com a diferença de Aaker se focar na primeira e Keller na segunda,

pelo motivo de suas orientações, como já discutimos.

16 Este aspecto pode ser observado, por exemplo, em Aaker (1996), de Chernatony e Riley (1998), Chen (2001).

Emissor

Identidade da marca

Outras fontes de inspiração

Sinais transmitidos

Imagem da marca

Fonte: Adaptado de Kapferer (2003)

Meios Receptor

Ruídos da concorrência

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Tudo isto só vem a corroborar meu argumento de que, no final das contas, o que

se busca seja a geração de valor para a organização. Mas o que parece estar por trás dessas

concepções é que a atividade de administração de marketing sabe o que é melhor para os

consumidores. Aceitando-se a idéia de que a proposta de Kapferer sintetize a forma como a

geração de “valor de marca” tem sido assumida, o que temos em mãos é um modelo de

comunicação em que duas partes, uma ativa e outra passiva, trocam informações. Na verdade,

um modelo em que um emissor define que mensagem será transmitida e como – daí sua

posição de elemento ativo – e um receptor que tem o papel apenas de assimilar tal mensagem

– no que se justifica sua passividade.

O que é, então, esta, senão uma visão paternalista? Afinal de contas, o emissor

sabe o que o receptor deve ou não receber e também como isto deve ocorrer. A este último

cabe apenas a função de, ao interpretar a mensagem, concordar ou não com ela. É aí que entra

uma suposta condição de “atividade”, já que sua “concordância” ou não apontará para a

escolha que fará – no final das contas, entre uma marca ou outra; entre uma mensagem ou

outra17.

17 Podemos observar aqui uma forte interseção entre este modelo e aquele amplamente adotado pela área de comportamento do consumidor para explicar o processo decisório de compra (ver, dentre outros, SCHIFFMAN e KANUK, 2000; SOLOMON, 2003; ENGEL et al., 2004). Ali, com base na psicologia cognitiva, assume-se que os consumidores, ao identificarem uma necessidade (um “problema”), irão buscar informações acerca das ofertas em um mercado, comparar as alternativas passíveis de satisfazer sua necessidade (de “solucionar seu problema”) e, assim, fazer sua escolha. É escolhida, evidentemente, aquela marca que melhor tenha conseguido demonstrar ao consumidor que era a melhor opção para seu problema. Mas as coisas não se encerram por aí. Apenas quando finalmente o produto escolhido for consumido, o consumidor poderá comparar seu desempenho com as expectativas que houvera construído e, assim, ficar ou não satisfeito – e, quem sabe, “deleitado”, caso encontre mais do que esperava.

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1.4 Comunicação como engenharia humana

O modelo de comunicação proposto por Kapferer está claramente baseado no de

Claude Elwood Shannon e Warren Weaver. Tal modelo é o mais amplamente utilizado, não

só pela área de comunicação, mas por quase todas aquelas que se utilizam de alguma

perspectiva comunicacional18. Fundamentalmente, o modelo Shannon-Weaver propõe que as

mensagens transmitidas por um emissor são portadoras de um significado que deve ser por

este codificado em elementos simbólicos passíveis de decodificação dos receptores. Esta

visão, portanto, assume que as mensagens têm um significado real e único e que a não

compreensão do mesmo não implica numa possibilidade de rejeição a tal premissa, mas indica

a existência de um ruído que tenha comprometido a interpretação. Além disto, prevê uma

retroalimentação do sistema, uma vez que o receptor pode dar feedbacks relativos à

mensagem recebida, tornando-se, neste momento, um emissor (a Fig. 4 demonstra tal

modelo)19.

Figura 4: Modelo Shannon-Weaver de comunicação

18 Na Administração, não só a área de marketing adota tal perspectiva, mas também as de recursos humanos e sistema de informações gerenciais, por exemplo. 19 Podemos encontrar esta explicação nos principais livros que discutem teorias de comunicação, vide Defleur e Ball-Rokeach (1997), Coelho Netto (2003), Mattelart e Mattelart (2004), dentre outros.

Fonte: Adaptação do autor

Emissor (codificação)

Canal de transferência da mensagem

Receptor (decodificação)

Mensagem Mensagem

Ruídos

Feedback

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O modelo Shannon-Weaver pretende ser uma teoria matemática da comunicação.

Seus pressupostos se baseiam na necessidade de troca de dados entre um ponto e outro.

Assim, ele pressupõe a comunicação como um esquema linear com um ponto de partida e

outro de chegada, em que um meio se faz necessário como condutor e que procedimentos de

codificação e decodificação garantem a integridade do dado. Sem dúvida, trata-se de uma

proposta que veio a atender o crescente ideal de cientifização, não só da área de comunicação,

como de todas as chamadas ciências humanas e sociais, pelas quais o modelo se impregnou

em vários aspectos.

Podemos perceber que o modelo se baseia num princípio de processamento de

informações que, em princípio, é operado por máquinas. A grande questão é se isto se aplica

aos seres humanos. Aceitar esta possibilidade não implicaria na aceitação de uma redução do

homem a máquina? Então, afinal, estamos tratando aqui de comunicação ou de engenharia

humana20?

A base para tal adaptação está no alinhamento do modelo às ciências cognitivas,

que, apesar de não constituírem um saber unificado, compartilham entre si a compreensão de

que um “cérebro” – que não precisa, necessariamente, ser humano – funciona como

dispositivo de tratamento de informações, reagindo de maneira seletiva ao meio, para gerar

conhecimento.

Além disto, não existe nunca uma troca propriamente dita, mas sempre

envio/recebimento, já que, ainda que um receptor dê um feebback, neste momento, do ponto

de vista do modelo, ele estará sendo o emissor e o emissor da mensagem original um receptor

do presente feedback.

Assim, podemos deduzir que o homem transformado em máquina estaria

respondendo a comandos. Ao assumir o receptor como agente passivo, o modelo que

20 Termo emprestado de Coelho Netto (2003).

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discutimos concede ao emissor controle e, conseqüentemente, poder de manipulação21.

Evidentemente, esta se trata de uma visão de tipo behaviorista, que assume que existirão

respostas adequadas para estímulos corretos. De fato, toda a escola da comunicação de massa

assume esta postura22.

1.5 O homem moderno como receptáculo

Reconheço que há, no mínimo, algo de estranho no que acabamos de discutir.

Meus argumentos levam a uma interpretação de que o modelo em questão é cognitivo e

behaviorista ao mesmo tempo. Ora, estas são visões antagônicas, já que uma se foca na mente

e outra no corpo. Minha tese é de que, ainda que indo de encontro aos seus princípios

teóricos, estas perspectivas são unidas pelo próprio sistema de produção e sua assunção de

racionalidade técnica do projeto moderno.

Assim, toda a visão que discutimos acerca do “valor de marca” assume que os

consumidores espelhem o “sujeito” moderno: racional, centrado, consciente, objetivo. Em

outras palavras, assume o homem moderno como homo economicus. Este homem é, talvez, o

que há de mais bem acabado da visão de natureza humana do projeto moderno. Para a teoria

econômica, as preferências deste homo economicus podem ser descritas a partir de três

premissas básicas (PINDYCK e RUBINFELD, 2005): a) o consumidor tem condições de conhecer

21 Esta é uma visão claramente apontada pela teoria crítica e por outros alienistas, sobretudo na noção de “indústria cultural”, desenvolvida por Horkerheimer e Adorno (2002). 22 Harold Lasswell, buscando compreender o impacto da propaganda sobre o comportamento humano, alinhou-se ao behaviorismo de Pavlov e sua teoria do condicionamento, para propor sua teoria da “agulha hipodérmica”, que pressupõe um efeito direto dos meios de comunicação de massa sobre os indivíduos (LASSWELL, 1927 apud MATTELART e MATTELART, 2004). Mesmo quando Paul Lazarsfeld sugere, a partir de seus estudos experimentais, que tal impacto ocorre através de um duplo fluxo (two-step flow theory), em que são os líderes de opinião que apreendem e repassam para as massas as mensagens recebidas (LAZARSFELD et al., 1944 e LAZARSFELD et al., 1955 apud MATTELART e MATTELART, 2004), não vemos diferenças concretas na postura original de estímulo-resposta, mas apenas em seu processo.

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as suas preferências por todos os produtos ou combinações de produtos a fim de satisfazer

suas necessidades, ou seja, o consumidor é capaz de fazer uma escolha. Neste caso as

preferências são completas e o consumidor deverá identificar se prefere o produto. A em vez

do B, ou se prefere o produto B em vez do A, ou ainda se é indiferente em relação aos dois; b)

a estrutura de preferência é transitiva, ou seja, as preferências são racionais. Se o consumidor

prefere o produto A em vez do B, e prefere o B em vez do C, então ele irá preferir o produto

A em vez do C; c) finalmente, os consumidores preferem mais a menos de qualquer produto.

Logo os indivíduos irão sempre procurar obter maiores quantidades dos bens a um menor

esforço monetário.

Sob esta ótica, está o pressuposto do consumo como sendo funcional. Ainda que o

marketing “renove” esta teoria, incorporando em sua própria teoria do comportamento de

consumo questões de natureza psicológica e social, os aspectos simbólicos do consumo,

quando são considerados, são sempre vistos como um meio, um “dispositivo” para fins

emocionais ou de auto-expressão, que findam por serem entendidos como necessidades

secundárias ou “psicológicas”. Ou seja, voltamos ao homo economicus, à noção econômica de

utilidade, pois que o consumidor terá “necessidades” – independentemente de quais sejam – a

serem “satisfeitas” da melhor maneira possível.

Por trás deste pressuposto está também a assunção dos consumidores como

indivíduos racionais e cognitivos. Afinal de contas, eles são capazes de identificar suas

necessidades, a melhor forma de satisfazê-las e de ficarem satisfeitos com suas escolhas. E

fazem isto se utilizando das informações disponíveis para encontrar a melhor solução. É

porque eles podem fazer isto que poderão ficar satisfeitos com suas escolhas e esta é, afinal, a

razão para que continuem escolhendo as mesmas marcas “satisfatórias”.

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Com isto, parece assumir-se ainda que os consumidores tenham um “eu”

uníssono, verdadeiro, centrado e coerente; que tenham um plano de vida realizável e as metas

necessárias para o atingimento de seus objetivos.

Evidentemente, por trás deste raciocínio está também o pressuposto de que os

consumidores sejam agentes ativos e responsáveis do consumo. Afinal, são eles que, ao

analisarem as informações disponíveis, escolhem o que será mais adequado para resolver seus

problemas. Assim, deduz-se também sua liberdade de escolha.

Tudo isto faz todo o sentido. Afinal, só um homo economicus estaria apto a

interpretar claramente os sinais emitidos por uma marca. Por outro lado, não é de se estranhar

que uma abordagem destas seja assumida acriticamente pelo profissional de marketing,

também ele crente de ser um homo economicus – afinal de contas todo o ensino de

administração, bem como a academia de uma forma geral, tem um forte viés instrumental.

Mas será que esta razão, esta liberdade realmente existem? Será que realmente o

homem é orientado pelas suas necessidades? Será que este homo economicus já existiu

realmente, ou não passa de um modelo, um mito?

É como mitologia que Baudrillard (2003) percebe o discurso sobre o homo

economicus e, assim, resgata-o para fazer o que ele denominou de “autópsia”. O autor conta

uma fábula de um homem que vivia na escassez e depois de muitas aventuras e uma longa

viagem nas Ciências Econômicas encontrou a Sociedade Afluente, com quem se casou e

juntos tiveram muitas necessidades. Com isto, ele quer apresentar que todo o discurso do

consumo é articulado na seqüência mitológica da fábula: um homem, “dotado” de

necessidades que o “conduz” para objetos que o “propicie” satisfação. Contudo, já que o

homem nunca está realmente satisfeito, a mesma história se repete indefinidamente.

Baudrillard apresenta que, dentre todos os mistérios da economia (e, neste sentido, do

marketing, conseqüentemente), a noção de necessidades é o mais obscuro. O autor entende

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que tal idéia decorre do fato de ser vital para o sistema controlar não apenas o aparelho de

produção, mas seu outro lado: o de consumo, já que este se constitui como a seqüência

necessária daquele. Assim, conclui que as necessidades não existem por si só, mas sim um

sistema de necessidades que constitui o sistema de produção, já que elas encontram-se desde

sempre constrangidas a objetos finitos e previamente definidos.

Nesta linha de raciocínio, podemos concluir que as necessidades dos homens,

antes de estarem fundamentadas em suas vidas, são imputadas pelo sistema, que também

fornece os meios necessários para sua satisfação. É aí que entra o lado behaviorista que

entendo estar no modelo. Ainda que se assuma a racionalidade do homem, suas escolhas

precisam ser estimuladas. Assim, o homo economicus se torna homem-receptáculo, sem

agência e sem escolha.

Mas onde estará a força que sustenta este sistema? Talvez seja o indivíduo

atomizado. Afinal de contas, é cada indivíduo que tem suas necessidades e toma suas decisões

para resolver os seus problemas. E é exatamente por isso que é cada indivíduo que é tomado

como a unidade de consumo. Não é difícil se perceber aí um mito complementar ao do homo

economicus. Este é o do self-made man. Ele é aquele que sozinho e contra todas as

adversidades vencerá e, assim, conquistará sucesso e felicidade – talvez este o maior de todos

os mitos do projeto moderno, tão poderoso que passou a constar no plano do direito e não da

conquista.

A que conclusão podemos chegar? Que o homem moderno é um receptáculo

atomizado, que continua a morder a isca da felicidade (e da salvação) prometida. Assim,

transformado em máquina, ainda se crê ser (ôntico e humano) no sistema que o aprisiona.

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1.6 A [re]emergência do homo symbolicus

Muito se têm discutido as mudanças sociais, comportamentais, econômicas e

políticas ocorridas nas últimas décadas. O “pós-modernismo”23 tem apontado para o

individualismo, o narcisismo, a solidão, a crise das identidades, a concepção de comunidades

imaginadas, o deslocamento dos sujeitos, dentre outros, como características marcantes de

uma nova época (a “pós-modernidade”), marcada por um tipo novo de capitalismo24, que se

elevou à condição de sistema hegemônico, sobretudo após o rearranjo político-econômico de

ordem mundial que ocorreu com o esfacelamento das economias planificadas dos países ditos

socialistas, e que se caracteriza pela crescente globalização econômica e pela mundialização

da cultura dos países “globalizantes” – de fato, dois lados de uma mesma moeda.

Estas são questões que, ainda que possam ser discutidas separadamente – acerca

do que seja político, do que seja social, do que seja econômico etc. –, estão profundamente

imbricadas e qualquer separação será apenas um meio de se propiciar reflexões dentro de cada

escopo. Assim, são várias as conseqüências que podemos perceber nestas mudanças. Uma

conseqüência imediata se reflete sobre uma “maioridade”, ou, porque não dizer, uma

23 Há que se distinguir aqui a diferença entre “pós-modernidade” e “pós-modernismo”. O primeiro trata-se de uma suposta nova era de profundas mudanças no centro dos princípios modernos que constituíram nossas sociedades. Por sua vez, o segundo refere-se a um pseudo-movimento que tem demonstrado tais mudanças. Uso aqui dos termos “suposto” e “pseudo” para me referir às condições de cada um devido ao fato de não haver, por um lado, um consenso sobre estarmos realmente numa nova época – há quem defenda que se trata de um novo estágio da própria modernidade –, nem, por outro lado, uma aceitação da maior parte dos pensadores chamados “pós-modernos” de que compartilhem um movimento e sequer do termo. Compartilho da rechaça aos termos em questão, mas por uma razão um pouco distinta. Entendo que se tratamos algo de “‘pós’ alguma coisa” e não com um nome próprio, então temos um problema de identidade em relação a este algo. Por outro lado, as expressões alternativas – ou pelo menos as mais utilizadas – para descrever esta nova época recaem sobre uma nova modernidade (e.g., “modernidade tardia”, “modernidade reflexiva”, “modernidade líquida”). Se estamos ou não numa nova época isto não parece ser o mais importante por ora. Afinal de contas, a história nos mostra que somos mais precisos em relação à compreensão dos fenômenos o quão mais distante estivermos deles. O que parece haver de consenso é que estamos numa época, pelo menos, de mudanças. Se isto se configurará como algo novo ou renovado, só o tempo dirá. Por enquanto, resta-nos crer numa das opções. A minha é relativa à primeira. Assim, opto por fazer uso dos termos em questão, ainda que por pura falta de opção. A marca de minha não concordância com os mesmos, no entanto, deve evidenciar-se nas aspas que farei uso para me referir aos mesmos – ou a qualquer de suas variações. 24 Denominado por Jameson (1997) de capitalismo tardio ou multinacional.

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“plenitude” da cultura do consumo25. Isto ocorre na medida em que, por um lado, o consumo

– e não a produção – se torna o motor das sociedades e, assim, as pessoas passam a ser mais

“importantes” para estas enquanto consumidores e não mais enquanto trabalhadores, o que faz

com que as relações sejam orientadas – ou melhor, vividas – sob a ética do consumo e não da

produção.

Assim, podemos concluir que o consumidor “moderno” esteja com seus dias

contados. Em seu lugar, temos um consumidor que não pode ser definido como aquele que

busca uma relação satisfatória de custo versus benefício das suas escolhas de consumo, mas

sim as experiências adquiridas através do próprio consumo e do significado que este passa a

desempenhar em suas relações. Desta forma, sua busca não é pelo encontro de seu único e

uníssono “eu” – o que acompanha a trajetória do nosso herói moderno –, mas por diferentes

“eus” que os tornem queridos e desejáveis em cada situação que venham a se envolver26.

Chamar-lhe-ei, por tudo isso, de homo symbolicus27.

Foi o mesmo Baudrillard (2000; 2003), em sua reflexão sobre a sociedade de

consumo, quem apontou que o objeto (e.g., um produto) não é consumido em sua

materialidade nem por sua utilidade. Para o autor, o consumo não é uma prática material, mas

sim, pelo fato de possuir um sentido, uma atividade de manipulação sistemática de signos. O

objeto-símbolo tradicional, este não é consumido. Para se tornar objeto de consumo é preciso

que o objeto torne-se signo. Assim, o consumo demonstra-se como um comportamento ativo e

coletivo; um completo sistema de valores humanos com tudo o que o termo implica de acordo

com a integração grupal e com o controle social.

25 Nos termos de McCracken (2003) e Slater (2002), dentre outros. 26 Apesar da literatura de marketing ainda ser “hegemonicamente” “moderna”, alguns autores têm desenvolvido uma visão “pós-moderna” do marketing, que aponta para a direção que estou discutindo e que já cheguei a discutir anteriormente (MELLO e LEÃO, 2003). Alguns exemplos são os trabalhos de Brown (1993; 1994; 1997), Cova (1997), Elliott (1997), Firat et al. (1995), Firat e Shultz II (1997) e Smithee (1997). 27 Faço uso, aqui, de uma analogia ao termo proposto por Cassirer (2001), ao definir o homem como sendo único pelo fato de viver num mundo de símbolos, ou melhor, de vários símbolos. E que os interpõe entre ele e o mundo dos objetos físicos.

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Podemos deduzir, com isto, que quando falamos de “consumo simbólico”28, não

estamos na condição apenas de descrevê-lo através de uma analogia, muito menos de uma

apologia. O consumo é de signos pelo fato de ser cultural; pelo fato de ser relacional. Sendo

assim, podemos concluir que ele sempre tenha sido “simbólico” – e que, portanto, sempre

tenha existido o homo symbolicus – e que também tenha sido o sistema, quando lhe foi

conveniente, que o aprisionou, por representar uma ideologia divergente da sua.

Chegamos, assim, à assunção de pressupostos antagônicos àqueles relativos ao

consumidor “moderno”. Em primeiro lugar, ao assumir que o consumo “pós-moderno” é de

signos, não podemos buscar na utilidade dos produtos a razão de tal consumo – e nem sequer

na auto-realização ou na conformidade social, versões de mesma natureza da psicologia e da

sociologia, respectivamente. Também não podemos crer na racionalidade desse consumidor –

pelo menos no sentido de como o termo foi forjado nos últimos séculos – e nem mesmo que

resolvam seus “problemas” por meio de processos cognitivos. Desta forma, muito menos

podemos esperar que sejam coerentes, centrados, conscientes e objetivos. Aliás, sequer

podemos concebê-lo como unidade de consumo, que passa a ser a(s) comunidade(s) a que

pertença(m). Finalmente, podemos presumir um consumidor realmente ativo.

Temos, pois, à nossa frente, a figura de um consumidor “irracional”, disperso,

ambíguo, subjetivo. Ora, então como esperar que ele reflita em sua mente as características

das marcas conforme foram desenvolvidas e para ele transmitidas? Como esperar que estas

características sejam de valor para ele?

28 Refiro-me a “consumo simbólico” como consumo de signos, não valendo, em minha linguagem, a diferenciação que Baudrillard faz do que seja “simbólico” e do que seja apenas “sígnico”, de forma alinhada à lingüística estrutural.

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2 Para uma crítica à crítica da economia política do signo

Ora, mas se estamos tratando de uma possibilidade acerca de marcas terem valor,

então cabem aqui algumas questões. Em primeiro lugar, o que, afinal de contas, tenho em

mente por valor? Além disto, de que valor estou falando? Inspirado na segunda filosofia de

Ludwig Wittgenstein, minha concepção é de que as marcas possam ter um valor de uso. Com

isto, antes de discutirmos a segunda filosofia de Wittgenstein propriamente, entendo que seja

necessária uma discussão acerca do que propriamente venha a ser valor. Para tal, me

debruçarei sobre a crítica da economia política do signo, feita por Baudrillard, com base na

crítica original encampada por Karl Marx à visão concebida pela economia clássica.

A crítica de Baudrillard é feita à economia política “do signo” justamente por

assumir que o consumo não é do objeto, mas do signo. Isto quer dizer que devamos discutir

como se dá o significar o signo. Quaisquer visões sobre o significado, por diferentes que

sejam, se preocupam com isto. Assim, antes de entrarmos na crítica da economia política

guiada por Baudrillard, discutiremos o problema da significação.

Contudo, ao tratar do homo economicus feito self-made man, me referi à sua

condição de receptáculo e de prisioneiro do sistema. Por outro lado, quando fomos

apresentados ao nosso homo symbolicus, deve ter ficado evidente que não o entendo como

receptáculo. Mas isto quer dizer que ele esteja imune ao sistema? Mas afinal, que sistema é

este ao qual estamos nos referindo? Qual a relação entre este sistema e os indivíduos? É

necessário que façamos mais esta discussão, já que ela é fundamental para entendermos tanto

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o valor quanto o signo, tendo em vista que ambos estão nele inseridos. Para tal, outros

pensadores marxistas são considerados. Guy Debord nos oferece sua “sociedade do

espetáculo” como o locus de tal relação, enquanto Hürgen Habermas nos propicia uma visão

mais acurada da relação entre o sistema e a vida cotidiana por meio de sua perspectiva

interacionista.

Para dar início a este caminho reflexivo, no entanto, uma discussão sobre o

problema da significação há que ser encampada, uma vez que minha concepção só faz sentido

na medida em que assumamos a utilização das marcas como signos.

2.1 O problema da significação

Ao assumir o consumo como sendo simbólico, terminei por introduzir um tema

polêmico: a significação, ou seja, como os signos de nossa linguagem adquirem significado.

Não é de hoje que se discute o que é significado e como ele é concebido. Nem dois milênios e

meio de filosofia parece ter sido o bastante para chegar a um consenso. Na verdade, não é que

haja propriamente tal busca, mas até o século passado algo muito próximo, pelo menos em

termos gerais, esteve por acontecer, ocasião em que houve uma guinada lingüística na

filosofia contemporânea, alterando o lugar da linguagem no pensamento filosófico e trazendo-

a para a condição de prima philosophia.

Mas comecemos nossa discussão pelo começo. O que temos de conhecimento

mais remoto sobre uma reflexão acerca da linguagem está no Crátilo, de Platão (1973),

provavelmente de 338 a.C. De fato, o filósofo já havia refletido sobre a linguagem em obras

anteriores, mas é aqui que ele dedica-se, especificamente, ao tema. A pergunta central de

Platão é fundamental até os dias de hoje para o problema do significado: por meio de que uma

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expressão adquire sua significação? Para tal, um diálogo é desenvolvido entre dois

personagens, Crátilos e Hermógenes, no qual o primeiro defende que cada coisa tem seu

nome por natureza e o segundo que a significação se dá por convenção e uso da linguagem –

o que viria a ser conhecido como o naturalismo e o convencionalismo, respectivamente.

Platão não aponta uma solução e certamente não era esta sua intenção. O que parece haver é

uma rejeição sua do que poderia ser uma visão extremada de cada perspectiva. Para ele, as

palavras não se apresentam, necessariamente, como imitação dos sons, ainda que possa ter

certa afinidade natural. Por outro lado, admite certa convenção na formação das palavras, mas

não que isto seja arbitrário, mas sim uma questão de ethos.

Assim, apesar de promover o diálogo entre naturalismo e convencionalismo,

Platão responde à sua questão de outra forma. O que ele defende é que as palavras apresentam

as essências das coisas e que, de fato, é possível se conhecer as coisas sem a linguagem, pois

nela não se atinge o que é verdadeiro. Assim, sua proposta leva a uma ruptura entre

pensamento e linguagem. Esta última se torna apenas um instrumento (organon) para

expressão do primeiro.

Depois de Platão, Aristóteles, que se coloca claramente na premissa

convencionalista, lança o debate para outro ponto. Mais preocupado com a questão da verdade

propriamente dita, ou seja, do que se pode ser dito verdadeiro ou falso, o filósofo dirá que esta

se encontra não num nome, mas numa proposição, pois é neste nível que a linguagem poderá

deixar de ser apenas significação para atingir as coisas mesmas. De fato, para ele as palavras

só têm sentido porque as coisas a que elas se referem têm uma essência. Temos, então, que,

ainda que o pensamento aristotélico vá de encontro em muitos aspectos ao de Platão –

enquanto um está no plano do real o outro está no plano das idéias –, a questão da essência

das coisas e da linguagem como instrumento permanece.

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Esta visão, chamada de essencialismo, tem sustentação metafísica. Ela presume

que todas as coisas têm uma essência e que é isto o que possibilita se evidenciar que uma

coisa é o que é e que não deixará de ser. Assim, presume que seja necessário haver algo

comum a todas as instâncias de um conceito para explicar porque elas caem sob este.

A conclusão a que o essencialismo leva é a de que, se para todas as coisas existe

uma essência, existe também um significado apriorístico para tais coisas. Trata-se, portanto,

de uma visão semântica sobre o significado, que assume que os nomes carregam significado

por si só.

De fato, esta visão foi base para a filosofia ocidental e aquela que chegou aos

nossos dias. Ainda que na história da filosofia da linguagem, dos gregos até os últimos

representantes da filosofia da consciência, seja possível se identificar diferentes formas de se

entender o significado e como ele se dá, o princípio semântico se mantém.

Com o princípio semântico do significado, mantém-se também a visão de que a

linguagem tenha um papel secundário, de instrumento. É apenas com a chamada “virada

lingüística” que a linguagem torna-se central nas discussões filosóficas. “Virada lingüística” é

o nome adotado para um novo rumo que a filosofia ganhou no século XX. A partir dela, parte

da filosofia tendeu a centrar atenção na linguagem como forma de se entender o

conhecimento.

Entretanto, apesar de romper com a visão instrumentalista da linguagem, a

primeira “leva” de pensadores deste movimento – dentre os quais Gottlob Frege, Bertrand

Russell, Ludwig Wittgenstein em sua primeira fase, Rudolf Carnap, entre outros – têm ainda

uma visão semântica ao assumirem o representacionalismo. Eles pregavam que a

característica central da linguagem é sua capacidade de representar o modo como as coisas

são; que para cada objeto existe um nome; que uma palavra significa o que ela substitui.

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Esta visão também incorre no risco do solipsismo, pois se, afinal, posso me

representar o mundo, então o mundo que há é o meu mundo. A bem da verdade, apesar de

raramente ser defendido abertamente, podemos ver vestígios de solipsismo em várias

abordagens semânticas, como, além do representacionalismo, o idealismo e a fenomenologia,

por exemplo – ainda que, em muitos casos, tenha havido uma superação deste aspecto, como

podemos perceber em Husserl (1962), Heidegger (2001), Merleau-Ponty (1996) e Sartre

(2005).

Wittgenstein (2005), em sua segunda fase, é o primeiro a questionar o significado

apriorístico das palavras. Em sua segunda filosofia, ele propõe que os nomes não representam

as coisas em si, mas sim que é o uso que fazemos dos nomes que determina o significado das

coisas. Assim, sustenta que a significação das palavras só ocorre em seu uso. Afinal, só

aprendemos o significado das palavras aprendendo a como usá-las29. Temos, assim, portanto,

uma visão pragmática, ao invés de semântica. Isto não aponta, contudo, para o fim desta

última, mas que ela só se constitui propriamente através da pragmática, pois é daí que surge o

verdadeiro significado dos nomes, ainda que sempre de forma contextual e ambivalente.

Como apontaria Oliveira (2001), só podemos chegar à semântica por meio da pragmática.

A segunda filosofia de Wittgenstein representou uma segunda guinada lingüística

na filosofia contemporânea. Desde que veio ao mundo, tem influenciado, de forma direta ou

indireta, a muitos pensadores, de várias áreas e com preocupações das mais diversas, dentre os

quais podemos citar a teoria dos atos de fala (AUSTIN, 1990; SEARLE, 1969); a teoria da ação

comunicativa, de Habermas (2002); a etnometodologia, de Garfinkel (1985); o

socioconstrucionismo (BERGER e LUCKMANN, 2002); a etnografia da comunicação (HYMES,

1986); a sociolingüística interacional (GOFFMAN, 1974; 1979; GUMPERZ, 2002), dentre outros.

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2.2 A crítica da economia política do signo

Como antecipei, interessa-nos entender a noção de valor, conceito fundamental na

economia política. Ali, o valor ocupa papéis diferentes: o de uso e o de troca. O valor de uso é

o que há de utilidade em um objeto; é referente às características físicas que tornam os bens

capazes de serem usados pelas pessoas e satisfazerem suas necessidades. O valor de troca é a

faculdade que a posse de determinado objeto oferece de comprar com ele outras mercadorias;

indica a proporção em que os bens são intercambiados uns pelos outros, direta ou

indiretamente.

Estes conceitos, da economia clássica, são revisitados por Marx (2004), para uma

crítica da economia política. De fato, pode-se dizer que sua crítica teve como meta

fundamental a noção de valor de troca, até porque ele manteve a crença no valor de uso como

algo natural.

Assim como David Ricardo, pensador da economia clássica, Marx acredita que o

valor de troca é fruto do trabalho. Contudo, via este tipo de valor como dependente da

quantidade de trabalho despendida. Entretanto, para ele, a quantidade de trabalho que entra no

valor de troca é a quantidade socialmente necessária. É desta forma que se dá a exploração do

trabalhador e a alienação do trabalho – e é justamente com esta visão que Marx teoriza a

mais-valia.

Marx entende que a relação entre as mercadorias não existe por si só. Esta se dá

por convenção social, que é o que determina o valor de uma mercadoria em relação a outra, já

que foi relacionando-se socialmente que o homem veio a produzi-la. É neste aspecto que ele

mantém a noção de valor de uso como sendo natural, mas apresenta o valor de troca como

sendo social. Para ele, no capitalismo, esta base social da mercadoria aparece como encoberta.

Assim, a igualdade do esforço humano de produção (através do trabalho) fica disfarçada sob

29 A segunda filosofia de Wittgenstein será detalhada no próximo capítulo.

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a igualdade dos produtos como valores. Mas a mercadoria tem características sociais na

medida em que os homens trabalham uns para os outros. O mistério da mercadoria consiste

justamente no encobrimento das características sociais dos produtos do trabalho humano, que

aparecem como características materiais e pertencentes ao próprio objeto. Desta forma, Marx

(2004) sugere que uma relação social estabelecida entre os homens assume a forma

fantasmagórica de uma relação entre as coisas. É neste aspecto que lança a noção de

fetichismo da mercadoria, em que as coisas, tomadas num ponto objetivo, têm apenas

existência material. É no plano físico onde acontecem as coisas, o trabalho, a transformação.

No entanto, é o homem que, abstraindo e convencionado com outros homens através da

linguagem, transforma o objeto em uma mercadoria de valor pessoal, subjetivo.

Dentro da noção de que o que se consome não é o objeto, mas o signo, Baudrillard

(1995) revisita a crítica da economia política de Marx para propor que ela já não pode ser

vista simplesmente por meio da mercadoria. Para ele, a forma-mercadoria de Marx vira

forma-signo. É com esta idéia que ele aponta que, além da lógica funcional, das operações

práticas, do valor de uso, e da lógica econômica, de equivalência, do valor de troca, exista um

outro valor, o valor de troca-signo, que é guiado pela lógica da diferença, na relação

diferencial com outros signos. Em sua análise, sendo o signo o verdadeiro “objeto” de

consumo, é este último valor quem explica a relação de consumo, o que o leva a definir este

como troca.

Baudrillard aponta ainda a existência da troca simbólica, que é guiada pela lógica

da ambivalência. Para ele, o que constitui o objeto como valor na troca simbólica é o fato de

nos separarmos dele para o dar, no que inspira-se na teoria da dádiva de Marcel Mauss

(1989). Assim, ele conclui que não há valor simbólico; há apenas troca simbólica, que se

define como outra coisa, para além do valor e também do signo. Todas as relações de valor

estão no quadro da economia política. E todo esse sistema nega a troca simbólica.

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Mas se no plano concreto da mercadoria existem valores tanto de uso quanto de

troca, porque Baudrillard aponta, no plano do signo, apenas este último? O autor propõe que o

valor de uso seja uma metafísica da utilidade. Indo de encontro a Marx, ele entende que,

assim como o valor de troca estabelece-se na relação social, também o valor de uso aí se

estabelece, através do sistema das necessidades. Assim, conclui que o fetichismo da

mercadoria não se situe apenas sobre o valor de troca, mas sobre este reunido ao de uso, que

passam a ser um mesmo, no sentido de não haver mais distinção entre eles, sendo este último

não mais do que um álibi para o primeiro, sua “caução ideológica”.

Em sua elaboração, baseada na lingüística estrutural (semiologia), Baudrillard

aponta que o valor de troca refere-se ao significante, enquanto o valor de uso refere-se ao

significado. Mas o autor deduz que o significado não é mais do que um efeito do significante,

pois enquanto o primeiro seja apenas um conteúdo do pensamento, o segundo é a forma, que

subsume, assim, o conteúdo.

E é aí que Baudrillard exclui a troca simbólica, porque ela estaria para além desta

relação. Na relação entre significante e significado, a equivalência torna-se simplesmente

polivalência, mas continua a opor-se radicalmente à ambivalência. Para ele, para subverter a

lógica do valor de troca, nem uma autonomia do valor de uso seria bastante; seria necessário

restituir a possibilidade de dar, o que significa mudar a forma da relação social; não seria

através de um valor, ainda que o de uso, mas da troca simbólica.

2.3 Dois mundos ou bidimensionalidade mundana?

Habermas (2002) propõe, em sua teoria social, uma dialética entre dois grandes

mundos: o do sistema e o da vida. O mundo do sistema pode ser considerado o mundo formal,

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das regras, normas e leis constituídas, das ações planejadas etc., ou seja, um mundo criado

pelo próprio homem, visando seu êxito como ser supremo e ao seu domínio sobre a natureza.

Em contrapartida, existe o mundo da vida, que é o lugar das relações sociais espontâneas, das

certezas pré-reflexivas, dos vínculos que nunca foram postos em dúvida, das necessidades

reais dos sujeitos, seus sentimentos e percepções. O mundo do sistema tenta controlar o

mundo da vida. Isto gera muitas vezes um distanciamento entre estes mundos, levando

problemas tais como a miséria, a submissão, a violência, para citar apenas alguns. Esta

intervenção é o que Habermas chama de colonização do mundo da vida (o [inter]subjetivo e o

cultural) pelo mundo do sistema (o econômico e o racional). Trata-se de um processo

histórico. Antes da modernidade, da racionalização do mundo vivido, a integração do sistema

foi subordinada à integração social. Com o advento da sociedade de classes, a relação foi

invertida: a sobrevivência tornou-se a preservação do sistema, não da vida. Os vários

mecanismos desenvolvidos pelo sistema pouco a pouco reduziram, a fragmentos, a unidade

entre o sistema e a vida. O primeiro passo para a separação se deu quando o Estado precisou

de uma justificação ideológica para o monopólio do poder. O segundo, quando se tornou

inevitável a vida sob um regime da lei formalizada. O definitivo, quando a liberdade

econômica do ganho privado elevou o mercado à categoria de sistema auto-regulado e

hegemônico sobre o mundo da vida.

Fica claro agora o que temos chamado de “sistema”. E fica também evidente que a

sociedade de consumo advém justamente da necessidade deste sistema em priorizar o

consumo em relação à produção. Mas que sociedade é esta, se estamos falando de sistema?

Podemos concluir que se trata da sociedade cuja vida foi subsumida ao sistema. Uma visão

crítica e apurada desta sociedade nos foi apresentada por Debord (1997), que a nomeou de

“sociedade do espetáculo”. Mas que espetáculo é este? Debord define que “o espetáculo é o

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capital em tal grau de acumulação que se torna imagem” (SE §34) 30. Para tal, Debord busca

inspiração em Marx, o que fica evidente quando o parafraseia logo na abertura de sua obra.

Marx (1998) inicia O Capital propondo que “a riqueza das sociedades em que domina o modo

de produção capitalista aparece como imensa acumulação de mercadorias” (p. 43). Debord,

por sua fez, propõe que “toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas

de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era

diretamente vivido se afastou numa representação” (SE §1).

Uma questão curiosa aqui é que Debord não limita ao sistema capitalista

denunciado por Marx a responsabilidade do espetáculo, mas ao próprio projeto moderno, em

que ele inclui as ditaduras socialistas de sua época, como sendo nada mais que uma forma

subdesenvolvida de capitalismo de Estado.

Contudo, podemos interpretar como fio condutor de seu pensamento a dedução de

que a mercadoria foi substituída pela imagem. Não fica difícil perceber que vem daí a

constatação baudrillardiana de que o objeto só se faz objeto de consumo quando se torna

signo. Portanto, o mesmo fetichismo alienante que Marx apontou para a mercadoria e que

Baudrillard redirecionou para o signo está aqui no que Debord chama de imagem. Esta

imagem, presente em todas as vitrines do mundo e veiculada unidirecionalmente pelos meios

de comunicação de massa, penetrou de tal forma na vida que a práxis social se cindiu em

realidade e em imagem (SE §1).

Sua conclusão, neste aspecto, está alinhada também à divisão de mundos da vida e

do sistema, quando aponta que o vivido vira representação das imagens. Para ele, “o

espetáculo é uma inversão da vida e, enquanto tal, é o movimento autônomo do não-vivo” (SE

§2). Assim, ele aponta que a primeira fase da dominação da economia sobre a vida social

30 Todas as citações de Guy Debord são extraídas de sua obra “Sociedade do Espetáculo”. A mesma foi toda escrita por meio de aforismos. As referências, portanto, referem-se à numeração dos mesmos na supra citada obra.

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acarretou uma degradação do ser para o ter no modo de definir a realização humana e que, em

seu estágio avançado, este ter torna-se apenas um parecer (SE §17).

Mas ora, podemos aqui nos fazer pelo menos uma pergunta fundamental: ainda

que aceitemos o argumento de que o mundo do sistema tenha subsumido o da vida, podemos

entender que isto tenha acarretado no aniquilamento deste último? Parece-me que, ainda que

possamos constatar a soberania do parecer sobre o ser, aceitar a tese debordeana do

movimento do não-vivo na sociedade do espetáculo implique na aceitação de que o sistema

tenha finalmente conseguido submeter o homem a máquina. Mas esta parece se configurar

como uma visão estrutural, que o próprio Debord não compartilha.

Por outro lado, Debord reconhece que não seja possível se fazer uma oposição

entre o espetáculo e a atividade social efetiva, pois que este desdobramento é também, por si

só, desdobrado (SE §8) e que o espetáculo não seja em si um conjunto de imagens, mas uma

relação entre pessoas, mediada pelas imagens (SE §4).

Ao separar o mundo da vida do mundo do sistema, Habermas subverte as

unidades de contradição dialética propostas por Marx, as forças produtivas e as relações de

produção, culminante da luta de classes, para assumir que esta esteja entre o nível do saber e

do agir técnico-estratégico e o nível do saber e do agir prático, moral e comunicativo,

presentes no trabalho e na interação, respectivamente. Assim, ele articula a lógica do

desenvolvimento do “eu” com a do desenvolvimento das sociedades.

É na filosofia de George H. Mead, que ulteriormente veio a se tornar a base do

interacionismo simbólico, através de Blumer (1969), que Habermas busca a compreensão do

mútuo desenvolvimento do “eu” e da sociedade. Para Mead (1934), a sociedade é concebida

como um tecido de comunicação em que as pessoas, através da interação, influenciam-se

reciprocamente e, na medida em que atuam, levam em consideração as características dos

outros. Essa interação é o que possibilita que o “eu” e a sociedade, por meio da simbolização,

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se gerem mutuamente, mantenham-se ou mudem permanentemente, o que só é possível

graças à linguagem. Desta forma, é ao responder às expectativas dos outros e ao experimentar

papéis no processo de interação que a pessoa é socializada, o que ocorre através de um

processo contínuo, ao longo de toda a vida. Nesta perspectiva, a interação é simbólica porque

é humana, o que necessariamente implica a abordagem dos significados, que são tanto

produto das interações quanto modelam o curso destas. Portanto, os símbolos são

significantes e têm o papel de ajudar a organizar o comportamento e a permitir que os atos se

completem no curso da interação, num contexto social específico.

Podemos levantar, com isto, o questionamento sobre se não seria este princípio

necessário e bastante para deduzirmos que haja uma mútua dependência entre o mundo da

vida e o mundo do sistema. Aceitar que aquele tenha sido subsumido, mas não aniquilado,

pelo sistema, e assim que o homem não tenha se reduzido a máquina, não pressuporia que a

interação social, ainda que possa ser constrangida pelo sistema – e mesmo por isso –, também

não o redimencionaria de forma dinâmica?

Ainda que fosse o caso de analisarmos este aspecto do ponto de vista estrutural,

podemos concluir que o pensamento de Mead antecipou em meio século o que viria a ser

proposto por Giddens em sua teoria da estruturação. Ali, Giddens (2003) propõe que a vida

social é mais do que ações individuais arbitrárias, mas não é meramente determinada pelas

forças sociais. Em outras palavras, não é meramente uma massa de atividade de nível micro,

mas, por outro lado, não se pode observá-la apenas considerando as explicações do nível

macro. Em vez disto, sugere que a agência humana e a estrutura social estão num

relacionamento entre si e que é a repetição das ações dos agentes individuais que reproduzem

a estrutura.

Quem se preocupa em compreender a microestrutura social justamente através da

interação é Erving Goffman. Goffman (2001) analisa as interações sociais a partir da metáfora

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teatral, tendo em vista que todos somos atores sociais, em que rituais e jogos são vividos – ou

representados, como queiram. Assim como no pensamento de Mead, a formação do “eu”

aparece em seu pensamento de maneira crítica – e, aliás, ainda que seu pensamento se

desenvolva de forma diferente ao de Mead, chega fundamentalmente à mesma idéia.

Goffman sugere que o ator precisa ser compreendido sob dois papéis distintos: o

de ator propriamente dito, em que fabrica impressões; e o de personagem, cujo espírito, força

e outras qualidades, a representação tem por finalidade evocar. Esses dois papéis expressam a

contradição do “eu”. Enquanto o ator propriamente dito não é inteiramente coagido por

pressões sociais e daí poder manipular as impressões que deseja, a personagem será, em

última instância, determinada socialmente. Entretanto, vemos aí que o argumento central do

forjamento social do “eu” se mantém quando Goffman apresenta que mesmo o ator

propriamente dito estará coagido por imagens sociais em sua manipulação de impressões.

Esta perspectiva – tanto em Goffman quanto em Mead, diga-se de passagem –,

tem a ver com o uso da comunicação. A tendência humana a usar sinais e símbolos significa

que coisas insignificantes transmitirão evidências de valor social e de avaliações mútuas e

estas coisas serão testemunhadas. Assim, a interação face a face ocupa uma importância ímpar

na própria estrutura do “eu”, uma vez que convenções são mantidas como guias para a ação.

A relação entre o “eu” e a interação face a face se revela mais claramente quando do

intercâmbio ritual, uma vez que uma mensagem formulada e emitida por um participante

obriga que um outro demonstre seu recebimento e aceitação, sob pena de ameaça ao equilíbrio

ritual.

Tudo isso nos leva à possibilidade de que não estejamos falando de dois mundos,

mas de uma bidimensionalidade entre estes mundos, de uma vida mundana que não se separa,

e, assim, que haja mútua influência. Um argumento forte quanto a isto, dentro da própria base

na qual tenho me apoiado até agora, seria que mesmo em se aceitando tal perspectiva, a

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interação social poderia já ser por si alienada e ao retornar para o sistema apenas o

alimentasse e fortalecesse.

2.4 Uma crítica à crítica da economia política do signo

Ao argumento forte que acabo de reconhecer, uma pergunta singela, e talvez, a

princípio, ingênua, poderia ser levantada: as pessoas, em suas vidas cotidianas, realmente

vivem a alienação tão preconizada pelos alienistas?

Wittgenstein, em sua segunda fase, define a filosofia como devendo ser “uma luta

contra o enfeitiçamento do nosso entendimento pelos meios da nossa linguagem” (IF §109).

Seu argumento é de que vários dos problemas filosóficos são fruto de uma má interpretação

da linguagem pelo filósofo e não problemas em si. Mas ora, o que seriam o signo de

Baudrillard e as imagens de Debord, responsáveis pela alienação de nossa sociedade, senão

linguagem? E seriam apenas os filósofos que se enfeitiçariam pela linguagem? Também o

homem comum não se enfeitiçaria? Não é por coincidência que a etimologia do termo francês

fétiche aponte para feitiço. Portanto, podemos deduzir que o fetiche “alienador” pelo signo,

pelas imagens, seja parte do próprio feitiço pela linguagem.

Mas Wittgenstein não aponta como saída para o feitiço da linguagem uma

“tomada de consciência”. O que ele indica é a necessidade de uma terapia. E esta terapia está

fundamentada na compreensão gramatical. Mas em Wittgenstein, o termo “gramática” não se

refere apenas àquela a que estamos habituados, que conhecemos e que aprendemos na escola,

comumente chamada simplesmente de “gramática”, mas que ele chama de gramática

superficial, e que cada língua tem a sua. O filósofo aponta uma outra, a gramática profunda,

que se refere a como as palavras adquirem significado através do uso e que submete a si a

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gramática superficial – a visão pragmática que já discutimos. Trata-se também, portanto, de

um pensamento crítico, ainda que numa instância bem diferente daquela dos seguidores de

Marx.

A prescrição da terapia de Wittgenstein não deve se restringir ao filósofo, mas

também ao cientista, ao homem comum, enfim a qualquer ser humano, pois que todos estão

na linguagem. Neste momento, quero fazer uso de tal terapia para uma crítica à crítica da

economia política do signo encampada por Baudrillard.

Apesar de acompanhar Baudrillard em parte significativa do seu pensamento –

nomeadamente, sua visão crítica na forma como caracteriza a sociedade de consumo, o

consumo assumido como prática de manipulação de signos e a assunção de um consumidor

“pós-moderno” – parece-me problemática a redução do valor de uso a álibi do valor de troca

que o autor faz no plano do signo. Que isto seja aceitável no plano do objeto não parece difícil

de se conceber, tendo em vista a sustentação do valor de uso na noção de necessidades.

Quando as necessidades são desmascaradas e apresentadas como ideologia, o valor de uso cai

por terra.

Contudo, ele não poderia ter feito uma transposição fiel deste aspecto quando

tratasse do signo. No plano da linguagem, a noção de utilidade, ou seja, de função, é bem

diferente da do plano econômico. Na lingüística, a visão do pensamento funcionalista é que a

estrutura da língua é determinada pelas funções que têm que exercer nas sociedades em que

está inserida. Isto pressupõe que os signos são determinados pelo uso que lhe é dado e pelo

contexto em que ocorre. Portanto, os aspectos de uso dos signos são sua função no sentido de

gerar significado.

A lingüística estrutural, ou semiologia, na qual Baudrillard se baseia, localiza o

significado na esteira do significante, ou seja, que são os significantes que remetem ao

significado. A base desta perspectiva está no fato dela separar a língua e a fala e de se

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preocupar, enquanto objeto, com a primeira. No que reconhece a significação como estando

no plano da fala, não se preocupa propriamente com esta questão, assumindo simplesmente

que exista uma relação entre significado e significante, ainda que para um possam existir

vários do outro e vice-versa.

Mas quando Baudrillard impõe uma submissão do significado pelo significante

ele não está definindo um escopo, mas sim que o significado já exista pelo fato de haver um

significante, o que fica evidente em sua dedução de que “o estágio acabado da mercadoria é

aquele em que ela se impõe como código” (2003, p. 215).

Ocorre que o que a semiologia considera como fala é justamente o uso da língua,

o que a faz acatar a significação como sendo proveniente do uso. Não se trata, pois, de

rejeitar-se a dimensão do uso na linguagem, mas de simplesmente não considerá-lo como

objeto, o que fica evidente no reconhecimento de que língua e fala estejam numa relação

dialética de mútua dependência.

Portanto, não temos aqui nada que aponte para uma “metafísica da necessidade”

no plano funcional da linguagem. Ao contrário, é esta perspectiva funcionalista que afugenta

qualquer possibilidade de metafísica na linguagem. Assim, não só evidenciamos que o signo

seja “usado”, como que seja este uso que propicie que ele seja significado e, assim, que seja

signo de alguma coisa.

O curioso é que é o mesmo Baudrillard, que veio a definir o consumo como troca

(BAUDRILLARD, 1995), antes havia proposto que o consumo seja forma ativa de manipulação

de signos. Pergunto-me se uma manipulação já não seja propriamente um uso.

Parece que podemos, então, separar o plano da troca do plano do uso, quando

estamos tratando de signos. Contudo, podemos ainda levantar duas questões. Uma primeira

questão seria se este uso estaria no plano do valor ou no que Baudrillard chama de simbólico

– já que ele sugere, ainda que implicitamente, que é neste último que se encontram as relações

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propriamente humanas. Neste sentido, dois comentários são necessários. O primeiro é que

Baudrillard, ao se focar na troca, só concebeu uma teoria da troca simbólica e não uma do uso

simbólico. Portanto, teríamos que refletir, se fosse o caso de segui-lo nesta separação, sobre o

que seria um uso simbólico. É neste aspecto que concebemos o segundo comentário a este

respeito. Na verdade, muito mais uma nova questão: será que na bidimensionalidade mundana

em que vivemos podemos separar o que é de valor do que seja puramente simbólico?

É a partir deste aspecto que podemos chegar à segunda questão: este uso é de

valor? Para refletir sobre isto, terei que apresentar minha visão sobre a questão que acabo de

lançar. Não vejo como separar, num mundo bidimensional que apresentei, o que seja

propriamente simbólico do que seja propriamente de valor – e, de fato, o próprio Baudrillard

viria a excluir a “troca simbólica” de seu esquema (BAUDRILLARD, 1996).

Minhas reflexões até o momento me levam a propor que exista valor de uso

relativo ao signo. É o uso que significa o signo. Isto não já está num significante. Assim, o

valor de uso do signo está justamente em este poder ser indefinidamente ressignificado.

Podemos dizer, com isto, que a lógica da ambivalência que Baudrillard aponta na troca

simbólica seja a mesma que esteja no valor de uso do signo.

Assumindo-se que as interações sejam mediadas pela linguagem, podemos

deduzir o valor de uso do signo como sendo proveniente de como estes signos são utilizados

nestas interações. Considerando-se ainda que seja nestas interações que o “eu” se faz,

podemos deduzir que talvez o valor de uso do signo esteja justamente aí, que sua função seja

a de impressionar e se deixar impressionar por e para si, para e pelos outros.

É bem verdade que o feitiço também pode estar no uso. Mas também é possível

que a manipulação seja realmente ativa, “terapeutizada” – pressuposição que me coloca

distante em mais um aspecto de Baudrillard.

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3 A “teoria” da significação na segunda filosofia de Ludwig Wittgenstein

Minha tese de que haja valor de uso no consumo simbólico, base da minha crítica

à crítica da economia política do signo, está fundamentalmente baseada em minha

interpretação da segunda filosofia de Wittgenstein31. Entretanto, até o presente momento, a

única coisa que discutimos é de que a mesma se trata de uma visão da significação através do

uso da linguagem. Mas que idéias estão por trás desta visão? O que sustenta Wittgenstein em

seu pensamento? Que pressupostos e perspectivas ele assume? Evidentemente minha

pretensão aqui não é a de tecer uma minuciosa discussão acerca de sua filosofia, tão complexa

e ainda em processo de interpretação e compreensão, ainda tida como exótica para muitos e

estarrecedora – do tipo “porque ninguém pensou nisto antes?” – para outros.

O que ora apresento é uma síntese do que no pensamento de Wittgenstein me

inspirou a refletir sobre as marcas e seu valor de uso simbólico32 – síntese esta sobre a qual

31 A partir deste ponto, sempre que me referir a Wittgenstein simplesmente pelo seu nome terei em mente aquele em sua segunda filosofia, o que faço para evitar a necessidade de sempre estar mencionando um “Segundo”, uma vez que minha abordagem inspira-se exclusivamente nesta filosofia e não naquela do autor do Tractatus. 32 Para tal, nas próximas seções, ao desenvolver minha explanação sobre os aspectos da filosofia de Wittgenstein, insiro várias passagens suas, uma vez que entendo que seu estilo, muitas vezes, precise ser acessado em sua origem. Todas as citações serão apresentadas com base na obra Investigações Filosóficas. De fato, o livro divide-se em duas partes. A primeira é escrita inteiramente por meio de aforismos separados por parágrafos e trás a síntese do seu pensamento. A segunda parte, escrita em texto corrido, trata de um aprofundamento da psicologia filosófica de que Wittgenstein se ocupou e que tinha intenção de inserir no corpo de aforismos – o que não viria a acontecer por ocasião de sua morte –, distribuído ao longo dos §§491-693, como observa Glock (1998), que já tratava de tais aspectos, entre outros. Assim, por uma opção estilística, todas as citações aqui apresentadas são relativas à primeira parte da obra em questão, em que os parágrafos de aforismos são indicados pela sua numeração, iniciada pela sigla IF. Para tal, a referência que tomo se refere à sua edição brasileira de 2005. Tais critérios valerão para qualquer citação feita no decorrer da tese – o que já ocorreu no capítulo anterior. Vale destacar que, apesar desta opção, li outras obras do filósofo: “O livro azul” (1992) e “O livro castanho” (1992), “Da certeza” (2000), “Cultura e valor” (2000) e, até, o Tractatus Logico-Philosophicus (2001). Apesar de não serem citadas, estas obras, assim como a segunda parte das Investigações, os mesmos foram fundamentais para que eu pudesse ampliar minha compreensão de sua filosofia.

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assumo toda a responsabilidade relativa à forma como os conceitos são costurados, o que é

uma tarefa demasiada difícil, tendo em vista a apresentação fragmentária do seu

pensamento33.

Vale aqui a ressalva de que, apesar da inspiração, eu, na verdade, não posso me

classificar como um “wittgensteiniano” no sentido estrito da palavra. Afinal de contas, me

“aproprio” de sua filosofia para um fim que não o de pensar a linguagem em si ou mesmo a

própria filosofia. Assim, não há como eu não incorrer em algumas “interpretações” ou mesmo

“adaptações” do seu pensamento, no que me esforcei para mantê-lo íntegro34.

3.1 Uma breve biografia

Como entender um homem sem conhecer, ainda que sucintamente, sua trajetória

de vida? Como entender seu pensamento sem saber pelo que ele estava passando, vivendo, no

momento de concebê-lo? Assim, antes de discutirmos a segunda filosofia de Wittgenstein nos

aspectos em que esta é usada como inspiração para as nossas reflexões, entendo que se faça

mister que destaquemos brevemente sua biografia.

A trajetória do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein é no mínimo curiosa35.

Nascido na Viena de 1889, de família rica, com ascendência judaica, teve uma infância

envolta de vida artística em sua casa. Iniciou seus estudos superiores em engenharia, em 1906,

em Berlin, mas logo se mudou para Manchester, para participar de experimentos com pipas e

33 Além das obras do próprio filósofo, outras me ajudaram a “fechar o circuito” do que ora apresento como minha interpretação de sua filosofia para os fins a que pretendo chegar. São elas: Condé (2004), Glock (1998), Lyotard (2002), Moreno (2005), Oliveira (2001), Pinto (1999a; 1999b), Prado Neto (2003), Rorty (1999; 2002), Spaniol (1989) e Springer de Freitas (2003). 34 Nesta interpretação incluo a base “teórica” – se assim posso dizer –, epistemológica e metodológica para as nossas investigações.

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do desenvolvimento de propulsores a jato. Daí interessou-se por matemática pura e, logo

depois, pelos seus fundamentos filosóficos. Foi assim que se encontrou com as obras de

Russel e Frege e logo começou a tentar resolver uma contradição que o primeiro houvera

percebido no sistema proposto pelo segundo. Conheceu Frege, com quem trocou idéias e por

quem foi indicado a estudar com Russel, em Cambridge, a partir de 1911.

Foi a partir daí que desenvolveu sua primeira filosofia, articulada em seu livro

intitulado Tractatus Logico-Philosophicus – marco da visão representacionalista a que já nos

referimos. Mas as coisas não foram tão simples. Depois de quatro anos estudando com Russel,

Wittgenstein parte, em 1913, para a Noruega, no intuito de escrever sua teoria lógica. Com a

deflagração da Primeira Guerra Mundial, contudo, volta a Viena para alistar-se como

voluntário. Apesar do ambiente nada hospitaleiro, ele continua escrevendo e, em 1918, então

prisioneiro, consegue enviar o manuscrito do Tractatus a Cambridge, que, através de Russel, é

publicado em 1921.

Com o Tractatus, Wittgenstein acreditava ter resolvido todos os problemas da

filosofia. Assim sendo, deixa a vida filosófica, para onde só retorna em definitivo mais de

uma década depois. Nesse entretempo, foi liberto do seu cárcere, em 1919, doou toda a sua

fortuna um ano depois, como meio de se desligar do passado, trabalhou como professor de

escolas primárias e como jardineiro.

Nesse intervalo de tempo, o Tractatus já havia se tornado obra de referência e o

chamado Círculo de Viena, fundador do positivismo lógico, o havia adotado como marco.

Wittgenstein chegou a participar de vários de seus debates, mas seu pensamento já havia

mudado. O livro, contudo, teria ainda um outro fim: Wittgenstein o submeteu como tese de

doutoramento em Cambridge, em 1929, o que marcou sua volta definitiva à filosofia.

35 As informações aqui contidas acerca da biografia de Ludwig Wittgenstein foram extraídas, sobremaneira, de capítulos introdutórios da edição de 1979 da Editora Abril Cultural das Investigações Filosóficas e do Dicionário Wittgenstein, de Hans-Johann Glock (1998).

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Wittgenstein vive um momento de transição até 1933, mas a partir daí seu

pensamento passa a centrar-se naquela que seria sua segunda filosofia, publicada apenas após

sua morte, por sua vontade, em 1951, através do livro Investigações Filosóficas.

Assim como ocorreu com o Tratactus, as Investigações também têm um grande

impacto na filosofia contemporânea. O novo posicionamento de Wittgenstein causa uma

ruptura no pensamento filosófico e, ainda hoje, provoca reações das mais diversas, seja

positiva ou negativamente.

Como se não bastasse a forma original com que refletiu sobre a linguagem e as

novas proposições que desenvolveu acerca da própria filosofia, Wittgenstein é considerado

um dos filósofos mais importantes e influentes do século XX. Ele não apenas desenvolveu

duas diferentes filosofias, mas duas que influenciam diferentes correntes de pensadores até

hoje.

Mas por que nos referirmos a uma primeira e a uma segunda filosofia de

Wittgenstein? De fato, podemos chamar de duas filosofias distintas porque se contradizem e

até se antagonizam, apesar de, fundamentalmente, terem preocupações com as mesmas

questões. Esta ruptura é tanta, que se chega a se referir a um Primeiro e a um Segundo

Wittgenstein. Ele mesmo, na obra definidora de sua segunda filosofia, refere-se a si, quando

de comentários sobre o Tractatus, na terceira pessoa. Até hoje ambas são de extremo impacto

e seus seguidores certamente concordam que se trata de dois e não apenas um Wittgenstein.

Aliás, os seguidores de cada uma das filosofias certamente não compartilharão da outra.

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3.2 Significado pelo uso: linguagem como jogo

Como já pude articular, minha busca é pelo valor de uso das marcas para seus

consumidores. Neste sentido, como “uso” assumo a noção pragmática da linguagem de

Wittgenstein, uma vez que toda minha abordagem se refere à assunção das marcas enquanto

signos. Como vimos, o filósofo atesta que é o uso que fazemos de um signo que determina o

seu significado.

Apesar de não podermos falar de uma teoria propriamente dita advinda da

segunda filosofia de Wittgenstein – e, aliás, sequer podermos crer que ele um dia tenha

desejado isto – o seu pensamento, apresentado de forma caótica, através de aforismos que

vem e vão acerca dos temas a que tratam, trás pelo menos o que poderíamos chamar de

“elaboração teórica”. E no centro de tal articulação está justamente sua noção de uso. De fato,

podemos afirmar que esta é a noção fundamental da filosofia de Wittgenstein. É a partir dela

que todo o seu pensamento se articula. Indo de encontro a toda a semântica tradicional,

Wittgenstein propõe que o significado de uma palavra não está na sua relação de referência ao

objeto que representa, mas no uso que as pessoas fazem dela. Sua proposta é de que o

significado de uma palavra é seu uso na linguagem (IF §43). Assim, um signo não tem seu

significado na sua associação a um objeto. Este significado emana do emprego que as pessoas

fazem de um signo em suas vidas cotidianas, em suas práticas lingüísticas. Dependendo da

forma como usamos um dado signo de nossa linguagem, ele pode ter um significado numa

situação e outro numa situação distinta.

A “elaboração teórica” a que me refiro evidencia-se no que Wittgenstein chamou

de jogos de linguagem. O termo advém da comparação que o filósofo faz da atividade

lingüística com jogos. Para ele, a linguagem é uma prática, daí só fazer sentido no uso. Este

uso, por sua vez, é orientado por regras. Assim como no jogo, as regras só são aprendidas se

jogando, ou seja, se praticando a linguagem.

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Mas para além da analogia, o que seria um jogo de linguagem, afinal? De fato,

Wittgenstein nunca veio a definir o que sejam jogos de linguagem – até porque “definir” algo

iria de encontro à forma como desenvolve seu pensamento – apenas os exemplificou. E é

assim que Wittgenstein o faz:

“Ordenar, e agir segundo as ordens – Descrever um objeto pela aparência ou pelas suas medidas – Produzir um objeto de acordo com uma descrição – Relatar um acontecimento – Fazer suposições sobre o acontecimento – Levantar uma hipótese e examiná-la – Apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas e diagramas – Inventar uma história; e ler – Representar teatro – Cantar cantiga de roda – Adivinhar enigmas – Fazer uma anedota; contar – Resolver uma tarefa de cálculo aplicado – Traduzir de uma língua para outra – Pedir, agradecer, praguejar, cumprimentar, rezar” (IF §23).

Sua proposta, portanto, é de que existam vários e diferentes jogos de linguagem

(e.g.: o jogo do cientista, o jogo do boleiro, o jogo dos executivos de marketing etc.), em que

cada um deles seria parte de uma atividade, de uma forma de vida (IF §23). Mas Wittgenstein

não se restringe à analogia do jogo, pois que esta talvez não seja o bastante para desvelar

todas as implicações de sua articulação. Existe, nos jogos de linguagem, a idéia de que nossa

prática lingüística encontra-se numa teia36 de relações, formando uma rede em que diferentes

formas de vida articulam-se (IF §7). Isto se evidencia na apresentação de uma, digamos,

“metáfora urbana”:

“Podemos ver nossa linguagem como uma velha cidade: uma rede de ruelas e praças, casas velhas e novas, e casas como remendos de épocas diferentes; e isto tudo circundado por uma grande quantidade de novos bairros, com ruas retas e regulares e com casas uniformes” (IF §18).

Com os jogos de linguagem, Wittgenstein estabelece a pluralidade das

significações. Isto quer dizer que os significados são relativos a cada jogo de linguagem; não

há, portanto, signos cujos significados sejam universais, estabelecidos aprioristicamente. É só

quando usamos o signo que o significamos, daí ele poder se referir a objetos diferentes

indefinidamente.

36 Termo emprestado de Condé (2004).

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Esta visão representa um golpe ao essencialismo. Wittgenstein aponta que assim

como não existe nada essencial nos variados jogos, também não existe nada essencial na

linguagem. Os jogos – e também os jogos de linguagem, portanto – são diferentes entre si e

entre si carregam apenas semelhanças. A isto, o filósofo chamou “semelhanças de família”.

Wittgenstein não defende que os diversos jogos não tenham nada em comum, mas que tenham

apenas algumas semelhanças entre si, o que não constitui condições necessárias e suficientes

para que exista um fundamento último interligando-os. Ele chega a brincar, com certa ironia,

a este respeito:

“Tenho em mente os jogos de tabuleiro, os jogos de cartas, o jogo de bola, os jogos de combate, etc. O que é comum a todos estes jogos? – Não diga: ‘Tem que haver algo que lhes sejam comum, do contrário não se chamariam ‘jogos’’ – mas olhe se há algo que seja comum a todos. – Porque, quando olhá-los, você não verá algo que seria comum a todos, mas verá semelhanças, parentescos, aliás, uma boa quantidade deles” (IF §66). [Grifos do autor]

Sua nova analogia baseia-se na premissa de que os membros de uma família

guardam traços distintos de vários outros membros ancestrais, podendo estes estarem

próximos ou distantes em sua árvore genealógica, mas também podem trazer novos traços.

Analogamente, ainda que o futebol guarde similaridades com o handebol e este com o

basquete, tais jogos nada teriam de essencial entre si. Sequer os diferentes tipos de futebol

teriam37.

Assim, para Wittgenstein a semelhança de família é tão inegável quanto a

diferença (IF §76). Talvez esteja neste aspecto o mais importante da noção de parentesco

proposta pelo filósofo. Ao invés de buscarmos a equivalência, deveríamos nos ater à

diferença. Isto porque na semelhança nunca existirá total identidade.

Esta visão se apresenta, portanto, como rejeição ao dogma da exatidão e assume a

possibilidade de que a imprecisão, ou mesmo a ambigüidade, sejam geradoras de sentido. Tal

37 Sobre isto, uma observação empírica curiosa: Paulo Calçade, comentarista esportivo da ESPN Brasil, comentou, durante transmissão de jogo entre Portugal e Cazaquistão pelas eliminatórias da Eurocopa 2008, o que para qualquer boleiro é óbvio: que o futebol de campo, o de areia e o de salão são totalmente diferentes; “parecidos, mas diferentes”.

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postura vai de encontro à determinabilidade do sentido, ou seja, à noção de que conceitos

devam ter limites definidos, conforme defendido por Frege e pelo próprio Wittgenstein em

sua primeira fase. “Donde esse determinar daquilo que ainda não está presente? Esta

exigência despótica? (‘A dureza do ‘tem que’ lógico’)” (IF §437) [Grifo do autor] questionar-

se-ia. Wittgenstein entende que nenhuma explicação contribui para a compreensão definitiva

acerca de algo, posto que esta nunca seja a explicação derradeira (IF §87).

3.3 As regras do jogo: limites de um relativismo gramatical

Todos os aspectos que temos discutido até o momento apontam para uma visão

relativista do significado, alguém pode dizer. É verdade, a visão de Wittgenstein sobre o

significado é relativista. Ela se baseia na noção de que a linguagem seja autônoma, ou seja, de

que as regras lingüísticas são arbitrárias (IF §372), não levam consigo a essência de algo, não

sendo passíveis de serem julgadas como corretas ou incorretas a priori (IF §56).

A base disto está em sua concepção de gramática. Como chegamos a antecipar,

Wittgenstein sugere que exista uma gramática profunda, para além daquela normativa que

rege cada língua, e que ele chama de “superficial”. Esta gramática a que ele se refere

encontra-se imbricada nos jogos de linguagem, ou seja, não se trata de uma gramática geral,

mas de uma visão geral de gramática relativa a cada jogo de linguagem em que a mesma

venha a ser utilizada.

Evidentemente Wittgenstein não se preocupa em elaborar um conceito de

gramática, mas sua articulação nos leva a compreendê-la pela noção de uso. A gramática

“correta” de um signo refere-se ao significado a este atribuído em seu uso.

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“(...) No uso de uma palavra, o que se fixa em nós, imediatamente, é o modo de sua aplicação na construção da frase, a partir de seu uso-poder-se-ia dizer-que se pode apreender com o ouvido. (...)” (IF §664). [Grifos do autor]

É neste aspecto que voltamos à questão da regra nos jogos de linguagem. Aliás,

sequer seria possível compreender o que Wittgenstein tem em mente com gramática sem

entender sua noção de regra. Apesar do relativismo a que me referi, longe de sugerir um caos,

o filósofo prevê que se sigam regras para o uso da linguagem, pois, ainda que o significado

seja advindo de cada forma de vida, precisa fazer sentido dentro de cada uma delas. Isto quer

dizer que as regras gramaticais encontram-se justamente delimitadas em e definidas por cada

forma de vida.

Para que esta noção seja mais bem compreendida, precisamos assumir como regra

uma prática social. São os hábitos, costumes, instituições de uma dada comunidade que

determinam a regra a ser seguida pelos seus integrantes. Não se tratam de regras formais, mas

tácitas; regras constituídas histórica e intersubjetivamente.

“Por isso, ‘seguir a regra’ é uma prática. E acreditar seguir a regra não é: seguir a regra. E por isso não se pode seguir a regra ‘privatim’, porque, do contrário, acreditar seguir a regra seria o mesmo que seguir a regra” (IF §202). [Grifo do autor]

Com a noção de regra Wittgenstein assume que, apesar de autônoma e arbitrária, a

linguagem seja coagida por princípios. Não princípios gerais, universais, mas localizados,

contextuais. Isto quer dizer que quando falamos de relativismo em sua filosofia, não estamos

lidando com um relativismo do tipo “vale-tudo”. Trata-se, outrossim, de uma noção cultural

de relativismo. Uma vez que as regras de uso de uma linguagem encontram-se imersas em

uma dada cultura, serão aos seus constrangimentos que ela estará submetida.

Assim, o filósofo aponta para um relativismo delimitado justamente aos contextos

de uso da linguagem, ou seja, de uma dada forma de vida. Nelas, existe uma dependência de

como um falante se utiliza das combinações das palavras – e também de sinais prosódicos, de

atividades proxêmicas etc. –, como explica o que quer dizer e quais sejam as reações de seu

interlocutor.

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Portanto, apesar de não podermos falar da corretude ou da incorretude absoluta da

significação sob uma perspectiva universal, podemos deduzir que esta tenha uma própria

razão dentro de cada jogo de linguagem. Desta forma, por exemplo, um discurso científico

não pode ser considerado mais correto ou superior ao de uma crença religiosa qualquer, pois a

racionalidade de cada um encontra-se interno a cada contexto38.

Esta abordagem aponta para a noção de visão sinóptica39. Para Wittgenstein, uma

das razões por que não dominamos as regras de nossa linguagem seja o fato de faltar à nossa

gramática uma disposição clara. A compreensão carece de uma visão sinóptica que consiste

em se “ver conexões” (IF §122).

Mas, do contrário, também não estamos falando de ordem num sentido restrito. Se

for possível termos alguma expectativa acerca de algum tipo de “organização”, então o

máximo que podemos esperar das regras é que elas sigam a gramática, o que já as colocariam,

ou melhor, as manteriam, numa situação de ambivalência.

“Queremos construir uma ordem do nosso conhecimento do uso da linguagem: uma ordem para uma finalidade determinada; uma das muitas ordens possíveis; não a ordem. Para esta finalidade, iremos sempre de novo realçar diferenciações que as nossas formas habituais de linguagem facilmente deixam passar” (IF §241). [Grifos do autor]

É da forma como Wittgenstein define a gramática e as regras de uso da linguagem

que podemos deduzir sua visão funcionalista. O pressuposto aqui é justamente de que não seja

apenas, ou, mais precisamente, que não seja necessariamente se baseando em regras gerais

que possamos combinar palavras para gerar sentido. Do contrário, estas regras só advêm da

forma como elas são usadas para tal.

38 Comparação desta natureza é feita por Pinto (1999). 39 Uso o termo “visão sinóptica” aqui com base em Glock (1998), que considera a melhor forma de expressar tal conceito de Wittgenstein, em detrimento de diferentes traduções que o denominou de “visão geral” ou “visão global” (ou ainda “visão panorâmica” ou “visão de conjunto”, conforme as edições brasileiras das Investigações Filosóficas de 1979 e 2005, respectivamente).

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3.4 Forma de vida: naturalismo antropológico

Até agora fiz uso do termo “forma de vida”, mas nada defini a este respeito.

Evidentemente, Wittgenstein também não define o que seja uma forma de vida. Mas o que ele

chama de forma de vida refere-se a todas as atividades que estão inseridas nos jogos de

linguagem. No §23 das Investigações Filosóficas, antes de exemplificar vários jogos de

linguagem, ele antecipa: “A expressão ‘jogo de linguagem’ deve salientar que falar uma

língua é parte de uma atividade ou de uma forma de vida” [Grifo do autor].

Talvez a passagem que mais nos ajude a compreender o que seja uma forma de

vida seja a seguinte:

“‘Assim você está dizendo, portanto, que a concordância entre os homens decide o que é certo e o que é errado?’ – Certo e errado é o que os homens dizem; e o que os homens estão concordes na linguagem. Isto não é uma concordância de opiniões, mas da forma de vida” (IF §241) [Grifos do autor]

Esta passagem trás consigo pelo menos dois aspectos fundamentais para o

entendimento do pensamento de Wittgenstein. O primeiro é uma perspectiva antropológica no

pensamento do filósofo. Como já discutimos, a noção de relativismo em Wittgenstein é

cultural. Esta passagem nos ajuda a entender melhor que, em sua concepção, o que um signo

qualquer venha a significar só é possível porque os homens de alguma maneira concordam

com isto quando interagem por meio da linguagem. Podemos deduzir, portanto, que uma

forma de vida seja uma formação sociocultural; uma comunidade lingüística.

Esta noção de forma de vida está alinhada a um tipo de naturalismo adotado por

Wittgenstein. Não se trata de um naturalismo biológico, mas sim de um naturalismo

antropológico, como não poderia deixar de ser – ainda que não possamos deixar de considerar

os aspectos biológicos e fisiológicos do ser humano como partes integrantes desta condição.

Ele sustenta que a atividade lingüística, como qualquer outra atividade humana, faz parte de

sua história natural e que todas elas são, no fim das contas, atividades culturais, interações

sociais.

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“Muitas vezes se diz: os animais não falam porque lhes faltam as atividades espirituais. E isto significa: ‘eles não pensam, por isso não falam’. Mas: eles simplesmente não falam. Ou melhor: eles não empregam a linguagem – se não levarmos em conta as linguagens mais primitivas. – Ordenar, perguntar, contar, conversar, fazem parte de nossa história natural, assim como andar, comer, beber, brincar” (IF §25). [Grifo meu].

Assim, Wittgenstein rompe com a tradicional dicotomia estabelecida entre cultura

e natureza. De seu pensamento, podemos deduzir que a cultura não seja uma “criação”

humana – pelo menos no sentido de ser algo fora de si –, concebida para controlar a natureza

ao seu redor. Ao contrário, o homem é um ser cultural simplesmente porque isto faz parte de

sua natureza.

O segundo aspecto fundamental na concepção de forma de vida – separada aqui

da primeira por uma conveniência didática – é de que a significação está vinculada,

necessariamente, a um contexto. Por o que Wittgenstein tem em mente por contexto, podemos

compreender que se refere ao que acontece nas situações sociais, presentes e passadas, bem

como ao corpo de conhecimento acumulado e acessível em formas de vida específicas e que

são determinantes para a compreensão de um enunciado. Trata-se, portanto, de contexto

cultural.

“‘Após ter dito isso, deixou-a como no dia anterior’ – Entendo esta frase? Entendo-a do mesmo modo que a entenderia se a ouvisse no desenvolver de uma comunicação? Se ela estivesse isolada, eu diria que não sei do que ela trata” (IF §525).

Ora, de fato o que se vê é que o contexto se torna parte inseparável de um jogo de

linguagem. Como imaginar um jogo descontextualizado? Afinal de contas, é possível que o

que possibilite a alguém compreender o que seu interlocutor tem em mente ao dizer alguma

coisa em certo contexto não o faça em um outro; que um mesmo signo sirva para se

comunicar coisas diferentes em diferentes circunstâncias.

Isto quer dizer que o contexto é também aspecto fundamental das regras do jogo

de uma linguagem. O uso que fazemos dos signos de nossa linguagem ancoram-se, dentre

outros, no conhecimento que temos do mundo cultural em que vivemos, das situações sociais

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em que nos envolvemos, das normas que compartilhamos. Podemos deduzir, portanto, que se

trate de um ambiente de significação compartilhado por aqueles pertencentes a uma mesma

forma de vida.

3.5 Meinen: impossibilidade de um “eu” despótico

A abordagem antropológica de Wittgenstein opõe-se à noção tradicional de

intencionalidade, que é definida como um processo mental. O filósofo aponta o hábito, o

costume e a técnica como condições para a ação humana. Assim, ele rejeita a idéia de que se

conceba um mundo em que um espírito já tenha em si presente a forma de se jogar um jogo

(IF §205). Para Wittgenstein a intenção não existe fora de uma situação, de um contexto

cultural.

“Mas eu não intencionava a forma completa da frase, p.ex., já em seu princípio? Portanto, ela já se encontrava em meu espírito antes mesmo de ser proferida. – Se ela se encontra em meu espírito, então, de um modo geral, não estava em outra ordem de palavras. Mas fazemo-nos aqui novamente a idéia enganadora de “intencionar”, isto é, do uso desta palavra. A intenção está entalhada na situação, nos costumes e instituições humanas. Se não houvesse a regra do jogo de xadrez, eu não poderia intencionar jogar uma partida de xadrez. O fato de eu saber falar português torna possível que eu intencione a forma da frase previamente” (IF §337). [Grifos meus]

É neste contexto que Wittgenstein lança a noção de querer dizer algo, ter algo em

mente (meinen40). Mais uma vez trata-se de uma noção deveras ampla. A princípio pode ser

tratado como a própria noção de significado, mas não vejo que seria estranho interpretarmos

tal conceito também como a versão de Wittgenstein para intenção41. Não se trata,

40 O verbo alemão meinen não encontra na língua portuguesa uma tradução precisa. Assim, por exemplo, nas traduções das Investigações Filosóficas para o português, ou em trabalhos de língua portuguesa sobre a segunda filosofia de Wittgenstein, o verbo é traduzido de diferentes maneiras de acordo com o contexto em que esteja inserido seu uso. Optei por citá-lo aqui em relação a dois termos: “querer dizer algo” e “ter algo em mente”, por entender que, conceitualmente, sejam as expressões que melhor o explique. 41 Uma aproximação possível do termo pode vir a partir de seu significado em inglês, que estaria próximo do termo “mean”, que, quando usado no gerúndio (meaning) quer dizer significado, mas quando usado como verbo refere-se justamente a querer dizer algo.

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evidentemente, de uma intenção privada, que se faz por meio de processos mentais. Seu uso

passa pelo que alguém pretende ou quer dizer com um signo em uma determinada situação,

sendo compreendido por outrem. Portanto, para que algo seja “azul”, terá que o ser conforme

a compreensão dos interactantes. Acredito que o complemento do §337 elucide melhor tal

noção:

Mas o que é que isto, então, de que você está falando? Eu dizia que sei em meu íntimo o que você tem em mente. Mas isto queria dizer: eu sei como se pensa em conceber esse objeto, em vê-lo, em designá-lo, por assim dizer, pelo olhar e por gestos. Eu sei de que maneira se olha, neste caso, à sua frente e à volta de si, – e outras coisas mais” (IF §337).

A noção de compreensão em Wittgenstein torna-se aqui fundamental para o

entendimento de querer dizer algo, ter algo em mente (meinen). Para o filósofo, a

compreensão também não se trata de um processo mental – como é comumente definida –,

mas de um compartilhamento das regras de uso da linguagem num dado jogo.

“(...) Não é possível um único homem ter seguido uma regra uma única vez. Não é possível uma única comunicação ter sido feita, uma única ordem ter sido dada ou entendida uma única vez, etc. (...) Compreender uma frase significa compreender uma língua. Compreender uma língua significa dominar uma técnica” (IF §199).

Assim, podemos assumir que a compreensão é tida na filosofia de Wittgenstein

como uma competência, pois passa pelo domínio de técnicas de utilização dos signos em

diferentes atividades discursivas; é, pois, seguir a regra de cada jogo de linguagem em que se

esteja inserido. Isto quer dizer que, quando da interação entre dois falantes de uma mesma

forma de vida, um deverá compreender o que o outro tem em mente pelo fato de

compartilharem das regras do jogo em que estão envolvidos.

Desta forma, com querer dizer algo, ter algo em mente (meinen), Wittgenstein

apresenta um rechaço contra o argumento da linguagem privada, que pressupõe o acesso

privilegiado de cada pessoa à sua mente:

“O que acontece então com a linguagem que descreve minhas vivências interiores e que só eu mesmo posso entender? Como designo minhas sensações com palavras? – Como de costume? As palavras de minhas sensações se acham ligadas, portanto, às expressões naturais de minhas sensações? – Neste caso, minha linguagem não é ‘privada’. Uma outra pessoa seria capaz de compreendê-la como eu. – E se eu não

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tiver expressões naturais da sensação, mas somente a sensação? Eu associo então, simplesmente, nomes às sensações e emprego estes nomes numa descrição. –” (IF §256). [Grifos do autor]

Em sua filosofia, o pressuposto da relação sujeito-objeto, sustentado por toda a

filosofia moderna, dá espaço à relação intersubjetiva. E esta relação intersubjetiva ocorre

justamente nas interações humanas. Neste sentido, apesar de não estar da forma mais explícita

em sua filosofia, a comunicação humana (interpessoal) se torna a atividade lingüística por

excelência.

Ao denunciar a impossibilidade de uma linguagem privada, Wittgenstein pretende

também atacar o solipsismo. E ele faz isto fundamentalmente através da análise do pronome

pessoal “eu”. Senão, vejamos a próxima passagem, que demonstra como o filósofo “brinca”

com este “eu”:

“‘Mas, se eu me represento algo, ou se realmente visse objetos, então tenho de fato algo que o meu vizinho não tem’. – Eu o entendo. Você quer olhar ao derredor e dizer: ‘Apenas eu tenho ISSO’. – Para que estas palavras? Elas não servem para nada. – Sim, não se pode dizer também ‘Não se está falando aqui de ‘ver’ – e, por isso, nem de um ‘ter’ – e não se está falando de um sujeito, portanto, nem de um eu?’ Não poderia eu perguntar: Isto, de que você fala e diz, que só você tem – até que ponto você tem? Você o possui? Você nem ao menos o vê. Sim, você não teria que dizer que ninguém o tem? Está claro também: se você exclui, logicamente, que outra pessoa tem algo, então perde também seu sentido dizer que você o tem” (IF §398). [Grifos do autor]

Como podemos observar, Wittgenstein apresenta o solipsista como um déspota.

Mas para ele este “eu” despótico não existe. Na verdade, o tratamento que ele dá ao “eu”,

como antecipamos, é apenas o de um pronome pessoal. Assim, ele conclui que este “eu”

como uma entidade imaterial não existe. Além disto, o “eu” não é capaz de identificar

ninguém. “‘Eu’ não denomina pessoa alguma, ‘aqui’, lugar nenhum, ‘isso’ não é nome

algum” (§410).

Ainda que Wittgenstein não tenha se preocupado em analisar o “eu” a não ser

como meio de desmistificar o solipsista, deduzo que podemos abstrair de seu pensamento que

o “eu” não exista a não ser como uma construção lingüística. E se, afinal, a linguagem é

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coletiva, podemos concluir que este “eu” só existe na alteridade e é por isso que não possa,

portanto, sozinho, se representar o mundo42.

3.6 Para além do dualismo interno/externo: superação do dilema mente/corpo

Ao esvaziar o argumento da linguagem privada, Wittgenstein rejeita a visão do

mentalismo na filosofia moderna. Nesta corrente, os pensamentos são compreendidos como

entidades ou ocorrências psíquicas que povoam a mente das pessoas. O significado de uma

palavra é uma idéia, uma imagem na mente do falante. Assim, a comunicação é um processo

pelo qual os falantes produzem idéias semelhantes às que associam a uma palavra, ou uma

questão de tradução, em que traduzem em sons sua linguagem, para que seus ouvintes

retraduzam em sua própria linguagem. Presume-se, desta forma, a produção de uma idéia

semelhante no ouvinte. Contudo, se a linguagem de cada um é somente sua, nunca se pode

saber se ouve êxito; aquilo que quero dizer com “azul” pode ser o que outrem quer dizer com

“verde”.

Tal postura trás consigo um problema fundamental: a relação entre pensamento e

linguagem. Como já discutimos, desde a Antiguidade estas foram instâncias assumidas como

separadas, em que a esta última era atribuída um papel de instrumento de expressão do

primeiro. Para Wittgenstein, por outro lado, o pensar não existe independentemente da

linguagem, num lugar dentro da cabeça de cada um. Os pensamentos existem apenas dentro

dos limites da linguagem e são por ela coagidos.

42 É sobre este “eu” que me refiro quando de minhas reflexões ao propor uma “elaboração teórica” acerca do valor de uso das marcas no Capítulo 2.

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“Às vezes chamamos de ‘pensar’ o ato de acompanhar a frase com um processo psíquico, mas o ‘pensamento’ não é o nome que damos àquele acompanhamento. – Diga uma frase e pense-a; diga-a com compreensão! – E agora não a diga, faça somente aquilo com que você a acompanhou ao dizê-la com compreensão!” (§332).

Com isto, Wittgenstein não pretende rejeitar a existência da mente, mas a

concepção de que se trate de um locus privado. Para o filósofo, a dimensão do mental é

exposta na medida em que enunciados psicológicos são exteriorizações. Não podemos deduzir

que uma pessoa não faça idéia do que seja uma dor por nunca tê-la sentido (IF §315). Não são

fenômenos que são analisados, mas conceitos e, portanto, como empregamos um signo (IF

§383). Sendo assim, sabemos da dor porque conhecemos seu conceito. E isso ocorre na

linguagem (IF §384).

Com estas questões, Wittgenstein trás à tona o problema entre as dimensões

interno/externo, ou seja, entre o que seja mental e o que seja comportamental. A filosofia

moderna, a partir de Descartes, supõe a prioridade do interno sobre o externo, ou, em outras

palavras, de que o mental seja um fenômeno primitivo, que tenha no comportamento algo

derivado.

Wittgenstein, por apontar a linguagem como originária das relações interpessoais,

inverte a perspectiva cartesiana. Graças a isto, o filósofo é acusado por muitos de ser um

behaviorista, o que é por ele rejeitado. Ele já tinha idéia de que isto poderia acontecer, por

isso antecipou-se:

“‘Você não é um behaviorista disfarçado? Não está dizendo, no fundo, que tudo é ficção, exceto o comportamento humano?’ – Se falo de uma ficção, então é de uma ficção gramatical que falo” (§307). [Grifo do autor]

De fato, apontar ou não Wittgenstein como um behaviorista não é algo tão fácil,

porque não é algo tão óbvio. Por um lado, o filósofo não cai na tentação reducionista de optar

pela supremacia ontológica da dimensão externa sobre a interna. Da mesma forma que ele não

aceita a mente cartesiana, também não aceita a redução do ser humano a um corpo. Por outro

lado, Wittgenstein realmente busca a compreensão de como o significado se dá por meio da

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investigação do uso das palavras de forma contextualizada, o que envolve a observação do

comportamento das pessoas numa dada forma de vida.

Com isto, Wittgenstein aceita a esfera mental, mas sugere que seja por meio do

comportamento observável que ela seja acessível. Assim, ele não apenas não assume qualquer

dualismo mente/corpo, como elimina este dilema.

Ainda assim, boa parte dos seus interpretadores o enquadra num tipo de

behaviorismo: o metodológico. Isto ocorre devido ao seu método basear-se na observação do

comportamento das pessoas. De qualquer forma, ainda que aceitemos esta visão, vale se

destacar que este behaviorismo não se compromete com as teses metafísicas do behaviorismo

tradicional.

3.7 Um método por exemplos: terapia ao feitiço da linguagem

Como antecipei, Wittgenstein vê que os problemas filosóficos são fruto de uma

má interpretação da linguagem pelo filósofo e não problemas em si – o que pode se estender

para o pesquisador, para o executivo, para o homem comum etc. –; um caso de

enfeitiçamento. Por isso ele desenvolve sua filosofia como uma “luta” contra este feitiço (IF

§109). Com isto, a marca de sua filosofia é a terapêutica, pois ele acredita estar lidando com

uma doença (IF §593). Assim, sua preocupação é mostrar como podemos compreender a

linguagem como meio de nos desencantarmos do feitiço em que nos encontramos ou a que

podemos ser levados.

“(...) Daí pode parecer que consideramos ser nossa tarefa reformar a linguagem. Uma tal reforma para determinadas finalidades práticas, para o melhoramento de nossa terminologia para evitar mal-entendidos no uso prático (...) As confusões que nos dão

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o que fazer originam-se, por assim dizer, quando a linguagem está em ponto morto, não quando ela trabalha” (IF §132).

É daí que vem toda sua concepção de gramática. Ele acredita que apenas a

compreensão das regras dos jogos de linguagem leve as pessoas a não se enfeitiçarem por

esta. No entanto, ele entende que os problemas não surgem por não conhecermos a

linguagem, mas por esquecermos seu emprego.

“(...) para nossa investigação é muito mais essencial que não queiramos aprender nada novo com ela. Queremos compreender algo que já está aberto diante de nossos olhos. Porque, em certo sentido, é isto que parecemos não compreender” (IF §89). [Grifos do autor]

Com isto, Wittgenstein está sugerindo que devemos deixar de lado toda busca de

explicação e nos atermos apenas à descrição (IF §109). Para o filósofo, longe de estarem

ocultos o que chamamos de problemas, eles estão todos à nossa frente, basta que saibamos

observar.

A troca da explicação pela descrição é a marca de um novo método, que

Wittgenstein lança em sua segunda filosofia. Com isto, o filósofo se põe contra qualquer

elaboração hipotética; contra qualquer teoria que se proponha à explicação ou predição de um

fenômeno.

“A gramática não diz como a linguagem tem que ser construída para cumprir com sua finalidade, para agir desta ou daquela maneira sobre as pessoas. Ela descreve o emprego dos signos, mas de maneira alguma os elucida” (IF §496).

Como seu objetivo não é o de oferecer explicações, ele dispensa qualquer

abordagem sistêmica que pretenda propiciar possíveis conclusões últimas. Para ele, não é

necessário – e mesmo sequer possível – explicar um jogo de linguagem. Basta que se constate

o jogo, que se o compreenda.

Apesar disto, trata-se de um método baseado na evidência empírica. Isto surge

como paradoxo, uma vez que a investigação do a priori deverá ser a posteriori (baseada no

empírico). Entretanto, não por uma questão de empirismo exacerbado, mas porque é isto que

está à vista. Do empírico o que Wittgenstein extrai são exemplos. São em exemplos, na

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análise de exemplos, exemplos tirados da interação das pessoas na vida cotidiana, que seu

método se baseia.

“Mas vai-se mostrar agora um método à mão de exemplos, e pode-se interromper a série desses exemplos. – Problemas são solucionados (dificuldades eliminadas), não um problema” (IF §133). [Grifo do autor]

Um método por exemplos parece ao filósofo ser aquele que propicie a descrição a

que se refere. É por meio da exemplificação que temos a possibilidade de dar a entender como

funcione um dado jogo. Afinal, os jogos têm contornos imprecisos e, portanto, a eles não

cabem explicações gerais, definitivas (IF §71), mas diferentes descrições, que dêem conta de

suas sutilezas e variabilidades.

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4 Princípios para nossas investigações marcárias

Chego agora ao ponto de refletir mais articuladamente sobre as questões que

venho divagando. Evidentemente, não desenvolvo tal reflexão como hipótese a ser testada. No

entanto, depois do que temos discutido, como não findar numa “elaboração teórica” acerca do

valor das marcas para as pessoas em nossas sociedades?

Esta elaboração trata-se, outrossim, de uma reflexão prévia para as nossas

investigações marcárias, em que buscamos exemplos na vida cotidiana para compreender se

as marcas realmente têm valor para as pessoas, o que é feito buscando-se compreender como

se dá a significação das mesmas nas interações sociais e, conseqüentemente, a que

significados delas este processo leva.

Para tal, como já ficou evidente, tomo como base de inspiração o pensamento de

Wittgenstein. Faço isto não somente em relação ao esboço de elaboração teórica a que me

referi, bem como com base em sua perspectiva epistemológica. Além disto, me inspiro em seu

método para desenvolver aquele utilizado nas investigações marcárias.

É possível que o próprio Wittgenstein sequer me autorizasse a tomar propriedade

de sua filosofia para refletir sobre a sociedade de consumo como o faço, uma vez que para ele

esta seria uma marca da doença espiritual de nossos tempos. Diferentemente de alienistas e

“pós-modernistas” de uma forma geral, não lanço uma visão apocalíptica sobre nossa

sociedade; não sou pessimista. No entanto, não tenho a ingenuidade de aderir a um otimismo

que não veja as imperfeições do nosso mundo – e, acredito, isto já deve ter ficado evidente até

aqui. Assim, insisto em tomar por empréstimo sua filosofia de forma a resgatar o vivido, o

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humano, no sistema. Este aspecto, talvez, seja o ponto em que me distancie mais de

Wittgenstein. Mas o faço de forma consciente, o que inclui minha assunção dos riscos de tal

postura. De fato, chego a me apropriar também de sua terapêutica – aqui numa perspcetiva

social – por entender que talvez esta seja a única maneira desta da possibilidade que aqui

apresento se tornar concreta.

4.1 No caminho para uma elaboração teórica sobre o valor de uso das marcas enquanto signos

Minha reflexão até o momento nos leva a uma visão antagônica daquela

dominante na atual literatura de marketing sobre marcas, a qual discutimos no primeiro

capítulo. Ali, fica evidente que se trata de uma perspectiva mentalista. É nítida a assunção de

que haja uma imagem das marcas na “mente” das organizações e assessorias de comunicação

que lhe apóiam (“identidade de marca”) que se supõe ser passível de reprodução na “mente”

dos consumidores (“imagem de marca”).

Evidentemente, este é um pressuposto semântico sobre o significado das marcas.

Afinal de contas, para que uma mesma imagem trafegue entre diferentes mentes e continue

sendo a mesma, ela precisa de signos que a definam por um significado único e apriorístico,

desde sempre. Além disto, ao se assumir este “significado” como estando em todas as

características da marca e sendo maior que eles, chegamos ao ponto de reconhecer esta

também como uma abordagem metafísica, em que as partes representam o todo e o todo é

maior que a soma das partes.

Por trás de tudo isto está justamente a noção de comunicação sistêmica – e, com

ela, a redução do homem a máquina, situação que mantém a perspectiva de relação sujeito-

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objeto da filosofia da consciência, em que, evidentemente, é o homem o objeto: uma máquina

cognitiva.

Mas uma maneira diferente de se assumir a comunicação pode ser simplesmente

de que se trata de uma forma de interação entre pessoas (Koch, 2003). Aqui, estamos falando

não de uma comunicação sistêmica, mas de uma comunicação humana, dialógica, em que as

pessoas geram sentido em suas interações.

É, portanto, assumindo também uma noção de comunicação que desenvolvo

minha reflexão, mas uma visão demasiada diferente. Se o significado de um signo só é

definido em seu uso e as regras deste uso são convencionadas socialmente, então é na

comunicação humana que está a geração de significado.

É justamente neste aspecto que proponho que exista valor nas marcas para as

pessoas. E é neste mesmo aspecto que proponho que este seja um valor de uso, conforme

pude já argumentar. Mas minha proposta de que, através na noção de consumo simbólico,

possamos resgatar o valor de uso do consumo não pode ser visto como algo trivial. De fato,

sob uma perspectiva humanista, é o valor de uso que deve ser considerado importante, não o

de troca. Neste sentido, não é difícil realizar que foi justamente uma soberania da dimensão

sistêmica do nosso mundo que impôs a supremacia do valor de troca sobre o valor de uso,

num movimento que eu ousaria apontar como “antinatural”.

Por outro lado, se assumimos a marca como signo, e que elas venham a ganhar

significado somente na medida em que sejam subordinadas ao seu uso pelos homens, então

chegamos a refletir sobre como as marcas passam a ter valor para as pessoas: na própria

significação por que são submetidas durante as interações humanas.

Ao assumir que nosso homo symbolicus assuma diferentes “eus” de acordo com as

relações em que estejam envolvidos, e se o “eu”, na abordagem que assumo, só existe na

alteridade e como uma construção lingüística – e, portanto, é nas interações que o “eu” é

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construído – então este “eu” – e agora já assumindo uma perspectiva goffmaniana – fabrica

impressões em suas interações, mas estas são coagidas socialmente, justamente por terem

como função impressionar, no que se apresenta o outro. Entendo, assim, a marca como signo

de uso nesta representação do “eu”, que é, outrossim, social. Em outras palavras, que a marca

têm valor para as pessoas porque servem como recurso simbólico da definição que fazem de

si e dos outros nas interações sociais.

Isto tudo pode levar à conclusão de que minhas idéias pressuponham que, na

comunicação sistêmica, as mensagens não tenham significado. É evidente que não penso

desta forma, senão sequer poderia conceber o homem-receptáculo aprisionado. O que estou

propondo é que, assim como só podemos chegar à semântica por meio da pragmática, os

signos transmitidos pela comunicação sistêmica só ganham significado quando são usados

pelas pessoas em suas interações.

Mas isso poderia sugerir que meu pensamento se trata de uma tautologia sobre a

semântica das marcas, já que se o uso é posterior à transmissão, então a transmissão vem

antes do uso. Mas esta é uma forma também sistêmica de ver o problema. O que quero dizer é

que, na comunicação humana, as mensagens do sistema, bem como qualquer outra coisa

disponível no mundo, sirvam como base discursiva.

Isto não quer dizer que tais mensagens não sejam significadas no uso como o

sistema que as concebeu gostaria que fossem. Mas, assim sendo, isto será um golpe de sorte,

alguém poderia sugerir. Pode ser que sim. Mas pode ser que não. Talvez essas mensagens

contenham signos já “usados”. Mas é evidente que, ao serem reutilizados, seriam

ressignificados.

Alguém poderia deduzir disto que, ao se utilizarem de signos “usados” ao invés de

criá-los, as organizações estariam lançando estímulos e esperando respostas da mesma forma,

então o que acabo de supor seria apenas uma maneira diferente de se manipular as pessoas.

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Mas isso não é verdade. Não é algo comum que o sistema se volte ao humano. Se é possível

que as organizações se utilizem de signos já “usados” ou ainda que deixem seus signos mais

abertos para o uso, então o que temos é uma abertura da dimensão sistêmica do nosso mundo

à dimensão humana. A grande questão é se o uso dos signos será enfeitiçado ou não. Se for,

então a comunicação humana estará trabalhando em prol do sistema. Mas, ao contrário, se os

signos forem realmente manipulados de forma ativa pelas pessoas, então teremos um resgate

para o vivido, ainda que em relação de mútua dependência com o sistema.

Quanto às organizações, elas não ocupam o foco de minha presente reflexão. No

entanto, o que quero sugerir é que a visão atual que assumem para as marcas não é boa para

ninguém. O problema é que a marca pode ser azul para a organização e seus assessores e

verde para os consumidores – ou até verde para uns, púrpuro para outros e assim por diante –

e, mesmo no caso de verificações, na descrição do verde (ou do púrpuro ou de qualquer outra

cor que seja) pelos consumidores, os primeiros poderão “intencionar” nisto azul ou mesmo

que aquele verde é um azul contaminado por um pouco de amarelo que deve ser removido.

4.2 Sobre o método nas investigações marcárias

Assim como o método fundado por Wittgenstein, é também com base em

exemplos extraídos da vida cotidiana que nossas investigações marcárias acontecem. Se

minha preocupação é entender como as marcas adquirem significado nas interações humanas,

então nada mais adequado do que observar, vivenciar, as interações em que as marcas sejam o

cerne da situação, para daí tirar os exemplos que possam elucidar tal processo.

Evidentemente, minha disposição não é a de replicar o método wittgensteiniano –

ainda que isto fosse possível, o que não me parece o caso, pois, como ele mesmo afirma, não

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existe um método em filosofia, mas diferentes deles, diferentes terapias (IF §133) –, mas o de

nele me inspirar – até porque, pela natureza das nossas investigações, não estamos tratando de

um método filosófico, mas de um (num sentido amplo) científico.

Se considerarmos a perspectiva antropológica da filosofia de Wittgenstein não é

difícil imaginar que nossas observações seguem uma linha etnográfica. Evidentemente, não se

trata aqui de uma etnografia acerca de uma ou mais culturas, mas das interações humanas na

vida cotidiana. Interações das quais o observador compartilhe de suas regras. Para isso, que

faça parte de suas formas de vida43. Esta prerrogativa, como medida única da possibilidade de

sua compreensão.

Portanto, ao falarmos da análise de tais interações, é na compreensão que nos

devemos focar. Trata-se, evidentemente, de um tipo lingüístico de análise, mas um que

considera uma perspectiva ampla de uso dos signos de nossa linguagem, baseada,

fundamentalmente, na competência do observador de, ao compartilhar das regras daquelas

gramáticas, compreender de forma crítica (não enfeitiçada) o que os falantes têm em mente ao

falarem das marcas e, assim, poder descrever seus processos de significação e seus

significados.

Contudo, no momento em que opto por me guiar inspirado pelo método filosófico

de Wittgenstein, fica-me claro que não tenho em mãos, evidentemente, um método científico.

Assim, parece-me evidente, a princípio, a adoção de um método observacional próprio bem

como de análise, no que uma abordagem mista da etnografia da comunicação com a

sociolingüística interacional demonstrou-se a melhor opção44. Contudo, a experiência obtida

em minhas primeiras observações, bem como nas primeiras análises realizadas – que

43 Diferentemente de muitos interpretadores de Wittgenstein, que assumem a noção de forma de vida como relativa a uma sociedade como um todo, o faço em relação a como diferenças fundamentais do uso da linguagem, em nossas sociedades, ocorrem de acordo com os diferentes campos sociais, assumindo, assim, uma visão mais alinhada à noção de subculturas. 44 Uma descrição de tais métodos encontra-se na próxima seção.

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ocorreram concomitantemente –, me fez sentir uma desconfortável sensação de que tal opção

não me levaria a todos os aspectos possíveis de serem encontrados em meus dados.

Ao refletir sobre isto e reler aqueles mesmos textos que me levaram à primeira

conclusão parece-me agora evidente a razão do meu incômodo. Tais métodos foram

desenvolvidos para estudar aspectos diferentes daqueles com os quais estou lidando, ainda

que semelhantes entre si. Que conseqüências isto poderia gerar? Parece-me evidente que

adotar um método ou uma combinação de métodos científicos específicos me levaria a

adaptar o método wittgensteiniano para além do que já estava eu fazendo por tê-lo apenas

inspiradoramente – já que, evidentemente, minhas preocupações não são exatamente as

mesmas daquele filósofo.

O mais coerente, portanto, parece-me ser operar inversamente. Para manter aquele

método filosófico o menos violado quanto possível, não seria mais adequado, então, que eu

simplesmente fizesse uso dos recursos observacionais e analíticos de métodos científicos que

se mostrem coerentes e consistentes com o que me parece que Wittgenstein tivesse em mente

com seu próprio método e às peculiaridades do meu caminho nesta inspiração?45

Compreendi que precisaria desenvolver, senão um método, um caminho

metodológico específico para as investigações marcárias. Ele surge inicialmente de forma

indutiva, na medida em que eu evoluo com minhas interpretações, até chegar num ponto mais

sistemático, quando busco as possibilidades que me parecem aplicáveis a certos aspectos

observacionais e, sobretudo, analíticos.

Quanto às minhas observações, entendi que precisaria considerar algumas

peculiaridades que me orientassem no campo: 1) precisariam ser dados coletados diretamente

em situações de interação social, evidentemente; 2) a conversa em pauta precisaria circundar

certas (quaisquer que fossem) marcas; mas 3) os dados precisariam ser coletados em situações

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em que os interactantes estivessem agindo espontaneamente; para isto, 4) precisaríamos de

uma situação natural ou, pelo menos, que se criasse uma situação em que os interactantes não

percebessem a finalidade por trás da interação; neste último caso 5) o pesquisador precisaria

estar fazendo parte da conversa, para que ele fosse aquele responsável por manter as marcas

“em pauta”.

Mas o aspecto mais importante seria a decisão sobre que interações considerar.

Para que eu possa inferir qualquer tipo de interpretação sobre as interações é condição sine

qua non que eu compartilhe das regras de uso da linguagem do grupo, ou seja, que se refiram

a formas de vida das quais eu, de alguma forma, faço parte. Assim, minhas observações

ocorreram em interações com pessoas participantes da minha vida cotidiana: familiares,

amigos, colegas da academia, vizinhos, alunos, colegas de trabalho e outros envolvidos em

relações profissionais, profissionais de saúde, taxistas, estranhos na rua, desconhecidos no

supermercado, no cabeleireiro ou na fila do teatro, ou, ainda, entrevistas e diálogos

espontâneos na tv e no rádio.

Esta opção fez com que minha observação fosse ainda mais do que participante,

chegando, muitas vezes a ser participativa, uma vez que me deparei como sujeito da ação

significativa por várias vezes. Em termos mais específicos, eu poderia classificar minhas

observações de três formas: 1) situações em que eu observei as interações de longe, ou seja,

em que os interactantes dialogavam e eu fingia não prestar atenção, mas me colocava numa

posição de acesso ao que ocorria; 2) situações em que eu atuei como um ator falso – estas, as

mais típicas –, em que eu estimulava a continuidade de um diálogo que houvesse surgido

acerca de uma marca ou mesmo lançando o nome de uma marca no diálogo quando a situação

se mostrasse propícia; e 3) situações em que, a princípio, eu não estava envolvido como

45 Vale salientar que muitos dos aspectos da etnografia da comunicação e da sociolingüística interacional mantiveram-se no meu caminho metodológico, contudo, de maneira livre, apenas referencial em relação a aspectos seus constituintes.

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pesquisador e, só depois de alguns instantes ou mesmo na decupação das gravações, me

apercebia que uma marca estava em jogo – estas, as situações menos comuns.

A documentação das observações foi feita, na medida do possível, por meio de

gravações. Contudo, isto só ocorreu em situações em que eu pude antecipar a possibilidade de

ocorrências de interações – festas em família, algumas aulas de debate, por exemplo. Desta

forma, a maioria delas foi documentada textualmente em um bloco de notas. Desde o início

do meu trabalho de campo, bloco e caneta foram artefatos de mim inseparáveis. Nas

interações em que situações marcárias surgiam, eu dava uma desculpa e me ausentava num

local reservado para tomar nota do ocorrido. Nos dois casos, a transcrição, feita pelo próprio

pesquisador, ocorreu num prazo de poucas horas depois da interação. Evidentemente, não se

tratou de uma transcrição extensa – mesmo nos casos de decupação das gravações –, mas de

uma que fosse representativa dos aspectos a serem considerados46.

Como critério fundamental de validação está o próprio princípio de exemplos do

método wittgensteiniano. Todo o processo analítico e os resultados a que chegamos são, como

não poderia deixar de ser, exemplificados pelas situações interacionais. A forma como estes

exemplos são descritos devem trazer ao leitor a forma como o investigador gerou sentido de

suas observações em relação a cada um dos aspectos apresentados47. Além deste, outros

critérios de validade utilizados foram uma auditoria na transcrição dos dados e na

interpretação dos mesmos por um outro pesquisador (CRESWELL, 2002; MERRIAN, 1998)48.

Ao todo, o levantamento etnográfico durou um ano e nos propiciou 139

observações. Indícios de saturação dos dados já surgiam a partir da centésima observação,

pouco mais de seis meses após o início de trabalho de campo.

46 Neste sentido, Ochs (1979) sugere que a transcrição é já uma forma de teorizar acerca da observação, uma vez que apenas o fundamental para o problema em questão é efetivamente considerado. 47 Uma maior explicação desta demonstração faz-se na introdução à apresentação das próprias investigações marcárias, na segunda parte desta tese. 48 Neste sentido, o orientador de doutorado deste investigador assumiu este papel.

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Em relação ao procedimento analítico, desde o início eu tenho claramente a noção

de que nossa análise deva levar aos significados das marcas e que, para tal, precisamos

compreender o processo de significação. O contato inicial com as interações observadas e a

compreensão da necessidade de trilhar um caminho metodológico levou-me ao

desenvolvimento de um protocolo de análise. Vale salientar que, antes de se confundir com

um molde, tal protocolo abriu uma variedade de perspectivas sobre minhas interpretações do

corpus, levando-me a diferentes níveis de análise que propiciaram uma visão holista da

significação das marcas.

Para tal procedimento, pareceu-me adequado diferenciar o uso da linguagem pela

sua natureza. Na gramática profunda, as variações de significação que os signos de uma

língua podem ter em diferentes formas de vida, ou mesmo em diferentes contextos ou

situações ou momentos da interação numa mesma forma de vida, estão intrinsecamente

vinculados a questões “fora” da língua, como o tom de nossa voz, nossos gestos ou expressões

faciais, dentre tantos outros. É assim que as regras da língua (gramática superficial)

subsumem-se à gramática profunda e os signos de nossa linguagem são significados.

Assim, temos que os aspectos lingüísticos – aqueles identificáveis na própria

língua – sejam necessários, mas não bastantes para compreendermos a significação. Aqueles

que chamaremos de paralingüísticos e extralingüísticos são fundamentais. Sobre estes,

queremos nos referir, respectivamente, aos aspectos fonéticos e corporais da linguagem,

muitas vezes condensados sob o termo de “não-verbais”. Em paralelo a estes – no sentido de

ser uma dimensão complementar e não alternativa às anteriores – temos os aspectos

interacionais, relativos a como os interactantes se representam e tomam a si e aos outros numa

interação.

Com isto em mente, cheguei a esses três níveis de análise. A forma como os

assumo é, como já antecipei, sempre numa perspectiva pragmática. É bem verdade, no

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entanto, que isto trás consigo algumas implicações que, acredito, mereçam ser discutidas com

certo cuidado. Se, por um lado, temos os aspectos interacionais e extralingüísticos como

sendo aqueles mais obviamente identificáveis com a pragmática da linguagem, pois que, em

circunstância alguma eles circunscrevem-se na língua e, portanto, não são regidos por sua

gramática, o mesmo não ocorre com os aspectos paralingüísticos.

Não me parece que seja difícil, com um pouco mais de esforço, compreender os

aspectos fonéticos – apesar de participarem da língua – em sua pragmática, posto não ser

difícil se evidenciar como suas variações ocorram no uso da linguagem.

Assim, não há que estranharmos a ausência dos aspectos propriamente

lingüísticos. De fato, eles estão sempre presentes. Numa perspectiva pragmática, a questão é

como compreendê-los para além da superfície. Não é o conteúdo semântico que deixa de ser

de tal domínio, mas como assumimos que um signo chegue a um significado. Seguindo esta

linha, então, os níveis aqui definidos dão a profundidade necessária aos signos lingüísticos de

uma dada língua, por ter um papel diferente: o de apontar como tais aspectos fazem sentido

em cada jogo de linguagem.

Como estamos tratando aqui de uma análise funcional, evidentemente há que se

identificar a função de tais aspectos no discurso (sugerir, desvelar, demonstrar etc.). Assim,

um segundo nível de análise se refere justamente à função que os aspectos citados assumem

na significação das marcas. O curioso é que tal função, apesar de se referir ao significado, não

aponta, em nossas investigações, para os significados em si, mas para o que optei por chamar

de “atividades relativas às marcas” (e.g.: juízo, sentimento, opinião etc.). Estas atividades se

apresentam como um novo nível de análise e, de fato, as funções, juntamente com as

atividades formam um corpo que não se alinha às dimensões originalmente concebidas, pois

que a primeira já não se trata mais de um processo de significação propriamente dito,

enquanto que a segunda não se refere ainda a significados. Assim, este se configura como um

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bloco intermediário, entre a significação e o significado, mas indispensável para a

compreensão da primeira, a que chamamos de significância.

4.3 Notas complementares à compreensão do método nas investigações marcárias

No desenvolvimento do meu caminho metodológico, a escolha por uma

combinação entre a etnografia da comunicação e a sociolingüística interacional manteve-se

como orientação tanto de coleta quanto de análise dos dados. As considerações sobre um

protocolo próprio – apresentado à seguir –, mais alinhado aos princípios wittgensteinianos,

devem ser considerados como aspectos complementares e, a partir de então, indissociáveis, do

uso de tais perspectivas metodológicas.

A decisão pelo método observacional não foi o mais difícil. Como as

investigações se tratariam de uma etnografia das interações sociais, por assim dizer, a

etnografia da comunicação se demonstrou como um bom norte.

Tal método tem base tanto lingüística quanto antropológica, assumindo a

comunicação como um meio de se fazer sentido do mundo, sendo ela parte integrante da

cultura. Nela, a linguagem é vista como estando simultaneamente constrangida pela cultura

bem como a revelando e sustentando.

Assim como a etnografia tradicional, a etnografia da comunicação é feita pela

observação participante. A diferença é de que, enquanto o objetivo do antropólogo é aprender

sobre uma cultura nativa a partir de seus membros e de como estes fazem sentido de suas

experiências, o etnógrafo da comunicação tem por objetivo fundamental compreender a

competência comunicativa desses membros – nos termos de Wittgenstein, como seguem as

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regras da gramática profunda – e, assim, como as interações fazem sentido no nível micro da

cultura.

A criação e o desenvolvimento da etnografia da comunicação é creditada a Dell

Hymes. Foi ele quem definiu suas unidades sociais de análise, a partir da noção de

“comunidade de fala”, que podemos abstrair, do ponto de vista wittgensteiniano, que se refira

àquelas pessoas que compartilham as regras de uso da linguagem dentro de uma mesma forma

de vida.

Para Hymes (1986) a fala é perspectiva fundamental da interação social, assumida

em uma perspectiva verbal. Assim, dentro das comunidades de fala, podem ocorrer diferentes

situações, eventos e atos de fala. Como no exemplo do autor, temos uma festa como uma

situação de fala, certa conversa durante a festa como um evento de fala e, finalmente, uma

piada contada dentro da conversa como um ato de fala. Tais níveis são mais ou menos

importantes em nossas observações na medida em que identifiquemos o ponto da interação

em que uma marca está envolvida.

Além destes, o autor aponta outros aspectos da fala que também devem ser

considerados pelo observador: seu estilo, relativo às escolhas lingüísticas feitas, como

questões sintáticas e fonológicas, por exemplo; sua maneira, relativo às restrições que uma

comunidade impõe ao comportamento lingüístico; e seus componentes, relativo ao que faz

parte de tais atos, como os interactantes e o assunto sobre o qual estão tratando, por exemplo.

Ambas as abordagens são tipos funcionais de análise do discurso e, longe de

estarem totalmente dissociadas, mantém aspectos comuns entre si – o que faz com que não

haja problemas em serem utilizadas conjuntamente, o que não é pouco comum. A diferença

fundamental entre as duas está no fato de a etnografia da comunicação preocupar-se

fundamentalmente com os aspectos culturais de uma comunidade do ponto de vista da

interação verbal, enquanto a sociolingüística interacional preocupa-se no que está

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acontecendo quando pessoas interagem, ou seja, em como elas definem o contexto

interacional e significam-no – ambos aspectos, como podemos ver, fundamentais para as

nossas investigações.

A sociolingüística interacional tem suas raízes, como o nome sugere, na

lingüística e na sociologia, mas também trás consigo aspectos da antropologia e da psicologia

social. Fundamentalmente, ela enfatiza a importância da linguagem como um processo de

geração de significado situado contextualmente. Seu objetivo é, portanto, focar-se nos

significados criados durante uma interação; em como um “eu” interage com um outro num

contexto interacional; em como a fala assume um aspecto central na criação da realidade

social.

A base da sociolingüística interacional está nos trabalhos de John Gumperz e

Erving Goffman, advindos da antropologia lingüística e da sociologia, respectivamente.

Goffman (2001) propõe que as identidades e os relacionamentos não são pré-existentes,

claramente delineados ou fixos, mas sim complexos, dinâmicos e negociados localmente

através de gestos simbólicos, lingüísticos ou extralingüísticos.

Uma importante contribuição sua é a noção de “eu” como uma construção social e

interativa. Neste aspecto, ele aponta a preservação da face – como em “eu” aparece para o

outro – como uma forma de gerenciar a representação do “eu” (GOFFMAN, 1982).

Para a análise sociolingüística propriamente dita, Goffman desenvolveu outros

dois importantes conceitos: enquadre e footing. Os enquadres (GOFFMAN, 1974) são a

organização e os princípios interacionais pelos quais situações são definidas e sustentadas

como experiências. Goffman adotou o termo enquadre (frame) de Bateson (2002), para

descrever o sistema em que interactantes ajustam possíveis significados de um dado ato

lingüístico ou extralingüístico. Esses enquadres são conhecimentos compartilhados por

membros de uma mesma cultura e são invocados pelo reconhecimento não deliberado das

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diferenças entre tipos de comportamento e da consideração dos fatores contextuais – no que

podemos ver aspectos do desenvolvimento de Hymes.

Footing (Goffman, 1981), por sua vez, refere-se ao alinhamento que tomamos

numa interação, ou seja, o porte, o posicionamento, a postura, a projeção pessoal de um

participante numa interação de fala. Uma mudança de footing refere-se a uma mudança no

alinhamento que alguém assume para si e para os outros, o que impacta também numa

mudança de enquadre em uma interação.

Gumperz (2002), por sua vez, identificou certos aspectos de uso da linguagem

como sinais potenciais para interpretação, o que ele chamou de convenções de

contextualização. Estas convenções referem-se aos aspectos da linguagem e do

comportamento lingüístico, presentes num contexto interacional, que utilizamos para sinalizar

nossos propósitos comunicativos, bem como para inferir os propósitos dos outros.

Tais convenções podem ser lingüísticas – como escolhas lexicais ou sintáticas, por

exemplo, mas também de alternância de código, como mudanças dialetais ou de estilo de fala

–; extralingüísticas – como pausas, hesitações, o tempo da fala –; ou ainda, estabelecidas por

sinais prosódicos – como entonação, sotaque ou tonalidade da fala, por exemplo.

Assim, as convenções de contextualização são partes da competência

comunicativa dos interactantes. De fato, trata-se de uma reformulação do conceito de

competência comunicativa proposto por Hymes em termos mais específicos, dentro de cada

contexto interacional.

Quanto ao esquema analítico da etnografia da comunicação, Hymes (1986)

também desenvolveu uma base, um modelo heurístico chamado “SPEAKING”. Este modelo

serve como um guia na identificação de importantes aspectos da fala (cada letra refere-se a

um desses aspectos, em nomes em inglês). Assim, temos o cenário, que se refere ao tempo e

ao espaço de um ato de fala e às circunstâncias físicas em que este se dá e a cena que, por sua

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vez, refere-se ao “cenário psicológico”, ou seja, à definição de uma situação, que ocorre por

meio de uma base cultural; os participantes, que, como o próprio termo sugere, referem-se

àqueles engajados numa interação, os interactantes; os fins, que estão relacionados aos

objetivos ou resultados esperados do ponto de vista da comunidade, ou seja, o que os

interactantes envolvidos numa interação têm como propósito nela; a seqüência do ato, que

tem a ver com o conteúdo e com a forma com que as mensagens são apresentadas na

interação; o que o autor chama de “chave”, que se refere à maneira, ao tom ou ao espírito em

que os atos são realizados; as instrumentalidades, que se referem ao canal – oral, escrito, não-

verbal etc. – e às formas – dialetos, códigos, variedades lingüísticas etc. – sob os quais a

interação se encontra submetida; as normas, que aqui se referem àquelas que regem uma

interação – polidez, interrupções – e também a interpretação – códigos compartilhados,

crenças coletivas etc.; e o gênero, que é relativo às categorias textuais, como poema, contos,

orações, provérbios etc., que contribuem para a identificação de características formais

reconhecidas tradicionalmente por uma comunidade.

Especificamente em relação ao meu protocolo original de análise, de cada nível

(interacional, paralingüístico e extralingüístico) temos diversos tipos de signos. Dentre os

aspectos paralingüísticos, encontramos a ortoépia e a prosódia. A primeira trata da pronúncia,

enquanto a segunda da sonoridade. É bem verdade que, efetivamente, não se trata de uma

tarefa fácil a distinção entre as mesmas e, de fato, não raramente vemos uma ser usada por

outra. Isto porque, enquanto, por um lado, a sonoridade influencia a pronúncia, por outro, a

pronúncia trás implicações sonoras.

Hoje a prosódia pode ser definida por meio do entendimento do funcionamento do

que chamamos de traços prosódicos, que são as variações, na fala, de tom, intensidade, altura,

duração e ritmo da voz. Do ponto de vista da pragmática da linguagem, interessa-nos saber

como tais variações definem a significação das palavras.

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A ortoépia, por sua vez, preocupa-se com o estabelecimento da norma culta de

pronúncia das palavras. Desta forma, desconsidera a variabilidade lingüística, que pode

ocorrer, do ponto de vista da pronúncia, sobretudo por questões geográficas – tendo em vista a

diversidade de formas com que a fala assume em diferentes regiões – e sociais – numa íntima

relação entre linguagem e poder, nível sócio-econômico, de instrução etc., no que podemos

incluir aspectos como variações dialetais (sotaque) e os chamados barbarismos fonéticos, os

quais chamaremos de variações fonéticas – ainda que isto possa dizer muito ou nada –, para

evitar o termo pejorativo. Partindo do pressuposto pragmático de que a corretude no uso dos

signos da linguagem está em seu devido entendimento e aceitação – ou seja, sem geração de

constrangimentos ou gafes, por exemplo – podemos ampliar o princípio ortoépico se o

aceitarmos como cabíveis a cada forma de vida.

Dentre os aspectos extralingüísticos, temos os movimentos cinésicos e as

atividades proxêmicas. A cinésica preocupa-se com os aspectos comunicativos do movimento

corporal. Exemplos são os gestos, os movimentos dêiticos, as expressões faciais, o contato

visual, os movimentos com a cabeça e a postura corporal. A proxêmica, por sua vez,

preocupa-se com os aspectos espaciais da interação humana. Estes podem ser movimentos

corpóreos (contatos físicos intrusivos, como empurrar, agarrar, segurar), interações corpóreas

(contato pessoal afetuoso, como um aperto de mão, um toque, um abraço) e distância corporal

(espaço em que duas ou mais pessoas estabelecem entre si).

Finalmente, o que aqui chamo de aspectos interacionais são aqueles que se dão na

interação social e são de fundamental importância para se compreender o que ocorre na

mesma. Eles servem como o que dá sentido aos demais aspectos. Dentre várias possibilidades

consideradas podemos citar: alternâncias de código, cenário da interação, conhecimento de

mundo, contexto, face, footing etc.

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4.4 Mas por que fazer as investigações, afinal?

Acredito que os questionamentos e as reflexões que ora proponho sejam de crucial

relevância para o marketing. Afinal de contas, o marketing, enquanto disciplina social, cujo

objeto próprio tende a ser admitido como a troca, deveria observar os dois lados relacionados

às marcas, nomeadamente, os produtores e os consumidores, e ainda suas relações e

mediações. Contudo, o que vemos é uma atenção voltada aos primeiros. Sim, porque apesar

da produção acadêmica ter se focado sobremaneira sobre os últimos, o fez quase que

totalmente tomando-os como ponto de investigação para ações gerenciais dos produtores.

Mesmo nos últimos anos, em que as relações entre as partes têm sido um dos focos de análise

da disciplina, mais uma vez tende a cumprir o mesmo papel.

Quando reflito sobre a importância das marcas para as pessoas, portanto, não

estou fazendo isto do ponto de vista sobre como este conhecimento venha a ser utilizado

gerencialmente pelas organizações. Entendo que isto possa parecer estranho, uma vez que a

atividade de marketing seja quase que indiscutivelmente atrelada ao sistema capitalista e a um

suposto objetivo fim de gerar lucratividade às organizações, que, afinal, têm nisto seu

objetivo.

Provavelmente isto ocorra devido ao nome de nossa disciplina sugerir sua

aplicação apenas para economias de mercado. Estou certo de que se trata de mais um feitiço

da linguagem – feitiço este no qual, a bem da verdade, não apenas o senso comum, mas

também a maioria dos práticos e até parte da própria academia de marketing, parecem cair. De

fato, o marketing extrapola em muito as possibilidades de economias de mercado. Quando, há

quarenta anos, o escopo do marketing foi discutido e ampliado como relativo à oferta de

qualquer coisa por alguém a outrem, e a troca – ou, como prefiro tratar, a relação entre

produção e consumo – passou a ser assumida como o objeto próprio da disciplina, a noção do

que venha a ser esta “oferta” deixou de ser relativa apenas a produtos de consumo e passou a

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incluir serviços, experiências, ideologias e até mesmo pessoas quando de seu cumprimento de

algum papel (e.g., políticos, artistas, esportistas etc.).

Desta forma, podemos separar o marketing do sistema capitalista, já que o mesmo

é aplicado a outras formas de economia, bem como a questões políticas, sociais, ambientais e

outras. Vejamos alguns exemplos. Nas economias planificadas do regime socialista, as

prioridades (normalmente definidas a cada cinco anos) estabelecidas pelos planos

governamentais não eram apenas informadas à população. Todo um trabalho de

“conscientização” sobre a importância das escolhas era realizado, em que meios de

comunicação de massa eram amplamente utilizados. Outro exemplo pode ser observado na

forma como ONGs, que desenvolvem atividades sem fins lucrativos, se utilizam de marketing

para levantar verbas, tanto públicas quanto privadas. Podemos citar ainda as campanhas

políticas, que chegam ao ponto de produzirem políticos que não necessariamente devem ser

coerentes com ideologias, mas sim apresentados na forma de objetos de consumo. Neste

aspecto, para que tal fenômeno não pareça apenas uma adaptação da política liberal aos

moldes do capitalismo, podemos citar também outros exemplos, como o stalinismo e o

hitlerismo.

Se trouxermos estas questões para a noção de marca, o efeito será o mesmo. Os

exemplos não faltam. Afinal, como não ver na sobreposição da foice com o martelo uma

marca? E como não ver também como uma marca a suástica? Ou ainda o logotipo do

Greenpeace ou mesmo a bandeira americana...

O que quero argumentar com tudo isso é que não precisamos estar inseridos numa

economia de mercado para que haja produção e consumo e muito menos para que esta relação

seja nefasta. Portanto, ainda que o marketing seja usado nas relações de mercado – e,

portanto, para o capitalismo – esta não é ou não tem de ser sua função própria. Além disto,

mesmo neste contexto, não acredito que possamos considerar a busca das organizações

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capitalistas pelo objetivo de lucro máximo, através do consumo desenfreado, como uma regra.

Como sabemos, esta é apenas uma das visões possíveis do liberalismo e não a única – vide o

liberalismo social de Stuart Mill. Neste sentido, acredito que as organizações – mesmo as

capitalistas – tenham um importante papel social a cumprir, ainda que, evidentemente, um

possível questionamento possa advir em relação a quantas e quais delas estariam dispostas a

tal.

Contudo, assumindo-se a perspectiva de um consumidor ativo como realidade, as

organizações teriam que se adaptar. E, por incrível que pareça, é bem possível que as

primeiras a se adaptarem fossem exatamente aquelas capitalistas, cujo objetivo é obter o lucro

máximo através do consumo. Por quê? Ora, a história tem nos mostrado que o capitalismo é

isento de uma ideologia coerente e adepto às mudanças necessárias para manter sua

hegemonia. Neste sentido, tornarem-se signos abertos parece-me algo perfeitamente aceitável

para marcas que não desejem se tornarem descartáveis ou virarem genéricas.

Meu argumento é de que as pessoas já significam as marcas em suas interações

interpessoais com o intuito de terem desempenhos que satisfaçam ao seu contexto interacional

imediato e aos seus propósitos nessas situações sociais. O meu interesse, portanto, não é o de

indicar práticas administrativas para os detentores das marcas, mas compreender como se dá

este processo de significar as marcas em situações de interação social como recurso de

desempenho dos atores. E neste ponto acredito que há de se fazer uma importante

consideração. Há várias décadas separamos a administração de marketing do marketing

enquanto atividade social. Enquanto o ensino e a extensão tendem a focarem-se na primeira,

transferindo tecnologia gerencial para futuros profissionais, a pesquisa e a produção de

conhecimento na área alinham-se – ou deveriam se alinhar – à segunda. Isto não quer dizer

que não devamos olhar para os produtores, mas que olhemos também para os consumidores.

Mas que não façamos isto como meio de dominação de um pelo outro. Portanto, minha

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reflexão e as investigações marcárias apresentadas à seguir não estão comprometidas com a

geração de “ferramentas gerenciais” a serem utilizados pelas organizações em sua

manipulação dos consumidores. Ao contrário, têm o papel de compreender a relação entre

produtores e consumidores e sua contribuição deve ser vista como a de, quiçá, apontar meios

para que esta relação não seja nefasta.

Neste sentido – e agora já voltando à segunda filosofia de Wittgenstein como

inspiração –, devo admitir que seja bem verdade que as marcas podem ser um sintoma da

doença espiritual dos nossos tempos. Contudo, vejo que elas também podem ser assumidas –

e assim o faço – como recursos simbólicos de interação social e, neste sentido, arriscaria dizer

que tal tipo de recurso faz parte da própria história natural da humanidade. Se os objetos de

tais interações serão marcas, totens sagrados ou fenômenos naturais, isto depende da

sociedade com que estivermos lidando. E a sociedade que me propus investigar é a sociedade

de consumo. Por outro lado, também é verdade que esta sociedade pode ser tida como outro

sintoma da doença espiritual dos nossos tempos. Contudo, esta é a sociedade dos nossos dias e

não é meu objetivo – pelo menos na presente reflexão – elaborar sobre como transformá-la –

afinal, minha tese não se trata de uma teoria crítica –, mas de como, mesmo nela, o ser

humano possa voltar a ocupar um espaço que se tornou do sistema; como as formas de vidas e

seus jogos de linguagem podem resgatar o ser humano da sua função de máquina do sistema.

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Parte II Investigações marcárias

O que veremos nos próximos capítulos é o resultado de nossas investigações.

Como já deve ter ficado evidente, minha busca é pela compreensão da significação das

marcas pelos consumidores em suas vidas cotidianas. Esta significação, contudo, além de se

referir ao próprio processo de significar signos culmina com o significado a que estes são

levados. É assim que chego aos dois aspectos que já tive a oportunidade de mencionar que

busquei em nossas investigações: a significação em si, em que tenho em mente o processo a

que me referi – e que é o que corriqueiramente estou querendo me referir com o uso de tal

termo –, e os significados daí resultantes.

Não apresento tais resultados, no entanto, de uma forma típica, mas de acordo

com a lógica que norteou nosso processo investigativo. Desta forma, tais capítulos são

distribuídos em três partes intermediárias, representativas dos blocos conceitual-analíticos

percorridos em nosso método: o da significação, o dos significados e aquele ao qual chamei

como de significância, como já pude antecipar – apesar deste não se tratar, como já deve ter

ficado claro, de uma “terceira busca”, mas de um aspecto complementar à compreensão da

significação.

Há que se fazer aqui algumas ressalvas. Em primeiro lugar, esta “divisão” não tem

a pretensão de gerar classificações acerca de nossos achados – Wittgenstein certamente se

arrepiaria com uma possibilidade desta. De fato, todos os aspectos que aqui demonstro

ocorrem, na interação, dentro de um mesmo fluxo, indissociavelmente. A apresentação em

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partes (significância, significação e significado), bem como seus elementos constituintes

(nosso protocolo), pretende tão somente, propiciar uma visão especificizada dos vários

aspectos que pudemos identificar em nossas investigações.

Dentro desta mesma perspectiva, uma segunda ressalva. Não tenho a pretensão

aqui de atestar significados últimos às marcas – estaria sendo um semanticista, desta forma. O

que aqui é apresentado deve ser encarado como uma fotografia. Resultado de observações em

certo contexto, num determinado período e em certos espaços sociais. Mas sabemos que a

linguagem é viva. Estas investigações sendo realizadas em outro tempo e/ou espaço

certamente nos proporcionariam resultados diferentes – possivelmente corroborando alguns

dos aspectos aqui evidenciados e certamente demonstrando algumas novidades em relação ao

que temos por hora.

Com isto, as duas primeiras partes intermediárias das nossas investigações se

referem à descrição do processo de significação das marcas, enquanto os significados são

apresentados na última (sub)parte. Trata-se de métodos descritivos diferentes, devido à

natureza do que temos em mãos. Enquanto estes últimos são representações (pragmáticas) do

conteúdo dos signos marcários identificados em nossas investigações, o processo de

significação pode ser concebido como uma rede sígnica com diferentes níveis e com nós de

diferentes espessuras, mas sem um ponto exato de partida ou de chegada.

Desta forma, se apresento os significados como descrição de conteúdos sígnicos, a

significação o faço pela descrição de todas as suas peculiaridades para que, assim, possamos

dela ter uma visão sinóptica – não por meio de uma representação cartográfica de nossa

cidade, mas por um passeio em cada um de seus logradouros.

Ao longo de tais descrições duas marcas ficarão evidentes. A primeira se refere

aos exemplos utilizados, que possam ser repetidos ao longo dos diferentes capítulos. Afinal de

contas, um mesmo exemplo pode nos servir para elucidar as mais diversas formas de

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linguagem e, portanto, as mais diversas facetas da significação e dos significados em nossas

investigações. Assim, por mais que tentemos alterná-los, alguns deles trarão certas

peculiaridades que nos farão voltar inúmeras vezes aos mesmos.

A segunda marca são as relações entre aspectos de significação e de significância,

que serão necessárias serem apresentadas na descrição tanto de uma quanto de outra. De fato,

a divisão capitular na qual costumamos incorrer apresenta tal risco quando lidamos com

situações nas quais os aspectos tratados estejam imbricados e, muitas vezes, indissociados,

como é o caso presente. Tal separação trata-se, outrossim, de um artifício para que nossas

reflexões, ao invés de lidarem com o caos da linguagem ordinária, não se torne ela própria

caótica no sentido de não nos levar a compreensão alguma.

Reconheço o risco de me tornar enfadonho, mas não vejo outra saída em um

processo descritivo do tipo que aqui desenvolvemos. Terei o cuidado para propiciar uma

leitura o mais fluida possível, dentro das condições necessárias ao que temos em mãos.

Assim, cada vez que uma dessas marcas vier à tona será de maneira diferente. Cada vez que

um aspecto for relacionado a outro o será sob a perspectiva de um deles; cada vez que um

mesmo exemplo for utilizado para elucidação de diferentes circunstâncias, o será na

perspectiva de uma delas.

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De significância

Como já vimos quando discutimos o método das nossas investigações marcárias,

entre as características que marcam o processo de significação e a chegada aos significados

das marcas, identificamos aspectos intermediários, fundamentais para a compreensão de como

se dá tal caminhada. Por isso os chamei de aspectos de significância. Tive em mente sugerir

que, apesar de não se tratarem de um processo de significação, têm um papel extremamente

significativo, tão importante quanto aquele para chegarmos ao conhecimento dos significados

das marcas.

Estes aspectos são as funções do uso da linguagem em relação às marcas, e as

atividades das marcas para as quais tais funções apontam. Apresento-os primeiro, pois, apesar

de intermediários – num sentido processual de análise –, se demonstram necessários de

antemão, uma vez que a descrição do processo de significação depende de um conhecimento

prévio dos mesmos. E mais: apresento as atividades antes mesmo das funções, uma vez que

sem o entendimento imediato do que sejam, correríamos o risco de não nos fazermos entender

quando das nossas descrições, já que elas são o que há de mais concreto em relação às marcas

em nossas investigações.

Os próximos capítulos tratam, cada um, de um desses aspectos de significância.

No entanto, vale salientar que, sendo a função de descrever tais aspectos meio para uma

melhor compreensão do processo de significação, não discutiremos, por ora, significação nem

significado propriamente – ainda que seja impossível omitir certos aspectos da significação,

uma vez que a frase descrita poderia simplesmente não fazer sentido. Tal opção pode vir a

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causar certa angústia no leitor, uma vez que darei início à exemplificação das situações

observadas em nossas investigações, sem, no entanto, incorrermos numa análise mais acurada

das mesmas. Ainda assim opto por tal procedimento por entender que, do contrário,

estaríamos assumindo o risco de sermos repetitivos e cansativos nos demais capítulos que

seguirão.

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5 Atividades marcárias As interações sociais que observamos são um tipo de interação específica: a

verbal. Assim, quando observamos as mesmas estamos nos atendo a atividades de fala. Mas

também não se tratam de atividades de fala quaisquer, mas daquelas em que marcas são

objetos discursivos. Assim, em tais interações nunca se está falando da marca enquanto um

ente abstrato. Está-se falando de certas peculiaridades das marcas, que podem se apresentar de

formas diversas: uma característica, um sentimento, um juízo etc.

Desta forma, entendo que estejamos falando de atividades marcárias nas falas dos

interactantes. É acerca destas diferentes atividades que o diálogo se desenrola. Não se trata

ainda do significado atribuído às marcas, mas do que delas propiciam o conteúdo das

interações verbais.

São diversas as atividades marcárias que podemos identificar em nossas

investigações. Cada uma delas pode ser descrita por diferentes facetas, dentre as quais

algumas são outras atividades.

A seguir apresento cada uma das atividades, cobrindo todas as suas facetas, no

sentido de podermos visualizar de forma ampla o que das marcas, e de que maneira, são

considerados nas interações verbais de nossas vidas cotidianas. Tal apresentação é feita em

ordem alfabética. Com isto tenho o intuito de evitar uma idéia de que haja uma ordem de

prioridade ou de importância em relação às mesmas.

Na descrição de tais atividades, tento, na medida do possível, resgatar o

conhecimento em marketing que existe, direta ou indiretamente, associado às mesmas. Minha

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intenção é propor possíveis discussões de tal conhecimento em comparação aos achados de

nossas investigações marcárias.

5.1 Adesão a outra marca

Com a atividade que denominei de “adesão a outra marca” estamos lidando com o

que a literatura de marketing enquadraria como fidelidade à marca. Entretanto, tratamos esta

atividade como adesão por esta se referir, ao contrário, à possibilidade de infidelidade à

marca. Isto quer dizer que em nossas investigações não nos deparamos com nenhuma situação

em que a fidelidade à marca seja objeto de discussão nas interações que observamos. O que

temos é a sugestividade de um falante de que o outro esteja incorrendo em infidelidade a uma

dada marca, o que é feito como brincadeira, como forma de deixá-lo empulhado e criar um

ambiente descontraído.

Um exemplo de tal situação ocorre enquanto dois amigos conversam na casa de

um deles [#22]. Os filhos pequenos de um brincavam de bola no quintal, no que este lhes

chamou atenção para o fato da mesma estar murcha. A indicação fez o outro se ater à bola e

observar que ela era formada por três cores peculiares: vermelho, preto e branco. Tratam-se

das cores do Santa Cruz e ele sabe que seu interlocutor é torcedor do Sport. Assim, não

perdeu tempo e o provocou: “E a bola é tricolor, é?”. Seu interlocutor defendeu-se afirmando

que ele estaria confundindo as cores, pois o que ali se via era rosa. Não importou. O outro

continuava às gargalhadas e provocando: “É tricolor!... Tricolor! Tricolor!”.

Provavelmente não por uma coincidência, as situações deste tipo com as quais nos

deparamos se referem a times de futebol. Em nossa cultura a adesão a um time é assumida

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como compulsória à rejeição de todos os seus rivais, o que comumente é definido num âmbito

local.

Evidência disto temos numa situação [#113] em que um falante e seu cunhado

assistiam ao programa Globo Esporte, da Rede Globo, e o primeiro lhe pergunta por que time

ele torce em São Paulo, se para o Corinthians ou para o São Paulo. Isto indica que, para

aquela forma de vida, é de se esperar que se torça por outros times, desde que este seja de

outro estado.

5.2 Aspecto da marca

Na atividade “aspecto da marca” enquadro aqueles aspectos de uma marca que a

caracterizam como produto49: atributos e benefícios. Durante muito tempo os produtos foram

definidos pelas suas características tangíveis, o que está presente no produto e o faz

desempenhar o que se propõe, até que o marketing passou a olhar para estes como “pacotes de

benefícios”, ou o que os consumidores usufruem de um produto ao utilizá-lo50.

Mas nem sempre o uso de um produto gera um benefício. Muitas vezes o uso de

um produto não só não atende às expectativas do consumidor, como pode até gerar um efeito

contrário. Assim prefiro considerar, ao invés de benefícios, as conseqüências de uso de um

produto, uma vez que estas podem ser tanto positivas quanto negativas.

Temos, desta forma, os atributos e as conseqüências de uso formando os “aspectos

da marca”. Numa visão ampliada, podemos classificar os atributos de um produto como

49 Como produto aqui me refiro a qualquer oferta a um mercado, seja esta um bem, um serviço, uma experiência, uma pessoa, um evento etc. 50 Esta discussão marca a guinada da orientação das empresas para o mercado por meio dos princípios de marketing, que assume a perspectiva do mercado, e não da empresa, como orientadora dos negócios. Tal mudança pode ser vista por meio de Levitt (1990).

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concretos e abstratos e suas conseqüências como funcionais e psicológicas. Quanto aos

atributos, entende-se por concreto o que é físico, tangível num produto, como a textura de um

tecido. No caso de serviços, por não haver nada “tangível” de fato, são considerados como

atributos concretos aquelas características inerentes ao próprio serviço, cujo usuário pode

“ver”, como o conteúdo ou a programação visual de um jornal on-line, por exemplo. Por

atributos abstratos são entendidas as características mais abstratas, intangíveis, como a

qualidade, no caso de um tecido. No caso de serviços, são consideradas aquelas características

que, apesar de não serem “vistas”, são “percebidas” pelo usuário, como no caso de um jornal

on-line, seu desempenho ou velocidade de carregamento, por exemplo, ou ainda por questões

que caracterizam o serviço, como interatividade.

Quanto às conseqüências de uso, as funcionais se referem aos resultados tangíveis

da experiência direta de consumo de um produto, como o saciamento da fome ao se comer um

sanduíche; as psicológicas, apesar do nome, se referem aos resultados tanto psicológicos

quanto sociais do consumo de um produto, como imaginar a opinião dos amigos a respeito da

roupa que se está vestindo.

Apesar disto, vejo atributos e conseqüências de uso como dois lados de uma

mesma moeda. Num sentido restrito isto já seria defensável, uma vez que podemos deduzir

que não existiriam conseqüências no uso de um produto sem os seus atributos e de nada

valeriam estes se não propiciassem aquelas. Mas esta é uma visão utilitarista. Assumo que,

numa perspectiva sígnica, ambos se tornem apenas referências acerca das marcas e que ambos

possam assumir funções simbólicas em relação às mesmas. Daí vem minha opção por

classificar a ambos dentro do que chamamos agora de aspectos.

Exemplos de atividades marcárias acerca dos aspectos das marcas não faltam. Em

certa situação [#29] uma mãe pega carona com sua filha e genro para um shopping. A certa

altura pergunta a que estavam indo lá, no que a filha responde que iriam comprar o material

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escolar dos filhos. A mãe pergunta à filha onde faria as compras, que responde que seria no

“Atacadão”. Depois de se surpreender por ter uma loja do Atacadão da Papelaria ali, a mãe

pergunta se não seria mais caro por ser num shopping, no que a filha responde: “Nada... Ir na

cidade, andar que só... A gente só compra aqui”. Vemos nesta interação a atribuição de que

aquela loja da marca seria mais cara (atributo abstrato), não rejeitada pela interlocutora, mas

sim justificada pelo conforto (conseqüência psicológica) que a loja do centro da cidade não

proporcionaria.

Em outra situação [#3], duas vizinhas conversam sobre a escolha da escola da

filha de uma delas, quando esta antecipa: “Pensei no Colégio Boa Viagem... É uma escola

boa, tem piscina olímpica... é de classe média... e lá todo mundo vai saber quem é minha

filha”. Nesta fala, a mãe nos fornece vários aspectos que ela atribui ao Colégio Boa Viagem:

um atributo concreto (ter piscina olímpica), um atributo abstrato (ser de classe média) e uma

conseqüência psicológica (reconhecimento da filha).

Como exemplo de uma conseqüência funcional podemos mencionar uma situação

[#78] em que uma falante comenta com sua interlocutora que precisava de um liquidificador

novo, no que esta sugere a escolha de um Wallita, sob o argumento de que tem um “já faz dez

anos e nunca deu problema”, no que tinha em mente a durabilidade de tal produto.

Mas não mencionamos ainda conseqüências negativas. Em certa situação [#125]

duas irmãs conversam sobre uma tia que desenvolvera um furúnculo nas axilas e que o

médico afirmara que teria sido pelo uso de desodorante cremoso, por este tipo penetrar pelos

poros, causando aqueles caroços de massa apustemados. “Foi por isso que deixei de usar

Herbíssimo”, disse, envergonhada, uma delas, se referindo ao produto mais conhecido

daquela marca, o que provocou risos mútuos.

Para exemplificar uma conseqüência psicológica negativa, podemos mencionar

uma situação [#37] em que duas mulheres estão conversando e uma menciona que, certa vez,

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ao ir com o namorado para O Bode, o mesmo havia ficado enciumado, uma vez que o bar

estava cheio de homens não acompanhados, que, em sua percepção, ficavam olhando demais

para ela.

5.3 Assunto relativo à marca

A marca também pode ser ou se tornar um assunto em pauta durante uma

interação. Assim como somos levados, por inúmeras e quaisquer que sejam as razões, a

conversarmos com os outros sobre as eleições, o aumento dos preços no supermercado, a

chatice do nosso chefe, a vida dos vizinhos e tantos outros assuntos, também conversamos

sobre as marcas. Em nossas investigações, observamos isto acontecer por razões das mais

distintas: falta do que falar, desculpa para se iniciar um diálogo, algum aspecto do ambiente

físico em que a interação se desenrola, o papel de um ou mais dos interactantes, ou, ainda,

alguma situação ocorrida.

Num fim de tarde um casal caminha ao redor da lagoa que se localiza no bairro

em que moram, quando cruzam com o tio dele [#13]. Apesar de morarem no mesmo bairro,

fazia tempo que não se viam e a reação de ambos foi um tímido “oi”. Como andavam em

sentido oposto, não tardou para que se vissem novamente. A princípio fingem que não se

vêem, para evitar maior constrangimento. Contudo, no exato momento em que se cruzam pela

segunda vez, o sobrinho faz um pequeno aceno com a cabeça enquanto seus lábios formam

um leve sorriso. Sem saber o que dizer, o tio, após passar por ele, vira-se e, ainda

caminhando, pergunta: “Ainda acompanha o Sport?”. Durante um breve instante trocam

palavras sobre o time pelo qual os dois torcem.

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Em outra situação [#14], um casal de namorados passa na casa de um casal amigo

para saírem juntos, o que termina não acontecendo devido a um desencontro. Logo vão

embora e, já à porta, o rapaz que se despedia puxou conversa com o dono da casa. Como

ambos são proprietários de Peugeot 206, começa a relatar as idas e vindas que havia precisado

fazer à concessionária para comprar um chicote de embreagem.

Como exemplo de influência do ambiente físico, temos uma situação [#10] em

que uma família almoça num restaurante e, em enquanto comem, comentam do calor que

fazia. Com isto, uma das mulheres à mesa diz que estava pensando em comprar um

ventilador, no que começa a se desenrolar uma conversa sobre a Arno e que chega à Mondial

como referências à falante.

Um exemplo de papel como determinante de assunto relativo a uma marca pode

ser descrito por uma situação [#95] em que um homem, que é caminhoneiro, observa um

barulho no carro de um familiar quando este saía de sua casa e pergunta se se tratava do bojo

do cano de escape furado, o que é por aquele confirmado. Com isto, ele continua sua

“inspeção” e comenta que os pneus precisam ser trocados, no que sugere a marca Colway e

começa a falar da mesma. Contudo, sua certeza nem sempre houvera sido tanta. Quase três

meses antes [#19] o dono do carro havia perguntado àquele a sua opinião sobre pneus

importados, no que este se esforçou para lembrar de uma marca à qual pudesse mencionar, até

que lhe ocorreu a Colway, sobre a qual conversaram como se este a conhecesse bem.

Em outra situação [#51], dois professores, sendo um deles de Fotografia,

conversam sobre a mudança tecnológica naquela indústria e a tendência da supressão do

analógico pelo digital, no que esta, defensora do primeiro, relata uma situação em que Bob

Wolfenson, citado pela mesma como um dos maiores fotógrafos de publicidade do Brasil,

depois de estar com tudo pronto pra clicar Naomi Campbell com câmera digital, resolveu

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voltar atrás e usar a analógica, cinco horas antes dela chegar, por receio que alguma coisa

desse errado.

Como podemos observar, ao se tornarem assuntos corriqueiros no cotidiano das

pessoas, as marcas infiltram-se em suas vidas. Apesar disto, não vemos nenhum

conhecimento de marketing que se foque sobre tal aspecto.

5.4 Característica do usuário da marca

Outra atividade observada em nossas investigações é a caracterização dos usuários

das marcas feita pelos interactantes. Trata-se de um procedimento que poderíamos chamar de

“segmentação às avessas”. Se, por um lado, uma das atividades típicas da administração de

marketing é a segmentação de mercado, em que os clientes potenciais de um dado produto são

definidos por perfis geográficos, demográficos, psicográficos e comportamentais, por outro, o

que temos aqui é uma atividade similar – evidentemente não sistemática –, mas com outra

finalidade: a de caracterizar as pessoas com base nas marcas que usam.

Nesta caracterização, temos casos tanto de auto-referência – ainda que não

explícita ou com um intuito declarado – quanto de referência a terceiros. Tais características

são referências baseadas em aspectos sócio-econômicos e comportamentais.

Dois exemplos nos demonstram todas essas possibilidades. Num de auto-

referência, com aspectos tanto comportamental quanto sócio-econômico, temos uma situação

[#112] em que uma doméstica conversa com sua empregadora e esta última afirma que uma

amiga daquela, também doméstica, que trabalha na casa de sua mãe, lhe é muito grata pela

ajuda prestada quando sua filha era pequena, no que a primeira corrobora, dizendo que o que

sua filha comia a dela também comia e ressalta que só comprava leite Ninho e Mucilon,

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deixando claro que se tratavam dos originais e não de imitações. Com isto, ela se caracteriza

como uma pessoa bondosa e cuidadosa, por não apenas ajudar a amiga, mas o fazer com

produtos de marcas superiores, o que, por outro lado, também a caracteriza como estando num

nível sócio-econômico mais alto que sua amiga.

Numa outra situação [#61], um consultor relata a seu interlocutor que a executiva

de uma empresa o havia oferecido metade do que ele propusera por seu serviço e, ao não

aceitar, a mesma solicitou-lhe uma reconsideração. Indignado, esbravejou: “Me faz uma

proposta dessa e usa Prada!”. Com isto ele teve em mente questionar como uma pessoa com

condições sócio-econômicas para ter uma bolsa tão cara, poderia ser tão tacanha (aspecto

comportamental) e desvalorizar tanto o seu trabalho.

5.5 Comparação da marca

Em nossas investigações evidenciamos também que as pessoas têm o hábito de

fazer comparações em relação às marcas. Tal atividade trata-se de um recurso importante em

como se estabelecem, nas interações, conceitos às marcas por meio de relacionamentos destas

com outros signos, sejam estes marcários ou não.

Isto quer dizer que temos comparações das marcas com diferentes aspectos, mas,

sobretudo, com outras marcas, o que pode sugerir como as pessoas organizam cenários

concorrenciais. Curiosamente, na comparação entre marcas, temos comparações de marcas

apenas com aquelas de mesma natureza de produtos. Isto pode indicar que as pessoas, na

definição concorrencial, foquem-se nos produtos buscados para um determinado fim, e não

em ofertas que satisfaçam a uma mesma “necessidade”, como sugere a ampla literatura de

marketing.

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Um exemplo disto pode ser demonstrado com uma situação [#17] em que duas

mulheres conversam e uma delas menciona que havia comprado uma sandália da Via Marte,

mas sua avó disse não conhecer. A outra afirma conhecer e é elogiosa à mesma, no que a

menciona dizendo que “era boa também”, uma vez que era “concorrente da Azaléia”. Aqui

temos que a definição de uma marca ocorre pela sua comparação com outra, sendo esta mais

conhecida.

Além deste tipo de comparação, as marcas também são comparadas a

comportamentos humanos, a objetos e a certos espaços/lugares. Em relação ao primeiro tipo,

temos um exemplo [#2] quando, depois de questionada pelo seu interlocutor por sugerir que

um hospital como o Português era melhor de se trabalhar do que naqueles públicos, falante

diz que devemos nos preocupar com o que os outros vão achar. Coagida pela expressão facial

de seu interlocutor, ela sugere que devemos ser como um dentista conhecido de ambos,

“marqueteiro”. Com isto, quis sustentar o valor que a marca publicizada tem perante os

outros, no que a classe médica foi assumida como consumidora das marcas às quais

disponibilizam seu trabalho.

Temos aqui um caso de antropomorfização da marca, como fica evidente no

exemplo descrito. Tal destaque é importante por se alinhar a um dos principais conceitos

acerca das marcas, o de personalidade da marca, que presume a atribuição ou reconhecimento

dos consumidores de características humanas às marcas. Quando da discussão sobre a

atividade de comportamento das marcas, à seguir, este aspecto será mais bem discutido, uma

vez que, como aqui, é nesta atividade que identificamos tal característica marcária.

Em relação à comparação com objetos, podemos demonstrar como exemplo uma

situação [#20] em que um falante pede ao seu interlocutor uma indicação sobre como escolher

uma marca de computador, no que, para sinalizar as condições que consideraria para sua

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escolha, indica: “Tem o carro mil e o carro 1.8, né?”. Assim, quis solicitar que seu

interlocutor diferenciasse aquelas melhores e mais caras, das mais simples e baratas.

Finalmente, o último tipo pode ser ilustrado com uma situação [#18] em que, ao

comentar sobre o jogo que seu time, o Sport, faria contra o Náutico naquela semana, um

homem diz que o mesmo seria “no chiqueirinho”, referindo-se ao estádio do time adversário,

e aproveita para incluir em sua fala um “chiqueirão”, referindo-se agora o estádio do Santa

Cruz, o outro concorrente direto do seu time no estado, associando os respectivos estádios a

lugares sujos, em que o uso do diminutivo e do aumentativo refere-se ao tamanho dos

mesmos.

Na literatura de marketing a comparação – ou, como comumente é chamada, os

pontos de paridade – relativa a uma marca é apontada como um dos aspectos definidores do

posicionamento da mesma, ou seja, a imagem que um mercado tem da marca. A presente

atividade, de certa forma, coincide com esta premissa, com a diferença fundamental de que ali

se tratam de aspectos objetivos ou tornados objetivos pelas organizações detentoras das

marcas.

5.6 Comportamento da marca

As marcas também são consideradas pelos seus comportamentos, no que temos

aqui, como antecipamos, uma perspectiva antropomórfica. Contudo, vale a ressalva de que os

casos aqui são de marcas que são pessoas, formadas por pessoas, comparadas a pessoas ou

que estavam sendo, direta ou indiretamente, representadas por pessoas na situação de tal

atividade. Isto sugere que a antropomorfização das marcas, por parte dos consumidores, esteja

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associada, direta ou indiretamente, à sua relação, ou possibilidade de, com pessoas e não

numa abstração completa.

Os comportamentos que identificamos em nossas observações são de diferentes

tipos, quais sejam: responsabilidade, simplicidade, exibicionismo, deslealdade e falta de

atenção dispensada.

O primeiro tipo podemos exemplificar com uma situação [#51] já mencionada em

que uma professora de Fotografa comenta que Bob Wolfenson optou por clicar Naomi

Campbell com câmera analógica, ao invés de digital, por receio que alguma coisa desse

errado, já que a nova tecnologia ainda não era de seu total domínio.

O segundo tipo pode ser ilustrado pela situação [#41] em que dois colegas de

trabalho conversa quando um deles comenta que um show dos Rolling Stones havia sido

anunciado para o intervalo do Super Bowl, jogo final do campeonato de futebol americano,

mas que no final das contas “tocaram apenas três músicas e acabou”. Seu colega fica

estupefato com o fato da banda ter se apresentado no intervalo de um jogo e pergunta: “eles

estavam mesmo lá?”, concluindo que pensara que seu interlocutor diria ser mentira.

Na também já mencionada situação [#2] em que uma falante compara o Hospital

Português ao seu dentista, como sendo “marqueteiro”, temos uma evidência de percepção de

comportamento exibicionista, uma vez que aqui não temos por aquele adjetivo a idéia de

marca que utiliza ferramentas gerenciais de marketing, mas de autopromoção para vender sua

imagem.

Um exemplo de falta de atenção dispensada ocorre em uma situação [#77] num

posto de atendimento da Celpe em que a quantidade de fichas distribuídas em relação ao

tempo gasto no atendimento fazia com que demorasse horas para que os clientes fossem

atendidos. Em determinado momento, uma senhora, aparentando perto dos seus sessenta anos,

começa a reclamar, em voz alta, da demora. Inquieta, dirige-se à porta que dá acesso à área de

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atendimento para olhar o que está acontecendo, no que volta com uma notícia: “Os

funcionários estão lá dentro conversando! É por isso que a gente não é atendido!”. Desta vez

seu comentário provoca tumulto e várias pessoas começam a reclamar. Depois de provocar a

polêmica, ela conclui: “Se tivesse outra empresa de luz não faziam isso!”. Comentários

espalhados concordam com o que ouvem. Os mesmos são interrompidos pelo sinal eletrônico

de que o próximo deve entrar. Curiosamente, depois disto a demora foi menor.

Em outra situação [#18], relativa à percepção de deslealdade da marca, um

torcedor do Sport critica o Santa Cruz por ter destinado um espaço muito pequeno da

arquibancada para a torcida do seu adversário. Segundo ele isto já seria errado pelo fato das

torcidas se equivalerem em tamanho. Como se não bastasse, mesmo com ingressos

comprados, os torcedores do Sport não conseguiam entrar no estádio.

5.7 Confiança na marca

Confiança na marca é outra atividade que identificamos em nossas observações.

Como tal, consideramos apenas situações peculiares de demonstração de confiança e não

qualquer situação em que um falante demonstrasse segurança em sua opinião ou escolha de

uma marca. Esta atividade fica evidente quando uma marca é colocada em xeque ou quando

ao falante é solicitada uma opinião que pressupõe que ele se comprometerá com a indicação.

Nos dois casos, a base de tal confiança é o conhecimento que o consumidor tem da marca.

Como exemplo de uma marca colocada em xeque em que o consumidor

demonstra sua confiança, temos uma situação [#9] em que um homem convida seu genro para

que as famílias saiam para almoçar juntas no restaurante A Traíra aquele domingo, localizado

numa cidade chamada Aliança, a 90km de Recife. Perto de chegar na cidade, sua filha levanta

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a suspeita de se o mesmo estaria aberto, depois de terem rodado tanto. Ele afirma que sim,

uma vez que conhece o restaurante e também que o mesmo é muito conhecido. Ao chegaram

lá, faz questão de reafirmar a certeza que tinha.

Para ilustrar a confiança de alguém numa marca a ponto de “colocar sua mão no

fogo” por ela, podemos citar uma situação [#44] em que, ao ser questionado sobre marcas de

pen drives, um profissional de informática garante que a Creative é melhor “porque a gente já

conhece (...), tá aqui há muito tempo”.

A literatura de marketing, numa perspectiva relacional, apresenta a confiança

como um dos elementos-chave na manutenção dos relacionamentos entre vendedores e

consumidores. Apesar de não termos nenhuma evidência disto, provavelmente porque nossas

observações ocorram apenas entre consumidores, podemos deduzir de nossas investigações

que a confiança numa marca sugere lealdade à mesma, o que também é assumido como uma

das conseqüências dos relacionamentos.

5.8 Conhecimento da marca

Outra atividade que podemos identificar em nossas observações se refere à

demonstração de conhecimento das marcas por parte dos interactantes. Tal conhecimento se

mostra tanto de forma objetiva – relativa a aspectos concretos das marcas – quanto subjetiva –

no sentido de se referir a opiniões pessoais ou de senso comum, sem indicação de referência

abonadora.

Um exemplo do primeiro tipo de conhecimento pode ser demonstrado por meio de

uma situação [#128] em que, durante uma reunião acadêmica de uma faculdade, um dos

assuntos trazidos à pauta se refere à compra de máquinas de costura para o curso de Design de

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Moda da instituição, no que a coordenadora do mesmo justifica a escolha da marca Singer por

esta ter 95% de participação do mercado brasileiro, o que é aceito como garantia de que se

trata da melhor opção.

O segundo tipo podemos exemplificar com uma situação [#56] em que uma

mulher, ao chegar numa loja com seu marido, filha, genro e netos, para escolher uma

geladeira, diz querer uma da Brastemp. Ao passar a vista nas opções e deparar-se com uma da

Continental, diz em alto e bom tom: “Continental nem morta! Só dá problemas!”. No entanto,

não se refere a que problemas seriam estes.

É importante que demos um destaque especial a este tipo de conhecimento, uma

vez que a perspectiva dominante na literatura de marketing, conforme já pudemos discutir,

pressupõe que os consumidores irão buscar informações concretas sobre as marcas, o que

pressuporia seu conhecimento objetivo a respeito das mesmas.

5.9 Constrangimento em relação à marca

Em nossas observações identificamos também situações constrangedoras em

relação às marcas, na qual os interactantes se envolvem. São, fundamentalmente, situações às

quais costumamos chamar de “saia-justa”. Elas ocorrem tanto na dimensão privada quanto na

pública da vida das pessoas.

O exemplo [#22] em que um amigo sugere que o outro, torcedor do Sport, teria

dado aos seus filhos uma bola alusiva ao Santa Cruz pode ser apontado como uma situação de

“saia-justa” na vida privada. Se quisermos um exemplo mais íntimo, podemos recorrer a uma

situação [#15] em que, após ficar frustrada e lamentar-se deveras por não ter conseguido

comprar, por falta de sua numeração, um sapato da Arezzo que vira em promoção na vitrine

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de uma loja da marca, mulher escuta de seu marido a dedução de que ela não houvera gostado

de seu presente de aniversário, um sapato de mesmo estilo, só que da Datelli, uma vez que

nunca fizera comentário parecido em relação à mesma.

Como exemplo de uma situação de “saia-justa” na dimensão pública, temos uma

situação [#102] em que um casal de pernambucanos, após férias de uma semana no Rio,

tomam um táxi para o aeroporto. Acreditando estar sendo gentil, o motorista pergunta de onde

o casal é, se haviam gostado da cidade, a que lugares haviam ido, no que questiona a ausência

de certos passeios na lista, dentre os quais um peculiar: “Não foram na feira dos paraíba,

não?”. A mulher, sem entender a pergunta, questiona a seu marido do que se tratava, no que

ele responde, com indignação, que o taxista se referia à Feira de Costumes Nordestinos Luiz

Gonzaga, que ele mencionara, mas não haviam ido. Antes que ela estranhasse ainda mais,

disse que o termo era porque, no Rio, qualquer nordestino era chamado de “paraíba”, assim

como em São Paulo se referiam a eles como “baianos”.

Além das “saias-justas”, identificamos também auto-denegrição por parte do

falante, com o intuito de atingir terceiros. Na situação que já mencionei [#3] sobre duas

vizinhas conversando a respeito da escolha da escola da filha de uma delas, temos um

exemplo. Antes de concluir que o Colégio Boa Viagem seria uma boa opção, a mãe, em seu

primeiro comentário sobre querer colocar a filha numa escola com piscina olímpica, diz que

“no Santa Maria não dá”, para não fazer feito “uns e outros”, que moram num prédio velho

como aquele e com um carro velho na porta. Sua indireta dirigiu-se a outra vizinha, mas, para

tal, incluiu-se na descrição.

Se formos buscar na literatura de marketing algum aspecto similar ao que

chamamos de constrangimento, este seria um tipo de risco percebido, o social. Contudo, assim

como no caso do conhecimento da marca, tal conceito refere-se à possibilidade de previsão de

uma situação tal, o que não é o caso de nossos exemplos.

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5.10 Defesa da marca

Curiosamente as pessoas também incorrem em atividades de defesa das marcas

em situações em que estas sofrem algum tipo de acusação dos seus interlocutores. Temos aqui

fundamentalmente a defesa de marcas às quais os falantes são usuários envolvidos ou pelo

menos a situações similares ou passíveis de ocorrência com tais marcas, no que podemos

deduzir que se trate de uma defesa, indiretamente, a si mesmo.

O exemplo [#9] que demos de um homem que convida seu genro e família para

almoçarem no restaurante A Traíra também nos serve aqui, uma vez que sua demonstração de

confiança no mesmo passou também por uma defesa à sugestão que o desabonava.

Contudo, observamos também, ao contrário, a defesa de marcas não usadas pelo

falante, em que o mesmo tenha se colocado no lugar de um usuário – no que eu não

desconsidero a possibilidade de se tratar justamente disto, de saber que tal acusação poderia

ser em relação a uma marca de seu uso. Neste caso, tivemos apenas situações relacionadas a

times de futebol, o que pode ser uma justificativa, uma vez que o torcedor sabe que seu time

pode ganhar hoje e perder amanhã. Contudo, tal defesa nunca se configura em relação a times

concorrentes ao do falante, possivelmente pela mesma razão que já discutimos sobre este

aspecto [#113]. Exemplo disto temos numa situação [#43] em que dois colegas de trabalho

conversam sobre como o Ypiranga, time do interior de Pernambuco, havia perdido o turno do

campeonato estadual na última rodada, depois de chegar a esta como líder, perdendo um

pênalti que lhe conferiria o título. Um deles sugere que se tratava de complexo de time

pequeno e o outro defende o mesmo, dizendo que era normal uma pessoa ficar nervosa na

hora de decidir, principalmente em se tratando de um pênalti, no que mencionava

especificamente o jogador responsável pela cobrança da penalidade.

Em sua versão para a disciplina de marketing, a teoria do envolvimento se baseia

em duas variáveis: auto-relevância da marca para o consumidor versus o nível de risco

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percebido na aquisição da mesma. Como podemos ver, em nossas observações apenas o

primeiro destes aspectos parece evidente. Além disto, tal teoria não prevê envolvimento a tal

ponto que haja defesa das marcas pelos consumidores. Talvez por não prever ataques

contumazes por parte da massa consumidora; talvez por considerar apenas seu controle

formal, por meio, sobretudo, de ações de relações públicas; talvez simplesmente pelo fato de

não considerar a possibilidade das marcas fazerem parte, realmente, da vida dos

consumidores.

5.11 Desabono à marca

Se, por um lado, as pessoas defendem as marcas, por outro também as desabonam.

Em nossas investigações, identificamos desabonos em relação a diferentes possibilidades:

aspectos, imagem, comportamento e valor.

Antes de exemplificarmos tais desabonos, é importante que tenhamos duas

questões em mente. A primeira é que não devemos confundir o que estou chamando de

desabono com o lado negativo nem do juízo a respeito da marca nem da opinião sobre a

marca, estas, atividades outras também discutidas neste capítulo. Por desabono tenho em

mente a expressão explícita e espontânea de um falante com o intuito de denunciar alguma

coisa da marca que ele reprova. A opinião, por outro lado, refere-se a uma idéia formulada

sobre uma marca, mas sem tal intuito. Por fim, o juízo também se refere a uma idéia

formulada, contudo, de natureza valorativa.

A segunda questão é a ausência do seu oposto – o que ocorre nas outras duas

situações de atividades do tipo “des” ([des]confiança e [des]conhecimento). Não temos aqui

uma atividade de “abono” às marcas. Não por isto não ocorrer de certa forma, mas por não se

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caracterizar de forma similar ao que chamamos de desabono. Se assim o fosse, deveríamos

considerar a antonímia de “denúncia” ao tomar por abono uma expressão explícita e

espontânea com o intuito de revelar alguma coisa da marca que se aprova. Daí termos

começado esta seção contrapondo esta atividade à defesa da marca, esta sim, conceitualmente,

sua oposta.

Como sabemos, por aspectos aqui tenho em mente atributos e conseqüências de

uso das marcas, como já discutimos na seção sobre esta atividade. Vejamos um exemplo de

cada. Em um diálogo em que dois amigos falam sobre carro [#31], um deles faz elogios ao

Peugeot 206 – d’um qual seu interlocutor é proprietário – e para tal, o compara ao Gol,

dizendo que este quebra muito e que a sorte é o fato de qualquer mecânico saber mexer, no

que mencionou, especificamente, o cabo de embreagem, cuja do carro de seu amigo acabara

de quebrar enquanto ele usava-o emprestado.

Um exemplo de desabono a uma conseqüência de uso pode ser vista numa

situação [#8] em que, durante um diálogo sobre uísque, um dos falantes diz que numa ocasião

em que bebera Wall Street tivera uma ressaca “braba”, no que seu interlocutor e destaca que

isso sempre acontece quando se toma o mesmo associado a outra bebida, principalmente se

esta for doce.

Em relação ao desabono relativo ao que para este caso estou chamando de

imagem, temos algumas variações: expectativas frustradas, associações negativas e,

sobretudo, identificação de que não se trata de uma “marca”.

Do primeiro caso podemos destacar uma situação [#16] em que, ao passar em

frente a uma loja da Chilli Beans, uma mulher, decepcionada, comenta com seu marido: “Igi!

É isso é?”. Ele questiona sua reação e ela diz que esperava algo mais chique. Ele novamente

questiona e ela deixa sugerir que a propaganda da marca que ela havia visto passara outra

idéia.

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Como exemplo de associação negativa para desabono à marca, podemos destacar

uma situação [#25] em que, após se mencionar, numa conversa em grupo, Campari e Martini,

um dos falantes reage dizendo que Deus o livre, que ele não toma “essas coisas”. Com isto

quis sugerir que se tratam de bebidas para mulheres, o que pode ser deduzido devido ao fato

de que a motivação para que tais marcas fossem mencionadas foi seu comentário de que hoje

em dia estava como mulher, para justificar que não gostava mais de uísque.

Quanto ao fato de uma marca não ser reconhecida como tal, vários foram os

casos. Por exemplo, numa situação [#11], ao se deparar com uma vitrine que mostrava uma

sandália da Via Marte em promoção, mulher diz ao seu marido que a mesma se trata de uma

marca boa e que está barata; que a que ela estava calçando já tinha dois anos, tinha sido

apenas um pouco mais barata e “nem de marca era”.

Em relação ao desabono de uma marca devido ao seu comportamento, a já

mencionada situação [#18] em que um torcedor do Sport critica o Santa Cruz por ter

destinado um espaço muito pequeno da arquibancada para a torcida do seu adversário é

elucidativa, uma vez que sua reclamação em relação ao comportamento da marca foi feito

como desabono.

Finalmente, identificamos também situações de desabono da marca em relação ao

seu valor. Diferentemente da noção típica de valor no marketing, em nossas observações não

se tratou de uma análise da relação entre o custo e o benefício da aquisição dos produtos, mas

de um julgamento das marcas pelo seu preço, podendo este ser devido ao preço baixo ou alto.

Um exemplo do primeiro caso pode ser dado pela já mencionada situação [#29] em que uma

mãe questiona a filha sobre se comprar no Atacadão da Papelaria de um shopping não seria

mais caro, o que faz de forma desabonadora à mesma. No sentido contrário podemos destacar

uma situação [#46] em que uma criança pergunta à sua mãe quanto custava a blusa que ela

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estava vendo na C&A e, após a resposta, oferece-lhe emprestado dinheiro de sua mesada para

que ela compre sua blusa numa “loja melhor”.

5.12 Desconfiança da marca

Outra atividade que identificamos em nossas investigações é a desconfiança a

marcas. Isto tem origem por diferentes razões: alguma situação ocorrida com a marca, falta de

conhecimento sobre a marca e falta de notoriedade da marca.

Um exemplo relativo ao primeiro tipo pode ser descrito por uma situação [#91]

em que, durante uma conversa por telefone, um amigo diz ao outro que, assim como ele, ia

viajar e havia comprado passagens Varig, mas que estava com medo de não embarcar. A

situação ocorria durante o período mais crítico da companhia, antes dela ser vendida.

Em relação à falta de conhecimento, no exemplo [#9] em que a família ia para o

restaurante A Traíra, a filha desconfia da possibilidade do restaurante estar aberto justamente

porque ela não o conhecia, nunca havia ido lá, e temia pelo tempo gasto e distância percorrida

para chegar no mesmo.

Quanto à falta de notoriedade, um exemplo pode ser o de uma situação [#33] em

que uma tia pergunta à sobrinha qual é o nome na faculdade que ela havia passado. Ao ter sua

resposta, “Sopece”, diz, preocupada, nunca ter ouvido falar dela, o que a leva a perguntar:

“Tem certeza que é boa?”.

Apesar de oposta à confiança, esta atividade não deve ser considerada na mesma

base daquela. Com a gramática do que chamamos de “desconfiança” evidenciamos mais do

que a oposição daquilo que chamamos de “confiança”, apesar de incluí-la. Se por confiança

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podemos deduzir ter-se razão para crer, por desconfiança não devemos nos limitar a deduzir o

ter-se razão para descrer, mas também o não se ter razão para crer.

5.13 Desconhecimento da marca

Já vimos que o conhecimento das marcas por parte dos interactantes é uma

atividade. Temos agora o desconhecimento. Isto poderia sugerir que estamos aqui falando da

mesma coisa em sua valência negativa. Mas o que temos é uma outra atividade, não apenas

oposta, mas diferente em sua forma. Se o que vemos lá é uma demonstração de conhecimento,

que pode ser objetivo ou subjetivo, o que temos aqui é uma evidenciação de

desconhecimento, que pode se referir a um constrangimento ou a uma denúncia, voluntária ou

não, ou, ainda, ao reconhecimento, por parte de quem conhece, de que a marca seja

desconhecida.

No exemplo que acabamos de discutir sobre a desconfiança da marca sem

notoriedade [#33], temos um exemplo de desconhecimento que ganha ares de denúncia. Na

seqüência da mesma situação, a sobrinha reconhece que a faculdade em questão é pequena e

não faz muita divulgação, daí não ser notória.

Numa outra situação [#7], um dentista é perguntado sobre o anti-séptico bucal da

Crest. Ele nitidamente fica constrangido por nunca ter ouvido falar da marca e sua reação é

perguntar se é novo. Para não parecer que se trate de uma situação relativa apenas ao seu

papel, em outro caso [#17] uma mulher que se aproxima de outras duas que conversavam é

perguntada sobre se conhecia a marca Via Marte, da qual elas falavam. Sua reação primitiva

foi dizer que não, mas, imediatamente hesitar, e dizer que acreditava já ter tido uma sandália

com “aquele nome”.

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Finalmente, para ilustrar um caso de denúncia involuntária, na mencionada

situação [#10] em que o calor que fazia num restaurante faz uma mulher mencionar que

estava pensando em comprar um ventilador, sua tia sugere a marca Mondial, no que a

primeira pergunta ao seu marido se ele conhece tal marca. Sua resposta, de que já ouvira falar,

mas não conhecia bem, é compreendido pela tia de sua mulher como um desabono ostensivo,

o que a leva a defender que a marca é muito boa.

Deve ser considerado aqui um aspecto importante: o desconhecimento de uma

marca faz a mesma não poder fazer parte do chamado conjunto de consideração do

consumidor, segundo a literatura de marketing. Podemos deduzir daí que uma marca

desconhecida para uma pessoa não exista para esta. Contudo, o que vemos é que se

mencionadas por interactantes, elas passam não só a “existir” como a ter importância.

5.14 Diferença em relação à marca

O que chamo de diferença também poderia ser questionado se não caberia na

atividade de comparação. Bem que poderíamos entender a diferença como um tipo de

comparação. Trata-se também de um recurso para se estabelecer conceitos às marcas por meio

de relacionamentos destas com outros signos. A diferença é que aqui a atividade se rege pela

diferença e não pela semelhança, ou, se preferirmos, que a semelhança está na diferença.

Outra diferença é que, ao contrário do que vimos da comparação, todos os signos

aqui são marcários. As diferenças de uma marca são estabelecidas em relação a outras marcas,

a genéricos ou a outras opções de consumo.

No estabelecimento de diferenças entre marcas, podemos separar situações em

que a “comparação” ocorre pela diferença entre marcas de uma mesma classe e de classes

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diferentes, o que fica implícito na fala dos interactantes. Como exemplo do primeiro caso

podemos usar uma situação [#1] em que, numa discussão após fatídica derrota do Náutico

para o Grêmio, após aquele ter perdido dois pênaltis e estar jogando com três homens a mais,

o que custou sua permanência na segunda divisão do campeonato brasileiro, uma torcedora

ofendida diz que podem falar o que quiserem, mas o Náutico é o único hexa, enquanto Santa

Cruz e Sport são apenas penta, se referindo à maior seqüência de títulos estaduais conquistada

por cada time.

Do já mencionado exemplo [#2] em que mulher aponta o Português como um

hospital melhor para se trabalhar, podemos demonstrar a diferença entre marcas de diferentes

classes e em relação a “genéricos” de mesma categoria, quando a falante afirma que “Tudo

bem que um IMIP e até uma Restauração a gente sabe que tem médicos bons, apesar dos

pesares... mas um posto de saúde... no Ibura?”.

Comentário similar em sua premissa foi feito por uma falante ao dizer à sua

interlocutora que, enquanto sua cunhada havia presenteado no Natal seu marido com uma

camisa e uma calça da Diesel, tinha ganho apenas um “livrinho”. Nesta situação [#4] temos

um exemplo relativo à diferença estabelecida entre uma marca e outra opção de consumo.

Assim como acontece com a comparação, a diferenciação também é apontada pela

literatura de marketing como um dos aspectos definidores do posicionamento de uma marca.

O mesmo comentário que fizemos na ocasião tem validade também aqui.

5.15 Dissimulação em relação à marca

A atividade de dissimulação em relação à marca aparece, em nossas investigações,

como sugestividade de um falante de que seu interlocutor esteja renegando uma marca que

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usa ou já usou. Apesar de poder sugerir similaridade com outras duas atividades, adesão a

outra marca e rejeição à marca, se trata aqui da sugestão, não reconhecida, de que alguém

renegue uma marca, enquanto, no primeiro caso, de uma sugestão, negada, de troca de

preferência de marca e, no segundo, da rejeição explícita do consumidor a uma marca.

Como exemplo podemos demonstrar uma situação [#23] em que, após falar mal

de cachaça, uma falante é questionada pelo seu interlocutor, que insistia com seu marido para

que este tomasse um trago com ele, enquanto ela tentava dissuadi-lo da idéia, se ela não bebia

51, no que ela não confirma nem nega.

Esta não se trata de uma atividade prevista na literatura de marketing, talvez por

esta não prever tamanha ambigüidade. Por outro lado, ela é sugestiva da idéia de diferentes

“eus” no consumo, no que, talvez, o máximo de coerência que possamos esperar de um

consumidor seja em relação a cada contexto, possivelmente em diferentes formas de vida.

5.16 Envolvimento com a marca

Por envolvimento me alinho aqui à noção comumente utilizada na literatura de

marketing que a define como proporcional ao nível de auto-relevância que algo tem para uma

pessoa. Assim, a atividade a que me refiro é a demonstração de relevância de uma marca para

alguém.

Um exemplo de envolvimento com a marca pode ser evidenciado numa situação

[#38] em que um falante está conversando com seu interlocutor sobre o Peugeot 206, do qual

ambos são proprietários e começa a questioná-lo acerca de “probleminhas típicos” do carro,

no que começa a relatar a seta, a calibragem do pneu, a suspensão, o marcador de

combustível. Seu interlocutor diz nunca ter notado a maioria desses problemas. É quando ele

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menciona que existem listas de discussões e até comunidades no Orkut, das quais ele faz

parte, só para discutir este tipo de coisa.

Quando apresentamos a atividade de defesa da marca terminamos por já discutir

aspectos relacionados ao envolvimento com as marcas. As reflexões que ali articulamos

mantêm-se válidas aqui.

5.17 Escolha da marca

A escolha da marca foi outra atividade muito observada em nossas investigações.

Não se trata aqui necessariamente da compra de um produto de dada marca, mas, antes, da

opção por uma marca. Ela aparece nas interações de várias formas: definida por aspectos da

marca, por influência de grupo, por sentimento de valorização social ou por falta de opção.

Além disto, temos também justificativas dos consumidores ou apoio de interlocutores por suas

escolhas.

Dentre a escolha por aspectos da marca, podemos exemplificar situações baseadas

tanto em atributos quanto em conseqüências de uso. Duas mulheres conversam [#5] e uma

delas, recém-separada, diz à outra que havia ganho um biquíni da Água de Coco de sua sogra

e que iria usá-lo e não o que já tinha, quando fosse a Porto de Galinhas: “Ele é muito mais

bonito, muito melhor do que aquele que comprei no Hiper. É lindo, bem pequeninho... Vou

arrasar em Porto!”. Vemos, nesta fala, a expressão de atributos tanto concreto (pequenininho)

quanto abstratos (bonito, lindo), bem como uma conseqüência de uso psicológica (possibilitar

seu “arraso”).

Sobre a escolha influenciada por um grupo podemos exemplificar uma situação

[#68] em que, num debate em sala de aula de um curso de Administração, discute-se que a

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Puma era desconhecida, mas de repente ficou famosa. É quando um dos alunos diz que de

uma hora pra outra todos os seus amigos passaram a usar a marca e então ele também.

A escolha também ocorre devido à valorização que o consumidor percebe por

meio de uma marca. Exemplo disto temos numa situação [#122] em que, após uma reunião de

trabalho, a secretária do escritório pede o e-mail de um dos participantes, para quem deveria

enviar um arquivo. Após ele dizer, ela pergunta se o mesmo não tem o “br”. Outro

participante diz que o Google só tem sem br. O primeiro diz que não, que já tem com br, é que

o seu “é dos primeiros, da época que tinha que ter convite”.

Outro caso de escolha se mostra por falta de opção. Estavam dois casais num bar

[#40] e começam a discutir sobre a programação do carnaval. Uma delas pergunta,

sugestivamente, se o outro casal iria para o Galo da Madrugada, no que estes afirmam

positivamente. No entanto, para sua decepção, seu namorado rejeita tal opção. Depois disto, o

homem do outro casal menciona que as prévias do Bloco da Saudade deveriam estar muito

boas. Ao perceber a reação agora positiva de seu namorado, aquela que ficara decepcionada

pela perspectiva de não ir ao Galo novamente anima-se e sugere: “Então podemos ir!”.

Mas as pessoas também se encontram em situações de entenderem que devem

justificar suas escolhas, o que ocorre pelo fornecimento de garantias tanto objetivas quanto

subjetivas. Um exemplo disto pode ser demonstrado por meio de uma situação já mencionada

[#128] em que, durante reunião acadêmica de uma faculdade, coordenadora justifica compra

de máquinas de costura Singer para o curso de Design de Moda da instituição pelo o fato

desta marca ter 95% de participação do mercado brasileiro, o que é aceito como garantia de

que se trata da melhor opção. Para não parecer que se trata apenas de uma situação de

justificativa profissional – daí, provavelmente, o argumento objetivo –, temos outro exemplo

[#9], também já mencionado, em que homem convence sua família a rodar 90km para comer

traíra numa cidade do interior. Após ter sua sugestão questionada durante o caminho,

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justifica-se, ao chegar no restaurante, mostrando os carros à porta do mesmo e destacando que

são de Recife – o que sugere, portanto, que, assim como eles, haviam se deslocado da mesma

distância.

Finalmente, temos também situações em que a escolha de uma marca é apoiada

pelo interlocutor. Como exemplo podemos demonstrar uma situação [#21] em que um falante

comenta com seu interlocutor, um tanto chateado, que comprara um aparelho de DVD que já

havia quebrado duas vezes. Seu interlocutor pergunta de que marca se trata e, com a resposta,

afirma que a Semp Toshiba “É a melhor que tem”.

Diferentemente da premissa que o marketing propaga, não temos aqui nenhuma

evidência de processo cognitivo na decisão dos consumidores. Não vemos a lógica utilitarista

– mesmo em relação à escolha com base nos aspectos das marcas – da racionalidade técnica

presente naquela teoria.

5.18 Expectativa em relação à marca

Em suas interações, as pessoas também expressam certas expectativas em relação

às marcas. Não me refiro aqui ao tipo de expectativa funcional sugerida pela teoria da

satisfação, que pressupõe uma definição, por parte do consumidor, do que ele pode esperar de

um produto para satisfazer suas “necessidades”, mas de uma antecipação deste acerca do que

a marca poderá significar para ele.

Um exemplo disto pode ser demonstrado por uma situação que já mencionei duas

vezes [#3], em que duas vizinhas conversam sobre a escolha da escola da filha de uma delas.

Em sua fala esta mãe diz que no Colégio Boa Viagem todo mundo saberia quem é sua filha.

Numa outra situação [#57] um falante pergunta a seu interlocutor, antes de irem para uma

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festa de carnaval, se o Taffman-E é um energético, pois seu sogro o havia indicado como

sendo bom antes de beber. E justifica: “Esses dias fiquei muito cansado”.

5.19 Forma de uso da marca

As pessoas também tratam da atividade relativa à forma de uso da marca em suas

interações. Observamos, em nossas investigações, duas variedades de tal atividade: por meio

de demonstração e pelo que chamo de “indicação posológica”.

Em relação ao primeiro tipo, podemos mencionar uma situação [#23] em que,

para caracterizar como acha a 51 suave, falante faz movimento com a mão, levando-a à boca

lentamente, demonstrando como degusta a bebida.

Em relação ao que chamo de “indicação posológica”, temos exemplos diversos,

em que uma “denotação” do termo se mostra apenas como uma das possibilidades. Neste

caso, temos uma situação [#7], já mencionada, em que um dentista é perguntado sobre anti-

sépticos. Antes da menção do seu interlocutor à marca Crest, este havia lhe perguntado a

freqüência de uso de tal produto, no que o dentista afirmou que poderia ser diário.

Temos, no entanto, outras duas “indicações posológicas” do uso das marcas.

Ambas se referem à combinação destas com outros elementos, no que as diferencio pelo fato

de um ser sígnico. Em relação ao primeiro destes casos, podemos demonstrar uma situação

[#45] em que uma mãe pergunta ao filho o que ele havia lanchado na escola aquele dia, no

que ele responde “uma empada Bragança”. Com sua resposta, ela questiona: “Ôxi, só a

empada Bragança, purinha, por que?”, estranhando o fato dele não ter bebido nada. Em

relação ao outro caso, temos uma situação [#62] em que duas alunas de uma faculdade

conversam no corredor e uma pergunta à outra se ela havia visto uma terceira aluna com uma

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camisa da Diesel, no que faz questão de destacar que a mesma é caríssima. A resposta de sua

interlocutora é positiva e questiona como é que se pode usar uma camisa da Diesel com uma

calça daquela, “que nem é de marca”.

5.20 Frustração em relação à marca

Consumidores também demonstram frustrações em relação às marcas. Isto

poderia sugerir relação à teoria da satisfação conforme definida pelo marketing, levando à

conclusão de insatisfação com a marca. Contudo, o que chamamos de frustração aqui vai além

do não ajuste entre expectativa e percepção de desempenho das marcas. Refere-se a um

sentimento de decepção que, muitas vezes, não passam por marcas escolhidas ou sequer

consumidas, quiçá de seu desempenho “real”. Estas ocorrem por várias razões:

impossibilidade de ter a marca, expectativa não confirmada, submissão à escolha coletiva,

fraqueza ou comportamento da marca.

Em relação à impossibilidade de se ter a marca, tivemos duas situações: uma que

se demonstrou como impossibilidade circunstancial e outra como impossibilidade definitiva.

O primeiro caso pode ser ilustrado por uma situação [#15] já mencionada em que, após ver na

vitrine de uma loja Arezzo num shopping um sapato em promoção, transeunte entra na loja e,

após solicitar uma, tem a resposta de que não há numeração de tal modelo para ela. Sua

reação é não parar de se lamentar, o que ocorreria por dias [#30].

Como exemplo do segundo caso, podemos demonstrar uma situação [#33] em que

uma mulher fala mal da faculdade em que sua interlocutora estuda, a Sopece, o que expande

para faculdades particulares como um todo. Ao fim, sua mãe, que não acompanhara todo o

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diálogo, a pergunta por que ela não faz uma faculdade, no que ela, de forma histérica,

esbraveja: “Como? Pague pra mim, pague!”.

Quanto a uma expectativa não confirmada em relação a uma marca temos também

duas situações distintas: uma relativa a como se espera que uma marca seja em certo aspecto,

mas ela não é, e outra relativa a uma imagem que se tem da marca que não é confirmada. Para

ilustrar o primeiro caso, podemos utilizar uma situação [#116] ocorrida em um supermercado

em que as filas estavam grandes e demoradas. Como se não bastasse, apenas depois de muito

tempo em uma das filas, alguns consumidores são informados pela caixa que aquela é de

prioridade para idosos e gestantes. A reação de um homem que estava na fila ao lado foi

comentar para outro: “Vôte! Esse Bompreço tá muito esculhambado!”.

O segundo caso pode ser exemplificado pela situação [#16] já mencionada em que

uma transeunte se decepciona ao passar pela frente de uma loja da Chilli Beans e comenta que

esperava algo mais chique.

Também de uma situação [#40] já mencionada podemos tirar um exemplo de

frustração de alguém por se submeter a uma marca escolhida coletivamente. Quando dois

casais, à mesa de um bar, discutem para onde ir durante o carnaval, a escolha das prévias do

Bloco da Saudade é posta como opção comum, mas não sem antes uma das mulheres

comentar que não gostava muito e preferia “alguma coisa mais agitada”.

Temos também casos de frustração por alguma fraqueza da marca: alguma

inferioridade circunstancial de uma marca em relação a outra ou alguma falha assumida como

irreparável. O primeiro caso ocorre apenas em relação a times de futebol. Enquanto um casal

de turistas ia de táxi para o aeroporto internacional do Rio de Janeiro [#101], o taxista pede

licença para aumentar o rádio para ouvir as notícias do futebol, o que dá origem a um diálogo

entre este e o passageiro, em torno do fato de três times cariocas estarem nas semifinais da

Copa do Brasil, no que este último diz acreditar que será o Fluminense o campeão.

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Orgulhoso, o taxista declara-se torcedor do time, reconhece que o momento lhe é mais

propício, mas reclama do mesmo ter azar quando joga com o Vasco, seu adversário da

semifinal.

Como exemplo do segundo caso podemos apontar situação [#75] em que dois

professores de um curso de Publicidade & Propaganda se encontram na sala dos professores e

um deles comenta que o outro está com uma cara ótima, no que este reconhece que sim,

dizendo ter recebido naquele dia a notícia de que teve dois artigos aprovados no EMA.

Aquele pergunta do que se trata e quando o outro lhe explica que é um encontro bienal de

Marketing organizado pela ANPAD, pede mais informações sobre o processo e a realização

do evento, no que o considera muito organizado. A reação do primeiro é dizer que o preço é

muito alto para tal, enquanto o primeiro conclui que é bem diferente da Intercom – um evento

da área de comunicação –: “A Intercom é uma zona!”.

Finalmente, um exemplo de frustração devido a um comportamento da marca

pode ser demonstrado em relação à NFL – a liga de futebol americano – e aos Rolling Stones,

em situação [#41] já mencionada em que, após anunciar show daquela banda no intervalo do

Super Bowl, o jogo decisivo do campeonato, a mesma só tivera tempo de tocar três músicas.

5.21 Gafe em relação à marca

As pessoas também cometem gafes em relação às marcas. Em nossas observações,

identificamos duas variações delas: algum equívoco em relação a uma marca e algum

comentário sobre uma marca que afete o outro.

Quanto a equívocos em relação a marcas, temos de dois tipos. O primeiro se

refere à confusão de uma marca com outra. Por exemplo, em meio a uma reunião de

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coordenadores de uma faculdade [#127], uma delas, do núcleo de moda, menciona um evento

patrocinado pela Dupé. Uma outra, pertencente ao mesmo núcleo, assustada, repreende:

“Dupé?”. Sem graça, a primeira corrige: “Havaianas” e todos riem.

O segundo tipo de equívoco é em relação a um erro no nome da marca. Dois

colegas de trabalho compartilham provisoriamente a mesma sala [#42] e um, para puxar

conversa, comenta que havia assistido ao primeiro episódio de Lost, que estreara na noite

anterior na Rede Globo. Para alimentar a conversa, ele responde: “Lots? E aí?”. Seu

interlocutor corrige: “Lost. Lots não”. Para desconversar, aquele confirma: “Lost, né?” e

pergunta o que significa a palavra.

Em relação a comentários sobre marcas que afetem o interlocutor, temos também

dois tipos. O primeiro se refere a algum comentário que exponha a escolha de consumo do

interlocutor. Por exemplo, estavam duas vizinhas conversando [#84] e uma menciona que seu

ex-marido a havia dito para fazer a feira no mercadinho do bairro. “Eu não, só compro no

Hiper. Só dou do bom e do melhor pros meus filhos”, disse ela, num tom mais alto,

reproduzindo a resposta que o havia dado. Sua interlocutora, um tanto atônita, disse que fazia

sua feira naquele mercadinho. Sem graça, seu comentário não passa de um “É?!”.

O segundo tipo se refere a comentários em que uma característica da pessoa é

negativamente exposta ao se falar de uma marca. A já mencionada situação [#102] em que um

taxista, no Rio de Janeiro, pergunta a um casal de pernambucanos se eles haviam ido para a

“feira dos paraíba” serve de exemplo para este caso.

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5.22 Inadequação do usuário à marca

Se uma das atividades marcárias que identificamos é a caracterização dos usuários

das marcas feita pelos interactantes, tivemos também a indicação de que certos usuários são

inadequados para certas marcas. Tal avaliação ocorre por aspectos sócio-econômicos,

comportamentais e até intelectuais.

Um exemplo sócio-econômico pode ser evidenciado numa situação [#24] em que

um falante narra um carnaval em que bebeu, numa única noite, uma garrafa inteira de Johnny

Walker e no outro dia amanhecera “bonzinho”. Um de seus interlocutores comenta que já

havia tomado muito Johnny Walker com um finado amigo, que “só trazia do preto”. O

primeiro reconhece que o preto é melhor que o vermelho, mas que custa o dobro, sugerindo

que o mesmo está fora do alcance do seu interlocutor.

No caso de inadequação comportamental, a já mencionada situação [#62] em que

duas alunas recriminam o fato de uma terceira usar uma camisa da Diesel com uma calça que,

em sua percepção, não é de marca, nos serve como exemplo, uma vez que sugere que a

mesma não conhece de moda o necessário para usar tal marca.

Finalmente, em relação à sugestão de inadequação intelectual, todos os casos

foram relativos a faculdades. Para ilustrar, podemos destacar uma situação [#28] em que, ao

mencionar empolgada que um amigo de infância de seu filho passara em Direito, falante ouve

sua interlocutora dizer: “Mas não foi na Federal não... (...) Foi numa particular não foi?”,

sugerindo que o mesmo não teria condições de passar naquela universidade.

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5.23 Incoerência em relação à marca

Uma atividade curiosa identificada em nossas observações é a incorrência de

alguém em alguma incoerência para justificar a marca escolhida. Aqui todos os casos se

referem a prestadores de serviço. Por exemplo, após consulta do filho em uma emergência

[#12] casal comenta que não havia sentido segurança na médica, o que acontecia também em

relação à pediatra dele. Com isto, o marido lembra que ambos haviam gostado muito da

médica que os atendera na última vez que haviam precisado ir a uma emergência e sugere à

mulher que verifique se a mesma atende em ambulatório, para que troquem a pediatra do

filho. Ela diz que seria chato, uma vez que aquela médica também é sua cardiologista. Ele diz

que não têm obrigação nenhuma com a médica em questão. É quando sua mulher diz que não

havia gostado muito da outra e defende que a que os tem atendido “é boa sim”.

Mais uma vez nos deparamos com uma atividade implicada à ambigüidade dos

consumidores, o que é pouco discutido pela literatura de marketing como um todo e

totalmente desconsiderada pelo seu establishment.

5.24 Interesse pela marca

Outra atividade identificada em nossas investigações é a demonstração espontânea

de interesse por uma marca. Curiosamente, isto ocorre apenas em situações em que, explícita

ou implicitamente, a marca endereçada pelo interesse, não é a opção prioritária. Vejamos

exemplos que ilustrem estes casos. Na situação [#15] já mencionada em que uma mulher

frustra-se por não conseguir seu número de um sapato da Arezzo em promoção, a mesma,

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subitamente, diz: “A Datelli!”, ao passar na frente de uma loja daquela marca, o que a leva a

entrar na mesma e procurar um outro sapato.

Em outra situação [#121] grupo de três jovens vão à seção de bebidas de um

supermercado durante uma promoção de queijos e vinhos. Após olhar e degustar várias

opções, uma dentre eles dispara, em frente à gôndola dos brasileiros: “Chalise! Chalise é bom

e barato”.

Podemos interpretar estas situações sob a ótica da noção de dissonância cognitiva,

cuja uma de suas premissas é de que os consumidores, na iminência de não poderem atingir

seus objetivos de consumo redefinem os mesmos. A diferença aqui talvez seja o fato de não

estarmos falando de “objetivos” propriamente. Em todos os casos observados em nossas

investigações temos situações originárias de impulsos, em que a nova opção parece uma

alternativa para não se “perder a viagem”.

5.25 Intimidade com a marca

As pessoas também demonstram intimidade com as marcas. Em nossas

investigações esta atividade refere-se a uma relação de participação na rede da marca,

reconhecimento por uma marca ou nostalgia em relação a uma marca.

Um mesmo exemplo serve para demonstrar os dois primeiros tipos. Numa

situação [#14] já mencionada, após relatar sua saga para comprar um chicote de embreagem

para seu carro, falante conclui dizendo que deixou a instalação para fazer em outro lugar, “a

Intermares”, pois na concessionária é muito caro. Seu interlocutor disse que não conhecia a

mesma e ele comentou que é de um tio seu. O outro comenta que precisa fazer um serviço e

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também está evitando a concessionária, no que o primeiro disse que lhe daria o endereço, que

eles trabalham bem “e sabendo que você é meu amigo...”.

Para ilustrar o último caso, temos uma situação [#66] em que um casal estava na

sala assistindo na ESPN Brasil o programa “Na Pegada dos Campeões”, sobre os craques da

Seleção Brasileira. Num determinado momento, aparecem Roberto Carlos e Robinho fazendo

a gravação de um comercial em que jogam um videogame de futebol, que ele reconhece como

sendo da FIFA. Sua mulher, que há algum tempo falava em comprar um videogame pra casa,

aproveita para lembrá-lo e comenta que quando era pequena jogava muito “Mário e Luigi”, no

que ele corrige: “Super Mario Bros!”. Um tanto irritada, ela diz que chama como quiser; que

“era assim que eu chamava quando eu era criança...”.

5.26 Juízo a respeito da marca

Uma atividade bastante constante em nossas observações é a atribuição de juízos a

respeito das marcas. Por juízo tenho aqui em mente a idéia que as pessoas inferem acerca das

marcas com base em crenças e valores de suas formas de vida. E eles são vários e dos mais

variados, tanto positivos quanto negativos.

Então eu estou me referindo a atitudes, alguém pode achar. Sim, mas não apenas.

As atitudes poderiam ser incluídas como tipos de juízos, mas não apenas elas. Até porque, em

marketing, as atitudes assumem uma lógica única de predisposição ou “antidisposição” ao

consumo de alguma marca.

Então, estaríamos incluindo também avaliações sobre as marcas, poderia ser outra

conclusão. Mais uma vez eu diria que avaliações caberiam aqui como tipos de juízo, mas não

apenas elas. E mais: não seria num sentido definido pela disciplina que chamamos de

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comportamento do consumidor, em que estas seriam resultantes de um processo ativo de

busca de informações.

Mas também poderiam ser opiniões – mas não no sentido destas como atividades

expressas na interação, como se verá, e sim como concepções mais ou menos definidas sobre

as marcas. Para inferir juízos as pessoas não precisam estar interessadas no consumo de certas

marcas. As pessoas julgam as marcas na vida cotidiana assim como o fazem em relação às

pessoas, às instituições, a outros povos etc.

Juízos positivos e negativos advêm de inferências acerca de várias características

das marcas. Alguns deles são comuns, outros não. Aspectos das marcas, características dos

usuários, notoriedade (ou falta de), comportamentos das marcas, valor e diferenças entre

marcas são características que possibilitam ambos tipos de juízos. Desempenho e

ordinariedade da marca são propiciadores de juízos negativos, enquanto “ser de marca”,

referência dos outros, alternativa à marca preferida, beleza, identificação, tempo e

comparações são de juízos positivos.

Comecemos pelas características comuns. Quanto aos aspectos da marca gerando

juízos negativos, identificamos casos relacionados a atributos abstratos e conseqüências

funcionais. Em relação ao primeiro caso temos menções a dificuldade de reparo do produto,

ser uma marca “pirata”, ser uma imitação de outra marca ou ser de fácil aquisição ou acesso,

como fica evidente quando uma falante diz que sua interlocutora só passou na Sopece porque

em faculdade particular “todo mundo passa” [#33]. Em relação à conseqüência funcional,

trata-se da marca não cumprir com o esperado ou propiciar um resultado desagradável, como

a constatação de um falante de que Wall Street, quando tomado em associação com outra

bebida, dá ressaca [#8].

Em relação aos aspectos da marca gerando juízos positivos, tivemos de todos os

tipos. Uma mulher indica para sua sobrinha [#32] um ventilador Arno que está em promoção

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e diz que já comprou o seu, no que destaca uma das razões: “Desse tamanho!”, demonstrando

com as mãos aquele atributo concreto. Como atributo abstrato podemos citar uma situação

[#31] em que um homem falando bem do Peugeot e mal do Gol reconhece que este tem seu

lado bom: “Tem valor de mercado, se você for com um na esquina, vende”. Em outra situação

[#79] um professor está tossindo muito durante sua aula, o que o deixava irritado. Em certo

momento uma aluna não resiste e pergunta se ele já havia tomado Gotas Binelli. “Quando

estou assim, só consigo dormir com ela. Você toma e para de tossir”, evidenciando uma

conseqüência funcional. Como conseqüência psicológica podemos mencionar situação [#34]

em que um professor provoca um debate em torno da lógica do consumo, argumentando que

cabe à publicidade diferenciar produtos e marcas que são quase sempre indiferenciados. Para

provocar a participação dos alunos, pergunta se existe diferença real entre marcas como Nike

e Mizuno. As respostas foram que sim, diferenças existiam, mas não expressaram quais. O

professor insiste: “Então podemos apontar uma melhor?”. “Nike! Eu uso Nike. Ela é melhor,

sim”, responde um aluno. O professor pergunta por quê. “Ah... porque é mais bolada!”,

responde como quem diz uma obviedade, tendo em mente o que em “meu tempo” seria

“transada”.

Em relação às características dos usuários das marcas, identificamos apenas o

fator sócio-econômico gerando juízo positivo, enquanto juízos negativos advêm de fatores de

natureza cultural, sócio-econômica e sexistas. Comecemos pelo primeiro. Duas amigas da

mesma faculdade se encontram no corredor assim que chegam e uma delas estava com uma

sacola da loja Renaissance [#45], no que a outra comenta: “Sacola da Renaissance, humm...”.

Sua interlocutora responde que precisava de uma sacola e encontrou aquela; que a ex-mulher

do marido só comprava as coisas pra casa lá, diz ela fazendo um ar esnobe, como quem imita

a mencionada pessoa.

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Quanto aos juízos negativos, a menção do taxista carioca à “feira dos paraíba”

[#102] demonstra juízo com base em preconceito em relação ao povo nordestino. Como

exemplo de característica sócio-econômica, podemos mencionar situação [#1] em que, acuada

pelas acusações do fracasso do seu time, torcedora do Náutico esbraveja que “hexa é luxo”,

bordão do time que se refere à maior e exclusiva seqüência de títulos estaduais obtido, mas

que também é sugestivo de que os torcedores dos seus rivais são de classes inferiores. Em

relação ao sexismo, podemos mencionar situações – a serem mais bem tratadas quando da

demonstração de preconceito relacionado às marcas – em que marcas são definidas como

“coisa de mulher” [#26] ou “de veado” [#65].

Quanto à notoriedade, ela gera juízo positivo. Para ilustrar temos uma situação

[#30] em que, depois de marido, que presenteara mulher com sapato da Datelli e sugerira que

ela não houvera gostado por não reagir à mesma como reagira à Arezzo quando tentou

comprar um sapato da marca, mostrar a ela que a Datelli é mais cara, ela diz que pode ser,

“mas a Arezzo é mais conhecida...”.

Por outro lado, falta de notoriedade gera juízo negativo. Podemos exemplificar

isto com uma situação [#114] em que duas mulheres conversam na longa fila de um

mercadinho enquanto demoram para passar seus produtos no caixa e uma delas menciona que

o outro, referindo-se a um que fica a dois quarteirões, deveria estar sem aquela fila. A resposta

de sua interlocutora é de uma concordância recriminadora, afirmando que lá “é sempre tão

vazio...”.

O comportamento das marcas é mais um critério de inferência de juízo tanto

positivo quanto negativo. Este último caso podemos ver quando um consumidor deduz que o

Bompreço “tá muito esculhambado”, por ter ficado muito tempo na fila de idosos sem ser

informado de que se tratava de uma exclusiva para tal fim e ter que se dirigir para outra

[#116], ou quando um torcedor deduz “sacanagem” do Santa Cruz por ter disponibilizado

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uma quantidade muito pequena de ingressos para a torcida do Sport, que “é pau a pau” com a

daquele time [#18].

Como gerador de juízo positivo, por sua vez, podemos mencionar a já citada

situação [#51] em que Bob Wolfenson, precavidamente, fotografa Naomi Campbell com

câmera analógica, apesar de ter acabado de comprar uma digital de última geração, mas que

ele ainda não dominava.

Outro critério de inferência de juízo tanto positivo quanto negativo é o valor. O

exemplo mais direto deste aspecto no juízo positivo de uma marca está numa situação [#120]

em que dois colegas que já haviam trabalhado juntos se encontram num supermercado. Um

deles pergunta pela família e o outro responde que seus filhos trocaram de escola; que ele

havia tido problemas com o diretor da escola em que eles estudavam e, numa discussão, disse

a este que seus filhos não ficariam ali, que iriam para o melhor colégio, o Santa Maria, e que,

à reação daquele, perguntou-lhe qual era o mais caro, no que se antecipou à resposta: “Só

pode ser o melhor”.

Quanto ao valor gerando juízo negativo, uma situação já mencionada [#10] nos

serve de exemplo. Uma criança oferece dinheiro de sua mesada emprestado à mãe para que

ela compre uma blusa “numa loja melhor” assim que teve a resposta da mesma de quanto

custava aquela que ela estava olhando na C&A.

Finalmente, um mesmo exemplo nos serve para demonstrar inferência de juízo

tanto positivo quanto negativo pela demonstração de diferenças entre marcas. Em situação

[#2] também já mencionada, uma mulher sugere que “as condições são outras” para quem

trabalha no Hospital Português em relação a alguns públicos (nomeadamente, IMIP e

Restauração). Assim, temos que o mesmo juízo que é negativo em relação aos hospitais

públicos é positivo em relação ao Hospital Português.

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Quanto às características não comuns, comecemos por aquelas que levam ao juízo

negativo. O desempenho é uma delas. Este poderia ser confundido com conseqüências

funcionais. Entretanto, aqui não estamos nos referindo à conseqüência de uso. Podemos

diferenciar situações objetivas daquelas mais subjetivas. Para o primeiro caso podemos citar

como exemplo uma situação [#57] em que um consumidor toma Taffman-E esperando que

este o deixe mais energizado, mas isto não ocorre, no que ele reclama, dizendo que ficou

ainda com mais sono. Para o segundo caso, podemos destacar situação em que o Náutico é

acusado por uma falante de que “sempre morre na praia”, indicando seu fracasso, após derrota

desastrosa para o Grêmio [#1].

Finalmente, o que estou chamando de ordinariedade refere-se à percepção de que

a marca seja comum. Temos aqui situações de marcas que não são reconhecidas como sendo

“de marca” e outras que, apesar de serem reconhecidas como “de marca”, são tidas como

muito simples para tal. Como exemplo deste último caso, podemos destacar a situação [#16]

em que, ao se deparar com uma loja da Chilli Beans, falante surpreende-se e pergunta: “Igi! É

isso é?”, frustrada com a simplicidade do que encontrara. O segundo caso pode ser

exemplificado pela situação [#11] já mencionada em que, ao comparar sandália da Via Marte

com a que está calçada, falante deduz que a daquela marca está barata, uma vez estar pouco

mais cara do que tivera sido aquela em seus pés, que “nem é de marca”.

Este mesmo exemplo [#11] nos serve para ilustrar como uma marca ser percebida

como “de marca” leve a um juízo positivo, uma vez que a afirmação de que a sandália que

calçava “não era de marca” pressupõe a assunção de que a Via Marte é.

Chegamos agora às características não comuns que geram juízo positivo. Este

também pode ser atribuído pela avaliação de que dada marca é uma boa alternativa para

quando não se conseguir a preferida. O exemplo da situação [#15] em que mulher, após ficar

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frustrada, por não conseguir encontrar um sapato da Arezzo do seu tamanho, encanta-se com

a possibilidade de encontrar uma da Datelli, nos é elucidativo.

Os outros também servem como referência para o juízo positivo das marcas. Isto

ocorre por duas situações: a opinião expressa e o comportamento demonstrado por terceiros.

No primeiro caso, temos uma situação [#12] em que mulher corrobora competência da

pediatra de seu filho, Dra. Elza, graças a comentário feito por sua ginecologista. O segundo

caso pode ser evidenciado por uma situação [#39] em que falante, que não bebe, diz que

escolhera Skol para servir em seu noivado porque tem notado que é a preferência da maioria

dos seus familiares e amigos.

A noção estética de beleza também influencia no juízo positivo. Exemplo disto

pode ser tirado de uma situação [#123] em que, recebendo executivos de uma instituição de

ensino interessada em adquirir computadores, diretor comercial de empresa ao mostrar os

computadores MacIntosh comenta: “Já pensou no laboratório só com Mac? É outra coisa...”,

referindo-se naquele instante não à qualidade dos mesmos, mas ao charme que dariam ao

ambiente. Para não parecer que se trata apenas de um argumento de venda, podemos

exemplificar também com uma situação [#5] já mencionada em que o encanto de uma mulher

pelo seu novo biquíni da Água de Coco ocorre por este ser “lindo, bem pequenininho”.

Identificar-se com a marca é outra razão para se inferir um juízo positivo acerca

da mesma. Temos o exemplo [#42] de um profissional de informática que comenta o quanto

gosta da série 24 Horas por tudo na história ser informatizado e menciona a configuração dos

computadores e a responsável por esse trabalho, que é simpática, mas é quem dá as ordens.

O tempo também é um fator determinante no juízo positivo inferido às marcas.

Em uma situação [#56] em que uma mulher escolhia uma geladeira, o vendedor argumenta

que a Electrolux é boa porque é “a antiga Prosdócimo”. Mais uma vez para não parecer que se

trata apenas de um argumento de venda, podemos demonstrar uma situação [#33] em que, ao

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ter credibilidade da faculdade em que estuda questionada por sua tia, sobrinha argumenta que

a mesma é pouco divulgada, “mas tem tradição”.

Finalmente, em relação à comparação, um exemplo está na situação [#17] em que

uma mulher define a Via Marte como uma marca boa e ilustra isto dizendo que era ela

concorrente da Azaléia, assumindo um juízo positivo a ambas.

5.27 Lembrança da marca

Em certas situações as pessoas lembram-se de certas marcas. Ora, isto pode

parecer comum. Afinal, como poderiam as pessoas falar das marcas se delas não se

lembrassem? Só que em determinadas circunstâncias as pessoas esforçam-se, por alguma

razão, a se lembrarem de certas marcas. É a esta atividade que me refiro por “lembrança da

marca”, quando a mesma não ocorre espontânea e, portanto, naturalmente. Portanto, não

estamos aqui tratando do que ficou conhecido como recall de marca, que se refere à

lembrança espontânea da marca mais lembrada num dado segmento concorrencial.

Em nossas observações tal atividade ocorre por conta de alguém estar

participando de um diálogo, lhe ocorrer uma marca que caberia no contexto do mesmo, mas

seu nome lhe escapar. Nestas situações, as pessoas assumem uma de duas opções: buscam

pistas com o interlocutor ou dão continuidade ao diálogo enquanto tentam se lembrar.

O primeiro caso pode ser ilustrado com uma situação [#19] em que, após um

falante pedir opinião a um amigo seu, caminhoneiro, sobre pneus, este começa a fazer

perguntas tais como: “É importado ou é aquele... como é?” e “Mas é... dizem que é semi-

novo, é?”, até lhe ocorrer o nome e ele cortar seu interlocutor: “Col... Colway!”.

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O outro caso pode ser evidenciado numa situação [#23] em que, quando um grupo

falava sobre cachaça, uma das participantes, até então calada, comenta que havia uma bebida

que ela tomara e que a tinha deixado muito relaxada, no que pergunta se o marido lembra o

nome. O mesmo não lhe dá atenção e outra interlocutora pergunta se não foi Ypióca. A

conversa continua, até ser interrompida pelo seu achado: “Dreher! Foi Dreher, [fulaninho]!”,

se voltando a outro participante do diálogo.

5.28 Nome da marca

Os nomes das marcas também se apresentam como atividades. Não se trata da

consciência do nome da marca conforme componente do arcabouço de David Aaker, uma vez

que não estamos nos referindo ao “saber” o nome de uma marca. Por outro lado, também não

estamos aqui nos referindo à própria elocução do nome de uma marca – condição também

anterior para o próprio diálogo sobre marcas –, mas de situações em que tal elocução se faz,

por alguma razão, destacada.

Fundamentalmente, o destaque ao nome de uma marca se dá na definição de

alguma situação. Vejamos um exemplo. Entra num salão de beleza unissex uma moça com

uma micro-saia e uma mini-blusa. A cabeleireira, que parece dela ser íntima, pergunta de

onde ela estava vindo, no que a mesma responde que da faculdade. A cabeleireira estranha e

pergunta se aquele é jeito de ir pra faculdade. A resposta é lacônica: “Mas é M. Officer!”, diz

com firmeza ao pronunciar o nome da marca.

Em uma outra situação [#4] este aspecto fica ainda mais evidente. Ao perceber

que era sutilmente criticada pela sua interlocutora por ter ironizado o marido da cunhada que

havia dado a esta um “livrinho” quando ganhara uma camisa e uma calça da Diesel, mulher

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foi enfática: “Mas ela deu uma camisa e uma calça da Diesel, [fulaninha], da Diesel!”, diz

enchendo a boca ao pronunciar o nome da marca.

5.29 Objeto da marca

Também os objetos das marcas são atividades em nossas observações. Chamo

aqui de objetos por, apesar de poderem ser, não se restringem ao produto. Assim como os

nomes das marcas, estes se dão na definição de situações, no que aparecem de duas formas:

expostos em algum lugar ou introduzidos por um interactante.

Um exemplo do primeiro caso se dá na já mencionada situação [#15] em que, ao

se deparar com um sapato da Arezzo em promoção na vitrine da loja, transeunte começa uma

jornada que se finda frustrada para comprá-lo.

O segundo caso pode ser exemplificado por uma situação [#23] em que, ao

receber amigos em sua casa, homem trás uma garrafa da cachaça de cabeça Maribondo e, a

ostentando, diz que “Essa é que é a forte”, num convite para que a degustem.

5.30 Opinião sobre a marca

Ter uma opinião acerca das coisas é uma atividade social comum e, até, em

algumas situações, esperadas, para não dizer exigidas. Assim, as pessoas também elaboram e

emitem opiniões sobre as marcas. Desta forma, esta atividade ocorre tanto espontaneamente

quanto por solicitação do outro. Em relação ao primeiro caso, podemos dar o exemplo de uma

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situação [#1] em que, durante discussão, em sala, sobre times de futebol, antes da aula

começar, em que o Náutico é acusado de perdedor e depois defendido, uma das alunas

pergunta ao professor o que ele acha.

O outro caso, por sua vez, contrário, pode ser exemplificado por situação [#2] em

que falante menciona o Hospital Português como bom para trabalhar porque “as condições

são outras”, termina por admitir que as pessoas têm que se preocupar com o que os outros vão

achar.

5.31 Preconceito relacionado à marca

As pessoas também demonstram preconceitos relacionados, direta ou

indiretamente, às marcas. Temos demonstrações de preconceito a pessoas por não comprarem

marcas, a pessoas consideradas inadequadas ao uso de certas marcas, a usuários de certas

marcas e ao tipo de produto.

O primeiro caso pode ser ilustrado por uma situação [#4] já apresentada em que,

ao mencionar que o marido de sua cunhada havia lhe presenteado com um “livrinho”,

enquanto ganhara uma camisa e uma calça da Diesel, e ser sutilmente criticada pela sua

interlocutora por tal comentário, falante comenta, com um humor ácido: “Pra mim, esse povo

é que é pirangueiro mesmo”, se referindo à nacionalidade italiana do homem em questão.

Em relação ao segundo caso, um exemplo é uma situação [#6] em que um casal

estava saindo de casa quando a mulher depara-se, debaixo de sua janela e, conseqüentemente,

abaixo da janela dos vizinhos de cima, com bastões de algodão para limpeza pessoal usados,

embalagens de balas e chocolate e pedaços de papel amarrotados. Ao descrever ao seu marido

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com o que havia se deparado, conclui, ao mesmo tempo brincando e ironizando: “Isso porque

as crianças aí de cima estudam no Santa Maria...”.

Um exemplo do terceiro caso pode ser dado por situação [#65] em que dois

estudantes de pós-graduação trabalham no mesmo laboratório e, em certo momento, trocam

algumas palavras, no que um deles pergunta ao outro se aquele havia assistido ao filme

BrokeBack Mountain. Sua resposta é taxativa: “E eu sou veado?”.

Finalmente, o último caso identificado pode ser ilustrado por uma situação [#23]

em que, durante um churrasco em família, mulher rejeita dose de Maribondo,

pejorativamente, por duas vezes: “Deus me livre, que eu não tomo uma tristeza dessas” e, à

insistência, “E eu tomo essas coisas?”, sugerindo relação de tal bebida a uma classe social da

qual ela não faz parte.

Apesar de poder ser de grande impacto na significação das marcas, o marketing

não parece estar atento para esta atividade.

5.32 Rejeição à marca

Outra atividade marcária presente em nossas observações é a rejeição. Não se trata

aqui do desabono a que já nos referimos. Como rejeição, consideramos apenas os casos em

que o falante tenha demonstrado ser ou já ter sido usuário da marca, daí o seu “desabono” à

mesma ser uma rejeição. Identificamos duas razões para tal: desqualificação da marca para a

atual expectativa do usuário ou algum desconforto do usuário em relação à marca.

Em relação ao primeiro caso, podemos destacar a situação [#3] em que uma mãe,

ao concluir que sua filha já nada muito bem, descarta a atual escola da mesma, o Colégio

Pinheiros, por esta não ter uma piscina que ela considere adequada ao potencial da filha.

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153

O segundo caso podemos exemplificar com a situação [#37] em que um falante

evita ir para O Bode, bar que costumava freqüentar, quando ele, sua namorada e um casal de

amigos combinaram de sair juntos, dizendo que ali “mudou muito, não é mais o mesmo”,

justificando que o mesmo anda muito cheio e, assim, difícil de estacionar o carro e encontrar

uma mesa. Contudo, sua rejeição começara quando percebera que o bar estava realmente

cheio, mas de homens desacompanhados, os quais, em sua percepção, paqueravam sua

namorada, conforme esta disse, em confidência, para a mulher do outro casal.

5.33 Sentimento pela marca

As pessoas também demonstram sentimento pelas marcas. Vários são os

sentimentos que identificamos em nossas observações. O mais comum foi o afeto. Isto ocorre

relacionado a marcas que se demonstram fazer parte da vida das pessoas. Assim, temos times,

bandas e jogos de infância. Por exemplo, um homem demonstra carinho pelo seu time ao

pedir licença e despedir-se dos seus amigos, que com ele tomavam cerveja, para ver o jogo do

“Santinha”, que seria televisionado [#26]. Noutro caso temos uma demonstração de ciúme

quando uma professora pergunta a um colega se este iria assistir ao show do U2 televisionado

pela Rede Globo, pois ela sairia “correndo” da aula. Ele diz que sim e comenta que acredita

que o estádio estaria cheio, o que, para ele, que é fã há vinte anos, era desconfortável, uma vez

que acredita que muita gente iria apenas pelo “ôba-ôba”. Sua colega conclui que eles, que

estão com trinta e poucos anos, é que são “fãs mesmo” [#52]. Finalmente, mulher que é

chamada atenção pelo seu marido por se referir ao jogo de videogame Super Mario Bros

como “Mário e Luigi” se irrita e diz poder chamar como quiser; que era assim que chamava

quando era criança.

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154

Evidenciamos também demonstração de sentimento de cumplicidade. Em situação

já mencionada [#5], mulher recém-separada ganha um biquíni da Água de Coco de sua ex-

sogra e diz que com ele vai “arrasar em Porto”, o que coloca o mesmo como cúmplice de sua

auto-estima.

Outro sentimento demonstrado pelas pessoas é o orgulho. Este está associado

quando o usuário percebe um vínculo seu com a marca e este está sendo, de alguma forma,

projetado. Na situação [#52] que mencionamos do ciúme dos fãs pelo U2, vemos também o

orgulho de fazerem parte da geração que viu a banda surgir. Outro exemplo disto temos numa

situação [#23] em que um homem, em visita à Fortaleza, constata que a cachaça Pitu,

produzida em seu estado (Pernambuco), é mais cara ali e conclui: “Olha minha terra aqui

como tem valor”.

Finalmente, temos o sentimento que chamei de “sentir-se bem”, o que o fiz por

substituição ao que tenho em mente por “bem-estar”, mas que evitei para não sugerir algo de

natureza apenas fisiológica. Em alguns casos este aspecto está presente, mas não

isoladamente, o que fica evidente quando um homem confessa: “Eu gosto mesmo é do Old

Eight! Eu bebo, não sinto nada, no outro dia tô bonzinho...” [#8]. Aqui não se trata apenas do

bem-estar físico, mas o de sentir-se bem em relação à marca, em que o aspecto fisiológico é

parte, assim como nos afeiçoamos a uma pessoa que cuide de nós.

Mas também temos situações das pessoas sentirem-se bem por meio de uma

projeção em relação à marca. Exemplo disto temos numa situação [#36] em que uma mulher

suspira “Ah... um Mitsubishi... Pajero...” ao falar da vida que gostaria de ter.

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155

5.34 Situação relacionada à marca

Evidentemente todos os exemplos que citamos neste trabalho ocorrem em certas

situações sociais, ou seja, em momentos em que duas ou mais pessoas se encontram na

presença imediata uma da outra51. Assim, a princípio, não faria sentido se conceber situações

relacionadas às marcas como atividades marcárias, uma vez que estas se tratam do ambiente

imediato em que se desenrolam as interações em que se dão tais atividades. Entretanto, temos

observações de situações em que a menção a outras situações em que marcas foram seus

cernes é a própria atividade em questão, numa, digamos, “metassituação”, se assim podemos

dizer.

São situações da vida cotidiana das pessoas, quase sempre ocorridas em suas vidas

privadas, mas também em suas vidas públicas, relatadas por aquelas mesmas que a viveram

ou por outras, que as utilizam como referências. A já mencionada situação [#4] em que uma

mulher critica o marido de sua cunhada por presenteá-la com um “livrinho” exemplifica uma

situação relatada por outra pessoa que não a envolvida na mesma. As também já mencionadas

situações em que uma mulher diz a outra que vai “arrasar em Porto” [#5], que uma mulher

conta a outra situação em que o filho comera uma empada “purinha” [#45] ou que uma

mulher conta a outra situação em que seu filho ofereceu-lhe dinheiro para que ela compre sua

blusa numa “loja melhor” [#46] servem para exemplificar quando alguém relata o que viveu.

Uma outra situação [#18], também relativa a um relato pessoal, nos serve como

exemplo de algo ocorrido na vida pública, quando um torcedor do Sport critica o Santa Cruz

por deixar uma parte menor da arquibancada para a torcida adversária. Graças à dificuldade

de entrar no estádio, ele conta que resolve chamar seu amigo para entrar no estádio pelo

espaço destinado à torcida do Santa Cruz. Ao fazer isto, encaminham-se para o lado da sua

torcida, quando são denunciados e precisam apressar-se até que cheguem do outro lado.

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Como podemos ver, temos aqui uma característica do homem como contador de

histórias da vida cotidiana. Numa vida marcada pela bidimensionalidade mundana a que nos

referimos, várias destas histórias serão sobre ou incluirão a participação de marcas, o que,

mais uma vez, sugere a importância das mesmas na vida das pessoas. Apesar disto, o

conhecimento de marketing não tem demonstrado atenção a este aspecto. No máximo tratam

das chamadas “lendas urbanas” envolvendo as mesmas, quase sempre como um problema de

relações públicas, em que a dúvida considerada costuma ser uma opção entre combater as

mesmas ou simplesmente fingir desconhecê-las e esperar que morram por inanição.

5.35 Sugestão da marca

Outra atividade observada em nossas investigações é a sugestão de uma marca por

alguém a outrem. Trata-se de algo similar ao que em marketing é chamado de referência

pessoal na busca de informações no processo decisório de consumo, com a diferença que aqui

pode se tratar de uma ação do outro – o que comumente o é – a alguém que pode ou não estar

interessado em tal sugestão, logo, não necessariamente está em busca de informações.

Os casos de sugestão referem-se aqui a conselhos, convites ou alguma indicação.

Para ilustrar o primeiro tipo, temos uma situação [#100] em que um casal de turistas anda

pelas ruas de Copacabana e o homem estava tossindo muito. Quando param numa calçada

esperando que o sinal de pedestres abrisse, uma voz aveludada, marcada pelos anos, pergunta:

“Por que você não vai no Mundo Verde? Lá tem um mel que resolve isso rapidinho. Sempre

dou para os meus netos”. Temos aqui um conselho, no sentido de considerar a dimensão do

cuidado, ainda que, naquele caso, seja um desconhecido. Caso de mesma natureza pode ser

51 Definição baseada em Goffman (1999).

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identificado numa situação mais típica [#74], em que um pai diz à sua filha, ao esta mencionar

que estava pensando em tomar guaraná em pó para dar conta de estudar para as provas que

iriam começar naquela semana, que não faça isto, pois atacaria seu estômago. “Tome

Taffman-E” é seu conselho.

A indicação difere aqui do aconselhamento por dar lugar à referência ao invés do

cuidado. Além disto, enquanto o aconselhamento se refere, em nossas investigações, sempre a

uma ação de quem dá o conselho – não houve solicitação de conselho –, no caso da indicação

acontecem os dois movimentos. Na mencionada situação em que duas mulheres conversam

sobre marcas de sapatos [#17] uma delas sugere: “Vai na Corbello! Cada sandália bonita... e

barata... de salto alto...”. O lado contrário pode ser exemplificado em uma situação [#124] em

que dois homens conversam após uma reunião de trabalho enquanto, já na rua, próximos ao

carro de um deles, comem tapioca e conversam. Olhando para o carro em questão, o outro

pergunta a seu interlocutor há quanto tempo ele tem o mesmo e levanta: “Bom eu sei que o

Peugeot é, mas me diga uma coisa: a manutenção é muito cara?”.

No caso do convite, temos a situação de que aquele que sugere convida o outro a

compartilhar a marca. Assim, se refere a marcas cujos produtos são experiências. Exemplo de

um caso deste temos numa situação [#40] já mencionada em que dois casais conversam à

mesa de um bar e começam a discutir sobre como passariam o carnaval. É quando uma das

mulheres se volta ao outro casal e, animada, pergunta: “Vocês vão pro Galo?”. A forma como

a pergunta é feita sugere um convite, o que é percebido pelo homem do outro casal, que

confirma que iriam e, agora diretamente, convida-os.

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158

5.36 Surpresa em relação à marca

As pessoas também se surpreendem com as marcas. Com isto quero dizer que se

deparam com situações que não esperavam em relação a elas. Fundamentalmente, observamos

surpresas baseadas em dois fatores: certos aspectos das marcas e seus comportamentos.

Em relação ao primeiro identificamos aspectos relacionados apenas a atributos,

dentre os quais a localização de lojas, preço e notoriedade. Como exemplo podemos citar uma

situação [#9] em que mulher surpreende-se por seu marido mencionar que o restaurante para o

qual estavam indo, no interior de Pernambuco, havia sido referenciado no Guia 4 Rodas.

O segundo caso pode ser ilustrado pela surpresa de um homem ao ouvir de seu

colega que os Rolling Stones haviam se apresentado no intervalo do Super Bowl, em situação

já mencionada [#41].

5.37 Uso de conceito da marca

As pessoas também fazem uso de conceitos definidos para as marcas, o que ocorre

para se brincar com os outros, desqualificar alguém ou caracterizar o que se fala. Entretanto,

nem sempre isto ocorre conforme a definição conceitual das mesmas pelas organizações e,

mesmo quando sim, nem sempre da forma que a mesma tinha por intuito. Vejamos alguns

exemplos de tais casos – o que nem sempre poderá ser totalmente demarcado – e, depois, de

quando o conceito é usado conforme definido ou não.

Para exemplificar um uso para gerar brincadeira podemos usar a situação [#59]

em que, ao se levantar para pegar uma cerveja, interlocutor pede que traga “uma Juliana

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Paes”. Nas campanhas da Antarctica é feita uma analogia da sigla B.O.A. (Bebedores Oficiais

de Antarctica) com a própria cerveja e a sua garota propaganda, a atriz Juliana Paes.

Como ilustração de caso em que se quer “passar o outro para trás”, podemos citar

uma situação [#54] em que, no programa Pânico, na rádio Jovem Pan, uma das convidadas,

Bandida, e uma das integrantes do programa, Mulher Samambaia, alfinetavam-se todo o

tempo – algo nada estranho tendo em vista o perfil do mesmo. Dentre tais alfinetadas, a maior

parte refere-se a aspectos relativos à beleza de cada uma. Ao final do programa, quando

Bandida estava se despedindo, Mulher Samambaia faz mais um comentário, a partir do qual a

primeira diz debochadamente: “Filhinha... Garota Dove! Verão sem vergonha...”. Ela referia-

se à campanha da marca em que, ao invés de modelos, mulheres comuns, muitas delas

“cheinhas”, são utilizadas.

Também da mídia podemos tirar um exemplo de caracterização do que se está

falando. Durante a transmissão pela ESPN Brasil do jogo entre Japão e Croácia pela Copa do

Mundo da Alemanha [#118], locutor comenta que a mulher de um dos jogadores croatas é ex-

Miss daquele país, no que o comentarista ironiza, dizendo aquele se tratar de um “Momento

Caras”, referindo-se à revista.

Se no primeiro exemplo temos o uso do conceito conforme sugerido pela marca,

que busca associar a “gostosura” da cerveja com a de sua garota propaganda, o mesmo não

ocorre com os outros. Enquanto a intenção da Dove com suas mulheres comuns é a de sugerir

que há beleza para além do padrão das top models e a da Caras é de se caracterizar como a

revista dos ricos e famosos, o que vemos é o uso da primeira, pela falante, para sugerir que

sua interlocutora é feia, e da segunda como sinônimo de fofoca.

Outras situações marcam este contraste, como quando o jornalista Juca Kfouri,

durante cobertura, da mesma ESPN Brasil, de treino da seleção antes da Copa comenta que

tomo mundo sabe que a defesa brasileira “não é nenhuma Brastemp” [#117] ou quando,

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160

durante sua festa de noivado, evangélico responde a convidado, que brincando perguntara

pela cerveja, que era por isso que ele estava tão “redondo” [#138], em referência ao slogan da

Skol.

Mas existem também situações do uso do conceito sequer se referir a um

relacionado àquele definido pela organização, mas sim pela conseqüência de uso da marca

pelas pessoas. Exemplo disto temos numa situação [#72] ocorrida no Dois em Um, da Rádio

Transamérica, programa de variedades do tipo brincalhão, que tem um casal de

apresentadores, cuja beleza é sempre questionada. Um aspecto curioso é que Gislane, a

apresentadora, vez por outra comenta que adora carros Jaguar e que queria ter um namorado

que tivesse um. Naquele dia um ouvinte ligou para o programa e, brincando, disse que ela não

estava “com nada” e que “se achasse um namorado com um Chevette já seria sorte!”.

5.38 Valor da marca

Finalmente, identificamos também o valor percebido em uma marca como

atividade. Como antecipamos, diferentemente da noção típica de valor no marketing, que

considera a relação entre o custo e o benefício da aquisição dos produtos, em nossas

observações identificamos tal atividade como um julgamento das marcas pelo seu preço. O

mesmo se refere tanto a preço baixo quanto a alto, podendo ser positivo ou negativo. Que

pese isto ser observado mesmo nas situações aparentemente racionais, ou seja, em que o

conceito tradicional poderia ser inferido se de uma análise menos acurada, como também será

exemplificado.

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A já mencionada situação [#29] em que uma mãe questiona a filha sobre se

comprar no Atacadão da Papelaria de um shopping não seria mais caro exemplifica um

julgamento negativo da marca com base numa percepção de preço alto. Do contrário, a

também já citada situação [#46] em que uma criança pergunta à sua mãe quanto custava a

blusa que ela estava vendo na C&A e, após a resposta, oferece emprestado dinheiro de sua

mesada para que ela compre sua blusa numa “loja melhor” exemplifica um julgamento

negativo da marca com base numa percepção de preço baixo.

Por outro lado, a situação [#120] em que um homem sugere que o Santa Maria

seja o melhor colégio por este ser o mais caro exemplifica um julgamento positivo da marca

com base numa percepção de preço alto. Do contrário, quando mulher sugere à sua amiga que

vá na Corbello, pois lá tem sandálias bonitas e baratas [#17], temos um exemplo de

julgamento positivo da marca com base numa percepção de preço baixo.

Sobre as situações aparentemente relativas a uma análise de custo e benefício,

podemos dar dois exemplos que representam as diferentes formas com que isto aconteceu. Na

situação [#17] em que falante sugere à sua interlocutora ir na Corbello, que tem, segundo ela,

“Cada sandália bonita... e barata... de salto alto”, sua enunciação de “bonito” e “barato”

poderia sugerir uma análise de custo e benefício. Contudo, ela apresenta tais características

como aspectos da marca, assim, como o “salto alto”, e não a relação satisfatória entre os

mesmos. Em outra situação [#99], dois amigos conversam numa loja de departamentos

enquanto um deles procura um liquidificador. O outro, a certa altura, aponta para um da

Wallita cujo modelo é do seu. “Olha o preço!”, diz ele de forma esnobe. Na seqüência conclui

que vale, uma vez que já o tem há três ou quatro anos. Mais uma vez o que parece uma

análise de custo e benefício não o é. Sua ênfase, evidente em seu tom, foi o preço. Para se

preservar de uma leitura de seu amigo de que ele estaria o esnobando foi que mencionou um

aspecto do mesmo.

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162

6 Funções do uso da linguagem na significação das marcas

Como já discutimos, a visão que assumimos em relação à linguagem é

funcionalista. Isto quer dizer que a linguagem assume funções em relação aos signos. Por

exemplo, expressões faciais costumam denunciar emoções, como raiva, tristeza ou surpresa;

um contato visual pode indicar felicidade, admiração, interesse; a distância corporal que

estabelecemos com os outros pode indicar intimidade ou, ao contrário, formalidade; a

entoação de nossas elocuções pode indicar um pedido, uma sugestão, uma ordem; já a

acentuação pode colocar algo em evidência, estabelecer contrastes, gerar expectativas etc.

Mas quando nos referimos à linguagem queremos dizer também os aspetos

interacionais. Assim, o lugar em que estamos ao interagir com os outros pode possibilitar

intimidade, trazer lembranças ou coibir certos assuntos; alternâncias de código podem se

referir à intenção de entrar ou sair em certas situações ou sinalizar aproximação ou distância

em relação aos outros.

Os signos dos quais procuramos compreender a significação são as marcas.

Evidentemente, existem certas funções que a linguagem ordinária assume em relação e elas.

Portanto, antes que discutamos a significação das marcas propriamente, é importante que

conheçamos tais funções.

Em nossas investigações identificamos várias funções, às quais são apresentadas à

seguir, também por ordem alfabética, pela mesma razão que fizemos em relação às atividades

marcárias. Todas as funções que aqui discutimos são relacionadas a “algo” da marca, em que

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163

sobre este “algo” tenho em mente as atividades marcárias. Assim, como antecipei, fechamos a

relação de significância das marcas, relacionando funções da linguagem a atividades das

marcas, uma vez que as mesmas têm um papel fundamental na compreensão da significação

das mesmas.

Apesar disto, diferentemente do que ocorre no capítulo relativo às atividades

marcárias, em que todas as facetas de cada uma delas são discutidas, aqui não apresentamos

todas as relações de uma dada função com cada atividade a que ela se relaciona. Isto porque,

quando da descrição dos aspectos de significação, os mesmos o serão por meio das funções

que assumem em relação, justamente, às atividades marcárias. Com isto, demonstrarei

exemplos que sirvam apenas para caracterizar o que tenho em mente com cada uma das

funções apresentadas.

Sendo assim, a visão sinóptica possível das relações entre funções da linguagem e

atividades das marcas ocorre justamente em paralelo à da significação. Do contrário, a

possibilidade de ser enfadonho pela repetição de exemplos necessários às diversas descrições

no decorrer deste trabalho, passaria a ser uma redundância inócua.

Contudo, pelo fato das funções serem a “ponte” com os aspectos de significação,

estes também são aqui mencionados – embora não descritos ainda – em relação a cada função

discutida, antecipando, de certa forma, uma visão sobre a mesma.

6.1 Caracterizar algo relativo à marca

Uma das funções que identificamos em nossas investigações é a de caracterização

de algo relativo à marca. Como caracterização aqui entendamos uma definição, ou seja, uma

forma encontrada pelos interactantes de se referir a algo objetivo relativo à marca.

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164

A função é identificada em aspectos paralingüísticos e interacionais. Em relação

ao primeiro, por meio de entoações; em relação ao segundo, por meio do que chamamos de

conhecimento de mundo52. A função aqui é de caracterizar aspectos das marcas e situações

envolvendo as marcas. Este último ocorre apenas com relação ao conhecimento de mundo,

enquanto o primeiro com relação tanto a este quanto a entoações. A Tabela 1 resume as

relações da presente função com as atividades marcárias a que se referem, bem como com os

aspectos por meio dos quais ela ocorre.

Aspectos extralingüísticos

Aspectos paralingüísticos

Aspectos interacionais

Atividades marcárias Con

tato

vis

ual

Dis

tânc

ia c

orpo

ral

Expr

essã

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M

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ento

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En

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Con

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C

onte

xto

Face

Fo

otin

g

Aspecto da marca x x x x

Comparação da marca x

Situação relacionada à marca x

Tabela 1: Relações da função “caracterizar”

Como exemplo podemos mencionar a situação [#18] em que torcedor descreve

certa vez em que foi a um jogo do Sport contra o Santa Cruz no estádio do Arruda e reclama

que, apesar das duas torcidas terem tamanho equivalente, o espaço reservado para os

torcedores de seu time havia sido muito pequeno, o que fazia com que ele e o amigo que o

acompanhava, mesmo tendo comprado os ingressos, não conseguissem entrar. Assim,

optaram por tirar as camisas que vestiam do time, enrolarem-nas na cintura e entrarem pelo

52 Ver conceito no Capítulo 9.

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165

portão da torcida adversária. Uma vez no interior do estádio, começaram a se encaminhar em

direção ao local em que estava sua torcida, no que alguns torcedores do time adversário

perceberam e denunciaram, sugerindo àqueles que estavam mais próximos deles que os

detivessem. Eles aumentaram a velocidade de suas passadas a ponto de quase correrem. Sua

descrição da situação demonstra seu sentimento na ocasião: “A gente foi andando, foi

andando, que quando a gente tava bem pertinho parecia que a gente tava fugindo de Cuba”.

Todos riram com sua comparação, que caracterizou a situação em que ele havia se envolvido

e como se sentia então.

6.2 Chamar atenção para algo relativo à marca

Outra função que identificamos é a de se chamar atenção para algo relativo à

marca. Por chamar atenção nos referimos a alguém ser atraído, de alguma forma, por algo ou

alguém, para algo relativo a uma marca, trazendo isto para o centro da interação em

andamento.

Temos um exemplo [#15] que, apesar de já mencionado algumas vezes, nos é aqui

útil mais uma vez por trazer casos de atenção chamada tanto por algo quanto por alguém. Ao

estar andando em um shopping, a atenção de uma transeunte é despertada por um sapato em

promoção na vitrine de uma loja da Arezzo. Ela, juntamente com seu marido, que a

acompanhava, entraria na loja disposta a comprar o tal sapato, o que não ocorreu pelo fato do

mesmo não estar disponível em seu tamanho. Ao sair da loja, frustrada, lamenta-se: “Pôxa,

tão bonito... e da Arezzo!”. Sua fala, assim, chama atenção do seu interlocutor para dois fatos:

a beleza que ela atribui ao modelo em questão e a perda da oportunidade de adquirir um

sapato da marca Arezzo.

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Aspectos extralingüísticos

Aspectos paralingüísticos

Aspectos interacionais

Atividades marcárias Con

tato

vis

ual

Dis

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Expr

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M

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Fo

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Aspecto da marca x x x x x

Comportamento da marca x x x

Desabono à marca x

Diferença em relação à marca x

Dissimulação em relação à marca x

Frustração em relação à marca x

Gafe em relação à marca x x

Juízo a respeito da marca x x x

Objeto da marca x x

Sentimento pela marca x

Situação relacionada à marca x x

Sugestão da marca x

Uso do conceito da marca x x

Tabela 2: Relações da função “chamar atenção”

A presente função ocorre, assim como a anterior, também por meio de aspectos

paralingüísticos e interacionais. Dentre os interacionais, temos o cenário. Dentre os

paralingüísticos, por outro lado, temos acentuação, altura da voz, duração da elocução e

entoação. Quanto às atividades marcárias relacionadas a esta função, elas são várias, ocorridas

por meio de diferentes aspectos dentre aqueles apontados, conforme pode ser visto na Tabela

2.

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167

6.3 Corroborar algo relativo à marca

Identificamos também a função de corroboração de algo relativo à marca. Por

corroborar aqui devemos ter em mente situações em que interlocutores demonstram

concordância com o que um falante menciona acerca de uma marca ou mesmo faz com a

mesma.

Aspectos extralingüísticos

Aspectos paralingüísticos

Aspectos interacionais

Atividades marcárias Con

tato

vis

ual

Dis

tânc

ia c

orpo

ral

Expr

essã

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M

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Face

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otin

g

Aspecto da marca x

Comparação da marca x x

Comportamento da marca x x

Desabono à marca x x

Preconceito em relação à marca x x

Uso de conceito da marca x

Tabela 3: Relações da função “corroborar”

Por exemplo, na situação [#123] em que executivos de uma instituição de ensino

interessada em adquirir computadores visitam uma empresa de varejo da área, o diretor

comercial da mesma tenta persuadi-los a adquirirem máquinas MacIntosh sugerindo que eles

imaginem como seus laboratórios ficariam com os mesmos, referindo-se, naquele instante,

não à qualidade dos mesmos, mas ao charme que dariam ao ambiente. Apesar de não dizerem

nada, os executivos abrem largos sorrisos acompanhados de seus olhos brilhantes,

demonstrando concordância com o seu argumento.

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168

A função de corroborar o outro ocorre por aspectos de todas as naturezas

(paralingüísticos, extralingüísticos e interacionais). Dentre os paralingüísticos, temos tons de

voz. Dentre os extralingüísticos, expressões faciais e movimentos da cabeça. Finalmente,

dentre os interacionais, temos a face. As atividades marcárias mais uma vez são várias, quase

todas relacionadas a expressões faciais. A Tabela 3 demonstra tais relações.

6.4 Deduzir algo a respeito da marca

Temos também a dedução como uma função da linguagem na significação das

marcas. Trata-se aqui de se deduzir algo a respeito da marca; de se inferir certa peculiaridade

por meio de alguma pista possibilitada na interação.

Aspectos extralingüísticos

Aspectos paralingüísticos

Aspectos interacionais

Atividades marcárias Con

tato

vis

ual

Dis

tânc

ia c

orpo

ral

Expr

essã

o fa

cial

M

ovim

ento

dêi

tico

Mov

imen

to d

a ca

beça

Po

stur

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cent

uaçã

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ltura

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voz

Dur

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da

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ução

En

toaç

ão

Tom

V

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ção

dial

etal

V

aria

ção

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tica

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cia

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ódig

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io

Con

heci

men

to d

e m

undo

C

onte

xto

Face

Fo

otin

g

Juízo a respeito da marca x

Tabela 4: Relações da função “deduzir”

Como podemos observar na Tabela 4, a dedução ocorre, em nossas observações,

apenas por meio de aspectos interacionais, especificamente pelo conhecimento de mundo dos

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169

interlocutores envolvidos numa interação. Também apenas uma atividade marcária é

observada: o juízo a respeito da marca.

Exemplificando, temos situação [#19] em que um falante pede ao seu interlocutor,

motorista profissional, indicações acerca de pneus. Este se mostra titubeante e revida as

perguntas com outras. Em certo momento, o primeiro adianta que ouvira falar de pneus

importados e pede sua opinião. Aquele, antes de concedê-la, pergunta pelo preço dos mesmos.

O que evidenciamos é um meio encontrado pelo motorista para buscar uma referência que o

possibilitasse inferir se os mesmos são bons – assumindo o preço como referência de

superioridade – antes de emitir sua opinião.

6.5 Desvelar algo a respeito da marca

Uma das funções mais constantes em nossas observações é a de desvelar algo a

respeito da marca. Por desvelar devemos ter em mente o ato de trazer à tona algo a princípio

oculto ou pelo menos não evidente na interação, sem, no entanto, fazer isto de maneira

explícita.

Duas colegas de faculdade saíram juntas ao término da aula aquele dia, no que

uma delas pegou carona com a outra e seu marido [#73]. Ao entrarem no carro, a carona

comenta que não vê a hora de ganhar logo o carro que seu marido ficou de presenteá-la.

“Deve ser um Uno ou um Pálio... mas meu sonho de consumo mesmo é um Eco Sport... mas

eu não vou pedir a ele, não”, comenta ela com um entusiasmo comedido. A outra

imediatamente disse que “Lindo mesmo é o Classe A!”. Com isto começam a discutir sobre a

lindeza e a fofura de cada um, até chegar a ora da primeira ficar em seu destino, desvelando

juízos e sentimentos em relação àquelas marcas.

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170

Aspectos extralingüísticos

Aspectos paralingüísticos

Aspectos interacionais

Atividades marcárias Con

tato

vis

ual

Dis

tânc

ia c

orpo

ral

Expr

essã

o fa

cial

M

ovim

ento

dêi

tico

Mov

imen

to d

a ca

beça

Po

stur

a A

cent

uaçã

o A

ltura

da

voz

Dur

ação

da

eloc

ução

En

toaç

ão

Tom

V

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ção

dial

etal

V

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ção

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tica

Alte

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de c

ódig

o C

enár

io

Con

heci

men

to d

e m

undo

C

onte

xto

Face

Fo

otin

g

Aspecto da marca x

Característica do usuário da marca x x

Comportamento da marca x x x

Confiança na marca x x x x

Constrangimento em relação à marca x

Defesa da marca x x x x

Desabono à marca x x x x

Desconfiança da marca x

Desconhecimento da marca x x x x x

Diferença em relação à marca x x x

Envolvimento com a marca x x x x x x x x

Escolha da marca x x x

Expectativa em relação à marca x x

Frustração em relação à marca x x x x x x x

Gafe em relação à marca x

Incoerência em relação à marca x

Interesse pela marca x x

Juízo a respeito da marca x x x x x x x x x

Lembrança da marca x x x

Nome da marca x x x

Opinião sobre a marca x x

Preconceito em relação à marca x x x x x x x x x

Rejeição à marca x x x

Sentimento pela marca x x x x x x x x x x x

Sugestão da marca x x x x x

Surpresa em relação à marca x x x x

Uso de conceito da marca x x

Tabela 5: Relações da função “desvelar”

Page 177: Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de ...livros01.livrosgratis.com.br/cp077042.pdfTítulo da Tese: “Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de compreensão

171

A função de desvelar algo a respeito da marca ocorre por aspectos de todas as

naturezas, em quase todos os seus tipos identificados em nossas investigações. Os

extralingüísticos são os menos representados: expressões faciais, movimentos da cabeça e

posturas. Já em relação aos paralingüísticos, ocorre por meio de todos os tipos. Finalmente,

dentre os interacionais, não ocorre apenas por meio de cenário. Boa parte das atividades

marcárias está sob tal função. São vinte e sete das trinta e oito. Além disto, são desveladas por

meio de vários dos tipos a que nos referimos. A Tabela 5 demonstra todas estas relações.

6.6 Enfatizar algo relativo à marca

Outra função constante observada em nossas investigações é a de se enfatizar algo

relativo à marca. Trata-se de situações em que um falante destaca para seu interlocutor

alguma coisa relativa à marca, como forma de trazer tal aspecto para o centro da interação em

andamento.

Para exemplificar podemos utilizar uma situação [#97] em que uma família havia

ido para um shopping na tarde de Páscoa. Na volta para casa, assim que entram no carro, as

crianças dizem que estão com fome e a mãe, sempre precavida, dá-lhes o leite achocolatado

com biscoito que sempre carrega na bolsa. Pergunta se seu marido quer e ele diz que não.

Minutos depois volta atrás e pede um gole “de leite”. Esbaldando-se de tanto rir, o filho mais

velho, de sete anos, diz-lhe que aquilo “Não é leite, não, Painho! É Toddynho!” e, com força

na voz, repete: “Toddynho!”. Vale o destaque de que a marca era outra.

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172

Aspectos extralingüísticos

Aspectos paralingüísticos

Aspectos interacionais

Atividades marcárias Con

tato

vis

ual

Dis

tânc

ia c

orpo

ral

Expr

essã

o fa

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M

ovim

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dêi

tico

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imen

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cent

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voz

Dur

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io

Con

heci

men

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C

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xto

Face

Fo

otin

g

Aspecto da marca x x x x x x x x x

Característica do usuário da marca x x

Comparação da marca x

Comportamento da marca x

Confiança na marca x x x

Conhecimento da marca x

Desabono à marca x x x

Diferença em relação à marca x x x x x

Escolha da marca x x x x

Expectativa em relação à marca x

Frustração em relação à marca x x x

Gafe em relação à marca x x x

Inadequação do usuário à marca x

Juízo a respeito da marca x x x x x x x

Lembrança da marca x

Nome da marca x x x x

Opinião sobre a marca x

Preconceito em relação à marca x x

Rejeição à marca x

Situação relacionada à marca x x

Sugestão da marca x x x

Surpresa em relação à marca x x

Uso de conceito da marca x x x x x

Valor da marca x

Tabela 6: Relações da função “enfatizar”

A função de enfatizar algo relativo às marcas também ocorre por meio de aspectos

de todas as naturezas, entretanto, fundamentalmente, dos paralingüísticos. Dentre os

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173

extralingüísticos, apenas por meio de movimentos dêiticos. Dentre os interacionais, por meio

de conhecimento de mundo e face. Finalmente, dentre os paralingüísticos apenas não ocorre

por meio de variações dialetais. Como demonstra a Tabela 6, as atividades marcárias mais

uma vez são muitas, mas também fundamentalmente em relação aos aspectos paralingüísticos.

Face enfatiza apenas juízo em relação à marca e conhecimento de mundo e movimentos

dêiticos apenas aspectos da marca. No entanto, os aspectos paralingüísticos relacionam-se a

dezenove atividades.

6.7 Ironizar algo relativo à marca

A ironia também é uma função da linguagem na significação das marcas. Ironizar

algo relativo à marca é uma função identificada em situações em que um falante tira uma

brincadeira irônica relativa a alguma marca, comumente a depreciando, mas não

necessariamente num sentido pejorativo.

Aspectos extralingüísticos

Aspectos paralingüísticos

Aspectos interacionais

Atividades marcárias Con

tato

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Dis

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Expr

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Face

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g

Aspecto da marca x x x x

Tabela 7: Relações da função “ironizar”

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174

Quando um torcedor do Sport [#18] refere-se aos estádios dos times adversários

como “chiqueirinho” e “chiqueirão” está sendo irônico de forma depreciativa, mas quando um

outro reclama da atual situação do time e diz ao seu interlocutor, com ar de riso, que pro

Estudantes “até o Sport ganhou... aquela porcaria do Sport” [#43] o que vemos é uma ironia

que encobre uma decepção.

A função de ironizar a marca ocorre por meio de aspectos de todas as naturezas.

Especificamente, por meio de expressão facial, entoação, tom e conhecimento de mundo, mas

sempre em relação a algum aspecto da marca. O resumo destas relações é apresentado na

Tabela 7.

6.8 [De]Mo[n]strar algo relativo à marca

Mostrar ou demonstrar algo relativo à marca é outra função que identificamos em

nossas investigações. Por mostrar devemos ter em mente exatamente o ato de alguém por à

mostra alguma coisa relativa à marca para seu interlocutor, enquanto por demonstrar o ato de

alguém trazer evidências sobre o que está mencionando acerca da marca.

Também aqui a função em questão ocorre apenas por meio de aspecto de uma

natureza e apenas por um de seus tipos. O mostrar ocorre de forma extralingüística,

especificamente por meio de movimentos dêiticos, o que não é difícil de se compreender se

considerarmos sua natureza. Contudo, várias são as atividades relacionadas a tais

movimentos, como se pode se ver na Tabela 8.

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175

Aspectos extralingüísticos

Aspectos paralingüísticos

Aspectos interacionais

Atividades marcárias Con

tato

vis

ual

Dis

tânc

ia c

orpo

ral

Expr

essã

o fa

cial

M

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dêi

tico

Mov

imen

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a ca

beça

Po

stur

a A

cent

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o A

ltura

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Dur

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da

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Tom

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C

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Face

Fo

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g

Aspecto da marca x

Forma de uso da marca x

Juízo a respeito da marca x

Objeto da marca x x

Sentimento pela marca x

Tabela 8: Relações da função “[de]mo[n]strar”

Era a festa de noivado de um rapaz, evangélico, que, devido à sua religião, não

ofereceu cerveja aos convidados [#138]. Entretanto, as mesas alugadas para a ocasião tinham

a marca da Skol. O fato possibilitou a um dos convidados brincar com o anfitrião dizendo-lhe

que, ao chegar, ficara animado, por pensar que beberia cerveja na festa. Dentro do mesmo

espírito, o noivo disse que era por isso que ele estava tão “redondo”, apontando com a cabeça

para a sua barriga.

6.9 Preservar[-se] de algo relativo à marca

A preservação de alguém também se apresenta como uma função em nossas

observações. Trata-se, numa interação, de alguém se preservar por algo relativo à marca, ou,

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176

ao contrário, preservar o outro pela mesma razão. É devido a esta dupla função que grafamos

esta como “preservar[-se]”.

Aspectos extralingüísticos

Aspectos paralingüísticos

Aspectos interacionais

Atividades marcárias Con

tato

vis

ual

Dis

tânc

ia c

orpo

ral

Expr

essã

o fa

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M

ovim

ento

dêi

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imen

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a ca

beça

Po

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a A

cent

uaçã

o A

ltura

da

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Dur

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Con

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C

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xto

Face

Fo

otin

g

Adesão a outra marca x

Aspecto da marca x x

Constrangimento em relação à marca x x x x x x

Defesa da marca x x x x

Desabono à marca x x x x x

Desconfiança da marca x x

Desconhecimento da marca x x x x x

Diferença em relação à marca x

Dissimulação em relação à marca x x x

Escolha da marca x x x

Frustração em relação à marca x x x

Gafe em relação à marca x x x x x x x

Inadequação do usuário à marca x

Incoerência em relação à marca x

Juízo a respeito da marca x x x x x

Opinião sobre a marca x x x x x

Preconceito em relação à marca x x x x

Rejeição à marca x x

Sentimento pela marca x

Situação relacionada à marca x

Valor da marca x

Tabela 9: Relações da função “preservar[-se]”

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177

Uma mesma situação [#126] nos serve para demonstrar mútuas auto-preservação

e preservação do outro. Dois amigos estavam conversando sobre a volta de um deles para

Recife, após morar durante três anos em São Paulo. Ela comenta que só havia conseguido

Internet discada, uma vez que o cabeamento de sua rua não permitia Cabo Mais nem Speed.

Ele corrigiu: “Velox”. Ela, que havia confundido a telefônica local com a paulista, continuou

falando sobre a situação e ainda repetiria a gafe mais duas vezes, sempre com a correção do

seu interlocutor. Foi na terceira vez que ambos ficaram rindo da situação: ela por dar-se conta

da gafe original; ele por perceber, noutra gafe, que não deveria estar chamando sua atenção.

A função de preservar-se ou preservar o outro é outra que ocorre por meio de

aspectos de todas as naturezas. Dentre as extralingüísticas, apenas por meio de expressões

faciais. Dentre os interacionais e paralingüísticos, contudo, por quatro de cada. Em todos os

casos, são várias as atividades relacionadas, ao todo vinte e uma, o que é demonstrado na

Tabela 9.

6.10 Projetar-se por meio de algo relacionado à marca

Outra função observada em nossas investigações é a projeção pessoal por meio de

algo relacionado à marca. Por projeção devemos ter em mente a forma como alguém se

projeta em relação ao outro numa interação.

A função de se projetar ocorre por meio de aspectos paralingüístico e interacional,

especificamente entoação e footing, respectivamente. Este último relaciona-se a aspectos da

marca, juízo a respeito da marca, uso de conceito da marca e conhecimento da marca,

enquanto o primeiro apenas a este último. A Tabela 10 resume tais relações.

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178

Para exemplificar podemos demonstrar uma situação [#135] em que um homem

visita um amigo seu na casa dele. Entre um assunto e outro, o primeiro comenta o quanto

estava satisfeito com o som para carro, da Pioneer, que havia comprado em ocasião que estava

com aquele amigo. Coincidentemente, poucos minutos depois, passa um comercial de um som

para carro da marca na tv, cujo modelo faz download de músicas enviadas por telefone. O

mesmo chama sua atenção: “Como é isso? Passa do telefone pra ele é?”. Seu interlocutor lhe

explica e ele conclui: “Olha só... Pioneer...”, sugerindo ao amigo como sua escolha tenha sido

moderna.

Aspectos extralingüísticos

Aspectos paralingüísticos

Aspectos interacionais

Atividades marcárias Con

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men

to d

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C

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xto

Face

Fo

otin

g

Aspecto da marca x x x

Característica do usuário da marca x

Conhecimento da marca x x

Desabono à marca x

Escolha da marca x

Intimidade com a marca x

Juízo a respeito da marca x x x

Lembrança da marca x

Uso de conceito da marca x

Valor da marca x

Tabela 10: Relações da função “projetar-se”

Page 185: Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de ...livros01.livrosgratis.com.br/cp077042.pdfTítulo da Tese: “Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de compreensão

179

6.11 Propiciar algo em relação à marca

Temos também como função o propiciar alguma coisa em relação à marca. Isto

quer dizer que alguns aspectos da linguagem têm como função oferecer as condições para a

realização de alguma atividade marcária.

Aspectos extralingüísticos

Aspectos paralingüísticos

Aspectos interacionais

Atividades marcárias Con

tato

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Fo

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g

Assunto relativo à marca x x x x x x x x

Comparação da marca x

Defesa da marca x x x

Diferença em relação à marca x x

Escolha da marca x

Juízo a respeito da marca x x x

Lembrança da marca x

Sentimento pela marca x

Sugestão da marca x

Uso de conceito da marca x

Tabela 11: Relações da função “propiciar”

A propiciação de algo em relação à marca é outra função que ocorre por meio de

aspetos de todas as naturezas, todas por meio de pelo menos dois de seus tipos. Quantos às

atividades marcárias, assuntos relativos à marca e defesa da marca relacionam-se a aspectos

de todas as naturezas, enquanto outras seis relacionam-se a aspectos interacionais apenas,

conforme pode ser visto na Tabela 11.

Page 186: Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de ...livros01.livrosgratis.com.br/cp077042.pdfTítulo da Tese: “Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de compreensão

180

Por exemplo, a conversa [#8] que sogro e genro levam sobre marcas de uísque

enquanto se encaminham para um restaurante em Aliança, interior de Pernambuco, começa

apenas depois deles passarem, na estrada, pelo acesso ao museu da cachaça, chamado atenção

pelo primeiro.

6.12 Provocar algo em relação à marca

O provocar alguma coisa em relação à marca também é uma função observada em

nossas investigações. Aparece aqui como função oposta do propiciar, em que alguns aspectos

da linguagem têm como função ser a causa de alguma atividade marcária. Com isto tenho em

mente que aqui se tratam de atividades adversas em relação às marcas, enquanto lá de

atividades prontas para acontecer, se assim podemos dizer.

A provocação de algo em relação à marca também ocorre por meio de aspetos de

todas as naturezas. Dentre os extralingüísticos por meio de expressões faciais; por meio de

entoações e tons de voz dentre os paralingüísticos; e, finalmente, dentre os interacionais, por

meio de conhecimento de mundo, contexto e face. Em relação às atividades marcárias,

constrangimento em relação à marca se relaciona a aspectos de todas as naturezas, enquanto

frustração e preconceito em relação à marca relacionam-se a aspectos interacionais apenas

(ver Tabela 12).

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181

Aspectos extralingüísticos

Aspectos paralingüísticos

Aspectos interacionais

Atividades marcárias Con

tato

vis

ual

Dis

tânc

ia c

orpo

ral

Expr

essã

o fa

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M

ovim

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a A

cent

uaçã

o A

ltura

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voz

Dur

ação

da

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En

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ão

Tom

V

aria

ção

dial

etal

V

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ção

foné

tica

Alte

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Con

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Face

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Constrangimento em relação à marca x x x x x

Frustração em relação à marca x

Preconceito em relação à marca x

Tabela 12: Relações da função “provocar”

Quando um falante menciona não beber “coisas assim... Martini, Saint Remi...”, a

situação [#25] torna-se constrangedora por duas razões: primeiro, devido ao comentário

anterior do falante, de que estava “feito mulher”, ao rejeitar a dose de uísque que lhe fora

oferecido; além disto, tais bebidas são comumente associadas ao gênero feminino.

6.13 Solicitar algo a respeito da marca

Outra função observada é a de se solicitar alguma coisa a respeito da marca.

Refere-se a situações em que um falante requer de seu interlocutor algo, sobre a marca, o que

a coloca ou fortalece na discussão.

O “algo” a respeito da marca no caso da solicitação como função refere-se apenas

à atividade de opinião sobre a marca, que ocorre por meio de aspectos extra e paralingüísticos,

como demonstrado na Tabela 13.

Page 188: Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de ...livros01.livrosgratis.com.br/cp077042.pdfTítulo da Tese: “Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de compreensão

182

Aspectos extralingüísticos

Aspectos paralingüísticos

Aspectos interacionais

Atividades marcárias Con

tato

vis

ual

Dis

tânc

ia c

orpo

ral

Expr

essã

o fa

cial

M

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ento

dêi

tico

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cent

uaçã

o A

ltura

da

voz

Dur

ação

da

eloc

ução

En

toaç

ão

Tom

V

aria

ção

dial

etal

V

aria

ção

foné

tica

Alte

rnân

cia

de c

ódig

o C

enár

io

Con

heci

men

to d

e m

undo

C

onte

xto

Face

Fo

otin

g

Opinião sobre a marca x x x x x x x

Tabela 13: Relações da função “solicitar”

Quando várias alunas faziam em sala de aula uma “guerra de times” [#1], cada

uma defendendo o seu e atacando os das outras, uma delas levanta a voz e pergunta: “O que o

senhor acha, professor?”, numa busca de legitimidade pela situação que se desenrolava

durante o tempo que já deveria ser da prova.

6.14 Sugerir algo a respeito da marca

Finalmente, como última função, temos a sugestão de alguma coisa a respeito da

marca. O que devemos ter em mente aqui é que aspectos da linguagem podem ser sugestivos

em relação a atividades marcárias.

A função de sugerir algo a respeito da marca ocorre por aspectos de todas as

naturezas, em quase todos os seus tipos identificados em nossas investigações. Os

extralingüísticos são os menos representados: contatos visuais, expressões faciais e

movimentos dêiticos. Já em relação aos paralingüísticos, ocorre por meio de todos os tipos.

Finalmente, dentre os interacionais, não ocorre apenas por meio de alternância de código. Boa

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183

parte das atividades marcárias está sob tal função. São vinte e nove das trinta e oito. Além

disto, são desveladas por meio de vários dos tipos a que nos referimos. A Tabela 14

demonstra todas estas relações.

Aspectos extralingüísticos

Aspectos paralingüísticos

Aspectos interacionais

Atividades marcárias Con

tato

vis

ual

Dis

tânc

ia c

orpo

ral

Expr

essã

o fa

cial

M

ovim

ento

dêi

tico

Mov

imen

to d

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beça

Po

stur

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uaçã

o A

ltura

da

voz

Dur

ação

da

eloc

ução

En

toaç

ão

Tom

V

aria

ção

dial

etal

V

aria

ção

foné

tica

Alte

rnân

cia

de c

ódig

o C

enár

io

Con

heci

men

to d

e m

undo

C

onte

xto

Face

Fo

otin

g

Adesão a outra marca x x x x x

Aspecto da marca x x x x x

Assunto relativo a outra marca x

Característica do usuário da marca x x x x x x x

Comparação da marca x x x x x x x

Comportamento da marca x x x x

Constrangimento em relação à marca x x

Defesa da marca x

Desabono à marca x x x x x x x

Desconfiança da marca x x x x

Desconhecimento da marca x x x

Diferença em relação à marca x x x x x x x x

Dissimulação em relação à marca x x x

Envolvimento com a marca x x x

Escolha da marca x x x x

Forma de uso da marca x x

Frustração em relação à marca x

Gafe em relação à marca x x

Inadequação do usuário à marca x x x x x x x

Incoerência em relação à marca x

Intimidade com a marca x x x x x

Juízo a respeito da marca x x x x x x x x x x x

Tabela 14: Relações da função “sugerir”

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184

Aspectos extralingüísticos

Aspectos paralingüísticos

Aspectos interacionais

Atividades marcárias Con

tato

vis

ual

Dis

tânc

ia c

orpo

ral

Expr

essã

o fa

cial

M

ovim

ento

dêi

tico

Mov

imen

to d

a ca

beça

Po

stur

a A

cent

uaçã

o A

ltura

da

voz

Dur

ação

da

eloc

ução

En

toaç

ão

Tom

V

aria

ção

dial

etal

V

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ção

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Alte

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cia

de c

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o C

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io

Con

heci

men

to d

e m

undo

C

onte

xto

Face

Fo

otin

g

Nome da marca x

Preconceito em relação à marca x x

Rejeição à marca x

Sentimento pela marca x

Surpresa em relação à marca x

Uso do conceito da marca x

Valor da marca x x x x x

Tabela 14: Relações da função “sugerir” (continuação)

O banco do carro de um homem havia quebrado há alguns meses e chegara a um

estado que fazia doer sua coluna [#64]. Só assim resolveu arranjar tempo para consertá-lo. Foi

numa capotaria e fez o orçamento. Antes de sair para consultar uma outra, lembrou ainda de

perguntar o preço de tapetes novos, no que tomou um susto. A resposta do vendedor foi que

“pra esses carros importados é assim mesmo...” (de fato um Peugeot 206, produzido no

Brasil), dando a entender que entende que só deve ter um carro daquele tipo quem pode

mantê-lo.

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185

Da significação

Chegamos agora à significação propriamente dita das marcas em nossas vidas

cotidianas. Tratam-se aqui daqueles aspectos da linguagem que acompanham os signos

lingüísticos e, assim, tornam-se parte ou totalidade de seu uso, possibilitando a geração de

significados para as marcas.

Os aspectos da linguagem ao qual nos referimos são, como sabemos, os

paralingüísticos, extralingüísticos e interacionais. Os primeiros – que, somados, formam o que

se convencionou chamar de “não-verbais” – se referem, respectivamente, aos aspectos

fonéticos e corporais da linguagem. O último, por sua vez, se refere ao que ocorre numa

interação e é de fundamental importância para a compreensão das partes envolvidas do que

está ocorrendo enquanto interagem.

Como vimos, estes aspectos propiciam significados às marcas ao assumirem

certas funções em relação às atividades marcárias. Nas páginas que se seguem trataremos

exatamente de como os mesmos assim o fazem, ou seja, de como tais aspectos desempenham

suas funções relativas às marcas

Serão quatro os capítulos sobre a significação. Em relação aos aspectos

paralingüísticos, chegamos fundamentalmente a elementos de prosódia. Quanto aos aspectos

extralingüísticos, identificamos apenas movimentos cinésicos. Por fim, os aspectos

interacionais estão divididos em dois capítulos, graças à natureza diversa dos elementos aqui

identificados. Assim, temos, por um lado, os aspectos que propiciam uma visão êmica acerca

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186

das marcas e, por outro, aspectos da constituição e manutenção interacionais do “eu” e como

estes se relacionam aos signos marcários.

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187

7 Prosódia marcária Os traços prosódicos, como são conhecidos os elementos de prosódia, referem-se,

tradicionalmente, à parte da fonética que trata da correta – do ponto de vista da língua culta –

sonoridade dos fonemas. Faz parte, juntamente com a ortoépia, que trata da correta – mais

uma vez do ponto de vista da língua culta – pronúncia das palavras, do que aqui chamamos de

aspectos paralingüísticos, que se trata da dimensão fonética da linguagem. Apesar disto,

prosódia e ortoépia são comumente tratadas como uma única dimensão, pois, afinal de contas,

ambas influenciam a forma como as pessoas pronunciam as palavras de uma língua (ALBANO

et al., 1997; ANDRADE e APPA, 2005; MATEUS, 2004).

De um ponto de vista pragmático, assumimos que, uma vez que as variações

fonéticas com que os signos lingüísticos são usados dependem fundamentalmente da fala em

seu contexto interacional, tais variações têm implicatura fundamental na significação. Assim,

deixamos de considerar as funções prosódicas e ortoépicas do ponto de vista da forma culta

para assumi-las na linguagem em uso. Isto quer dizer que estamos tratando-as em como os

aspectos de sonoridade e pronúncia dos signos lingüísticos são manifestados

interacionalmente, no sentido de expressar diferentes intenções ou sentimentos dos falantes.

Em nossas investigações observamos uma maior ênfase relativa aos elementos de

prosódia. Identificamos como traços prosódicos a acentuação, a altura da voz, a duração da

elocução, a entoação e o tom, os quais são discutidos nas próximas seções. Além destes,

identificamos também dois aspectos ortoépicos, as variações dialetais e fonéticas, que,

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188

assumidos como de uma mesma dimensão, são apresentados também neste capítulo de

prosódia.

7.1 Acentuação

A noção de acentuação que assumimos aqui se caracteriza pela intensidade dada a

certos trechos silábicos e não necessariamente às sílabas tônicas próprias de cada palavra. Isto

quer dizer que não nos atemos se a acentuação está correta ou não, do ponto de vista da norma

culta, mas se e como a mesma está contribuindo para a significação das marcas.

Identificamos duas formas de uso da acentuação, às quais batizei de ênfase tônica

e “soletrada”. À primeira forma, nos referimos às situações em que uma das sílabas de uma

palavra é enfatizada em sua pronúncia, não sendo esta necessariamente aquela tônica. Quanto

à segunda, nos referimos às situações em que todas as sílabas de uma palavra, oração ou frase,

inteira ou parcialmente, são tonicizadas.

Dois casos específicos devem ser considerados. O primeiro se refere às palavras

monossilábicas. Assumimos que só deveríamos considerar o caso de soletradas em tais

circunstâncias se houvesse pelo menos uma pequena quebra de voz na pronúncia da palavra –

o que caracterizaria o intuito de se destacar diferentes nuanças fonéticas de uma mesma

palavra –, ficando os outros casos admitidos como ênfases tônicas.

O segundo caso se refere aos nomes das marcas. No caso de nomes de marcas

formadas por mais de uma palavra, consideramos estas, em nossa interpretação analítica,

como “palavras compostas”, por entendermos que funcionam como uma única palavra. Além

disto – e até mesmo por isto –, os nomes das marcas aparecem como uma das principais

dimensões dentre as que são marcadas por aspectos de acentuação. Com isto, para efeito deste

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189

tipo de análise, nos referimos a “marcas simples” e “marcas compostas”, para diferenciar

entre aquelas formadas por apenas uma palavra ou por mais de uma.

A acentuação tem funções diversas no discurso, tais como colocar algo em

evidência, estabelecer contrastes, gerar expectativas, controlar a atenção do interactante etc.

Em nossas observações identificamos seis funções da acentuação: caracterizar algo relativo à

marca, se projetar por meio de algo relacionado à marca, chamar atenção para algo da marca,

desvelar algo a respeito da marca, enfatizar algo em relação à marca e sugerir algo a respeito

da marca. As quatro últimas são funções tanto da ênfase tônica quanto da soletrada, enquanto

o caracterizar apenas da primeira e o projetar-se apenas da segunda.

7.1.1 A ênfase tônica

As ênfases tônicas ocorrem apenas em palavras, no que se incluem frases

formadas por uma única palavra. Temos aqui substantivos, interjeições, adjetivos, advérbios,

pronomes demonstrativos, além de nomes de marcas, tanto simples quanto compostas.

Como antecipei, temos cinco funções da ênfase tônica. Ela caracteriza, chama

atenção para, desvela, enfatiza, ou sugere doze atividades marcárias, como pode ser visto na

Tabela 15.

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190

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

izar

[De]

Mo[

n]st

rar

Pres

erva

r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Aspecto da marca x x x

Característica do usuário da marca x x

Comportamento da marca x

Confiança na marca x

Diferença em relação à marca x

Dissimulação em relação à marca x

Expectativa em relação à marca x

Inadequação do usuário à marca x

Juízo a respeito da marca x x x

Lembrança da marca x

Nome da marca x

Sentimento pela marca x

Surpresa em relação à marca x

Tabela 15: Relações de significação da “ênfase tônica”

Caracterizando algo relativo à marca por meio de ênfases tônicas

A função da ênfase tônica de caracterizar algo relativo à marca se refere apenas a

aspectos da marca. Em transmissão de treino da Seleção Brasileira de futebol em sua

preparação para a Copa [#117], o jornalista Juca Kfouri caracteriza um aspecto da mesma, ao

afirmar que “Todos nós sabemos que a defesa do Brasil não é nenhuma BrasTEMp”, tendo

em mente caracterizar tal setor do time como deficiente, no que a sílaba tônica da palavra

adjetivadora foi destacada.

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191

Chamando atenção para algo relativo à marca por meio de ênfases tônicas

A função da ênfase tônica de chamar atenção para algo relativo à marca se refere a

aspectos da marca, comportamento da marca, dissimulação em relação à marca e juízo a

respeito da marca.

Em relação à primeira atividade, podemos exemplificar com a situação [#112] em

que doméstica e sua empregadora conversam sobre ajuda que a primeira deu a uma amiga

quando esta teve sua filha. Ao dizer que, assim como para sua própria filha, para a filha da

amiga também só comprava “Mucilon MESmo” e não imitação, falante chama atenção para

tal característica ao destacar sílaba tônica da palavra que fornece a garantia necessária para o

que ela diz.

Em outra situação [#23], ao pegar a garrafa da cachaça Maribondo, ofertada pelo

anfitrião, homem estranha uma peculiaridade da mesma: “Ôxi! E eles vendem na garrafa de

Montila, é?”. Sua interjeição, cuja sílaba tônica é destaca em sua fala, chama atenção para o

comportamento da marca, por usar garrafa de outro fabricante para engarrafar sua bebida.

Na mesma interação [#23], instantes depois, após rejeitar a tal cachaça de forma

pejorativa duas vezes, mulher vê anfitrião sugerir que ela estaria sendo dissimulada, uma vez

que já bebera cachaça, e chama atenção para o fato da mesma forma que o caso anterior:

“Ôxi... mas menino!”.

Quanto a um juízo acerca de uma marca ser chamado atenção por uma ênfase

tônica, podemos destacar a situação [#15] em que mulher fica frustrada por não comprar um

sapato da Arezzo. Em sua reclamação, ela destaca que a mesma era muito bonita “e da

Arezzo”, no que seu marido pergunta o que é que tem [ser da] Arezzo. Sua resposta é a

própria frase dele: “Que é que tem Arezzo, MÔ...”. Sua ênfase tônica ao usar o tratamento

carinhoso chama atenção para o fato dela entender que sua pergunta era óbvia. Vale

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192

mencionar que, neste caso, temos uma das situações antecipadas de palavras monossílabas,

aqui assumida como ênfase pela continuidade fonética da pronúncia da palavra.

Desvelando algo a respeito da marca por meio de ênfases tônicas

A ênfase tônica também desvela atividades marcárias. Elas são: confiança na

marca, sentimento pela marca e surpresa em relação à marca. O primeiro caso podemos

exemplificar com a situação [#9] em que homem é questionado sobre se o restaurante A

Traíra estaria aberto depois de terem se locomovido 90km para nele chegar. Sua resposta é

enfática: “CLAro!”. A garantia que ele dá fica evidenciada na forma como ele destaca a

interjeição, com ênfase em sua sílaba tônica, desvelando sua confiança na marca.

Exemplo de sentimento desvelado por ênfase tônica temos na situação [#52] em

que, durante conversa entre dois professores sobre show do U2 no Brasil, um deles garante:

“A gente que tá com trinta, trinta e poucos anos, é que somos fã MESmo...”. A ênfase dada à

sílaba tônica do advérbio em questão não só enfatiza uma situação, mas desvela o sentimento

da falante em relação à banda.

Por fim, uma outra interjeição nos serve de exemplo de desvelamento de uma

surpresa em relação à marca. Ao chegar num shopping e sua filha dizer que iria ao Atacadão

da Papelaria [#29], mulher pergunta: “Ôxi! E tem Atacadão aqui é?”.

Enfatizando algo relativo à marca por meio de ênfases tônicas

Outra função da ênfase tônica, como não poderia deixar de ser, é enfatizar

atividades marcárias. Aqui temos aspectos da marca, características dos usuários da marca,

diferença em relação à marca, expectativa em relação à marca, juízo a respeito da marca,

lembrança da marca e nome da marca.

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193

Exemplos de ênfase em relação a um aspecto da marca e a uma expectativa em

relação à marca podem ser dados por meio de uma mesma situação [#16] em que mulher

justifica ao marido decepção com loja da Chilli Beans por ter pensado que fosse “uma coisa

mais e CHIque”. O destaque dado à silaba tônica do adjetivo em questão enfatiza o aspecto

esperado e não encontrado na marca.

Em relação à ênfase tônica como forma de enfatizar uma característica do usuário

de uma marca, temos a situação em que [#47] mulher reclama, demonstrando estranhamento,

de comentário de uma médica que a atendeu, tendo em vista o tipo de cliente que freqüenta o

hospital em que ela foi atendida: “Um hospital daquele, feito o Português, que só vai quem

pode pagar um plano BOM...”. O adjetivo é enfatizado justamente para destacar a que tipo de

cliente ele se refere. Vale mencionar, ainda, que trata-se de mais um caso de ênfase tônica em

palavra monossílaba.

Um exemplo de ênfase tônica enfatizando uma diferença em relação à marca pode

ser dada por situação [#2] em que mulher, após sair de um posto de saúde de uma comunidade

pobre onde estivera para tratar de negócios particulares, comenta que se fosse médica queria

trabalhar no hospital Português ou Santa Joana “e não num posto de saúde no IBUra”. Sua

ênfase na sílaba tônica do nome do bairro enfatiza a diferença entre o mesmo e os hospitais

que ela houvera mencionado.

Quanto ao juízo a respeito da marca sendo enfatizado por uma ênfase tônica,

podemos ilustrar com a situação [#75] em que, após conversar com um colega de trabalho,

professor de Publicidade & Propaganda conclui que “A Intercom é uma ZOna!”. Mais uma

vez temos ênfase na sílaba tônica de um adjetivo como forma de se destacar o que se

pretende.

Outra atividade marcária enfatizada por meio de ênfase tônica é a lembrança da

marca. Como exemplo de uma situação tal, podemos mencionar a [#17] que duas mulheres

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194

falam sobre sapatos e uma elogia a marca Via Marte, da qual sua interlocutora mencionara

compra de um sapato. Pouco depois na conversa, lembra-se: “Ah... é VIa Uno”. Sua

lembrança se refere à confusão que havia feito entre diferentes marcas por estas começarem

por uma mesma palavra, o que é enfatizado na sílaba tônica da mesma.

A situação mais comum aqui é de ênfase do nome da marca. Como exemplo

podemos demonstrar a situação [#85] em que moça justifica forma como estava vestida para a

faculdade: “Mas é M. Officer!”. Aqui o próprio nome da marca é destacado, o que é feito por

meio de ênfase tônica na sílaba mais forte da marca.

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de ênfases tônicas

Finalmente, uma última função da ênfase tônica é a de sugerir algo a respeito da

marca. Aqui se refere ao usuário da marca, seja referente às suas características ou à sua

inadequação à mesma, ou a um juízo a respeito da marca.

O primeiro caso pode ser exemplificado pela situação [#61] em que consultor

critica empresária por oferecer-lhe um valor aquém do que entende merecer pelo seu serviço.

“Me faz uma proposta dessa e usa PRAda”. A ênfase na sílaba tônica do nome da marca

sugere o perfil sócio-econômico da empresária, o que faz o falante sugerir também um

comportamento tacanho de sua parte.

Em relação ao segundo caso, a situação [#62] em que duas alunas de faculdade

criticam uma terceira pelo seu estilo de se vestir nos é elucidativa. Uma das interactantes

pergunta à outra, sobre a terceira, “como é que pode usar uma camisa da DIEsel com uma

calça daQUEla, que nem é de marca?”. As ênfases tônicas nas sílabas fortes do nome da

marca e do pronome demonstrativo servem como uma comparação da peça da marca com

uma assumida como inferior, sugerindo que a usuária não sabe como combinar aquela marca

para se vestir, o que indicaria sua inadequação à mesma.

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195

Por fim, em relação a um juízo a respeito da marca, um bom exemplo é a situação

[#8] em que, após dizer ao seu interlocutor o preço de uma garrafa de Johnny Walker selo

azul, falante emite um sonoro “NÃO” antecipando sua desistência da compra, sugerindo que

o mesmo não valeria tanto, em mais um exemplo de ênfase tônica numa palavra monossílaba.

7.1.2 A soletrada

Nomes de marcas são dominantes dentre as soletradas, sendo elas tanto simples

quanto compostas. Além delas, outras palavras soletradas são conjunções adversativas e

pronomes demonstrativos e de tratamento. Temos ainda casos de soletradas em orações, parte

de frases ou mesmo em frases inteiras.

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

izar

[De]

Mo[

n]st

rar

Pres

erva

r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Aspecto da marca x x x

Comparação da marca x

Frustração em relação à marca x

Gafe em relação à marca x x

Juízo a respeito da marca x x x x

Nome da marca x

Preconceito em relação à marca x

Sugestão da marca x

Uso de conceito da marca x x

Tabela 16: Relações de significação da “soletrada”

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196

A soletrada também tem cinco funções na significação das marcas. Ela chama

atenção para, desvela, enfatiza, possibilita projeção por meio de ou sugere nove atividades

marcárias. A Tabela 16 resume tais relações.

Chamando atenção para algo relativo à marca por meio de soletradas

A função da soletrada de chamar atenção para algo da marca se refere a aspectos

da marca, gafes em relação à marca e juízos a respeito da marca. Na situação [#127] em que

uma das coordenadoras do núcleo de moda de uma faculdade menciona em reunião evento

patrocinado pela Dupé, colega do núcleo chama atenção para sua gafe: “DU-PÉ?”. A

soletrada destaca repreendedoramente o nome errado da marca, uma vez que o evento em

questão havia sido patrocinado por uma outra marca de sandálias: as Havaianas.

Em relação a se chamar atenção para um aspecto da marca, podemos mencionar a

situação [#8] em que homem, conversando com seu genro, diz que tinha ido comprar um

Johnny Walker selo azul para presentear um amigo seu e desistiu devido ao preço: “Tava a

seiscentos e tantos conto, TU-A-CRE-DI-TA?”. Aqui a soletrada ocorre numa oração inteira,

chamando atenção para o preço do uísque, considerado alto pelo falante.

Quanto ao juízo a respeito da marca, um exemplo de um chamado atenção por

meio de soletrada pode ser dado pela situação [#33] em que falante critica faculdades

particulares como forma de atingir interlocutora que acabara de passar em uma, a Sopece:

“É... TAM-BÉM, faculdade particular é muito fácil”. A soletrada naquela conjunção

adversativa tem por função justamente chamar atenção para seu juízo em relação à marca em

questão, ainda que ela o faça por meio de sua classe como um todo.

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197

Desvelando algo a respeito da marca por meio de soletradas

A função da soletrada de desvelar algo relativo à marca se refere a juízos a

respeito da marca, sugestão da marca e preconceito em relação à marca. Uma mesma situação

[#10] no serve para demonstrar os dois primeiros tipos. Num restaurante, ao mencionar que

estava por comprar um ventilador, falante pergunta à mãe pelo que aquela havia comprado, no

que esta responde que não era bom; que “Bom é AR-NO”. A soletrada destaca o nome da

marca, cujo juízo está sendo desvelado. Vale destacar que este é um caso curioso, e raro, de

soletrada em palavra dissílaba, uma vez que as mesmas costumam, quando é o caso, serem

por ênfases tônicas. Na seqüência sua tia comenta que o Mondial “também é MUI-TO-

BOM”. A soletrada em parte da frase desvela uma sugestão de marca feita pela falante à sua

sobrinha.

Numa situação [#65] que nos serve como exemplo de desvelamento de

preconceito em relação à marca por meio de uma soletrada, um falante, ao ser perguntado

pelo seu interlocutor se já tinha assistido ao filme BrokeBack Mountain, responde: “E eu sou

VE-A-DO?”.

Enfatizando algo relativo à marca por meio de soletradas

A soletrada também enfatiza atividades das marcas. Neste caso, temos aspectos da

marca, juízo a respeito da marca, nome da marca, uso de conceito da marca e frustração em

relação à marca.

Uma mesma situação [#96] nos serve para demonstrar os dois primeiros casos.

Tendo pego carona com um amigo, falante comenta que ultimamente “só vive aparecendo

Peugeot na novela”, no que conclui: “Peugeot TÁ-COM-TU-DO!”. A soletrada em parte da

frase adjetiva enfatiza o que o falante entende ter se tornado um atributo (abstrato) da marca:

ser notória. Logo após seu comentário, o motorista diz que precisará parar num posto pois o

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198

carro está aquecendo. Seu interlocutor pergunta como ele sabe, no que o outro responde que o

painel avisou. Estarrecido, carona faz novo elogio: “Esse carro é MUI-TO-BOM!”,

enfatizando seu juízo acerca da marca, novamente por meio de parte de uma frase que o

adjetiva.

Assim como ocorre com a ênfase tônica, nomes de marcas são comumente

soletradas como forma de serem enfatizadas. Podemos exemplificar isto tanto com marcas

simples quanto compostas. Como forma de criticar médica que a havia atendido, falante

destaca o hospital em que a mesma trabalha: “Um hospital daquele, feito o POR-TU-GUÊS”

[#47]; como forma de diferenciar duas escolas, mulher destaca nome de uma delas: “... mas

também não é um SAN-TA-MA-RI-A” [#3].

Uma outra soletrada de um nome de marca também nos serve como exemplo de

ênfase do uso de conceito de uma marca. Colegas de trabalho almoçam juntos num

restaurante [#106] quando um deles pergunta a uma interlocutora se ela havia sido procurada

por certa pessoa no trabalho. Ela disse que sim, mas que a mesma era “atacada”; que “Devia

ter tomado RI-VO-TRIL!”. Com a referência ao remédio controlado, estava sugerindo que a

mesma era louca.

Por fim, quanto à ênfase a uma frustração em relação a uma marca por meio de

uma soletrada, podemos mencionar a situação [#15] em que temos o nome de uma marca.

Decepcionada por não comprar seu sapato, mulher responde ao marido, que perguntara o que

é que tinha o fato de ser da marca em questão, “O que é que tem A-REZ-ZO, mô?”,

destacando nome da marca para demonstrá-lo a causa de sua frustração.

Projetando-se por meio de algo relacionado à marca por meio de soletradas

Possibilitar a alguém se projetar por meio de algo relacionado à marca, no caso

por aspectos da marca, também foi uma função da soletrada. Exemplo deste caso temos em

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199

situação [#135] em que amigos falam, na sala de estar da casa de um deles, do som para carro,

da Pioneer, que o outro havia comprado junto com o anfitrião em ocasião que estavam num

shopping. Neste momento passa comercial, na televisão, de som da marca, de um modelo que

faz download de músicas enviadas por telefone celular. A propaganda chama atenção do

proprietário do novo som, que pergunta: “Como é isso? Passa do telefone pra ele é?”. Seu

interlocutor explica o funcionamento. Sua reação é simplesmente soletrar o nome da marca:

“PI-O-NEER...”. Com isto, no entanto, falante projetou-se como proprietário de um aparelho

de marca tão moderna.

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de soletradas

Finalmente, a soletrada possibilita que se sugira comparação da marca, gafe em

relação à marca e juízo a respeito da marca. No exemplo que há pouco mencionamos [#15],

em que mulher responde ao marido “O que é que tem A-REZ-ZO, mô?”, ela também estava

sugerindo seu juízo a respeito daquela marca.

Em outra situação [#66], marido corrige sua mulher, que havia chamado jogo de

videogame de Mario e Luigi: “SU-PER-MA-RIO-BROS!”. A soletrada do nome correto da

marca sugere que ela havia cometido uma gafe em relação à mesma por dizer o nome errado.

Por fim, temos um exemplo em que a soletrada tem como função sugerir

comparação com uma marca numa situação [#70] em que, após ter dado banho em criança e o

estar arrumando, doméstica brinca com ele: “Que menino mais feio! CA-BE-ÇA-DE-BI-

GOR-NA!”. Ela estava se referindo ao desenho animado [Hey] Arnold, privilegiado, não

sozinho, por uma cabeça grande.

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200

7.2 Altura da voz

A altura da voz refere-se à qualidade do som da fala relacionada à freqüência de

suas vibrações (aguda, média, grave). Evidentemente, em nossas investigações a noção de

altura de voz que assumimos se caracteriza pela forma como esta pode contribuir na

significação das marcas.

Consideramos duas variações de altura da voz em nossas observações: alta e

baixa. Contudo, outras variações ocorrem em cada uma delas. Na alta, identificamos também

aumento gradativo e esbravejo. Na baixa, identificamos baixa gradativa e cochicho.

A altura da voz tem várias funções no discurso, tais como indicar: polidez,

intenção de chamar ou manter a atenção do outro, ira, medo etc. Em nossas observações, a

altura da voz se mostra em seis funções, quais sejam: chamar atenção para algo da marca,

desvelar algo a respeito da marca, enfatizar algo em relação à marca, preservar[-se] de algo

relativo à marca, solicitar algo a respeito da marca e sugerir algo a respeito da marca. Todas

são funções da voz alta, enquanto apenas a última é função da voz baixa.

7.2.1 Voz alta

A voz alta ocorre em frases, orações e palavras, dentre as quais nomes de marcas.

Como antecipei, temos seis funções da voz alta na significação das marcas. Estas funções

estão relacionadas a dezessete atividades marcárias. A Tabela 17 mostra tais relações.

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201

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

izar

[De]

Mo[

n]st

rar

Pres

erva

r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Aspecto da marca x x

Característica do usuário da marca x

Comportamento da marca x

Confiança na marca x

Defesa da marca x

Diferença em relação à marca x

Envolvimento com a marca x

Frustração em relação à marca x

Gafe em relação à marca x

Intimidade com a marca x

Juízo a respeito da marca x x

Nome da marca x

Opinião sobre a marca x

Preconceito em relação à marca x

Sentimento pela marca x

Sugestão da marca x

Uso de conceito da marca x x

Tabela 17: Relações de significação da “voz alta”

Chamando atenção para algo relativo à marca por meio de voz alta

Uma das funções da voz alta é a de chamar atenção para algo da marca. Esta se

refere a aspectos da marca, comportamento da marca, sugestão da marca e uso de conceito da

marca. Os dois primeiros casos podem ser exemplificados com a situação [#116] em que um

homem reclama do fato de pessoas que estavam na fila ao lado da sua só terem sido avisadas

que aquela se tratava de uma priorizada para idosos e gestantes depois de estarem há muito

tempo na mesma. Em voz alta ele denuncia: “VÔTE! ESSE BOMPREÇO TÁ MUITO

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202

ESCULHAMBADO!”. Com isto chama atenção para um aspecto e um comportamento

negativo da marca.

Em outra situação [#79], professor tossia muito durante sua aula, o que o deixava

irritado. Percebendo sua agonia, uma aluna resolve interromper e, em voz alta, chama-lhe

atenção para sugerir uma solução: “PROFESSOR, O SENHOR JÁ TOMOU GOTAS

BINELLI?”.

Em outra situação de sala de aula [#109], um professor ministrava aula do módulo

Comportamento do Consumidor a uma turma de pós-graduação latu sensu de marketing. Em

dado momento, divide os alunos em grupos, para os quais define marcas para que reflitam

sobre que desejos, e não necessidades, estariam por trás do seu consumo. Já durante debate,

volta-se para o grupo que se responsabilizara pela análise da Coca-Cola e pergunta sobre a

mesma. “COCA-COLA É ISSO AÍ, PROFESSOR”, é a resposta, em voz alta para se

antecipar aos colegas, que vem por parte de um dos integrantes, o que fez em tom de

brincadeira, mas claramente se referindo, em tom de piada, ao nível de abstração a que o

professor tentava fazê-los chegar.

Desvelando algo a respeito da marca por meio de voz alta

A função da voz alta de desvelar algo a respeito da marca se refere a seis

atividades marcárias: confiança na marca, defesa da marca, envolvimento com a marca,

frustração em relação à marca, preconceito em relação à marca e sentimento pela marca.

Ao levar sua família para A Traíra [#9], restaurante a 90km de Recife, homem

responde, em voz alta, à sua filha que perguntara se ele tinha certeza que o mesmo estaria

aberto: “CLARO!”, desvelando sua confiança de que o mesmo não faltaria com sua certeza

em relação a ele.

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203

Em outra situação [#1], ao ver seu time, o Náutico, ser atacado por várias de suas

colegas de sala, jovem defende o mesmo esbravejando a todos que “HEXA É LUXO!”,

usando o clichê do time, compartilhado pela torcida, em relação à maior seqüência de títulos

estaduais.

Em relação ao envolvimento com a marca, temos mais um exemplo com time de

futebol [#86]. Um homem vestido com short e camisa do Sport dirige-se a um colégio aquele

sábado. Na portaria, uma voz sisuda o pergunta aonde vai. Ele responde que vai ao jogo que

está acontecendo na quadra e sua entrada é liberada. Mal havia dado o primeiro passo quando

a mesma voz, agora amiga e um tanto risonha, ecoa em voz alta: “AMANHÃ É QUATRO A

ZERO!”. Era a véspera da final do Campeonato Pernambucano e a cidade só falava do jogo

entre Sport e Santa Cruz.

Para exemplificar uma frustração em relação à marca desvelada por meio de altura

da voz podemos usar a situação [#33] em que, após falar mal da faculdade em que sua

interlocutora iria ingressar, estendendo tal crítica a faculdades particulares como um todo,

mulher esbraveja quando perguntada pela sua mãe por que não faz uma faculdade: “COMO?

PAGUE PRA MIM, PAGUE!”.

Quanto ao desvelamento de preconceito em relação a uma marca por meio de voz

alta, podemos demonstrar a situação [#65] em que, ao ser perguntado por colega se já tivera

assistido BrokeBack Mountain, falante, em voz alta, pergunta: “E EU SOU VEADO?”.

Por fim, em situação [#66] em que mulher é corrigida por seu marido por chamar

o videogame Super Mario Bros de “Mario e Luigi”, desvela seu sentimento por aquele jogo

ao falar em voz alta: “CHAMO COMO EU QUISER, MEU FILHO! ERA ASSIM QUE

EU CHAMAVA QUANDO EU ERA CRIANÇA”.

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204

Enfatizando algo relativo à marca por meio de voz alta

Enfatizar algo relativo à marca é outra função da voz alta. Temos quatro

atividades marcárias ocorridas por meio desta função: aspecto da marca, juízo a respeito da

marca, nome da marca e uso de conceito da marca.

Na situação [#3] em que duas vizinhas conversam sobre a escolha da escola para a

filha de uma delas, temos um exemplo que nos elucida tanto em relação a aspectos da marca

quanto a um juízo em relação à marca. A mãe menciona o Colégio Boa Viagem e,

gradativamente, vai aumentando sua voz na medida em que enfatiza seus principais aspectos e

o juízo que ela faz da escola: “É UMA ESCOLA BOA, TEM PISCINA OLÍMPICA... É

DE CLASSE MÉDIA...”.

Quanto à ênfase do nome da marca pela altura da voz, podemos tirar um exemplo

da situação [#42] em que, durante conversa entre colegas de trabalho, um deles fala “Lots” se

referindo à série Lost, no que é corrigido pelo seu interlocutor. Pouco depois, durante um

instante de silêncio da conversa, ele fala alto, como que para si mesmo, como se ensaiasse a

pronúncia correta: “LOST”.

Em outra situação [#106] em que o nome da marca é falada alta, quando uma

mulher refere-se a uma outra que seria “atacada” e comenta brincando que a mesma “DEVIA

TOMAR RIVOTRIL”, o faz em voz alta, para enfatizar uso de conceito da marca aplicada à

situação que ela sustenta em relação àquela mencionada.

Preservando[-se] de algo relativo à marca por meio de voz alta

Possibilitar preservação de algo relativo à marca é mais uma função da voz alta,

referente aqui a gafes em relação à marca e a juízos a respeito da marca. Ao pronunciar em

voz alta, e agora de forma correta, o nome da marca “LOST” [#42], falante estava também se

preservando em relação ao seu interlocutor, da gafe que cometera ao pronunciar erradamente

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205

o nome da mesma, segundos antes. Por outro lado, ao sair em defesa do Náutico esbravejando

que “HEXA É LUXO!” [#1], falante estava também se preservando em relação às suas

colegas de turma do juízo daquelas em relação ao seu time.

Solicitando algo a respeito da marca por meio de voz alta

Da mesma interação [#1] que acabamos de mencionar podemos tirar um exemplo

da função da voz alta de solicitar opinião sobre a marca. Antes do ocorrido que acabamos de

mencionar, durante instante em que os ânimos estavam exaltados e o professor tentava iniciar

a aula, uma voz levanta-se sobre as outras e pergunta a este: “O QUE O SENHOR ACHA,

PROFESSOR?”, como forma de legitimar a discussão.

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de voz alta

Finalmente, a voz alta também tem como função sugerir algo a respeito da marca,

o que ocorre referente a três atividades marcárias: característica do usuário da marca,

diferença em relação à marca e intimidade com a marca.

Do esbravejo “HEXA É LUXO!” que temos discutido ilustramos as duas

primeiras atividades. Ali há uma sugestão de diferença entre as marcas, uma vez que Náutico

é o “único hexa” e Santa Cruz e Sport “são apenas penta”. Além disto, há uma sugestividade

de que os torcedores daqueles são de uma classe social inferior aos do primeiro.

Por fim, em situação [#122] em que homem diz que seu e-mail do Google “É UM

DOS PRIMEIROS, DO TEMPO QUE TINHA QUE TER CONVITE” o faz em voz alta,

sugerindo aos seus interlocutores sua intimidade com a marca.

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206

7.2.2 Voz baixa

Os casos de voz baixa em nossas investigações ocorrem em frases inteiras. Coma

já havia mencionado, temos uma função, a de sugerir algo a respeito da marca, aqui desabono

e juízo, como demonstra a Tabela 18.

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

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Iron

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[De]

Mo[

n]st

rar

Pres

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r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Desabono à marca x

Juízo a respeito da marca x

Tabela 18: Relações de significação da “voz baixa”

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de voz baixa

A voz baixa tem, em nossas observações, apenas a função de sugerir algo a

respeito da marca. E isto ocorre em desabono à marca e a algum juízo a respeito da marca. O

primeiro caso podemos ilustrar com a situação [#23] em que, após tentar dissuadir seu marido

de tomar um trago de Maribondo e por isto ser recriminada pelos outros interlocutores,

mulher cochicha junto ao seu ouvido repreendedoramente: “QUER TOMAR, ENTÃO TOME!”.

Em relação a um juízo a respeito da marca, podemos exemplificar com a situação

[#8] em que, após dizer ao seu interlocutor o preço de uma garrafa de Johnny Walker selo

azul, falante baixa, gradativamente, sua voz, para falar de sua desistência da compra,

sugerindo que o mesmo não vale tanto: “Não... DESISTI LOGO”.

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207

7.3 Duração da elocução

A duração da elocução refere-se ao tempo de articulação do som da fala e varia,

de forma inversamente proporcional, de acordo com a velocidade de elocução, que pode ser

uma frase, oração ou mesmo palavra. Toda elocução, evidentemente, tem uma velocidade e,

assim, uma duração. Em nossas investigações consideramos apenas situações de duração da

elocução que contribuem, de alguma forma, na significação das marcas.

Consideramos duas variações de duração da elocução em nossas observações:

lenta e rápida. Como os próprios termos sugerem, tratam-se da velocidade com que o

enunciado é proferido. Mas um aspecto deve ser destacado. Observamos situações de

aceleração e de desaceleração graduais, as quais consideramos como variações de elocuções

rápidas e lentas, respectivamente.

A duração da elocução tem funções diversas no discurso, podendo indicar

aspectos como tranqüilidade, aflição, pressa e tantos outros. Em nossas investigações

identificamos seis funções: chamar atenção para algo da marca, desvelar algo a respeito da

marca, projetar-se por meio de algo relacionado à marca, enfatizar algo em relação à marca,

preservar[-se] de algo relativo à marca e sugerir algo a respeito da marca. Todas são funções

da elocução lenta, enquanto apenas as três últimas são funções da elocução rápida.

7.3.1 A elocução lenta

A duração lenta de elocuções é observada amplamente em nossas investigações.

Marca frases, no que podemos destacar várias delas formadas apenas por uma palavra;

orações, ou mesmo apenas parte de uma oração; e, ainda, palavras isoladas, no que

identificamos também o caso da mesma ser o nome de uma marca.

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208

Como antecipei, identificamos seis funções da elocução lenta. Ela chama atenção

para, desvela, enfatiza, possibilita preservação ou projeção por meio de e sugere dezessete

atividades marcárias, conforme demonstrado na Tabela 19.

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

izar

[De]

Mo[

n]st

rar

Pres

erva

r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Aspecto da marca x x x

Característica do usuário da marca x x

Comparação da marca x

Constrangimento em relação à marca x

Desabono à marca x

Desconhecimento da marca x

Diferença em relação à marca x x

Escolha da marca x

Frustração em relação à marca x x

Inadequação do usuário à marca x

Juízo a respeito da marca x x x x x

Lembrança da marca x

Nome da marca x

Preconceito em relação à marca x

Sentimento pela marca x

Situação relacionada à marca x x

Uso de conceito da marca x

Tabela 19: Relações de significação da “elocução lenta”

Chamando atenção para algo relativo à marca por meio de elocuções lentas

Em relação à função da elocução lenta de chamar atenção para algo da marca, esta

se refere a aspectos da marca, desabono à marca, frustração em relação à marca, juízo a

respeito da marca, situação relacionada à marca e uso de conceito da marca.

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209

Quando uma mulher, ao passar pela frente de uma loja da Chilli Beans,

lentamente diz “Igi! É isso é?” [#16], ela chama atenção para as três primeiras

atividades marcárias mencionadas: a mesma não ser tão “chique” quanto ela imaginara, além

de fazer menção a tal aspecto (ser simples), também o faz como desabono àquela marca e

sinaliza sua frustração em relação à mesma.

Em outra situação [#33], mulher, ao criticar faculdade de sua interlocutora, chama

atenção para seu juízo em relação à mesma, dizendo lentamente: “É... também...”,

para introduzir que “faculdade particular é muito fácil”.

Sobre nossa atividade seguinte, podemos usar o exemplo [#5] em que, ao

conversar com vizinha, falante, para introduzi-la situação de que houvera ganhado de sua

sogra um biquíni da Água de Coco, chama sua atenção, lentamente preparando a situação:

“Ah... nem te conto:”.

Por fim, temos um exemplo de entoação lenta chamando atenção para um uso de

conceito de marca em situação [#106] em que, lentamente, falante afirma de uma outra

mulher que esta “Devia tomar Rivotril”.

Desvelando algo a respeito da marca por meio de elocuções lentas

A função da elocução lenta de desvelar algo a respeito da marca se refere a juízo a

respeito da marca, lembrança da marca, preconceito em relação à marca e sentimento pela

marca.

Em relação ao primeiro caso, podemos ilustrar com uma situação [#4] em que,

após ser questionada por sua interlocutora sobre desvalorização que impora a um “livrinho”

que sua cunhada ganhara do marido, mulher justifica-se, chamando atenção, lentamente, para

introdução ao seu juízo a respeito da Diesel, da qual a mesma houvera dado uma calça e uma

camisa a ele: “É, pode ser...”.

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210

Quanto à função da entoação lenta de desvelar a lembrança de uma marca,

podemos exemplificar com uma situação [#105] em que, após perguntar a um colega de

trabalho pela sua esposa e este, dentre outros, comentar que a mesma havia entrado na

faculdade, falante não se lembra da mesma pelo nome, Sopece, no que uma terceira menciona

que trata-se da de “Pinto Ferreira”, referindo-se ao conhecido proprietário da mesma. Sua

reação, ao agora lembrar da mesma é um longo “Ah...”.

Em outra situação [#65], ao responder ao seu colega com um longo “E eu

sou veado?” à pergunta daquele se ele havia assistido BrokeBack Mountain, falante

desvela seu preconceito em relação àquele filme.

Finalmente, sobre o desvelamento de sentimento pela marca por meio de uma

entoação lenta, podemos mencionar situação [#52] em que falante comenta com um colega,

que comentara o quão estranho, como fã do U2 há mais de duas décadas, achava o fato de seu

show no Brasil estar tão cheio, que “A gente que tá com trinta, trinta e

poucos anos, é que somos os fãs mesmo”.

Enfatizando algo relativo à marca por meio de elocuções lentas

Enfatizar algo relativo à marca é a função da elocução lenta que se refere a mais

atividades. São elas: característica do usuário da marca, aspecto da marca, comparação da

marca, diferença em relação à marca, escolha da marca, frustração em relação à marca,

inadequação do usuário à marca, juízo a respeito da marca, nome da marca e situação

relacionada à marca.

O exemplo que acabamos de mencionar [#52], além de desvelar um sentimento da

falante, também ilustra um caso, de auto-referência, de elocução lenta que enfatiza uma

característica do usuário da marca.

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211

Em relação a um aspecto da marca, podemos destacar situação [#73] em que,

quando duas colegas conversam sobre carros e uma delas menciona o Eco Sport como “seu

sonho de consumo”, a outra destaca, lentamente, sua preferência: “Lindo mesmo é

o Classe A!”.

Quanto a uma ênfase de uma comparação da marca por meio de elocução lenta,

temos um exemplo em situação [#17] em que, para valorizar a Via Marte, marca da sandália

de sua interlocutora, falante a compara, lentamente, a uma outra marca: “É

concorrente da Azaléia...”.

Por outro lado, um exemplo de ênfase de uma diferença em relação à marca por

meio de elocução lenta pode ser tirado da situação [#33] em que falante criticava faculdade de

sua interlocutora. Como a mesma havia estendido tal crítica para todas as faculdades

particulares, a outra, ironicamente, sugeriu que ela tentasse a Católica, no que ela respondeu:

“Ah... A Católica é diferente... Católica é Católica!”.

“Arno! Desse tamanho!”. Foi assim, lentamente, que uma falante

enfatizou sua escolha na compra de um ventilador, ao conversar com sua sobrinha, que tivera

demonstrado também estar a procura de um para comprar [#32].

Em outra situação [#15], para enfatizar sua frustração por não ter comprado a

sandália que a fizera ir de loja em loja e ainda pedir que uma vendedora ligasse para outras

tantas, mulher lamenta-se, lentamente: “Pôxa... tão bonita... e da

Arezzo...”.

Inadequação do usuário à marca também é uma atividade marcária enfatizada pela

elocução lenta. Um exemplo disto temos na situação [#3] em que, para justificar o fato de não

poder colocar sua filha para estudar no Santa Maria, sendo que uma vizinha tem seus dois

filhos naquela escola, falante comenta lentamente com sua interlocutora (outra vizinha):

“Pra fazer feito uns e outros, que moram num prédio

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212

velho feito esse, com um carro velho na porta... No

Santa Maria só estuda barão...”.

Quando conclui que “A Intercom é uma zona!” [#75], após pedir

que colega explicasse como funciona o congresso de Administração, professor de Publicidade

& Propaganda chega a tal juízo sobre aquele congresso de comunicação, o que é enfatizado

em sua elocução lenta.

Um exemplo de ênfase do nome da marca por meio de uma elocução lenta pode

ser dada com situação [#63] em que, após ser questionado várias vezes pelo pai por que

chamava um dos integrantes do Quarteto Fantástico de Homem Pedra, no que este tentava

provocá-lo a dizer o nome certo, criança, marotamente, deixa claro que sabe, lentamente

dizendo: “É O Coisa, pai...”.

Por fim, aquela falante que criticara marido da cunhada por presenteá-la com um

“livrinho” [#4], enfatiza situação quando é sutilmente criticada pela sua interlocutora,

lembrando-lhe, lentamente: “Mas ela deu uma camisa e uma calça

da Diesel, [fulaninha], da Diesel!”.

Preservando[-se] de algo relativo à marca por meio de elocuções lentas

Possibilitar a preservação de algo relativo à marca é mais uma função da elocução

lenta, referente aqui a constrangimentos em relação à marca e desconhecimento da marca. O

primeiro caso pode ser exemplificado por situação [#30] em que, após marido dizer à sua

esposa que ela não havia gostado de seu presente, uma sandália da Datelli, uma vez que nunca

houvera comentado nada parecido a respeito da mesma como o fizera em relação à Arezzo,

quando não tivera êxito em comprar uma sandália da marca, ela diz que teria se referido à

primeira da mesma forma se tivesse passado na loja daquela marca primeiro, no que ele diz

que era mentira. Desconfiada, preserva-se da situação constrangedora com um lento

“Não...”.

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213

O segundo caso pode ser ilustrado por situação [#7] em que, após ser perguntado

se conhecia o anti-séptico bucal da Crest, dentista pergunta, desconfortavelmente, se o mesmo

é novo. Ao ter de seu interlocutor a resposta de que provavelmente estava chegando no Brasil

agora, ele, aliviadamente, justifica seu desconhecimento, num longo e enfático “Ah...”.

Projetando-se por meio de algo relacionado à marca por meio de elocuções lentas

Um exemplo de elocução lenta na projeção pessoal por meio do juízo de um a

marca, única atividade ocorrida por meio desta função aqui, pode ser dado pela situação [#84]

em que mulher reclama, durante conversa com outra, do fato de seu ex-marido tê-la mando

fazer as compras pra casa no mercadinho do bairro. Ao dizer que rejeitara sua indicação e que

continuara fazendo a feira no Hiper, diz: “Só dou do bom e do melhor

pros meus filhos”.

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de elocuções lentas

Finalmente, a elocução lenta também tem como função sugerir algo a respeito da

marca, o que ocorre referente a aspectos da marca, característica do usuário da marca,

diferença em relação à marca e juízo a respeito da marca.

Quanto à sugestão de um aspecto de marca por uma elocução lenta podemos

mencionar a situação [#29] em que falante justifica à sua mãe comprar material escolar dos

filhos do Atacadão da Papelaria de um shopping com uma longa elocução que sugere o

conforto da escolha: “Ir na cidade, andar que só... A gente só

compra aqui”.

Em outra situação, chateado com o que entendeu ser uma desvalorização de seu

serviço por ter uma oferta baixa pelo mesmo, consultor comenta, em relação à executiva com

quem estava negociando [#61]: “Me faz uma proposta dessa e usa

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214

Prada!”, sugerindo não só a condição sócio-econômica da mesma, mas também seu

comportamento tacanho.

Ao comparar o Hospital Português com os públicos IMIP e Restauração e ainda

com um posto de saúde [#2], mulher sugere diferenças entre os quatro, pronunciando

lentamente parte da elocução em que menciona dois deles: “Tudo bem que um

IMIP (...) a agente sabe que tem médicos bons, apesar

dos pesares... Mas um posto de saúde... no Ibura?”.

Por fim, um exemplo de juízo a respeito de uma marca sugerida por uma elocução

lenta, podemos citar situação [#8] em que, após dizer que procurara um Johnny Walker selo

azul para presentear um amigo e mencionar o preço do mesmo, falante sugere que o mesmo

estava mais alto do que valia com um longo “Não...”.

7.3.2 A elocução rápida

A duração rápida de elocuções refere-se a marcações de frases e orações, sejam

inteiras ou parciais. Como demonstra a Tabela 20, tem como função enfatizar diferenças em

relação à marca, possibilitar preservação de opinião sobre a marca e sugerir tanto diferenças

em relação à marca quanto juízos a respeito da marca.

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215

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

izar

[De]

Mo[

n]st

rar

Pres

erva

r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Diferença em relação à marca x x

Juízo a respeito da marca x

Opinião sobre a marca x

Tabela 20: Relações de significação da “elocução rápida”

Enfatizando algo relativo à marca por meio de elocuções rápidas

Em relação à função da elocução rápida de enfatizar diferenças em relação à

marca, podemos citar situação [#131] em que falante liga para outro para tratar de assuntos

profissionais e este diz que a ligação estava muito ruim e iria custar ao primeiro uma fortuna,

pois ele estava de férias em “Porto”. Uma pequena hesitação deste provocou no outro um

esclarecimento, que ele tratou de rapidamente enfatizar: “Porto, Portugal”.

Preservando[-se] de algo relativo à marca por meio de elocuções rápidas

A função da elocução rápida de possibilitar preservação pessoal ocorre, como

vimos, apenas em relação a uma opinião sobre a marca. Um exemplo aqui pode ser o de

situação [#2] em que, após dizer que temos que nos preocupar com o que os outros vão achar,

ao comparar médicos que trabalham no Português, em relação a hospitais públicos, mulher

preserva-se da opinião dada, ao dizer, rapidamente, “ainda que eu não pense assim”.

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de elocuções rápidas

Outra função da elocução rápida é sugerir algo em relação à marca e se refere a

duas atividades marcárias: diferença em relação à marca e juízo a respeito da marca. Na

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216

mesma situação que acabamos de mencionar [#2] e da qual já havíamos mencionado um caso

de elocução rápida, após começar a mesma por uma citação ao IMIP e concluir com a de um

posto de saúde, falante, rapidamente, acrescenta menção à Restauração: “Tudo bem que um

IMIP e até uma Restauração...”.

Finalmente, em relação à sugestão de um juízo a respeito de alguma marca por

meio de uma elocução rápida, usaremos um exemplo de mesma natureza. Após sugerir que o

Johnny Walker selo azul estava mais caro do que valia com um longo “Não...” [#8], falante

complementa seu juízo com um breve “Desisti logo”.

7.4 Entoação

A entoação refere-se, fundamentalmente, às formas afirmativa, interrogativa e

exclamativa. Evidentemente, todas as elocuções têm entoações. Contudo, para efeito de

nossas investigações, consideramos aquelas em que a força expressiva da entoação tenha

contribuído, de alguma forma, na significação das marcas.

A forma de se entoar uma elocução pode indicar aspectos variados, tais como: um

pedido, uma sugestão, uma ordem, uma dúvida etc. Em nossas investigações não seria

diferente. Das quatorze funções identificadas em nossas observações, onze se referem a

entoações. São elas: caracterizar algo relativo à marca, chamar atenção para algo da marca,

desvelar alguma coisa sobre a marca, enfatizar algo em relação à marca, preservar[-se] de

algo relativo à marca, projetar-se por meio de algo relacionado à marca e sugerir alguma coisa

a respeita da marca são funções de todas as entoações; provocar algo em relação à marca é

uma função das entoações exclamativa e interrogativa; ironizar algo relativo à marca é uma

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217

função apenas das exclamativas e propiciar algo em relação à marca e solicitar algo a respeito

da marca são funções apenas das interrogativas.

7.4.1 Afirmativa

Os trechos de entoações afirmativas significativos em nossas observações ocorrem

em uma ou consecutivas frases – num máximo de três. A afirmativa tem sete diferentes

funções referentes a dezoito atividades marcárias. O resumo de tais relações pode ser visto na

Tabela 21.

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

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[De]

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e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Aspecto da marca x x x x

Característica do usuário da marca x

Comparação da marca x

Comportamento da marca x

Confiança na marca x

Conhecimento da marca x

Constrangimento em relação à marca x

Desabono à marca x x

Desconhecimento da marca x

Diferença em relação à marca x x x

Envolvimento com a marca x

Forma de uso da marca x

Frustração em relação à marca x x

Inadequação do usuário à marca x

Tabela 21: Relações de significação da “afirmativa”

Page 224: Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de ...livros01.livrosgratis.com.br/cp077042.pdfTítulo da Tese: “Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de compreensão

218

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

izar

[De]

Mo[

n]st

rar

Pres

erva

r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Juízo a respeito da marca x x x x

Opinião sobre a marca x

Preconceito em relação à marca x x

Valor da marca x

Tabela 21: Relações de significação da “afirmativa” (continuação)

Caracterizando algo relativo à marca por meio de afirmativas

Uma função da afirmativa é caracterizar algo relativo à marca. Esta se refere a

aspectos da marca apenas. Um exemplo [#18] disto temos na caracterização que um falante

faz dos estádios de futebol dos times concorrentes ao de sua torcida: “No chiqueirinho que

é os Aflitos. No chiqueirão é o Arruda”.

Chamando atenção para algo relativo à marca por meio de afirmativas

A função de chamar atenção para algo relativo à marca por meio de afirmativas

refere-se a juízos a respeito da marca. Para ilustrar este caso temos uma situação [#53] em que

uma professora de fotografia, defensora da foto analógica, diz que ganhou um prêmio do

BNB com fotos apenas tiradas com aquela tecnologia, “E o BNB não ia premiar se não

fossem boas”, afirma como argumento, chamando atenção para um juízo daquela marca.

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219

Desvelando algo a respeito da marca por meio de afirmativas

Quanto a desvelar algo a respeito da marca por meio de afirmativas, temos cinco

atividades: diferença em relação à marca, envolvimento com a marca, frustração em relação à

marca, juízo a respeito da marca e opinião sobre a marca.

Uma mesma situação nos serve para ilustrar três delas. Ao declarar sua

preferência por Old Eight [#8], falante justifica afirmando: “Eu bebo, não sinto nada, no

outro dia tô bonzinho...”. Com isto desvela seu juízo pela marca, bem como seu

envolvimento com a mesma. Na seqüência, após seu interlocutor mencionar ressaca que tivera

com Wall Street, o mesmo corrobora depreciação desta para marcar diferença dela em relação

à sua preferida: “O Old Eight não faz isso não”.

Um exemplo de frustração desvelada por uma afirmativa pode ser demonstrada

pela fala de um homem após não perceber o efeito contrário ao esperado ao tomar um

energético [#57]: “Tomei o tal Taffmann-E e fiquei foi com mais sono...”.

Por fim, ao ser perguntado se Listerine é realmente o melhor anti-séptico bucal

[#7], dentista afirma: “Olha, tenho acompanhado publicações especializadas que

realmente colocam o Listerine como o melhor... Mas existem outros... Eu

mesmo gosto muito do Oral B”. Com isto, desvela sua opinião acerca das duas marcas.

Enfatizando algo relativo à marca por meio de afirmativas

A função das afirmativas de enfatizar algo relativo à marca se refere a seis

atividades: aspectos da marca, comportamento da marca, confiança na marca, desabono à

marca, diferença em relação à marca e juízo a respeito da marca.

Uma ênfase de aspecto de uma marca pode ser exemplificado por situação [#23]

em que, após falante descreditar a Pitu, interlocutor afirma que a mesma “fora de

Pernambuco é cara”.

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220

Um mesmo exemplo [#51] nos serve de ilustração para as atividades de

comportamento da marca e juízo em relação à marca. Quando professora de fotografia se

refere a situação envolvendo Bob Wolfenson e a modelo Naomi Campbell, em que “Ele teve

receio que alguma coisa desse errado e não quis arriscar o cachê dela, que é

muito alto”, enfatiza o comportamento daquele fotógrafo e seu juízo a respeito do mesmo.

Um outro exemplo também nos ilustra duas atividades. Na mesma situação [#33]

em que falante afirma que “faculdade particular é muito fácil” para enfatizar seu juízo

em relação à Sopece, estabelece diferença em relação a esta ao afirmar que “a única boa é

a Federal”.

Finalmente, um exemplo de ênfase em relação à confiança em uma marca por

meio de uma afirmativa temos em situação [#69] em que, quando numa farmácia, balconista

responde à solicitação de cliente que o medicamento que ela tinha solicitado só havia em

genérico, esta pergunta se era da Medley, no que vira-se para sua irmã, que a acompanhava, e

diz: “Remédio genérico eu só compro da Medley”.

Preservando[-se] de algo relativo à marca por meio de afirmativas

Possibilitar preservação pessoal de algo relativo à marca é outra função das

afirmativas. Se refere a aspectos da marca e preconceito em relação à marca. Ao propor

conversa com amigo sobre “probleminhas típicos” do Peugeot 206 [#38] e o mesmo dizer que

não tinha os mesmos, falante preserva-se dizendo ao outro: “Pois é, então você tem

sorte”. Em outra situação [#4], falante havia sido preconceituosa para defender a Diesel,

dizendo que, mesmo tendo recebido de sua mulher presentes daquela marca, marido de sua

cunhada a deu apenas um “livrinho”. Ao ver sua interlocutora criticá-la sutilmente pelo

comentário, dizendo que talvez a mesma gostasse de livros, ela, antes de insistir, preserva-se:

“É, pode ser...”.

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221

Projetando-se por meio de algo relacionado à marca por meio de afirmativas

Projetar-se por meio de algo relacionado à marca também é uma das funções das

afirmativas e refere-se à atividade de conhecimento da marca. Um exemplo disto temos

quando um dentista aproveita comentário de paciente de que não sabia da existência de anti-

séptico bucal da Oral B para desfilar seu conhecimento acerca do assunto. Ao dizer que

haviam vários, começa: “Tem o Cepacol, o da Colgate, o Flogoral...” [#7].

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de afirmativas

Outra função das afirmativas se refere a várias atividades: a de sugerir algo a

respeito da marca. As atividades aqui são: aspectos da marca, característica do usuário da

marca, comparação da marca, constrangimento em relação à marca, desabono à marca,

desconhecimento da marca, diferença em relação à marca, forma de uso da marca, frustração

em relação à marca, inadequação do usuário à marca, juízo a respeito da marca, preconceito

em relação à marca e valor da marca.

Um exemplo de sugestividade tanto de aspecto quanto de valor de uma marca

temos na situação [#29] em que mãe diz à sua filha que “Shopping é mais caro”, se

referindo a uma das lojas do Atacadão da Papelaria a que esta estava indo para comprar o

material escolar dos filhos.

Em outra situação [#3], quando duas vizinhas conversam sobre a escolha da

escola para a filha de uma delas, temos um exemplo que nos serve para demonstrar a

sugestividade de três atividades. A mãe menciona que no Santa Maria só estuda “barão” e,

assim, “Não vão nem saber quem é minha filha lá”. Sua interlocutora concorda: “Isso

é verdade. Só estuda no Santa Maria quem tem condições”. Com isto, a primeira

sugere a frustração que seria se sua filha estudasse naquela escola, enquanto a segunda sugere

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222

característica de quem estuda na mesma, mas também a inadequação dos filhos da vizinha que

lá estudam, justamente por não atenderem à tal característica.

Em situação [#58] em que, por falta de quantidade suficiente de Skol no bar em

que dois amigos haviam ido comprar cerveja para uma festa de carnaval, um deles sugere que

se leve parte de Antarctica, temos a sugestão de comparação da marca quando o outro

responde: “Dá no mesmo”.

Uma outra situação [#12] também nos serve para demonstrar a sugestão de duas

atividades por meio de afirmativas. Ao seu marido sugerir que trocassem a pediatra do seu

filho, já que não estavam satisfeitos com a atual, por uma que o tivera atendido na emergência

e que ambos haviam gostado, mulher responde: “Mas é chato. Dra. Elza também é a

cardiologista dele”; e completa, sobre a outra: “Ela é muito... sei lá, não gosto do

jeito dela não”. Vemos aqui, num primeiro momento, uma sugestividade de

constrangimento em relação à primeira médica e, na segunda, a sugestão da diferença entre as

médicas.

Em situação que mencionamos há pouco [#57], ao dizer “Tomei o tal Taffman-

E e fiquei foi com mais sono...”, o falante também estava sugerindo seu desabono àquela

marca, uma vez que a mesma não cumprira o que ele acreditara ser sua promessa.

“Já, mas não conheço bem, não”. Esta resposta, dada por um falante à sua

mulher, que o perguntara se o mesmo conhecia a marca Mondial, indicada por sua tia, é uma

afirmativa que, de fato, sugere seu desconhecimento a respeito da mesma.

Na situação [#7] em que dentista é perguntado sobre a freqüência de uso do

Listerine (forma de uso da marca), o mesmo sugere que “Pode ser diário, não tem

problema, não”.

Para exemplificar um caso de preconceito em relação à marca sugerida por meio

de uma afirmativa, podemos usar a mesma situação [#4] elucidativa de tal atividade em

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223

relação à auto-preservação, há pouco mencionada. Ao acatar a possibilidade de sua cunhada

realmente gostar de livros, mulher insiste em preconceito, desta vez sendo ainda mais taxativa

em relação ao marido daquela, atingindo sua nacionalidade italiana: “Pra mim, esse povo

é que é pirangueiro mesmo!”.

Finalmente, em situação [#114] em que, numa longa fila de um mercadinho de

bairro, falante comenta com sua interlocutora que o outro mercadinho deveria estar sem

tamanha fila, esta sugere seu juízo ao afirmar que “O outro supermercado é sempre tão

vazio...”.

7.4.2 Exclamativa

Os trechos de entoações exclamativas significativos em nossas observações

ocorrem em frases únicas ou consecutivas – mais uma vez num máximo de três – e mesmo

apenas em orações. São nove funções referentes a trinta atividades marcárias. A Tabela 22

resume tais relações.

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

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Iron

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Prop

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Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Adesão a outra marca x

Aspecto da marca x x x x

Característica do usuário da marca x

Comparação da marca x x

Comportamento da marca x x x x

Tabela 22: Relações de significação da “exclamativa”

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224

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

izar

[De]

Mo[

n]st

rar

Pres

erva

r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Conhecimento da marca x

Constrangimento em relação à marca x x

Defesa da marca x

Desabono à marca x x

Desconfiança da marca x

Desconhecimento da marca x

Diferença em relação à marca x x

Dissimulação em relação à marca x x

Envolvimento com a marca x

Escolha da marca x

Expectativa em relação à marca x

Frustração em relação à marca x x

Intimidade com a marca x

Juízo a respeito da marca x x x x

Lembrança da marca x

Nome da marca x

Opinião sobre a marca x x

Preconceito em relação à marca x x

Sentimento pela marca x

Situação relacionada à marca x x

Sugestão da marca x x

Surpresa em relação à marca x

Uso de conceito da marca x

Valor da marca x

Tabela 22: Relações de significação da “exclamativa” (continuação)

Caracterizando algo relativo à marca por meio de exclamativas

Em relação à função das exclamativas de caracterizar algo relativo à marca, esta

se refere a uma comparação da marca. Um exemplo pode ser dado com situação [#33] em que

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225

homem é atendido na administração de um plano de saúde e, na ocasião, vestia camisa do

Sport. Em certo momento a atendente confunde seu nome com o de seu filho (que tem o nome

do pai) e, quando este a corrige, ela, sem graça, comenta: “É tanto Leão! Até a camisa!”.

Ela se referia ao sobrenome dos mesmos ser o mesmo do animal-mascote do time.

Chamando atenção para algo relativo à marca por meio de exclamativas

A função de chamar atenção para algo relativo à marca por meio de exclamativas

refere-se a aspectos da marca, comportamento da marca e situação relacionada à marca. O

primeiro caso pode ser exemplificado por situação [#132] ocorrida numa manhã de sábado,

durante festa de Dia dos Pais numa escola de ensino pré-escolar e fundamental. Como o Sport

havia ganho jogo no dia anterior, um pai foi com a camisa do time. Em dado momento,

professora do maternal, ao passar por ele, diz: “Essa é que é uma camisa bonita!”.

Em situação [#23] em que anfitrião oferece a cachaça Maribondo para seus

convidados, um deles, ao pegar a garrafa da mesma, assusta-se: “Ôxi, que onda!”. Com isto

estava chamando atenção para o fato daquela cachaça ser engarrafada em garrafa da Montila,

denunciando seu comportamento pirata.

Por fim, em situação [#18] em que torcedor do Sport narra ocasião em que entrou

em estádio pela área destinada à torcida adversária, chama atenção para a situação peculiar

com um sonoro “Pense numa loucura!”.

Desvelando algo a respeito da marca por meio de exclamativas

Quanto a desvelar algo a respeito da marca por meio de exclamativas, temos

várias atividades: comportamento da marca, defesa da marca, envolvimento com a marca,

expectativa em relação à marca, frustração em relação à marca, juízo a respeito da marca,

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lembrança da marca, preconceito em relação à marca, sentimento pela marca, sugestão da

marca e surpresa em relação à marca.

De uma mesma situação [#41] podemos tirar exemplo para duas atividades

desveladas por uma exclamativa: surpresa em relação à marca e comportamento da marca. Ao

reagir com um “Não pensei jamais!” ao comentário de seu interlocutor de que os Rolling

Stones haviam tocado no intervalo do Super Bowl, falante desvela surpresa com o fato da

banda ter realmente agido de tal forma, ou seja, ter feito tal apresentação.

De uma outra situação [#43] podemos tirar exemplo relativo a outras duas

atividades desveladas por exclamativas. Conversando com um colega de trabalho sobre como

o Ypiranga perdeu o primeiro turno do Campeonato Pernambucano com um pênalti

desperdiçado, o que beneficiou o Santa Cruz, que ficou com o título do mesmo, falante

defende o time: “Pesa, pô. . . o cara ter que chutar ali pra ser campeão do turno!”.

Por trás desta defesa, desvela-se uma frustração pelo fato do seu time, o Sport, não ter ganho

o turno, e sim seu arqui-rival, no que ele defende o Ypiranga para sugerir que foi sorte do

Santa Cruz.

Também do futebol podemos tirar um exemplo de envolvimento por meio de

exclamativa [#86]. Ao, empolgado, dizer a visitante do colégio em que é porteiro, após,

sisudamente, questioná-lo para onde iria, “Hoje vai ser quatro a zero!”, falante estava se

referindo ao Sport, cuja camisa visitante vestia e, assim, desvelava seu envolvimento com o

time.

Em outra situação [#3], ao mencionar características do Colégio Boa Viagem, o

qual considerava para colocar sua filha, mulher desvela sua expectativa em relação ao mesmo:

“lá todo mundo vai saber quem é minha filha!”.

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227

Quanto ao desvelamento de um juízo por exclamativa, podemos exemplificar com

situação [#4] em que mulher diz a interlocutora que sua cunhada havia dado “uma calça e

uma camisa da Diesel , [ f ulaninha], da Diesel!” para o seu marido.

Em outra situação [#105], ao não lhe ocorrer que faculdade seria a Sopece, cujo

colega de trabalho mencionara ser a que sua mulher estava estudando, mulher desvela

lembrança com um “Ah!”, quando outra interlocutora menciona que se trata da faculdade de

Pinto Ferreira.

Ao rejeitar certas bebidas com um “Não! Deus me livre, tomo não! Essas

coisas assim.. . Martini , Saint Remi. . . uhrg. . . só de pensar me dá enjôo!” [#25],

falante desvelada seu preconceito às mesmas por associá-las a bebidas de mulher, o que fica

evidente pelo seu comentário anterior, como já mencionamos.

Em outra situação [#66], quando disse a seu marido, em relação ao fato de ter se

referido ao jogo de videogame Super Mario Bros como “Mario e Luigi”, mulher diz “Chamo

como eu quiser, meu filho! Era assim que eu chamava quando eu era

criança!”, desvelando seu sentimento pelo mesmo.

Por fim, durante conversa em que mulher pergunta à sua mãe pela qualidade do

ventilador que esta havia comprado [#10], uma vez que precisava comprar um para si, sua tia

intervém: “O ‘Mundial ’ também é muito bom! Eu comprei um ventilador da

‘Mundial ’ e não me arrependo, não”. Sua exclamação desvela uma sugestão da marca à

sobrinha.

Enfatizando algo relativo à marca por meio de exclamativas

Enfatizar algo relativo à marca é outra função das exclamativas que se refere a

várias atividades: aspecto da marca, comportamento da marca, desabono à marca, diferença

em relação à marca, escolha da marca, juízo a respeito da marca, nome da marca, opinião

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228

sobre a marca, situação relacionada à marca, sugestão da marca, uso de conceito da marca e

valor da marca.

Em uma mesma situação [#79] temos um exemplo que nos serve para vislumbrar

ênfase tanto de um aspecto quanto de um juízo da marca por meio de exclamativa. Estando

seu professor tossindo demasiadamente durante a aula, aluna o interrompe para indicar Gotas

Binelli, no que ela diz: “É ótima! Quer dizer. . . é ruim. . . mas é muito boa!”.

Quando uma mulher denuncia que os funcionários da Celpe estavam conversando

enquanto ela e dezenas de outros usuários esperavam para ser atendidos [#77], conclui: “Se

tivesse outra empresa de luz não faziam isso!”, destacando o comportamento

inadequado daquela empresa, o que também é um desabono à mesma.

Na situação [#31] em que homem fala bem do Peugeot do amigo para agradá-lo,

enfatiza diferença em relação àquela marca por meio de uma outra: “Se fosse Gol já tinha

quebrado tanto!”.

Um exemplo de ênfase de exclamativa em relação à escolha de uma marca temos

em situação [#111] em que mulher acabara de chegar em casa encontrara vizinha, no que

começam a conversar. Ela conta que havia ido à casa de uma amiga dar-lhe seu presente de

aniversário e esta a chamara a sair para um chocolate quente. Ela resistira, a princípio, mas

quando a mesma insistiu que fossem tomar a bebida no São Braz, ela respondera: “No São

Braz eu vou, que é o único que eu gosto!”.

No caso da ênfase do nome da marca temos um exemplo em outra situação [#27]

em que uma mulher, que sabia que sua sobrinha estava por comprar um ventilador, a ligou

para dizer que encontrara e comprara um em promoção. A sobrinha pergunta de que marca

era o mesmo, no que sua tia responde: “Arno, minha filha!”.

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229

Em outra situação [#2], ao dizer “Tem que ser feito Dr. João,

marqueteiro!” ao mencionar o Hospital Português, mulher enfatiza sua opinião de como

deve ser o comportamento daquela marca.

Quando falante exclama “Pense numa loucura!” [#18], se referindo a quando

entrou em estádio de futebol pela torcida adversária, está também enfatizando situação à qual

se envolveu em relação a uma marca, no caso, o Sport, seu time.

Quando pai aconselha à sua filha “Tome Taffman-E!”, preocupado com sua

promessa de tomar guaraná em pó para ficar acordada e poder estudar para as provas [#74],

temos um exemplo de exclamação para enfatizar uma sugestão de marca.

Um exemplo de ênfase em exclamativa de uso de conceito de uma marca,

podemos mencionar com a situação [#87] em que um palestrante, para exemplificar o

conceito de valor de marca, pergunta a um expectador na platéia que estava com a camisa do

Sport se a mesma valia mais de cem reais. A pergunta gera uma polêmica maliciosa, em que

os torcedores do time defendem que sim e os demais que não. Depois de alguns instantes

alguém exclama “Esta é uma camisa Mastercard!”, se referindo à campanha

publicitária daquela marca, que menciona coisas que não tem preço.

Por fim, quando falante sugere à sua interlocutora a ir à Corbello [#17] olhar

algumas sandálias, enfatiza valor da mesma exclamando: “Cada sandália bonita. . . e

barata. . . de salto alto!”.

Ironizando algo relativo à marca por meio de exclamativas

A função das exclamativas de ironizar algo relativo à marca se refere a aspectos

da marca. Exemplo disto temos em situação [#23] em que anfitrião, após insistir com seus

convidados a tomarem sua cachaça de cabeça, procura no rótulo informações sobre a mesma

e, ao não encontrar, dispara brincando: “Isso é de boa que é!”.

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230

Preservando[-se] de algo relativo à marca por meio de exclamativas

Possibilitar a preservação pessoal de algo relativo à marca é outra função das

exclamativas que também se refere a várias atividades: constrangimento em relação à marca,

desconhecimento da marca, dissimulação em relação à marca, frustração em relação à marca,

juízo a respeito da marca e opinião sobre a marca.

Na situação [#15] em que mulher, ao ser constrangida por seu marido por não

valorizar sapato da Datelli com a qual ele a havia presenteado, preserva-se: “E eu achei

aquele modelo lindo!”.

Em outra situação [#19], ao ser solicitado a opinar por marca de pneus,

caminhoneiro preserva-se de não conhecimento espontâneo quando, ao se lembrar de uma

marca (Colway), exclama: “Esse é bom!”.

Uma outra situação [#23] nos serve para ilustrar três atividades. Num primeiro

momento, falante sugere dissimulação de sua interlocutora ao tentar impedir seu marido de

tomar uma dose de cachaça, sugerindo que ela já tomara, no que a mesma preserva-se:

“Negócio ruim da bexiga!”. Em outro momento da mesma interação, mencionado há

pouco, falante ironiza a marca da cachaça que oferecera aos seus convidados, dizendo “Isso

é de boa que é!” ao não encontrar informações sobre a mesma em seu rótulo, no que, com

isto, preserva-se por tê-la inferido juízo positivo, bem como de sua própria frustração.

Finalmente, em situação [#2] em que falante opina, ao mencionar o Hospital

Português, que devemos nos preocupar com o que os outros vão achar, preserva-se do

comentário dizendo “Ainda que eu não pense assim!”.

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231

Projetando-se por meio de algo relacionado à marca por meio de exclamativas

Também projetar-se por meio de algo relacionado à marca é uma das funções das

exclamativas e se refere ao conhecimento da marca. Quando um amigo diz que seu recém-

comprado aparelho de DVD já havia quebrado duas vezes, falante pergunta-lhe qual é a marca

e, com a resposta, diz que a Semp Toshiba “É a melhor marca que tem!”, projetando-se,

assim, como conhecedor do assunto e da marca.

Provocando algo em relação à marca por meio de exclamativas

Provocar algo em relação à marca é também uma função das exclamativas e se

refere à atividade de constrangimento em relação à marca. Exemplo deste caso está na

situação [#22] em que falante provoca seu interlocutor dizendo que ele “É tricolor! É

tricolor!”, sabendo que o mesmo torce para o Sport e não para o Santa Cruz, time de três

cores em sua camisa.

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de exclamativas

Finalmente, sugerir algo a respeito da marca é mais uma função das exclamativas

que se refere a várias atividades: adesão a outra marca, aspecto da marca, característica da

marca, comparação da marca, comportamento da marca, desabono à marca, desconfiança da

marca, diferença em relação à marca, dissimulação em relação à marca, intimidade com a

marca, juízo a respeito da marca e preconceito em relação à marca.

A situação [#22] que acabamos de mencionar no serve também para demonstrar

caso de sugestividade de adesão a outra marca por meio de exclamativa, uma vez que falante

apresenta seu interlocutor como um “vira-casaca”.

Em outra situação [#32], ao ver sobrinha depois de tê-la indicado ventilador da

Arno em promoção e dizer que comprou o seu, mulher insiste com a mesma na compra,

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232

sugerindo que o produto em questão está barato: “Deixa de ser besta! Somente cento e

cinco reais!”.

Ao encontrar colega de faculdade e exclamar “Sacola da Renaissance!

Humm.. .” [#107], falante sugere característica de usuária daquela marca, assumindo-a como

de alto status e elegância.

Em relação à sugestividade de comparação da marca por uma exclamativa,

podemos mencionar situação [#70] em que doméstica, brincando, chama criança de “Cabeça

de bigorna!”, em referência ao tamanho de sua cabeça e à do personagem de desenho

animado Arnold, conhecido por tal adjetivo.

Na situação [#2] em que falante diz, referindo-se ao Hospital Português, que há

que se ser “Marqueteiro”, estava também sugerindo comportamento que ela julga adequado

para uma marca.

Ao reagir com um “Igi!” ao se deparar com loja da Chilli Beans [#16], falante

sugere juízo que formara em relação à marca naquele momento e, juntamente com ele, seu

desabono.

Um exemplo de sugestividade de desconfiança da marca por meio de uma

exclamativa pode ser demonstrado na situação [#101] em que taxista, em conversa com

passageiro, confessa-se torcedor do Fluminense, enquanto no rádio ouvem notícias sobre a

semi-final da Copa do Brasil que aquele time faria com o arqui-rival Vasco. O passageiro,

para seu orgulho, diz acreditar que dê Fluminense, mas o taxista demonstra desconfiança: “Tá

melhor, mas tem um azar quando joga com o Vasco!”.

“E nem de marca é!”. Foi o que disse uma falante ao mencionar sandália que

estava usando, após se deparar com uma da Via Marte em promoção na vitrine de uma loja

[#11]. Este é um exemplo de sugestão de diferença em relação à marca por meio de uma

exclamativa.

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233

Em situação [#23] há pouco mencionada, em que, após questionar mulher que

tentava dissuadir marido de beber uma dose de cachaça se ela mesma não bebe 51, homem

sugere que ela esteja sendo dissimulada: “Ôxi! Mas menino. . .”.

Quanto à sugestividade de intimidade com a marca, podemos demonstrar exemplo

com situação [#122] em que homem diz que seu e-mail do Google não tem terminação “br”

por ser um dos primeiros, “Do tempo que tinha que ter convite!”.

Por fim, quando mulher tenta persuadir seu marido a não tomar dose da cachaça

Maribondo [#23], a reação do anfitrião que insistia na oferta sugere preconceito em relação à

marca, por não aceitar que o amigo não aceite a mesma por causa de sua mulher, o que se

evidencia em sua afirmação: “Olha [fulaninha], botando moral pra cima de

[cicraninho]”.

7.4.3 Interrogativa

Em nossas observações, os trechos de entoação interrogativa significativos

ocorrem, assim como no caso da exclamativa, em frases únicas ou consecutivas – novamente

num máximo de três – e apenas em orações. Conforme pode ser observado na Tabela 23 são

vinte e seis atividades marcárias ocorridas por meio de nove funções.

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234

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

izar

[De]

Mo[

n]st

rar

Pres

erva

r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Aspecto da marca x x x

Comparação da marca x

Comportamento da marca x x

Confiança na marca x

Conhecimento da marca x

Constrangimento em relação à marca x x

Defesa da marca x x

Desabono à marca x x x x

Desconfiança da marca x

Desconhecimento da marca x x x

Diferença em relação à marca x x x

Dissimulação em relação à marca x x

Escolha da marca x

Expectativa em relação à marca x

Forma de uso da marca x

Frustração em relação à marca x x x

Gafe em relação à marca x x

Inadequação do usuário à marca x

Juízo a respeito da marca x x x

Objeto da marca x

Opinião sobre a marca x

Preconceito em relação à marca x x

Sentimento pela marca x x

Sugestão da marca x x

Surpresa em relação à marca x x

Valor da marca x x

Tabela 23: Relações de significação da “interrogativa”

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235

Caracterizando algo relativo à marca por meio de interrogativas

Em relação à função das interrogativas de caracterizar algo relativo à marca, esta

se refere a aspectos da marca. Exemplo disto temos na situação [#57] em que falante pergunta

a seu interlocutor, primeiro, se conhece Taffman-E e, depois, se “É um energético,

né?”.

Chamando atenção para algo relativo à marca por meio de interrogativas

A função de chamar atenção para algo relativo à marca por meio de interrogativas

refere-se a diferença em relação à marca, objeto da marca e sentimento pela marca. O

primeiro caso pode ser demonstrado pela situação [#4] em que mulher critica marido da

cunhada por presentear-lhe com um “livrinho” enquanto ganhara roupas da Diesel. Para

chamar atenção para a diferença entre ambos, após falar das roupas e antes de mencionar o

livro, pergunta à sua interlocutora: “E advinha o que ele deu pra ela?”.

Quanto a chamar atenção para um objeto de uma marca por meio de uma

interrogativa, podemos ilustrar com a situação [#80] em que falante olha para os pés de um

primo e pergunta: “Uhmm... É esse o tênis, é?”. Ela se referia ao fato de ter

presenciado situação [#49] em que sua mãe questiona o valor do mesmo quando seu filho lhe

dissera que o iria comprar.

Já um sentimento por uma marca chamado atenção por uma interrogativa pode ser

demonstrado por situação [#8] em que, após conversa sobre Johnny Walker, falante pergunta

ao seu interlocutor: “Mas quer saber?” antes de confessar que gosta “mesmo de Old

Eight”.

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236

Desvelando algo a respeito da marca por meio de interrogativas

Quanto a desvelar algo a respeito da marca por meio de interrogativas, temos

várias atividades: confiança na marca, defesa da marca, desabono à marca, desconhecimento

da marca, expectativa em relação à marca, frustração em relação à marca, preconceito em

relação à marca, sentimento pela marca, sugestão da marca e surpresa em relação à marca.

Em relação ao desvelamento de confiança na marca, um exemplo que pode ser

demonstrado está em situação [#44] em que, após ser solicitado a opinar sobre pen drives da

Creative, falante diz que é a melhor marca de tal tipo de produto e comenta: “Não sei se

é nacional, mas tá aqui há muito tempo, entendeu?”.

Uma mesma situação [#33] nos serve para demonstrar três atividades marcárias

desveladas por interrogativas. Antes de dizer à sobrinha que nunca havia ouvido falar da

faculdade em que esta iria estudar, tia já desvelara desconhecimento acerca da mesma ao

perguntar, após sobrinha dizer o nome da faculdade: “Sopece?”. Depois, na mesma

interação, outra interactante viria a criticar tal faculdade. Depois de apresentar evidências da

credibilidade da mesma, futura estudante desvela defesa da faculdade ao perguntar à sua

interlocutora: “Tá me chamando de mentirosa?”. Por fim, mãe daquela que

criticara tal faculdade pergunta à filha porque ela não faz um curso superior, no que esta a

pergunta “Como?”, desvelando sua frustração.

De outra situação [#49] tiramos exemplos relativos a mais duas atividades

desveladas por interrogativas. Quando estava indo para um shopping, mãe pergunta se seu

filho lhe daria o dinheiro para que ela comprasse sua calça. Ele respondeu que havia desistido,

pois ia comprar um tênis que era muito caro e se comprasse a calça iria diminuir o dinheiro

pro tênis. Assustada, ela pergunta: “E quanto é esse tênis?”. Sua interrogação

desvela surpresa por um tênis custar tanto, bem como desabono a uma marca tal.

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237

Ao perguntar ao seu interlocutor se ele conhecia Taffman-E e em seguida se “É

um energético, né?”, falante, além de caracterizar aspecto da marca, como há pouco

mencionamos, desvela sua expectativa em relação à mesma [#57].

Em relação ao desvelamento de um preconceito em relação à marca, na situação

[#65] em que falante responde ao seu interlocutor, que o perguntara se já tinha assistido a

BrokeBack Mountain, com um “E eu sou veado?”, temos um exemplo.

Chegando a uma clínica para uma consulta, homem estava vestido com a camisa

do Sport, em comemoração ao título pernambucano de futebol conquistado no dia anterior.

Ao descer do carro, depara-se com um flanelinha, um senhor de seus sessenta e poucos anos,

também com uma camisa do time. Antes de sequer dizer que tomaria conta do seu carro,

pergunta-lhe: “Foi muito bom, não foi?” [#89]. Com isto, temos um exemplo de

sentimento pela marca desvelado por uma pergunta.

Por fim, um exemplo de sugestão da marca desvelada por uma interrogativa pode

ser tirada de um situação [#50] em que coordenador de um curso de Publicidade &

Propaganda recebe um candidato a lecionar disciplina de fotografia. Após entrevista formal,

começam a conversar sobre as recentes mudanças tecnológicas daquela indústria e o primeiro

diz que a faculdade está decidindo que câmeras digitais comprar, no que o outro pergunta:

“Mas vocês já resolveram que câmeras vão comprar, Nikon ou

Canon?”.

Enfatizando algo relativo à marca por meio de interrogativas

Enfatizar algo relativo à marca é outra função das interrogativas que se refere a

várias atividades: aspecto da marca, comportamento da marca, desabono à marca, diferença

em relação à marca, frustração em relação à marca, gafe em relação à marca, juízo a respeito

da marca, sugestão da marca, surpresa em relação à marca e valor da marca.

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238

Em relação à ênfase de um aspecto da marca, temos um exemplo na situação

[#57] recentemente mencionada em que falante pergunta ao seu interlocutor sobre o Taffman-

E: “É um energético, né?”. A pergunta dofalante, além de caracterizar, também

enfatiza aspecto da marca.

Na situação [#18] em que torcedor do Sport critica o Santa Cruz por disponibilizar

um pequeno espaço para a torcida daquele time, ele comenta que foi uma “sacanagem”, já que

“a torcida do Sport com o Santa é pau a pau em quantidade,

né?”, enfatizando, assim, comportamento daquele time.

Em outra situação [#23], ao lhe ser oferecida pelo marido uma dose de

Maribondo, mulher rejeita a oferta, desabonando a mesma com uma interrogação: “E eu

tomo essas coisas?”.

Quando mãe defende escolha do Colégio Boa Viagem como opção para sua filha

[#3], estabelece diferença entre esta e o Santa Maria (ideal) e o Pinheiros (atual), se referindo

ao primeiro como: “não é um Santa Maria e também não é um

Pinheiros, né?”.

Uma frustração enfatizada por uma interrogativa pode ser demonstrada pela

situação [#15] em que mulher não consegue comprar sua Arezzo e seu marido pergunta qual é

o problema de ter sido em relação àquela marca, no que ela repete sua frase como quem

responde uma obviedade: “Que é que tem Arezzo, mô?”.

Na situação [#127] em que coordenadora de núcleo de moda de faculdade

confunde, numa reunião, marca patrocinadora de certo evento, sua colega enfatiza sua gafe:

“Dupé?”.

Em entrevista a Jô Soares [#71], Cid Moreira está relatando situação em que surge

o mito de que ele apresentava o Jornal Nacional com um short embaixo do terno. Narra que

numa segunda-feira, vindo de uma casa de campo onde passara o final de semana, ficou preso

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239

no trânsito por causa de uma grande chuva e não pôde passar em sua casa antes de ir para a

emissora e lá só havia a parte de cima, mas que tivera sido uma única vez. Durante a

narrativa, ao falar da quantidade de água nas ruas, diz que se vira naquela situação com um

carrinho, um 1600 da Volkswagen, no que faz uma ressalva: “Aliás, o carro era

bom, ham?”.

Um exemplo de ênfase de sugestão da marca por uma interrogativa pode ser dado

por meio de situação [#100] em que homem tossia nas ruas de Copacabana e senhora o aborda

atenciosamente: “Por que você não vai no Mundo Verde?”.

Quanto a uma surpresa em relação à marca enfatizada por uma interrogativa,

podemos exemplificar com situação [#9] em que, após falante mencionar que A Traíra estava

no Guia 4 Rodas sua mulher reage: “É mesmo? Esse restaurante é

conhecido assim, é?”.

Por fim, para ilustrar uma interrogativa enfática em relação ao valor da marca, em

situação [#120] que nos serve como exemplo um falante pergunta a diretor de escola com

quem discutira “Qual é o mais caro?”, se referindo a um concorrente.

Preservando[-se] de algo relativo à marca por meio de interrogativas

Possibilitar preservação pessoal de algo relativo à marca é outra função das

interrogativas e se refere a seis atividades marcárias: constrangimento em relação à marca,

desabono à marca, desconhecimento da marca, dissimulação em relação à marca, gafe em

relação à marca e juízo a respeito da marca.

Em relação à preservação de constrangimento em relação à marca, podemos

mencionar situação [#15] em que, após marido acusar sua mulher de não valorizar a Datelli,

de cuja a havia presenteado com um sapato, ainda a demonstra que esta marca está mais cara

que a Arezzo, desejada por ela, no que ela revida: “E daí?”.

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240

Uma outra situação [#23] nos serve para ilustrar três atividades. À sugestividade

de seu interlocutor de que estava sendo dissimulada por não aceitar tomar a cachaça

Maribondo, uma vez que já tomara 51, mulher rebate com a pergunta “Cachaça?”,

preservando-se de tal acusação sutil. Entretanto, em outro momento da interação, a mesma

falante preserva-se de ter sido tão enfática contra aquela marca, perguntando a uma outra

interlocutora, que falara de uma bebida relaxante que tomara mas não lembrava o nome,

“Não foi Ypióca, não?”. Contudo, como vemos, a faz mencionando outra marca de

mesmo produto. Ao mencionar a nova marca, a mesma entra na conversa e outro interactante

diz se tratar da melhor, mas logo se preserva de tal juízo: “Assim, das populares,

né?”, admitindo existirem cachaças “premiadas”.

Ao ser perguntado se conhece o anti-séptico bucal da Crest [#7], dentista responde

com duas perguntas. Primeiro: “Crest?”. Ao admitir que não, novamente: “É novo?”.

Com isto, pretende preservar-se do desconhecimento da mesma, uma vez se tratar de um

produto de sua área de atuação.

Por fim, ao se equivocar em relação ao nome de uma série da televisão americana

[#42] falante tenta preservar-se da gafe perguntando ao seu interlocutor que o havia lhe

corrigido: “O que quer dizer Lost?”.

Projetando-se por meio de algo relacionado à marca por meio de interrogativas

Também projetar-se por meio de algo relacionado à marca é uma das funções das

interrogativas e se refere ao conhecimento da marca. Por exemplo, em situação [#38] em que

falante propõe ao seu interlocutor um debate sobre os “probleminhas clássicos” do Peugeot,

206, projeta-se como conhecedor do mesmo perguntando a este: “Sabe que antes de

comprar qualquer coisa eu procuro muita informação, né?”.

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241

Propiciando algo em relação à marca por meio de interrogativas

Propiciar algo em relação à marca por meio de interrogativas se refere a defesa da

marca. Um exemplo temos em situação [#49] em que, após mãe questionar valor de tênis que

o filho iria comprar, sua sobrinha propicia ao primo defesa da marca por ele escolhida ao

perguntar-lhe “Que é que esse tênis tem demais?”.

Solicitando algo a respeito da marca por meio de interrogativas

Outra função das interrogativas é solicitar algo a respeito da marca e ocorre em

relação a uma opinião sobre a marca. Um exemplo típico temos na situação [#124] em que

falante pergunta ao seu interlocutor sobre seu carro, um 206, “... me diga uma

coisa: a manutenção é muita cara?”.

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de interrogativa

Finalmente, outra função das interrogativas relacionada a várias atividades é

sugerir algo a respeito da marca. São elas: aspecto da marca, comparação da marca,

comportamento da marca, constrangimento em relação à marca, desabono à marca,

desconfiança da marca, desconhecimento da marca, diferença em relação à marca,

dissimulação em relação à marca, escolha da marca, forma de uso da marca, frustração em

relação à marca, inadequação do usuário à marca, juízo a respeito da marca, preconceito em

relação à marca e valor da marca.

Quando pergunta à filha “Não é mais caro, não?” [#29], mulher está

sugerindo que sim, que a loja do Atacadão da Papelaria de um shopping é mais caro

justamente por estar localizada naquele lugar.

Numa mesma situação [#60] temos exemplo para três outras atividades. Era

carnaval e família confraternizava na casa de um dos seus. Em determinado momento começa

a tocar a música “Bola de sabão”, da banda baiana de axé Babado Novo. Isto faz com que

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242

uma falante se volte às suas interlocutoras e comente: “não tem quem diga que

não é Ivete, né?”. Com a pergunta ela sugere comparação entre a vocalista e o estilo

musical daquela banda e Ivete Sangalo. Assim o faz sugerindo que isto não ocorra por acaso,

mas que se trata de um comportamento proposital da primeira, que, por conta disto, também é

sugestivamente desabonada.

Quando conversava com seu marido, rejeitando sua sugestão de troca de pediatra

do filho [#12], mulher pergunta-lhe “Aí o que é que a gente vai dizer

quando for pra ela como cardiologista?”, sugerindo o constrangimento

que geraria aquela decisão.

Outra situação [#16] nos serve para ilustrar sugestividade de frustração em relação

à marca por meio de interrogativa. Isto fica evidente quando mulher diz “É isso é?” ao

marido ao se deparar com loja da Chilli Beans.

Em outra situação [#56] uma mulher procurava uma geladeira para comprar e seu

marido lhe mostra uma da Bosch, no que ele comenta: “Bosch? E Bosch é boa?”, o

que sugere sua desconfiança acerca da mesma.

Após uma “saia-justa” por falar errado o nome de uma série americana e ser

corrigido por seu interlocutor [#42], falante continua conversa e menciona um outra, de um

cassino, e pergunta “já visse?”, sugerindo que esta aquele não conhece.

Quando mulher critica cachaça que anfitrião de encontro em família oferecera,

este lhe pergunta: “Nunca bebesse 51, não?”, sugerindo que sim, e, portanto, que

ela estaria sendo dissimulada [#23]. Na mesma interação, quando homem menciona que

Ypióca é a melhor cachaça e faz a ressalva “assim, das populares, né?” que há

pouco mencionamos, o mesmo está sugerindo uma diferença entre esta e outras marcas de

classe superior.

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243

Sugestividade de escolha da marca por uma interrogativa podemos exemplificar

com situação [#81] em que criança pergunta, imediatamente depois de perguntar à sua mãe

que lanche levaria para a escola, se “Tem Bauducco?”, se referindo ao bolo recheado

da marca.

Em outra situação [#45], quando mãe pergunta ao filho o que havia lanchado na

escola e ele diz que apenas uma empada Bragança ela reage: “Ôxi, só a empada

Bragança, purinha, por quê?”. Com isto, sugere forma de uso da marca, uma

vez que assume que deveria ter bebido algo juntamente à empada.

“Mas como é que pode usar uma camisa da Diesel com

uma calça daquela, que nem é de marca?” [#62]. Com esta pergunta,

falante está sugerindo que a vítima do comentário não é adequada àquela marca, uma vez que

não sabe como usá-la, como combiná-la com as demais roupas que veste.

Quanto a um juízo em relação a uma marca sugerido por uma interrogativa,

podemos mencionar situação [#123] em que diretor comercial de empresa pergunta aos seus

potenciais clientes, ao mostrar computadores MacIntosh: “Já pensou no

laboratório só com Mac?”.

Um exemplo de sugestividade de preconceito em relação à marca por meio de

interrogativa, temos na situação [#4] em que mulher critica marido da cunhada por presenteá-

la com um “livrinho”. A reação de sua interlocutora é perguntar: “‘Livrinho’?”.

Finalmente, como exemplo de sugestão de valor da marca podemos citar situação

[#59] recentemente mencionada em que, após filho dizer que desistira de comprar uma calça

para juntar o dinheiro para um tênis, pergunta-lhe: “E quanto é esse tênis?”,

sugerindo que o mesmo não deveria valer tanto.

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244

7.5 Tom

Tom é uma inflexão da voz que se refere à maneira de se expressar. Toda

elocução é acompanha de tons de voz, evidentemente, mas em nossas investigações,

consideramos apenas os tons que contribuam, de alguma forma, na significação das marcas.

Os tons indicam aspectos variados, tais como: mágoa, alegria, surpresa, confiança

etc. Também a forma como nos referimos a eles o são. Podem ser esnobes, debochados,

eufóricos, irônicos e tantos outros. Em nossas investigações não poderia ser diferente. Ao

todo, identificamos quarenta diferentes tons. Mas não trata-se apenas de uma grande

quantidade, mas de uma grande pluralidade. Tamanha fragmentação nos impossibilita,

diferentemente dos outros elementos de prosódia, de gerar uma “tipologia” – ou “famílias de

tons” –, se assim podemos dizer. Com isto, nossa exposição da função do tom na significação

das marcas não ocorre em relação a cada diferente tom, mas como um todo, em que alguns

deles são demonstrados em nossos exemplos.

Assim como as entoações, os tons também têm onze funções na significação das

marcas. São elas: caracterizar algo relativo à marca, corroborar algo relativo à marca, desvelar

alguma coisa sobre a marca, enfatizar algo em relação à marca, ironizar algo relativo à marca,

preservar[-se] de algo relativo à marca, projetar-se por meio de algo relacionado à marca,

propiciar algo em relação à marca, provocar algo em relação à marca, solicitar algo a respeito

da marca e sugerir algo a respeito da marca (ver Tabela 24).

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Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

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Cha

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nção

Cor

robo

rar

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Des

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Iron

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Proj

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-se

Prop

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Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Adesão a outra marca x

Aspecto da marca x x x x x

Assunto relativo à marca x

Característica do usuário da marca x x

Comparação da marca x

Comportamento da marca x x

Confiança na marca x x

Constrangimento em relação à marca x x

Defesa da marca x x

Desabono à marca x x x x

Desconfiança da marca x x

Desconhecimento da marca x x

Diferença em relação à marca x x

Dissimulação em relação à marca x x

Envolvimento com a marca x

Escolha da marca x x x

Expectativa em relação à marca x

Frustração em relação à marca x x

Gafe em relação à marca x x

Inadequação do usuário à marca x

Incoerência em relação à marca x

Intimidade com a marca x

Juízo a respeito da marca x x x x x

Lembrança da marca x

Opinião sobre a marca x x

Preconceito em relação à marca x x x x

Rejeição à marca x x

Sentimento pela marca x

Situação relacionada à marca x

Tabela 24: Relações de significação dos “tons”

Page 252: Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de ...livros01.livrosgratis.com.br/cp077042.pdfTítulo da Tese: “Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de compreensão

246

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

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Des

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r

Enfa

tizar

Iron

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[De]

Mo[

n]st

rar

Pres

erva

r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Sugestão da marca x

Surpresa em relação à marca x x

Uso de conceito da marca x x

Valor da marca x

Tabela 24: Relações de significação dos “tons” (continuação)

Caracterizando algo relativo à marca por meio de tons

Em relação à função dos tons de caracterizar algo relativo à marca, esta se refere a

aspectos da marca. Quando falante caracterizou os estádios de Náutico e Santa Cruz de

“chiqueirinho” e “chiqueirão” [#18] o fez com ironia ácida, de acordo com o que tinha em

mente ao mencionar os adversários.

Corroborando algo relativo à marca por meio de tons

A função de corroborar algo relativo à marca por meio de tons refere-se a

preconceito em relação à marca. Quando falante sugere que mulher manda no marido quando

esta desaconselha o mesmo a beber a dose de cachaça que ele o oferecera [#23] todos que

estavam participando da interação riem, mas o fazem com o tom malicioso de quem

corrobora seu comentário preconceituoso.

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247

Desvelando algo a respeito da marca por meio de tons

Desvelar algo a respeito da marca ocorre em relação a várias atividades marcárias:

característica do usuário da marca, comportamento da marca, confiança na marca, defesa da

marca, desabono à marca, desconfiança da marca, desconhecimento da marca, envolvimento

com a marca, escolha da marca, expectativa em relação à marca, frustração em relação à

marca, incoerência em relação à marca, juízo a respeito da marca, lembrança da marca,

preconceito em relação à marca, rejeição à marca, sentimento pela marca, sugestão da marca,

surpresa em relação à marca e uso de conceito da marca.

De uma mesma situação [#52] podemos exemplificar o desvelamento de duas

atividades. Quando diz, se incluindo, que quem está com trinta e poucos anos é que são os faz

mesmo do U2, falante o faz com tom de certa soberba, desvelando característica que atribui

aos fãs (usuários) da banda, bem como seu sentimento pela mesma.

Outra situação [#41] também nos fornece exemplo para o desvelamento de duas

atividades: surpresa em relação à marca e comportamento da marca. O desvelamento da

surpresa de um falante pelo fato dos Rolling Stones apresentarem-se no intervalo do Super

Bowl (comportamento da marca), fica evidente, em parte, pelo tom de estupefação que ele

coloca em sua entoação.

A confiança na marca desvelada por falante quando garante que A Traíra está

aberto o tempo todo [#9] está presente no tom seguro que impõe em sua fala ao fazer tal

garantia, sendo um exemplo do caso em questão.

Um exemplo de defesa da marca desvelada por um tom temos na situação [#1] em

que falante, ao ver seu time ser acusado de sempre “morrer na praia”, afirma, num misto de

mágoa e deboche, que “o Náutico é o único hexa”.

Uma outra situação [#43] futebolística nos propicia um exemplo relativo a mais

duas atividades. Quando dois amigos conversam sobre a perda de um pênalti que tirou do

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Ypiranga a vitória do primeiro turno do Campeonato Pernambuco e propiciou ao Santa Cruz

ganhar o mesmo, um deles comenta, em tom de lamentação, que havia sido muita sorte deste

time. Com isto, desvela desabono ao Santa Cruz – uma vez que não teria ganho por mérito – e

sua frustração, já que, na impossibilidade de seu time, o Sport ser o vencedor, preferia o

Ypiranga ao seu rival.

Mais uma situação futebolística [#101]. E novamente útil para a elucidação de

duas atividades. Quando taxista carioca ouve de seu passageiro que o Fluminense, seu time, é

o favorito à Copa do Brasil, o tom que usa para dizer não ter certeza disto, graças ao azar que

o mesmo teria quando joga com o Vasco, é desanimado, desvelando sua desconfiança do seu

time, bem como um juízo que faz do mesmo.

Em outra situação [#17], ao ser perguntada se conhecia a Via Marte quando tenta

inserir-se em conversa de outras duas mulheres, falante primeiro diz que não, depois que

acredita já ter tido uma sandália com “aquele nome”. O tom hesitante com que faz o

comentário desvela que ela realmente desconhecia aquela marca.

Depois de cometer uma gafe ao chamar série de televisão de “Lots” e ser

corrigido por seu interlocutor [#42], falante diz, empolgadamente, que gosta mesmo de 24

Horas, relatando, no mesmo tom, minúcias da história, desvelando, assim, seu envolvimento

em relação a esta.

Mais uma situação [#3] que nos ilustra duas atividades desveladas por tons:

aquela em que vizinhas conversam sobre a escolha da escola para a filha de uma delas. Após

mencionar que queria uma com piscina olímpica e dizer que não daria para ser o Santa Maria,

mãe comenta, titubeante: “Pensei no Colégio Boa Viagem”. Seu tom, apesar de não definir,

desvela sua escolha. Na seqüência, começa a relacionar as qualidades daquela escola e, agora

firmemente, diz que lá todos saberiam quem é sua fila, desvelando sua expectativa em

relação à mesma.

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249

Titubeante também é o tom de mulher que comentara com seu marido o quão

havia gostado da médica que atendera seu filho na emergência, quando volta atrás após

sugestão dele de que trocassem a atual pediatra por ela, desvelando sua incoerência em

relação àquela [#12].

Após perguntar a colega de trabalho por sua esposa e o mesmo comentar que a

mesma entrara na faculdade, falante fica tensa por não recordar-se de sua faculdade, a Sopece.

Com o comentário de uma terceira pessoa, que ouvia a conversa, de que se tratava da

faculdade de Pinto Ferreira, sua reação é de um “Ah...” num tom de alívio, desvelando que

agora lembrara da mesma.

Da mesma forma que os risos dos demais interactantes eram maliciosos quando

falante sugere que mulher de seu interlocutor, a quem ele insistia que tomasse uma dose de

cachaça, mandava nele [#23], também malicioso era seu tom ao fazer tal sugestão,

desvelando preconceito.

Em outra situação [#37], quando dois homens combinavam para onde iriam sair

com suas esposa e namorada, e um deles sugere O Bode, o outro, desanimadamente,

responde: “É... pode ser”. Apesar de sua frase, seu tom desvela sua rejeição a tal proposta.

Quando mulher pergunta, animadamente, ao casal que acompanhava a ela e seu

namorado, se iriam para o Galo da Madrugada [#40], seu tom desvela que, de fato, ela dava

uma sugestão de opção para o carnaval.

Por fim, quando homem solicita a outro, que levantara-se para pegar uma cerveja

durante churrasco [#59], que traga uma “Juliana Paes”, seu tom malicioso desvela sentido

com que estava usando conceito da marca.

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250

Enfatizando algo relativo à marca por meio de tons

Também enfatizar algo relativo à marca aparece como função dos tons. Refere-se

aqui a dez atividades: aspecto da marca, confiança na marca, desabono à marca, diferença em

relação à marca, escolha da marca, gafe em relação à marca, juízo a respeito da marca,

preconceito em relação à marca, surpresa em relação à marca e uso de conceito da marca.

Um exemplo de tom que enfatiza aspectos da marca pode ser dado pela situação

[#38] em que falante propõe ao seu interlocutor discussão sobre “probleminhas clássicos” do

Peugeot 206, no que os relata metodicamente: “A seta, a calibragem do pneu, a suspensão, o

marcador do combustível...”. No tom metódico é que se encontra a ênfase dada a tais

aspectos.

Uma mesma situação [#31], também automobilística, nos serve para exemplificar

ênfase de tons relativos a três atividades marcárias: desabono à marca, diferença em relação à

marca e juízo a respeito da marca. Quando explicava ao seu interlocutor como o chicote de

embreagem de seu carro havia quebrado enquanto o tomara emprestado, falante desconversa e

comenta, animado, que o mesmo, um Peugeot 206, é muito bom; que se fosse um Gol já teria

quebrado antes. Sua animação tanto enfatiza o juízo que faz de cada marca quanto a diferença

que aponta em relação às duas. Na seqüência da conversa, quando seu interlocutor disse não

conhecer esta face do Gol, falante, desleixadamente, reconhece que o mesmo tem valor de

mercado, mas que realmente quebra muito e que a sorte é o fato de qualquer mecânico saber

consertá-lo. O tom desleixado que impõe em sua fala desabona o Gol.

Quanto à ênfase de confiança na marca por meio de tons, podemos mencionar

situação [#69] em que, numa farmácia, falante pede um remédio genérico, mas pergunta se o

mesmo é da Medley, no que, virando-se para sua irmã, diz-lhe, num tom de soberba, que só

compra medicamentos genéricos daquela marca, enfatizando sua confiança na mesma.

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251

Na situação [#111] em que mulher diz à sua amiga que só aceitaria acompanhá-la

para um chocolate quente porque o convite era para o São Braz, sua escolha aparece

enfatizada, o que é evidenciado pelo seu tom esnobe então.

Em outra situação [#127], o tom repreendedor com que falante põe à mostra

equívoco de interactante ao mencionar evento patrocinado por Havaianas como sendo por

Dupé, enfatiza a gafe da mesma.

Quando mulher comenta do “livrinho” que marido de sua cunhada a havia

presenteado, sua interlocutora questiona: “livrinho?” [#4]. Para encobrir seu preconceito

sugerido pela pergunta de sua interlocutora, falante faz uma associação de seu comentário

com o tamanho de um livro, dimensionado-o entre o apontador e o polegar. A reação de sua

interlocutora é enfatizar seu preconceito com um irônico “Ah...”.

Quanto a um tom enfático referente a uma surpresa em relação a uma marca,

podemos ilustrar com a situação [#9] em que mulher, ao ouvir do seu marido que A Traíra é

referenciada no Guia 4 Rodas, enfatiza sua surpresa em tom de estarrecimento.

Por fim, quando brinca em resposta a pergunta de professor em atividade de curso

de pós-graduação, se utilizando de um dos slogans da Coca-Cola [#109], tom de aluno é

maroto, enfatizando uso de conceito daquela marca.

Ironizando algo relativo à marca por meio de tons

Outra função dos tons é ironizar algo relativo à marca e se refere, em nossas

observações, a aspectos da marca. Quando falante se refere à cachaça da qual procurava

informações no rótulo e não encontra com um “Isso é de boa que é!” [#23], o faz num tom de

brincadeira, ironizando tal fato.

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252

Preservando[-se] de algo relativo à marca por meio de voz alta

Possibilitar preservação pessoal de algo relativo à marca é outra função

relacionada a várias atividades marcárias. São elas: constrangimento em relação à marca,

defesa da marca, desabono à marca, desconhecimento da marca, dissimulação em relação à

marca, escolha da marca, frustração em relação à marca, gafe em relação à marca, juízo a

respeito da marca, opinião sobre a marca, preconceito em relação à marca e situação

relacionada à marca.

Uma mesma situação [#47] nos serve para ilustrar preservação relativa a duas

atividades marcárias. Ao relatar situação constrangedora porque passara no Hospital

Português em ocasião em que médica chamou-lhe atenção por não ter antialérgico em casa

tendo filho alérgico, falante, de forma esnobe, sugere inadequação da médica a um hospital a

que “só vai quem pode pagar um plano bom”.

Em outra ocasião [#43], após defender Ypiranga por perder pênalti em jogo que

poderia ter ganho turno do Campeonato Pernambuco e seu interlocutor rebater seu argumento,

falante preserva-se de sua ação dizendo, em tom de brincadeira, que talvez eles tivessem

tomado uma cachaça.

Quando sua mãe, assustada, pergunta quanto custa tênis que filho teria que

abdicar de calça para comprar [#49], falante a responde com tom acanhado, preservando-se

do fato da mesma ter desabonado o mesmo.

Em outra situação [#7], quando dentista, ao ser questionado por marido de sua

paciente durante consulta, se o Listerine é o melhor anti-séptico, e este acrescentar a este o

Oral B, aquela diz não saber que havia tal produto desta marca. Com isto, ele começa a relatar

várias marcas, no que, ao mencionar Cepacol, esta o interrompe, com uma fala um tanto

irritada, que aquele ela conhece, preservando-se do que entendeu ser (sua lista) a sugestão de

seu desconhecimento das marcas citadas.

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Uma mesma situação [#23] nos serve para ilustrar três atividades. Após

sugestividade de interactante de que sua mulher estaria sendo dissimulada por falar mal de

cachaça e supostamente já ter bebido 51, falante questiona-lhe, brincando, se ela o estava

escondendo tal fato, como forma de preservá-la de tal acusação. Em outra passagem da

mesma interação, quando falante se refere à cachaça que, insistentemente, oferecera a seus

convidados, por “Isso é de boa que é!”, o faz em tom de brincadeira, preservando-se do juízo

anterior que lhe conferira, bem como de sua frustração em relação à mesma.

Quando dupla de amigos responsáveis pela compra de Skol para festa de carnaval

se depara com situação de terem que comprar outra marca para completar quantidade

necessária [#58], um deles sugere Antarctica e o outro, em tom seguro, diz que “dá no

mesmo”, enfatizando escolha necessária.

Outra situação [#42] nos serve para ilustrar preservação em relação a uma gafe em

relação a uma marca. Quando falante se equivoca na pronúncia do nome de uma série

americana é corrigido e também corrige-se, dizendo, acanhadamente: “Lost, né?”.

Quando, ao falar sobre o Hospital Português, falante comenta que acha importante

que nos preocupemos com o que os outros acham [#2], o faz de forma petulante, enfatizando

sua opinião.

Por fim, ao dizer que hoje em dia estava “feito mulher” ao rejeitar dose de uísque

que lhe fora oferecida [#25], falante o faz em tom de brincadeira, preservando-se do

preconceito que sua fala trazia.

Projetando-se por meio de algo relacionado à marca por meio de tons

Outra função do tom é o de projetar-se por meio de algo relativo à marca. Aqui

temos duas atividades: aspecto da marca e juízo a respeito da marca. Um exemplo do primeiro

caso pode ser dado pela situação [#135] em que falante pronuncia o nome da marca Pioneer,

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da qual adquirira um som para carro, de forma soberba, projetando-se devido ao fato do

modelo publicizado pelo anúncio que ele e um amigo acabara de ver na televisão destacar sua

avançada tecnologia.

O outro caso pode ser exemplificado pela situação [#112] em que, num tom

esnobe, falante disse só dar “do bom e do melhor para seus filhos”, daí só fazer sua feira no

Hiper Bompreço.

Propiciando algo em relação à marca por meio de tons

Propiciar algo em relação à marca por meio de tons se refere a assunto relativo à

marca. Era fim de tarde e um casal caminhava ao redor da lagoa que se localiza no bairro em

que moram, quando cruzam com um tio dele que há algum tempo não via [#13]. A reação de

ambos foi um tímido “oi”. Contudo, foi o bastante para “quebrar o gelo” e, quando voltaram a

se cruzar meia volta depois, o tio perguntou ao sobrinho se ele ainda acompanhava o Sport.

Provocando algo em relação à marca por meio de tons

Outra função dos tons é provocar constrangimento em relação à marca. Ao sugerir

que amigo era “vira-casaca” devido às cores da bola de seus filhos, com insistentes “É

tricolor!”, falante o faz em tom provocativo, para deixar seu interlocutor sem graça.

Solicitando algo a respeito da marca por meio de tons

Os tons também têm como função solicitar opinião sobre a marca. Exemplo disto

temos na situação [#3] em que vizinhas conversam sobre a escolha da escola para a filha de

uma delas. Ao dizer, titubeante, que pensara no Colégio Boa Viagem, falante fornece pista

para que sua interlocutora opine a respeito.

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Sugerindo algo a respeito da marca por meio de tons

Finalmente, sugerir algo a respeito da marca é mais uma função relacionada a

várias atividades: adesão a outra marca, aspecto da marca, característica do usuário da marca,

comparação da marca, comportamento da marca, desabono à marca, desconfiança da marca,

desconhecimento, diferença em relação à marca, dissimulação em relação à marca,

inadequação do usuário à marca, intimidade com a marca, juízo a respeito da marca, rejeição

à marca e valor da marca.

Quando falante acusa interlocutor de ser “vira-casaca” [#22] devido às três cores

peculiares da bola de seus filhos, o faz de forma sugestiva, o que é parcialmente elucidado por

meio de seu tom provocativo.

Ao chegar em cabeleireiro e ser questionada se a que vestia era roupa adequada

para ir à faculdade [#85], falante diz que se trata de uma M. Officer num tom de obviedade,

sugerindo conseqüência de uso da marca.

É com indignação que consultor se refere a executiva que lhe oferecera valor que

julgou baixo por seu serviço ao dizer que a mesma o faz uma proposta tal e usa Prada. O tom

em questão, aqui, sugere característica que ele associa a usuária da marca [#61].

Uma mesma situação [#33] nos serve para ilustrar quatro atividades marcárias:

desconfiança da marca, desabono à marca, comparação da marca, inadequação do usuário à

marca. Ao dizer à sobrinha que nunca ouvira falar da Sopece e perguntar-lhe se tem certeza de

que seja boa, falante o faz com um tom desconfiado, sugerindo seu sentimento em relação à

marca. Na seqüência, ao sugerir que a mesma só passara naquela faculdade pelo fato dela ser

particular, falante o faz num tom debochado, sugerindo seu desabono à mesma. Na seqüência

da conversa, a primeira propõe à outra, ironicamente, que tente a Católica, sugerindo uma

comparação entre esta e a Sopece, por serem ambas particulares, bem como a inadequação de

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sua interlocutora para a mesma, uma vez que podemos subentender que ela acredita que a

mesma não passaria.

Na espera por atendimento na Celpe, ao denunciar que funcionários estavam

conversando em tom de indignação [#77], falante sugere comportamento inadequado da

marca.

Em outra situação [#49] temos exemplo para mais duas atividades: valor da marca

e diferença em relação à marca. Quando sua mãe questiona valor do tênis que pretendia

comprar, falante, euforicamente, elogia o mesmo, dizendo que o que está usando foi barato e

já rasgou, no que sugere o valor daquela marca baseada na diferença com a que está usando.

Quando falante sugere dissimulação de interlocutora por esta rechaçar cachaça

que oferecera, uma vez que a mesma já teria tomado 51 [#23], o faz por meio de uma

pergunta em tom de ironia, do que podemos inferir sua sugestividade.

Em outra situação [#122] falante está sugerindo ser íntimo do Google, uma vez

que seu e-mail é “do tempo que tinha que ter convite”. Isto é evidenciado pelo tom de

orgulho com que diz isto aos seus interlocutores.

Ao mencionar que sua filha nadava muito bem e, por isto, estava pensando em

trocá-la de escola [#3], falante justifica sua intenção dizendo, com desdém, que a piscina do

Pinheiros é muito pequena, o que sugere sua rejeição à mesma.

Por fim, ao sugerir com euforia a executivos de uma faculdade que um

laboratório com computadores MacIntosh “é outra coisa” [#123], falante sugere àqueles juízo

a respeito de tal marca.

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257

7.6 Variações ortoépicas

As variações ortoépicas se referem àquelas dialetais e fonéticas. A variação

dialetal refere-se ao impacto que diferentes sotaques têm sobre a pronúncia. Tais variações

podem ser percebidas presentes na diferença de timbres das vogais (mais abertas ou mais

fechadas), de vibrações consonantais ou de outros casos de uso de diferentes fonemas

relativos a uma mesma letra. Como exemplos, podemos apontar a diferença entre o “d”

carioca e o pernambucano, entre o “e” paulista e o baiano, o “r” vibrante da região central do

país etc.

A variação fonética, por sua vez, trata-se dos chamados “barbarismos fonéticos” –

termo aqui evitado por entendermos como pejorativo. Temos aqui a cacopéia e a silabada. A

primeira refere-se à pronúncia propriamente dita, como trocar “asterisco” por “asterístico”,

por exemplo; a segunda refere-se à tonicidade silábica (do domínio da prosódia, portanto, aqui

mantida por uma questão instrumental e sustentada pela tênue linha que separa esta da

ortoépia), como trocar “ibero” por “íbero”, por exemplo.

Tais variações têm como função desvelar aspectos tanto sociais quanto

geográficos das formas de vida. Em nossas investigações identificamos três funções das

variações ortoépicas: enfatizar algo em relação à marca, desvelar algo a respeito da marca e

sugerir algo a respeito da marca. As duas últimas se referem a ambos tipos de variações,

enquanto a primeira apenas à variação fonética.

7.6.1 Variação dialetal

Em nossas investigações as variações dialetais são significativas em certas

palavras, seja pela ênfase dada no sotaque local (pernambucano), seja, ao contrário, pelo uso

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de um sotaque estranho (no caso, um pernambucano pronunciando uma palavra com sotaque

paulistano, por exemplo).

Como antecipei, identificamos duas funções das variações dialetais na

significação das marcas, ambas relacionadas a aspectos da marca, especificamente

desvelando-as ou sugerindo-as (ver Tabela 25).

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

izar

[De]

Mo[

n]st

rar

Pres

erva

r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Nome da marca x x

Tabela 25: Relações de significação das “variação dialetal”

Desvelando algo a respeito da marca por meio de variação dialetal

O primeiro caso podemos ilustrar pela forma como falante pronuncia o nome da

marca Taffman-E. Na ocasião [#57], o “E” é pronunciado fechado, com sotaque tipicamente

paulistano, desvelando forma como ele aprendeu, provavelmente por meio de publicidade da

marca, a falar o nome da mesma.

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de variação dialetal

O segundo caso pode ser exemplificado por situação [#44] em que falante pede

opinião sobre pen drives e menciona que ouvira falar bem do da Creative, pronunciando o

nome da marca em inglês. Seu interlocutor o corrige perguntando: “O que, a Creative”. Em

sua fala o nome da marca é pronunciada em português e não em inglês, sugerindo a forma

correta da mesma em seu entendimento.

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7.6.2 Variação fonética

As variações fonéticas são significativas também em palavras em nossas

investigações. Aparecem por meio de aportuguesamento ou pronúncia equivocada de palavras

de outra língua, pelo uso de certa palavra no intuito de significar outra ou ainda por uma

adaptação da palavra original.

Como vimos, são três as funções das variações fonéticas na significação das

marcas. Elas estão relacionadas a quatro atividades marcárias, conforme pode ser visto na

Tabela 26.

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

izar

[De]

Mo[

n]st

rar

Pres

erva

r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Aspecto da marca x

Gafe em relação à marca x

Juízo a respeito da marca x

Nome da marca x

Tabela 26: Relações de significação da “variação fonética”

Desvelando algo a respeito da marca por meio de variação fonética

A função da variação fonética de desvelar algo em relação à marca se refere a

duas atividades marcárias: gafe em relação à marca e nome da marca. Em relação ao primeiro

caso, quando falante pronuncia nome de série como Lots ao invés de Lost é corrigido e aceita

situação [#42], no que a mesma pode ser considerada como o desvelamento de uma gafe em

relação à marca pelo primeiro ter pronunciado seu nome erradamente.

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O segundo caso pode ser exemplificado por situação [#10] em que falante indica a

marca Mondial para sua interlocutora chamando-a de “Mundial”, desvelando a forma como

ela entende que seja a pronúncia correta da mesma, num aportuguesamento do nome da

mesma.

Enfatizando algo relativo à marca por meio de variação fonética

Outra função da variação fonética é enfatizar algum aspecto da marca. Quando

anfitrião insistia em que convidados provassem da cachaça de cabeça que ele oferecera, diz

que a mesma levanta até “véio”. A palavra aqui se trata de um tratamento com dose de humor,

marcadamente local, para se referir àquela faixa etária, que pretende enfatizar característica

da marca.

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de variação fonética

A terceira e última função da variação fonética é sugerir algum juízo a respeito da

marca. Ao ser solicitado por dar opinião sobre pneus e indicar a marca Colway [#19], falante,

um caminhoneiro, afirma que a mesma não é importada, mas “recalcada”. O termo –

possivelmente usado em sua forma de vida –, é referente ao fato do pneu ser recoberto, o

que é sugerido como algo positivo.

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8 Cinésica marcária A cinésica preocupa-se com os aspectos comunicativos do movimento corporal.

Portanto, movimentos cinésicos são aqueles que, voluntariamente ou não, podem expressar

intenções e sentimentos (WEIL, 1973).

Um outro campo do conhecimento também se preocupa com aspectos corpóreos

da expressividade humana: a proxêmica. Esta se atém aos aspectos espaciais da interação

entre as pessoas (BIZERRIL NETO, 2005; SAWADA et al., 2000).

Assim, movimentos cinésicos e proxêmicos compõem o que chamamos de

aspectos extralingüísticos da linguagem. Contudo, em nossas investigações observamos,

dentre os movimentos proxêmicos, apenas a distância corporal – o espaço que duas ou mais

pessoas estabelecem entre si –, ainda assim em raras situações e, o mais importante: sem

contribuição para a significação das marcas. Por exemplo, quando alunas estão envolvidas

numa “guerra de times” [#1], professor mantém-se de pé, por trás do seu birô, na tentativa de

demovê-las de tal empreitada e dar início à prova.

Sendo assim, a dimensão extralingüística da linguagem na significação das marcas

em nossas investigações restringe-se aos movimentos cinésicos. Identificamos cinco deles:

contato visual, expressões faciais, movimentos da cabeça, movimentos dêiticos e postura

corporal. Evidentemente, nossos corpos estão sempre em movimento, ou melhor, estamos

sempre nos movimentando. Mas nem todos os movimentos que observamos nos são úteis.

Preocupamo-nos apenas com os movimentos cinésicos que impactam a significação das

marcas nas interações observadas. São deles que passaremos a tratar a partir de agora.

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8.1 Contato visual

O contato visual a que nos referimos se trata da comunicação que as pessoas

estabelecem entre si por meio do olhar. O contato visual pode indicar vários aspectos:

felicidade, admiração, interesse, ansiedade etc. Em nossas observações identificamos quatro

diferentes funções do contato visual, cada uma relativa a uma diferente atividade marcária,

como pode ser visto na Tabela 27.

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

izar

[De]

Mo[

n]st

rar

Pres

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r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Assunto relativo à marca x

Juízo a respeito da marca x

Opinião sobre a marca x

Sentimento pela marca x

Tabela 27: Relações de significação do “contato visual”

Desvelando algo a respeito da marca por meio de contato visual

Uma das funções do contato visual é desvelar sentimento pela marca. Era o dia

seguinte à conquista do título pernambucano de futebol pelo Sport. Sentado na recepção de

um consultório médico, havia um homem vestido com a camisa daquele time. Num dado

momento, entra um outro homem, magro e de média estatura, aparentando pouco menos de

quarenta anos. Ele também vestia uma camisa do Sport. Olhou toda a recepção cheia de gente

com uma cara que demonstrava certo estresse. Ao deparar seus olhos com os do primeiro,

eles brilham e o mesmo ocorre com o outro, desvelando sentimento pelo time que torcida eles

compartilham [#90].

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263

Propiciando algo em relação à marca por meio de contato visual

Outra função do contato visual é propiciar algum assunto relativo à marca.

Quando tio e sobrinho que há muito não se falavam se viram enquanto caminham em lados

opostos ao redor de uma lagoa no bairro em que ambos moram [#13], um fitar de olhos, da

segunda vez que se cruzam, é o bastante para quebrar o gelo e abrir espaço para que o

primeiro pergunta ao sobrinho se este ainda acompanhava o Sport.

Solicitando algo a respeito da marca por meio de contato visual

A função do contato visual de solicitar algo a respeito da marca se refere a uma

opinião sobre a marca. Quando mãe, conversando com sua vizinha, comenta que havia

pensado no Colégio Boa Viagem para colocar sua filha para estudar [#1], o faz fitando os

olhos da mesma, como uma forma de solicitação de que esta opine sobre o que tinha em

mente.

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de contato visual

Finalmente, o contato visual também tem como função sugerir juízo a respeito da

marca. Em outra situação futebolística [#1], após ter se envolvido em discussão sobre times

em sala de aula graças ao seu ter sido negativamente mencionado, professor encara nos olhos

uma das alunas, ao ela insistir com a discussão após ele a ter dado por acabado, dizendo que

“Hexa é luxo!”, afirma que isto é passado e pergunta se ela já havia nascido na ocasião,

sugerindo seu juízo negativo em relação ao mesmo.

Page 270: Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de ...livros01.livrosgratis.com.br/cp077042.pdfTítulo da Tese: “Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de compreensão

264

8.2 Expressão facial

A noção de expressões faciais que assumimos se refere a variações no movimento

muscular da face que, voluntariamente ou não, expressem um sentimento, comumente

emotivo. Estes sentimentos podem ser, dentre tantos outros, de raiva, tristeza, surpresa, afeto

etc.

Em nossas investigações consideramos duas variações das expressões faciais:

aquelas relativas ao próprio rosto e o sorriso. Esta diferença, além de evidente na observação

que fazemos do comportamento dos outros, fica evidente na forma como cada uma atua sobre

a significação, vide suas funções e atividades marcárias a que se referem.

Identificamos dez funções das expressões faciais: chamar atenção para algo

relativo à marca, solicitar algo a respeito da marca, desvelar algo a respeito da marca,

enfatizar algo relativo à marca, preservar[-se] de algo relativo à marca, sugerir algo a respeito

da marca, corroborar algo relativo à marca, ironizar algo relativo à marca, propiciar algo em

relação à marca e provocar algo em relação à marca. As expressões do rosto se referem às seis

primeiras, enquanto as expressões de sorriso apenas não se referem às duas primeiras.

Em relação às atividades marcárias, enquanto as expressões de sorriso se referem

a quatorze, as expressões do rosto se referem a dez. Contudo, apenas quatro delas são comuns

a ambas.

8.2.1 Expressões com o rosto

As expressões com o rosto se referem a quaisquer expressões faciais à exceção de

sorrisos. Em nossas investigações, elas aparecem de várias formas: são caretas de diferentes

tipos; rubor, presente nas maças da face; o que chamo de “rosto aberto”, que é uma expressão

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265

tendendo ao sorriso, mas sem que os lábios formem um de fato; algo que denomino de olhos

brilhantes, que é uma expressão facial que contribui para que os olhos apareçam mais vivazes;

e, finalmente, “olhos esbugalhados”, que é uma expressão que coloca os olhos em destaque,

quase como se pudessem saltar do rosto.

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

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[De]

Mo[

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rar

Pres

erva

r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Constrangimento em relação à marca x

Desabono à marca x x

Desconhecimento da marca x

Envolvimento com a marca x

Escolha da marca x

Frustração em relação à marca x

Gafe em relação à marca x

Interesse pela marca x

Juízo a respeito da marca x x x

Opinião sobre a marca x

Rejeição à marca x x

Sentimento pela marca x

Surpresa em relação à marca x

Valor da marca x

Tabela 28: Relações de significação do “rosto”

São seis as funções das expressões de rosto. Vale destacar que a de desvelar algo a

respeito da marca se refere a de atividades marcárias, as demais se relacionam a no máximo

três. Síntese de tais relações é apresentada na Tabela 28.

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266

Chamando atenção para algo relativo à marca por meio de expressões com o rosto

Uma das funções das expressões com o rosto é a de chamar atenção para uma gafe

em relação à marca. Ao repreender colega de trabalho por mencionar um evento patrocinado

pelas Havaianas como se fosse da Dupé [#127], falante o fez franzindo a testa

ostensivamente contra os olhos e fazendo um pequeno bico com os lábios, chamando

atenção para a gafe que a outra cometera.

Desvelando algo a respeito da marca por meio de expressões com o rosto

A principal função das expressões com o rosto é o desvelamento de algo a

respeito das marcas, no que se refere, como já vimos, a dez atividades marcárias. Estas são:

constrangimento em relação à marca, desabono à marca, desconhecimento da marca,

envolvimento com a marca, frustração em relação à marca, interesse pela marca, juízo a

respeito da marca, rejeição à marca, sentimento pela marca e surpresa em relação à marca.

Estavam duas mulheres conversando na cozinha da casa de uma delas [#35] e a

visitante comenta que uma conhecida sua colocara à venda seu “celular de cartão”. Neste

instante a empregada doméstica interfere perguntando de que marca se tratava, no que a

visitante responde que era da TIM. “Não, a do celular”, explica a que perguntara. Ao perceber

que a outra ainda não havia compreendido, a dona da casa completou: “Do aparelho,

[fulaninha]”. Ela responde agora que era da Nokia, com um constrangimento desvela pelo seu

rosto ruborizado.

Uma outra situação nos serve para ilustrar duas atividades desveladas por uma

expressão com o rosto [#49]. Quando filho comenta que teria que abdicar de uma calça para

juntar o dinheiro e comprar o tênis que desejava, a reação da mãe é perguntá-lo quanto custa o

mesmo com os olhos esbugalhados, desvelando sua surpresa com o preço que imaginara ser

o tênis em questão, bem como desabono àquele pela mesma razão.

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267

Quando solicitado por amigo a opinar sobre pneus importados [#19], falante

começa a fazer perguntas ao mesmo tempo sem respondê-lo, a ponto de, em dado momento,

franzir a testa desconfiadamente, desvelando seu desconhecimento de uma marca a indicar

com segurança.

Também em situação [#40] em que dois casais conversam num bar sobre o que

fazer no carnaval, temos um exemplo para ilustrar duas atividades marcárias. As prévias do

Bloco da Saudade havia sido assumido como opção, contudo não sem que uma das mulheres

comentasse, com uma expressão desanimada, franzindo testa e bochechas, que não gostava

muito e “preferia alguma coisa mais agitada”, desvelando seu juízo sobre o mesmo, bem

como sua frustração pela decisão da maioria.

Em outra situação [#135], mais duas atividades. Quando é exibido na televisão

comercial de um modelo de som para carro da Pioneer enquanto dois amigos conversam na

sala da casa de um deles, o visitante, que há pouco comprara um outro modelo de som para

carro daquela marca, assiste atentamente o anúncio, com uma testa franzida que desvela seu

interesse pela marca, bem como seu envolvimento com a mesma.

Quanto a rejeição à marca por meio de uma expressão com o rosto, podemos

exemplificar com situação [#56] em que, enquanto passava pelos modelos de geladeiras de

uma loja de departamentos para escolher uma, mulher faz uma cara azeda, franzindo o nariz

ao mesmo tempo em que fazia bico, para dizer que “Continental nem morta”.

Por fim, quando mulher é corrigida por seu marido ao chamar videogame de

“Mario e Luigi” [#66], desvela seu sentimento pelo jogo, respondendo ao mesmo que chama

como quiser, uma vez que era assim que o chamava quando era criança, levantando o lábio

superior e as sobrancelhas.

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268

Enfatizando algo relativo à marca por meio de expressões com o rosto

Enfatizar algo relativo à marca é mais uma função das expressões com o rosto e se

refere a três atividades: escolha da marca, juízo a respeito da marca e rejeição à marca.

Quanto ao primeiro caso, podemos mencionar situação [#128] em que coordenadora de

núcleo de moda de uma faculdade justifica compra de máquinas de costura da Singer dizendo

que “Singer é Singer” enquanto faz cara de obviedade, franzindo suas testa e boca.

Em relação ao segundo caso podemos exemplificar com situação [#71] em que

Cid Moreira dava entrevista a Jô Soares e contava certa desventura porque passara durante

chuva que congestionara o trânsito. Durante sua narrativa ele menciona “Eu, com aquele

carrinho...”. Neste momento faz uma digressão para falar do carro, um 1600 da Volkswagen e

mencionar como o mesmo era bom, no que faz isto com as sobrancelhas suspensas,

enfatizando seu juízo pelo carro em questão.

O último caso podemos ilustrar com situação [#63] em que criança, de tanto

chamar O Coisa, do Quarteto Fantástico, de Homem Pedra, é chamado atenção pelo seu pai,

que insiste em lhe ensinar o nome correto. Depois de algumas tentativas o menino diz que

sabe o nome. Seu pai pergunta-lhe, então, por que ele não dizia o nome certo. Sua reação é

dizer que não gosta de chamá-lo de “O Coisa”, fazendo uma expressão de ojeriza, com

nariz, boca e sobrancelhas franzidas.

Preservando[-se] de algo relativo à marca por meio de expressões com o rosto

Outra função das expressões com o rosto é possibilitar preservação pessoal de

algo relativo à marca, no caso, de desabono à marca e juízo a respeito da marca. Em situação

[#23] em que falante houvera mencionado a Pitu por exclusão ao destacar “cachaças boas”,

“premiadas”, seu interlocutor menciona que a mesma fora de Pernambuco – seu estado de

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269

origem – é cara, tentando valorizar a mesma. Sua reação de desabono à mesma é uma careta

com nariz franzido e bico na boca.

Em relação à preservação de si em relação a um juízo a respeito da marca, temos

um caso peculiar, pois que é de um juízo positivo, por timidez, quando, na maioria dos casos,

a preservação se refere a um juízo negativo. Um jovem estava na casa de sua prima e esta o

pergunta, em tom elogioso, se aquele que ele estava calçado era “o tênis” [#80], se referindo a

situação em que sua mãe escandalizara-se com o valor do mesmo. Sua reação foi um rosto

ruborizado.

Solicitando algo a respeito da marca por meio de expressões com o rosto

Solicitar opinião sobre a marca também é uma função das expressões com o rosto.

Por exemplo, quando dois homens comiam tapioca na calçada próximo ao carro de um deles

após uma reunião de trabalho [#124], o outro diz saber que tal carro, um Peugeot 206, é bom,

mas pergunta se a manutenção é muito cara, opinião que solicita olhando-o atentamente com a

testa franzida.

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de expressões com o rosto

Por fim, a última função das expressões com o rosto é sugerir valor da marca. Os

olhos esbugalhados da mãe que pergunta ao filho quanto custa o tênis que ele deseja comprar

[#49] sugere que o mesmo não vale tanto quanto ela começa a imaginar que ele custe.

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270

8.2.2 Expressões de sorriso

O que estou chamando de sorriso não deve ser interpretado como um movimento

único, mas como uma família de movimentos de expressão facial, dependentes da articulação

da boca. Assim, temos diferentes “variações” do sorriso: o riso, com o qual tenho em mente a

expressão mais típica de sorriso, em que sua duração é mais breve e tende a ser de uso mais

trivial; o sorriso, como um tipo específico de “sorriso”, no que tenho em mente aquele de

duração mais longa, tipicamente desvelador de alguma emoção ou resultante de alguma

situação engraçada; a gargalhada, que se refere aqui ao sorriso resultante de alguma situação

engraçada em extensão e expressão ainda mais longa e expressiva; e, finalmente, o ar de riso,

que se refere aqui a expressões pontuais e de brevidade mínima, usado fundamentalmente

como sinalizador de algo para o outro.

O sorriso é a expressão cinésica de maior variabilidade em nossas investigações.

Como já vimos, assumem oito funções na significação das marcas, referentes a quinze

atividades marcárias, como pode ser visto na Tabela 29.

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

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[De]

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rar

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Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Adesão a outra marca x

Aspecto da marca x x

Assunto relativo à marca x

Comparação da marca x

Comportamento da marca x x

Conhecimento da marca x

Constrangimento em relação à marca x

Tabela 29: Relações de significação de “expressões de sorrisos”

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271

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

izar

[De]

Mo[

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rar

Pres

erva

r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Defesa da marca x x

Desabono à marca x

Desconhecimento da marca x x

Gafe em relação à marca x

Juízo a respeito da marca x x

Preconceito em relação à marca x x

Rejeição à marca x

Sentimento pela marca x

Uso de conceito da marca x

Tabela 29: Relações de significação de “expressões de sorrisos” (continuação)

Corroborando algo relativo à marca por meio de expressões de sorrisos

Uma função das expressões de sorriso é corroborar algo relativo à marca. O

corroborar aqui se refere a seis atividades marcárias: aspectos da marca, comparação da

marca, comportamento da marca, desabono à marca, preconceito em relação à marca e uso de

conceito da marca.

Professor provocara debate com seus alunos de Publicidade sobre a diferença

entre produtos e marcas [#34]. Em certo momento um dos alunos menciona que Nike é

melhor, quando o primeiro solicitara comparação desta com a Mizuno. Ele pergunta por que é

melhor e ouve o jovem dizer que é porque a mesma é “bolada”. Toda a sala ri da forma

engraçada como ele fala, mas tal riso corrobora compreensão do mencionado aspecto da

marca.

De outra situação [#60] podemos tirar exemplo para três atividades: comparação

da marca, comportamento da marca e desabono à marca. Quando, durante festa de carnaval,

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272

começa a tocar música do Babado Novo e mulher comenta que “não tem quem diga que não é

Ivete”, suas interlocutoras riem, corroborando a comparação feita pela falante, mas também

sua sugestão de que aquela banda estava imitando a artista mencionada propositalmente e

desabonando-a.

Quando falante sugere que mulher manda em seu marido, pelo fato da mesma

tentar dissuadir o mesmo de tomar um trago de Maribondo que aquele lhe oferecera [#23], os

demais interactantes presentes riem maliciosamente, corroborando comentário

preconceituoso.

Em outra situação [#59], quando falante pede a um de seus interactantes que traga

“uma Juliana Paes”, todos os demais riem, corroborando uso de conceito da Antarctica que

aquele fizera ao se referir à mesma pela sua garota propaganda.

Desvelando algo a respeito da marca por meio de expressões de sorrisos

Outra função das expressões de sorrisos é desvelar algo a respeito da marca, no

que se refere a três atividades: juízo a respeito da marca, rejeição à marca e sentimento pela

marca. Após sua mãe questionar valor do tênis que pretendia comprar [#49], falante diz, com

um largo sorriso, que o mesmo “é arretado”, desvelando seu juízo a respeito da mesma.

Em outra situação [#37], falante, discretamente, evitava O Bode como opção para

sair com namorada e casal de amigos. Quando o outro homem sugere outra opção, ele, com

um animado pequeno sorriso, diz que está ótimo, desvelando sua rejeição à primeira opção.

Quando flanelinha, ao se deparar com possível “freguês”, vestido com uma

camisa do Sport na segunda-feira seguinte à conquista daquele time do Campeonato

Pernambucano de futebol, que acabara de estacionar seu carro [#89], pergunta-lhe sobre como

houvera sido bom, o faz com um largo e parcialmente desdentado sorriso, desvelando seu

sentimento pelo time.

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273

Enfatizando algo relativo à marca por meio de expressões de sorrisos

Enfatizar conhecimento da marca é outra função das expressões de sorriso.

Quando seu pai tentava lhe ensinar que o nome de super-herói do Quarteto Fantástico não era

Homem Pedra [#63], como insistia em chamá-lo, filho de oito anos, com um sorriso maroto,

diz: “É O Coisa, pai...”, enfatizando que conhecia o nome certo.

Ironizando algo relativo à marca por meio de expressões de sorrisos

A função das expressões de sorrisos de ironizar algo relativo à marca se refere a

aspectos da marca. Quando falante, em conversa com amigo que, assim, como ele, tem um

Peugeot 206, começa a listar “probleminhas clássicos” daquele carro [#38], o faz um

sarcástico ar de riso, ironizando a marca por tais características.

Preservando[-se] de algo relativo à marca por meio de expressões de sorrisos

A possibilidade de preservação pessoal é outra função das expressões de sorrisos.

Temos aqui relação a cinco atividades: defesa da marca, desconhecimento da marca, gafe em

relação à marca, juízo a respeito da marca e preconceito em relação à marca.

Ao defender o Ypiranga pela derrota que o tirara título do primeiro turno do

Campeonato Pernambucano dizendo que a responsabilidade pesa e seu interlocutor não

aceitar seu argumento, afirmando que eles “tremeram” [#43], falante preserva-se de tal defesa

dizendo, rindo, que talvez eles tivessem bebido uma cachaça antes da partida.

Em outra situação [#76], mulher vai à casa de sobrinha e leva consigo para seus

filhos bolinhos da Bauducco, “com aquele bicho verde que eles gostam de assistir”, se

referindo a Shrek, nome que é dito por sua interlocutora. Com um sorriso sem graça diz que

é “esse nome aí mesmo”, preservando-se do seu desconhecimento a respeito do nome do

mesmo.

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274

Quanto à preservação por uma gafe relacionada a uma marca por meio de uma

expressão de sorriso, podemos mencionar situação [#84] em que, após dizer que só dava “do

bom e do melhor para seus filhos”, daí fazer compras no Hiper e não no mercadinho do

bairro, mulher escuta de sua interlocutora que ela faz compras em tal mercadinho, no que sua

reação é “É?!”, acompanhado de um sorriso sem graça.

Em situação [#46] em que mulher conta a amiga sobre ocasião em que seu filho

lhe oferecera dinheiro da mesada emprestado para que ela comprasse uma blusa “numa loja

melhor”, ela o faz sempre rindo, preservando-se daquele juízo em relação à C&A, do qual ela

parece compartilhar.

Finalmente, quando mulher diz que “esse povo é que é pirangueiro mesmo”, se

referindo a marido de sua cunhada que a presenteara apenas com um “livrinho”, o faz rindo,

preservando-se de tamanho preconceito [#4].

Propiciando algo em relação à marca por meio de expressões de sorrisos

Propiciar algo em relação à marca também é uma função das expressões de

sorrisos, referindo-se aqui a assunto relativo à marca e defesa da marca. Na ocasião [#13] em

que um contato visual entre tio e sobrinho que caminhavam “quebra o gelo” entre os dois e

propicia que comecem uma breve conversa sobre o Sport, aquele era acompanhado por um

leve sorriso, co-responsável pelo início do assunto.

Na situação em que mãe questiona o preço do tênis que o filho programara-se para

comprar [#49], prima deste o pergunta, com ar de riso, o que aquela marca tinha demais,

propiciando que o mesmo defendesse sua escolha.

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275

Provocando algo em relação à marca por meio de expressões de sorrisos

As expressões de sorrisos também têm como função provocar constrangimento

em relação à marca. Isto ocorre, por exemplo, quando, às gargalhadas, falante sugere que seu

interlocutor “É tricolor!” [#22].

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de expressões de sorrisos

Finalmente, as expressões de sorrisos também sugerem algo a respeito da marca,

no que se refere a adesão a outra marca, comportamento da marca e desconhecimento da

marca. O primeiro caso pode ser exemplificado pela mesma situação que acabamos de

mencionar [#22], uma vez que as gargalhadas do falante também têm a função de sugerir que

seu interlocutor é um “vira-casaca”, ou seja, que o mesmo teria aderido a outro time.

Quanto ao comportamento da marca, quando falante comenta que o Babado Novo

se parece com Ivete Sangalo [#60], o faz com um sorriso malicioso, sugerindo que aquela

banda estaria imitando a cantora mencionada.

Em outra situação [#97], quando garoto, esbaldando-se de rir, corrige seu pai,

dizendo que aquilo que ele estava bebendo não era leite, mas Toddynho, sugere que o mesmo

não conhece a marca, daí ter se confundido.

8.3 Movimento da cabeça

Os movimentos da cabeça que nos referimos aqui são posições ou movimentos

horizontais ou verticais que as pessoas fazem com a cabeça e que assuma um significado para

seu interactante. São indicadores de variados aspectos, tais como: afirmação, negação,

submissão, reforço ao comportamento do outro etc.

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276

Em nossas observações identificamos três funções do movimento da cabeça na

significação das marcas, estando duas relacionadas a três atividades marcárias cada e a outra a

apenas uma. Nenhuma delas tendo, contudo, atividades em comum, como demonstra a Tabela

30.

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

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nção

Cor

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Ded

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Des

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r

Enfa

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r[-s

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Prop

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r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Assunto relativo à marca x

Comparação da marca x

Comportamento da marca x

Desabono à marca x

Desconhecimento da marca x

Envolvimento com a marca x

Interesse pela marca x

Tabela 30: Relações de significação do “movimento da cabeça”

Corroborando algo relativo à marca por meio de movimentos da cabeça

Uma função do movimento da cabeça é corroborar algo relativo à marca, o que é

feito em relação a comparação da marca, comportamento da marca e desabono à marca. Uma

mesma situação [#60] nos serve para ilustrar as três atividades. Ao comentário de falante de

que o Babado Novo parecia-se com Ivete Sangalo, seus interlocutores, à medida que riem

com o seu comentário também balançam a cabeça positivamente, corroborando a

comparação feita, bem como a sugestão de que a banda estava imitando a artista

propositalmente e, ainda, o desabono implícito no comentário.

Page 283: Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de ...livros01.livrosgratis.com.br/cp077042.pdfTítulo da Tese: “Investigações marcárias: Uma caminhada em busca de compreensão

277

Desvelando algo a respeito da marca por meio de movimentos da cabeça

Outra função do movimento da cabeça é desvelar algo a respeito da marca, no

caso, desconhecimento da marca, envolvimento com a marca e interesse pela marca. Em

situação [#19] em que é solicitado a opinar sobre pneus e fica buscando pistas com seu

interlocutor para respondê-lo, interactante balança a cabeça positivamente, mas de forma

titubeante, à pergunta do primeiro sobre se certo pneu importado era bom, desvelando seu

desconhecimento.

Em outra situação [#135], quando amigos conversam e um comercial sobre novo

modelo de som para carro da Pioneer passa na televisão, um deles, que comprara um outro da

mesma marca, ergue a cabeça em direção ao aparelho e desta forma fica, assistindo ao

anúncio atentamente, o que desvela tanto seu interesse pela marca quanto seu envolvimento

com ela.

Propiciando algo em relação à marca por meio de movimentos da cabeça

Por fim, uma última função do movimento da cabeça é propiciar assunto relativo à

marca. Se tio e sobrinho fitaram-se nos olhos e abriram leve sorriso quando pela segunda vez

se cruzaram enquanto caminhavam ao largo de uma lagoa no bairro que moram, o que

propiciou que descem início a uma breve conversa sobre o Sport [#13], entre o contato visual

e o sorriso, o segundo acenou com a cabeça para o primeiro, sendo este aceno co-responsável

pela possibilidade do assunto sobre o time que se daí iniciaria.

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278

8.4 Movimento dêitico

Os movimentos dêiticos são tipos de gestos, mas não aqueles que estamos

acostumados a lidar e que são usados para significar algo claramente aos outros – por

exemplo, o polegar estendido para cima como forma de sinalizar algo positivo. Este tipo de

gesto não identificamos em nossas investigações.

Os movimentos dêiticos, por sua vez, são gestos demonstrativos de algo, como,

por exemplo, apontar para algo com o dedo ou inclinar a cabeça em direção de alguma coisa

para evidenciá-la. Em nossas investigações identificamos, além destes, contar com os dedos

ao enunciar diferentes aspectos de uma mesma coisa, demonstrar o tamanho de algum objeto

entre as mãos ou mesmo entre os dedos, simular alguma situação de uso de um objeto por

meio de movimento com a mão, balançar alguma coisa ou ostentar um objeto.

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

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Aspecto da marca x x

Comparação da marca x

Desabono à marca x

Diferença em relação à marca x

Forma de uso da marca x

Juízo a respeito da marca x

Objeto da marca x

Preconceito em relação à marca x

Sentimento pela marca x

Uso de conceito da marca x

Tabela 31: Relações de significação de “movimentos dêiticos”

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279

Tais movimentos assumem quatro funções na significação das marcas de acordo

com nossas investigações, referentes a dez atividades marcárias, das quais apenas uma

relaciona-se a mais de uma função. O resumo destas relações é demonstrado na Tabela 31

Desvelando algo a respeito da marca por meio de movimentos dêiticos

Uma das funções dos movimentos dêiticos é desvelar alguma diferença em

relação à marca. Ao ser sutilmente criticada por sua interlocutora com um “‘Livrinho’?” em

reação à forma como se referira ao livro que marido de sua cunhada lhe presenteara quando a

mesma o havia dado roupas da Diesel [#4], falante insiste na expressão, agora

dimensionando o mesmo entre os dedos polegar e apontador, desvelando diferença por ela

atribuída entre aquele não avantajado livro e a “grande” marca em questão.

Enfatizando algo relativo à marca por meio de movimentos dêiticos

Outra função dos movimentos dêiticos é enfatizar algo relativo à marca, o que

ocorre em relação a aspectos da marca, preconceito em relação à marca e uso de conceito da

marca. Este último caso podemos ilustrar com a mesma situação que acabamos de mencionar,

uma vez que o gesto que faz entre os dedos para se referir ao livro em questão enfatiza o

preconceito dela em relação ao mesmo para valorizar a Diesel.

Quando conversava sobre os vários selos de Johnny Walker, falante conta a

quantidade dos mesmos com os dedos enquanto os relaciona: “tem o vermelho, o preto, o

amarelo, o verde e o azul”. Com isto, enfatiza tal aspecto da marca.

Quando, em seu noivado, que não tinha cerveja devido à sua religião, um dos

convidados brinca dizendo que esperava tomar Skol na ocasião, uma vez que as mesas eram

daquela marca [#138], anfitrião retribui a brincadeira dizendo ao mesmo que era por isso que

ele “estava redondo”, o que disse inclinando sua cabeça por meio de seu queixo para a

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280

barriga do seu interlocutor, enfatizando uso de conceito daquela marca, cujo slogan é “desce

redondo”.

[De]Mo[n]strando algo relativo à marca por meio de movimentos dêiticos

A função mais evidente dos movimentos dêiticos é mostrar ou demonstrar algo

relativo à marca, o que faz em relação a cinco atividades marcárias: aspectos da marca, forma

de uso da marca, juízo a respeito da marca, objeto da marca e sentimento pela marca.

Em relação ao primeiro caso podemos ilustrar situação [#130] em que tia viu o

novo liquidificador de sua sobrinha e perguntou-lhe por que ela não havia comprado Arno.

Esta disse que o mesmo se tratava de um Arno. Sua tia disse que não e apontou para o nome

que nele estava impresso: Optimix. A sobrinha pegou o mesmo e o virou, deixando à mostra

parte do corpo do mesmo em que a marca Arno estava impressa, explicando que o outro nome

se referia ao modelo.

Em outra situação [#23], após sua mulher ser sutilmente acusada de beber 51,

sendo que estava tentando dissuadi-lo de tomar um trago de Maribondo, interactante, ao dizer

que acha a 51 suave, faz movimento com a mão, em que a mesma está fechada e o polegar

erguido, levando-a à boca lentamente, demonstrando como degusta a bebida.

Para demonstrar que seu juízo sobre A Traíra estava certo [#9], falante, ao chegar

ao restaurante, aponta para um sedan importado e um Vectra do ano, ambos estacionados em

frente ao estabelecimento, enquanto menciona o nível dos mesmos e o fato de serem de

Recife.

Mostrar um objeto da marca é a função mais comum dos movimentos dêiticos.

Por exemplo, quando mostra computadores MacIntosh para executivos de uma faculdade

[#123], diretor comercial de empresa especializada na venda de tal marca o faz abrindo um

dos braços em direção aos mesmos, que se encontravam em exposição.

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281

Por fim, ao contar para seus interlocutores situação em que se sentira fugindo de

Cuba ao entrar em estádio pelo espaço da arquibancada destinada à torcida adversária e correr

para onde estava a sua [#18], falante mostra o que fizera para a torcida oponente ao sentir-se

seguro no seio dos seus: balançou sua camisa, como se fosse a do Sport que vestia no dia,

demonstrando seu sentimento pelo time.

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de movimentos dêiticos

Uma última função dos movimentos dêiticos é sugerir algo a respeito da marca, o

que ocorre em relação a comparação da marca e desabono à marca. Quando, em sua festa de

noivado, falante inclina sua cabeça por meio de seu queixo para a barriga de um de seus

convidados, que houvera brincado, mesmo sabendo de sua religião, ao dizer que esperava

beber Skol, já que as mesas eram daquela marca [#138]. Com isto compara a barriga do

mesmo ao slogan da marca.

Um exemplo de desabono temos em situação [#37], após rejeitar O Bode como

opção para sair com sua namorada e um casal de amigos, falante, ao passar pelo mesmo

quando se dirigia para outro bar, aponta como o lugar estava cheio ao dizer que ali havia

mudado muito.

8.5 Postura

A postura corporal se refere à forma de se movimentar ou manter o corpo numa

dada posição. Pode indicar: interesse, superioridade, aceitação, relaxamento etc.

Evidentemente, nossos corpos estão sempre em alguma postura. Contudo, em certas ocasiões

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282

nos postamos de forma peculiar ao contexto da interação, em que a postura assume um papel

na definição da situação.

São estas posturas peculiares as que nos interessam. Em nossas investigações elas

se referem ao movimento de inclinar-se ou virar-se para os outros. Assumem quatro funções

em relação a seis atividades, sem que uma mesma esteja relacionada a mais de uma função. A

Tabela 32 sintetiza tais relações.

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

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Assunto relativo à marca x

Confiança na marca x

Frustração em relação à marca x

Opinião sobre a marca x

Preconceito em relação à marca x

Sentimento pela marca x

Tabela 32: Relações de significação de “postura”

Desvelando algo a respeito da marca por meio de postura

Desvelar algo a respeito da marca é uma das funções da postura corporal na

significação das marcas e se relaciona a três atividades marcárias: frustração em relação à

marca, preconceito em relação à marca e sentimento pela marca.

Após criticar faculdade que sua interlocutora houvera sido aprovada [#33], falante

é questionada por sua mãe, que perdera a maior parte do diálogo, por que ela também fazia

faculdade. Sua reação é perguntar-lhe como, virando-se abrupta e violentamente para ela e

desvelando, assim, sua frustração.

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283

Quando perguntado se já houvera assistido BrokeBack Mountain [#65], falante

vira-se para seu interlocutor para perguntar-lhe se achava que ele era “veado”, desvelando seu

preconceito em relação ao filme.

Por fim, ao ser perguntado pelo seu tio, no breve instante em que se cruzam

enquanto caminham, se ainda acompanha o Sport, falante vira-se ainda andando para

garantir-lhe que sim e comentar que torcia para que fossem campeões este ano.

Enfatizando algo relativo à marca por meio de postura

Também identificamos como função da postura corporal enfatizar juízo a respeito

da marca. Quando vira-se para irmã, após solicitar em farmácia um medicamento da Medley,

para dizê-la que só compra genéricos daquela marca [#69], falante enfatizava sua confiança

na mesma.

Propiciando algo em relação à marca por meio de postura

Outra função da postura corporal é propiciar assunto relativo à marca. Para

perguntar a sobrinha em que faculdade houvera sido aprovada [#33], tia inclina-se para a

mesma, num movimento que simbolizou importância da pergunta e propiciou que aquela não

só respondesse, como conversasse acerca da mesma.

Solicitando algo a respeito da marca por meio de postura

Finalmente, a postura também tem como função solicitar opinião sobre a marca.

Quando uma tia lhe sugere a marca Mondial quando fosse comprar ventilador que mencionara

precisar, falante vira-se para seu marido, para perguntar-lhe se ele conhece a mesma [#10].

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284

9 Visão êmica marcária Dentre os aspectos interacionais influentes na significação das marcas que

identificamos em nossas investigações, parte se refere a constituintes de uma visão êmica dos

interactantes. Por visão êmica tenho em mente a perspectiva contextual dos integrantes de um

grupo social ou dos participantes de uma situação social que é próprio destes e diferente da

perspectiva de estranhos ou de quem estiver de fora (RIBEIRO e GARCEZ, 2002). Desta forma,

os constituintes a que nos referimos se referem, portanto, aos aspectos que possibilitam que

interactantes compartilhem de tal êmica visão.

Identificamos, em nossas observações, quatro aspectos que estamos tratando por

constituintes de uma visão êmica: alternância de código, cenário, conhecimento de mundo e

contexto. Eles não formam, em si, algo que possamos classificar como de um corpo

homogêneo. Faço aqui tal agrupamento “artificial” por considerar que são, dentre nossos

achados, partes importantes para a possibilidade de uma visão êmica entre interactantes.

Fazem parte do que Gumperz (2002) chamaria de “pistas de contextualização”, ou seja, traços

presentes na estrutura das mensagens mediante os quais interlocutores sinalizam uns aos

outros e interpretam qual a atividade que está ocorrendo quando interagem.

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285

9.1 Alternância de código

Alternâncias de códigos são passagens do uso de uma variedade lingüística para

outra, em que os participantes de uma interação, de alguma forma, percebam como distintas.

Nisto podemos incluir mudanças de sotaque, de escolhas lexicais, de postura etc. (BLOM e

GUMPERZ, 2002; GUMPERZ, 2002). Tais aspectos já consideramos em outras oportunidades, só

que aqui eles aparecem como pontos de articulação êmica, em que a alternância de um código

para outro deve ser entendido como uma demarcação de forma de vida.

Não foram muitos os casos identificados, talvez pelo fato deste pesquisador ter

realizado suas observações em formas de vidas às quais faz parte, como já pude explicar.

Aquelas evidenciadas se referiram ao desvelamento de características do usuário da marca e

do nome da marca (ver Tabela 33).

Funções da linguagem

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Característica do usuário da marca x

Nome da marca x

Tabela 33: Relações de significação de “alternância de código”

Desvelando algo a respeito da marca por meio de alternância de código

Em relação ao primeiro caso, quando genro e sogro estão conversando sobre

uísque e o primeiro diz que gostava do Johnny Walker black [#8], o segundo responde que o

vermelho também é bom. O uso do termo classificatório do selo do uísque em português, que

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286

viria a se repetir em relação a outras cores do mesmo, desvela que o falante não é consumidor

típico da marca.

Em outra situação [#44], quando falante pede opinião sobre pen drive da Creative,

pronunciando o nome da marca em inglês, seu interlocutor, antes de responder, o corrige

sem perceber, perguntando se o mesmo estava falando da Creative, agora pronunciando o

nome da marca aportuguesadamente. Sua pronúncia não só desvela sua forma de vida –

profissional de informática, que comumente chamam as marcas aportuguesando seus nomes –

como desvela como esta compreende que seja a forma correta de pronunciar o nome da marca

em questão.

9.2 Cenário

Por cenário assumo o espaço delimitado do ambiente físico definido pelos

participantes como socialmente distintos de outros aspectos, no qual se desenrolam os eventos

e as atividades de fala, bem como o equipamento fixo de sinais ali presentes (BLOM e

GUMPERZ, 1972; GOFFMAN, 2001).

Em nossas investigações os cenários assumem três funções, relativas a quatro

atividades marcárias, em que apenas uma delas se refere a mais de uma função, conforme

demonstrado na Tabela 34.

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Funções da linguagem

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Aspecto da marca x

Assunto relativo à marca x x

Inadequação do usuário à marca x

Objeto da marca x

Tabela 34: Relações de significação de “cenário”

Chamando atenção para algo relativo à marca por meio de cenário

Uma das funções do cenário é chamar atenção para algo relativo à marca. O faz

em relação a aspectos e objetos da marca. Um exemplo relativo ao primeiro caso pode ser

dado pela situação [#16] em que, ao passar na frente de uma loja da Chilli Beans, transeunte

conclui que acredita que a mesma fosse “mais chique”.

Foi também ao passar por uma loja que outra transeunte foi chamada atenção

para sapato em promoção da Arezzo que estava na vitrine [#15], num exemplo elucidativo do

segundo caso mencionado.

Propiciando algo em relação à marca por meio de cenário

Propiciar assunto relativo à marca é outra função do cenário em nossas

observações. Quando falante pergunta ao dentista sua opinião sobre o Listerine [#7], o faz em

seu consultório, local propício para se levantar tal tipo de assunto.

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288

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de cenário

Por fim, também é função do cenário sugerir algo a respeito da marca, o que

ocorre em relação a assunto relativo à marca e inadequação do usuário à marca. Em relação ao

primeiro caso, por exemplo, é quando integrantes de uma família que almoçam num

restaurante e começam a reclamar do calor que ali fazia [#10] que uma delas menciona que

estava precisando comprar um ventilador e pergunta à sua mãe sobre o que ela recentemente

comprara.

Quanto à sugestividade de inadequação de usuário à marca, é com base no

“prédio velho” com um “carro velho na porta” que falante se baseia para sugerir que seus

vizinhos não têm as condições necessários para manter seus filhos adequadamente no Colégio

Santa Maria [#3].

9.3 Conhecimento de mundo

Tomo o termo “conhecimento de mundo” emprestado de van Dijk (2004). O

assumo como um conhecimento tácito, baseado em crenças, hábitos e costumes

compartilhados, teorias do senso comum, experiências vividas, fatos e dados sociais,

econômicos, políticos e de outras naturezas, que os interactantes têm acerca dos mais variados

aspectos e, por esperarem, conscientemente ou não, que os seus interlocutores também

tenham, o dão por certo. Trata-se de uma noção próxima à daquele autor – apesar do mesmo

não trazer uma definição ao conceito – que, por sua vez, guarda similaridade ao que Tannen e

Wallat (2002) chamam de “esquema de conhecimento”. A diferença, pontual, aqui, está na

natureza cognitiva de suas noções – sobretudo nestas últimas autoras. De minha parte, se me

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289

refiro aqui a algum tipo de cognição, não se trata de uma noção individualizada, mas do que

poderíamos chamar de cognição social, o que mais uma vez me aproxima de van Dijk.

Como pode ser visto na Tabela 35, o conhecimento de mundo aparece com grande

variabilidade em nossas observações, assumindo oito funções na significação das marcas,

referentes a vinte e cinco atividades marcárias.

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

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Adesão a outra marca x

Aspecto da marca x x x x x

Característica do usuário da marca x

Comparação da marca x x x

Comportamento da marca x

Constrangimento em relação à marca x x

Defesa da marca x x

Desabono à marca x

Desconfiança da marca x x

Diferença em relação à marca x x x x

Envolvimento com a marca x x

Escolha da marca x x x

Gafe em relação à marca x

Inadequação do usuário à marca x

Intimidade com a marca x

Juízo a respeito da marca x x x x

Lembrança da marca x

Preconceito em relação à marca x

Rejeição à marca x

Sentimento pela marca x x

Situação relacionada à marca x

Sugestão da marca x x

Tabela 35: Relações de significação de “conhecimento de mundo”

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Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

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Surpresa em relação à marca x

Uso de conceito da marca x x

Valor da marca x

Tabela 35: Relações de significação de “conhecimento de mundo” (continuação)

Caracterizando algo relativo à marca por meio de conhecimento de mundo

Uma das funções do conhecimento de mundo é caracterizar algo relativo à marca.

Temos aqui duas atividades marcárias: aspecto da marca e situação relacionada à marca. Uma

mesma situação [#18] nos serve para ilustrar ambas atividades. Primeiro, quando falante se

refere aos estádios do Náutico e do Santa Cruz como “chiqueirinho” e “chiqueirão”, se refere

ao tamanho dos mesmos. Entretanto, é necessário que seus interlocutores tenham idéia do

tamanho dos respectivos estádios para seu uso de um diminutivo e de um aumentativo fazer

sentido. Na seqüência, o mesmo falante caracteriza situação em que correu para sair da

torcida adversária em direção à sua como se estivesse “fugindo de Cuba”. Para que sua

comparação tenha sido compreendida pelos seus interlocutores foi necessário que os mesmos

tivessem idéia das fugas de cubanos do seu país pelo mar do caribe repleto de tubarões.

Deduzindo algo a respeito da marca por meio de conhecimento de mundo

Outra função do conhecimento de mundo é possibilitar a dedução de juízo a

respeito da marca. Na ocasião [#19] em que falante é solicitado a opinar sobre pneus, após

mencionar a Colway, afirma que os bons pneus “nacionais” são Pirelli e Michelin, sendo este

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último mais caro. Ao ser perguntado por que, responde que é “porque é melhor”. Seu juízo a

respeito da marca, assim, baseia-se numa crença de senso comum de que o que é mais caro é

melhor.

Desvelando algo a respeito da marca por meio de conhecimento de mundo

Também é função do conhecimento de mundo desvelar algo a respeito da marca.

Refere-se aqui a várias atividades: aspecto da marca, comparação com a marca, diferença em

relação à marca, envolvimento com a marca, escolha da marca, juízo a respeito da marca,

preconceito em relação à marca, sentimento pela marca e sugestão da marca e uso de conceito

da marca.

Uma mesma situação [#8] nos serve para ilustrar quatro das atividades. Um

falante menciona que havia ido comprar um Johnny Walker “azul” e, na seqüência, enumera

os selos da marca: “... o vermelho, o preto, o verde, o amarelo e o azul”, na ordem hierárquica

de graduação dos mesmos. É necessário que seu interlocutor conheça tal característica da

marca, o que desvela tanto aspecto da mesma, quanto pressupõe envolvimento de ambos com

ela.

Em outro momento da interação, o primeiro diz que gosta “mesmo é de Old

Eight”, no que seu interlocutor menciona certa ressaca que tivera ao tomar Wall Street. O

comentário desvela comparação entre as marcas e diferença destas com a primeira, no que se

supõe conhecimento de que as primeiras são nacionais e baratas e a última escocesa e mais

cara.

Em outra situação [#5], ao mencionar com vizinha que iria “arrasar em Porto”

com o biquíni que ganhara, sua escolha (praia de Porto de Galinhas) só é compreendida por

sua interlocutora por esta saber que é assim, de forma contraída, que se costuma se referir

àquela praia em sua região.

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A situação [#4] em que mulher critica marido de sua cunhada por presenteá-la

com um livro nos pode elucidar outras duas atividades. Quando ela é enfática em insistir que

aquela teria lhe dado roupas da Diesel, é necessário que interlocutora saiba que tal marca é

cara e consumida por pessoas de alta classe social para que faça sentido seu juízo a respeito da

mesma. Na seqüência, quando a falante sugere que isto ocorre porque aquele “povo é

pirangueiro”, se referindo ao mencionado homem, é necessário que sua interlocutora saiba

que o mesmo é italiano para compreender sua sugestão, desvelando, assim, seu preconceito.

Em outra ocasião [#26], quando homem despede-se de seus colegas para ver o

jogo do “Santinha”, forma como se refere ao seu time desvela seu sentimento pelo mesmo.

Entretanto, isto só faz sentido porque seus interlocutores conhecem tal forma de se referir

àquele time.

Quanto a uma sugestão desvelada por conhecimento de mundo, em situação [#40]

em que falante pergunta a casal que saíra com ela e seu namorado se eles iriam pro “Galo”,

sua sugestão só faz sentido porque seus interlocutores sabem que é assim que as pessoas

chamam o bloco de carnaval Galo da Madrugada na região.

Por fim, quando criança diz ao pai que o que está tomando não é leite, mas

Toddynho [#57], desvela-se uso de conceito da marca, confundida com a própria categoria de

produto pelo fato das pessoas assim se referirem ao mesmo.

Enfatizando algo relativo à marca por meio de conhecimento de mundo

Enfatizar algo relativo à marca é mais uma função do conhecimento de mundo, se

referindo aqui a aspecto da marca, desabono à marca e diferença em relação à marca. Um

exemplo relativo a este último pode ser dado pela situação [#92] em que falante diz a amigo

que, como tinha muitas milhas da Varig, preferiu resgatá-las logo, antes que fosse tarde. Seu

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293

comentário só fez sentido porque seu interlocutor sabia da então crítica situação da empresa,

prestes a ser vendida.

Em situação sobre o mesmo assunto [#91], quando falante comenta com amigo

que estava com medo de não embarcar em vôo da Varig, disse que pelo menos não havia mais

a possibilidade de viajar num Bandeirante, “que ainda é de hélice”. A ênfase dada a este

aspecto da marca só faz sentido pelo fato dos dois compartilharem o conhecimento de que

apenas aviões velhos têm tal característica.

Por fim, ao ligar para coordenador de curso de pós-graduação, falante houve do

mesmo que a ligação esta ruim e, além do mais iria lhe custar uma fortuna, pois estava de

férias fora de Recife, em Porto. Ora, “Porto” é a forma como recifenses chamam a badalada

praia de Porto de Galinhas, a poucas dezenas de quilômetros da capital pernambucana. Depois

de um breve instante o viajante retificou: “Porto, Portugal”, enfatizando diferença entre a

cidade lusitana e aquela praia, que deduzira que seu interlocutor teria pensado.

Ironizando algo relativo à marca por meio de conhecimento de mundo

Outra função do conhecimento de mundo é ironizar algum aspecto da marca. Por

exemplo, quando torcedor do Sport se refere como “chiqueirinho” e “chiqueirão” aos estádios

dos times adversários está também ironizando os mesmos, que devem entender comentário

como uma sugestão de que aqueles times sejam uma “porcaria”.

Preservando[-se] de algo relativo à marca por meio de conhecimento de mundo

Possibilitar preservação pessoal é outra função do conhecimento de mundo.

Refere-se, em nossas observações, a cinco atividades: constrangimento em relação à marca,

desconfiança da marca, escolha da marca, gafe em relação à marca e rejeição à marca.

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294

Quando falante se refere a médica que a atendeu no Hospital Português como

sendo grossa, estando num hospital como aquele, “que só vai quem pode pagar um plano

bom” [#47] espera que sua interlocutora compartilhe a compreensão de que ela tem em mente

que “num hospital daquele” as pessoas devem ser bem tratadas, o que desabonaria a referida

médica. De fato, estava se preservando pelo fato da mesma tê-la chamado atenção por não ter

remédio para alergia em casa, tendo sua filha tal problema.

Em outra situação [#33], falante preserva-se da desconfiança de sua tia em relação

à faculdade em que ela fora aprovada, dizendo que a mesma tem tradição, baseada na crença

de senso comum de que o que é tradicional é confiável.

Quanto à preservação em relação à escolha de uma marca, podemos mencionar

situação [#32] em que falante, ao ser questionada por tia se já havia comprado ventilador que

indicara (da Arno), preserva-se por não optar pelo mesmo, justificando-se que iria comprar

um “sem marca”, em que assume compreensão da outra que tenha em mente que sua escolha

será por um mais barato.

Após pronunciar erradamente nome de série americana [#47], falante preserva-se

da gafe dizendo ao seu interlocutor que gosta de 24 Horas. Ao fazer isto, tem em mente que

seu interlocutor conheça a série e a reconheça como sendo de mesma natureza, demonstrando

que cometera apenas um lapso.

Por fim, ao rejeitar ida para O Bode [#37], falante antecipa possibilidade de ser

questionado por isto, uma vez que se sabe que o mesmo é bastante conhecido e freqüentado,

justamente destacando como aspecto negativo o fato do mesmo ser muito cheio e, assim,

desconfortável.

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295

Propiciando algo em relação à marca por meio de conhecimento de mundo

O conhecimento de mundo também tem como função propiciar algo em relação à

marca, no caso, sete atividades marcárias: comparação da marca, defesa da marca, diferença

em relação à marca, juízo a respeito da marca, lembrança da marca, sugestão da marca e uso

de conceito da marca.

Em relação ao primeiro caso, podemos mencionar situação [#134] em que,

durante transmissão de jogo entre França e Argentina pelo Campeonato Mundial Masculino

de Basquete pela ESPN, narrador lê mensagem de telespectador dizendo que a França estaria

“derrapando” em quadra; “Deve estar com Michelin e a Argentina com Bridgestone”. Para

compreender sua comparação há que se acompanhar esportes e, mais especificamente

Fórmula 1, uma vez que ele se referia ao desempenho daquelas marcas de pneu em tal

modalidade.

Outra situação [#1] nos serve para exemplificar duas atividades: defesa da marca e

diferença em relação à marca. Quando vê seu Náutico ser motivo de chacota, aluna diz que

“podem falar o que quiserem, mas o Náutico é o único hexa; Santa e Sport são apenas penta”.

Sua defesa, baseada em diferença entre os times, só é compreensível assumindo-se que todos

sabem que ela se refere à maior seqüência de títulos estaduais obtidos por cada um.

Quando ouvinte manda recado para apresentadora de rádio que sempre menciona

querer ter um namorado com Jaguar que se ela encontrasse um com Chevette já seria sortuda

[#72], está, indiretamente, atribuindo juízo negativo em relação a este último. Isto só faz

sentido porque é conhecido que aquele carro sempre foi problemático e, com isto, pouco

valorizado.

Em outra ocasião [#105], quando dois colegas de trabalho se encontram e uma

delas pergunta ao seu interlocutor por sua esposa e este menciona que ela iria começar a

cursar uma faculdade, a primeira não reconhece a mesma pelo nome. Entretanto, quando uma

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296

outra, que estava perto deles, se refere àquela como “a faculdade de Pinto Ferreira”, ela logo

se lembra. Isto se deve ao fato do homem em questão ser mais conhecido do que sua

instituição.

Quanto a uma sugestão propiciada por conhecimento de mundo podemos

exemplificar com situação [#74] em que, ao sua filha dizer que tomaria guaraná em pó para

ficar acordava para estudar para as provas da faculdade, falante a sugere, sem maiores

explicações, que tome Taffman-E. A sugestão só faz sentido porque a mesma compreende que

tal bebida tem efeito energético.

Finalmente, em programa de debate esportivo durante Copa do Mundo em que a

Seleção Brasileira era criticada por suas atuações nos primeiros jogos, telespectador envia

mensagem dizendo que aquela se trata de uma “seleção Denorex; parece mas não é”. Para

compreender tal comentário, há que se assumir que slogan da marca em questão é conhecido,

além de que aquela Seleção era tida como a grande favorita – daí parecer, mas não ser.

Provocando algo em relação à marca por meio de conhecimento de mundo

Também é função do conhecimento de mundo provocar constrangimento em

relação à marca. Temos como exemplo a situação [#22] em que falante acusa seu interlocutor

de ser “tricolor”. Tal comentário só causa constrangimento por este último ser “rubro-negro”

(torcedor do Sport), coisa que seu interlocutor sabe.

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de conhecimento de mundo

Finalmente, uma última função do conhecimento de mundo é sugerir algo a

respeito da marca. Isto ocorre por diversas atividades marcárias, quais sejam: adesão a outra

marca, aspecto da marca, característica do usuário da marca, comparação da marca,

comportamento da marca, defesa da marca, desabono à marca, desconfiança da marca,

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diferença em relação à marca, envolvimento com a marca, escolha da marca, inadequação de

usuário à marca, intimidade com a marca, juízo a respeito da marca, sentimento pela marca,

surpresa em relação à marca, uso de conceito da marca e valor da marca.

O último exemplo [#22] que demos nos serve também aqui. É só porque falante

sabe que seu interlocutor torce pelo Sport e porque ambos conhecem o uso da expressão

“tricolor” no futebol pernambucano, que é possível ao primeiro sugerir que o outro tenha

mudado de time.

Para exemplificar um caso de sugestão de um aspecto da marca por meio de

conhecimento de mundo, podemos citar situação [#64] em que, após perguntar preço de

tapetes para seu carro, um Peugeot 206, e mencionar que teria achado caro, falante escuta de

vendedor que “para esses carros importados é assim mesmo”. A marca em questão realmente

só vendia, até 2001, modelos importados, que sempre apresentaram problemas de reposição

de peças e acessórios, além do alto preço dos mesmos. Naquele ano o fabricante iniciou sua

produção nacional, o que ocorreu em paralelo a outras marcas “importadas”, como Renault,

Citröen, Honda, Toyota. Apesar disto, o que vemos na interação é uma evidência de que esta

marca, de serem “importados”, permanece, e influencia em como se percebe certos aspectos

daquelas marcas.

Uma situação [#48] nos serve para exemplificar duas atividades. Estavam

diretores de uma faculdade discutindo com arquiteto sobre a área de alimentação da

instituição, em que maior preocupação era relativa ao fato dos alunos de saúde passarem todo

o dia ali, então teria que haver boas opções tanto para lanche quanto para almoço. Em certo

momento, já tendo se discutido sobre o restaurante, começam a falar sobre um retratamento

necessário à cantina. A sugestão do arquiteto é que façam uma coisa elegante: “Pode ser uma

cafeteria, com uma empadinha Bragança”. Temos aqui a sugestão de algo tanto atribuído a

um juízo em relação à marca quanto a uma característica do usuário da marca: elegância. Isto

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faz sentido se assumirmos dois conhecimentos como certos: o curso de medicina que ali

funciona é caro e atrai um público altamente seletivo, do ponto de vista sócio-econômico; por

sua vez, a empada em questão é das mais caras, o que a associa ao referido conceito.

Um exemplo de conhecimento de mundo possibilitador de uma comparação da

marca temos em situação [#20] em que, ao solicitar opinião sobre marca de computador,

falante fornece pista a seu interlocutor sobre sua expectativa dizendo que “tem o carro mil e o

carro 1.8, né?”. Apenas fazendo-se idéia da diferença de desempenho entre os carros de tais

potências é possível se entender o que falante tem em mente ao pedir a sugestão.

Uma outra situação [#41] nos propicia ilustrar mais duas atividades sugeridas por

conhecimento de mundo, nomeadamente comportamento da marca e surpresa em relação à

marca. Quando seu interlocutor menciona mini-show dos Rolling Stones no intervalo da final

do futebol americano, falante surpreende-se com tal comportamento da banda de rock, a ponto

de quase não acreditar. A mesma é a mais antiga em atividade, o que lhe concede uma aura

mítica, daí sua surpresa ao saber que ela teria se disponibilizado a uma pequena aparição em

que o jogo, e não ela, era o mais importante.

Quando falante defende, junto ao seu interlocutor, que o Ypiranga teria perdido

pênalti que lhe daria título do primeiro turno do Campeonato Pernambucano por nervosismo

[#43], sua sugestividade se baseia no fato de ambos saberem que se tratam de jogadores

desconhecidos em um time modesto.

Em situação [#114] em que falante diz para sua interlocutora que “o outro

supermercado é sempre vazio”, estando as mesmas numa enorme fila de outro, que fica

próximo àquele, o faz sugerindo desabono ao mesmo. Isto só faz sentido se assumirmos a

crença de senso comum de que bons estabelecimentos estão sempre cheios.

Há uma situação [#56] que nos possibilita exemplificar três atividades marcárias

sugeridas por conhecimento de mundo: desconfiança da marca, diferença em relação à marca

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e escolha da marca. Ao chegar em loja para escolher sua nova geladeira, mulher antecipa-se

em dizer que quer uma Brastemp. Andando pela seção, ao se deparar com uma Continental,

diz que aquela marca não quer “nem morta”. Por trás de sua fala está uma nítida diferença

entre as marcas, que, para fazer sentido, uma vez que a falante não explica, há que se

considerar que a primeira é a marca mais conhecida de geladeiras e seus modelos estão entre

os mais caros, enquanto a outra é menos famosa e mais barata. Esta visão, baseada numa

crença de senso comum de que notoriedade e preço alto são sinônimos de qualidade, também

sugere sua desconfiança em relação à Continental, bem como a sua escolha antecipada da

Brastemp.

Mais uma situação [#55] nos serve para ilustrar outras duas atividades. Ao

encontrar com colega de trabalho e este lhe perguntar se havia visto o show do U2, falante

responde que “deu pra eu ver a maior parte” e conclui que “como o show foi grande, deu pra

ver todos os clássicos”. A primeira parte de sua fala sugere seu sentimento pela banda, mas só

porque seu interlocutor sabia que a professora havia dado aula aquela noite e, para ser

possível ver a maior parte do show, deveria ter saído apressada para não perder evento. A

segunda parte da fala sugere seu envolvimento com a banda, o que só possível de

compreensão a quem sabe que, ao mencionar os “clássicos”, falante se referia às músicas do

início de carreira.

Em outra situação [#62], relativa a inadequação de usuário à marca, quando duas

alunas de uma faculdade criticam uma terceira por esta estar usando uma camisa da Diesel

com uma calça “sem marca”, é a concordância tácita de ambas de que sejam conhecedoras de

moda que sugere que a primeira estava inadequadamente vestida em relação à marca em

questão.

Um exemplo de sugestividade de intimidade com a marca pode ser dado com a

situação [#14] em que falante menciona oficina em que havia feito serviço do seu carro. Ao

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300

seu interlocutor dizer desconhecê-la, ele disse ser de um amigo do seu tio e, na seqüência,

quando o outro disse que precisava fazer um serviço em seu carro, falante diz que trabalham

muito bem, principalmente quando souberem que ele é seu amigo. A crença de que se é mais

bem tratado pelos outros por meio de suas redes sociais sugere a intimidade do falante com a

Intermares.

Por fim, quanto a valor de marca sugerido por conhecimento de mundo, quando

criança oferece dinheiro à sua mãe para que compre sua blusa “numa loja melhor” [#46], tem

como base a crença de senso comum de que o que é barato é ruim.

9.4 Contexto

O termo “contexto” pode ser tomado numa amplitude muito grande de

significação. Podemos assumi-lo como um ambiente de significação constituído mediante o

que as pessoas fazem a cada instante numa interação, em termos de onde e quando elas fazem

o que fazem (ERICKSON e SHULTZ, 2002; RIBEIRO e GARCEZ, 2002). Assim sendo, quase tudo

circundante à fala em interação seria contextual. Não pretendo desabonar uma premissa tal,

mas delimitar a uma noção própria tal conceito, no sentido do mesmo ser útil enquanto

unidade analítica em nossas investigações. Desta forma assumo contexto aqui como qualquer

conhecimento – de um fato ou situação, uma informação, experiência etc. – alçado, direta ou

indiretamente, voluntariamente ou não, ao ambiente interacional.

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301

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

izar

[De]

Mo[

n]st

rar

Pres

erva

r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Assunto relativo à marca x

Característica do usuário da marca

Constrangimento em relação à marca x

Diferença em relação à marca x

Envolvimento com a marca x x

Escolha da marca x x x

Frustração em relação à marca x x

Inadequação do usuário à marca

Juízo a respeito da marca x x

Preconceito em relação à marca

Rejeição à marca x

Sentimento pela marca x

Sugestão da marca x

Tabela 36: Relações de significação de “contexto”

Alguém pode se perguntar se por conhecimento, então, eu não teria em mente o

que chamo de “conhecimento de mundo”. É justamente para diferenciar tais noções que

restrinjo meu uso de “contexto”. O conhecimento aqui, diferentemente daquele, não se refere

ao que as pessoas acumulam em suas vidas, mas a algo latente em relação à interação.

Em nossas investigações o contexto assume quatro funções na significação das

marcas, referente a treze atividades marcárias, das quais apenas três se relacionam a mais de

uma função. A Tabela 36 demonstra todas as relações de significação do contexto.

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Desvelando algo a respeito da marca por meio de contexto

Uma das funções do contexto é desvelar algo a respeito da marca. Refere-se em

nossas observações a quatro atividades marcárias: envolvimento com a marca, escolha da

marca, frustração em relação à marca, rejeição à marca e sentimento pela marca.

Quando falante menciona que gosta da série 24 Horas por tudo ser informatizado

[#42], desvela seu envolvimento com a mesma. Um dado contextual sustenta isto: trata-se de

profissional de informática, envolvido, portanto, por se identificar com a série nos aspectos

que destaca.

Outro aspecto profissional é o contexto que desvela a escolha de uma falante por

uma marca de sapatos. Ao mencionar a Corbello, a mesma destaca, além de sua beleza e

preço, que “não dói no pé” [#17]. A mesma é promotora de vendas, o que justifica precisar de

sapatos confortáveis, adequados ao seu desempenho profissional, que exige que se fique em

pé a maior parte do tempo.

Em outra situação [#30] mulher, ao passar em frente a uma loja da Arezzo, diz,

numa frase inconclusiva, não poder passar ali. Se não fosse o fato de, dias atrás, naquele

mesmo shopping, ela ter visto naquela mesma loja um sapato que não comprara por não ter

seu tamanho, não seria possível compreender o que a mesma tinha em mente. É este contexto

que desvela que sua frase trazia uma frustração em relação à marca.

Quanto a uma rejeição da marca desvelada por um contexto podemos mencionar

situação em que falante coloca dificuldades para ir a’O Bode quando convidado por amigo,

uma vez que, de fato, era cliente freqüente do mesmo. O contexto que desvela tal rejeição é o

fato de, na última vez que lá estivera, ter tido a percepção que homens desacompanhados

paqueravam sua namorada.

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Por fim, foi só porque marido lhe corrigiu por chamar o videogame Super Mario

Bros de “Mario e Luigi” [#66], que falante desvelou seu sentimento pelo jogo, ao justificar

que era assim que o chamava quando era criança.

Propiciando algo em relação à marca por meio de contexto

Propiciar algo em relação à marca, outra função do contexto, se refere, neste

sentido, a cinco atividades: assunto relativo à marca, diferença em relação à marca, escolha da

marca, juízo em relação à marca e sugestão da marca.

Em relação ao primeiro caso, mulher só começou a falar com suas interlocutoras

sobre o Babado Novo, em ocasião que sugeriu imitação daquela banda em relação à cantora

Ivete Sangalo [#60], porque uma música do grupo baiano começou a tocar.

Em outra situação [#75], é só quando interlocutor lhe explica organização do

EMA que falante conclui que outro encontro científico, a Intercom, “é uma zona”,

propiciando, assim, tanto o estabelecimento de diferença entre os encontros, quanto seu juízo

sobre os mesmos.

Quanto à escolha da marca propiciada por um contexto, por exemplo, foi a falta

do que fazer naquele domingo e os elogios que homem fazia a’A Traíra [#9] que levou sua

família a concordar em se deslocar 90km para almoçar naquele restaurante.

Finalmente, mulher só liga para sobrinha para sugeri-la compra de um ventilador

Arno que vira em promoção [#27] porque dias antes aquela havia mencionado em almoço

com a família que estava por comprar um.

Provocando algo em relação à marca por meio de contexto

Provocar algo em relação à marca por meio de contexto, por sua vez, se refere a

constrangimento e frustração em relação à marca. Quando marido diz à sua mulher, após esta

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demonstrar frustração por não ter conseguido comprar sandália da Arezzo que pretendia

[#30], que nunca mais lhe daria “uma Datelli”, isto só lhe provocou constrangimento porque

havia sido desta marca a sandália que ele lhe dera de presente em seu aniversário.

Em outra situação [#3], fica evidente frustração de mãe pela sua impossibilidade

de colocar sua filha para estudar no Colégio Santa Maria por uma razão específica: os filhos

de uma vizinha estudam naquela escola.

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de contexto

Finalmente, uma última função do contexto é sugerir algo a respeito da marca, o

que se refere a três atividades marcárias: envolvimento com a marca, escolha da marca e juízo

em relação à marca.

Em relação ao primeiro caso, podemos mencionar situação em que professora, ao

encontrar colega de trabalho, pergunta-lhe se ele iria assistir ao show do U2 no Brasil que

seria televisionado, diz que sairia correndo após sua aula para poder ver pelo menos um

pedaço [#52]. A situação apresentada sugere que a mesma seja envolvida com a banda para

estar tão apressada.

Em outra situação [#58], foi o fato de não haver Skol em quantidade satisfatória

quando dois amigos foram comprar cerveja para confraternização familiar que os levou a

optar por completar quantidade necessária com Antarctica.

Por fim, quando falante diz que o Náutico “sempre morre na praia” [#1], tal juízo

é sugerido pela forma dramática como aquele time havia perdido partida para o Grêmio no dia

anterior, o que lhe havia tirado a possibilidade de se classificar para a primeira divisão do

Campeonato Brasileiro de futebol.

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10 “Alter-‘eu’” marcário Antes de tudo é preciso dizer que não tenho em mente aqui tecer uma alusão

psicanalítica da constituição, desenvolvimento e relacionamentos do “eu”. Como já havia

articulado quando da impossibilidade de um “eu” despótico na filosofia de Wittgenstein, o

“eu” que identificamos em nossas investigações se ajusta àquele por mim sugerido como só

concebível na linguagem e, por isso, só existente na alteridade.

Trata-se de um “eu altero”, se assim podemos dizer, daí meu neologismo. Fica

evidente, em nossas observações, que os interactantes constroem um “eu”, mas um

interacional, dependente da compreensão, aprovação e cumplicidade do outro. Estamos

lidando, portanto, não com uma constituição estática, definitiva, mas com uma dinâmica

negociada na medida em que as interações se desenrolam.

Certamente não por coincidência, as unidades de análise que identificamos

advindos desta dinâmica alinham-se a duas noções fundamentais do pensamento

goffmaniano: face e footing. De fato, também é apenas por uma questão de “movimento” que

podemos diferenciar tais conceitos. Grosso modo, a face se refere a como o “eu” é

apresentado para e retificado pelo outro e por ambos sustentado durante a interação, ao

assumir uma determinada linha. O footing, por sua vez, é justamente o alinhamento ou

realinhamento de um interactante.

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10.1 Face

A elaboração de Goffman sobre a face (GOFFMAN, 1982) antecede sua articulação

da representação do “eu” na vida social e, no meu entendimento, oferece as condições

necessárias para que este conceito seja compreendido. Por face devemos entender o valor

social positivo que um interactante almeja ter reconhecido pelo outro por meio do que este

presuma ser sua linha durante uma interação.

Como podemos perceber, indissociada à noção de face está a de linha, que se

refere à conduta de um interactante, tanto em seus aspectos verbais como não-verbais. Com

isto, Goffman apresenta que, numa interação, há que haver uma aceitação mútua das linhas

adotadas pelos interactantes. De fato, a manutenção de tais linhas são condições para a

interação. Graças a isto, os interactantes estariam engajados nesta manutenção.

Entretanto, certas circunstâncias podem ameaçar a face de interactantes, deixá-los

“fora de face”, desde que suas condutas apresentem alguma discrepância nas linhas adotadas

e/ou esperadas. Com isto, uma segunda atividade, a de salvação da face ameaçada, é aplicada,

o que não necessariamente ocorrerá apenas por parte do ator cuja face está sob ameaça, mas

também possivelmente pelos seus interlocutores, graças ao tácito acordo de manutenção da

face como condição interacional a que me referi.

Em nossas observações, a dinâmica ameaça-salvação de face foi

contundentemente observada. Para efeito de uma análise mais acurada de cada um destes

aspectos em como significam as marcas, os separamos em suas descrições, conforme segue

nas próximas seções.

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10.1.1 Ameaça

A ameaça de face, em nossas observações, ocorre principalmente por uma

situação apresentada pelo outro, mas também por percepções da própria pessoa cuja face é

ameaçada. Apesar disto, mesmo havendo situações de ameaça de face apresentadas ao outro

propositalmente, na maioria dos casos a situação propiciadora da ameaça é apresentada

involuntariamente, dentro da dinâmica interacional.

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

izar

[De]

Mo[

n]st

rar

Pres

erva

r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Adesão a outra marca x

Aspecto da marca x

Comparação da marca x

Constrangimento em relação à marca x x

Desabono à marca x x

Desconfiança da marca x

Desconhecimento da marca x x

Diferença em relação à marca x

Dissimulação em relação à marca x

Gafe em relação à marca x x

Inadequação do usuário à marca x

Incoerência em relação à marca x

Juízo a respeito da marca x x

Preconceito em relação à marca x x

Sugestão da marca x

Valor da marca x

Tabela 37: Relações de significação de “ameaça de face”

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A ameaça de face assume quatro funções na significação das marcas de acordo

com nossas investigações. As mesmas se referem a dezesseis atividades marcárias, das quais

apenas seis se relacionam a mais de uma função. Vale destacar a função de sugerir algo

respeito da marca, que não está relacionada apenas a uma das atividades. A Tabela 37

demonstra todas as relações de significação da ameaça de face.

Desvelando algo a respeito da marca por meio de ameaça de face

Uma das funções da ameaça de face em nossas investigações é desvelar algo a

respeito da marca, o que ocorre em relação a quatro atividades marcárias: desabono à marca,

desconhecimento da marca, juízo a respeito da marca e preconceito em relação à marca.

Uma mesma situação [#23] nos serve para ilustrar duas atividades. Falante

desabona e infere juízo negativo a respeito da cachaça Maribondo ao ameaçar face de

anfitrião dizendo, na frente de todos os seus convidados, a quem o mesmo oferecera a bebida,

que não tomaria uma “tristeza” daquelas.

Em outra situação [#19], após ser solicitado a opinar sobre marcas de pneus

“nacionais” e mencionar Pirelli e Michelin, falante, um caminhoneiro, ao ser cobrado por

opinar agora sobre qual delas é a melhor, percebe sua face ameaçada, demonstrando-se

inseguro, desvelando seu desconhecimento da marca.

Por fim, taxista carioca desvela seu preconceito contra nordestinos quando ameaça

a face de seus passageiros, uma vez que, mesmo sabendo se tratarem de pernambucanos,

pergunta-lhes se estiveram na “feira dos paraíba”, em referência à Feira de Costumes

Nordestinos Luiz Gonzaga.

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Enfatizando algo relativo à marca por meio de ameaça de face

Enfatizar algo relativo à marca é outra função da ameaça de face e se refere a gafe

em relação à marca e sugestão da marca. Em relação ao primeiro caso, falante ameaça face de

sua colega de trabalho ao enfatizar sua gafe ao mencionar que teria sido a Dupé a

patrocinadora de certo evento de moda, uma vez que o fez na presença de outros, durante

reunião de trabalho.

Em outra situação [#32], mesmo após sua interlocutora dizer que iria comprar um

ventilador “sem marca”, falante ameaça sua face insistindo em sua sugestão da Arno,

dizendo-lhe que “deixe de ser besta”, uma vez que o mesmo está muito barato, “somente

cento e cinco reais”, colocando em xeque seu senso de oportunidade e suas condições

financeiras.

Provocando algo em relação à marca por meio de ameaça de face

Outra função da ameaça de face é provocar constrangimento em relação à marca.

Por exemplo, em situação [#15] em que mulher, uma vez frustrada por não ter conseguido

comprar sandália da Arezzo, interessa-se pela Datelli ao passar em frente a uma loja da

mesma, se vê em situação de constrangimento em relação àquela marca quando tem sua face

ameaçada pelo marido que diz que ela só queria saber da Arezzo, em referência ao fato dele a

ter presenteado com uma sandália da Datelli em seu aniversário.

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de ameaça de face

Por fim, a função de maior variabilidade da ameaça de face é a de sugerir algo a

respeito da marca. Como vimos, temos aqui quinze atividades marcárias: adesão a outra

marca, aspecto da marca, comparação da marca, constrangimento em relação à marca,

desabono à marca, desconfiança da marca, desconhecimento da marca, diferença em relação à

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marca, dissimulação em relação à marca, gafe em relação à marca, inadequação do usuário à

marca, incoerência em relação à marca, juízo a respeito da marca, preconceito em relação à

marca e valor da marca.

Um exemplo de ameaça de face sugestiva de adesão a outra marca podemos dar

por meio de situação [#22] em que falante acusa seu interlocutor de ser “tricolor” graças às

cores da bola de seus filhos, mesmo sabendo que o mesmo é torcedor do Sport.

Uma outra situação [#64] nos propicia elucidar duas atividades marcárias. Ao

sugerir que seja normal que acessórios para “carros importados” sejam caros, vendedor coloca

face de cliente em ameaça, uma vez que se dirigia a um proprietário de um carro tal e que o

mesmo havia achado o preço dos tapetes alto. Com isto, sugeria tanto um aspecto da marca

quanto a inadequação daquele usuário à marca em questão.

Outra situação [#33] nos é útil para ilustrar quatro atividades: comparação da

marca, desabono à marca, diferença em relação à marca e juízo a respeito da marca. Em

discussão sobre a facilidade de se passar numa faculdade particular, ao comentário de recém-

aprovada na Sopece de que haviam muitos candidatos, no que vários não conseguiram ser

aprovados, falante diz que aquilo é “conversa”, que faculdade particular “não vai perder

aluno”. Com isto ameaça face de sua interlocutora, uma vez que está se referindo, em público,

a onde a mesma iria estudar, sugerindo seu desabono a tal instituição.

Na seqüência da mesma interação, vítima do comentário sugere que se toda

faculdade particular é fácil, então que ela tentasse a Católica, colocando agora face da outra

em ameaça, por sugerir que ela não teria competência para tal. Com isto, está também

sugerindo um juízo positivo à Universidade Católica e comparando-a à Sopece, por ambas

serem particulares. A resposta de sua interlocutora é dizer que “A Católica é diferente...

Católica é Católica”, recolocando face da outra em ameaça, ao sugerir que ela passou na

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311

Sopece, mas não teria passado na Católica. Com isto sugere, ao contrário da outra, diferença

entre as faculdades.

Em outra situação [#3], ao mencionar que não faria “feito uns e outros, que

moram num prédio velho [...], com um carro velho na porta” e ainda assim colocam seus

filhos para estudar no Santa Maria, falante ameaça sua própria face, uma vez que também ela

mora em tal prédio com carro similar à sua porta, como meio de causar situação

constrangedora à vizinha que tem filhos em tal escola, junto a outra vizinha, com quem

conversava.

Quando, durante almoço familiar em um restaurante, mulher pergunta ao seu

marido se ele conhecia a Mondial, marca de ventiladores que uma tia acabara de lhe sugerir

[#10], coloca face da mesma em ameaça, questionando em público credibilidade da sugestão

da mesma, e sugerindo, com isto, seu desconhecimento em relação à marca.

Em ocasião [#23], em que falante questiona interlocutora, que havia rechaçado

sua oferta de Maribondo, se ela não já bebera 51, coloca sua face em ameaça, uma vez que,

em público, sugere que a mesma já havia bebido do tipo de bebida que rejeitava, sugerindo,

com isto, que a mesma estaria sendo dissimulada.

Quanto a uma gafe sugerida por meio de ameaça de face, temos exemplo em

situação [#56] em que, após dizer alto, numa loja de departamentos, quando procurava uma

geladeira nova, que Continental não queria “nem morta”, seu genro responde que a sua é

daquela marca. Com isto, põe sua face em risco, uma vez que a mesma teria sido grosseira

com ele, o que sugere sua gafe por meio da marca em questão.

Ao sugerir troca de pediatra dos filhos por uma outra que ambos haviam gostado,

marido vê sua mulher defender a atual médica dizendo que não gostara muito da outra. Ele

ameaça sua face lembrando-lhe que fora ela quem primeiro falara bem da mesma, sugerindo

sua incoerência em relação àquela médica.

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312

Na ocasião em que sua interlocutora comentara que marido de sua mulher lhe dera

um “livrinho”, falante coloca sua face ameaçada ao questionar: “livrinho?”. Com isto sugeria

seu preconceito como forma de defender a Diesel, marca das roupas que o mesmo houvera

ganho de presente de sua mulher.

Por fim, mulher coloca face de seu filho em risco ao perguntar-lhe, em público, e

de maneira enfática, quanto custaria tênis que o mesmo queria comprar. Com isto, também

sugeria que o mesmo não valia o quanto ela teria imaginado quando filho dissera que abriria

mão de uma calça para juntar o dinheiro necessário ao seu desejo.

10.1.2 Salvação

Ao ter sua face ameaçada, é natural que um interactante tente salvá-la. Contudo,

também é comum que outro interactante, ao ver um interlocutor em apuros, também o faça.

Assim, identificamos situações tanto de salvação da própria face quanto de salvação da face

alheia, o que se justifica pela noção de que alinhamentos adequados dos interactantes sejam

necessários à interação.

Como não poderia deixar de ser, a salvação aparece com uma única função: a de

preservar[-se], ou seja, a possibilidade de alguém preservar a si ou ao outro de algo relativo à

marca. Há, contudo, que se fazer aqui uma ressalva: o preservar[-se] e a salvação de face não

se reduzem uma à outra. Enquanto assumimos a última como um dos aspectos da linguagem,

a primeira é uma das funções da linguagem. O fato de ser função única daquela é uma

conseqüência natural de sua natureza. Entretanto, como já foi demonstrado, o contrário não é

verdadeiro, sendo o preservar[-se] função de outros aspectos observados.

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313

Um comentário adicional, no entanto, se faz necessário. Na relação entre a

salvação de face e sua função de preservar[-se] temos uma dinâmica um tanto tautológica. A

salvação de face é sempre resultante de uma ameaça a esta, ameaça que é causada, em nossas

observações, por uma atividade marcária – praticada pela própria vítima da ameaça ou pelo

outro –, da qual, para que a face seja salva, há que preservar[-se] de tal atividade. Assim, a

função da salvação de preservar[-se] de algo relativo à marca se refere à própria causa da

ameaça motivadora da busca de salvação.

Sendo assim, nossa descrição é, por um lado, sempre referente a que ameaça está

se referindo a salvação e, por outro, do que as pessoas preservam[-se] ao salvarem suas faces,

o que, no final das contas, se refere a uma mesma atividade marcária.

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

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[De]

Mo[

n]st

rar

Pres

erva

r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Adesão a outra marca x

Aspecto da marca x

Constrangimento em relação à marca x

Defesa da marca x

Desabono à marca x

Desconfiança da marca x

Desconhecimento da marca x

Diferença em relação à marca x

Dissimulação em relação à marca x

Escolha da marca x

Frustração em relação à marca x

Gafe em relação à marca x

Inadequação do usuário à marca x

Incoerência em relação à marca x

Tabela 38: Relações de significação de “salvação da face”

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314

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

uzir

Des

vela

r

Enfa

tizar

Iron

izar

[De]

Mo[

n]st

rar

Pres

erva

r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Juízo a respeito da marca x

Opinião sobre a marca x

Preconceito em relação à marca x

Rejeição à marca x

Sentimento pela marca x

Valor da marca x

Tabela 38: Relações de significação de “salvação da face” (continuação)

Como pode ser observado na Tabela 38, a busca de salvação de uma ameaça de

face advém de e aponta para o preservar[-se] de vinte atividades marcárias.

Preservando[-se] de algo relativo à marca por meio de salvação de face

As vinte atividades marcárias referentes à salvação de face são as seguintes:

adesão a outra marca, aspecto da marca, constrangimento em relação à marca, defesa da

marca, desabono à marca, desconfiança da marca, desconhecimento da marca, diferença em

relação à marca, dissimulação em relação à marca, escolha da marca, frustração em relação à

marca, gafe em relação à marca, inadequação do usuário à marca, incoerência em relação à

marca, juízo a respeito da marca, opinião sobre a marca, preconceito em relação à marca,

rejeição à marca, sentimento pela marca e valor da marca.

Uma mesma situação [#22] nos possibilita ilustrar preservação pessoal de adesão

a outra marca e constrangimento em relação à marca, quando falante tenta salvar sua face da

acusação de ser “tricolor” dizendo que na bola de seus filhos o que seu interlocutor sugere ser

vermelho é, na verdade, rosa.

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315

Quanto a preservar-[se] de aspecto da marca, temos um exemplo quando falante

salva sua face ameaçada pelo fato de seu interlocutor dizer nunca ter sofrido com os

“probleminhas clássicos” do Peugeot que ele mencionara [#38], enquanto ele sim, dizendo

que só pode ser sorte do outro.

Quando defende o Ypiranga por ter perdido pênalti em jogo que poderia ter lhe

dado turno do campeonato [#43], falante vê sua face ameaçada quando seu interlocutor diz

que eles haviam “tremido”. Para salvá-la, brinca, dizendo que talvez eles tivessem tomado

muita cachaça.

Em outra ocasião [#49], quando mãe ameaça face de seu filho ao desabonar tênis

que o mesmo desejava comprar, prima dele, que até então participava da interação apenas

como ouvinte, propicia-lhe salvação da face ao perguntá-lo o que, afinal, aquele tênis tinha de

tão bom.

Ao ter sua face ameaçada pela desconfiança que sua tia demonstrara por não

conhecer faculdade na qual acabara de ser aprovada [#33], falante tenta salvá-la dizendo que a

mesma é tradicional.

Ao ser perguntado se conhecia o anti-séptico da Crest [#7], dentista vê sua face

ameaçada por não conhecê-lo. A forma que encontra para salvar sua face de tal ameaça é

perguntar se se trata de uma marca nova, o que fica evidente com o “Ah...” aliviado que solta

à confirmação do interlocutor.

A respeito de preservação pessoal acerca de uma diferença em relação à marca,

temos um exemplo na situação [#31] em que, após valorizar deveras o Peugeot 206, d’um

qual seu interlocutor é proprietário do que acabara de ter seu chicote de embreagem quebrado

enquanto tomara emprestado, usando o Gol para estabelecer diferença, falante vê sua face

ameaçada ao seu interlocutor dizer desconhecer que este tinha tantos problemas. Sua tentativa

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316

de salvação de face o leva a mencionar, ainda que desleixadamente, aspectos positivos do

mesmo.

Em outra ocasião [#23], à sugestividade de anfitrião, que lhe oferecera trago de

Maribondo, de que sua mulher, que insistia em dissuadi-lo da oferta, estaria sendo

dissimulada, uma vez que já tomara 51, falante tenta salvar sua face comentando que tal

cachaça é suave.

Quanto à preservação de face ameaçada por escolha da marca, podemos

mencionar situação [#21] em que, após seu interlocutor, chateado, dizer que comprara um

aparelho de DVD que já quebrara duas vezes, falante pergunta a marca e, à resposta do

primeiro, diz se tratar da melhor que há, salvando sua face ameaçada pela escolha infeliz que

fizera.

Ao perceber que Taffman-E não fizera o efeito esperado [#57], falante vê sua face

ameaçada por estar sonolento e bocejando quando se preparava com familiares para uma festa

de carnaval. Como forma de se preservar, diz que seu sogro, que indicara energético como

forma dele se revigorar, é “fuleiro”.

Quando falante, ao conversar sobre instalação de Internet em sua casa,

insistentemente chama de Speed o que era Velox, seu interlocutor por três vezes a corrige

[#126]. Ao perceberem o insistente lapso de um e a insistente correção do outro, ambos riem,

auto-preservando-se e preservando o outro mutuamente das gafes que os dois, cada um a sua

forma, haviam cometido.

Em situação [#28] em que sua interlocutora sugere que não teria sido na

Universidade Federal que amigo do seu filho teria sido aprovado, quando comenta que o

mesmo passara em Direito, falante tenta salvar sua face ameaçada dizendo que não sabe onde

foi, mas que o mesmo é muito inteligente, já tendo ido até “pros Estados Unidos estudar lá”.

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317

Para tal, contou com apoio de uma terceira interactante que pergunta-lhe se o mesmo teria ido

“pra estudar mais”.

Para salvar sua face quando marido sugere sua incoerência pelo fato de voltar

atrás para dizer que não gostava de pediatra que ele sugerira substituírem pela atual, que

ambos haviam criticado [#12], mulher se apóia no fato desta ter uma quantidade grande de

pacientes e ser referenciada pela sua ginecologista.

Quanto à preservação de um juízo a respeito da marca, podemos mencionar um

exemplo [#65] em que, quando perguntado se já havia visto BrokeBack Mountain, falante

percebe sua face ameaçada devido a seu próprio entendimento de que se trata de um filme de

e para homossexuais. Perguntar ao seu interlocutor afirmativamente que não é “veado” foi a

forma por ele encontrada de salvar sua face naquela situação.

Em outra ocasião [#2], ao sugerir que devemos nos preocupar com o que os outros

vão pensar de nós, ao mencionar que, se fosse médica, gostaria de trabalhar num hospital

como o Português e não num posto de saúde “no Ibura”, mulher percebe que sua opinião

ameaçara sua face e, imediatamente, recua: “ainda que eu não pense assim”.

Quando homem demonstra preconceito com certas bebidas, como Martini e Saint

Remi, por associá-las ao gênero feminino e dizer que só de pensar nas mesmas sente enjôo

[#25], coloca em ameaça a face de todas as mulheres presentes. A forma encontrada por uma

delas de preservar a si e às demais é citar o Cinzano e dizer que o mesmo “não dá ressaca,

não”.

Em outra situação [#37], quando rejeita opção d’O Bode para saída com casal de

amigos e sua namorada, homem percebe sua face ameaçada pelo fato de seu interlocutor –

homem do outro casal – saber que ele costumava ser cliente assíduo do lugar, e procura salvá-

la apontando que o bar tem estado muito cheio e, com isto, desconfortável.

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318

Ao ser corrigida pelo marido por dizer o nome de videogame errado [#66], mulher

salva sua face ao demonstrar seu sentimento pelo mesmo, uma vez que diz que chama o

mesmo de “Mario e Luigi” por ser como o fazia quando era criança.

Por fim, quando, ao estar conversando com sua interlocutora sobre sapatos, e

sugerir à mesma ir à Corbello, falante menciona que a mesma tem sapatos bonitos e baratos.

Após uma brevíssima pausa acrescenta: “de salto alto”. Ao sugerir tal loja por razões estéticas

(ter sapatos bonitos) e acrescentar aspecto econômico (ser barato), falante sente-se

constrangida por enfatizar valor da marca, que poderia desabonar a mesma, e busca, na

seqüência imediata, acrescentar outra característica estética para preservar-se de uma possível

face em apuros.

10.2 Footing

Como já vimos, Goffman (1981) apresenta o footing como uma mudança no

alinhamento de um interactante. Trata-se de uma noção bastante ulterior à de face e sequer o

autor chega a discutir aquela à luz desta. Apesar disto, no meu entendimento, a noção de

footing fornece à de face um outro nível de dinâmica em nossa compreensão do “eu”. Se a

dinâmica própria da face está na articulação entre ameaça e salvação, o footing nos permite

conceber coma a linha também é, necessariamente, dinâmica, ou seja, quando falamos de

“uma” conduta adequada a uma interação, não entendo que estejamos lidando efetivamente

com “uma”, mas com os meios necessários para tal, o que passa por alinhamentos e

realinhamentos constantes.

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319

Em nossas investigações identificamos oito funções do footing, referentes a vinte

e quatro atividades marcárias. A Tabela 39 sumariza as relações entre tais funções e

atividades.

Funções da linguagem

Atividades marcárias Car

acte

rizar

Cha

mar

ate

nção

Cor

robo

rar

Ded

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Des

vela

r

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tizar

Iron

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[De]

Mo[

n]st

rar

Pres

erva

r[-s

e]

Proj

etar

-se

Prop

icia

r

Prov

ocar

Solic

itar

Suge

rir

Aspecto da marca x x

Assunto relativo à marca x

Característica do usuário da marca x x

Comparação da marca x

Conhecimento da marca x

Constrangimento em relação à marca x

Defesa da marca x x

Desabono à marca x x x x

Diferença em relação à marca x

Envolvimento com a marca x x

Escolha da marca x x

Forma de uso da marca x

Frustração em relação à marca x

Gafe em relação à marca x

Intimidade com a marca x x

Juízo a respeito da marca x x x x x

Lembrança da marca x

Opinião sobre a marca x x x

Preconceito em relação à marca x

Sentimento pela marca x

Sugestão da marca x x

Objeto da marca x

Uso de conceito da marca x

Valor da marca x

Tabela 39: Relações de significação de “footing”

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320

Desvelando algo a respeito da marca por meio de footing

Uma das funções do footing é desvelar algo a respeito da marca, o que ocorre em

relação a oito atividades marcárias: defesa da marca, envolvimento com a marca, frustração

em relação à marca, juízo a respeito da marca, opinião sobre a marca, preconceito em relação

à marca, sentimento pela marca e sugestão da marca.

Para defender seu time (Náutico) de chacota que suas colegas de classe faziam,

falante o compara a Sport e Santa Cruz [#1]. Solicitado a opinar sobre a discussão, professor,

que vira seu time ser atacado, faz um footing para defendê-lo: “Acho que precisamos começar

a prova, mas que seja necessário juntar um Santa e um Náutico para dar um Sport”. Como

podemos ver, ele primeiro ratificou seu papel de professor, como quem abre uma rede

protetora, para então assumir o de torcedor.

Numa mesma situação [#8] falante desvela seu envolvimento e sentimento por

marca por meio de um footing. Após mencionar que teria pensado em dar um Johnny Walker

para um amigo e demonstrar conhecimento da marca, falante assume sua preferência pessoal.

No footing confessa que gosta mesmo é de Old Eight e que quando dele bebe não sente nada,

fica “bonzinho”.

Após manter-se austera em relação à sua crítica a faculdades particulares, no que

escolhe a Sopece como baluarte por sua interlocutora ter acabado de passar lá [#33], falante

desvela seu lado frustrado ao ser levada a fazer um footing involuntário quando sua mãe

pergunta por que ela não faz faculdade, respondê-la com uma pergunta e um ultimato:

“Como? Pague pra mim, pague!”.

Outra situação [#10] nos serve para exemplificar duas atividades. Quando mulher

se vê “por fora” de conversa sobre ventiladores entre sua irmã e sobrinha em mesa de

restaurante, faz um footing para inserir-se no diálogo, dizendo que a marca Mondial é muita

boa. Com isto, desvela seu juízo e também sua sugestão da mesma.

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321

Depois de responder a marido de paciente que estava tratando sobre freqüência de

uso do Listerine por aquele perguntado [#7], dentista vê que é hora de demonstrar

conhecimento mais enfaticamente quando é perguntado agora se aquela marca é melhor. Em

seu footing apresenta-se como um estudioso opinando sobre a mesma começando com um

“tenho acompanhado publicações especializadas...”.

Por fim, quanto ao desvelamento de preconceito em relação à marca, temos um

exemplo em situação [#25] em que falante faz um footing para rejeitar dose de uísque,

dizendo, em tom de brincadeira, que hoje em dia está “feito mulher”.

Enfatizando algo relativo à marca por meio de footing

Outra função do footing é enfatizar algo relativo à marca. Temos aqui quatro

atividades: aspecto da marca, juízo a respeito da marca, desabono da marca e sugestão da

marca. As duas primeiras podem ser exemplificadas por uma mesma situação [#96]. Ao pegar

carona com familiar, falante, se referindo ao seu carro, faz um footing para ser gentil com ele,

dizendo que “a Peugeot está com tudo”, se referindo ao fato daquela marca ter aparecido em

novela da Globo. Neste instante seu interlocutor diz que vai parar o carro num posto, pois o

mesmo está aquecendo. Ao perguntar como ele sabia e ter por resposta que o painel avisou,

falante agora comenta: “Tá vendo? Esse carro é muito bom!”, enfatizando tal aspecto e seu

juízo a respeito da marca.

Quando mãe questiona a filha se o Atacadão da Papelaria de um shopping não

seria mais caro e esta lhe diz que compraria lá mesmo, pois ir ao centro da cidade é

desconfortável [#29], falante faz um footing de mãe de família responsável dizendo que

quando os filhos eram pequenos andava até encontrar o menor preço, enfatizando seu

desabono àquela escolha da filha.

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322

Quanto a um exemplo de sugestão da marca, temos um em situação [#100] em

que senhora, ao ver na rua homem tossindo, faz um footing sendo gentil e demonstrando

cuidado perguntando por que ele não vai no Mundo Verde, uma vez que lá tem um mel “que

resolve isso”.

[De]Mo[n]strando algo relativo à marca por meio de footing

Num footing também se mostra objeto da marca. Exemplo disto temos em

situação [#133] em que, após atender consumidor, vendedor de loja de celulares se revela

torcedor do Sport ao apontar para camisa do time que aquele estava vestindo e comenta, para

ele e seus colegas que estavam perto, o quão “bonita” é aquela camisa.

Preservando[-se] de algo relativo à marca por meio de footing

Outra função do footing é possibilitar preservação pessoal, o que se refere a cinco

atividades marcárias: constrangimento em relação à marca, defesa da marca, desabono à

marca, gafe em relação à marca e opinião sobre a marca.

Mulher conta para vizinha sobre ocasião em que fora chamada atenção por médica

que lhe atendera no Hospital Português por não ter em casa antialérgico sendo que sua filha

sofre de tal problema [#47]. Para preservar-se de tal constrangimento relatado à amiga, falante

faz um footing, projetando-se como abastada ao desabonar a médica por se comportar de tal

forma em hospital aonde “só vai quem pode pagar um plano bom”.

Uma outra situação [#1] nos serve para exemplificar duas atividades. Quando

professor faz footing para defender seu time do comentário que aluna fizera diminuindo-o em

relação ao Náutico, está também preservando-se de tal desabono ao mesmo. Na seqüência,

após aquela insistir em sua defesa, afirmando que “Hexa é luxo”, ele ainda sugere juízo

negativo ao seu time dizendo se tratar de um passado em que ela sequer houvera nascido. Para

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323

preservar-se da enfática nova defesa que fizera de seu time, faz um novo footing, voltando

agora ao seu papel de professor e dando o assunto por encerrado.

Certa vez mulher conversava com seu marido e comentou que se fosse rica queria

viajar muito e ter “um carro decente”, no que mencionou um Pajero. Ele apontou sua gafe ao

questionar, sem precisar concluir a frase, “Então esse aqui...”, se referindo ao seu. Para

preservar-se de tal gafe ela, propositadamente, lembrou-lhe seu footing, dizendo se tratar de

uma situação no caso dela ser rica.

Por fim, para exemplificar situação de footing para preservação de uma opinião

sobre a marca, podemos demonstrar com aquela [#2] em que, para preservar-se de ter dito que

“a gente tem que se preocupar com o que os outros vão achar”, mulher faz um footing ao dizer

que não pensa assim, saindo de suposta condição de médica que assumira até então para dar

sua opinião.

Projetando-se por meio de algo relacionado à marca por meio de footing

Projetar-se por meio de algo relacionado à marca também é uma função do

footing. Refere-se a onze atividades marcárias: aspecto da marca, característica do usuário da

marca, conhecimento da marca, desabono da marca, escolha da marca, intimidade com a

marca, juízo a respeito da marca, lembrança da marca, uso de conceito da marca e valor da

marca.

Em relação ao primeiro caso, podemos mencionar situação [#94] em que, numa

sexta-feira da Paixão, falante, após oferecer um vinho popular a convidado e este rejeitar, faz

um footing ao buscar garrafa de um outro que ganhara e pergunta a seu interlocutor se ele

conhece. Era um Marcus James e ele respondeu que sim, conhecia, mas que nunca bebera. Por

ser uruguaio, falante sugere que seja caro, projetando-se como “sofisticado” perante o outro

por meio de tais aspectos.

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324

Na ocasião em que falante conta a vizinha sobre ocasião em que fora chamada

atenção por médica que lhe atendera no Hospital Português e a critica por não saber lidar com

as pessoas que vão lá, uma vez que “podem pagar um plano bom” [#47], ela está projetando-

se como abastada, uma vez que ela se enquadra no perfil.

Um mesmo exemplo nos serve para demonstrar outras duas atividades. Na fila da

peça Água Viva, três jovens conversam e começam a falar sobre vinho [#115]. Em footing

para demonstrar-se entendida do assunto, uma deles menciona que “Miolo Brut é muito bom”,

sugerindo conhecer bem o mesmo e enfatizando seu juízo acerca dele.

Na situação que há pouco mencionamos em que mãe desabona loja do shopping

que filha compraria material escolar para os filhos [#29], sua postura indica sua projeção de

mãe de família responsável.

Em outra situação [#128], coordenadora de curso de moda faz um footing para

mostrar-se uma especialista, justificando escolha de máquinas de costura Singer para o curso

por esta ter 95% do mercado nacional.

Quando homem, ao despedir-se de participantes de reunião que participara [#122],

é solicitado a fornecer seu e-mail para que lhe seja encaminhado arquivo, vê seu endereço

eletrônico suscitar discussão sobre haver ou não e-mail do Google com o “br” no final, falante

faz um footing ao se apresentar como íntimo da marca dizendo que o seu é um dos primeiros,

de quando era necessário convite.

Após ter recebido visita de um primo, mulher acompanha-o até a porta para

despedir-se [#80]. Quando já se aproximavam da porta vê seu tênis e comenta: “Uhm... É esse

o tênis, é?”. Era um tênis da marca Reef e ela referia-se ao fato de ele ter comprado o mesmo

a contragosto de sua mãe em situação em que ela estava perto. Seu footing a projeta como

alguém atenciosa, o que foi possível pela sua lembrança.

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325

Quanto à projeção por meio de uso de conceito da marca em um footing, o

exemplo [#54] em que Mulher Samambaia chama Bandida de “garota Dove” nos é

elucidativo, uma vez que com este uso do tema de campanha da marca a primeira projeta-se

como mais bonita que a outra.

Finalmente, num exemplo de projeção pelo valor da marca, falante projeta-se em

seu footing como alguém de bom gosto e abastada ao dizer à sua interlocutora, que indicara

uma Ótica quando do seu comentário de que estava por comprar um óculos, que não adianta ir

atrás do mais barato, então compraria um na Fábrica de Óculos que era caro, mas de

qualidade, além de ter ficado bem em seu rosto [#104].

Propiciando algo em relação à marca por meio de footing

Também propiciar algo em relação à marca é uma função do footing, que se refere

a assunto relativo à marca e juízo a respeito da marca. Quando se projeta numa situação

imaginária de “se eu fosse rica” [#36] é este footing que propicia a falante dar início ao seu

assunto sobre a picape Pajero.

Em outra situação, ao estar conversando com genro sobre Johnny Walker selo

azul que daria a amigo [#8], é o footing que lhe coloca em seu verdadeiro status social que

propicia que falante emita juízo a respeito do mesmo ao dizer que desistiu de comprá-lo

devido ao seu preço.

Solicitando algo a respeito da marca por meio de footing

Por meio de footing também se solicita opinião sobre a marca. Foi ao sair do seu

papel profissional que falante, após reunião de trabalho, perguntou a executivo de empresa a

que estava prestando serviço, se a manutenção de seu carro era cara [#124].

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326

Sugerindo algo a respeito da marca por meio de footing

Uma última função do footing é sugerir algo a respeito da marca. Refere-se aqui a

nove atividades: característica do usuário da marca, comparação da marca, desabono à marca,

diferença em relação à marca, envolvimento com a marca, escolha da marca, forma de uso da

marca, intimidade com a marca e juízo a respeito da marca.

Em relação ao primeiro caso, podemos ilustrar com situação [#52] em que falante

diz a colega de trabalho, ao se referir ao U2, que “a gente que tá com trinta, trinta e poucos

anos é que somos os fãs mesmo”. Com isto, falante faz um footing assumindo seu papel de fã,

no que sugere característica do “verdadeiro fã” da banda.

Em outra situação [#20], quando falante pede sugestão ao seu interlocutor sobre

marca de computador, faz um footing assumindo seu papel profissional, de caminhoneiro,

para sugerir comparação da marca a ser indicada com sua expectativa, lembrando-lhe haver o

carro mil e o 1.8.

Quando falante mostra à sua avó sandália que recentemente comprara, mas

ressalva que a mesma “não é de marca”, esta diz que a sua é, desabonando aquela com um

footing que projeta status social.

Ao sair de posto de saúde de um subúrbio, falante faz um footing assumindo papel

hipotético de médica para estabelecer diferença entre aquele e um hospital particular [#2],

dizendo que se fosse uma, depois de estudar tanto, iria querer trabalhar em hospitais como o

Português ou o Santa Joana e não num posto daquele.

Em outra ocasião [#8] falante sugere seu envolvimento com o Johnny Walker por

meio de footing em que destaca sua rede social, ao dizer que compraria um de selo azul para

um engenheiro amigo seu.

Quando diretor comercial de empresa de artigos de informática sugere escolha de

MacIntosh para executivos que o visitavam [#123], faz um footing assumindo-se como um

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“conselheiro” e não vendedor, uma vez que propõe ao mesmo que imaginem o quão bonito e

elegante ficariam os laboratórios de sua faculdade.

No seu consultório, dentista conversa amenidades com paciente e seu marido

enquanto começa tratamento [#7], mas faz footing para estabelecer seu papel profissional

assim que o segundo lhe pergunta sobre o uso de Listerine, no que ele responde, como

especialista, que pode ser diário.

Em outra situação [#14], falante sugere sua intimidade com a Intermares, oficina

especializada que indicara a seu interlocutor, fazendo um footing baseado em sua rede social,

dizendo que a mesma pertence a um amigo do seu tio.

Por fim, quando criticado sutilmente por seu interlocutor por ter defendido o

Ypiranga em ocasião que time perdera oportunidade de ganhar o primeiro turno do

campeonato pernambucano [#43], falante faz um footing, assumindo-se agora como algoz, ao

dizer que estiveram mais seguros do que deveriam naquela partida só porque haviam ganho

para o Sport na partida anterior, sugerindo agora um novo juízo ao time.

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328

Dos significados

Após termos passado pela significação das marcas, eis que chegamos aos

significados. Lembremos que por significado aqui devemos ter em mente, mais uma vez, uma

visão funcional. Cada significado se refere a uma função de uso de certa marca, ou seja, para

que fim a marca foi usada e, assim, significada.

Como não deve ser difícil de se imaginar após termos passado por tantas

possibilidades durante a descrição do nosso processo de significação, chegamos a inúmeros

significados das marcas. Apesar de uma enorme fragmentação, pude identificar certos

aspectos de semelhança entre os significados. Assim, minha análise propiciou uma

interpretação dos mesmos sob grupos de famílias, como sugeriria Wittgenstein. De fato,

diferentes níveis de famílias, como uma árvore genealógica.

Chegamos a três grandes famílias, referentes a signos identitários, estatutários e de

valor. Cada uma dessas famílias se divide em novos níveis, podendo ser de dois a três, até

chegarem aos signos mais singulares. Estes níveis intermediários se referem ao seu tipo geral

e ao específico, podendo passar por um relativo ao seu campo. Assim, por exemplo, temos

distinção por status, estilo de vida e diferenças pessoais. Este último subdivide-se, ainda, em

capital humano e social, seus campos ou escopos, o que não ocorre com os outros dois, antes

de termos os tipos específicos e os signos singulares, que se encontram no nível de cada

exemplo.

Como antecipei, diferentemente do que temos feito até o momento, aqui não se

trata de descrever um processo e, portanto, seus relacionamentos. O que se segue é a

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descrição do conteúdo sígnico das marcas, em que por conteúdo quero dizer uma função

conceitual.

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11 Marcas como signos identitários Um dos pontos a que chegamos foi o de identificar que as marcas são usadas

como signos identitários. Por identidade, um conceito geral e introdutório nos é oferecido por

Castells (2002b), que o propõe como a construção de significados com base em atributos

culturais, podendo um ator social, seja ele individual ou coletivo, ter diversas identidades, o

que pode ser fonte de tensões e contradições, não só devido às diferentes identidades, mas

também – e, talvez, sobretudo – aos variados papéis que cada um desempenha em sua vida

social.

Desta noção, dois aspectos são importantes na análise de nossos achados. O

primeiro se refere ao fato de todas as identidades serem forjadas culturalmente, ainda que

estejam expressas em diferentes níveis. Minha concepção analítica levou-me a diferenciar três

destes níveis: o pessoal, o social e o comunal. Todos eles se referem a significados de

natureza cultural, porém experienciados e/ou expressados em diferentes campos da vida

social.

O segundo aspecto descende, de certa forma, do ponto que cheguei com o

primeiro. Trata-se da multiplicidade de identidades a que chegamos. É por meio desta divisão

de níveis identitários que as diferentes identidades se mostram, em minha análise, como parte

de diferentes subgrupos familiares, sendo uns mais e outros menos povoados.

Aqui devemos acrescentar pelo menos mais uma articulação sobre a identidade,

no que se refere a como elas são desenvolvidas. Hall (2003) sugere que existem duas formas

de se pensar a identidade. A primeira forma pela qual as identidades estabelecem suas

reivindicações é por meio do apelo a antecedentes históricos, buscando uma “verdade” no

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passado que corrobora posicionamentos atuais. Outra concepção é aquela que vê a identidade

tanto como uma questão de “tornar-se” quanto de “ser”, o que não nega que a identidade

tenha um passado, mas que, ao reivindicá-las, se a reconstrói e que, além disso, o passado

sofre uma constante transformação. Em nossas observações esta segunda forma está presente

em todos os níveis de interpretação a que chegamos, enquanto a primeira participa

fundamentalmente das identidades comunais.

Entretanto, observamos, em nossas investigações, valores tanto positivos quanto

negativos dos signos identitários a que chegamos. Aqui não tenho intenção de inferir juízo e,

muito menos, sugerir valência acerca dos mesmos. Trata-se, outrossim, de como as pessoas

articulam o uso das marcas para gerar identidades concebidas como positivas, ou melhor,

socialmente – seja qual for o tamanho ou as especificidades da forma de vida em questão –

valorizadas ou, pelo menos, aceitas como legítimas.

Mas as marcas também são usadas para gerar identidades concebidas como

negativas, ou seja, como socialmente – no mesmo contexto relativo às formas de vida –

rejeitadas e, portanto, ilegítimas, chegando ao ponto de se tornarem rechaçadas. Estamos

tratando aqui dos estigmas. Goffman (1988) apresenta estigmas como diferenças não

desejadas por estarem em desacordo ao parâmetro estabelecido como “normal” por uma

sociedade – ou por cada forma de vida, eu diria –, podendo estas serem relativas não apenas a

deformidades físicas, como sugere a origem do termo, mas também de natureza individual ou

sociocultural.

Mas a lógica da diferença não cabe apenas ao estigma, mas à definição identitária

como um todo. Neste sentido, a identidade pode ser entendida como relacional. Para existir,

uma identidade precisa de algo de fora, de uma outra identidade, pois ela se distingue por

aquilo que não é. Assim, a identidade é marcada pela diferença. Como diria Hall (2000), elas

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são construídas por meio da diferença e não fora dela. Nas relações sociais, essas formas de

diferença são estabelecidas, ao menos em parte, por meio de sistemas classificatórios.

11.1 Identidade

À parte da família de signos identitários de valor social positivo me refiro

simplesmente por “identidade”. Conforme antecipado, esta se divide em identidade comunal,

social e pessoal. Cada uma destas se divide em outros galhos da árvore genealógica da

identidade (ver Figura 5) até chegarem no nível da especificidade, o que trazemos por meio de

exemplos. Vale destacar que a reclamação por uma identidade nem sempre é uma atividade

consciente, sendo feita, muitas vezes, de forma involuntária.

A identidade comunal advém de reclamações a aspectos de pertença, tradição e

mito. Quanto a este último, se refere a “mitos modernos”, os quais são aderidos ou acessados.

A tradição, por sua vez, pode ser concebida ou recebida. Ao primeiro tipo me refiro a

tradições “não-tradicionais”, a aspectos contemporâneos forjados como tradicionais; ao

segundo, a aspectos que, independentemente do tempo, foram recebidos pelos interactantes

como algo já tradicional – então, pois, mesmo que sejam contemporâneos. Finalmente, as

reclamações de pertença se referem a aspectos de localidade (lugar) ou de grupos sociais

cujos participantes fazem parte ou se identificam, em que por “grupo” aqui assumo uma

noção deveras livre, me referindo a qualquer comunidade abstrata (num sentido de

desterritorialização) real – no sentido de existir “de fato” – ou imaginada.

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333

Figura 5: Árvore de significados da “identidade”

Identidade

Social

Comunal

Pessoal

Gênero

Profissional “Competente”

“Bem informado/a”

Individual “Baladeiro/a”

“Bem informado/a”“Espontâneo” “Inovador/a”

“Jovial” “Moderno/a”

“Sexy”

Localidade “Terra natal”

Pertença

Tradição

Mito (Moderno) “Acesso” “Adesão”

Classe

Movimento ascendente “Imitação”

Concebida “Fazer parte” “Ter acesso”

Recebida “Fazer parte”

Grupo “Cidadãos”

“Participantes de clubes”“Familiares”

“Referência profissional”“Torcedores/fãs”

“Participantes de turma”“Vencedores”

Ocupação lateral

“Ter o melhor”

Feminino “Afirmação”

Masculino “Ser macho”

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A identidade social, por sua vez, se refere a reclamações de classe social ou

gênero. No primeiro caso, pode ser relativo a um movimento ascendente, ou seja, de alguém

se orientar por uma classe mais alta, ou a uma ocupação lateral, em que alguém se posiciona

em relação à sua própria classe. No segundo caso temos reclamações tanto masculinas quanto

femininas.

Finalmente, a identidade pessoal se divide entre a individual e a profissional, e

não subdivide-se mais. Enquanto a segunda se refere, como o próprio termo sugere, a

reclamações relativas à atividade profissional das pessoas, a primeira reclama a aspectos da

vida privada.

Identidade de localidade

Um dos significados das marcas pode ser seu uso para estabelecer uma identidade

local. Em nossas observações identificamos o uso de marcas para se valorizar a pertença à

terra natal. Exemplo disto temos em situação [#23] em que falante, durante confraternização

familiar, menciona, com orgulho, que a Pitu, cachaça fabricada em Pernambuco, é cara fora

daquele estado, e conta da vez em que esteve em Fortaleza e pôde verificar isto pessoalmente,

no que teria dito “Olha minha terra como tem valor aqui”, o que reproduziu a seus

interactantes com um largo sorriso na boca.

Identidades de grupo

Outros significados das marcas estão associados à pertença a grupos.

Identificamos diferentes tipos de identidade de grupo em nossas observações. Uma primeira

se refere à reclamação das pessoas por serem tratadas como cidadãos. Quando mulher

inquieta-se com demora da Celpe para atender usuários que haviam se dirigido para um de

seus postos de atendimento, resolve levantar-se para olhar pelo vidro da porta de acesso à sala

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em que os funcionários prestam seu serviço [#77]. Ao ver que estavam conversando, revolta-

se e, em voz alta, anuncia aos demais usuários o que estava acontecendo, afirmando ser esta a

razão do atendimento demasiado lento.

Outra identidade de grupo se refere à “participantes de clubes” restritos, ou seja,

pertença a grupos seletivos com participação definida por algum aspecto específico. Quando,

ao final de reunião de trabalho, é solicitado a um dos participantes seu e-mail e o mesmo gera

debate sobre a existência ou não de endereços eletrônicos do Google com final “br” [#122],

tal interactante faz questão de mencionar, com orgulho, que o seu é um dos primeiros, de um

tempo em que era necessário ser convidado.

Também identificamos marcas usadas para se estabelecer identidade de grupos

familiares. A situação [#13] em que tio e sobrinho “quebram o gelo” após não se

encontrarem há um certo tempo culmina na pergunta do primeiro sobre se o outro tem

acompanhado o Sport. A torcida pelo time em questão é tradição passada de geração para

geração daquela família e a menção ao mesmo significa um resgate ao vínculo familiar

daqueles atores.

Outras marcas são significadas pelo seu poder de reclamar uma identidade de

pertença a um grupo de referência profissional. Não se deve aqui confundir esta com a

identidade profissional, da qual trataremos mais à frente. Por exemplo, ao comentar com

colega de trabalho que gostava da série 24 Horas [#42], falante, um profissional de

informática, destaca nela justamente os aspectos que tocam sua atuação, mencionando como

tudo é informatizado, a configuração dos computadores e a responsável pelo trabalho que,

apesar de simpática, é quem dá as ordens.

Outro tipo de grupo que reclama por identidade por meio de marcas é o de

torcedores/fãs. Agrupamos aqui torcedores e fãs por eu entender que se tratem de motivações

similares as que levam as pessoas a serem uma coisa e/ou outra. De qualquer forma, vejamos

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um exemplo de cada. Como exemplo do primeiro caso podemos mencionar situação [#89] em

que flanelinha, sorridente, comenta com dono de carro que acabara de estacionar e descera

com uma camisa do Sport, d’uma qual ele também estava vestido, como houvera sido bom o

título pernambucano conquistado pelo time no dia anterior. O outro caso pode ser

exemplificado por situação [#52] em que falante comenta com colega de trabalho que eles que

estão com trinta e poucos anos é que são os verdadeiros fãs do U2.

As marcas também são usadas para se definir como “participantes de turma”.

Por turma aqui me refiro a grupos de amigos que compartilham atividades ou interesses

comuns. Por exemplo, durante um debate sobre marcas em sala de aula, um dos alunos

menciona que até bem pouco tempo a Puma era desconhecida, até que “todo mundo”

começou a usar, então ele também. Com “todo mundo” ele se referia aos seus colegas que, de

uma hora para outra, começaram a adotar tal marca, o que contaminou ao grupo todo.

Por fim, um último grupo reclamado por meio de marcas é um conceitualmente

mais amplo, mas representado, em nossas observações por outros grupos, mais específicos.

Nos referimos aqui aos “vencedores”. Exemplo pode ser dado por situação [#1] em que, após

ser acusado de sempre morrer na praia, falante recorre ao fato do Náutico ser o único campeão

pernambucano seis vezes consecutivas, projetando a si e aos torcedores do time como

vencedores.

Identidades por tradição

As marcas também são significadas pela reclamação à tradição. Temos aqui, como

já mencionado, tradições inventadas e herdadas. Além disto, as marcas são classificadas como

acessíveis ou por possibilitarem participação. O primeiro caso identificamos em relação às

tradições concebidas. Quando se refere à Creative, falante, um profissional de informática, a

menciona como confiável por já estar há muito tempo no mercado. Não se trata, contudo, de

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tempo tal que justifique, a princípio, uma “tradição”. No entanto, tal tempo parece ter sido o

bastante, talvez pela própria área ser nova, para se ter uma tradição e a marca em questão

significa uma forma de se ter acesso à mesma.

O outro caso de tradição concebida, agora referente a fazer parte da mesma, pode

ser exemplificado por situação [#38] em que, ao propor diálogo sobre alguns problemas do

carro 206 da Peugeot, falante, proprietário de um, assim como seu interlocutor, se refere aos

mesmos como “clássicos”. Apesar da marca ter poucos anos de Brasil, já é assumida como

tendo uma tradição, da qual os proprietários de seu modelo mais vendido passam a fazer

parte.

Finalmente, quanto ao fazer parte de uma tradição recebida, podemos mencionar

situação [#33] em que, ao ser questionada pela tia sobre a faculdade na qual acabara de ter

sido aprovada, falante, apesar de admitir conhecê-la pouco, se refere à mesma como

tradicional. Neste caso, trata-se de uma tradição recebida devido ao fato daquela faculdade

precedê-la e ser conhecida devido à notoriedade de décadas de seu fundador, renomado jurista

e político.

Identidades pelo mito

Finalmente chegamos à reclamação do mito por meio das marcas. Temos aqui as

mesmas categorias da tradição: ter acesso e, no lugar de fazer parte, aderir, cuja mudança de

nome justifica-se tão somente pela natureza diferente entre as fontes de significado. Em

relação ao primeiro caso, podemos ilustrar com situação [#41] em que, estupefato, falante mal

crê que os Rolling Stones se passara para tocar três canções no intervalo da final do

campeonato de futebol americano. Temos aqui a banda significada como um mito humilde e,

portanto, passível de acesso a todos.

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Com outra situação referente a uma de banda de rock podemos ilustrar a adesão

ao mito. Para isto duas observações [#52, #55] nos são complementares. Na primeira, há

pouco mencionada, falante destaca que os verdadeiros fãs do U2 são aqueles que a

acompanham desde o início – logo estarem com trinta e poucos anos, uma vez que a banda

tem mais de vinte. Na segunda, que houvera chegado em casa a tempo de ver todos os

clássicos da banda, se referindo justamente às músicas do início de sua carreira. Assim, a

banda é mitificada e seus fãs assumidos como parte de tal mito.

Identidades de classe

Como antecipado, os significados de marcas por meio de identidade de classe

social se referem à projeção de uma classe mais alta ou pela corroboração da classe a que se

pertence. O primeiro caso se refere a como as marcas podem ser um meio de propiciar

imitação das classes mais altas. Exemplo disto temos em situação [#35] em que empregada

doméstica demonstra interesse por aparelho celular da Nokia que é oferecido à sua “patroa”.

O segundo caso se refere a uma demonstração de que se pode ter o melhor.

Trata-se aqui de uma demonstração de pertença à classe média, tradicionalmente aquela mais

propícia à ascensão, mas também a mais suscetível a sofrer uma queda. Como exemplo

podemos mencionar situação [#56] em que mulher, ao procurar geladeira em loja de

departamentos, faz questão de dizer que só quer uma da Brastemp, apontada como a melhor,

enquanto sempre demonstra problemas para se referir às outras marcas.

Identidades de gênero

Quanto às marcas significadas por identidades de gênero, temos, como

antecipado, dois tipos. Em relação a uma identidade feminina, ocorre pela sua afirmação de

sua condição ao esta ser constrangida. Exemplo disto temos quando falante rejeita certas

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bebidas em confraternização, por associá-las, pejorativamente, ao gênero feminino, e dizer

que só de pensar nas mesmas fica enjoado [#25]. A reação imediata e impulsiva de sua

interlocutora é mencionar uma outra bebida de mesmo tipo para dizer que a mesma não dá

ressaca, defendendo, assim, as “bebidas femininas”.

Quanto à identidade masculina, se refere também aqui a uma afirmação, mas desta

vez ostensiva e espontânea, associando marcas como sendo “para macho”. Exemplo disto

temos em outra situação etílica [#23]. Ao oferecer Maribondo aos seus anfitriões, falante se

refere à mesma como sendo “a forte”. Na seqüência, à rejeição de um de seus convidados sob

influência da esposa, a pista deixada pela sua deixa de potência se confirma ao mesmo sugerir

que aquela estaria querendo mandar no marido. Por fim, algum tempo depois, na mesma

interação, anfitrião insiste, agora se referindo a uma outra cachaça que, segundo ele, “levanta

até veio”, agora numa analogia mais explícita à potência masculina.

Identidades individuais

As marcas também são significadas por meio de reclamações a identidades

individuais. Elas foram várias. Comecemos pela de “baladeiro/a”, ou, como eu diria em

minhas formas de vida, “farrista”. Temos marcas significadas tanto como propriciadoras

quanto impossibilitadoras da “farra”. Em relação ao primeiro caso, um exemplo pode ser dado

com a busca de Taffman-E por falante, uma vez que estava cansado e queria aproveitar o

carnaval [#57]. Do contrário, também numa situação [#40] carnavalesca, quando amigos

combinam de ir para as prévias do Bloco da Saudade uma delas diz, desanimada, que preferia

ir para um “lugar mais agitado”.

Outra identidade é a de ser “bem informado/a”. Exemplo disto podemos

demonstrar com situação [#69] em que falante, ao procurar por certo remédio, lhe é oferecido

o genérico. Ela pergunta se a farmácia tem da Medley, no que faz questão de dizer para sua

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irmã, que a acompanhava, que só compra remédios genéricos daquela marca, deixando

entender que tenha o conhecimento necessário para julgá-la mais confiável que os demais

laboratórios.

Demonstrar-se “espontâneo” também é uma forma de significar as marcas, ainda

que isto não seja feito voluntariamente. Exemplo disto temos quando falante, após dizer que

presentearia um amigo seu com Johnny Walker e demonstrar seu conhecimento sobre a marca

[#8], revela que gosta mesmo é do Old Eight, lançando esta marca como aquela coerente com

sua preferência pessoal, ao contrário da outra, que passava pelo seu relacionamento social.

Demonstrar-se “inovador/a” é outra forma de significar as marcas. Por inovador

me refiro àquele que lança para seus interactantes uma marca por estes desconhecida.

Exemplo disto temos, por exemplo, quando homem convence sua família a percorrer 90km

para almoçar numa cidade de interior em um restaurante que nunca haviam ouvido falar, A

Traíra [#9].

Um mesmo exemplo nos serve para demonstrar quando marcas são significadas

por meio de uma projeção de identidade tanto “jovial” quanto “sexy”. Quando falante conta a

amiga sobre biquíni da Água de Coco que ganhara de sua ex-sogra pouco após sua separação,

e se refere ao mesmo como sendo “lindo” e “bem pequenininho” [#5], afirma que com ele irá

“arrasar em Porto”. Com isto, projeta possibilidade daquela marca fazê-la sentir-se

rejuvenescida e atraente.

Outra identidade a significar as marcas é a de pessoa “moderna”. Por moderno

aqui tenho em mente uma oposição a “ser antiquado”. Por exemplo, quando mãe questiona

sua filha sobre se comprar no Atacadão da Papelaria o material escolar de seus filhos não lhe

sairia mais caro, esta diz que não iria ficar andando no centro da cidade [#29]. Assim, a marca

é significada como sendo moderna pelo fato de estar num shopping, propiciando a praticidade

e o conforto compatíveis a um centro de compras de tal natureza.

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Identidades profissionais

Finalmente, as marcas são significadas ainda por meio de reclamações a

identidades profissionais. Temos aqui duas situações: a que alguém se projeta competente a

que alguém se projeta como bem informado. Em relação à primeira, podemos mencionar

situação em que fotógrafo, em busca de uma oportunidade como docente da área [#50],

pergunta ao coordenador do curso, em conversa posterior à entrevista, se a faculdade já teria

escolhido que câmeras comprar, se Nikon ou Canon. Com isto pretende demonstrar

competência em seu ofício, já indicando as marcas que sugere como mais adequadas para

aquela finalidade.

Por demonstra-se “bem informado/a” tenho em mente situações em que não é o

caso de haver uma “comprovação” de conhecimento profissional, mas de se estar a par do que

acontece em sua área de atuação. Por exemplo, quando participante de um núcleo de moda

menciona evento patrocinado pela Dupé [#127], logo é enfaticamente corrigida por pergunta

enfática de sua colega de trabalho repetindo o nome da marca mencionada, o que indica sua

pretensão de fazê-la se lembrar de que o patrocínio em questão era por conta de outra marca

de sandálias: as Havaianas.

11.2 Estigma

Mas identidades também são, conforme termo de Goffman, “deterioradas”,

tornando-se estigmas. São estigmas as identidades de valor social negativo que compõem a

segunda linha de signos identitários de nossa árvore genealógica. Dividem-se aqui, da mesma

forma que a identidade, em estigmas comunais, sociais e pessoais, subdividindo-se por outros

galhos até cada especificidade, como pode ser observado na Figura 6. Vale mencionar que

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nem todas as atividades que terminam por implicar num estigma o são premeditada ou

propositalmente, ocorrendo, muitas vezes, de forma inconsciente.

O estigma comunal advém de implicações com aspectos de pertença apenas.

Assim como acontece em relação às identidades, os estigmas relativos à pertença se referem a

aspectos de localidade e de grupos sociais.

O estigma social, por sua vez, assim como no caso da identidade, se refere a

implicações de classe social e gênero. Este último também aqui se refere a implicações

relativas tanto ao masculino quanto ao feminino. O aspecto classe social, no entanto, se refere

aqui apenas ao movimento descendente, ou seja, de a alguém ser atribuída uma noção

pejorativa de uma classe mais baixa.

Finalmente, o estigma pessoal refere-se apenas a aspectos individuais, mais uma

vez sem subdividir-se mais. Trata-se de implicações de comportamentos que as pessoas têm

em suas vidas privadas e que são assumidos de uma forma negativa e avaliados de forma

pejorativa.

Estigmas de localidade

Um dos estigmas comunais de pertença pelo qual as marcas são significadas é o

de localidade. Em nossas investigações observamos duas de suas variações. A primeira é um

estigma de nacionalidade, em que o estrangeiro é julgado pejorativamente. Temos aqui o

“gringo pirangueiro”. Exemplo disto temos na situação [#4] em que falante, após criticar

marido de sua cunhada por presentear-lhe com um “livrinho”, sendo que havia ganho roupas

da Diesel, conclui que “esse povo é que é pirangueiro mesmo”, em referência à sua

nacionalidade italiana, por não presentear-lhe com algo de uma marca como aquela, sendo,

portanto, a Diesel significada como algo fora do alcance deste “tipo de gente”.

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Figura 6: Árvore de significados do “estigma”

Estigma

Social

Comunal

Pessoal

Gênero

Individual “Baranga” “Burro/a” “Cabeção”

“Desarrumado/a” “Desequilibrado/a”

“Entocado/a” “Falso/a”

“Fofoqueira” “Metido/a”

“Monstruoso” “Tacanho/a”

“Ultrapassado/a” “Veado”

Localidade “Gringo pirangueiro”

“Paraíba”

Classe

Movimento descendente

“Coisa de pobre” “Pobre metido”

Grupo “Covardes”

“Esculhambados” “Perdedores”

“Sacanas” “Sujos”

Feminino “Coisa de mulher”

Masculino “Homem frouxo”

Pertença

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Outro estigma de localidade presente no significado das marcas se refere àquele

relativo a nordestinos. Em situação [#102] em que motorista de táxi carioca se refere à Feira

de Costumes Nordestinos Luiz Gonzaga, ponto turístico da capital fluminense, como “feira

dos paraíba”, temos um exemplo. Tal estigma está tão cristalizado que o mesmo sequer se dá

conta que fez tal comentário a um casal de pernambucanos, “paraíbas”, portanto, como o são

todos os nordestinos para a maior parte daqueles que moram no Rio de Janeiro.

Estigmas de grupo

São cinco os estigmas de grupo que têm implicância no significado das marcas.

Três deles podemos exemplificar por meio de um mesmo exemplo. Quando torcedor chama

estádios de times concorrentes ao seu de “chiqueirinho” e “chiqueirão” [#18], atribui àqueles

e aos seus torcedores a qualidade de “sujos”, o que faz como rechaça, justamente pelo fato de

fazerem parte de comunidades “inimigas” à sua.

Na seqüência da mesma interação, ao mencionar jogo no estádio do Arruda, do

Santa Cruz, em que a torcida do Sport tivera um espaço muito menor que a daquele time, o

mesmo sugere que sejam “sacanas” por se comportarem daquela forma. Apesar disto, não

perde a oportunidade de engalfinhar a torcida do outro concorrente, o Náutico, quando, ao

sugerir que o tamanho das torcidas de Sport e Santa Cruz sejam do mesmo tamanho, chama os

torcedores daquele time de “covardes”, por estarem sempre escondidos quando o mesmo está

perdendo e só “darem as caras” na vitória.

Outro estigma de grupo é o de “esculhambados”, ou seja, pessoas

desorganizadas. Um exemplo disto no significado de uma marca temos em situação [#75] em

que professor de curso de Publicidade & Propaganda, ao ouvir de um colega sobre a

organização dos encontros promovidos pela associação nacional dos programas de pós-

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graduação em administração, conclui que o Intercom, encontro da área de comunicação, é

“uma zona”.

Por fim, certos grupos também significam as marcas ao serem tachados de

“perdedores”. Em outra situação futebolística [#1], temos uma dinâmica de alternância de

acusações de tal natureza. Ao ouvir que o Náutico “sempre morre na praia”, por ocasião em

que o mesmo perdera partida e vaga para a primeira divisão, falante revida com apelo ao fato

deste ser o único “hexa” dentre os times pernambucanos. Isto gera a reação de um terceiro

interactante, que afirma ser “necessário um Santa e um Náutico para dar um Sport”, se

referindo ao fato de seu time ser o de maiores conquistas dentre aqueles mencionados.

Estigmas de classe

Como já mencionei, os estigmas de classe que implicam no significado das

marcas se referem aqui àquelas classes mais baixas. Temos aqui o estigma do “coisa de

pobre” e o de “pobre metido”. Em relação ao primeiro tipo, podemos exemplificar com

situação [#23] em que dois falantes insistem em enfatizar a procedência de cachaça oferecida

por anfitrião pelo fato da mesma ser “engarrafada” em garrafas de Montila e de uma deles

ressaltar aquela “tristeza”, agora apoiando-se no fato de cachaça, por si só, já ser um produto

estigmatizado e associado à “ralé” – vide os termos pejorativos, como “cachaceiro” e

“pinguço”, que utilizamos para nos referir a pessoas bêbadas.

O outro estigma, de “pobre metido”, surge como meio de desvalorizar pares de

mesma classe, atribuindo-lhes a intenção de tentarem parecer o que não são. Este estigma

pode ser exemplificado pela situação [#3] em que falante chega a auto-depreciar-se para

atingir vizinha cujos filhos estudam no Colégio Santa Maria. Na ocasião, ela refere-se ao

prédio em que moram como “velho”, adjetivo usado também para os carros à porta do

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mesmo, como forma de questionar a possibilidade da outra de manter seus filhos no colégio

em questão.

Estigmas de gênero

Quanto aos estigmas de gênero, identificamos o que se refere a “coisa de mulher”

e, do lado masculino, o que se caracteriza como de “homem frouxo”. O primeiro pode ser

ilustrado com situação em que homem, após dizer que estava “feito mulher” para rejeitar dose

de uísque que lhe fora oferecido, rechaça, com ojeriza, “essas coisas assim”, se referindo a

bebidas que se lhe haviam sido oferecidas, por analogia ao seu comentário, em substituição à

primeira [#25], mencionando que, só de pensar nas mesmas ficava enjoado, se referindo a um

suposto gosto feminino.

No outro caso de significado das marcas por estigma de gênero temos um

exemplo em situação [#23] em que, ao ver mulher de amigo aconselhá-lo a não beber da

cachaça que o havia oferecido, falante sugere que a mesma está “botando moral” para cima

dele, sugerindo que o mesmo seja um “homem frouxo” por não aceitar sua oferta e ouvir sua

mulher, o que faz como forma de provocar sua mudança de comportamento em relação ao

destilado.

Estigmas individuais

Dentre os estigmas, os que mais implicam nos significados das marcas em nossas

investigações são os individuais. Identificamos treze ao todo. Comecemos nossa descrição dos

mesmos pela “baranga”. Trata-se da indicação de alguém sobre a, digamos, beleza não

privilegiada do outro – em todos os casos, na verdade, da outra, daí o termo sem duplicidade

de gênero. Um exemplo de tal tipo pode ser dado pela situação [#72] em que ouvinte do Dois

em Um diz à apresentadora do programa que ela teria sorte se arrumasse um namorado com

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um Chevette, se referindo ao fato de, por um lado, a mesma sempre mencionar que queria um

namorado com Jaguar e, por outro, sua beleza ser sempre algo questionado.

Outro caso de significado das marcas por referência a um estigma individual se

refere se considerar alguém “burro/a”. Quando falante diz à sua interlocutora que amigo de

infância de seu filho havia passado em Direito, a outra sugere que não teria sido na

Universidade Federal [#28]. Com isto ela tem em mente que tal instituição seja acessível

apenas a uma elite intelectual, da qual ela não considera que o referido rapaz tenha a

capacidade de fazer parte.

O próximo estigma tem a ver com um aspecto físico objetivo. Trata-se da famosa

pecha de “cabeção”, usada para se referir a pessoas com um tamanho de cabeça maior que o

comum. Uma marca que carrega tal signo é Arnold, personagem protagonista de desenho

animado com seu nome, chamado pelos seus colegas de “cabeça de bigorna”. O exemplo que

demonstra tal estigma está em situação [#70] em que empregada doméstica chama menino de

dois anos que cuida da mesma maneira que Arnold é chamado pelos seus colegas. Apesar de

se tratar de uma brincadeira amistosa e até carinhosa por parte da falante, vemos que o

estigma é reproduzido e, neste caso, passou a ser também um significado da marca em

questão.

Em outra situação [#62] novamente temos um comentário acerca de um aspecto

estético de alguém. Quando duas alunas comentam entre si que uma terceira está vestida com

uma caríssima camisa da Diesel e uma calça “sem marca” [#62]. Com isto, concordam que,

apesar da marca que a outra veste, ela é uma pessoa que não sabe se arrumar, ou seja, é

alguém “desarrumado/a”. Tal estigma, em nossas investigações, é usado para afastar pessoas

de certas marcas, ou seja, que estas marcas não são feitas para pessoas que não saibam como

utilizá-las adequadamente.

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Outro estigma comum nas interações sociais está na associação de pessoas a

algum distúrbio psíquico, mesmo que se trate de uma ironia com pessoas mais “agitadas” que

a maioria. Ao responder a colega se havia sido procurada por certa pessoa no trabalho, falante

confirma e menciona seu comportamento referindo-se à mesma como sendo “atacada” e

sugerindo que a mesma deveria “tomar Rivotril”. Assim, temos que a marca em questão é

significada como sendo para alguém “desequilibrado/a”.

As marcas também são significadas em relação a comportamentos considerados

“anti-sociais”. Temos aqui o estigma relativo a pessoas isoladas de certos convívios ou

situações sociais, popularmente chamadas de “entocado/a”. Em nossas observações trata-se

de marcas significadas como capazes de “desentocá-las”. Como ilustração deste caso

podemos mencionar ocasião em que falante, ao comentar com amigo que teria uma nova lua-

de-mel em Buenos Aires, brinca com o mesmo dizendo que se até ele, que é “entocado”, iria

passar alguns dias no Rio de Janeiro com sua esposa, se referindo a viagem que seu

interlocutor faria, então por que não ele mesmo poderia se dar um tempo. No caso, temos o

Rio significado como responsável por tirar aquele estranho “da toca”.

Outra situação [#23] nos serve para ilustrar outros dois estigmas com implicância

no significado das marcas. Quando mulher insiste em implicar com a cachaça ofertada por

anfitrião de encontro familiar, o mesmo, depois de encampar tentativas consecutivas de

dissuadi-la a mudar de atitude, se sai com um “ôxi, mas menino!”. Com isto sugere que sua

rejeição a tal cachaça se dera pela mesma ser alguém “metido/a”. Na seqüência da mesma

interação, tendo desistido da primeira empreitada, passa a sugerir que a mesma já tivera

tomado 51. Com isto, sugere que sua interlocutora está sendo alguém “falso/a” em relação à

sua proposta.

Mais um estigma: o de “fofoqueiro/a”. Exemplo de marca atribuída com tal

significado pode ser dado por meio de exemplo de situação [#118] em que, ao comentário de

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locutor da ESPN, durante transmissão de jogo entre Japão e Croácia, de que a mulher de um

dos jogadores da seleção ocidental é ex-Miss Croácia, comentarista diz que acabara de

presenciar um “Momento Caras”. Com isto, sugeriu que tal revista é voltada a noticiar a vida

privada das pessoas, ou, em outras palavras, que se trata de uma publicação que veicula

fofocas.

Outro estigma associado a algum aspecto corporal, só que agora uma deformidade

real, tem efeito na significação das marcas: algo “monstruoso”. Temos como exemplo aqui

situação [#63] em que criança se nega a se referir a um dos heróis d’O Quarteto Fantástico

pelo seu nome, “O Coisa”. Sua expressão de ojeriza ao revelar para o pai que sabia que o

nome do mesmo não é “Homem Pedra”, como ele o chama, desvela sua forma de evitar fazer

menção ao seu aspecto não humano.

O estigma de ser “tacanho/a” é outro com implicatura na significação das marcas.

Trata-se aqui de associar marcas a pessoas cujo comportamento é assumido desta forma, algo

comumente rechaçado na cultura brasileira. Um exemplo deste caso temos em situação [#61]

em que falante menciona, após ter preço do seu serviço desvalorizado em relação à sua

proposta, que a executiva com quem negociava lhe fizera uma proposta “dessa” enquanto

usava uma bolsa Prada. Com isto, falante associa a mencionada marca a pessoas ricas porém

tacanhas.

Também ser “ultrapassado/a” se mostrou como um estigma a significar marcas

em nossas investigações. Um exemplo que pode ilustrar tal caso está em situação [#91] em

que falante demonstra receio pela possibilidade de ter que embarcar num avião Bandeirante

com a passagem que comprara junto à Varig, o que era possível graças à intervenção da

OceanAir para garantir os vôos daquela companhia em apuros. Seu comentário concentrou-se

no fato do mesmo ainda ser “de hélice” significando o avião e tal marca como ultrapassado e,

por isso, não confiável.

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Finalmente, um último estigma com implicação na significação das marcas é

homofóbico. Ao ser perguntado se já assistira ao filme Brokeback Mountain, falante reage

perguntando ao seu interlocutor se o está confundindo com um “veado”, sugerindo que, pelo

fato do filme tratar de um romance homossexual, não seja indicado para aqueles que sejam

heterossexuais.

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12 As marcas na busca de distinção social A segunda família de significados das marcas a que chegamos é a de signos

estatutários. Tratam-se daqueles que estabelecem hierarquia social entre as pessoas. Veblen

(1980) foi um dos primeiros a se debruçar sobre como o consumo é usado como meio de

estratificação social. No final do século XIX, ele teorizou sobre como a “classe ociosa” –

fundamentalmente nobreza e clero – utilizou a conspicuidade do consumo para adquirir,

manter ou exibir status social, uma vez que isto seria uma demonstração de riqueza. Trata-se,

portanto, de uma teoria do consumo como prática ostentatória, usada como estratégia de

diferenciação estatutária numa disputa simbólica, ainda que com base no poder econômico,

entre as classes – de fato, uma estratégia de manutenção de poder daquelas dominantes sobre

as demais.

Seria Bourdieu quem retomaria a linha de pensamento de Veblen para ampliar a

concepção do que ele agora chamou de distinção social – e, de fato, preocupando-se menos

especificamente com o consumo, assumindo este como mais uma das muitas práticas sociais.

Assim como seu antecessor, o autor concentra-se em como práticas de diferenciação social

são utilizadas como fonte de poder. Entretanto, para ele, o aspecto econômico é apenas um

mediatizador, sendo os aspectos culturais aqueles dominantes em tal atividade.

Bourdieu (2006) propõe que mais importante do que o que se consome é como se

consome. Assim, é o modo como se consome o verdadeiro legitimador estatutário. Este modo

baseia-se não no poderio financeiro das pessoas, mas em seus gostos. Com isto, o autor

introduz a noção de que, para além do capital econômico, seja necessário às práticas de

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diferenciação social um capital outro, que ele chamou de cultural – termo coerente ao seu

conceito de habitus53, de onde adviriam tais e outras práticas.

Isto sugere que as classes dominantes estariam mais preocupadas com o modo de

representação enquanto as classes inferiores tenderiam a valorizar o próprio objeto

representado, o que manteria o poder da primeira – daí vermos, por exemplo, a dificuldade de

“novo ricos” serem legitimados nas altas rodas ou, do contrário, a manutenção de status dos

“ricos de berço” falidos.

Valem aqui duas articulações em torno desta premissa. A primeira é de que o

gosto não seja uma marca individual, mas coletiva, herdada por meio do habitus de cada um.

Sendo assim, o capital cultural não seria possível de estar distribuído uniformemente pela

sociedade, uma vez que não estaria acessível a todos, mas apenas àqueles participantes de

certos habitus.

Outra questão se refere ao fato de Bourdieu entender que, graças a isto, toda

prática social seja, em alguma instância, distintiva. Pessoas refletem em suas práticas sociais,

muitas vezes involuntariamente, seus habitus, o que já é o bastante para distingui-las daquelas

cujas práticas norteiam-se por habitus diferentes. A distinção não se trataria, portanto, de uma

busca “consciente”. Ela simplesmente seria condição sine qua non da vida social e dos

diferentes estilos de vida advindos das diferentes posições que os grupos ocupam no espaço

social e de seus respectivos sistemas de diferenciação.

É, possivelmente, neste aspecto que resida a principal diferença da teoria

bourdieusiana em relação à de Veblen. Este previra o consumo conspícuo como reflexo de

busca por distinção. No entanto, Bourdieu entende que não seja necessário que a distinção

53 O habitus trata-se, na concepção de Bourdieu, de estruturas estruturadas em torno de práticas e representações coletivamente constituídas. Não seria difícil concebermos uma aproximação entre o habitus e a forma de vida wittgensteineana, ainda que tais noções partam de preocupações e princípios distintos. Entretanto, não seria o caso de uma discussão mais aprofundada neste sentido no momento, uma vez que apenas faço uma relativa apropriação da noção de distinção social do primeiro autor para compreender os signos estatutários a que chegamos.

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seja buscada para que exista. Trataria-se, portanto, de uma intencionalidade

“desintencionada”, se assim pudéssemos dizer. Isto não quer dizer, contudo, que o autor não

conceba que exista uma busca tal, mas apenas que esta prática não seja compulsória à

distinção e sim apenas uma de suas possibilidades.

* * *

Em termos gerais a noção bourdieusiana de distinção social nos é útil na

compreensão dos signos estatutários no uso das marcas. Pela sua amplitude, todos os signos a

que chegamos podem ser interpretados à sua luz. Entretanto, alguns aspectos devem ser

discutidos. O primeiro tem a ver com minha classificação dos signos marcários identificados

aqui. Chegamos tanto a signos baseados no capital econômico quanto no cultural. Ao primeiro

se referem aspectos visivelmente de um posicionamento de classe. Quanto ao segundo,

contudo, é possível percebermos uma parte de nítida herança comunal, referente a estilos de

vida – dos quais os aspectos econômicos são mediadores –, mas outra que, ainda que oriunda

de ou motivada por aspectos coletivos, expressam-se como características pessoais.

Um segundo aspecto fundamental está na forma como a distinção social se

articula em nossas interações. Voluntariamente ou não, o que vemos são interactantes que tem

em mente a distinção social quando esta se faz presente na situação social. Em outras

palavras, no uso das marcas enquanto signos, observamos, em nossas investigações, a

distinção social como busca. Mas isto não nos leva a dar um passo atrás para a noção de

consumo ostentatório de Veblen – até porque este faz parte da articulação de Bourdieu.

Outrossim, para inferir tratar-se de uma busca por distinção social o que vemos, me baseio no

que seria, como já pude articular54, uma versão wittgensteiniana de intencionalidade, ou seja,

54 Ver Capítulo 4.

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sua noção de meinen. Com isto quero dizer que, nas interações que observamos,

independentemente de se tratar de uma ação premeditada ou não, o uso estatutário das marcas

se apresenta com uma prática distintiva ostensiva.

Finalmente, um terceiro aspecto a ser destacado se refere aos próprios níveis

distintivos, bem como à “realidade” dos mesmos. Temos aqui, fundamentalmente, duas

perspectivas a serem consideradas. A primeira é de que não lidamos apenas com o que os

consumidores são, mas também o que gostariam de ser, e como fazem uso dos recursos

marcários para manter-se ou projetar-se de alguma forma. Assim, não consideramos como

sofisticadas aquelas pessoas que realmente sejam, até pela impossibilidade ôntica de tal

inferência, mas como as pessoas assim percebem a si ou aos outros ou ainda como se

esforçam para serem.

A segunda perspectiva é um abandono a priori da noção de hierarquia social.

Com isto, os significados não são interpretados de acordo com a estrutura social estabelecida,

mas em como as pessoas dão sentido a esta. Com isto, para nos mantermos com o mesmo

exemplo, não assumimos o que seja sofisticação com base numa visão dominante, mas em

como os interactantes compreendam o que seja sofisticado, o que certamente desvela uma

concepção tal de acordo com as variadas formas de vida.

* * *

A família de signos de distinção social está aqui, conforme já pude sugerir,

dividida em três grupos (ver Figura 7). O primeiro deles, a que chamei de distinção por status

social, se refere a aspectos de distinção baseados no capital econômico, seja pelo potencial

pecuniário, seja pelas posses que se tem – ainda que saibamos que o status não se restringe a

este aspecto, no que me aproprio de um uso pragmático do termo. Os aspectos de status aqui

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são relativos à mobilidade ou manutenção social. O primeiro refere-se a uma demonstração ou

projeção de pertença a uma classe alta ou ainda à sugestão de rebaixamento social de outro. A

manutenção social, por sua vez, refere-se ao reconhecimento e aceitação de sua própria classe

social ou de algo como sendo alinhado a uma classe mais alta.

O segundo grupo de signos de distinção refere-se àqueles relativos a estilos de

vida. Trata-se de uma dimensão que, apesar de incluir aspectos econômicos no que concerne à

aquisição de produtos, se refere sobremaneira a como os mesmos são utilizados na produção

de significados. Identificamos cinco estilos de vida em nossas investigações, os quais chamei

de “antenados”, “exibidos”, “experimentados”, “sofisticados” e “tradicionais”, como

referência à forma como as pessoas vivenciam seus gostos ao interagirem com seu ambiente

social.

Por fim, um terceiro grupo de signos de distinção social refere-se à parte do

capital cultural que não tem a ver com nenhum aspecto diretamente relacionado a questões

econômicas e que, de fato, costumam passar ao largo desta discussão. Trata-se de diferenças

pessoais. Apresento as mesmas divididas em capital humano e social, por se referirem,

respectivamente, à capacidade de alguém em relação a aspectos individuais valorizados

socialmente ou à capacidade de gerar para si circunstâncias positivas por meio de sua

interação com a sociedade.

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Figura 7: Árvore de significados da “distinção social”

Diferenças pessoais

Intelecto “Conhecimentos gerais”

“Pessoa estudada”

Capital social

Talento “Habilidade esportiva”

Prestígio “Ocupação valorosa”

Rede social “Amigos importantes”

“Ciclo de amizade” “Pessoas importantes”

“Relações de parentesco”

Capital humano

Diferença social

Mobilidade social “Mostrar-se superior”

“Para mais pobres” “Projetar-se superior”

Estilo de vida

Manutenção social “Mostrar-se alinhado/a à

sua realidade” “Para pessoas com mais

condições” “Para ricos”

Experimentados “Ser viajado/a”

“Ter gosto exótico”

Sofisticados “Demonstrar bom gosto”

“Demonstrar gostar do que é bom”

“Ser chique”

Exibidos “Ser notório”

Tradicionais “Ter berço”

“Ter história”

Antenados “Andar na moda”

“Ser bem informado/a” “Ser moderno”

Status social

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Distinção por status social

Como antecipei, as diferenças estabelecidas por meio de aspectos relativos ao

status social se dividem aqui entre mobilidade e manutenção social. Em relação à mobilidade

social, temos três tipos diferentes. O primeiro se refere a mostrar-se superior ao outro por

meio do uso de alguma marca. Por exemplo, ao mencionar que “hexa é luxo” como último

recurso para defender seu time da acusação de perdedor [#1], falante utilizou de um recurso

estatutário porque tal bordão é conhecido por se referir ao fato histórico do Náutico ser o time

“da elite” pernambucana – fenômeno que ocorre em ouros estados, como pode ser observado

em relação ao Bahia no estado de mesmo nome e ao Fluminense no Rio de Janeiro, só para

mencionar apenas dois outros casos.

O segundo tipo de mobilidade social se refere a projetar-se superior. Trata-se de

alguém se utilizar de algum signo marcário como forma de se sugerir superioridade em

relação a um par. Está no fato de se tratar de uma projeção sobre um par que reside a

diferença entre este caso e o primeiro. Por par aqui me refiro à possibilidade de alguém saber

que está lidando com outrem de uma mesma classe, o que não ocorre em relação ao primeiro

caso, possibilitando que se considere que se trata de uma projeção estatutária apenas, seja por

meio de uma circunstância temporária, contingente ou artificial, e não a uma condição

objetiva.

Por exemplo, quando empregada doméstica diz à sua empregadora que comprava

Leite Ninho e Mucilon “do verdadeiro” para a filha de uma amiga quando esta nascera

[#112], projeta um status sobre sua amiga, que sua interlocutora sabe tratar-se também de

uma empregada doméstica que mora em seu mesmo bairro, o que sugere que a mesma estava

passando por uma situação momentaneamente mais satisfatória.

Em outra situação [#47], falante projeta um alto status ao mencionar que só vai ao

Português quem pode pagar um plano bom, ou, em outras palavras, caro. Sua interlocutora,

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sendo de uma mesma classe social, pode deduzir a contingência da situação seja porque a

escolha de planos de saúde pode ser uma opção associada aos valores ou estilo de vida

familiar ou ainda porque podem fazer parte de benefícios empregatícios.

Por fim, para exemplificar o último caso, podemos mencionar ocasião em que,

quando falante, para projetar-se sobre seu interlocutor, menciona como o Johnny Walker é

bom [#24], este pode deduzir se tratar de uma situação criada artificialmente com tal intuito,

uma vez que o primeiro sequer lembrara do nome do uísque que citava, precisando deste para

completar sua fala.

O último tipo de diferenciação social por mobilidade social com uso de signos

marcários, ao contrário dos demais, trata-se de apontar marcas que sejam “para mais

pobres”. É isto, por exemplo, que sugere falante ao dizer que quer uma Brastemp e que

Continental não quer “nem morta” [#56], uma vez que a primeira é bem mais barata e, assim,

popular.

Em relação às diferenças estabelecidas por meio de aspectos relativos à

manutenção social temos outros três tipos. O primeiro refere-se a alguém “mostra-se

alinhado/a à sua realidade”, ou seja, ao nível de status social que compreenda ser o seu. A

distinção aqui está em se projetar como uma pessoa mais coerente do que aquelas que não

agem de tal maneira. Exemplo de um caso destes temos quando falante, após criticar uma

vizinha sua por manter seus filhos no Colégio Santa Maria, diz a uma outra vizinha, com

quem conversava, que houvera pensado no Colégio Boa Viagem como opção para sua filha

estudar sob o argumento – além de certas características atribuídas aos mesmo –, de que a

mesma é para classe média e, assim, que todos lá saberiam quem é sua filha [#3].

Outra forma de significar as marcas por meio de manutenção social é admitindo-

se que algumas delas são “para pessoas com mais condições”, ou seja, para pessoas de

classes superiores à sua. Com isto, tais marcas são admitidas como distintivas justamente para

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aquelas que as podem ter. Podemos mencionar um exemplo deste tipo por meio de situação

[#29] em que falante questiona a sua filha sobre se comprar os materiais escolares de seus

filhos no Atacadão da Papelaria de um shopping não seria mais caro. Com isto, sugere que a

opção por aquela loja não estaria coerente com suas condições financeiras, mas com as de

classes mais altas que a sua.

Finalmente, o último tipo se refere à admissão de que algumas marcas são “para

ricos”. Trata-se de um muito parecido com o anterior, porém se refere a classes tão distantes

das de quem as a elas se referem, que são assumidas como sendo para pessoas ricas.

Evidentemente aqui também a distinção de tais marcas é compreendida como sendo dirigida

àqueles que as podem ter. O exemplo mais evidente que temos está na situação [#36] em que

falante confidencia ao marido que, se fosse rica, queria ter um “um carro decente”, no que

menciona uma Pajero.

Distinção por meio de estilo de vida

Como antecipei, são cinco os estilos de vida observados em nossas investigações,

os quais já pude enunciar. O primeiro se refere aos que chamei de “antenados”, pessoas

atualizadas ao que acontece de mais recente. Os significados das marcas advindos de tal estilo

de vida se alinham a três de suas características. A primeira é a de “andar na moda”. Um

exemplo disto podemos ilustrar com situação [#67] em que falante menciona que os tênis da

Puma doem no pé, mas ainda assim os usa, uma vez que “todos usam”, referindo-se ao seu

grupo de amigos. Com isto, ele e seus amigos distinguem-se dos outros por meio da marca em

questão.

Uma segunda característica de tal estilo de vida é a de ser “bem informado/a”.

Quando falante, após mencionar que teria tido o intuito de presentear um amigo seu com um

Johnny Walker, começa a demonstrar seu conhecimento sobre a marca, discorrendo sobre a

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variedade de selos da mesma [#8], nos fornece um exemplo de tal caso. Sua distinção aqui se

refere justamente a se mostrar tão conhecedor da marca.

Por fim, “ser moderno” é outra característica dos “antenados”. Por moderno me

refiro a pessoas preocupadas em ser ou parecerem ser atualizadas com os avanços da

tecnologia por meio de signos marcários condizentes com tal aspecto. Como exemplo

podemos mencionar situação [#135] em que falante pára conversa com amigo para prestar

atenção em comercial da Pioneer que passava na televisão sobre novo modelo de som para

carro da marca. Como havia comprado um mesmo produto de tal marca, projetou-se por meio

daquela que lhe conferia modernidade, com uma leve ênfase de vanglória ao dizer o nome da

marca.

Outro estilo de vida é o que chamei de “exibidos”. Refere-se aqui ao “ser

notório”, ou seja, ser reconhecido pelos outros por meio do uso das marcas. Após marido

insistir com sua esposa que ela não tivera valorizado seu presente, uma sandália da Datelli,

como teria se referido a uma da Arezzo e, ao passar pelas lojas enquanto passeavam por um

shopping, a demonstra que a maioria dos modelos da primeira estão mais caros do que os da

segunda, ela, que até então sugeria que ele estava enganado [#30], se trai e comenta que a

Datelli pode ser mais cara, “mas a Arezzo é mais conhecida, mais...”. Com isto, sem perceber

demonstra sua associação da marca com a notoriedade que ela tem e que, portanto, transfere

para seus usuários.

O terceiro estilo de vida identificado é o que chamei de “experimentados”, que se

refere a pessoas predispostas a viver experiências. São duas as suas características. Uma

primeira é a de “ser viajado/a”. A situação [#131] em que falante precisa esclarecer a

interlocutor que o ligara quando estava viajando a Porto que estava em “Porto, Portugal” nos

é elucidativo deste caso. Ao seu comentário não está atrelado apenas um esclarecimento ao

outro, que, a princípio, pensara se tratar de Porto de Galinhas. Antes disto, fizera questão de

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361

sugerir que usufruía de tal cidade ao dizer ao mesmo que a ligação estava ruim e lhe custaria

caro, provocando tal dúvida no outro.

A outra característica dos “experimentados” é “ter gosto exótico”, ou seja, gosto

por experiências diferentes daquelas consideradas mais convencionais, o que é demonstrado

por meio de suas escolhas marcárias. Um exemplo disto temos na situação [#9] em que

homem convence sua família e a do seu genro a se deslocarem 90km para comerem uma

traíra em Aliança.

O quarto estilo de vida que identificamos é o de “sofisticados”. Novamente aqui

temos três características. A primeira é a de “demonstrar bom gosto”. Temos exemplo disto

em situação [#115] em que, na fila para peça de teatro em que colegas conversam, uma deles

menciona o quão bom é o vinho Miolo Brut, sugerindo aos outros seu bom gosto para aquela

bebida.

A segunda característica dos “sofisticados” é “demonstrar gostar do que é

bom”. A diferença desta para a anterior está no fato de aqui a marca usada é supostamente

reconhecida e, portanto, potencialmente aceita pelo interlocutor. Quando falante comenta que

só compra no Hiper porque só dá “do bom e do melhor” aos seus filhos [#84], está se

utilizando da marca para comprovar seu argumento, ou seja, de gostar do que seja aceito

como bom.

Por fim, “ser chique” é uma característica do significado das marcas que é

atribuído pelo falante acerca de si próprio ou ao reconhecimento deste sobre tal qualidade

acerca de um outro. Por exemplo, ao se encontrar com colega de faculdade que caminhava

com uma sacola da Renaissance, falante intervém com um eloqüente comentário sobre a

mesma, concluído com um “huum” desvelador do que tinha em mente com seu comentário

[#107].

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Finalmente o último estilo de vida que identificamos é o dos “tradicionais”. São

duas as suas características. A primeira se refere a “ter berço”. Trata-se aqui de marcas

significadas como adequadas apenas àqueles que tenham tal qualidade. Podemos ilustrar tal

aspecto com situação [#6] em que, ao se deparar sob sua janela com lixo composto por restos

de higiene pessoal e embalagens de guloseimas, falante comenta com reprovação irônica que

isto ocorria mesmo com os filhos da vizinha que mora acima de seu apartamento estudando

no Santa Maria, sugerindo que os mesmos não teriam o “berço” necessário para estudarem

naquela escola.

Distinção por meio de diferenças pessoais

Conforme antecipei, os significados das marcas advindos das diferenças pessoais

usadas como meio de distinção são de duas naturezas, as quais chamei de capital humano e

capital social, conforme já pude explicar. Em relação à primeira, identificamos o intelecto e o

talento. Este último aparece em nossas investigações por meio da sugestividade de

“habilidade esportiva”. Exemplo disto temos no argumento de mãe que menciona querer

tirar sua filha do atual colégio em que estuda por este ter uma piscina muito pequena e a

menina já estar nadando muito bem, o que lhe conviria uma escola que tivesse “piscina

olímpica” [#3].

Quanto ao que chamei de “intelecto”, uma de suas características se refere à

demonstração de “conhecimentos gerais” por parte de alguém e como isto pode se tornar um

significado da marca. Como exemplo podemos mencionar situação [#62] em que duas colegas

criticam forma como uma terceira veste-se com uma camisa da Diesel e uma calça “sem

marca”. Com isto, as duas sugerem conhecimento de moda e o que seria adequado para se

combinar com as roupas da marca em questão.

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Outro aspecto do que classificamos como “intelecto” se refere à inferência de que

alguém seja uma “pessoa estudada”. Quando falante, ao sair de posto de saúde em subúrbio

recifense, diz que, se fosse médica, queria trabalhar num hospital como o Português ou Santa

Joana [#2], justifica seu comentário suspirando: “Estudar tanto...”. Com isto, significa

hospitais como aqueles como sendo formados por profissionais de grande competência

acadêmica.

Esta mesma situação nos serve para ilustrar característica de um dos tipos de

capital social, o prestígio. Em nossas investigações este se refere a “ocupações valorosas”.

No caso acima o comentário da falante se mostra cabível não apenas pelo “estudo” do

profissional, mas também pelo fato de se referir a uma ocupação com grande reconhecimento

social.

Por fim, o segundo e último tipo de capital social se refere à rede social das

pessoas. Temos aqui quatro características. A primeira se refere a “amigos importantes”. Em

situação [#14] em que falante menciona a Intermares garante a seu interlocutor que o mesmo

será muito bem tratado se lá for, sobretudo se disser que é seu amigo, uma vez que a mesma

pertence a um amigo de um tio seu.

A segunda característica identificada se refere ao “ciclo de amizade” das pessoas.

A diferença entre esta e a anterior é o fato de aqui não haver a “notoriedade” do amigo em

questão, mas ao contrário, uma aproximação estreita. Por exemplo, falante distingue-se de

interactante quando este menciona seu gosto por Johnny Walker red, ao comentar que sempre

bebia uísque daquela marca com um finado amigo que “só trazia do preto” [#24] referindo-se

ao fato deste ser de qualidade e preço superior ao primeiro.

Outra característica de rede social se refere a “pessoas importantes”. Apesar de

parecida com a primeira, sua diferença reside no fato de aqui a pessoa importante não ser um

amigo. Assim, a distinção projetada se baseia num vínculo indireto, graças ao fato de se

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dividir com tais pessoas certos hábitos. Como exemplo podemos destacar situação [#9] em

que, ao ser posto à prova sobre a credibilidade do restaurante A Traíra, falante menciona que

no mesmo costuma ir até políticos, no que cita, especificamente, Jarbas Vasconcelos, então

governador de Pernambuco.

Finalmente, uma última característica de rede social se baseia em “relações de

parentesco”. Exemplo disto temos em situação [#4] em que mulher projeta distinção com

base em suposta qualidade de sua cunhada, uma vez que a mesma havia presenteado seu

marido com roupas da Diesel.

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13 Marcas como reflexo de valores humanos Nossa última família de significados das marcas é relativa a signos de valor. Por

valor aqui me refiro a valores humanos. Rokeach (1968) define valor como uma crença que

guia ações e julgamentos através de objetivos e situações específicos, para estados finais de

existência mais profundos. Uma vez internalizados, os valores se tornam, conscientemente ou

não, um padrão de critérios que guia ação, desenvolvendo e mantendo atitudes em direção a

objetos e situações. Assim, são usados para criar e utilizar condições de moralidade e

competência, para mediar interações sociais e para apoiar a racionalização de crenças, atitudes

e comportamentos. Do ponto de vista da alteridade, ainda, possibilita que justifiquemos ações

e atitudes nossas e dos outros, que julguemos a nós e aos outros moralmente ou mesmo que

nos comparemos aos outros.

Tais valores estariam organizados em estruturas e subestruturas hierárquicas,

formando um sistema de valores de uma pessoa. Este sistema pode ser assumido como a

representação de uma organização aprendida de regras para que as pessoas possam fazer

escolhas e resolver conflitos entre dois ou mais modos de comportamento e estados-finais de

existência.

Os valores são centrais tanto para a vida dos indivíduos quanto para a sociedade

como um todo. Para Rokeach (1979), os valores podem ser identificados como pessoais

(individuais) ou sociais (institucionais, culturais, organizacionais). No entanto, são como dois

lados de uma mesma moeda, ambos partilhados socialmente. Para o autor, enquanto o

primeiro tipo apresenta-se como representações cognitivas de necessidades pessoais e dos

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meios para satisfazê-las, o segundo apresenta-se como representações cognitivas de objetivos

institucionais. Ou seja, valores sociais são crenças partilhadas que caracterizam um grupo de

pessoas e definem o comportamento aceito como normal para uma sociedade ou um grupo;

valores pessoais, por outro lado, definem o comportamento aceito como normal para um

indivíduo. Vale ressaltar que, sendo o ser humano um ser social, os valores da sociedade ou

grupos de referência influenciam seus próprios valores pessoais. No entanto, uma vez

internalizados, estes valores tornam-se, de fato, pessoais e determinantes de comportamento

individual.

Assim ocorre porque os valores são aprendidos, não são inatos – de outra forma,

se estivéssemos tratando de algo realmente individual, estaríamos no campo das

idiossincrasias, não dos valores. E tal aprendizagem ocorre culturalmente, conforme asserta o

próprio Rokeach. Apesar de sua evidente orientação cognitiva – o que se explica pelo mesmo

fazer parte de uma escola psicológica da psicologia social –, o autor assim nos deixa uma

pista: valores são sempre culturais, sejam eles expressos por um grupo ou por uma pessoa

apenas, uma vez que sua aprendizagem ocorre por meio do imbricamento que cada um tem

em suas formas de vida. São, por isso, valores humanos.

Com os resultados de pesquisa que realizou junto à sociedade estadunidense nos

anos sessenta, Rokeach propôs uma tipologia dividida em valores terminais e instrumentais,

assumindo os primeiros como a representação da preferência de estados finais de existência e

os segundos como os modos de comportamentos preferenciais para se chegar àqueles valores

terminais. Tal tipologia, constituída de dezoito valores terminais e outros dezoito

instrumentais, se transformou na Escala de Valor de Rokeach (RVS) (ROKEACH, 1973), que

se tornou, desde então, num instrumento bastante utilizado para a mensuração de valores

humanos.

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367

* * *

Nossa perspectiva em relação a valores é assumida sob a ótica de sua gênese

cultural, conforme pude discutir. Trata-se de um ajustamento, mas não de um distanciamento

total, em relação ao conceito de Rokeach. De fato, de um olhar antropológico ao invés de

cognitivo, porém mantendo suas mesmas bases conceituais.

Quanto à classificação dos valores que identificamos, usamos a tipologia de

Rokeach apenas como referência, uma vez que, além de entender que tipologia alguma possa

antecipar todas as possibilidades vindouras sobre o que pretenda, a mesma advém de outro

tempo e de outra sociedade. Atemo-nos, sim, a uma compreensão do que sejam valores. Com

isto, chegamos a alguns valores que se enquadram, parcial ou totalmente aos de tal tipologia,

mas também a outros ali não previstos.

Foram dez os valores a que chegamos como signos marcários. Todos podem ser

enquadrados como o que Rokeach definiu como terminais. Porém, em nossa classificação,

faço uma divisão que não a daquele autor, mas uma própria, composta por valores morais e de

ímpeto55 (ver Figura 8).

Os valores morais são aqueles relacionados a regras tácitas de princípios e

condutas socialmente aceitas, tanto no que se refere ao convívio social quanto às orientações

pessoais. Estão aqui a auto-estima, a felicidade, a igualdade, a segurança e a busca por ser

respeitado.

55 A presente classificação inspira-se numa anterior, proposta por mim e colegas (LEÃO e SOUZA NETO, 2003), com base em survey exploratória, em que pesquisamos os valores das marcas sob a ótica do conceito antropomórfico de “personalidade de marca” na perspectiva dos consumidores. Na ocasião nos utilizamos da Lista de Valores (LOV), uma adaptação dos valores terminais da RVS para a área de comportamento do consumidor, composta por nove valores, e descobrimos uma configuração destes por meio de dois fatores nunca antes identificados. Pelas suas características e nossa analogia à noção de personalidade, batizamo-los de “valores influenciados pelo superego” e “valores influenciados pelo id”, apesar de fazê-lo com ressalvas, dada a perspectiva cultural acerca dos valores que então já assumíamos.

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Figura 8: Árvore de significados dos “valores”

de Ímpeto

Auto-estima “Auto-preservação”

“Equilíbrio” “Jovialidade”

“Sensualidade”

Apego “Meu bibelô”

“Minha paixão” “Minha terra”

Diversão/prazer “Badalação” “Bem-estar”

“Brincadeira” “Conforto”

“Prazer”

Afeto “Atenção” “Carinho” “Cuidado”

Felicidade “Riqueza”

“Nostalgia”

Igualdade “Cidadania”

“Justiça”

Pertença “Família” “Grupo” “Lugar”

Relacionamento “Aproximação”

Segurança “Garantia”

Ser respeitado “Abrindo portas”

“Agradando” “Gozando de credibilidade”

“Sendo esperto” “Sendo uma referência”

“Tendo êxito” “Tendo rede social”

Morais

Valores

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Os valores de ímpeto, por sua vez, se referem à busca de satisfação dos desejos

mais viscerais, na relação entre pessoas ou entre pessoas e certos objetos. Dentre os valores

identificados em nossas investigações fazem parte deste grupo o afeto, o apego, a

diversão/prazer, a pertença e o relacionamento com os outros.

Valores de afeto

Um dos significados das marcas se refere ao seu uso como demonstração de afeto.

Temos aqui três tipos: atenção, carinho e cuidado. Por “atenção” me refiro a alguém ser

atencioso com o outro como fruto de sua afeição por este. Por exemplo, sabendo que sua

sobrinha estava interessada em comprar um ventilador novo, tia liga para a mesma para

informá-la de um, da Arno, que havia visto em promoção e garanti-la ser muito bom, uma vez

que ela mesma tem um daquela marca [#27].

Por sua vez, o “cuidado” se refere a um tipo de atenção especial, motivada por

alguma situação preocupante. Quando pai orienta sua filha a tomar Taffman-E e não guaraná

em pó para manter-se acordada para os estudos, por entender que este último seja nocivo à

saúde [#74], demonstra cuidado com a mesma, tanto ao compreender sua necessidade quanto

em tentar preservá-la de maiores danos.

Por fim, por “carinho” me refiro a circunstâncias em que há uma demonstração

de afeto por meio de uma tentativa de agradar o outro com o que lhe seja de gosto. Para

exemplificar podemos mencionar situação em que tia, ao entrar em supermercado e ver

bolinhos da Bauducco com Shreck na embalagem, lembra-se dos sobrinhos e leva um para

cada. Neste caso, ela sabe que eles gostam de bolo, mas, além disto, tem também noção do

quanto gostam do personagem em questão.

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Valores de apego

Os valores de apego são aqueles que são fruto de uma relação direta entre alguém

e alguma coisa, em que há um certo sentimento de propriedade. Os signos de apego das

marcas se referiram a três aspectos diferentes, relativos ao sentimento de “ter” uma terra, um

lugar próprio, ao “ter” algo abstrato que provoque paixão e, finalmente, ao “ter” a posse de

algo concreto.

Assim, um primeiro significado das marcas por meio de apego se refere ao

sentimento de se ter a “minha terra”. Este pode ser demonstrado pelo orgulho de falante ao

mencionar como se sentiu ao perceber que sua terra (Pernambuco) tem valor fora, o que lhe

pareceu evidente pelo fato da Pitu custar bem mais caro em Fortaleza do que em seu estado de

origem [#23].

Outro apego relativo aos significados das marcas, portanto, refere-se a se ter

“minha paixão”. Exemplo disto pode ser ilustrado pela relação de uma falante com a banda

de rock U2 ao afirmar que apenas aqueles com trinta e poucos anos – no que descreve-se –

são seus verdadeiros fãs [#52], deslegitimando aqueles iniciados há menos tempo, numa

demonstração de ciúme.

Finalmente, as marcas também são significadas, em termos de afeto, pelo

sentimento de alguém de ter “meu bibelô”. Um exemplo aqui pode ser a relação de

proprietário de um Peugeot 206 que participa de comunidades virtuais e grupos de discussão

formados em torno da marca, que se atém até à que calibragem seria a ideal para tal carro

[#38].

Valores de diversão/prazer

Por “diversão/prazer” me refiro a valores relacionados a aspectos hedônicos. Um

primeiro é a “badalação”, uma busca por experiências agitadas. Em situação [#103] em que

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taxista levava turistas para o aeroporto o mesmo assim caracteriza o Rio de Janeiro, ao

mencionar que, diferentemente daqueles, que haviam optado por um roteiro “cultural”, a

maioria dos visitantes que chegam na cidade querem ir para a noite e normalmente procuram

um baile funk. “Baile!”, enfatiza, “né qualquer funk, não”.

Outro valor de diversão/prazer é o “bem-estar”, no que me refiro aqui não a um

reparo de mal-estar, mas a uma busca de sentir-se bem, como forma de prevenir seu lado

negativo. Assim temos em situação [#24] em que falante, ao contar história de carnaval em

que tivera bebido uma garrafa inteira de Johnny Walker numa única noite, comenta ter ficado

“bonzinho” no dia seguinte.

As marcas também significam a possibilidade de se gerar uma “brincadeira”

entre interactantes, seja em ambientes formais ou informais. É usando um conceito de marca

que aluno, para fugir de pergunta do professor que exigira uma maior articulação, cria um

clima descontraído ao comentar que a Coca-Cola “é isso aí” [#109]. É também assim que

falante, em sua festa de noivado, foge de cobrança de um de seus convidados por cerveja,

fazendo uma piada ao dizer-lhe que o mesmo está “redondo” porque toma muita cerveja

[#138].

Outro aspecto de diversão/prazer é o “conforto”, em que aqui me refiro a tal não

apenas pelo que artefatos materiais podem oferecer, mas também certas experiências. Um

exemplo pode ser dado por situação em que falante justifica à sua mãe sua escolha por

comprar material escolar no Atacadão da Papelaria de um shopping, quando esta questionara

se ali não seria mais caro [#29], sugerindo que ir fazer compras no centro da cidade seja

desconfortável por exigir que se ande muito.

Por fim, a dimensão em si de “prazer”, que se refere a uma experiência de

deleite, seja ela sensível ou abstrata. Aqui podemos mencionar, respectivamente, situação [#8]

em que falante, após demonstrar seu conhecimento acerca do Johnny Walker, revela que o

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uísque que realmente gosta é Old Eight, e ocasião em que fã, com um ar de alegria, diz a seu

interlocutor ter chegado em casa a tempo de ver o show ao vivo do U2 no Brasil que houvera

sido televisionado [#55].

Valores de pertença

A pertença também é um valor. Evidentemente, o mesmo remete-se a um dos

aspectos de identidade comunal. Entretanto, como valor, a pertença apresenta-se de forma um

tanto diferente. Enquanto ali temos a pertença como uma forma de alguém mostrar

identificação ou sentir-se identificado com ou em relação a algo específico, aqui vemos a

importância atribuída por alguém em fazer parte de alguma coisa, o que atribui a este uma

noção mais geral.

Os valores de pertença podem se referir ao fazer parte de uma família, grupo

(não-familiar, de associação ou referência) ou lugar. O primeiro caso pode ser ilustrado com

situação [#13] em que tio e sobrinho se encontram em supermercado e conversam sobre jogo

emocionante que o Sport fizera dias antes contra o Coritiba. Em certo momento, já tendo eles

envolvido na conversa a Copa do Mundo que iria começar em algumas semanas e a final da

Liga dos Campeões da Europa (torneio de clubes daquele continente) vencida pelo Barcelona

um dia antes, o tio realizou o quão seu sobrinho gostava de futebol e do time cuja paixão é

tradição na família e, ao dizê-lo isto, mencionou que ele aprendera com o pai (seu falecido

irmão).

Em relação ao significado das marcas como valor de pertença a um grupo,

podemos mencionar exemplo por meio de situação [#68] em que falante menciona que

passara a usar Puma quando seus amigos adotaram a marca, mesmo reconhecendo que a

mesma não é confortável.

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Por fim, a já mencionada situação em que falante menciona preço da Pitu em

Fortaleza [#23] nos serve como ilustração de exemplo de um significado da marca por meio

de um valor de pertença a lugar, no caso, Pernambuco, seu estado natal e onde a cachaça em

questão é fabricada.

Valor de relacionamento

Dentre os valores de ímpeto, o último é o de relacionamento, que se refere ao

valor de alguém em se relacionar com os outros. Em nossas observações, tal valor se refere a

como as marcas são usadas como forma de se aproximar dos outros. Isto acontece, por

exemplo, em situação [#14] em que falante busca ponto de afinidade com seu interlocutor por

meio de assunto que pode aproximá-los: o fato de ambos serem proprietários de um Peugeot

206.

Valores de auto-estima

O primeiro de nossos valores morais é a auto-estima. Temos aqui quatro de suas

especificidades. Um mesmo exemplo nos serve para ilustrar duas delas: “jovialidade” e

“sensualidade”. Quando mulher diz que vai “arrasar em Porto” com seu biquíni “lindo” e

“bem pequenininho” da Água de Coco, enfatizando seu potencial sensual e jovial, podemos

identificar sua busca de restabelecimento de estima própria após recente separação

matrimonial, uma vez que faz questão de mencionar que ganhara o mesmo de sua (agora

recente “ex”) sogra.

Outro valor de auto-estima refere-se a uma busca de equilíbrio decorrente de

algum transtorno. Como exemplo podemos citar situação [#37] em que falante compensa-se

por frustração em não comprar sandália da Arezzo, adotando possibilidade de comprar uma

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da Datelli, no que demonstra deslumbramento ao passar pela frente de uma loja daquela

marca.

Por fim, um último aspecto de auto-estima é a “autopreservação”. Um exemplo

pode ser dado por meio de situação [#59] em que falante foi incumbido, juntamente com seu

concunhado, de comprar cerveja Skol para festa de carnaval em família. Ao chegar em

mercadinho do bairro e não encontrar tal marca na quantidade combinada, optaram por

completar o total com Antarctica. Já em casa e degustando um copo desta última, falante

comenta nunca ter percebido antes, mas que a Antarctica estava agora melhor do que a

concorrente.

Valores de felicidade

A felicidade é outro valor que se apresenta como significado das marcas. A

mesma aparece em nossas observações de forma implícita, por meio de pistas, sem que

alguém fale em felicidade propriamente, mas revelando tal sentimento em suas reações às

atividades marcárias, o que deve ficar evidente quando mencionarmos nossos exemplos a este

respeito.

Antes de apresentarmos suas especificidades, porém, acredito que seja necessária

uma pequena discussão, uma vez que a felicidade está relacionada às marcas, em nossas

investigações, como signo de valor moral. Contudo, não seria a felicidade um valor de

ímpeto? A princípio sim. No entanto, na forma como se revela em nossas observações

sugerem a felicidade como uma moralidade, justamente pela forma como é significada: por

meio de riqueza ou de nostalgia. No primeiro caso, trata-se de um condicionamento que

assume a pobreza como uma impossibilidade à felicidade. No segundo, esta é deslocada a um

tempo remoto, vivido ou apenas imaginado, onde se mantém preservada de uma vida

presente, cheia de atribulações e responsabilidades. Portanto, a felicidade que temos aqui não

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nos remete a uma busca pura de realizações plenas, mas a condições que, colocadas fora de

alcance, são impeditivas de tal possibilidade.

Em relação aos significados das marcas como felicidade baseada na possibilidade

de riqueza, podemos demonstrar um exemplo por meio de situação [#36] em que falante,

com os olhos brilhantes, comenta que, se fosse rica, “queria viajar muito, ter uma casa, um

carro decente...”, no que, em relação a este último, é mais específica e menciona uma

Mitsubishi Pajero.

Quanto à felicidade guardada numa nostalgia, podemos ilustrar duas situações,

representativas de um passado vivido e outro apenas imaginado. Em relação ao primeiro caso,

a situação [#66] em que falante reclama direito de chamar o videogame Super Mario Bros de

“Mario e Luigi” por ser assim que se referia ao mesmo quando era criança. Em outra situação

[#40], após rejeitar todas as opções que se lhe apresentara para o carnaval, falante reage com

um rosto expansivo, olhos brilhantes e um largo sorriso ao comentário de seu interlocutor de

que as prévias do Bloco da Saudade já haviam começado e, suspirando, acrescenta Madeira

do Rosarinho e Bloco das Flores e um deleitado “Nossa!”, ao se imaginar todos aqueles

blocos que resgatam o frevo romântico de uma época saudada como perdida num tempo que

não volta mais e que ele sequer viveu.

Valores de igualdade

Outro valor moral é a igualdade. Em nossas investigações este se apresenta em

dois aspectos como significados das marcas: cidadania e justiça. O primeiro pode ser

exemplificado por situação [#77] em que falante denuncia funcionários da Celpe por estarem

conversando enquanto clientes esperam para serem atendidos, afirmando que isto não

aconteceria se a mesma tivesse concorrência. Com isto, sugere que tal empresa, apesar de ter

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sido privatizada, ainda tem um papel cidadão a desempenhar, uma vez que é a única

fornecedora de um serviço básico.

O senso de justiça, por sua vez, pode ser exemplificado por situação em que

falante demonstra-se revoltado pelo fato do Santa Cruz ter destinado um espaço mínimo à

torcida do Sport, da qual ele faz parte, para jogo realizado contra este em seu estádio, uma vez

que as duas teriam o mesmo tamanho [#18].

Valor de segurança

As marcas também são assumidas como valor de segurança, tendo o significado

de dar garantia. A garantia aqui se refere à própria confiança que as pessoas desenvolvem

pelas marcas. Isto fica evidente, por exemplo, em situação [#69] em que falante faz questão

de explicar à sua interlocutora porquê só compra medicamentos genéricos se forem da

Medley.

Valores de ser respeitado

Dentre os valores que identificamos em nossas investigações, aquele com maior

variabilidade é o de ser respeitado pelos outros. Temos aqui sete de seus aspectos. O primeiro

é “abrindo portas”. Exemplo disto temos em situação [#85] em que falante, ao ser

questionada se a forma como está vestida é adequada para ir à faculdade, responde,

estarrecida, que sua roupa é da M. Officer. A marca, assim, é significada como um passaporte

livre.

Outro meio entendido como meio de ser respeitado é “agradando”. Apesar de se

tratar de agradar ao outro, não devemos confundir este com aquele relativo ao afeto, uma vez

que o agrado aqui é concedido com outro propósito. A atenção, nesta perspectiva, acontece,

por exemplo, quando falante preocupa-se em comprar Skol para sua festa de noivado por

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acreditar que seria a preferência de seus convidados [#39]. Desta forma, sua preocupação é a

de ser julgada como boa anfitriã.

As marcas também são tidas como meio das pessoas serem respeitadas em se

“gozando de credibilidade” por meio delas. Podemos ilustrar tal característica com situação

[#8] em que, ao risco exposto pela dúvida levantada sobre se A Traíra estaria aberta, falante

restabelece sua credibilidade afirmando que o mesmo é confiável, fazendo parte, inclusive, do

catálogo 4 Rodas.

Outro significado das marcas advindo do valor de ser respeitado está em alguém

“sendo esperto”. Tentando convencer interlocutora a comprar ventilador que havia adquirido

em promoção, falante demonstra sua esperteza – e põe a da outra em xeque –, sugerindo que

esta seria “besta” se não aproveitasse oportunidade, uma vez que o mesmo estava por

“somente cento e cinco reais” [#32].

As pessoas também procuram serem respeitados “sendo uma referência” por

meio das marcas. Exemplo disto temos em situação [#17] em que falante insiste com sua

interlocutora que vá à Corbello conhecer os seus sapatos. Como isto, a marca assume o

significado de propiciar àquela a possibilidade de se apresentar à outra como uma referência

pessoal.

O valor de ser respeitado também é significado das marcas como a possibilidade

de alguém demonstrar que está “tendo êxito”. Quando falante critica a Sopece como forma de

denegrir sua interlocutora, esta busca ser respeitada dizendo que existiu concorrência para sua

aprovação, uma vez que havia muitos candidatos no dia da prova e apenas uma quantidade

bem menor havia passado no vestibular [#33].

Finalmente, um último aspecto do valor de ser respeitado como significado das

marcas é se “tendo rede social”. Podemos ilustrar tal aspecto por meio de situação [#14] em

que falante garante ao seu interlocutor que este será muito bem tratado se for à Intermares e

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disser que é seu amigo, devido ao fato dele ser sobrinho de um amigo do dono daquela

concessionária de carros.

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Parte III Desfecho desta caminhada

Compreender a significação das marcas pelos consumidores certamente não deve

ser pensado como uma tarefa fácil. Para assumir a possibilidade de uma compreensão “total”,

se assim podemos dizer, desta significação, precisaríamos admitir a impossibilidade

contingencial disto ocorrer em um esforço único, uma vez que seria necessário que todas as

formas de vida expostas ao consumo fossem acessadas – no que seria difícil imaginar aquelas

totalmente excluídas de tal exposição em nossos dias –, bem como a impossibilidade de

chegarmos a um ponto final, graças a estarem vivas as formas de vida e, portanto, em

constante mudança.

Assim, minha caminhada deve ser entendida como parte de uma longa trajetória.

Começamos por uma pequena cidade, sabendo tratar-se de um caminho possivelmente sem

fim – tal qual é ou pelo menos nos parece infinito o universo em nosso finito conhecimento.

Sendo assim, não pretendo imaginar que a significação que pude olhar seja toda a significação

possível, nem que os significados a que me levaram sejam todos os significados existentes.

Mas nunca o serão, afinal. Aonde chegamos, por certo, é parte de como a significação se dá e,

como tal, demonstrativa de nossa busca de compreensão.

Sendo assim, esta caminhada nos é reveladora não só dos significados construídos

para as marcas nas formas de vida acessadas, mas também de como elas passam a fazer parte

do modo de vida das sociedades contemporâneas. Ainda que não as represente por inteiro, as

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formas de vida observadas pertencem a esta contemporaneidade e, como tal, dela trazem

traços fundamentais para sua compreensão.

Os significados das marcas a que chegamos, por sua vez, também são fidedignos

destas sociedades. Como não poderia deixar de ser, eles refletem o mundo em que vivemos.

Ainda que em suas especificidades na forma de uso da linguagem representem as relações de

formas de vidas específicas, suas categorias parecem poder nos desvelar, pelo menos em

parte, a presença das marcas em e sua relação com um mundo que, não é de hoje, encontra-se

em crise.

A crise, neste caso, encobre uma nefasta relação entre produtores e consumidores,

num mundo em que a vida encontra-se aprisionada pelo sistema. O valor das marcas, assim,

reflete, quase sempre, uma dominação silenciosa deste sobre aquela.

Mas como, então, resgatar o vivido? Entendo que apenas uma terapia social que

provoque uma profunda reformulação das relações sociais e da responsabilidade de seus

atores, por um lado, e, por outro, uma nova concepção do que entendemos por marketing

possam propiciar uma saída para este problema.

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14 As marcas num mundo em crise Tendo chegado ao fim de nossa caminhada, é hora de voltarmos às questões que

nos motivaram a tal empreitada. Ainda que não tenham sido apresentadas sistematicamente,

tais questões foram costuradas em nosso percurso reflexivo e são as responsáveis por nos

trazer ao ponto em que chegamos, mas, principalmente, por ter nos possibilitado a experiência

pelo caminho percorrido.

Com isto tenho em mente refletir sobre o que aprendemos e levantar novas

questões. Para tal, articulo minhas reflexões em torno dos pontos que considero chave em

nossas investigações. Primeiro, levanto um questionamento sobre se teríamos evidências

bastantes para considerar a existência de um jogo de linguagem próprio das marcas. Em

seguida, discuto a importância das marcas para as pessoas em nossos dias, o que faço tanto

sob uma perspectiva epistemológica quanto sob uma ontológica. Por fim, voltamos à idéia por

mim concebida acerca do valor de uso das marcas por meio da linguagem ordinária, no que

reflito sobre sua possibilidade, de acordo com o que pude observar nas investigações

marcárias.

14.1 Podemos falar de um jogo de linguagem marcário?

Voltamos agora a uma das questões motivadoras de nossas investigações: como as

marcas são significadas pelas pessoas em suas vidas cotidianas? Minha inspiração na filosofia

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de Wittgenstein transforma esta questão geral em algumas mais específicas. Podemos nos

questionar agora se há regras gerais de uso dos signos marcários, por exemplo. Uma

gramática profunda marcária, talvez? Enfim, será que as marcas têm um ou mais jogos de

linguagem próprios?

Como já havia comentado, minha pretensão não é a de “fechar o sistema” da

significação das marcas, até porque uma tentativa de explicação tal seria, no mínimo,

infundada. Como pude demonstrar, optei por uma incursão em que pudéssemos ver todas as

variedades que pude observar desta significação nas formas de vida que acessei. Passamos por

cada especificidade que minha competência comunicativa em relação aos jogos de linguagem

em que estive envolvido me permitiu fazer sentido, como forma não de tentar explicar tal

processo, mas de pô-lo à vista, compartilhar o que está à nossa frente e quase sempre

deixamos escapar.

Mas, afinal, podemos aqui falar de jogos de linguagem próprios das marcas?

Evidentemente seria prematuro fazermos uma afirmação contundente a este respeito.

Contudo, o que temos em mãos nos propicia que teçamos uma reflexão inicial sobre isto.

Nossas investigações me levam a crer que haja uma marca fundamental na linguagem quando

nos referimos às marcas. Esta é a ostensividade. Com isto quero sugerir que os signos

marcários não são usados nas interações sociais como componentes comuns, ou seja, não são

usados da mesma forma que outros signos. Suas aparições são sempre marcadas e marcantes.

Assim, nas situações em que marcas são incorporadas, estas passam a ocupar um papel de

criticidade tal, que creio não ser um exagero dizer que tais se tornem “situações marcárias”.

A significação das marcas conforme observada em nossas investigações nos

oferece evidências desta “marcação ostensiva” em todos os aspectos da linguagem. A

dimensão paralingüística talvez seja a que apresente este aspecto de forma mais explícita. A

acentuação, tanto por meio da ênfase tônica quando da soletrada, é usada, sobretudo, nos

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próprios nomes das marcas ou, quando não, destacando-as em algum aspecto direto. O mesmo

ocorre com as diferentes entoações e com os variados tons. A altura da voz, por sua vez,

participa da significação das marcas quase sempre em sua forma alta e não baixa. Situação

similar ocorre em relação à duração das elocuções, mais comumente significativas em sua

forma lenta do que rápida. E mesmo as variações ortoépicas também ocorrem

fundamentalmente nos nomes das marcas ou pelo menos em palavras que se refiram a algum

de seus aspectos.

Os aspectos extralingüísticos, à sua maneira, também demonstram ostensividade.

Os contatos visuais são, fundamentalmente, fitadas de olhos ou encaradas de olhar. Os

movimentos com a cabeça são enfáticos. Os movimentos dêiticos, carregados de

expressividade. As posturas, por sua vez, não são amenas, mas advindas de movimentos

bruscos, como se inclinar ou virar-se para alguém. Quanto às expressões faciais, as com o

rosto são, fundamentalmente, caretas – no que incluo olhos esbugalhados; por outro lado, os

sorrisos – principalmente aqueles usados ativamente e não como reação a algo – são quase

sempre expansivos, chegando a gargalhadas, ou, de outra forma, se apresentam como ares de

riso impregnados por malícia ou ironia.

Finalmente, em relação aos aspectos interacionais, a presença das marcas continua

sendo quase sempre ostensiva. Dentre os aspectos de visão êmica, as alternâncias de código se

referem a nomes ou características de marcas. O cenário, em parte significativa das ocasiões,

se refere a um ponto de venda da marca. Por sua vez, parte significativa dos conhecimentos de

mundo e dos contextos é conhecimento acerca das marcas e não conhecimentos outros.

Quanto aos aspectos de alteridade, em relação à construção da face, as marcas, via de regra,

antes de serem usadas como meio de salvação, são a razão das ameaças que se colocam. Por

outro lado, também em relação ao footing, as pessoas não simplesmente fazem uso de marcas

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para tais movimentos, mas, ao contrário, são circunstâncias envolvendo marcas que, via de

regra, propiciam os mesmos.

Esta ostensividade, por outro lado, parece indicar um segundo aspecto crítico.

Tenho a nítida sensação de que as regras deste jogo de linguagem ainda não estejam

firmemente cristalizadas, ou melhor, que os códigos de uma gramática marcária ainda não

estejam todos compartilhados. Com isto quero dizer que este uso ostensivo parece se propor,

parcialmente – sem falar aqui de seu caráter social ainda –, a sinalizar para os interactantes o

que alguém tem em mente quando fala sobre as marcas. Em outras palavras, ostensivas são

também as pistas de contextualização que os interactantes intercambiam. Em certas situações

podemos perceber trechos em “branco” na interação, ou seja, certas passagens em que o

código marcário lançado por um demora a ser compreendido pelo outro, ou mesmo precise de

mais pistas para que isto seja possível.

Levanto aqui duas possibilidades para isto. A primeira se refere a uma possível

ocorrência, também aqui, de um efeito “trickle down”. Ao falarmos de consumo estamos,

inexoravelmente, tratando também, pelo menos em parte, de discrepâncias sociais. Isto

sugere, por princípio, que não possamos nunca falar de “um” jogo de linguagem marcário,

uma vez que o consumo de marcas se espalha, em nossas sociedades, pelas mais variadas

formas de vida.

Parece haver um movimento de imitação de certas formas de vida em relação a

outras de posição social mais alta – e aqui não me refiro àquelas mais baixas apenas, mas, por

exemplo, a como formas de vida de “novos ricos” imitam formas de vida de “ricos de berço”.

É como se códigos “naturais” de uma forma de vida fossem misturados a códigos trazidos de

fora, de outras formas de vida, e que seu processo de “naturalização” ao novo meio criasse os

“brancos” a que me referi. Não me refiro aqui a noções sobre que marcas são superiores ou

inferiores no estatuto social mais amplo. De fato, marcas consideradas “inferiores” neste

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espectro podem ser significadas num mesmo sentido, dentro de uma dada forma de vida, que

uma outra, “superior”, em outra forma de vida. Outrossim, o que tenho em mente com o que

sugiro, tem a ver com o “modo” de articulação dos signos, ou seja, parece haver uma falta de

naturalidade no uso de certos signos marcários em relação à uma forma de vida própria.

Este aspecto pode ser decorrente da segunda possibilidade que aqui levanto – o

que sugere que não sejam mutuamente excludentes. Se, no Brasil, o advento da sociedade de

consumo para além do acesso restrito das elites é um fenômeno recente se comparado a países

economicamente mais desenvolvidos, o consumo marcário propriamente é recente até para

aquelas elites – não estamos falando aqui de mais de trinta anos –, sobretudo, se falando de

produtos que não bens duráveis. Ocorre que, no processo de adoção, os imitadores precisam

se movimentar mais rapidamente do que aqueles usados como referência para que a distância

seja diminuída ao longo do tempo. E isto parece mais ocorrente num mundo informacional.

Sendo assim, parece haver uma “corrida” de formas de vida mais “atrasadas” em relação às

práticas de consumo de marcas.

Contudo, não parece haver dúvidas, por outro lado, de que uma noção sobre a

função das marcas esteja sedimentada. Os significados a que chegamos, não obstante, revelam

aspectos visíveis em qualquer sociedade. Talvez possamos estar falando aqui de um “ter em

mente (meinem) marcário” compartilhado pela sociedade de uma forma mais ampla. Talvez

isto aponte para uma possibilidade mais crítica: a de que estejamos presenciando uma

sociedade de consumo que nivela todas as formas de vida por meio de uma força hegemônica

baseada na própria lógica estruturante que tem ordenado as relações humanas ao longo de sua

história.

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14.2 São as marcas importantes para as pessoas?

Antes de me questionar sobre como as marcas são significadas pelas pessoas em

suas vidas cotidianas, minha preocupação originou-se de uma forma bem menos articulada.

Como vimos, queria saber se as marcas realmente têm valor para as pessoas e, se sim, que

valor seria este. Só num segundo momento, agora sim com certa articulação conceitual, e já

tendo em mente a questão da significação por meio da linguagem ordinária, esbocei um

caminho teórico que me levou a propor que se trataria de um valor de uso.

À primeira questão, a resposta que nossas investigações sugere tem a ver com

algo que cheguei a emular. O que vemos é que as marcas se tornam importantes para as

pessoas na medida em que assumem uma função de mediadoras simbólicas das relações

humanas. Em nosso caminho nos deparamos fundamentalmente com um homo symbolicus e

não com um homo economicus. Aspectos de uma natureza funcional do consumo poucas

vezes foram evidenciados e, quando sim, não foram em uma articulação utilitarista, mas, no

máximo, apresentados como mais um dos aspectos das marcas envolvidas nas interações. Por

outro lado, vimos pessoas atentas aos rituais cotidianos, preocupadas com a opinião dos

outros, demonstrando aparentes incoerências, mudando de preferências efemeramente, sendo

acusadas de dissimulação, mau gosto, ignorância, mas também sendo lembradas, cuidadas,

queridas.

Neste sentido, podemos vislumbrar a relevância deste valor das marcas tanto por

uma perspectiva epistemológica quanto por uma ontológica. Para discutir tais aspectos, no

entanto, há que considerarmos duas características fundamentais com as quais nos deparamos:

o papel das marcas como símbolos maiores de uma cultura de consumo e como mecanismo de

controle social entre pares.

Não é de hoje que o consumo é assumido como um aspecto cultural da

modernidade. No entanto, mais do que evidenciar o consumo como cultura, nossas

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investigações sugerem, mais especificamente, que o uso das marcas tornam-se parte do acervo

de elementos simbólicos da cultura, alinhadas a hábitos, costumes e práticas sociais. O que

quero sugerir com isto é que estamos vivendo em um mundo em que, além de o consumo já

ter se transformado em comportamento cultural, temos que as marcas, e não quaisquer outros

signos, tenham se tornado os símbolos por excelência de tal expressão.

No contexto desta cultura de consumo, para um signo ter realmente um valor

simbólico precisa estar “marcado”. E isto parece fazer parte da própria evolução da sociedade

de consumo. Recorrendo à premissa debordeana, numa sociedade em que o parecer já superou

o ter, não é mais bastante a posse de um valoroso signo de consumo. Não importa mais, ou

pelo menos apenas, se ter um carro, por mais moderno ou se de última geração tecnológica,

mas qual seja; não importam as roupas que vestimos, se elegantes ou mesmo de luxo, mas

quem as assina. As marcas, assim, apresentam-se como “pátinas” modernas, se assim

podemos dizer.

Por outro lado, vemos que o consumo das marcas torna-se meio de se e controlar a

conduta social. Nas sociedades contemporâneas o consumo se tornou já uma instituição.

Como tal, tem poder de controle sobre a conduta humana, estabelecendo padrões do aceitável

e do inaceitável nas relações sociais, o que ocorre pela constante monitoração entre os

próprios membros de uma sociedade, para quem as normas institucionais encontram-se

cristalizadas. Neste sentido, temos que as marcas passam também a serem usadas como meio

de controle das pessoas pelos seus comportamentos na vida social. O uso das marcas passa a

ser padrão do que se pode e do que não se pode fazer, criando expectativas e propiciando

julgamentos. Com isto, estabelecem-se também como critérios de classificação das pessoas no

espaço social, indicando lugares próprios ou impróprios para as mesmas, de acordo com a

visão consensuada a seu respeito.

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Em nossa experiência vemos as interações sociais cotidianas girarem em torno de

tópicos ordinários cujas articulações dependem de diferentes fontes de conhecimento a serem

utilizados como referencial para que os diálogos que se desenrolam possam fluir. O êxito

destas interações depende da certeza que temos que o outro conosco partilha de um corpo de

conhecimento comum acerca do que está acontecendo em tais situações. Nossas investigações

sugerem que o conhecimento marcário, na sociedade em que vivemos, se apresenta como

fonte inesgotável e inestimável desta atividade, uma vez que seus códigos estão disseminados

e legitimados pelos seus atores. Com isto temos que o conhecimento acerca das marcas é

usado como ponto de partida, desenvolvimento ou conclusão de encontros sociais,

imbricando-se, sem que se perceba, na vida das pessoas.

Mas é evidente que nem todas as marcas contam com um mesmo estoque de

conhecimento e, mais ainda, este estoque não está disponível uniformemente pelas diferentes

formas de vida e sequer têm o mesmo significado ao serem por elas usados. Isto pode nos

ajudar a compreender em que medida certas marcas se tornam mais importantes do que outras

sem que suas funcionalidades sejam necessariamente diferentes. Podemos deduzir que umas

são mais significativas do que outras por serem mais participantes das formas de vida que

assim as consideram. Isto ocorreria por serem de um banco de conhecimento mais amplo ou

mais alinhado a certas formas de vida, o que tende a decorrer de sua história de uso

acumulado, ainda que passem por processos de ressignificação sempre que sejam novamente

usadas.

Por outro lado, já deve ter ficado evidente que assumo que as pessoas realizem sua

condição humana plena apenas quando na presença imediata do outro; que seja apenas na

alteridade que os seres humanos se reconheçam enquanto tal. Por outro lado, deve estar claro

também que corroboro que, em nossas sociedades, o “parecer ser” tenha se tornado o modo de

definir tal realização. Com isto, podemos realizar que os recursos simbólicos deixam de ser

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apenas componentes participantes das relações humanas e, como mediadores destas, passam a

ser tudo o que há neste projeto, sua condição vital.

Neste sentido, podemos também conceber que as marcas, tendo sido alçadas a

signos já mitologizados em e para um mundo orientado pelo consumo e por sua ética, passam

a fazer parte do projeto humano como uma de suas condições constituintes, assumindo-se

como força institucional, tal qual – ou quiçá ainda mais forte que – a família, a religião ou a

nação, dentre tantas outras.

14.3 É de valor o uso das marcas?

Mas, afinal, as marcas têm um valor de uso? Ora, isso depende de como

reflitamos sobre o valor de uso. De fato, penso que precisaríamos rearticular nossa noção de

valor de uso conforme desenvolvi em minha reflexão original. Ali deixei pistas que estava

assumindo uma perspectiva dupla de que o valor de uso presumiria não apenas a significação

das marcas pelo seu uso simbólico próprio nas interações sociais da vida cotidiana, mas

também um resgate de uma dimensão “natural” do consumo. Evidentemente, por natural não

tive em mente a perspectiva marxista, se assumo seu uso na interação social. Mas também não

aceitei a perspectiva (social) de Baudrillard de que este seria um álibi do valor de troca. Por

“natural”, tive em mente a perspectiva wittgensteiniana de um naturalismo antropológico. Em

outras palavras, que o consumo, como prática cultural, poderia ser uma versão moderna de

outros ritos que sempre fizeram parte na história humana. Isto pressuporia, portanto, um uso

“humano” das marcas.

De forma geral, não foi exatamente isto que encontramos. Nossos achados nos

indicam uma dupla perspectiva. Se, por um lado, eles representam traços fundantes da

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historiografia humana – e por ora não pretendo tecer juízos de valor a este respeito –, por

outro, a forma como eles se mostram reflete algumas das principais contradições de crises de

um mundo que rompe com fundamentos centrais do projeto moderno, mas que parece não ter

concebido ainda fundamentos próprios.

Mas de que crises estamos falando? Para discuti-las, acredito que precisemos,

antes, demarcar um ponto de reflexão acerca da posição da cultura em nossas sociedades. São

vários os autores que têm articulado reflexões acerca de uma formação cultural que se coloca

como hegemônica, num movimento paralelo à globalização, por muitos aceitos como

“mundialização”. No centro deste processo encontra-se a já deveras apregoada crise da

identidade. Esta se refere a um duplo movimento que tanto pode levar ao distanciamento da

identidade relativa à comunidade própria e à cultura local, quanto, por outro lado, a uma

resistência que pode fortalecer e reafirmar algumas identidades nacionais e locais ou levar ao

surgimento de novas posições de identidade. Por sua vez, a possibilidade da aceitação de

identidades hegemônicas tende, por outro lado, à concepção de estigmas em relação àquelas

“não-ajustadas”.

Em nossos achados não faltam exemplos disto. Temos estigmas de toda ordem.

Certas marcas são significadas como “coisa de pobre”, enquanto a compra de outras pode ser

atribuído a coisa de “pobre metido”. Outras marcas podem ser meio de definir aspectos

estéticos ou orientação sexual das pessoas. Isto apenas para citar alguns exemplos. Por outro

lado, como conceber que inventemos tradição para certas marcas ou mesmo que mitifiquemos

outras para, por meio delas, estabelecermos identidade? Ou mesmo que precisemos de marcas

para nos legitimarmos profissionalmente? Como vimos, muitos são os exemplos também de

reclamações a identidades sustentadas por marcas.

Uma segunda crise é a da legitimidade. Não me refiro aqui à crise política por

muitos apontada em relação ao poder de certos países e dos meios de comunicação de massa

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sobre o destino das sociedades e das nações. Outrossim, tenho em mente uma crise acerca da

legitimidade social. O espaço ocupado na hierarquia social tem sido, ao longo dos tempos,

usado como critério de legitimidade perante o outro. No entanto, por trás de tal processo de

mundialização encontra-se uma disseminação informacional jamais vista na história. Assim, o

chamado capital cultural, ainda que não distribuído democraticamente, encontra-se, pelo

menos, com acesso menos restrito. Com isto, o processo de determinação de hierarquias

sociais sofre de uma complexização que não havia quando, para tal, eram considerados apenas

critérios tais como ascendência familiar, ocupação ou poder pecuniário. Como se não

bastasse, este mesmo processo tem propiciado que novos estilos de vida explodam na esteira

de modismos efêmeros que, como num piscar de olhos, atravessam o planeta.

Como não perceber tais aspectos quando alguém é excluído por não saber usar

uma marca da forma “correta” ou quando portas se abrem para quem usa certas marcas? Ou

quando o uso de certas marcas propiciam que alguém se projete superior a outros ou mesmo

que se admita inferioridade por não se ter acesso a marcas assumidas como sendo “para

ricos”? Ou ainda quando se faça necessário se utilizar coisas “de marca” para se tornar

notório?

Por fim, vivemos também uma crise de valores. Não trata-se aqui de um

julgamento sobre bons e maus valores, uma vez que esta é uma assunção culturalmente

relativa. O problema está, me parece, justamente aí. Numa perspectiva, temos que, por um

lado, a possibilidade de uma hegemonia cultural cria contradições na relação das pessoas com

seus valores, uma vez que estes são localmente localizados e, por outro lado – e por esta

mesma razão –, que tal possibilidade cultural traga consigo uma impossibilidade intrínseca de

geração de valores, pela falta de referências desta para as múltiplas variedades culturais.

Numa segunda perspectiva, derivada desta, temos que o crescente processo de

individualização leve à impossibilidade mesma de valores serem sequer experimentados pelas

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pessoas, uma vez se tratarem de um plano compartilhado. Assim, vivemos uma era de

disseminação de supostas éticas individuais.

Não são poucos os exemplos desta crise que são desvelados em nossas

investigações. Senão vejamos: temos marcas capazes de fazer alguém se sentir jovial ou

sensual só por usá-la; felicidades projetadas por meio de marcas que só a riqueza pode

comprar; a crença de que a compra de certas marcas pode lhe conferir “esperteza”; vínculos

garantidos pela tênue linha do compartilhamento de marcas. Creio que estes exemplos já

propiciem uma visão do que quero dizer.

Sendo assim, podemos deduzir que nossas investigações apontam,

fundamentalmente, para uma significação enfeitiçada das marcas em seu uso na vida

cotidiana. Isto sugere que haja valor de uso, mas que este ocorra, em grande parte, como

fetiche. Por outro lado, não podemos falar das marcas em si como “gênios do mal”. Não as

vejo como a doença social de nossa época, mas apenas como um de seus sintomas. O feitiço

pela linguagem marcária existe, mas este se trata de mais um jogo no projeto sistemático de

controle da vida. Em outras palavras, o feitiço advém de uma agência mais ampla do sistema,

que tem nas marcas um de seus fios condutores, quiçá, o principal deles em nossos dias. A

sociedade de consumo torna-se, assim, o habitat natural das marcas, local em que elas podem

desempenhar as funções que lhes fora programada.

Com isto, podemos nos certificar que a vida se mostra, numa sociedade de

consumo, subsumida à supremacia do sistema. Esta subsunção demonstra-se legitimada, em

parte, justamente por meio das marcas, uma vez que estas são usadas naturalmente, como

parte da cultura.

Mas não temos nenhum aspecto que possa nos sinalizar um valor de uso não

enfeitiçado? De fato, algumas brechas se apresentam. Isto parece ocorrer em algumas

circunstâncias específicas, tais como quando a dependência das mesmas se torna evidente e

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inoportuna; quando pessoas se sentem à vontade com algumas delas; quando são remetidas ao

um bom sentimento; quando se tratam de marcas menos conhecidas; ou, ainda, quando se as

subverte.

Alguns casos foram observados e demonstrados. Os mesmos se referem a quando

pessoas não aceitam ser mal-tratadas enquanto esperem para serem atendidas; quando marcas

são usadas para se reclamar o valor de vínculos naturais – terra natal, família etc.; quando são

usadas para desvelar preferências espontâneas; quando com elas são criados climas de

descontração entre pessoas próximas; quando são usadas para se criticar ou ironizar a

realidade que se apresenta.

Isto nos possibilita considerar, portanto, a possibilidade da tese de uma

bidimensionalidade mundana. De podermos vislumbrar realmente um resgate do humano por

meio de um valor de uso não enfeitiçado. Das marcas serem apenas signos manipuláveis para

se estabelecer e desenvolver relações verdadeiramente humanas. Entretanto, tudo isto se

apresenta apenas como um traço fraco e pálido, como um tênue vestígio de luz em meio à

penumbra.

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15 Para uma terapia marcária Depois do que discutimos, podemos ter algum otimismo em relação ao uso das

marcas no mundo em que vivemos? Será que as brechas que identifiquei em nossas

investigações podem sugerir que exista uma possibilidade tal? Como antecipei em minhas

reflexões iniciais, ainda que não seja um otimista ingênuo, pessimista não sou. Creio que

brechas sinalizam a possibilidade de mudanças na forma como atualmente se mostra a relação

entre sistema e vida em relação ao consumo, apesar de entender que não se trate de uma tarefa

fácil.

Mantendo meu empréstimo da filosofia de Wittgenstein, acredito ser possível que

uma terapia marcária seja implantada. Uma do tipo social, evidentemente, e não exatamente

do tipo que o filósofo concebeu. Com isto quero dizer que possamos viver em um mundo não

sem consumo, mas em que este seja “terapeutizado”. Um mundo em que as marcas sejam

usadas como um meio possível de simbolismo cultural nas relações humanas, mas sem que

isto se transforme numa dependência viciosa e, por que não dizer, numa escravização dos

consumidores.

Nas próximas seções ofereço idéias iniciais para esta terapia marcária, que, no

meu entendimento, deva ser fruto de uma reflexão, articulação e agência mais ampla. Neste

sentido, primeiro articulo o que entendo dever ser o papel da sociedade como um todo como

responsável da mediação entre produção e consumo. Depois reflito sobre o que entendo ser

uma mudança de direcionamento crucial no marketing, tanto em sua faceta acadêmica quanto

em sua prática gerencial.

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Como não poderia deixar de ser, trata-se de uma concepção utópica, mas num

sentido em que não deva se prender a concepções “realistas” dos dias de hoje, mas numa

imagem possível de ideal de sociedade.

15.1 Por uma sociedade (de consumo) responsável

Certamente não sou o primeiro e nem serei o último a vislumbrar uma relação

nefasta entre produção e consumo. Se tal relação tem início quando a primeira excede a

capacidade do segundo, hoje temos que o sistema desenvolvido para garantir um equilíbrio

artificial entre os lados tenha passado de um esforço econômico a um fantasma da vida

privada. Desde tal advento, as sociedades humanas, que desde de seus tempos mais

imemoriais eram orientadas à produção, passam a viver sob a lógica do consumo. Sendo

assim, vejo que o termo “sociedade de consumo” deveria, a esta altura, ser convertido apenas

para “sociedade”. Entendo que o adjetivo tenda a maquiar a realidade de nossos dias, fazendo

parecer que o consumo seja tão somente uma das características do nosso mundo, quando, na

verdade, se mostra como aspecto dominante.

Não é proposta minha aqui tecer uma concepção acerca de uma mudança

estrutural desta sociedade. Ela é fruto de mudanças históricas e entendo que apenas desta

forma mudanças sejam passíveis de se tornarem concretas. Minha reflexão, portanto, pretende

contribuir, de alguma forma, para uma discussão multidisciplinar que possa repensar aspectos

fundamentais de nossa sociedade.

A importância de nos assumirmos como sociedade orientada pelo consumo é que

apenas assim poderemos passar a considerar os aspectos tanto estruturais quanto relacionais

do consumo como casos de mobilização coletiva. Não acredito – embora não seja espaço nem

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momento para se aprofundar o mérito – numa “conscientização” das pessoas, mas numa

articulação de agência social; na necessidade de que esta sociedade assuma sua condição atual

e sua responsabilidade a este respeito.

Quando me refiro à relação entre produção e consumo, entendo que a ação dos

consumidores deva ser resultado de uma articulação entre diversos segmentos da sociedade e

não fruto de ações individuais que, no máximo, possa minimizar temporariamente problemas

também individuais. O discurso de que os mesmos devam agir de forma a exigir dos

produtores, por exemplo, maior qualidade nos produtos, preços mais justos e melhores

condições de pagamentos, além de encobrir, fortalece a discrepância de forças entre os lados,

uma vez que coloca a responsabilidade em voluntarismos. Além do mais, focam-se em

aspectos intermediários e não nos problemas centrais da relação.

Um aspecto que me parece problemático nesta situação apresenta-se como

legítimo e benévolo. A noção de “direito” do consumidor. Escolho este ponto como o de

partida por entender que, apesar da intenção por trás do mesmo, este seja fruto, talvez o maior

deles, do enfeitiçamento do sistema sobre as pessoas. Ora, não me parece problemática a

existência em si de um direito voltado ao consumidor. O problema que pretendo demonstrar

fundamenta-se em aspectos mais profundos por trás do mesmo.

Ao ser parte do corpo do direito, temos que o papel de consumidor seja legitimado

dentro do contexto social. Em outras palavras, o “ser consumidor” passa a ser um papel social

legitimado por direitos próprios ao mesmo. No entanto, por não haver uma noção concreta

deste papel como cidadão, tal direito se torna a possibilidade em si de uma suposta cidadania.

Com isto, temos uma maquiagem do que este direito realmente deveria ser, qual seja

justamente a possibilidade de que cidadãos exerçam seus direitos enquanto tal. Sem

cidadania, tal direito apenas corrobora a fraqueza de um lado perante o outro, ou seja, da

dependência do consumidor junto ao produtor. Por outro lado, corrobora também a

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individualização da agência possível a este respeito, uma vez que depende da reclamação

daqueles que venham a se sentir prejudicados em situações específicas de troca

mercadológica.

Este aspecto sinaliza para um problema ainda mais crítico e que, de certa forma,

extrapola o próprio escopo de um direito do consumidor. Não há uma antecipação de

problemas e, muito menos, considerações acerca do problema central com o qual nos

defrontamos. As parcas ações remediadoras, fundamentalmente de fiscalização, continuam a

se referir ao um nível intermediário da situação. Aonde vemos problemas estruturais do ponto

de vista da reorganização social por que temos passado nas últimas décadas, não temos sequer

sinais de uma reformulação das orientações gerais acerca das novas relações sociais que, na

prática, já se tornaram reais.

Com isto quero dizer que, neste âmbito, o que se faz necessário é toda uma

rearticulação política. Para começarmos a tratar deste aspecto a partir do âmbito no qual já

venho desenvolvendo meu argumento, entendo que o que se faça necessário seja uma ampla

discussão entre os três poderes. Não apenas para que uma legislação mais ampla seja concebia

e posta em prática, mas, principalmente, para que políticas públicas acerca de um consumo

cidadão sejam pensadas.

Para tal, contudo, parece-me crítico a consideração de um outro aspecto: o da

política econômica. Sem o intuito aqui de assumir uma posição ideológica demarcada, o que

pretendo sugerir é que a adoção pelos governos de uma orientação neoliberal os leve a

corroborar e, até, trabalhar a favor do sistema que tenho denunciado. Mas reconheço que isto

não necessariamente ocorra por um propósito maligno, ms sim em nome do progresso, mito

talvez maior do projeto moderno, e, por outro lado, de um protecionismo do povo, mantido

como massa irreflexiva.

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Entendo que pelo menos quatro estruturas de agência social poderiam participar

desta ação. Uma primeira se refere à imprensa. Não é à toa que os meios de comunicação de

massa são considerados o “quarto poder”, tamanha sua influência sobre as opiniões e o

comportamento social. Não me parece que seja demais exigirmos que estes cumpram seu

papel social fundamental: o de informar imparcialmente e orientar para a cidadania. Contudo,

este papel não parece ser desempenhado para muito além de esporádicas denúncias políticas e

realização de ações beneficentes. Sobre o consumo, o pouco que vemos são matérias

oportunistas em épocas de eventos. Para além disto, o que vemos é o seu lado entretenidor,

que cada vez se torna mais absoluto, e tem se mostrado, via de regra, como uma ferramenta

deveras útil ao establishment. Como se não bastasse, os meios de comunicação de massa

precisariam transpor uma barreira maior: que sua dependência das verbas publicitárias dos

grandes anunciantes, quase sempre detentores das marcas cuja função é o enfeitiçamento dos

consumidores, não fosse meio de influência sobre seu papel de formadora de opiniões junto à

sociedade.

Outra estrutura seria a escola. Escola aqui como termo representativo de

educação. Após uma longa história de ensino funcionalista, vemos hoje esforços por uma

educação que possibilite a reflexão e a formação de cidadãos. Neste sentido, vemos este como

um caminho fundamental na formação também de consumidores-cidadãos. Para isto, contudo,

é evidente que seja necessário também que tenhamos programas e educadores não

enfeitiçados em relação à sociedade de consumo, no que retomo a um importante papel do

governo e seus órgãos relacionados à educação.

Vejo também a religião como uma importante estrutura na edificação de uma

cidadania nos termos que me refiro. Como instituição legitimada como orientadora da vida

“espiritual” dos homens, parece-me que seu papel moderno passe por uma reflexão crítica da

posição do homem na sociedade contemporânea. Não tenho em mente aqui uma ou outra

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religião em específico, mas sua noção fundamental de locus da fé. É bem verdade que vemos,

de forma geral, a religião como uma prática, ela mesma, de enfeitiçamento. Vemos até

situações em que algumas fazem parte do próprio sistema de troca mercadológica, ao

venderem “pedaços do céu”. Por outro lado, temos evidências de experiências religiosas em

prol da libertação de minorias oprimidas.

Finalmente, considerando-se o fim das grandes narrativas e a busca de soluções

pontuais por meio de esforços socialmente articulados, penso que uma outra estrutura de

agência social poderia ser a de organizações não-governamentais. Assim como tantas outras,

entendo que a busca por um consumo desenfeitiçado deva ser entendido e assumido como

causa social.

15.2 Por um marketing humano

Mas qual seria o papel dos produtores neste processo? O que poderia levá-los à

mudança? Assumo esta reflexão sob uma perspectiva de como o marketing, enquanto

mediador entre produção e consumo, poderia assumir uma posição também responsável em

nossa terapia social.

Faço isto a partir da noção assumida pela disciplina como sua mais recente

orientação para o mercado em seu processo “evolutivo”. Há alguns anos originou-se uma

nova discussão acerca de qual deveria ser a orientação da administração de marketing, uma

vez que, para que as “necessidades” e “desejos” dos consumidores fossem atendidos, vários

danos haviam sido causados à natureza e à saúde das pessoas. Daí surge a noção de

“marketing societal”, uma versão da tradicional visão de marketing acrescida de uma

preocupação com o bem-estar e o futuro das pessoas e sociedades.

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Penso que duas questões acerca de tal noção devam ser consideradas. A primeira

se refere a um uso “marqueteiro” da mesma. Grosso modo, o que vemos não são organizações

assumindo uma postura de verdadeira responsabilidade social e ambiental. Ao contrário,

desenvolvem programas ou patrocinam ações destas naturezas que contribuam para sua

imagem. Com isto, o apoio às mesmas tende a sofrer da dependência de o quão durável seja a

repercussão de tais estratégias, até que novas sejam implantadas.

Por outro lado, os aspectos considerados por tal noção, ainda que assumamos que

sejam praticados honestamente por algumas organizações, não considera o plano que aqui

proponho. Nenhuma prática de marketing foi articulada para refletir como o consumo tem

influenciado a própria condição humana.

Minha premissa é de que precisamos de uma noção que vá além da societal. O que

se faz premente é um marketing humano ou, em outras palavras, um marketing responsável

em relação ao próprio homem.

Mas como isto poderia ocorrer, alguém pode questionar. No mais, a noção comum

que se tem de tal disciplina indica justamente que a mesma proceda ao contrário, sugerindo

que o que aqui proponho seja, no mínimo, um contra-senso. Então, a quem caberia uma

reflexão e uma concepção de tal natureza?

É evidente a necessidade de que empresários e executivos adiram a um projeto tal.

Entretanto, penso que, antes de esperarmos que uma noção destas seja imaginada por estes,

caiba à academia pensá-la. Neste ponto retomo a concepção de uma ciência social do

marketing como distinta da administração de marketing – uma mercadologia talvez, mas não

como opção de uma tradução imprecisa para “marketing”, e sim como uma ciência da troca.

Para isto, no entanto, há que nós mesmos passarmos por um procedimento de

desenfeitiçamento. Como já pude sugerir, a ciência do marketing tem sido laboratório de

pesquisas sistemáticas para a geração de práticas gerenciais, assumindo-se como representante

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de um dos lados das relações de troca mercadológica. Prefiro crer que tal postura seja

advinda, mais uma vez, de uma versão de discurso progressista que pressupõe o bem-estar

social como resultante de uma economia de mercado exitosa, resultado esta, por sua vez, do

crescimento do consumo.

Eis o momento de uma mercadologia que também assuma sua responsabilidade

para com a sociedade; que realize seu projeto próprio: o de desenvolver o caminho para o

equilíbrio entre oferta e demanda, entre produção e consumo. E que conceba este caminho em

prol do projeto humano.

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Epílogo

E aqui estou... mudado, certamente. Ao fim desta caminhada, guardo várias

aprendizagens. Se nela entrei em busca de um maior conhecimento acerca de um objeto do

meu ofício, mas também do mundo em que vivo, creio que obtive êxito ainda maior do que

imaginava. Ao meu ofício, retorno menos enfeitiçado, quero crer, e com uma missão agora

mais bem delineada. Ao mundo em que vivo, retorno com a intuição de hoje conhecer melhor

o homem, o que minimiza o sentimento de amor e ódio que em relação a nós carrego.

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APÊNDICE – Exemplo de descrição de observação e de sua análise preliminar

Na área comum de um edifício duas

vizinhas conversam sobre a escolha da

escola da filha de uma delas.

“Meu filho está adorando a natação...” –

comentou uma delas.

A outra responde: “Ah... Minha filha

também. Estou até pensando em mudar ela

de escola. Ela já nada muito bem

[enchendo a boca], e a piscina do Pinheiros

[escola em que estuda] é muito pequena...”

– disse, em tom de certo desdém.

E continuou:

“Eu queria uma escola que tivesse piscina

olímpica. Só que o Santa Maria não dá...” –

disse, do nada, num tom um tanto

despeitado.

[os filhos de uma outra vizinha estudam

justamente no Santa Maria].

Cenário: o local em que a interação se desenrola ajuda a criar inferência sobre do que se está falando, sobretudo quando outra vizinha for considerada, sem que seja mencionada. Além disto, é fundamental para a sugestividade de que a mesma seja inadequada ao Colégio Santa Maria.

Tom: sugere rejeição à marca, por entender que esta não atenda à habilidade esportiva de sua filha (significado).

Tom: desvela frustração por não ter a filha estudando em tal escola.

Contexto: explica desvelamento de frustração por filha não estudar naquela escola.

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Ela continuou no mesmo tom de desdém:

“Pra fazer feito uns e outros, que moram

num prédio velho feito esse, com um carro

velho na porta... No Santa Maria só estuda

barão... [agora enchendo a boca] filho de

deputado, de empresário... Não vão nem

saber quem é minha filha lá...” – concluiu,

num misto de lamento e insinuação.

“Isso é verdade... só estuda no Santa Maria

quem tem condições” – concordou a

primeira com pequeno ar esnobe.

“Pensei no Colégio Boa Viagem...” –

continuou a outra num tom titubeante,

enquanto fitava a outra nos olhos – “É uma

escola boa, tem piscina olímpica... é de

classe média... [aumentando

gradativamente a voz e com um tom firme]

e lá todo mundo vai saber quem é minha

filha” – concluiu confiante.

Tom: sugere inadequação da vizinha à marca.

Conhecimento de mundo: pressupõe que interlocutora compreenderá que está se referindo a uma outra vizinha.

Footing: coloca-se de fora para denegrir a vizinha, ainda que sua própria face seja comprometida.

Cenário: sugere inadequação de quem lá vive para estudar no Santa Maria.

Conhecimento de mundo: sabe e espera que interlocutora também saiba que o preço é o mais alto da cidade.

Duração da elocução: duração lenta para enfatizar sua compreensão de que a vizinha seja uma usuária inadequada de tal marca, bem como para destacar um aspecto da mesma.

Face: ao estabelecer parâmetro social superior da marca, ameaça face da vizinha e preserva a sua, que havia sido auto-denegrida.

Entoação: reafirma sugestividade de frustração, agora por outra perspectiva, no caso da possibilidade de sua filha estudar na escola.

Tom: idem.

Tom: sugere que não sabem quem são os filhos da vizinha, corroborando sugestividade de inadequação dos mesmos à marca.

Significado: sugere que sua vizinha é uma “pobre metida”.

Entoação: sugere característica de quem estuda na escola e corrobora sugestividade de que a vizinha é inadequada à marca.

Tom: enfatiza característica do usuário da marca que entoação sugere.

Tom: ao mesmo tempo desvela sua escolha e solicita opinião à sua interlocutora.

Contato visual: fortalece solicitação de opinião.

Significado: sugere escolha como adequada à sua realidade.

Altura da voz: aumento gradativo de sua voz, enfatizando aspectos da marca, bem como seu juízo a respeito da mesma.

Tom: idem.

Entoação: enfatiza outro aspecto da marca e desvela sua expectativa em relação à escolha de tal escola.

Tom: idem.

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“É, mas também não é um Santa Maria...

[enchendo a boca] e também não é um

Pinheiros, né?!” [com certo desdém] –

concluiu.

Acentuação: sílabas destacadas para enfatizar aspecto da marca, bem como sua diferença em relação à outra.

Duração da elocução: corrobora enfatize no aspecto da marca, bem como sua diferença em relação à outra.

Entoação: idem.

Entoação: enfatiza aspecto da marca, bem como sua diferença em relação às outras.

Tom: corrobora ênfase no aspecto da marca, bem como sua diferença em relação às outras.

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